Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Imagem da capa Alexandre Vogler Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 1 | 2013 ISSN: 2318-1192
Sumário Espaços livres de cultura Poesia | Alexandre Barbosa de Souza Poster Entrevista | Arto Lindsay Aplique de carne Vozes e visões | Por uma política biodegradável Caronte | por Rafael Campos Rocha
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Caro leitor, estamos felizes de lançar-nos ao mar com esse primeiro número da NAU de forma mais do que arriscada, como de todos que pensam as navegações culturais e intelectuais nesse país. Esperamos com a NAU criar um espaço de mapeamento, apresentação, reflexão e produção da cultura e do pensamento brasileiro. Um projeto ambicioso para nosso modesto barquinho sem salva-vidas, mas que consideramos essencial para a ampliação do debate atual. Neste primeiro número de NAU, trazemos uma proposição sobre espaços livres de cultura, lugares onde o convívio de artistas, boêmios e pensadores permitem a renovação do pensamento e da produção cultural do país. Para isso, retomamos alguns dos espaços históricos dos últimos 100 anos, como a garçonnière de Oswald e o Clube dos Artistas Modernos de Flávio de Carvalho, até o delicioso Alpendre de Fortaleza, que recentemente fechou suas portas para se renovar em outras aventuras. O entrevistado é Arto Lindsay. Compositor, produtor, performer, nascido nos Estados Unidos, em 1953, e criado em Pernambuco, fundador de grupos como DNA e Ambitious Lovers, Lindsay é uma das mais instigantes figuras da música e arte contemporânea. O poster central é um poema de Alexandre Barbosa de Souza, que lançou este ano o seu Livro geral (título que homenageia o grande poeta pernambucano Carlos Pena Filho). A revista traz ainda uma matéria de Ana Maria Bonjour sobre a instalação-performance-body art Aplique de Carne, realizada em Belo Horizonte em abril deste ano, que une artistas (Alexandre Vogler e Guga Ferraz), músicos (Botika, Amora Pêra, Flavia Belchior, Nana Carneiro da Cunha) e atores (Paulo Tiefentahler). Por fim, colunas e o maravilhoso primeiro episódio de Caronte, a barqueira do amor, pelo grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!
Espa ços li vres de cul tura Pensar os espaços de cultura é uma questão urgente, num momento em que as trocas culturais são dificultadas pelas imposições do cotidiano das grandes cidades e pelo aumento de normas e leis que restringem o livre convívio em lugares públicos e privados. É importante lembrar que muitas vezes, mais significativo do que os eventos culturais, é o convívio que se gera em torno de um espaço de cultura, as trocas desinteressadas e interessantes entre artistas, pesquisadores, críticos e pessoas diversas que se faz cotidiamente nesses lugares, gerando um caldo cultural propenso à invenção e à experiência. Mas para que isso seja possível é preciso a construção de ambientes que sejam desobs-
Nelson Tabajara de Oliveira falando sobre a China no Clube dos Artistas Modernos
truídos de regras fixas, que estimulem a livre circulação e o tempo lento da convivência. Ambientes aconchegantes, que não tenham como objetivo a passagem dos consumidores de cultura, mas a frequência e permanência. Ou seja, ambientes que privilegiem o conforto, a conversa e a vida. Infelizmente, se algumas vezes foi possível a conciliação desses espaços criativos com lugares públicos na história brasileira, cada vez mais, com o já referido aumento de normas restritivas de conduta (proibição de fumar cigarro, proibição do consumo de bebidas alcoólicas em alguns lugares, restrição sonora após alguns horários etc.), os espaços culturais oficiais acabam se tornando apenas pontos de passagem para consumo de eventos, e não de convivência e trocas artísticas. Estas demandam uma liberdade de atuação que talvez não sejam mais possíveis em lugares ligados ao Estado ou organizações oficiais. Tirando raras exceções (o “Jardim da oposição” do Parque Lage, no Rio de Janeiro dos
anos 1970, o Sesc Pompeia nos anos 1980, por exemplo), sempre foi assim. Os projetos coletivos de trocas mais corajosos e efetivos sempre ocuparam espaços privados, e por tempos efêmeros. Verdadeiras Zonas Autônomas Temporárias, para usar o termo consagrado pelo anarquista ontológico Hakim Bey. E foram de grande importância para a construção das artes brasileiras, embora muitas vezes nem sejam lembrados, ou apenas fiquem dentro de um anedotário da cultura brasileira. Mas, para além das aventuras de juventude, é inegável a importância da garçonnière de Oswald de Andrade na construção da linguagem moderna de seus romances. E também não podemos ignorar como as conversas ocorridas no amplo salão térreo do Cassino Atlântico que abrigava o Clube da Chave iriam influenciar a renovação estética e comportamental do Rio dos anos 1950. Uma das boutades mais famosas de Oswald é que “o contrário do burguês não é o proletário, mas o boêmio”. A boemia permite exatamente o tempo morto da convivência, as trocas desinteressadas, sem fins imediatos, e de alguma forma sempre esteve ligada a esses espaços criativos. Arte e vida sempre dialogaram, mas ganham força em proposições específicas de alguns autores. Hélio Oiticica, no fim da década de 1960, escreve um texto seminal, denominado “Crelazer”, trazendo uma proposta radical de inserção da arte na vida cotidiana. O texto propunha a liberdade de atuação do criador: “Não ocupar um lugar específico, no espaço ou no tempo, assim como viver o prazer ou não saber a hora da preguiça, é e pode ser a atividade a que se entregue um ‘criador’”. O ato criador potente e inserido no cotidiano como um lazer, e não como um trabalho separado e opressivo, proposto no “Crelazer”, é desdobrado por Oiticica na ideia do Barracão, uma proposição nunca colocada em prática de um espaço coletivo de criação. Como ele afirmou na época, “Barracão absorve, como um supermata-borrão, estrutura e participação-proposição, no que chamo comportamento-estrutura; a descoberta do “Crelazer” como
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O “Clube dos 5” em desenho de Anita Malfatti: Anita no sofá, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade no chão e Mário de Andrade e Tarsila do Amaral no piano. Os ateliês de Oswald sempre serviram de espaços abertos para o encontro de artistas.
essencial à conclusão da participação-proposição: a catalisação das energias não opressivas e a proposição do lazer ligado a elas”. Se Oiticica nunca colocou em prática seu projeto do Barracão, que absorvia como espaço a influência dos barracões das escolas de samba e os espaços das favelas, de certa forma é esta proposição que Oiticica iria cumprir no seu loft em Nova Iorque, quando o transformou em um espaço livre de convivência e criação, no tempo que morou lá nos anos 1970. Como um “ninho”, o loft serviu de espaço de longas conversas e trocas estéticas, que resultaram nos “Heliotapes”, como os diálogos com Julio Bressane, Haroldo de Campos e outros visitantes que passaram por lá, ou na criação das Cosmococas em parceria com Neville d’Almeida. Pensar esse projeto de inserção da arte no cotidiano, através de um convívio livre em espaços privilegiados, é o que nos interessa aqui. Num momento como o nosso, em que cada vez mais as regras do mercado ditam as trocas culturais, em que a especialização das artes faz com que os artistas circulem em meios cada vez mais restritos, a retomada de espaços de liberdade, onde o convívio entre artistas de diferentes áreas, pensadores e interessados em geral possa ser realizado com o prazer necessário para a construção de uma cultura mais livre e efetiva, torna-se uma questão urgente. Alguns exemplos têm ocorrido no Brasil nesse sentido nos últimos anos, com variações em relação aos projetos anteriores. Em lugar à boemia das décadas anteriores, os novos espaços são criados como lugares associativos de coletivos, empresas criativas ou ateliês de artistas, que se unem para fortalecer seus projetos, trocar experiências e criar também um espaço de convivência. Acabam tendo um perfil menos livre que as experiências anteriores, mas ainda altamente criativo. A característica noturna dos espaços de outrora é substituída pelo convívio diurno dos trabalhos cotidianos, o que não impede que se construam ambientes de trocas livres nesses lugares. Rodrigo Savazoni, um dos fundadores da Casa da Cultura Digital, criada em São Pau-
lo em 2008, explica as questões que alimentaram o surgimento de um espaço coletivo: “Por que, se queremos produzir livremente, devemos manter relações com o ambiente estático do mercado tradicional que não corresponde à nossa necessidade? Por que recorrer ao meio publicitário se queremos ser artistas? Por que vender horas e horas de trabalho aos jornais se queremos contar nossas próprias histórias? Por que trabalhar para conglomerados do espetáculo se queremos produzir uma cultura que seja conectada à expressão autêntica dos nossos afetos? O mercado, como o conhecemos, nos propicia algo que não possamos conseguir pela união de nossas forças? E se criarmos um espaço em que não se faz distinção entre viver e produzir? Esse espaço pode ser sustentável? Ou, ainda, melhor que ‘sustentável’, ele pode, como reclama Viveiros de Castro, ser antropologicamente suficiente? Não seria esse o salto radical a ser dado, do ponto de vista ambiental, para estabelecermos uma outra forma de nos relacionarmos com o planeta, massacrado por um desenvolvimento que o dilacera?”
Assim como a Casa de Cultura Digital, lugares como a Antiga Fábrica Bhering, no Rio de Janeiro, são exemplos dessa nova construção de espaços de cultura, onde trocas ocorrem num cotidiano público-privado. Outros, como o Alpendre Casa de Arte, em Fortaleza, são um híbrido de espaço cultural e comunitário. São experiências novas, que buscam ressignificar o convívio e a troca, e ecoam a afirmação de Alexander Dorner, de que “Um novo tipo de instituto de arte não pode ser meramente um museu como conhecemos até o presente momento. Esqueçamos o museu. O novo tipo vai se parecer mais como uma estação de força, uma produtora de novas energias”. Esperamos que continue sendo de maneira festiva, criando trocas cada vez mais horizontais e amplas entre áreas diversas dos saberes, o que sempre foi uma das grandes características da boemia artística que possibilitou a nossa riqueza cultural. Como estímulo à reflexão, trazemos a memória de algumas dessas experiências coletivas, ocorridas no último século no Brasil.
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Garçonnière de Oswald “A Cyclone, ela sozinha basta para encher um ambiente intelectual de homens do quanto ele precisa de feminino, para sua alegria e seu encanto”. Essa é a importância de Dasy, Miss Cyclone (com a tônica na primeira sílaba), a musa da garçonnière que Oswald de Andrade mantinha em seu estúdio no centro de São Paulo, num apartamento no terceiro andar de um sobrado na rua Líbero Badaró, 67. Dasy era na verdade Maria de Lourdes Castro, uma estudante normalista que Oswald havia conhecido num almoço na sua casa, em 1917. Ainda adolescente, a moça tinha aparência “esquálida e dramática, com uma mecha de cabelo na testa”. Era órfã de pai e a mãe morava no interior. Gostava de escrever e tinha ideias avançadas para a época. Oswald ficou encantado. Já no primeiro encontro, sugeriu que fizessem sexo, e recebeu um sim absolutamente inesperado – “mas sem premeditação, quando nos encontramos um dia”. Tornaram-se amantes, e rapidamente Maria de Lourdes, já com o nome de Dasy, virou figura central das reuniões na garçonnière, que virou um ponto de encontro dos amigos de Oswald de Andrade. Ignácio da Costa Ferreira, Guilherme de Almeida, Pedro Rodrigues de Almeida, Leo Vaz e Monteiro Lobato, entre outros, frequentaram aquele espaço por todo ano de 1918 e 1919, e começaram a compor juntos uma espécie de diário coletivo, ou ata delirante dos encontros. Por sugestão de Rodrigues de Almeida, o diário foi chamado de “O perfeito cozinheiro das almas desse mundo...”. Na primeira página, a explicação, data-
da de 30 de maio de 1918: “Perfeito cozinheiro das almas deste mundo: na fórmula breve e exótica d’este título está a promessa, que, praza a Deus não seja mentirosa, do livro mais útil, mais prático e mais moderno deste século de grandes torturados”. Esse diário tornou-se um dos primeiros experimentos de Oswald e seu grupo com a linguagem literária moderna. Era um grande caderno de duzentas páginas, em que além dos escritos em tintas de várias cores (lilás, verde e vermelha), foram acrescidos recortes de jornal, postais, carimbos e outras intervenções que criavam uma narrativa múltipla e fragmentária. Uma obra experimental, onde a paródia e metalinguagem já encontravam um espaço de destaque, como aconteceria nos livros seguintes de Oswald de Andrade. Além de ser um dos mais belos trabalhos gráficos da época (recuperado em uma incrível edição facsimilar da década de 1980, publicada pela editora Ex-libris). O estúdio de Oswald era um pequeno apartamento decorado com retrato da artista Anna Pavlowa, reproduções célebres, loucuras do Di Cavalcanti, quadros de Anita Malfatti, móveis portugueses e uma grafonola onde tocava Wagner, Debussy, Schubert, Chopin, Weber, SaintSaens, Casals, além de tangos. Os amigos se reuniam lá para beber e conversar, deixando para trás o tédio da vida provinciana. Nas páginas do “Perfeito cozinheiro”, é possível ver a efervescência de ideias que corria por dentro daquelas paredes: boutades, poemas sintéticos, trocadilhos, frases de efeitos se multiplicam ao correr da pena, deixando claro o prazer que estava por trás das suas criações. O diário acaba com o sumiço de Miss Cyclone, que primeiro volta para Cravinhos, para depois ter um fim trágico. Foi vítima da pandemia de gripe espanhola, no final de 1918, o que debilitou a sua saúde. Logo depois, engravidou, e em dúvida sobre a paternidade, decidiu junto com Oswald abortar a criança. Oswald providenciou a parteira, que havia sido a mesma a cuidar do nascimento do seu filho Nonê. Mas Dasy sofreu uma hemorragia, e depois contraiu tuberculose. Oswald ainda chegou a casar com ela, in extremis, ao vê-la definhar. Monteiro Lobato, Ferrignac e Guilherme de Almeida foram as testemunhas da cerimônia. Mas Dasy faleceu no dia 24 de agosto de 1919.
Fac-símile de página do Pequeno cozinheiro das almas desse mundo, diário da garçonnière de Oswald, 1918-1919.
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clube dos artistas modernos Flávio de Carvalho foi o grande idealizador do Clube dos Artistas Modernos, em 1932. Embora tenha fundado o Clube dos Artistas Modernos (e sido eleito o seu primeiro presidente) com a intenção de “reunião, modelo coletivo, assinaturas de revistas sobre arte, manutenção de um bar, conferências, exposições, formação de uma biblioteca sobre arte e defesa dos interesses da classe”, o CAM era também um espaço aberto e festivo, sem grandes frivolidades. O Clube foi criado no prédio onde Flávio dividia ateliê com Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antonio Gomide, na rua Pedro Lessa, 2, no centro de São Paulo. Como descreveu na época, “O prédio situado junto ao viaduto Santa Ifigênia, em pleno vale Anhangabaú, tinha pelos fundos a Guarda Civil, e como acesso o aspecto napolitano da rua Anhangabaú, entre frutas, imprecações sírias, fileiras de salames, casas suspeitas, molecada suja, pelotões de guardas que entravam e saíam e as sombras dos tabuleiros e treliças do viaduto, que tornavam o ambiente acolhedor e irresponsável.” Logo, os pintores residentes começaram a pintar grandes painéis para decorar o lugar, e as atividades se iniciaram. Recitais musicais aconteciam com frequência, com cantoras como Elsie Houston sendo acompanhadas por um piano que “apareceu não sei donde e com eles os executores”. Audições de música moderna ocorriam também, com nomes do porte de Camargo Guarnieri e do violinista tcheco Frank Smith, que trouxe “uma vodca com pimenta memorável” na noite inaugural do clube. Recitais de poesia, como o de Maria Paula lendo poemas de Raul Bopp, também não faltavam. Tudo isso regado, como lembra Flávio, por “bom vinho (ou mau)”.
Flávio de Carvalho organizou em seguida um Mês das Crianças e dos Loucos, com exposições de pinturas, desenhos e esculturas dos internos do Hospital do Juqueri e exposição de trabalhos de arte infantil, recolhidos nas escolas públicas e particulares de São Paulo. Psiquiatras, psicólogos, pedagogos e críticos de arte fizeram conferências e debates sobre as obras. Flávio organizou também uma Noite dos Poetas Alienados, com poemas recitados por Maria Paula. E os debates corriam soltos, juntos com palestras cada vez mais animadas. Algumas vezes, os ânimos se exaltavam em torno dos assuntos debatidos. E eram os mais variados: Ristori fez uma conferência para demonstrar que Jesus Cristo jamais existiu. Tarsila do Amaral falou sobre a arte proletária. Caio Prado Junior, recém-chegado da União Soviética, discorreu sobre as suas impressões de viagem para um público tão amplo que a fila dobrava o quarteirão. Nelson Tabajara de Oliveira falou sobre a China, de onde também acabara de voltar. Mário Pedrosa fez uma palestra sobre a teoria marxista da evolução da arte. Jorge Amado descreveu a vida numa fazenda de cacau na Bahia. Oswald de Andrade leu trechos da sua peça “O homem e o cavalo”, causando certo tumulto. Grandes nomes que circulavam, conversando e trocando ideias que estariam nos seus principais trabalhos. Os debates eram variados, e muitas vezes enlouquecidos. Como lembra Flávio de Carvalho, “A turbulência e a depreciação – nos momentos mais felizes – às vezes era tão pronunciada que desabrochava em franca e gostosa brincadeira; meninos e meninas brincando alegremente em torno de um conferencista, como aconteceu com o sertanista Helembeck (o homem que se fotografava com barbas postiças de longo estágio no sertão), que não pôde terminar sua maçante palestra com pretensões a dicionário, sendo raptado por um bando de mascarados, embrulhado e amarrado em um grande lençol branco que empunhava festivamente Salvador Piza Filho, quando momentos antes brincava de assombração com o conferencista. Posteriormente foi o conferencista benzido e untado com vinho e mostarda”. O Clube era pequeno, uma sala única, com uma cozinha onde Pacha, uma moça russa, fazia pequenos pratos. Na mesma época do CAM, Flávio de Carvalho criou o Teatro de Experiência, que ensaiava na sala ao lado. O Teatro de Experiência foi censurado pela polícia, e o Clube acabou sendo prejudicado por essa ação. Flávio de Carvalho foi substituído da presidência do Clube, mas o interesse dos sócios já não era o mesmo sem ele, e o CAM acabou fechando as portas após alguns meses de forte atuação.
Viaduto Santa Ifigênia à noite, óleo sobre tela, 1934, Flávio de Carvalho.
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clube da chave No começo da década de 1950, a vida noturna carioca era intensa. Uma boemia artística circulava pelas boates que fervilhavam na cidade. Em 1954, Humberto Teixeira, o dr. Baião, parceiro de Luiz Gonzaga nos seus grandes forrós, teve a ideia de criar um clube que reunisse a nata dessa boemia, para conversas regadas a uísque e música. Foi então conversar com Bianchi, que era seu amigo e administrador do antigo prédio do Cassino Atlântico, localizado no Posto 6, em Copacabana quase no Arpoador. Bianchi conseguiu convencer o proprietário do prédio, Paulo Bittencourt, que também era dono do jornal Correio da Manhã, a liberar o térreo do antigo Cassino para o clube. A ideia de Humberto era simples. Um clube onde todos tivessem a chave, pudessem entrar e sair quando quiser, e encontrar os amigos para conversar. Algumas vezes, pro-
moviam-se festas. Tudo muito informal. Apenas um garçom, um piano de cauda ao canto, um armário com boxes onde cada sócio guardava a sua garrafa de uísque. A loja A Flama, conceituada na época, fez a decoração do espaço. Humberto então reuniu seus 50 associados, que receberam os títulos numerados de sócio-proprietário, cada um valendo uma cota de cinco mil cruzeiros. O clube era formado principalmente por gente do cinema e do teatro, como Anselmo Duarte, Paulo Gracindo, Carlos Manga, Procópio Ferreira, Oscarito e Pascoal Carlos Magno, e músicos como Orlando Silva e Ivon Curi. Mas havia também arquitetos, como Oscar Niemeyer, e fotógrafos, como José Medeiros. Não havia mulheres entre os sócios, mas elas circulavam livremente pelo espaço. Especialmente as cantoras, como Ângela Maria, Maysa, Dolores Duran e Elizeth Cardoso, que faziam longas canjas junto ao piano. As conversas corriam soltas, e no Clube da Chave nasceram muitos dos projetos mais interessantes daquele tempo. O Clube da Chave logo chamou a atenção da imprensa carioca, que corria para acompanhar cada evento que acontecia por lá. Não faltavam fotos nas revistas e jornais de tudo o que ocorria no seu salão, num divertido paradoxo, já que o grande charme para o público era a ideia de aquele ser um espaço secreto e inatingível das celebridades de então. Mas foi um espaço privilegiado de trocas entre alguns dos mais criativos artistas daquela época, além de uma experiência inovadora de administração coletiva de espaço. Como a maioria desses espaços, teve vida curta. A sua renda era exclusiva do bar-restaurante, e com a saída de Humberto Teixeira da diretoria, o Clube da Chave acabou fechando definitivamente suas portas.
Título de sócio-proprietário do Clube da Chave de Jimmy Lester (José Ramos de Nascimento).
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casa da nuvem cigana Durante a ditadura militar, andar em grupos com mais de três pessoas era considerado quadrilha, e você poderia ser parado pela polícia e preso. Então, quando jovens poetas e arquitetos decidiram agitar a cultura carioca, em 1975, precisaram encontrar espaços alternativos para as suas reuniões. Os primeiros deles foram bastante criativos: por sugestão de um dos arquitetos do grupo, Dionísio, tiveram a ideia de fazer uma pelada no Clube Caxinguelê, no Horto. Ninguém iria estranhar que, depois do jogo de futebol, aquele bando de cabeludos sentasse para tomar cerveja e conversar. Mas embora as peladas fossem sagradas, e reunissem não apenas a nata da cultura da época, como os Novos Baianos e Luiz Melodia, como jogadores profissionais como Ney Conceição, elas aconteciam apenas nas quintas-feiras, e era preciso encontrar um espaço definitivo para realizar suas trocas de ideias e elaborar seus projetos. Foi quando pintou a casa de Santa Tereza. Era uma casa enorme, em péssimo estado. O telhado tinha caído, só restava a estrutura básica. Mas, como parte do grupo era de arquitetos recém-formados, decidiram comprá-la e reformá-la. A Nuvem Cigana foi um dos mais importantes grupos de poesia da década de 1970. Especialmente porque não era formado apenas por poetas (e que poetas – Chacal, Charles, Bernardo Vilhena, Ronaldo Santos, Guilherme Mandaro), o que possibilitou que fizessem eventos mais abertos, que agregavam músicos, performers, atores, artistas visuais, toda uma junção de jovens artistas que iriam balançar a cultura carioca da época. Esses eventos, denominados Artimanhas (em homenagem ao poema de Torquato Neto), fiObra na casa da Nuvem Cigana.
zeram história no Rio de Janeiro, em espaços como a Livraria Muro, o Parque Lage e o MAM. Mas foi na grande casa de Santa Tereza que eles foram criados. Além dos poetas, fazia parte do núcleo duro da Nuvem Cigana os arquitetos Pedro Cascardo, Dionísio e Lúcia Lobo, Claudio Lobato, que era designer, o fotógrafo Cafi e o compositor Ronaldo Bastos, autor da música que deu nome ao grupo. O pai de Pedro, seu Hercole, pagou a entrada da casa, e foi morar com eles lá. A casa virou uma grande comunidade, e seu Hercole entrou na jogada. Um dia, apareceu com um cara que havia encontrado na rua, para morar também na casa. Era o Valmiro, um negro que se mostrou um sambista de primeira, e acabou sendo um dos grandes compositores do Charme da simpatia, o pioneiro bloco de carnaval capitaneado pelo grupo. Era normal que seu Hercole fizesse isso. Afinal, todo dia alguém aparecia com um amigo novo para morar na casa... Lembra Pedro Cascardo: “O meu pai achou o Valmiro jogado na rua. Não sei se foi na feira. Sei que um dia chego em casa e o Valmiro está sentado na escada, com as roupas do meu pai. Eu perguntei o que ele estava fazendo lá, e ele muito sem graça, meio tímido, mal respondeu. Mas foi ficando, virou um grande amigo do meu pai. Foram amigos até meu pai morrer”. Esse clima libertário e agregador permitiu que a casa da Nuvem Cigana tenha sido um espaço privilegiado de encontros, num momento bastante pesado da ditadura. As festas duravam muitas vezes todo o fim de semana, e eram memoráveis. Por lá passavam toda a jovem cultura carioca. E de lá nasciam as atividades inovadoras da Nuvem Cigana, que foram de onde apareceram pela primeira vez muitos dos expoentes do rock brasileiro dos anos 1980, do teatro de besteirol, da poesia falada e outras importantes manifestações culturais que iriam explodir junto com a abertura política que viria a seguir. Com o fim do grupo, em 1980, a casa também se dividiu. Ainda existe, e Pedro Cascardo sonha em pensar um espaço cultural para ela, como lembrança dos velhos e bons tempos da Nuvem.
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alpendre casa de arte “A palavra alpendre nos é preciosa. Remete a marcas que nos foram deixadas por longas noites de histórias, relatos e conversas acumuladas no aconchego de um alpendre. Nos faz lembrar esse território plástico que na sua lisura pode ser transformado, convertido e reconvertido, palco de brincadeiras e invenções, lugar do espírito de alegria e criação. Lugar de pouso e pausa para os que passam, lugar de acolhida e flerte com alteridade. Mas um alpendre também é esse lugar entre a casa e a rua, o exterior e o interior, espaço das trocas e dos fluxos. É aí que nos reencontramos, no meio dessas ressonâncias, no lugar das conversas, invenções, dos pousos e pausas, das trocas. É aí que o Alpendre vai se configurando como um lugar de passagens, um entrelugar. Um espaço constituído por esses fluxos, interface entre o dentro e o fora. Uma espécie de acumulação por vizinhanças que não deve ser reduzida a uma simples aproximação, mas que potencialize os encontros, busque consistências, multiplicidade e leveza. Um jogo que a cada lance amplie o lugar da criação e do pensamento. Queremos construir esse espaço como se constrói um conceito. Interessam as questões contemporâneas com as quais a criação e o
pensamento se embatem. Experimentar caminhos, como viajantes que não precisam habitar uma cidade, um estado, um país, mesmo que eles nos habitem. Nômades, mesmo que em nossos territórios, habitantes de uma velocidade intensiva.” As palavras de Alexandre Veras, e foram ditas na fundação do Alpendre, em 1999. O espaço foi criado na Praia de Iracema, um reduto boêmio de Fortaleza, e já tinha na sua origem a característica de ser um espaço aberto de diálogo entre artistas de diversas áreas e agitadores culturais. Entre o grupo original, Alexandre Veras e Beatriz Furtado são videomakers, Manoel Ricardo de Lima e Carlos Augusto Lima escritores, Eduardo Frota e Solon Ribeiro artistas visuais, André Bardawil coreógrafa e Luis Carlos Sabadia gestor cultural. Desse encontro, nasceu primeiro um grupo de estudos, e depois a ideia de um espaço onde atividades ligadas aos interesses dos artistas pudessem ser desenvolvidas. Núcleos temáticos foram criados, em artes plásticas, vídeo, fotografia, literatura e dança. Depois, foi criado um núcleo de formação, denominado Cultura e cidadania, para formação de adolescentes na área de audiovisual. E o espaço foi utilizado para a constituição e disponibilização de um acervo livre de cultura. Mas o Alpendre nunca perdeu o seu teor festivo, e de esboroar as fronteiras entre as artes. Artistas visuais se envolveram em criação de texto e performances, como no belíssimo trabalho de Eduardo Jorge e Fátima de Souza sobre o edifício San Pedro, que misturou literatura, artes visuais e dança. Atualmente, o Alpendre está vivendo um momento de amplas mudanças, com a transferência de sua sede para a zona rural do Ceará. Uma nova aventura, que certamente trará outros frutos e encontros.
Intervenção de Marina de Botas no Alpendre, em 2005.
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Poesia
foto: Nino Andrés
Alexandre Barbosa de Souza
Quando conheci o Alexandre Barbosa de Souza, em 1994, ele já tinha um livro na praça, e com excelente reconhecimento por parte de artistas e poetas, embora fosse apenas dois anos mais velho do que eu. Nascido em 1972, ele havia publicado com 20 anos um Livro de poemas, com textos de inegável qualidade e beleza. Criamos juntos um fanzine, Azougue (nome tirado de um poema de sua autoria), que depois se tornaria uma revista de poesia e uma editora. Mas nossos interesses literários eram muito diversos, e seguiríamos caminhos diferentes dois anos depois. Esses dois anos de convivência foram também de intensa produção poética para Alexandre - neles, escreveu boa parte dos poemas que figuraria no seu segundo livro, Azul escuro, publicado somente em 2003. Os poemas, assim como do primeiro livro, eram marcados pela contenção e beleza. Uma poesia destilada, como ele mesmo define. Alexandre foi conquistando a admiração dos seus pares, que esperam cada nova leva de poemas pacientemente. Finalmente ela chegou, reunida no Livro geral, lançado este ano pela Companhia das Letras, que reúne os volumes anteriores e poemas inéditos. Um livro para ser apreciado com calma por todos os interessados em poesia brasileira. Para celebrar o lançamento, Nau fez uma pequena entrevista com o autor, para abrir a série de poetas que farão os pôsteres centrais da revista. [Sergio Cohn]
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O título do seu livro, Livro geral, remete ao volume de Carlos Pena Filho. Assim como ele, são poemas de grande apuro formal, mas que passam ao largo de experiências de linguagem das vanguardas brasileiras da metade do século passado. Com quais poetas você está dialogando na sua poesia? Você consegue localizá-la na poesia brasileira contemporânea? Gosto muito do Carlos Pena, a limpidez e a grandeza, com graça, e o patético, mas só escrevi um poema chamado “Cena do Campo” inspirado no “Retrato Campestre” dele. Pernambuco não é brincadeira, muitos dos meus favoritos são de lá: Joaquim, Manuel e João. Conheci pessoalmente o Waly Salomão, o José Paulo Paes, o Décio Pignatari, a Orides Fontela. Dos poetas de hoje em dia gosto do Sergio Alcides, do Donizete Galvão, do Ruy Proença, do Carlito Azevedo, do Heitor Ferraz, do Paulo Henriques Britto. Dos novíssimos, gosto do Iuri Pereira, do Rafael Mantovani. Talvez o meu diálogo seja mais pelo negativo, pelo que não me interessa na poesia. Gosto de destilado, a poesia vinho e a poesia cerveja eu até aceito, mas não compro. Você publicou o seu primeiro livro muito cedo, com 20 anos, e com excelente repercussão. Ao mesmo tempo, constituiu uma obra pequena e bastante difusa no tempo. Foi por escolha pessoal ou dificuldades editorais publicar pouco? Comecei a trabalhar muito cedo para os padrões da minha classe. Eu realmente achava que não ia chegar nos trinta. Em livraria, editora, você perde as ilusões bonito. Quando criamos o fanzine Azougue, eu já me sentia um veterano. Quando fizemos a revista Ácaro, praticamente já tinha morrido. Daí eu sempre ter preferido fazer tudo pequeno e independente. Sem agrotóxico. A sua obra dialoga com outras artes: há referências a artistas visuais e músicos, e parcerias
com músicos contemporâneos com o Willy Corrêa. Esse diálogo influenciou na linguagem da sua poesia? Muita arte, velhinho. Adoro. Sou misticamente possuído, fascinado mesmo por música. Filatelia de artes plásticas, museu, sebo, livro de arte. O Willy sempre foi meu principal interlocutor e mestre das artes. Sempre acompanhei amigos artistas, curtindo muito, escrevendo coisas para pintores, fotógrafos, músicos. Nos meus poemas tem isso, claro, a imagem e o som em conjunção e uma consciência técnica. Eu estudei bastante poesia como linguagem, ainda estudo. Fizemos um grupo de leitura na minha casa para ler as Flores do Mal, fizemos na outra casa um para ler o Ulysses. Lemos tudo até o final.
dois poemas À margem, Onde não caem estrelas, Conjuga-se o vergar das vigas mestras. À margem, Conspiram negras miragens, Atentas como espelhos. À margem estão Os insones do século, Febris pela ausência que se nota; Tatuada no silêncio, Presa às costas. *
Como nasceu a parceria com o Willy Corrêa de Oliveira? O Willy é pai do Dani, meu amigo de infância. Ele era vizinho lá do meu pai. Conheço desde muito menino. Sempre íamos fazer circuito de sebo e livraria juntos. Ainda vamos. Livraria Francesa, centro, seu Jaime na Praça da Árvore. Uma turma de velhos, eu era o mais novo. Mas música para poema meu só foi acontecer recentemente e ficaram realmente extraordinárias. O Willy é um gênio total, um grande compositor vivo. Você trabalha como editor e tradutor, tendo enfrentado obras robustas, como o Moby Dick, de Melville. Esses trabalhos influenciam a sua escrita poética? Vivi de tradução literária uns cinco anos seguidos. É viciante e absolutamente absorvente. Acho que a concentração e a necessidade de contemplação da palavra, do tradutor, ajudam o poeta. Não duvido disso. Mas traduzi também a Patti Smith, o Leonard Cohen, o Prévert pra criança, a Mansfield, o John Cheever, enfim, são prosas altamente imantadas de poesia.
MUNDO A noite na varanda, a lua cheia é uma lâmpada e move as águas do sonho Uma cisterna de raízes longas onde se nutrem as estrelas e o ouro velho das romãs Cálida sobre a telha fresca e limpa da chuva o coração é uma fruta que madruga Cada estrela, um desejo que dispara a maravilha de sua clausura
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arto lindsay entrevista por Afonso Luz e Sergio Cohn
[Sergio] Arto, para começar, fala um pouco da sua relação com o Brasil, desde a infância, com a vinda dos seus pais para Pernambuco... Sim. Meus pais eram missionários americanos, eles são do sul dos Estados Unidos. Meu pai é da Carolina do Sul, minha mãe é da Flórida, apesar dela ter vivido a infância e a adolescência na Pensilvânia, e eram missionários presbiterianos. Eles vieram morar no Brasil, me trouxeram para cá quando eu tinha três anos e moramos no interior de Pernambuco, na cidade de Garanhuns. Eles ensinavam, não eram missionários evangelistas, eram educadores, trabalhavam numa escola chamada Colégio Quinze de Novembro que, quando foi fundada, em 1900, era a segunda escola de Garanhuns. Era uma das únicas escolas no interior de Pernambuco quando fundada. Muitos anos depois, quando a minha família foi morar lá em 1956 ou 1957, já existia uma rede de escolas públicas, municipais e estaduais, então ela não supria a mesma necessidade básica de providenciar a educação. Mas, apesar de ser uma escola privada, ela era muito aberta, tinha muita gente que estudava lá com bolsas e coisas assim. Meu pai e minha mãe foram professores lá, e meu pai também foi diretor durante uma época. Nós morávamos dentro do campus dessa escola, tinha várias casas lá onde moravam missionários americanos. Eu estudava na escola na parte da manhã, e de tarde a missão presbiteriana tinha contratado uma professora americana que dava aula durante três horas em inglês, para a gente aprender a história dos Estados Unidos e outras matérias em inglês. Então fui educado com dupla educação lá. Aí, mais tarde, fui estudar na escola americana do Recife
para fazer o high school, para depois ingresssar numa faculdade americana. [Sergio] E a cultura lá do interior de Pernambuco, qual foi o impacto dela na sua vida? Eu acho que foi forte. Quem sabe o que impactou? Eu não vou atribuir, não vou fazer as listas das minhas influências, entendeu? Acho pretensioso, e não sei se o negócio funciona assim. Mas a cultura lá era muito impressionante. O interior de Pernambuco em 1950 era parecido com o interior de Pernambuco no século XIX. Era um lugar muito violento. Tinha brigas de família que duravam anos, toda sexta-feira morria alguém de uma dessas duas famílias. Dia de feira todo mundo andava armado. Só meu pai que não andava armado. Ele e os padres. Mas meu pai falava: “Bem, embaixo daquela saia quem sabe se o cara tem um revólver ou não?”. A gente acordava sábado de manhã conforme os carros de boi vindos para a feira passavam em frente a nossa casa. Três horas da manhã já começava aquele ranger... [Sergio] Era um western... É, era meio western, entendeu? E tinham histórias em Garanhuns. Logo antes da nossa chegada um padre matou um bispo porque o bispo tinha acusado ele de alguma coisa, não sei se era de roubo ou de alguma coisa com alguma mulher, algo assim. Durante o tempo em que meu pai trabalhou no Colégio Quinze, um estudante matou um professor porque se sentiu desonrado. Ele foi pra casa pegou uma arma e voltou e... Naquela época tinha um buraquinho nas portas das salas de aula para o diretor de disciplina dar uma olhada durante a aula, e o menino voltou, colocou a
arma lá e pá!, matou o professor. Então, era uma cultura assim diferente. Também em dia de feira tinha alto-falantes espalhados pela cidade tocando músicas, então a gente ouvia, principalmente Luiz Gonzaga, muito forró, e tudo aquilo. Era muito bom. Garanhuns era realmente uma cidade muito linda, diferenciada, porque era frio. Ela é conhecida como a Suíça pernambucana porque fica no alto. Tive uma infância muito bucólica nesse sentido, porque a gente andava a cavalo, brincava de futebol tardes inteiras, aquelas tardes que não acabam mais. Foi uma infância muito boa. Ao mesmo tempo, meu pai lê muito, tinha uma biblioteca muito boa e desde muito pequeno comecei a ler muito. Tinha uma coleção imensa de New Yorkers, por exemplo, e eu adorava aquilo. Quando fui crescendo eu queria emular aquela sofisticação, então inventava roupas e algumas coisas para ficar parecido com a coisa nova-iorquina, sem nem muito pensar em Nova York, mas era aquela coisa romântica de menino. E não existia televisão no interior, quando a gente foi morar lá. Quando a televisão chegou só começava às cinco horas da tarde, era outra coisa. Aí eu acompanhei todos aqueles programas. Acompanhei os programas de Roberto Carlos, os Festivais de Música e aquilo tudo... [Sergio] Você era adolescente na época, tinha uns catorze anos na época dos festivais? É... Eu comecei a ver aquilo. Minha mãe também tocava piano muito bem e ela tinha uma coleção de discos muito boa, ela adorava Dorival Caymmi, Nat King Cole, eu me identifiquei com essas coisas. Ela também adorava Johnny Matthis, eu tentava esquecer isso [ri-
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sos]. Meu pai tinha um gosto mais rural, mais sulista. Gostava de blues, de country, tinha alguns discos que a gente também ouvia repetidamente. [Sergio] Era possível ter acesso às novidades? Você tinha acesso lá aos discos que saíam? Sim. Tinha uma lojinha de discos, acho que o primeiro disco que eu comprei foi Music of my mind de Stevie Wonder, não sei se é verdade. Eu sei que eu também comprei aquele “Je t´aime... moi non plus”, do Serge Gainsbourg e da Jane Birkin, numa capinha de papelão... Tinha uma lojinha de discos que eu frequentava ali no centro em Garanhuns. Porque era aquela coisa, finalzinho de tarde você ia para o centro, dava uma volta ali, paquerava. O colégio da gente acabava um pouquinho mais cedo que o colégio Santa Sofia, que era o das meninas, então todo mundo ia e ficava na frente do colégio delas paquerando as meninas quando elas saiam... [Afonso] Você se sentia estrangeiro nessa época? Cara, sim. Eu tive um pouco da sensação de ser um cara especial porque tinha essas duas possibilidades: ao mesmo tempo em que eu me sentia completamente fora dali, eu era aceito como aquele cara dali, entendeu? Sim, eu era americano, mas era o americano dali, ou um dos. [Afonso] E qual é a experiência que você se lembra como primeira experiência de Brasil? Olha, essa coisa de memória é muito ilusória. Mas a minha primeira lembrança de Brasil é em Campinas. Quando a gente veio para cá, foi primeiro morar em Campinas, porque lá tinha uma escola de inglês para estrangeiros. Aí a gente morou numa casinha bem moderna, e eu me lembro que do outro lado da rua tinha uma casa ultramoderna, e as casas americanas da época eram todas assim em modelo colonial. Naquela época, pelo menos no sul, não se tinha experiência nenhuma com uma casa geométrica. E do outro lado da rua tinha essa
casa, que para mim, eu achava, eu sentia que aquilo era uma coisa bacana. Campinas era uma cidade muito moderna naquela época, já industrial, sofisticada, bem menor do que é hoje, sem violência, sem tudo que tem hoje, tudo que virou. Do outro lado da nossa rua, a gente morava numa ladeira íngreme, tinha essa casa e tinha uma menina que eu achava o máximo. Eu tinha três ou quatro anos, mas eu era gamado por essa menina. Ela era adolescente, eu lembro que ela usava um chapéu
bro de uma igreja conservadora, uma igreja protestante, não uma igreja evangélica, bem diferente, americana. Mas dentro dessa igreja ele é de esquerda. No mundo dele ele era considerado radical. Ele é um cara com preocupações teológicas, para quem o deus em que ele acredita não é um Papai Noel benigno, mas um enigma. Ele é um cara mais sofisticado e passou isso pra mim. Até os dez, doze anos a gente conversava muito sobre essas coisas diretamente e indiretamente, política, tudo, e a
Eu tive um pouco da sensação de ser um cara especial porque tinha essas duas possibilidades: ao mesmo tempo que eu me sentia completamente fora dali, eu era aceito como aquele cara dali, entendeu? Sim, eu era americano, mas era o americano dali, ou um dos. chinês, sabe, eu não sei descrever isso em português... Um cone. Então, mas eu vi essas fotos depois, então eu reconstrui, mas a minha memória primeira é estar nos braços de uma empregada clássica, negra, grande, e eu vi um samba, um carnaval lá longe, e eu sempre falo que o primeiro samba que eu vi foi o samba paulista, mas não deu pra distinguir... Era um barulho, um rufo, não era uma coisa formada, eu não ouvia “taquitetaquite”, eu ouvia “buuum”. Mas fiquei excitado: “o que é isso?”. Essa é a minha primeira impressão do Brasil. [Sergio] Nos anos 1960, Pernambuco estava vivendo uma efervescência cultural, tinha o Jomard Muniz de Britto, toda uma turma agitando culturalmente. Você chegou a viver isso? Sim. Quando eu fui morar no Recife, em 1967, eu convivi com uma turma interessante, ligada à teologia da libertação. O meu pai foi importante nisso. Ele é um cara que é mem-
atitude dele passou muito para mim. Depois, na adolescência, eu rejeitei aquilo, mas mais tarde eu comecei a ver que aquilo tinha me formado. Então, quando eu fui morar no Recife, eu comecei a frequentar um grupo, não sei como eu cheguei a esse grupo, de pessoas dessa tendência da teologia da libertação, de esquerdismo dentro da igreja católica e movimento operário, que ficava em Olinda. Eu frequentava uns jantares que tinha todas as quintas à noite, e depois desses jantares, a gente comprava baseado feito na rua. Era uma loucura, e eu ia fumar com outra turma que era de uns pintores. E aí, tinha uns caras, umas meninas, e a gente ia para o ateliê desses caras e fumava escondido lá atrás, eu não sei também como eu cheguei até essa cena, eu não tive amigos ali dentro, a gente não conversava tanto, queimava um fumo e ficava meio viajando, aquela coisa de luz negra. E também eu li Gilberto Freyre na época...
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[Afonso] Josué de Castro também? Não. Gilberto Freyre, principalmente. Eu fazia parte de um grupo de estudantes que tiravam notas boas na escola americana, e coube a mim convidar alguém para fazer uma palestra na escola. E eu convidei o Gilberto Freyre, ele veio na escola e eu recebi ele. Não lembro de nada que ele falou, lembro que isso aconteceu, queria até saber do que ele falou. Porque essa escola americana do Recife era uma escola que recebia não só americanos, mas também todos os estrangeiros que moravam no Recife, e que não eram tantos assim na época. E durante os dois primeiros anos em que eu estudei lá chegou um diretor da Califórnia que tinha umas ideias tipo Summerhill, aquela concepção de educação mais aberta. E veio junto com ele um amigo que era o nosso professor de química, que era surfista e que foi um dos primeiros caras com quem eu fumei maconha. Esse cara trouxe toda uma atitude bacana para a escola. No meu último ano já tinham mandando ele de volta para a Califórnia e a escola voltou a ser uma coisa mais conservadora. Mas também tinha uma professora minha de inglês que era bem esquerdista e que tinha amigos que foram desaparecidos nessa época. Nós conversamos tudo isso. Uma coisa que ela falou que eu nunca me esqueço, embora não tenha seguido, foi que se você quiser escrever verso livre, você tem que saber escrever um soneto. E eu nunca aprendi a escrever um soneto.
tória da mãe do Caetano chamando ele para ver o Gil na televisão. Mas a minha mãe falava: “esse cara é bacana, gosto muito dele”. E aí eu prestei atenção no Caetano por causa da minha mãe, primeiro na televisão. E eu vi os tropicalistas na televisão. Não sei se eu cheguei a ver os programas deles, aquele programa “Divino maravilhoso”. Talvez, porque eu tenho memórias mais fortes de ter visto Roberto Carlos e Jorge Ben. Foi incrível quando apareceu Jorge Ben.
[Sergio] Em 1967-68, saíram os manifestos tropicalistas de Recife, que o Jomard, o Gil, Caetano assinaram. Você não chegou a conhecer eles na época? Você não chegou a ver essas coisas? Não.
[Sergio] E o Nouvelle Vague, em Garanhuns, você também tocava? Não. Essa era uma banda que eu escutava, era a banda que tocava a coisa mais Jovem Guarda. A coisa mais moderna que tinha por lá era essa banda. Eu ouvi bastante a Nouvelle Vague, em bailes, na rádio. Quando fui morar no Recife e comecei a banda com os americanos, já escutava Beatles e tinha uns amigos que também vieram da Califórnia. A Califórnia foi muito importante para a minha imaginação nessa época. Eu fiquei amigo de
[Afonso] Você conheceu os tropicalistas já em Nova York... Na verdade, minha mãe gostava de Caetano, foi ela que me chamou atenção para o Caetano. Parece um eco esquisito daquela his-
[Afonso] A guitarra surge na sua vida com a Jovem Guarda? Não. Eu já gostava dos Beatles e coisas assim. Tinha um grupo em Garanhuns chamado Nouvelle Vague, que ao invés de guitarra tinha sanfona, mas tocava todas aquelas músicas. [Afonso] Quando você teve a sua primeira guitarra? A primeira guitarra foi em Nova York. Mas em Recife eu cantava em uma banda de americanos na escola, até que alguns deles foram embora, as famílias foram morar em outro lugar, e então durante um período nós nos juntamos com a banda do Robertinho do Recife, fizemos uma banda mista. Cheguei a tocar num baile de engenheiros que tinha até escrito “For all”, um negócio desses. Fizemos um show em Natal muito bom. Foi a primeira vez em que eu cantava, eu sentia o que era comandar um público. Você pedia e o público fazia “ahh”! Sentia esse fenômeno.
dois californianos, e eles trouxeram muitos discos, então eu conheci muita coisa: Jefferson Airplane, Led Zepellin, muito Jimi Hendrix. Aquele período foi tão importante, e a banda com o Robertinho do Recife também, que quando eu estava na faculdade, nos Estados Unidos, cheguei a trancar a matrícula depois de dois anos e voltar para o Brasil para fazer música, tentar alguma parceria nova com o Robertinho. Acabou não acontecendo, porque eu descobri que se não voltasse para a faculdade talvez fosse alistado no exército para ir ao Vietnã, e precisei voltar para os Estados Unidos. [Afonso] Você voltou quando para os EUA? Primeiro em 1970. Eu fui fazer universidade na Flórida. Era uma universidade bem liberal, bem aberta naquela época, anos 1970, pós -pílula anticoncepcional, pré-AIDS. Era uma escola de vida. Na verdade, eu lembro pouco das aulas, só de algumas que me marcaram. Eu fiz uma aula sobre entrada do século XX na Áustria, Viena como o berço do modernismo que me marcou muito. E participei de um grupo de teatro. A gente improvisava, e eu acho que a minha educação mais importante foi essa. Também namorei uma menina que queria ser artista, e ela me deu uma assinatura da Art Forum de presente, então eu recebia essa revista. [Afonso] O primeiro tempo da Art Forum. Exatamente. Eu recebia e lia sobre tudo. Eu estava muito aberto e lia sobre a arte minimalista, sobre a cena de dança, de performance. Isso em excitou muito. E toda a extensão de Duchamp, Vito Acconci, os caras que eram bem confrontacionais. Era uma arte, como a performance, mas era muito in your face, muito confrontacional. [Afonso] Você já ligava isso à música? De alguma forma eu tinha várias ambições. Quando eu fui morar em Nova York, eu não sabia o que eu queria fazer. Talvez bailarino, talvez músico, talvez escritor... Alguma dessas
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coisas. E acabei caindo dentro da música. Mas quis incluir todos esses interesses junto. Essas ambições estão dentro do que eu fiz, quando a gente montou o DNA. Era uma coisa de montar um negócio do zero. [Sergio] E foi nos Estados Unidos que você teve acesso aos tropicalistas? É, porque eu não conhecia os tropicalistas como tropicalistas durante a minha adolescência no Brasil. Eu não sacava todo esse posicionamento deles e o que aquilo significava. Para mim, aquilo era simplesmente uma música brasileira que era tipo os Beatles, o Hendrix. Era a música daqui, daquele momento. Eu não entendia o contexto. Durante a faculdade eu mergulhei na música brasileira, mas muito mais em João Gilberto. Escutava obsessivamente o João Gilberto, fui descobrindo muita coisa dele. A gente escutava discos dele o tempo inteiro. Era aquela relação obsessiva com os discos de escutar, escutar, escutar. Uma maneira de escutar música que as pessoas não possuem hoje em dia. Depois eu fui morar em Nova York, em 1974, e conheci o Waly Salomão. E então tive acesso aos tropicalistas. [Afonso] Como foi essa ida para Nova York? Foi quando eu acabei a faculdade. Eu fui para lá com o meu colega de quarto e nossas namoradas. O meu primeiro trabalho lá foi como professor de português, mas não deu certo, eu acabei brigando. Depois, fui trabalhar numa livraria. Meu amigo já trabalhava em uma livraria e era uma época em que a gente consumia muito livro, muito disco. A gente não tinha quase nada de dinheiro, mas se educou comprando discos e livros. Era aquela voracidade, vinte e poucos anos... Foi um período intenso de formação. A gente ouvia muito o Miles Davis, que era uma figura fascinante. O Hendrix, que era o outro exemplo possível, tinha morrido. E o Miles estava com bandas incríveis na época, influenciado pelo funk grooveado do Sly Stone, com uma ideia de liberdade muito interessante, que
era diferente do free jazz. Eu me lembro de um show dele que vi quando ainda morava na Flórida, numa viagem que fiz para Nova York. Eu entrei e o clube era um corredor fino, a banda tocava de um lado e o público ficava do outro, entre a porta e a banda. Quando a gente entrava, precisava passar pela banda, e os músicos não gostavam nada disso, podia desconcentrá-los. E tinha o Miles com aquele olhar dele para todo mundo. Mas quando eu entrei estava o Airto Moreira tocando. Eu falei: “Puta que pariu, um brasileiro!”. O Airto era muito livre, ele era incrível na banda do Miles, porque estava rolando um groove, ele metia outro groove em cima, cantava uma música nordestina no meio, uma música brasileira improvisada sobre a melodia que estava tocando. Era tudo muito livre. [Afonso] Além da música, você acompanhava as outras artes, como a performance? Sim. Na mesma viagem que eu vi o Miles, eu fui ver a Grand Union, que era o grupo formado por Yvonne Rainer, com todos aqueles coreógrafos. Era um grupo incrível. Depois ela saiu, e o grupo continuou. Era um grupo incrível: Steve Paxton, David Gordon, Trisha Brown. Era só cabeção, todos improvisando juntos. Era uma loucura. Eu fui ver isso. E também foi uma experiência muito forte, porque era tipo uma aula de carisma. A gente chegava e essas pessoas eram fortíssimas dentro de um mundo pequeno deles, que era o da dança contemporânea de Nova York. Eles eram artistas muito fortes, e a gente chegava e era jovem e bonito, e as meninas, as nossas namoradas, também eram mulheres sensacionais, lindas, gostosas, superinteligentes, e artistas também. E a gente chegava e eles olhavam para a gente e a gente olhava para eles, era um negócio... E nesse processo a gente percebeu que também podia ser adulto, também podia se impor um pouco. Foi muito importante para mim ter visto tudo isso. Eu aprendi muito sem realmente nunca ter sido um bailarino. Aquilo tudo me formou muito como um homem de palco. E eu era
muito fã também do Vito Aconcci e do Chris Burden, essas coisas de chamar o amigo para atirar em você e seguir uma pessoa na rua, bater punheta em baixo de um chão falso, aquela instalação do Vito. Eu tenho uma memória de ter visto “Seedbed”, não sei se é verdade. Mas de qualquer forma aquilo era muito forte na época, porque “Seedbed”, essa obra do Vito, que é um chão falso que você entra na galeria e está escrito: “O artista está embaixo do chão falso fantasiando, usando você nas suas fantasias sexuais e se masturbando”. Aí você entra e você vê. Eu tenho essa memória claramente, mas será que é verdade? Porque quando eu fui ver as datas, ele fez duas vezes e nenhuma bateu exatamente com minhas idas para lá. Essas coisas para mim foram essenciais. Quando eu quis fazer uma banda de rock, eu queria ter essa força na minha banda. [Afonso] Mas isso era o quê, era uma liberdade corporal ou já parecia como um conceito artístico para você? Eram os dois, porque usar seu corpo dessa maneira era um conceito artístico, era uma necessidade artística. Ao mesmo tempo eu estava lendo Dematerization of the art object, aquele livro da Lucy R. Lippard que acompanhava essa teoria. Eu fiquei muito entusiasmado com as ideias do Robert Morris sobre a escultura gestalt, a ideia de que você faz uma escultura que não é uma miniatura e não é um monumento. Está na sua escala, está na escala do ser humano, e não reduz, não gigantifica, não monumentaliza. Essas ideias do Richard Serra, de escalas, isso é superimportante para mim. Dança, música, escultura, poesia, tudo isso estava em torno dos meus interesses na época. [Sergio] Lá em Nova York você entrevistou o William Burroughs para a revista Anima. Como foi isso? Isso foi o seguinte. Mark e eu tivemos a ideia de fazer uma revista. A gente tinha assistido aos primeiros shows da Patti Smith. Não o
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primeiro, mas o segundo e o terceiro show que ela fazia sempre no aniversário do Rimbaud. Ela tocava com uma banda e foi no início da carreira de roqueira dela. Então, ela cantava e estava começando a formar o estilo dela. Era um momento meio entressafra lá de Nova York, e tinham pessoas da vanguarda dos anos
tirando vantagem de ser um rapaz jovem, disse: “Quero sentar no seu organe acumulator”, que é aquela teoria do Reich que se tem numa caixa de chumbo com pele de animal por fora, você senta dentro e vai aumentando o seu potencial orgônico. Aí, ele: “É claro. Venha”. Fui na casa dele e fiquei uma hora lá dentro e não acon-
Todo mundo achava que nossa música era antimúsica, que a moda era uma antimoda e não era, era outra coisa que a gente estava tentando fazer e ninguém desprezava o que estava rolando, ninguém nem pensava no que estava rolando. 1920 que moravam lá e eram desconhecidos, como a Djuna Barnes, que era uma escritora lésbica que escreveu um livro chamado Nightwood, que era um dos romances preferidos de T. S. Eliot. Ela morava na rua Oito, em um hotelzinho, um desses lugares de gente velha que não tinha apartamento próprio. E aí, eu acho que a gente conhecia o cara que era assistente dela, a gente tinha uma conexão com uma vanguarda underground. É difícil, por exemplo, não tinha um livro sobre dadá na época. Quando saiu aquele primeiro livro sobre dadá, eu nem sei bem quem escreveu, foi uma descoberta. Você tinha que ir atrás daquilo, daquela informação. [Sergio] O modernismo clássico era dominante ainda... Era completamente. Você tinha que procurar aquelas coisas. Então, a gente queria fazer essa revista, e foi procurar a Patti Smith em um ensaio dela e ela não quis ser entrevistada naquele dia. Ela já era difícil na época. Depois, ela me conheceu e disse que queria ter me conhecido antes, e eu disse que a gente já tinha se conhecido, e ela não acreditou... Então eu consegui o telefone do Burroughs e liguei para ele. E,
teceu porra nenhuma. Saí e ele falou: “Tá com fome?”. Aí ele me convidou para jantar, ele cozinhou para mim e ficamos horas e horas conversando, bebendo, fumamos, bebemos, foi ótimo. Não rolou nada... [Sergio] Ele cozinhava bem, por acaso? Muito bem. Era uma comida meio marroquina, muito boa. Sei que depois, algumas semanas ou meses depois, a gente entrevistou ele, ou eu entrevistei ele, para a nossa revista. Nunca saiu. Algum tempo depois, eu acabei com essa primeira namorada e saí desse apartamento e estava meio vagando. Por acaso, eu conheci o Waly Salomão, que estava precisando de alguém para dividir um apartamento e fui morar com ele. Aí, contei essa história para o Waly e ele disse: “Pô, vamos publicar isso no Brasil”. Tinha um cara, Abel Silva, que estava editando uma revista aqui. Eu nunca conheci o Abel. Então eu traduzi um pedaço para o português e uns trechos de algumas histórias do Burroughs, e foram publicadas. Acho que fui uma das primeiras pessoas a traduzir Burroughs para o português. Não sei, deve ter tido alguém antes nos anos 1960, mas isso foi em 1976...
[Afonso] Arto, nessa época a moda já te interessava? Como referencial... Olha, a gente era muito consciente de estilo, mas não de moda. E nessa época a cultura americana era muito rasa, havia a cultura de massa americana e o rock comercial, não sei o quê, não tinha tanta coisa que interessava a gente. A gente procurava um estilo mais apurado. E essas bandas pós-punk, por exemplo, Television, eles se vestiam de uma maneira meio... Todo mundo era fascinado por Rimbaud naquela época, mas a gente não tinha muita noção de como era aquilo. [Sergio] Você convivia com eles? Tom Verlaine... Não. Eu assistia todos os shows... Na época eu tive um momento que eu falei: “Pô, adorei aquela letra que você fala não sei o quê”, e ele falou: “A letra não é nada disso” [risos]. Eu falei: “Tá bom”. Mas eu convivi um pouco mais com o Richard Hell. [Sergio] Mas a moda para eles era uma antimoda... É. Era uma antimoda, mas todo mundo achava que nossa música era antimúsica, que a moda era uma antimoda e não era, era outra coisa que a gente estava tentando fazer e ninguém desprezava o que estava rolando, ninguém nem pensava no que estava rolando. Assim, por exemplo, eu não era “anti-Peter Frampton”. Peter Frampton para mim não existia, era um cara lá, deixa ele. Eu estava querendo saber quem é que Trio Matamoros fez no México. O que é esse disco de Al Green que eu não conhecia? Eram essas coisas que eu queria saber. [Afonso] O que era o underground para você nessa época? Como ele surgiu? A gente não tinha consciência de estar seguindo o underground. A gente gostava de ver o underground, mas a gente não queria reproduzir uma cena underground, não queria reproduzir nada de Andy Warhol. A gente queria fazer o nosso lance, e a gente era underground.
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[Sergio] Mas você já pegou a ressaca desse underground nova-iorquino... Pegamos. O primeiro lugar que eu toquei foi Max’s Kansas City, e não foi CBGB’s. O Max’s foi superimportante nos anos 1960, mas depois fechou, e reabriu. E quando reabriu, teve uma época que o New York Dolls tocava
palco a gente conseguiu ser contundente e todo mundo “uau” e foi por aí. Foi assim que nasceu o DNA. [Afonso] Vamos voltar para a moda... Sim, tem uma coisa importante sobre isso, que gostaria de falar. Nessa época, na televisão
Um produtor é um cara que sabe que o técnico é tão importante quanto o cantor para um disco ficar bom. Ninguém mais sabe disso ou todo mundo faz de conta que não é verdade, mas um técnico é igual a um cantor, é o cara que tira o som que você vai ouvir. lá, o David Johansen, Suicide, o Pere Ubu. E foi meio por acaso que eu formei a banda e comecei a tocar lá. Eu vivia por lá, vendo os shows, ajudando os amigos a montar os palcos. E o Terry York, que era empresário do Television, via que eu era o cara descolado e falou: “E a sua banda, quando é que vai tocar?”. Eu não tinha banda. Ele falou: “Quer tocar semana que vem ou mês que vem?”. Aí eu falei: “Mês que vem está melhor”. Inventei a banda do zero. Simplesmente inventei a banda. Chamei uma garota japonesa que andava com uns músicos, e perguntei se ela queria tocar na banda. Ela disse: “Mas eu não toco nada”. “Quer tocar bateria na minha banda?”. Aí comprei um disco de ritmos brasileiros, que existiam muito na época, com vários ritmos, samba, baião, maxixe, coco, candomblé... Dei esse disco para ela, falei: “Olha, leva esse disco para casa e tente imitar ele”. Então, ela aprendeu a tocar. A gente começou do zero, era muito conceitual. Eu queria tocar guitarra, já tinha tocado um pouquinho de guitarra e tinha essa ideia de tocar uma guitarra free jazz, percussiva. Só que aí funcionou, e quando a gente subiu no
americana, depois das onze horas, passavam filmes antigos, film noir, os filmes que não podiam passar mais cedo. Aqueles filmes da época chamado pré-code, antes de Hollywood encaretar. Até a primeira metade dos anos 1930. A gente era louco por aqueles filmes, e eles formaram a sensibilidade de estilo da gente, do DNA, do Lounge Lizzards. A gente se interessava naquilo, porque tinha uma consistência de estilo que não existia na nossa época. Nossa época era meio perdida de estilo. Isso foi antes dos anos 1980, os jovens não usavam ternos. A gente começou a usar terno antes de isso virar moda. A gente que criou essa moda. Não fui eu, foi toda uma cena que surgiu ali e a gente comprava roupas usadas e aparecia de terno. Robert Longo, que hoje foi redescoberto pelo pessoal da moda, que é aquele cara que fez aquelas pinturas das pessoas bem vestidas dançando, tudo isso surgiu naquele momento. E tinha a ver com o que estávamos fazendo. [Sergio] Depois do DNA, você forma o Ambitious Lovers, que aparece numa capa do Caetano Veloso, no disco de 1987, ele rece-
bendo a fita cassete do disco de vocês. E daí você vai produzir ele. Como foi esse pulo para produtor? Eu acho que eu nunca pensei em ser produtor, porque eu não sei tocar nenhum instrumento, fora aquilo que eu faço com a guitarra. Mas não sei tocar harmonia. Então, por acaso eu acabei produzindo discos, por acaso eu aprendi a produzir. E tive a sorte de produzir discos no momento em que a música brasileira estava se expandindo para fora do Brasil. E por ser americano e estar morando em Nova York, participando da indústria de música lá, ter os conhecimentos de lá, pude compartilhar aqueles conhecimentos com muita gente aqui no Brasil naquele momento. Eu e o Peter Scherer, que foi meu parceiro de Ambitious Lovers, produzimos juntos O estrangeiro, que foi um disco marcante na carreira do Caetano, porque era uma espécie de ordenação sonora. O som chegou mais perto, mais uma vez, da força das canções. Várias vezes na carreira do Caetano o som estava no nível das canções. Na Tropicália, naquele momento de misturar todas aquelas coisas, com os arranjos do Rogério Duprat, todas aquelas ideias dele, foi um momento. E também na época do “Qualquer coisa” e do “Joia”. Eu sempre acho aqueles discos algo muito escultóricos, e eu sempre falo isso pro Caetano. Eu também aprendi muito sobre escultura com o João Gilberto, com espaço, silêncio, gesto, projeção, mil coisas. Aprendi escutando aqueles discos. [Afonso] Você acha que o João Gilberto é escultórico? Com certeza. E o Caetano naqueles discos, no Qualquer coisa, era uma loucura de entendimento espaço-temporal. E ele traduziu também e muito conscientemente a sabedoria do menino do interior sobre as coisas básicas, físicas... Os prazeres que você acha quando não tem muitos recursos, só você mesmo e seus amigos, e a chuva, o sol, no máximo uma bolazinha... Essas coisas que são importantes hoje para caralho. Essas coisas assim que são muito importantes para
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mim. Agora, quando eu comecei a produzir teve esse momento do Estrangeiro, e depois o Peter não quis fazer o Circuladô. Ele teve alguma coisa com o Brasil e não queria mais trabalhar aqui. E aí eu fiz o Circuladô sozinho. Fiz de uma maneira bem diferente, fiz como eu entendi, sem aquela facilidade tecnológica dele, e também a facilidade musical dele. Então, é um disco bem mais minimalista, bem mais conceitual. Foi aí que eu comecei a descobrir a minha voz como produtor, comecei a definir o meu estilo musical, que era de alguma forma uma volta, como toda boa vanguarda tem uma coisa conservadora embaixo. Então, uma volta ao violão e à percussão, uma volta a um som regional, despojado, uma coisa que eu achava que ele não estava sendo valorizado, que tinha aqueles timbres, aquela coisa de teclado, e o próprio som no espaço aural era uma coisa que já tinha uma coisa essencialista, misturado com uma coisa também de tirar a hierarquia do sonho, de aceitar barulhos, de aceitar convivência de vários tipos de sons. Eu gostava de misturar um violão com um negócio eletrônico, com um negócio aleatório, com a minha guitarra. Agora, sempre experimentando. [Sergio] Então você aprendeu a produzir na prática? Sim. Mas também aprendi muito com as boutades, com os aforismos do Brian Eno. “O estúdio é um instrumento”, por exemplo. Eu sou curioso, gosto de lidar com todo aquele aparato, com toda aquela maquinaria, toda aquela coisa musical e psicológica como tem tantas combinações. Tantas coisas que a gente pode mexer ali. E eu também trouxe uma equipe, porque eu acho que um produtor é um cara que sabe que o técnico é tão importante quanto o cantor para um disco ficar bom. Ninguém mais sabe disso ou todo mundo faz de conta que não é verdade, mas um técnico é igual a um cantor, é o cara que tira o som que você vai ouvir. Tem outra frase do Brian, que diz: “pop music is drama and noise”. É aquela primeira chegada da música
no rádio. E também, uma mais recente, sobre o que todo mundo está falando agora, de estar chateado com a qualidade da música com o MP3, que representa só um pouquinho das frequências audíveis, reproduz só uma pequena parte, não tem grave e não tem agudo. E o Brian falou: “Porra, eu ouvi música em um radinho de pilha e isso mudou a minha vida, ouvi aquele chiadozinho e mudou a minha vida”. Então não vai dizer que precisa de alta fidelidade para a pessoa, porque de fato é uma ficção sonora, essa coisa de você querer reproduzir o que já existe é bem diferente do que você querer mexer com todas as frequências que o corpo pode perceber, não é a mesma coisa. Você não pode reproduzir o que acontece ao vivo. Não vai, é ficção, é uma representação. Tem toda a questão da reprodução também da seriedade, do tempo, da memória, etc. Tem toda uma outra questão da gravação. [Afonso] Tem um ganho nisso, na perda também... Tem um ganho. Ganho também é uma palavra que quer dizer aumento de potência elétrica. O ganho, por exemplo, e aqui fica entre parênteses, a minha guitarra tem um som de guitarra que eu desenvolvi, que é o meu som de guitarra, aí eu posso dizer que eu tenho o meu som, vai se fuder, fuck you, “I’m a punk rocker”, eu tenho o meu som... [Sergio] E o que é esse som de guitarra? Eu sempre explico que eu tenho essa guitarra barata, que quando eu peguei ninguém prestava atenção. Hoje em dia é uma guitarra da moda entre os alternativos do mundo, a Danelectro, mas ela não tem muito ganho, ela não tem muito sinal, o sinal dela é fraco. Então, eu falava que o som que eu tenho é porque o ganho da guitarra é fraca, aí o amplificador ele tem que trabalhar muito para dar um som legal. Então o que você tá ouvindo é essa força a mais, esse esforço do amplificador para chegar a isso. Claro que cientificamente não é nada disso, mas é bonitinha a história.
[Sergio] É uma atitude punk de forçar o equipamento aos seus limites, não? É. Porque isso são regras, são coisa que todo mundo faz e é uma coisa que todos nós fazemos nos Estados Unidos. Não era muito o jeito de fazer as coisas aqui. Lá era o tipo: “ah, tem o equipamento novo, eu quero ver quando ele está quase quebrando. Vamos imediatamente ouvir como é que fica no vermelho, vamos ver os limites dessa porra! Não vamos colocar ele para trabalhar direitinho...”. Como aqui não tinha acesso, quando chegava algum equipamento, você tinha que fazer ele trabalhar direito, tinha que preservar... Mas lá a gente já chegava dizendo que não... [Afonso] Você é compositor, cantor, produtor, e agora artista visual. Essa multiplicidade ajudou ou atrapalhou sua carreira? Dificultou. Porque é muito difícil dizer exatamente o que eu faço, muitas pessoas podem falar: “ele não faz nada, ele não sabe tocar, como ele vai produzir esse disco?”. Eu posso contar histórias sobre pessoas que me rejeitaram no estúdio porque eu não era músico e essas coisas. É possível dizer: “o que ele é, músico ou artista?”. É sempre um desafio.
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aplique de carne por Ana Maria Bonjour
CENA 1 - APLIQUE Foi na beirinha do Rio Amazonas, envolta pela placenta de minha mãe, que decidi me mudar dali. No finzinho de uma tarde amena, quando minha mãe descascava mandioca, com os pés sendo banhados pela corrente doce daquela água viva, senti um calafrio de arrepiar os pelos que não tinha ainda. O desejo de abandonar mamãe me tomou de um jeito insaciável. Além de meus instintos aflorados, senti também um chamado forte exterior, como se um imã quisesse me chupar daquela barriga. Algo lá fora se mexia estranhamente, roçando a pele de mamãe. Novas temperaturas me envolviam. O exterior me parecia mais aconchegante e acolhedor. Um dois, três e já!! Não hesitei e parti daquela bolsa, contraindo meus musculuzinhos embrionários para escapulir dali, mergulhando na água, ávida pelo mundo lá fora.
celular, se perdeu, mas sempre que a gente se encontrava comentava sobre a Aplique. Um dia eu estava desenhando e fiz um desenho que pra mim ficou a cara da personagem, e isso me motivou a pegar essa ideia e levar até a moçada, com a possibilidade de tentar transformar o que era até então simplesmente uma ideia, uma oportunidade de criação de um personagem, num projeto. Mas ainda sem muita descrição do que isso poderia ser. Se seria teatro, peça musical, um texto, um conto. Era muito uma onda de criação dos aspectos dessa personagem, como uma brincadeira.
CENA 4 - APLIQUE
CENA 3 - ALEXANDRE VOGLER
Um dia, embrenhada na mata, coberta por folhas secas, fui tomada por um comichão sem fim. Entre gemidos e gargalhadas, brincando com minha amiga capivara, senti sua saliva adocicada tocando meus sensíveis lábios exuberantes. Um prazer indecifrável se apoderou de mim. A excitação, unida ao desejo de mudar minha vida, de migrar para a cidade grande em busca do sucesso, me levou a jorrar um jato líquido de gozo para fora de mim. Litros e mais litros desaguavam interminavelmente. O Rio Amazonas se agigantou. Transbordou seu suco denso por todos os lados, gerando a maior enchente que já se viu, carregando todos os obstáculos que haviam no caminho com sua força extrema. Mais uma vez em minha curta vida, fluí entregue aos elementos da natureza. Boiei a deriva atravessando rios e pororocas, me debatendo como as rabetas dos pescadores riberinhos. Uma semana se passou, onde tudo girou se liquidificando no turbilhão da ressaca amazônica. Acordei com as pancadas das ondas que me arremessavam nas sólidas areias de Magé, no fundo da Baía de Guanabara.
Até onde eu me lembro Aplique foi fruto de uma conversa de bar há alguns anos. Eu, Botika e Paulo Tiefenthaler, acho que saindo de um show... Fomos para um bar e a conversa acabou tomando o rumo dessa figura, desse personagem, mas muito de brincadeira. Mas eu lembro que na ocasião a gente já tinha achado a ideia boa. Tinha uma coisa de “Aplique de Carne Milkshake Mamãe”. A gente tinha gravado isso num
Aplique atravessa o público com os grandes lábios cantando a música “Maré alta”, acompanhada pela banda, que permanece sobre um palco de preguiça gigante, e após deitar-se numa pequena faixa de grama se masturba. Um facho de luz ilumina uma ilustração de grafite de
CENA 2 Era uma vez uma menina que fugiu da barriga da mãe para seguir vitórias-régias incandescentes e nadou durante dias pelo Rio Amazonas amparada e nutrida por arraias até ser deixada na beira do rio para ser criada por um casal sem filhos. Esta menina cresceu saudável, brincando como qualquer criança ribeirinha, e alimentou o sonho de ser uma estrela como as que assistia, fascinada, na TV da comunidade. Crescida, a menina tem uma revelação através de um sonho e, ao acordar, percebe que é diferente de todas as mulheres: ela possui gigantescos lábios vaginais!
CENA 5
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Alexandre Vogler na parede. Aplique ao gozar provoca um squirt, que é simbolizado por uma mangueira de alta pressão. O jorro de água derrete o desenho na parede.
CENA 6 A personagem Aplique, interpretada por Nana Carneiro da Cunha, é apresentada como escultura viva, atuando como bandleader do concerto de rock que acontece dentro da estrutura instalativa. A prótese que caracteriza a personagem é construída em látex, mede 4 metros de diâmetro e é adaptada ao corpo da atriz. Ela constitui a escultura central da instalação.
CENA 7 “Cheguei no Rio de Janeiro A fim de procurar emprego Me deram na borracharia Quase que eu virei pneu”
CENA 8 - NANA CARNEIRO DA CUNHA Aplique de Carne é um organismo, e aqui não me refiro à personagem mas à performance como um todo... É a criação de um universo fantástico, a narração de uma lenda mitológica brasileira, uma confluência de ideias e desejos se harmonizando e batendo cabeça. Uma correnteza de fluxos diversos desaguando e transbordando além das margens.
CENA 9 - APLIQUE À beira-mar, finalmente veio a calmaria. Uma música tocava em algum lugar próximo. Deitada, deslizei na superfície da água até encostar na areia. Três moças me esperavam aportar por ali. Haviam me avistado do quiosque onde cantarolavam alegres suas canções prediletas, plugadas a uma máquina de caraoquê que esbanjava um repertório com músicas do fundo do coração. As cantoras eram verdadeiros talentos.
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Logo fui levada ao quiosque, onde nos unimos para extrapolar nossos sentidos numa animada cantoria coletiva. Super identificadas, começamos ali a montar nossa banda. Após turbulento percurso para chegar até aqui, a cidade parecia me acolher. Minha voz aflorava.
CENA 10 As Apliquetes é a banda que acompanha a Aplique, formada por Botika e Amora Pêra e Flavia Belchior (da banda Chicas). Elas endeusam Aplique, e numa espécie de batismo, para formar a banda, Aplique dá uma prótese para cada uma delas.
CENA 11 - BOTIKA Aplique é um saci contemporâneo pós-Macunaíma e/ou a aquilo que nasce da união desses que cá vos falam.
CENA 12 - APLIQUE Meu corpo seguiu autônomo em direção às plantas aquáticas que sorriram ao me ver, de olhos fechados, nua e encantada na beira do rio poluído. Meus lábios se abriam como boias de carne me conduzindo até o meio do rio atraído pela força vitoriosa dos seres. Minha visão esverdeou de vez e de meus pés brotaram raízes metros abaixo até encontrarem terra firme. Meus lábios retornavam o viço e a umidade de tempos atrás. Sentia todo meu corpo dissolvendo, assumindo finalmente a forma vegetal de uma gigantesca vitória -régia incandescente.
CENA 13 Aplique de carne é uma fábula sem moral.
fotos: Flávia Mafra
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Vozes&Visões
POR UMA POLÍTICA CULTURAL BIODEGRADÁVEL
por Sergio Cohn
O mestre Roberto Piva gostava de citar a
utilizar recursos próprios para isso, usando apenas de renúncia fiscal.
frase de Edgar Morin: “neste mundo, só inte-
Se uma empresa conquista a simpatia da sociedade ao financiar, sem
ressam as ideias biodegradáveis”. Esta visão,
ônus, certo evento cultural, por que se interessaria que este evento
coerente com a do poeta que sempre quis
se torne independente ou autossuficiente, podendo abdicar de sua
que o homem “deixasse de ser artista para ser
marca nas “peças de divulgação”?
obra de arte”, tem muito a ensinar para nossa
Em paralelo a isso, a maior parte dos recursos e ações de fomento
política cultural, que, como toda política de
à cultura está destinada à produção de eventos e produtos, e não na
afirmação, só é interessante enquanto possui
difusão ou constituição de público. Muito se produz, pouco se conso-
como norte tornar-se desnecessária. Uma po-
me. Como os produtos já saem pagos e lucrativos por princípio, não é
lítica cultural biodegradável, assim, tem como
fundamental a sua circulação. E as peças de divulgação, por mais que
natureza fortalecer a relação entre os artistas e
não funcionem efetivamente na constituição de público, satisfazem o
produtores culturais e a sociedade de tal for-
patrocinador ao ostentarem as suas marcas para a sociedade. Ninguém
ma que estes possam conquistar a indepen-
precisa ver o produto cultural para saber, se viu o anúncio na TV ou no
dência de seus eventos e processos.
ônibus, que tal empresa o patrocinou. Resultado disso é que, em mais
Para tanto, é necessário uma série de
de vinte anos de lei de incentivo federal, o que temos observado em
ações, que vão muito além do estímulo à pro-
muitas áreas é a queda do índice de público, o que obriga os produto-
dução cultural. É importante o fomento de
res e artistas a dependerem ainda mais dos recursos financiados direta
público, a criação de um circuito amplo de
ou indiretamente pelo Estado.
circulação de processos culturais, o estímulo
A questão do papel central do Estado na cultura é, em si, muito
à reflexão crítica sobre a arte, que permita a
complicada. Se, na primeira década de incentivo ela foi marcada por
multiplicidade das experiências estéticas e
uma “política de balcão”, que privilegiava artistas já consagrados e com
criativas, o respeito ao tempo de criação e re-
acesso às máquinas de poder, nos últimos anos houve a tentativa da
cepção dos processos culturais e a criação de
“democratização” (termo este bastante complexo) desse acesso ao in-
um ambiente colaborativo nas artes.
centivo cultural através de políticas de edital. Os argumentos a favor
Infelizmente, o que tem ocorrido no Brasil é exatamente o contrário. A estrutura das
são vários, especialmente de federalizar o recurso público à cultura. Mas os efeitos colaterais também podem ser terríveis.
políticas de fomento à cultura, desde o surgi-
Em primeiro lugar, os editais transformam os trabalhadores da
mento da Lei Rouanet no início da década de
cultura em competidores entre si. O ambiente colaborativo, a troca
1990, valoriza a perpetuação de suas ações,
de ideias, o estímulo ao intercâmbio de processos é desestimulado
contra a independência dos produtores e
quando os indivíduos sabem que precisarão disputar recursos escas-
eventos. Motivos para isso são vários, mas
sos através de seus projetos, e que não podem qualificar o “adversário”.
principalmente o fato do incentivo à cultura
No limite, artistas e produtores agem como inimigos, podendo sabo-
ter se tornado uma forma de propaganda ins-
tar processos alheios, como ocorreu recentemente em editais de au-
titucional para empresas públicas e privadas,
diovisual de São Paulo, onde candidatos entraram com recurso contra
que muitas vezes não precisam nem sequer
um dos projetos vencedores, alegando que havia vencido mais de um
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edital (embora nenhum dos editais exigisse exclusividade). Detalhe: os
bora sua produção atual. Não há o diálogo com
candidatos que entraram com recurso eram amigos pessoais e haviam
o público, para a fruição da obra e maturação
sido parceiros de projetos anteriores do candidato acusado. Esse tipo
da linguagem. E não há o tempo do ócio cria-
de atitude, que tem se repetido, é uma demonstração do tipo de men-
tivo, tão importante para toda produção cultu-
talidade competitiva que esse tipo de ferramenta de escolha de proje-
ral. É necessário sempre estar produzindo, para
tos pode causar no ambiente cultural.
a subsistência econômica. Ou seja, ao invés de
Em segundo lugar, uma questão de grande relevância. Uma das de-
pensar a cultura em suas particularidades, es-
fesas dos editais é que eles permitem que artistas desconhecidos dos
tamos radicalmente colocando ela dentro das
O mestre Roberto Piva gostava de citar a frase de Edgar Morin: “neste mundo, só interessam as ideias biodegradáveis”. Esta visão tem muito a ensinar para nossa política cultural, que, como toda política de afirmação, só é interessante enquanto possui como norte tornar-se desnecessária. grandes centros cadastrem seus projetos, e que esses artistas estão fora
regras do nosso tempo: competitividade, pro-
dos mapas oficiais das artes. Muito bem, mas essa defesa esconde uma
dutividade, eficiência.
das grandes deficiências das nossas políticas de cultura: a total despre-
Curiosamente, sem ao menos que isso leve
ocupação com estimular o mapeamento, a apresentação e a reflexão
à constituição de uma economia da cultura
sobre a cultura brasileira contemporânea. A crítica cultural não possui
saudável, um mercado da cultura, um circuito
espaço dentro dos atuais moldes de fomento à cultura, o que faz com
cultural. O que ao menos faria sentido, nesses
que não haja o diálogo, a reflexão, o debate e a valoração do que está se
tempos de “crescimento sustentável”.
produzindo, de forma ampla e qualificada. O Estado se exime comple-
Pensar, nesse sentido, numa política cul-
tamente de criar ferramentas que possibilitem a visibilidade ampla da
tural biodegradável se torna urgente, para a
cultura brasileira contemporânea e, em consequência, diz que é obri-
constituição de um ambiente cultural mais
gação da sociedade, através de seus produtores, de se fazer visível. É
saudável, colaborativo e amigável. Possibi-
uma fórmula no mínimo discutível.
lidades para isso existem. Uma delas seria a
Em terceiro lugar, os editais não respeitam o tempo da cultura. Há
substituição do fomento de eventos e obras
uma burocratização dos processos culturais em curso, com a obriga-
pelo fomento de processos, através de bolsas
ção de adequação da cultura brasileira para prazos, naturezas, orça-
de incentivo para produtores ou, ainda me-
mentos e moldes pré-fixados por profissionais (os técnicos que elabo-
lhor, coletivos de produção. Sem a obrigação
ram os editais) que na maioria das vezes não se preocuparam em olhar
de resultados predeterminados. Existem pre-
as complexidades dos processos que estão trabalhando. É raro que um
cedentes interessantes para isso. Outra, é o es-
edital possibilite a hibridização de processos culturais, ou vise a sua
tímulo à criação de circuitos de difusão cultu-
liberdade ou autossustentabilidade após a conclusão do seu prazo de
ral, que permitam a constituição de públicos
realização. Assim, os artistas e produtores de cultura muitas vezes se
amplos e diversificados. Não faltam possibi-
veem obrigados a pensar a sua obra em resposta às obrigações formais
lidades. O fundamental é a ética por trás, de
e burocráticas do edital, e não artísticas ou sociais.
fortalecimento da cultura na sociedade, atra-
Em quarto lugar, não havendo um público que permita o sustento
vés de políticas culturais eficientes e voltadas
da obra a partir da sua circulação, o artista ou produtor já precisa estar
para a independência e a liberdade dos seus
trabalhando em captação ou inscrição em outros editais enquanto ela-
produtores e da criação artística.
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Rafael Campos Rocha