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O s E nxam E s L it E rári O s d E s andra LE xandra

Em 1975, Sandralexandra (nascida em 1959, em Lisboa, onde vive e trabalha) fez a sua primeira viagem com a família à Grécia. Muitas outras se seguiriam, tornando-se a Grécia um local de rituais secretos, de anamneses visuais e literárias, de relações amo rosas circunstanciais, de perpétuas paixões literárias, etc.

É ali onde Sandralexandra se sente disposta a dispersar-se, ou, pelo contrário, focar-se, num conjunto de personalidades ainda imprecisas que parecem nascer da contemplação da paisagem, de fragmentos de poemas, ou mesmo de experiências culinárias.

Há um conjunto de livros a cuja série deu o título genérico de Desarrumos e que inclui anotações, postais, fotografias de ruínas, ci tações de mulheres helenistas e de amigos que tem vindo a conhecer na Grécia, ao longo dos anos. Sandralexandra experimenta muitas vezes situações de diluição da personalidade ou de êxtase dionisíaco, com sensações muito específicas, como a aceleração da respiração e uma forte vibração ondulatória no diafragma. Dá-se nela um estra nhamento e uma transcendência da personalidade que se parece diluir quer em sensações etéreas, quer em espasmos, segundo nos descreve.

Os seus textos são povoados por referências a Joyce, Pessoa, Juarroz, William Carlos William, Shakespeare, Henry Miller, Clarice Lispector, Maria Velho da Costa e Xenakis. Durante alguns anos trabalhou em colaboração com Soniantónia, a ex-companhei ra, numa demorada (e alquímica) transformação dos sonetos de Shakespeare, por meios aleatórios, em aforismos, e posteriormente em pequenos poemas que entretanto continua a incorporar em li vros, esculturas e performances.

A partir de 2014, Sandralexandra passou a centrar-se na ideia de arte como correspondência amorosa, primeiro em cartas, depois em postais, finalmente em e-mails e sms. Por vezes elabora lis tas, como em Escrevo-te. Outras, trabalha digitalmente postais em que junta poemas, aforismos, endereços falsos, carimbos inadequa dos, etc. Essas peças são impressas em formatos maiores e criam conjuntos onde elabora ficções de viagens imaginárias a zonas do hemisfério sul (as pampas , por exemplo) ou nostálgicas das suas experiências na Grécia (como comer gelados num tórrido sol aquando da visita ao palácio de Knossos). Escreveu também um Manifesto de Arte Pseudo-Postal. Nos postais envelhecidos, as frases são intercaladas em várias cores e tipografias diferentes.

Recentemente, em A Amante Dadaísta, a página explode em notas, subnotas, autoprovocações, acusações contra si mesma, choros, gemidos, onomatopeias, imagens de um tempo antigo, sobreposições, manchas de tinta, pontuações. As frases são mui

tas vezes rasuradas ou cortadas a meio. Também pululam citações de Stirner e Nietzsche alteradas, haikais, passagens de dicionários obsoletos, de livros de entomologia, etc.

Muitas das frases em A Amante Dadaísta têm como origem um texto fruto de combinação aleatória, uma mistura de textos de Julio Verne, Chanderlos de Laclos, a Religiosa Portuguesa e de… Hans Ulrich Obrist!

A lista de influências literárias que cimentam a obra de Sandralexandra é impressionante: de Herman Broch a Savinio, de Bergman a Antifonte, de Giorgio Manganelli a Raul Hausmann, de Anais Nin a Adília Lopes. Já as suas performances representam momentos passionais inspirados no cinema, em que sobressai a ternura (como nos filmes de Chantal Akerman) e a vontade de encon tro com o outro, entre equívocos, impossibilidades e opções.

O elemento literário é prévio à sua concretização visual. Isso não quer dizer que a ideia ou o conceito a precedam. Antes pelo contrário, os conceitos acampam, instalam-se nas margens, são con vocados por um fazer que é da natureza do corte e costura. Sandralexandra diz que se sente como as suas avós apanhando alfinetes, retalhando tecidos, mas que trabalha sem figurinos “a colagem é permanente, e é uma experiência sensorial e amorosa. É como se tivesse que construir paixões inexistentes sobre o caos das palavras e a desordem tipográfica”.

O poeta Herberto Helder é-lhe inspiração negativa, depois de ter lido o ensaio de Fabiana Sorrento sobre Expurgo & Aproprição neste poeta. É nas antípodas de um esplendor feito de retórica apocalíptica e enaltecimento da violência verbal que Sandralexandra considera que procede a Incorporações e Desapropriações :

Quando cito textos de outrem tento dar a impressão que são dele, que os venero em reciprocidades e distanciamentos. É um requisito essencial para entender, traduzir e imaginá-los como alheios, ainda que os habitem indefinições e violentas obscurida des. Pelo contrário, quando procedo a uma devoração do texto a deformação salta à vista. A descontinuidade, ou a reiteração, são fruto de processos de hibridação. Incor poro-os como assimilação do que vem informe, e desaproprio ao devolver ao outro, e ao espectador, o que nunca poderá ser meu. Salva-se a irradiação, a contaminação que me permitam entrar na luz.

A sua ligação à obra de Pessoa permitiu-lhe forjar a ideia da criação como uma prática meta-heteronímica:

Não há unidade autoral! A sério, não me peçam que unifique as atitudes num sujeito que não existe senão no mais confuso dos modos. Também não achem que não tenho uma palavra a dizer quanto à gestão dos fluxos desta pluralidade, em mim bastante imprecisa e destituída de nomes e de figuras. A verdade é que a sinto late jar num imenso desejo de parir. Daí que, mesmo não existindo heterónimos tenho a complexa consciência meta-heteronímica de que há uma massa de personalidades bastante variada a fermentar no fundo do que designamos por eu. E aí encontro-me com Pessoa, sem sistematizar ou dar nomes aos esboços de criaturas.

Sandralexandra tem Pessoa como um daimon, um companhei ro de trabalho, que pode eventualmente tornar-se num precursor.

Vê a sua obra agigantar-se num evento que se faz distinto no tempo:

O Pessoa que conheci na adolescência era um escritor completamente distinto, clássico, modernista, uma espécie de Eliot extravagante, advogando a despersona lização e o fingimento, em livros com capas brancas, arcádicos, com páginas que respiravam luz. O Pessoa que hoje tenho entre as mãos é mais encafuado, muito mais colado à pele. É um mago que transmite um saber que parece vir de Empédo cles, incandescente. Provavelmente, haverá vários Pessoas que vão chocar comigo, a divergir mais, a afastar-se do meu percurso. Desde que me separei da Soniantónia que o espectro literário de Pessoa me faz uma extraordinária companhia devido à sua solidão enfática e à consciência dramática. Leio-lhe menos a poesia, e mais as frases soltas que se debruçam com as suas malas de viagem no meu trabalho, e nas viagens todas que quero fazer.

Sandralexandra criou relações similares com Manganelli, no seu afã de comentar textos ou imagens inexistentes, ou de discorrer para-platonicamente sobre o Amor, qual alegoria que se tagarela dialogalmente enamorada dos incidentes metafóricos que coroam a linguagem. Pizarnik, Lispector, Llansol e Szymborska rodeiam-na constantemente. Todos os dias, antes de se deitar, lê um parágrafo de Finnegans Wake, que acha sempre incompreensível, entediante, funcionando como aperitivo para o sono.

Sandralexandra tem imitado o rigoroso uso dos sinais tipo gráficos de Bernardete Bettencourt, uma das suas paixões literárias. Bernardette refere-se à vontade de que os livros façam parte da carne em Sandralexandra:

Ela deseja que a folheiem, como a um livro na sua disponibilidade erótica para ser anotado, sublinhado e dobrado. Ela é livresca na forma mais material e produtora de sentidos esguios, como as lampreias.

O fogo amoroso, sexuado, impulsivo, de combustão criativa, capaz de se multiplicar, aquece a casa poética de uma plêiade de criadores afins de Sandralexandra. Ao longo duma série de postais incorporados no livro To Dive, To Love, To Think (no prelo), esta reflecte sobre as paixões de Verão, as metamorfoses que o fogo faz operar, as histórias dos desencontros com as suas in-identidades. As suas frases rapam o fundo ao tacho da literatura: do realismo licoroso de Eça de Queiroz às intermitências metafísicas de Musil, ou à poética da chama dupla de Paz. Os extractos que percorrem em enxames este livro são pseudo-citações que devolvem o choque do Outro, o toque de dedos frios na nuca, a voz rugosa da Sibila. Eles chegam carregados de sensações de compreensão, fragilidade, ter nura, transitoriedade e prazer. São mais alegóricos que narrativos. Buscam a fricção, o que se roça nas coisas conceptuais e minimalistas com um eito que estes desconhecem.

Recentemente Sandralexandra apresentou uma impressionan te instalação no Mosteiro da Flor da Rosa, com o chão coberto de areia, onde surgem escritas na terra frases como Há que arrancar aos sonhos a materialidade de que são feitos. O literário torce aí as ima gens da arquitectura sacra, como dois olhares a procurarem desencontrar-se numa paixão que os está a mudar. Cito, para finalizar, o catálogo de apresentação dessa exposição:

Os textos que tenho apresentado querem pertencer ao mundo, à terra. Eu escre vo directamente com o dedo sobre a terra as frases que quero legar aos outros. Gostava que houvesse gente que decorasse essas frases. Escrever na terra é efémero. A terra gosta que falem com ela, que lhe depositem palavras, seja numa praia, numa clareira ou num jardim público. Quero manter viva esta relação com as forças telúricas, junto ao mar, à sombra do arvoredo, no deserto, numa mata. É aí que a literatura faz a devolução do sentido à carne das mães que morreram, e que esperam de nós o consolo que tanto deram.

Marge D. Niro, Dezembro de 2019

Escr E vo-t E

escrevo-te escrevendo-me escrevo-te porque te amo como objecto de arte escrevo-te por causa da tua beleza estonteante escrevo-te para que o meu amor seja eterno por ti escrevo-te porque estou zangada, frustrada e preciso de escrever escrevo-te esperando que me escrevas mal possas escrevo-te para que, ao me responderes, sinta afectos escrevo-te por escrever, pelo prazer de escrever escrevo-te cartas de amor para me sentir ridícula escrevo-te para confessar tudo, mesmo tudo escrevo-te para mentir descaradamente escrevo-te para que desconfies ainda mais de mim escrevo-te para me sentir embaraçada com o que digo escrevo-te para viajar e viajo para escrever escrevo-te para me livrar de mim impingindo dores e angústias escrevo-te para que me odeies melhor escrevo-te para que doravante me esqueças escrevo-te para te ferir fundo e que jamais me esqueças escrevo-te porque me magoaste e quero-te culpar escrevo-te para dizer que já foi o fim e nada ficou por falar escrevo-te para voltar a escrever-te escrevo-te para que fiques doida por mim sem me conheceres escrevo-te porque curto seduzir e vamos lá ver no que vai dar escrevo-te para falsificar melhor meus falsos sentimentos escrevo-te para ser verdadeira no meio da dissimulação escrevo-te para que adivinhes o que te quero escrevo-te para responder meio arrelampada escrevo-te para adiar novamente tudo

escrevo-te porque agora é que é escrevo-te para que te devore feita loba escrevo-te para ser tua escrava, e é só o começo escrevo-te por imbecil diletantismo escrevo-te com toda a culpa, incapaz de pedir desculpa escrevo-te para te pedir desculpa e sou boa nisso escrevo-te para evitar que me peças desculpa (isso irrita-me) escrevo-te com mais dignidade do que imaginas escrevo-te porque me enganei redondamente escrevo-te porque me agradam as nossas conversas parvas escrevo-te para exercitar a inteligência escrevo-te para ir para a cama contigo (e quem sabe…) escrevo-te para insinuar que sou ilimitadamente lúbrica escrevo-te para comercializar nossas cartas como arte escrevo-te para conseguir ir longe na carreira à tua custa escrevo-te sem motivo nenhum, por puro onanismo escrevo-te porque sou platónica, e em ti me transformo escrevo-te porque sou materialista, e quero o teu corpo escrevo-te porque és uma deusa e uma cabra escrevo-te para te convidar a comer ostras escrevo-te para irmos passear de mãos dadas num domingo escrevo-te para te falar de deus, do diabo e do medo escrevo-te em modo de transgressão (nem sei porquê) escrevo-te para te transmitir a minha felicidade escrevo-te para que ignores a minha infelicidade escrevo-te para te explorar sem escrúpulos escrevo-te para irmos a Veneza ver vistas e a Bienal escrevo-te com mãos a tremer e lágrimas nos olhos escrevo-te porque sei que vamos morrer um dia escrevo-te para saber qual é o melhor modo de viver escrevo-te porque estou sempre a pensar em ti escrevo-te porque já não pensava em ti há muito tempo escrevo-te para me masturbar enquanto escrevo escrevo-te para ser pura, casta, verdadeira

escrevo-te para te confessar tudo e não enviar nada escrevo-te para guardar a carta na gaveta (falta-me a coragem!) escrevo-te para me reler e reler (e escrevo tão bem!) escrevo-te para evitar o fim do mundo (como?) escrevo-te para ter ideias e teorias que de outro modo não teria escrevo-te para te imaginar concreta, a meu lado, feliz talvez escrevo-te para que a dor do mundo fique abstracta escrevo-te materna, confiante, doce escrevo-te por causa daquele abraço escrevo-te porque suspeito e quero tirar nabos da púcara escrevo-te porque não me apetece fazer nada escrevo-te para adiar escrever outras cartas escrevo-te para imitar belas cartas de amor escrevo-te porque te fiquei de escrever há muito tempo escrevo-te porque sou meticulosa, obsessiva, e escrever faz parte escrevo-te por causa do caldo entornado escrevo-te porque tudo é impermanente, supérfluo, vago escrevo-te para te libertar de toda a servidão escrevo-te porque comprei um postal engraçado escrevo-te para que me devolvas a liberdade escrevo-te por pura piroseira escrevo-te para que vejas a bela carteira escrevo-te para diluir expectativas escrevo-te para te remeter esta lista

Sandralrxandra, Julho 2019

nOtas para diáLOgOs dE amOr E dEsamOr

Senhora cujo Eros é de Intelecto, cujo Intelecto é Eros.

A arché do mundo é um ventre. A vida não se gera de um princípio ou de um elemento, mas de um enorme ventre cósmico.

O amor combate por mais amor todo o amor quer aumentar o amor, reju bilar de amor.

A Éris é um efeito contrário, resultante de uma carência amorosa a razão da guerra é carência “afectiva”, a falta de alegria amorosa.

O Polemos não é mais do que uma prega no Eros.

O Phalo é gerado pela Baubô é uma interiorização exteriorizante.

O masculino é o desvio para a incompletude.

É uma hipocrisia celebrar a guerrilha em galerias de arte ou museologica mente. Uma arte que queira depor o sistema pela força das armas deveria ter, como consequência programática dos seus autores, o consecutivo emprisionamento. A não ser que tudo seja falso ou blague.

Não há não-relações. Pode é haver relações fortes, fracas ou quase nulas. Logo não há não-relação sexual. Todo o relacional é sexual. Todo o acto de linguagem é sexual.

O poético, enquanto língua agindo, é um ponto alto do sexual, uma vez que procede a um excesso de cópulas. O poético é uma tendência para orgias de linguagem.

Sandralexandra

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