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SOBRE PIERRE DELALANDE

Quando Delalande nos abriu a porta de seu sótão da Lapa, encontrámos um homem parco, de palavras medidas, roupão negro, coçado, barba rala: um Balzac magro com migalhas de queijo nas mangas a limpar constantemente os óculos herdados de um bisavô e com um gato persa cinzento roçando-lhe o arrastar das pantufas. Delalande é discreto, conciso nos detalhes da sua intimidade (“eu sou um arrumador de complexidades, um meticuloso do quase-nada”), o que contrasta com flashes de exuberância de algumas das suas atitudes artísticas. Ele é o homem que canibaliza autobiografias, que mapeia coincidências, que aprimora o que não lhe sucede, o rapaz de Avignon que passou a adolescência em Dublin, e que prefere os poetas gregos do séc. XX (“de longe”) aos gregos antigos. Ele é um “irritualista”, um materialista, um amante da ciência, um ateu, na bela linhagem rítmica do autor de De Rerum Natura. Gosta do rugoso, do áspero, do esfarelado, das miudezas, das rugas, dos olhares franzidos, de beijos súbitos. Detesta a fama, empresários, vendedores e “vida social” (em especial feiras de arte e de literatura). Cultiva a elegância na dissimulação. Considera que podem surgir explosões de sublime muito breves, esguias, diagonais. A cauda de um pavão na esquina, o ondular catita de modos de andar, um ruído pavoroso, um vendaval tropical…

É difícil olhar para ele sem sentir o peso das sombras, o claro-escuro caravages co. As janelas estão entreabertas, há um cheiro a café (amargo, de sensualidade

cortante). Sentimos o ranger do soalho e os nós da madeira antiga saltam à vista, reluzindo nas luzes que sobram às portadas. Há aqui e acolá peque nos teatros de desmazelo, que parecem preparados, como se fossem naturezas mortas seiscentistas com um toque surrealista. Murmura — “Há um seu quê de patético e envergonhado em mim. As pessoas pensam que sou divertido… Continuo um adolescente desajeitado diante de raparigas irlandesas ruivas, igualmente desajeitadas, dizendo as coisas mais parvas aos tropeções”.

Delalande, com a sua inclinação anti-espiritual, diz que gosta de se sossegar nesse intervalo minúsculo que é a vida. Deixa-se existir para se inventar como possibilidades de possibilidades. A ideia do transitório, da impermanência, não lhe causa fastio. “Muito pior seria o contrário, a imobilidade permanente, os eventos monótonos, a vida indefinida… até o eterno retorno, com a melancolia inevitável e a constante recaída no que os italianos chamam noia. É certo que aproveitamos mal a nossa brevidade. Quem sabe se essa não é a forma perfeita de usar o tempo?…”

atopia com ternura

O seu amigo e copista [sic] John Rindpest escreve no último número de Art Fiction: “Delalande andou durante algum tempo a apropriar-se da personali dade de Borges num caderninho que levava para toda a parte. Um dia, fomos a um restaurante goês onde comemos um peixe extrardinariamente picante; julgo que era amotik de cação. Foi entre esse almoço e o regresso a casa que perdeu as anotações para a sua grande obra. Uma espécie de projecto metacuratorial, uma máquina de produzir curadorias ficcionais inspirada na arte combinatória do poeta argentino. Depois desta perda abandonou o projecto. Parou de trabalhar durante mais de um ano, dedicando-se a apurar os seus textos autobiográficos. Deixou-me em mãos a tarefa ingrata de reinventar o

seu projecto. Acho que não lhe conseguirei restaurar o súbito sumir do cader no, cujos conteúdos nunca li, e vou fazendo tentativas. Delalande deu-se conta de que todas as obras preparam secretamente o seu desaparecimento e o seu inacabamento e que, perante, isso há que alimentar o belo engodo ou antecipar a Esfera da Ausência (1).

Boa parte das suas obras são saturações das metamorfoses. Uma instalação de Delalande cobriu no Verão passado as enormes salas da Cordoaria de Lisboa, com variações repetitivas de autobiografias canibais. Mudanças ostensivas, re misturas, remisturas de remisturas, etc. O mesmo se passa quando trabalha em postais. Insiste, repete-se, redobra-se, sacia-se nas diferenças dissimuladas na pele da monotonia. “Emito signos, sem esperar que alguém os receba. Alighero e Boeti enviava postais para destinatários errados e recebia-os de volta. Talvez os carteiros os vissem em várias partes do mundo. Eu escrevo postais para mim mesmo, para tornar acutilantes as transformações. Nunca os envio. É como as garrafas com mensagens que se deitam ao mar. Pode ser que alguém um dia os venha a ler, e que isso os faça descobrir um tesouro fabuloso. Era uma aposta deste tipo que movia, por exemplo, o Pessoa e Nietszche. O seu primeiro alcan ce é uma fugaz alquimia de si. O seu segundo o de acelerar alquimias alheias”. A certa altura foram preponderantes as viagens que Delalande fez ao Egipto e ao Japão. A primeira por causa das suas leituras de infância, os Contos e Lendas do Antigo Egipto da Marguerite Divin e o Mistério da Grande Pirâmide, de Ed gar Pierre Jacobs. No Egipto encontra-se o livro associado à magia e à morte, à capacidade de encantar o mundo e à persistência do imaginário ligado à pintura. Delalande diz que escreve para poder reler-se depois da morte, e que o

1. A “Esfera da Ausência” é uma obra musical de Giuseppe von Lander, o seu compositor predileto e em cuja gravação Delalande colaborou.

atopia com ternura

mesmo se aplica às imagens que produz. “Pobres dos que não criaram imagens durante a vida, pois habitarão o fastio do vago quando defuntos”. No Japão, interessou-lhe o modo como se encena a perfeição da imperfeição, de como esta irrompe qual força maior, de como a dissonância coroa e deslaça todas as harmonias sensaboronas. Delalande compara o brotar do imperfeito com o su blime revolucionário. “Debaixo da guilhotina estão as cabeças da desordem. O hieratismo revolucionário vem com ganas devastadoras pronto para se desfazer do ornamento para sempre. O ornamento é a sublimação da sexualidade, e no séc. XVIII ele é marcado pela influência oriental, onde os fluídos da alcova se disseminam por todos os cantos, da fosca camponesa, às cabeleiras dos monar cas. A guilhotina prepara Adolf Loos, e a cidade moderna. As cidades moder nas são hinos à guilhotina, isto é, ao Terror.”

A título de curiosidade: a certa altura, Delalande contratou detectives para se guirem curadores. Foi o seu primeiro projecto meta-curatorial. Essa obra esteve recentemente exposta no Centro de Arte S. João da Madeira. Para escrever textos sobre artistas, há que investigá-los nas miudezas biográficas e encontrar evidências para além do que vem filtrado pelo debitado nos ensaios dos catálo gos e revistas, que espelham mais o narcisismo dos autores dos escritos do que as singularidades dos artistas.

Delalande faz performances imaginárias, e tenta documentá-las o mais possível através de notas e montagens fotográficas. Um dia (inspirado em Magritte) atirou 999 chapéus de coco para o rio Tejo, no Terreiro do Paço. Outra, andou a distribuir um pequeno panfleto em que estava escrito: A revolução faz-se no teu corpo sempre que a pensas intensamente. É por múltiplas razões que sou fã do trabalho, de algum modo lírico, de Pierre. As lendas nascem do secretismo e o

secretismo é a assinatura de Delalande. Eu também amo o seu trabalho, porque me permite amar o exacto e o imaginário de uma só cajadada.

Delalande é um cuidador da beleza e da ternura, um artesão que espreme as coisas até não pingarem, um curioso dos usos do seu apelido (“até há uma mar ca de anzóis Delalande” (2), um homem que se abre aos outros qual velha chave de portão de catedral ibérica, um autor com o seu quê de tentacular.

Delalande não é, no entanto, dado a palhaçadas. Cumpre um rigoroso itinerá rio duchampiano de discrição, infra-magro, de restos de alegorias raspadas com faca avoenga. Acredita que são as metáforas que salvam os conceitos, mas que, em última instância, não nos livramos deles. “Os conceitos até podem ser metáforas mortas, como escreveu Nietszche, mas aspiram à matematização teatral e ao recolhimento animal, para que possamos descansar do excesso de imagens e ser predadores eficazes”.

2 Há a registar numerosos Pierre Delalande, além de um personagem de Nabokov que “in fluênciou” esse escritor: O autor de Conciliorum Antiquorum Galliæ, supplementa, 1666; um naturalista, ornitólogo e explorador francês (27 de Março 1787 - 27 de Junho 1823), autor de Précis d’un voyage entrepris au cap de Bonne-Espérance (1822); um caso de Demência descrito em Répertoire universel et raisonné de jurisprudence: Additions : A - C, Volume 15 por Philippe An toine Merlin (1815), o Major francês que em 1939 traficou para os Estados Unidos os planos de uma mina pessoal desenvolvida pelo exército francês em resposta às minas alemãs S-mine.

Narciso Estrela

(JAMES JAUSS)

A quantidade de exposições que tem vindo a fazer é impressionante. No en tanto no último ano esteve mais tranquilo, e não publicou livros nem fez exposições.

D — Dediquei-me à direcção musical, que comecei por estudar em novo, em Paris, enquanto fazia o doutoramento em Stendhal, e que aperfeiçoei mais tarde em aulas particulares com o Christopher Bockman. Surgiu esta oportunidade e gravei dois discos de música do meu querido amigo Giuseppe Von Lânder, as suas suites corais, Empedokles e a Esfera da Ausência. Entretanto re-escrevi e publiquei o Grande Monólogo Entre as Sombras, o que me deixou aliviado, dado que é a minha suma pseudo-auto-biográfica. Sou, como vê, um autor descon tínuo. Cada vez mais dou comigo a fazer coisas fugazes, bagatelas… Tenho lido imenso, e descobri autores como o Ennio Flaiano, o Manganelli e o César Aira que tinham fugido ao meu radar. Também tenho relido o Tabucchi e o Borges, e talvez consiga voltar ao meu projecto de trabalhar a partir do Borges de um modo condensado.

— O que quer dizer com condensado?

D — Sem gorduras, nem formosuras. Indo directo ao assunto. Com o mínimo de palavras possível. Como sabe, construí uma obra a partir de leituras. Não é tanto a canibalização. Quando olho para uma frase, vejo-lhe possibilidades de ser outra. A anamorfose é imediata. Sou um leitor excessivamente asso ciativo, isto é, um mau leitor, criatura irruptiva que não segue as danças dos textos. Que não se deixa bailar ou falar. Um irrequieto interruptor de qualquer raciocínio. Por isso prefiro frases muito curtas quando escrevo. Sobreinterpre tações resumidas. É com naturalidade que pareço escritor. Para me concentrar nos textos preciso de escrever, e escrevo sempre os equívocos da ansiedade in consciente de diferir.

ENTREVISTA
A DELALANDE

— Numa entrevista disse “escrevo porque não existo”.

Tenho constatado a irrealidade do ego, do eu e da existência. Sou de um tem peramento dubitativo e inquiritivo. Alguma coisa acontece em redor de um pronome pessoal que pode ser anotada. A biografia torna-se assim um processo de registo de palavras e supostos eventos em redor de um núcleo vazio. Não nego a existência dos corpos, nem sou contra o “autor”, antes pelo contrário. Toda a responsabilidade é assumida com os poderes adjacentes, com o nome, e se quiser, as mitologias que possa inspirar. Explorar o nome que me deram, ou o das coisas, é-me fundamental.

— Tal como a sua investigação sobre os Delalande?…

D — Que surgiu a partir da coincidência do meu nome com o de uma per sonagem de Nabokov que aparece fugazmente numa página do The Gift, e na epígrafe do Invitation for a Beheading. E o curioso dessa personagem é que Nabokov declara que é uma das principais influências sobre si, um pouco como o Caeiro em Pessoa, ou o Sr. Teste de Valery. Tive que encarnar o espaço aberto por este achado. Os outros Delalande vão surgindo como surpresas, como o famoso astrónomo, o compositor de música religiosa de Luís XVI, o toureiro virtuoso que Hemingway desprezava. Há também um Pierre Delalande que publicou em 1666 o Conciliorum antiquorum Galliae, um autor de delito aco metido de demência no início do século XIX, e, na mesma altura, um cientista que andou pela África e pela América do Sul. Este foi autor de um Précis d’un voyage entrepris au cap de Bonne-Espérance, publicado no tomo oitavo das Mémoires du Muséum de Histoire Naturelle, e que curiosamente esteve em Portugal em 1808 na companhia do conhecido Geofroy-Sant-Hilaire. Era parecido com o seu contemporâneo Stendhal. Deu nome à borboleta Papilo delalandei ou ao lagarto Tarentola delalandii e outros bichos. É possível que Nabokov se tenha inspirado nele.

— Diz-me que tem um conjunto de livros curtos, demasiado curtos...

D — A tradição aforística, ao contrário do que se imagina, não se opõe ao gé nero do Romance. Recordo-me de a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís

escrever que o objectivo de um romance, o que faz a sua qualidade, é produzir aforismos fulminantes. Alguns escritores menos elaborados salvam-se assim, numa frase “pontiaguda”, que se destaca das histórias da carochinha, do estilo fanfarrão. Os grandes livros aborrecem-me. Deixo a maioria a meio. Aguento contos e novelas pequenas. Ora, o que tentei foi produzir “novelas” a partir de insistências aforísticas, através de repetições. Assim encontramos acções em stacatto e reflexões que as parecem envolver e expandir. O aforismo é o con vite à acção, e não à análise. É a psicologia pragmática. Gostaria de escrever romances e novelas minúsculos, que não sejam todavia contos, porque o conto é uma estrutura narrativa e o romance uma sopa da pedra, uma confluência de géneros que abusa do seu lado estático, provocando impaciência. Parece um pouco paradoxal, mas o romance não é um conto ampliado em pormeno res desnecessários. O conto avança, o romance adia. Um bom romance usa histórias para se emancipar delas, como o Quixote, o Ulisses, o Tristan Shandy e a Recherche.

— Sei que gosta de se autotraduzir. Qual é a experiência de verter para outro idioma?

D — As traduções procuram em simultâneo a fidelidade e o equívoco. Talvez isso se deva ao facto de ter uma língua materna, o francês, que ainda me fala e constrói. Ou corrói (risos). Ou ter passado a adolescência em Dublin, onde tive que me desenrascar em inglês, sendo frequentemente humilhado, por causa do sotaque, em particular pelas raparigas, depois de fazer amor. E de por fim ter vindo viver para Portugal, de onde desisti de sair, e onde tenho filhos que me amarram a esta terra. Também passei pela Grécia. Porém o grego moderno que aprendi (no antigo sou inepto) só deu para traduzir poetas de que gosto muito. Não me sinto capaz de escrever no grego actual, nem tenho vontade disso. Como sabe, traduzi alguma poesia contemporânea, na qual fui muito ajudado por amigos gregos que me esclareceram dúvidas… Se me autotraduzo é para recuar à infância e à adolescência, a personalidades meio-perdidas no que já não existe, numa espécie de anamnése diletante.

— Escreve textos na primeira pessoa, como Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard. Situa-se nessa linha?

D — Não me sinto tentado a ler esse género de literatura. Nos textos de que gosto, a invenção é uma permanente incursão no acaso e no imprevisto. Em lugar do “eu”, há um des-eu, um desfazer de hábitos e geografias disfuncio nais. Trabalho mais como o Raymond Roussel, a partir dos deslizes verbais, na biografia que se desata dos nomes e dos equívocos. Ou do Raymond Hains. É curioso serem dois Raymonds. Hains e Roussel são os meus “duendes”, no sentido do Lorca, os que fazem brotar a energia negra da coincidência, exami nando à lupa o desconhecido.

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