A POESIA É A FALSA FALSIDADE DO ABSOLUTO. É O CERNE E A PERIFERIA DA MINHA FILOSOFIA. QUANTO MAIS FALSO, MAIS VERDADEIRO. GIUSEPPE VON LÅNDER
ÓDIOS 3 4 d e l e s s e g u i d o s d e O AFASTAMENTO DAS ILHAS Edição, pre fácio & organização de SANDRALEXANDRA
EDIÇÕES CRETA L I SB O A
MiCrOpReFáCiO
Lídia, ou quem lhe quiz vestir a pele, escreveu estes Ódios, à falta de saber escrever Odes, à quais, julgo, virá a juntar mais Ódios e Variações. Não se tratam de reparos ao falso Ricardo que não havendo houve. A resposta seria tardia e parva. Mas Ricardos e Ricardinas os há aí muitos, incapazes de entender que o abrir f ilosofal é um abrir do coração, e que essa abertura implica uma dádiva em corpo. Nesta edição vai junto o livrinho O afastamento das Ilhas, seu contemporâneo na escrita. Espero que o degustem bem, tanto quanto a Lídia amo.
S A N D R A L E XA N D R A
34
ÓDIOS
1
Se te queres maior, multiplica-te: nada do que é teu é teu senão em exagero, farsa, exclusão. Sê inteiro, plural, ou fragmentário. Põe o que és e não és em tudo o que ao fazeres se faça. Assim te solicitam os astros sem que o saibas, espontâneo adjunto na desmesura do mundo, acaso a siderar espaços.
2 Sobra-te obra por filhos que não foram. Leio-te o gozo posto em letras e o amor (vero?) que me tiveste em vão. Mais gozaria teus versos fora fundo o prazer, alta a arte e insurrecta a beleza no amar. Eras belo. De versos que perdurem já nada é teu, só o nome insígne marca com adendas, leituras, revelações, breves letras nas lacunas da emoção.
3 Fixa-se o nome na obra jamais a criatura. Tanto labor para a elidir o que a segura.
4 Fixo aqui incertos desacertos no forjado fiasco dos versos, e temo mais os oráculos, os índicios, do que a obra em pó coada ou a plácida carne quem lê espectrando. De que serve o rigor, a estátua, ou o diligente metro do verso astuto se incumpridos vão os desejos? De que serve ser da indiferença servo se os reflexos do orgulho se salgam na grande cozinha do mundo? Nos deuses e p'los deuses fervem afectos. Sabem eles amar e desamar os mortais, isentos de intentos.
5 Se me amas, porque não me agarras? Pousa tuas mãos onde te aprover. Fá-lo. Não fales nem implores. Nem desculpes ou abafes o desejo. Sou terrena, fértil, me humedeço. São inúteis os argumentos da inutilidade geral, e não é teu nome mas teu corpo que me prende. Que outros o façam, como e onde não me aquece nem arrefece. A memória é inextricável do gozo e só o prova o que ingente ousa. Assim, no esboço que é poema, gravo o agrado. E tu? Tem-me! Ainda é o tempo.
6 Do horto de Adónis abre a porta e vem rebolar-te comigo lá onde não há Rosas nem Jacintos e pululam ervas feras cujos latins ignoras durando na estação. Colhe na silva que devora o trilho, sobe ao muro e saboreia a amora. Que sabe do eterno a flor? Também Febo, que de longe fere, findará um dia seu astral curso depois desta estranha sobrevida em plácidos engenhos de poetar. E quanto a deuses, porque ignoras que não se dão se só os rogas em hinos, letras, teorias. Nula lhes é a mansidão. Se os queres presentes, afia a faca, prepara o fogo, arranja reses e aprende a imolar.
7 Freme o caprichoso Okeanos. Vêm viris os vários ventos. Ás vinhosas vagas vertem redes os rugosos navegantes. A praia é calva, e a areia, essa é propícia para amatórias artes. No prazenteiro nos agigantamos e é vão o que o evita. Que interessa a cobiça de aduladores e cuscos que se roçam na obra? Raro é o manso mar. Nenhuma razão disciplina o ondulado rebentar, ou o desabroxar de mundos. O mar só pede que o naveguemos, que o veneremos, ou que nele saibamos mergulhar.
8 Invejam-nos os deuses a rara vida e o saber vário de experimentos desfeitos. Não provam as consagradas carnes no etéreo de seus píncaros, nem o vinho em vão derramado no limpo altar. A perfeição sofrem. Se aos deuses amas, faz-te possesso, liba no esfusiar da fonte à fúria da presença. O puro venerar receia. É comédia de comedimento. Cautela nenhuma gozam. Sequer Cristo. O que durarmos duraremos. Prestos, vãos, sigamos, escumando revoltas, explendores, decepções ou fadigas, que a morte dilui, a Líquida, num materno e estrelado manto.
9 Cada beijo pede mais beijos e além do beijo o que se pede, Ricardo, é que resfoleguemos insanos com todas as ganas do mundo, devoráveis devoradores do vão. Morde-me a nuca, e avança a mão, Ricardo, onde palpita o ingente seio. Não há nada mais grego ou romano, Ricardo, que o mamilo endurecendo. Poderão perdoar-te os deuses que o sacro ventre jamais tenhas aflorado com teus dedos deveras ignaros? Ri-se dos reticentes a Morte e o que ama casto nunca saberá do mútuo o soberbo repasto, Ricardo.
10 Os calejados pés descalços que outrora dançavam para deuses sabiam que a terra fere, o lacrau surpreende, e penosa é a gélida neve e o ardor estival. Só em idílios a natura é frondosa. O regateiro e fofo fluir da ninfa, sandálias sequer calça. De seu promissor corpo, que sabes? Que promete? O Absoluto detergindo em obscuro amplexo? Melhor seria cuidares das minúcias na amatória arte, dos desvios que estendem e acrescem o gozo para que aos imortais brindes teu ser intenso, o demais de inaudita presença, o sentido consumado.
11 No bravo corpo meus alentos fixo da frágil mente indistintos, frutos colhendo no acaso com engenho e tento. Faz-se aos deuses propício o verso se sincera a invocação e o rito não dispersa, e a voz agraça. Aí se banqueteia o pensar. Que livre a frase o busque e espontâneo o ritmo o siga.
12 Nas breves bordas do tempo ainda tens tempo, e tĂŠdio, para louvar mortos. E cĂ´nscia, ainda que definhe o corpo sabes que a infancia vive perpĂŠtua no senescer.
13 Amo, escrevo, bebo. Livro-me do amargar. e colho na vida os avessos dos vagidos das vanitas.
14 Será que os regatos são deveras inscientes? Não é cada fonte ávida ninfa caprichando para ardores de incautos Adónis? Estarão prestes para o fluxo de carícias, sussurros, gemidos?
15 Freme, freme. Deixa as rosas para vãs coroações sabendo que as coroas se veras queres só as do louro do fulgente Febo. Freme, freme nas rosas nas olorosas rosas. Não há melhor metáfora do que rosas para a fonte que te pariu.
16 Se queres saber a fundo nada dispenses. A reserva é ignorância, e a experiência firma a ciência. ...................................... ...................................... O nada que és, é mais que nada, e o relativo de te seres é o cônscio que quiseres.
17 Nulo o servo para o amo se encena. Equânime se banqueteia o livre alegrando os do alto. Todo o pulcro nasce intersticial eclodindo em graça. O saber sabe-lhe a traça da íntima gestação. ................................... Dá-te parindo na sempre oportuna estação.
18 Temo, Ricardo, que o pavor ao destino te fira mais que o mutável. Sem o incerto a que melhor te darás que o inútil breve? O ignoto é o manante passo que avizinha dos deuses. Sem o fulgor do terror todo o divino é nulo e a vida parca, o sabes, é do estulto o eco triste. Se és vivo avança. Afaga o ignoto. Adia o abissal onde teus medos já grassam.
19 A obra teces. Nas grinaldas fúteis desvios às agruras te confinam. A minha na tua teço, inútil gozo de falsa insumissa, espelho que lega. Que o barqueiro aguarde e aguarde e ambos em goxo senesçamos entretecendo grinaldas sem coroações ou adulações vãs: obra entranhada em obra infindo esponsal de nós.
20 Nenhuma flor é seu ser só. Toda a essência cheira. A dádiva é mais intensa que o suco e na natura o que não dá não é. A negação tolhe o sentir e o cônscio semeia ténebra onde a há sequer. Não te quero avaro, Ricardo. Nem colhas não colhendo: na mão o fausto ao mundo cede. Deixa as frustes esfinges aos enigmáticos Édipos que errantes estarrecem. Caminhante em luz o encontrar se te oferece.
21 O gaio gosto e o pensar da impensável vida goza, assim como o incerto as fronteiras fingindo. Desconfia dos fados ciente que só no fim, selado, serás concluso. E lembra-te que a lembrar, ido, varado verás o que jamais és: pueril, fatal, falso.
22 Querido Ricardo, quero as ganas tantas do futuro, os planos, os enganos, as tormentas antes que finde em osso dura. Fartas promessas, incumpridas ou nรฃo, e esperanรงas falhas? Outrar-me em mesma? Errar pela certa sem que cuide onde me afundo? Seja eu a outra, a abismal, entre vรกrios do desavindo. Sou sem que me ache, taรงa a taรงa, a vida esfusiando.
23 Começa o verão em longo atraso finda-se em enfado o farto inverno. Que erros promete o tempo mais que ruído e sombra? Colhida, a rosa, em volúpia vem e no termo o obscuro obscurece, paródia do vão, inacessível nada, que o não do ser não é. Assim, conversemos ou amemos retraso seremos, revolta memória de um ir-se desdenhando-se e em glória desenhando.
24 Livra-te de ser cauto Ricardinho, nem bebas, sรณ sabente e manso, o vinho.
25 Incumpre a ode. Fica-lhe a meio, no dito justo. A forma Ê fome de alto remate. Todo o verso esgravata o infindo fundo afiançado de um soterrado sublime.
26 Cacos de ecos de ecos? Morrem os mortos mais mortes? Ou trasmuda-se em mel a sombra idas as naus dos desagravos? Nossos somos, Ricardo, na emoção que o ter não traga.
27 Se me amas e tudo muda, melhor me trais amando e eu a ti, da mesma a outra, beijos dou entre o que sou e essa que me sendo nĂŁo serĂĄ. E ainda que o tempo grave roucos riscos caducando, agora de outroras outros nos lembremos: bravos fomos a paciĂŞncia desdenhando.
28 Que seja lento, desde que não cesse no meu corpo o enlaçar diverso, as argutas carícias, a arrepiante suavidade duma luxúria vasta. Refugos de horto, privacidades desviadas da corrente, gente buscando significar a mais. Plenos sejamos, à descarada, porque inúteis, na desconversa. O poema inveja-nos Sandra. Prossigamos, prossigamos…
29 Da vida
as ilusões descuido
tendo as aspas
e os sens rifado —
os pesos que me levo
são cá comigo
e as sombras rugas
no àspero desacato.
Pelo contrário,
nem sombra
me saberei,
nem caveira lassa
provará em morte enfim devolvido
o que cônscio grassa — ao inâne, ao mineral
serei não-ser
não o sendo,
serei não-tua
nulo anulado.
30 Não é tua exactidão que refuto nem a brisa que me abraça ou a alba esbracejando. Que fazer com o desejo que cada noite me agraça da lua prole natural?
31 No ser igual é a vida diversa e o recorrente, meu amor, é o transitório, lira frecheira, caos exultando, exíguo fumeiro. A mão que ao fruto busca é fogo que me incendeia e p'lo Kairós, distribuido gozo, sorves meu figo, grã sorte, rente momento, beijo indecente em que me és o recorte.
32 Cacos de ecos de ecos? Que cuidados coas? Transmudada a treva o mel alcanço — pois namoro nesta nau de grãos desagravos.
33 Quando, Sandra, as sobras fitarmos do tanto que passou, recolherás no ido, esgravatando, gozosas pérolas e os crivos do tempo resgatarás. Seremos nada, dizes, na nula morte? A cada presente o prolífero se avizinha com excessos, impurezas, ninharias. Quem os filtrará? Que equívocos fervem nas escolhas? Que mundos jazem por hesitar? Que corpos iremos gozar?
34 Nunca beijarรกs a mesma sempre que me beijares. E quando essa outra beijas sendo-me a trairรกs.
O AFASTAMENTO DAS ILHAS
1 Uma fenda no feno de onde renascemos — as deusas.
2
A Musa estrangulou-se na corda da melodia
3 As mordaças regressaram quando sumiram as crias — mais ínvisieis, tão refinadas — já ninguém dá conta.
4 A opacidade mascara-se de transparĂŞncia e os carrascos de comentadores desportivos.
5 A opressão das pátrias foi substituída pelo humilhação financeira com Lutero a fazer malha.
6 Eis-nos escravas para manter luzidias as estรกtuas dos mestres libertadores.
7 Dar nomes aos impulsos — livrar vozes de anonimatos.
8 Navios que empurram ilhas para mais longe.
9 Livros que sĂŁo tampas de continentes virgens.
10 A nostalgia hĂĄ de partir para a nostalgia de si mesma.
11 Esperguiรงas-te para te livrares o mais depressa dos sonhos.
12 A moscas mataste o tempo. E mais do que moscas mataste os vรกrios tempos.
13 Roubaram-lhe a arte de roubar? Ou roubou-as aos que lha roubaram?
14 A poesia é recolectora de tempo que será recolectada no tempo — na melhor das hipóteses.
15 Uma sede insaciável de presença multiplicando dissimulações ou nulificando-as?
16 Afina com cuidado a corda da potĂŞncia antes que te estrangule.
17 DescontinuĂdades para saber escutar melhor o improvĂĄvel.
18 Haverá ouro que não seja fútil e teatral?
19 As palavras que abrem o poema tremem-te na lĂngua.
20 A negatividade não existe senão como a) ideia de privação b) movimento contrário
21 A luz elétrica pequeno-burguesa arredou a luz proletária das cidades (a gás) e a grande luz da lua camponesa.
22 O acesso ao silĂŞncio por sĂlabas ensurdecidas.
23 Aqui atĂŠ a luz do sol se suja? De rameira ĂŠ fala matreira!
24 Pode a dor ser exacta? Pode a ferida ser justa?
25 Tal como a linha do horizonte se encurva assim os antigos tinham por certo que nos rodeava um cĂrculo de mares.
26 Palavras recicladas pela traição.
27 Os poetas obscuros namoram o Hades. Os filรณsofos obscuros querem mais luz.
28 Um sentido forrado com um papiro novo.
29 Ă rvores que se julgam homens.
30 Na arte de saltar estås menos tempo na terra — Ê pelo embate que a conheces melhor.
31 Uma solidĂŁo sobrepovoada de convivĂŞncias com letras.
32 Cantavam para aperfeiรงoar a escuta.
ESTE LIVRITO FOI ESCRITO POR
LÍDIA REIS & CORRIGIDO & E D I TA D O & P R EFAC I A D O & COMPOSTO P E L A S E V E R A M A S M A R O TA
SANDRALEXANDRA PA R A A S
E D I Ç Õ E S C R E TA NO ÍNICIO DE JULHO DE 2019