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Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Imagem da capa Jean-Baptiste Debret Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 2 | setembro de 2013 ISSN: 2318-1192

Caro leitor, seguimos com a nossa NAU por mares cada vez mais agitados. Neste segundo número de NAU, trazemos um panorama do diálogo entre os ameríndios e a cultura contemporânea, em suas diversas manifestações, entre elas o cinema, as artes visuais, a literatura e o teatro. Sabemos ser ainda um primeiro olhar sobre um tema tão amplo e ainda pouco divulgado, mas acreditamos que pode ser um interessante começo de diálogo. O entrevistado é Guilherme Vaz. Compositor de música contemporânea, artista visual, Guilherme Vaz participou de alguns dos momentos mais importantes da cultura. O poster central é um poema de André Vallias, “Totem”, trabalhando com as etnias ameríndias no Brasil. A revista traz ainda um depoimento de Alfeu França sobre o documentário que está realizando baseado na tentativa do artista visual Flávio de Carvalho de filmar um longa-metragem sobre “A deusa branca” na Amazônia, no fim da década de 1950. Por fim, uma coluna de Frederico Coelho e a chance de continuarmos nos deliciando com Caronte, a barqueira do amor, do grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!

Sumário Os ameríndios na cultura brasileira atual Poesia | André Vallias Pôster Entrevista | Guilherme Vaz A deusa branca Vozes&Visões | Constelações entre séculos Caronte | por Rafael Campos Rocha

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os amerĂ­ndios na cultura brasileira atual


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Nos últimos anos, os povos da floresta têm reconquistado a sua importância na cultura brasileira, em suas diversas manifestações. Não apenas como referência e tema em diversas obras, mas também em trabalhos realizados pelos próprios povos indígenas. A importância disso não pode ser medida: como registro e afirmação, e também como potência de transformação da nossa própria cultura, tão domesticada no urbano cotidiano. Já lembrava Ezra Pound que todo período de grande invenção foi precedido de um tempo de trocas culturais, ou seja, de contato com o alheio que permite que a cultura respire e se reinvente.

muito do que estava ali, embora traduzido de uma forma bastante tradicional de poesia da época, tinha muito mais a ver com os cronistas dos tupinambás. O Gonçalves Dias estava bebendo nas fontes dos cronistas, com todos os limites que estas fontes têm. A leitura que o Florestan Fernandes faz dos cronistas na Função social da guerra na sociedade tupinambá, você poderia dizer que ele se baseou no Gonçalves Dias. São 400 páginas do Florestan Fernandes que demonstram que o

literatura Para pensar a importância desta retomada, é preciso olhar o quanto a cultura ameríndia teve uma absorção errática na nossa cultura. A literatura brasileira só começaria a tratar com mais profundidade essa questão através de um francês, Ferdinand Denis. Depois de uma estada de três anos, entre 1816-19, e influenciado pelo nacionalismo que ganhava força no romantismo europeu, Denis falou pela primeira vez de uma poesia indígena, “essa poesia primitiva, jamais levada à escrita, e que nem por isso oferece menos belezas de primeira ordem”. Influenciados por ele, Gonçalves Magalhães, o Visconde de Uruguai, criador do manifesto fundante de nosso romantismo (publicado na revista Nitheroy em 1836) e Joaquim Norberto, em 1841, tentaram constituir a poesia indígena na nossa história literária. Mas em vão. Primeiro, por ter sido um interesse genérico, mais ideológico do que realmente textual. Segundo, porque não havia, então, instrumental nem documentos que permitissem levar a cabo o trabalho. Quem primeiro faria um trabalho de fôlego sobre isso seria o poeta Gonçalves Dias. Como lembra Lucia Sá, a autora do importante livro Literaturas da floresta (EdUerj, 2012), “Há uma visão errada da crítica tradicional de que o Gonçalves Dias estava trabalhando o medievalismo, quando na verdade

Ferdinand Denis, autor do Résumé de l’histoire littéraire du Brésil, de 1826.

estudo que o Gonçalves Dias fez dos cronistas foi bastante cuidadoso”. Os documentos que possibilitariam uma absorção mais forte da cultura ameríndia começariam a surgir de forma mais sistematizada no final do século XIX e começo do século XX, com os antropólogos e pioneiros que coletaram cantos e mitos amazônicos. Theodor Koch-Grünberg, cujo “Mitos e lendas dos índios Taulipangue e Arakuná”, de 1916, conti-

nha o mito de Makunaíma que iria influenciar Mário de Andrade, e o Conde Ermanno Stradelli registrando o mito do Jurupari são os mais importantes. Pouco depois, as vanguardas artísticas do começo do século XX, que permitiriam a quebra das fronteiras bem-delineadas das artes e a construção de novos conceitos, trariam o instrumental necessário para que esse material fosse trabalhado de forma mais livre. Assim, o modernismo brasileiro iria encontrar nos cantos e nas cosmogonias ameríndias matéria-prima para muito do que criou de mais revolucionário. Não apenas o já citado Macunaíma de Mário, como a Antropofagia de Oswald de Andrade, o Cobra Norato de Raul Bopp e alguns poemas de Cassiano Ricardo. Entretanto, este primeiro momento do modernismo, de mergulho no Brasil profundo, se encerrou com a década de 1920, e foi substituído por outro, que visava acompanhar a urbanização e modernização do Brasil. Restou, para a literatura brasileira, um ou outro relâmpago de influência ameríndia, como o belo “Meu tio, o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, Maira de Darcy Ribeiro, Kuarup, de Antonio Callado, ou a obra de escritores como Gramiro de Mattos e Roberto Piva. Este processo começaria a se reverter em 1993, com a publicação do clássico Textos e tribos, de Antonio Risério. O livro, uma reunião de ensaios sobre poesia ameríndia e afrobrasileira, trazia a tradução de um canto araweté coletado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, com uma introdução de Risério. Nesta tradução, assim como nos ensaios do livro, Risério defendia a união entre o saber antropológico e o conhecimento poético: “Costumo exemplificar assim: ao ouvir o nome de uma ave num canto indígena, o antropólogo vai em busca do pássaro, ao passo que o poeta se concentra na plumagem do texto. É algo caricatural, mas não muito. Regra geral, salvo raras exceções, nossos antropólogos não conhecem poesia e não estão interessados no assunto. Do mesmo modo, nossos poetas não costumam se dar às reflexões antropológicas, o que, num país como o Brasil, é lamentável. Mas acho que


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é possível tentar reduzir a distância entre esses extremos, trabalhando criativamente numa encruzilhada poético-antropológica”. O desejo de Risério iria se concretizar nas décadas seguintes, com o surgimento de uma série de livros de traduções de cantos ameríndios, alguns acompanhados de amplos ensaios. É o caso de Kosmofonia mbya guarani, de Douglas Diegues e Guillermo Sequera (2006) e Roça Barroca, de Josely Vianna Baptista, ambos tratando dos mbya guarani (Cosac Naify, 2011), Oniska – poética do xamanismo da Amazônia (Perspectiva, 2011), e Quando a Terra deixou de falar (34, 2013) de Pedro Cesarino, tratando dos marubos, Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex e Cantos e histórias do gavião-espírito, de Rosângela de Tugny, tratando dos maxakalis (Azougue, 2009), além da edição crítica de Makunaíma e Jurupari organizada por Sérgio Medeiros (Perspectiva, 2008) e da adaptação do mito tupinambá realizada por Alberto Mussa em Meu destino é ser onça (Record, 2010). Estes livros enfrentam, de uma maneira nova, o desafio de traduzir cantos e mitos que na sua origem não trabalhavam apenas com a palavra, mas com música, performance e elementos visuais. Como coloca Pedro Cesarino, “é claro que não dá para enquadrar esses elementos nas nossas divisões (verso e prosa) e suas decorrências. Mas a própria literatura moderna já implodiu essas divisões e tem um arsenal de recursos para pensar aproximações possíveis. Seria necessário também especificar mais os casos, pois as poéticas indígenas são bastante diferentes entre si. Há aquelas que parecem jogos de ecos, que mal cabem no papel e na letra, que não parecem pertencer a esse jogo da mídia escrita, e há outras que são condensadas, profundamente imagéticas tais como os haicais – essas cabem melhor nos versos. Ou outras, ainda, que pressupõem uma multiplicidade de enunciadores e de posições (mortos, espíritos, vivos, xamãs, todos participantes de um mesmo evento) e que demandam uma espacialidade distinta tanto do texto corrido quanto do verso”.

A estranheza desses textos, somada ao tipo de livro em que foram inseridos (volumes amplos, cercados de grandes ensaios), faz com que ainda permaneçam difundidos entre especialistas, longe dos leitores de poesia e literatura em geral. Mas iniciativas, como a inclusão de um volume de cantos ameríndios de marubos, bororos, arawetés, guaranis e maxakalis na caixa de antologias de poesia brasileira Poesia.br, editada pela Azougue Editorial em 2012, ao lado de auto-

diodioi indo onde tem água indo onde tem água virando borboleta para voar virando borboleta para voar diadiai indo onde tem água indo onde tem água virando borboleta para voar virando borboleta para voar diodioi ô ô ô ô ô ô ô ô virando borboleta para voar virando borboleta para voar ôôôu

Cantos maxakalis traduzidos por Rosângela de Tugny.

res clássicos, como Gregório de Matos, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos, Ferreira Gullar, Paulo Leminski, e contemporâneos, mostram que iniciativas como essa permitem a inserção da poesia ameríndia no cânone da poesia brasileira. E é impossível negar a beleza de poemas como esse canto maxakali, “Borboleta”, traduzido por Rosângela de Tugny:

Junto com o trabalho de tradução de cantos ameríndios, muitas vezes feito em parceria com os próprios índios, floresceu a partir da década de 2000 o trabalho dos escritores indígenas, como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Kaká Verá Jucupé, Graça Graúna, Marcos Terena e Kanatyo Pataxó. Esses escritores ganharam mais visibilidade a partir da lei que torna obrigatório o ensino da cultura afrobrasileira e indígena nas escolas, promulgada em 2008. Por isso, no mercado editorial brasileiro, a maior parte das novas vozes indígenas encontrou acolhida no segmento de livros para crianças e jovens, embora muitas vezes tratasse de temáticas adultas (e algumas vezes pesada, como a questão da terra e da violência contra os povos indígenas). Em 2003, foi realizado o I Encontro de Artistas e Escritores Indígenas, e desde então esse evento é realizado anualmente, se tornando um importante espaço de reflexão e luta para um espaço crítico da sua literatura. Os escritores indígenas constituíram vozes próprias, de grande qualidade, e estão conquistando com o tempo o reconhecimento dos leitores e da crítica.


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Andrea Tonacci filmando com Carapiru.

CINEMA Se a questão literária já é complexa, é ainda mais as outras áreas culturais, como o cinema. No audiovisual, podemos falar historicamente do trabalho documental de pioneiros como o Major Reis, o cineasta da Comissão Rondon, que retrata os índios em “Ao redor do Brasil – aspectos do interior e das fronteiras”, em 1932. Ou de Silvino Santos, que filmou a Amazônia na primeira metade do século XX. Mas é a partir do trabalho intensivo de cineastas como Andrea Tonacci e Vincent Carelli, a partir dos anos 1970, que se criou uma filmografia consistente sobre a questão indígena no Brasil. Os dois, por sinal, são autores de filmes emblemáticos sobre o tema lançados nos últimos anos. Tonacci, de “Serras da Desordem”, e Carelli de “Corumbiara”. Estes filmes, junto com “500 almas”, de Joel Pizzini, são alguns dos filmes com temas indígenas que conquistaram ampla repercussão em festivais nacionais e internacionais nos últimos anos. “Xingu”, o filme de Cao Hamburger sobre os irmãos Villas Boas e a criação do Parque

Nacional do Xingu, acaba centrando muito mais atenção nos personagens principais do filme, colocando os índios como quase coadjuvantes e retratando uma floresta praticamente desabitada de animais selvagens. Isso levou um grupo de cineastas indígenas a escrever uma crítica ao filme em que ressaltava os seus méritos, mas dizia que errava no título: deveria se chamar “Villas Boas”. Andrea Tonacci, em entrevista para Daniel Caetano, conta como foi a sua aproximação da questão indígena: “O que me levou a fazer os filmes foi a busca de conhecimento, o desejo de um humanismo ainda possível, a defesa do livre ser, meu, de qualquer um, dos índios... Bem, a gente fala hoje dos índios porque eles sobreviveram, mas na verdade qualquer encontro como os retratados por esses filmes, entre culturas que nunca se viram, nunca se tocaram, tem um processo de reconhecimento – ou desconhecimento – do outro, de mútua e imediata interferência de um no outro. Esse me parece ser um movimento básico, quase embrionário, espasmódico, celular, da humanidade, e não

apenas uma característica da nossa, vamos generalizar, expansão cultural tecnológica em relação aos índios. Um índio pode ter a mesma em relação a outro índio, como também pode ter em relação a nós. Quando existe um contato que não é na marra, que não é pela força como normalmente tende a ser, esse contato eventualmente também pode ser um desejo do outro, e não só nosso em encontrá-lo. Não é o que ocorre com os índios isolados, a curiosidade deles é uma coisa, a criação de uma dependência, o contato, é outra. Esse ser outro que é o índio brasileiro, esse outro que fica isolado numa floresta a quatro mil quilômetros daqui, mas que não nos é diferente no que concerne à devastação da floresta interior. O filme é uma forma de ir até lá, reconhecer-se.” “Serras da Desordem”, lançado em 2006, é uma ficção baseada em fatos reais da vida de Carapiru, um índio Awa-Guajá que após sobreviver a um massacre foge sozinho pela floresta, até fazer contato com um grupo de pescadores, dez anos depois e dois mil quilômetros de distância do seu lugar de origem. O indigenista Sidney Possuelo, que também colabora no roteiro do filme, levou Carapiru para Brasília na época, o que o colocou no meio de uma polêmica entre antropólogos e linguistas sobre a sua origem. No filme, os próprios protagonistas da história são convidados para revivê-la e encená-la, o que criou um experimento radical de linguagem, nublando a fronteira entre realidade e representação. “Corumbiara”, de Vincent Carelli, também é um filme que tem início com um massacre de índios isolados, este ocorrido em Rondônia, em 1985. O filme é uma prestação de contas de Carelli com a história, como ele mesmo declara: “‘Corumbiara’ é um filme de guerrilha. O cinema é a única forma de superar a impotência de ver um crime acontecendo e ninguém tomando conhecimento da coisa. A imagem foi o grande recurso, a única maneira possível de repassar um crime, um genocídio, que nunca foi investigado. Eu trago ali provas inequívocas da existência do crime. Pode não


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Cena de “Corumbiara”, de Vincent Carelli

ter servido de nada, no sentido concreto, prático, já que a Procuradoria da República não abriu o caso para investigação, mas de qualquer jeito fica dito que os índios foram atacados, e causou repercussão. Eu fiquei muito satisfeito com a recepção do filme, e acredito que, se não moveu o governo, ele fez muita gente pensar sobre a dívida histórica que o país tem com os índios”. “500 almas”, de Joel Pizzini, segue um caminho contrário dos filmes anteriores: ao invés de ter como ponto de partida a destrui-

ção, tem como tema a reconstrução de uma etnia, a guató, do Mato Grosso do Sul, considerada extinta na década de 1960, até que foi redescoberta uma população remanescente, dispersa e afastada da cultura original. Três mulheres foram fundamentais nesse processo: uma missionária italiana, uma linguista pernambucana e uma remanescente dos guatós, que aceitou ajudar a reconstruir a língua. A história é contada de forma poética, intercalada por leituras de Manoel de Barros, intervenções de personagens do Paulo José e

a fala dos entrevistados, criando um filme de rara beleza. Mas, assim como no caso da literatura, os índios não foram apenas objetos ou parceiros em realizações audiovisuais. Pelo contrário. Com projetos como o Vídeo nas Aldeias, conseguiram projeção internacional com obras de suas autorias. O Vídeo nas Aldeias surgiu em 1986, e conquistou o respeito de nomes como do antropólogo francês Claude LéviStrauss, que declarou sobre um de seus filmes: “‘O amendoim da cutia’ é de longe o me-


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lhor filme que eu tenha visto sobre os índios da América do Sul... Temos constantemente a sensação de sermos autorizados a ver a vida indígena por dentro. A cura xamânica é um momento antológico”. Ver por dentro é uma conquista do projeto, coordenado por Vincent Carelli. A proposta é possibilitar que os índios filmem, através da disponibilização de equipamentos, utilizando uma linguagem própria, sem que se imponha um “ensinamento” prévio que os aprisione em técnicas já pré-estabelecidas. Relata Carelli: “O processo de filmagem é de aprendizagem coletiva dos jovens cineastas. Eles filmam, assistem juntos, e de noite tem

cinema na aldeia. Então a sala de edição e a sala de oficina são um espaço aberto. Toda a aldeia, conforme o seu ritmo, vai passando por ali, vendo as imagens que estão sendo produzidas. A postura dos índios é de apropriação total. Principalmente porque a gente parte de uma experiência de todo negativa que eles tiveram: a frustração com o audiovisual. As pessoas vão fazer seus projetos lá e nunca retornam. Quer dizer, é uma expropriação. A intenção é a melhor possível, mas, de fato, quando você vive na aldeia e vê as pessoas vindo e indo embora, é uma coisa chocante. E quando assistem à matéria na televisão, ficam frustrados, porque a edição não

corresponde com o que eles imaginavam. Então, no nosso processo, eles se sentem integrados e se empenham totalmente”. Assim como no caso da literatura, a experiência do Vídeo nas Aldeias permite não apenas que os índios expressem suas realidades, como que experimentem livremente com linguagens, de forma a enriquecer as possibilidades audiovisuais. Os processos continuados de criação desses cineastas indígenas têm permitido obras de grande valor cultural, como o filme “As hiper mulheres”, de Carlos Fausto, Leo Sette e Takumã Kuikuro, que recebeu o Prêmio Especial do Juri do Festival de Gramado de 2011.


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TEATRO A Cia. Livre de Teatro, da diretora Cibele Forjaz, ganhou o Prêmio Shell em 2008 com a peça “Vemvai – O caminho dos mortos”, uma adaptação de Newton Moreno, com consultoria de Pedro Cesarino, de mitos e cantos de morte dos povos ameríndios. No ano seguinte, Cesarino assinou a dramaturgia de “Raptada pelo raio”, uma adaptação de um canto marubo, também para a Cia. Livre. Os dois espetáculos foram criados a partir de oficinas do antropólogo e poeta Pedro Cesarino, que coletou e traduziu os mitos

em suas viagens junto aos marubos. Nessas oficinas, a Cia. Livre realizou o que chamou de uma “deglutição cênica”, o que permitiu que trabalhassem de forma consistente com temáticas e abordagens complexas. Nas palavras de Cibele Forjaz: “Mitos, textos teóricos e conceitos complexos como polifonia da pessoa humana e multiperspectivismo eram relidos do ponto de vista da teatralidade e viravam cenas-estudos. Ainda não era exatamente uma construção dramatúrgica, mas uma forma de compreensão através do teatro, de forma a criar uma linguagem tradutiva entre culturas diversas. A teatralidade

foi o ponto de vista escolhido, a língua que falamos e para a qual traduzimos todos os mitos e textos teóricos que lemos durante o estudo e pesquisa”. O dramaturgo amazonense Francisco Carlos também realizou uma série de experimentações com cultura ameríndias. Em 2012, realizou uma trilogia, “Jaguar cibernético”, com as peças “Banquete Tupinambá”, “Aborígene em Metrópolis” e “Xamanismo the Connection”. As peças faziam parte do ciclo Pensamento Selvagem, de dramaturgias nas quais o autor pesquisa temas ameríndios, xamanismo e o que ele denomina de o “devir-jaguar”.


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MÚSICA Mesmo como trabalhos de exceção, a inserção da cultura ameríndia abrangeu diferentes áreas da música brasileira. Podemos citar três exemplos bastante distintos: a música erudita contemporânea, com Guilherme Vaz, a MPB, com Marlui Miranda, e o rock, com o grupo Sepultura. Marlui Miranda é quem realiza há mais tempo e de forma mais sistemática a pesquisa com as músicas e sonoridades ameríndias. A sua aproximação com a música indígena começou ainda na década de 1970, e resultou em uma série de discos com excelente repercussão crítica, como “Ihu – Todos os sons”, de 1996. Os discos, reunindo músicas coletadas em viagens por tribos de diferentes regiões do país, criam um panorama amplo das sonoridades de diversas etnias indígenas, numa escolha manifesta da cantora, que preferiu isso a realizar um trabalho mais específico com uma ou outra etnia – como faria um antropólogo ou etnomusicólogo. A abrangência sonora vem exatamente da preocupação com o desconhecimento do público com relação à riqueza sonora dos ameríndios.

Guilherme Vaz também foi para campo pesquisar sonoridades e instrumentos ameríndios para realizar o seu “Música em Manaus”. Compositor erudito que estudou com Rogério Duprat na Universidade de Brasília, nos anos 1960, Vaz une nessa música elementos de música contemporânea com instrumentos ameríndios. Ele inclusive localizou, nas suas pesquisas entre etnias amazônicas, um instrumento de arco, coisa que era considerada não existente entre os povos ameríndios. “Música em Manaus”, constituído de onze partes, foi apresentado no Teatro Amazonas, em 2006. Os ensaios foram registrados em vídeo pelo cineasta Sérgio Bernardes Filho, constituindo um belo documento desse encontro. O caso do Sepultura é diferente. Em 1993, dentro do seu disco “Chaos A.D.”, o grupo incluiu a música “Kaiowa”. No encarte do disco, afirmou que “esta canção é inspirada por uma tribo indígena brasileira chamada kaiowa, que vive na floresta tropical. Eles cometeram suicídio em massa como um protesto contra o governo, que estava a tentar tirar a sua terra santa”. Uma versão dessa música, “Kaiowas (Tribal Jam)”, foi gravada em Mato Grosso, com a participação dos índios xavantes. A música, que

trazia uma mistura de ritmos brasileiros, teve grande repercussão mundial, se tornando uma das mais conhecidas do grupo. Embora três projetos de natureza tão distinta mostrem a vitalidade das matrizes sonoras ameríndias, ainda são poucas as iniciativas de trabalho sobre elas, e também de divulgação da música ameríndia em si. A etnomusicologia tem ganhado espaço nas universidades, mas ainda em estudos muito específicos e restritos a especialistas.

ARTES VISUAIS Mário Pedrosa, quando voltou ao Brasil em 1978, após um longo exílio por conta da Ditadura Militar pós-Golpe de 1964, concebeu uma exposição de arte indígena no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em uma entrevista da época, para Sônia Streva, ele falou um pouco sobre o projeto: “A ideia de uma exposição de arte indígena foi consequência do meu longo exílio – interrompido pela vontade de voltar –, quando ocorreu o meu encantamento pela Amazônia. Foi súbito e intenso. Nasceu no Peru, onde me encontrava em visita à minha filha. A escolha de local da exposição – que recaiu naturalmente sobre o Brasil – foi feita por não ser ele o país linearmente simples que se pensava, mas sim profundamente complexo, a partir do desconjuntamento desenvolvimentista das suas regiões. Além disso, a ideia da exposição surgiu da necessidade de defesa dos índios, os primeiros a serem condenados. Quero mostrar que a comunidade indígena, ainda existente apesar do esfacelamento, é portadora de uma lição extraordinária para todos nós e sobretudo para a juventude brasileira”. Pedrosa expôs, então, a sua concepção sobre a arte indígena: “O indígena é descompromissado com sistemas econômicos e políticos, é mais livre e em tudo o que faz – artefatos de trabalho como ralador de mandioca, cestas e zunidor, entre outras coisas – existe um senso danado, extraordinário, de proporção e finalidade, além de muito amor. Todos os seus ins-


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trumentos de trabalho são belos em si e podem ser tomados como uma obra de arte, apesar de o índio fazê-los com a natural segurança de quem está trabalhando para o fim coletivo da tribo e não somente para o seu prazer. Neste sentido, ele continua a velha tradição do artesanato, o artesanato pré-capitalista, que Marx achou ser a origem de toda a grande arte”. Para a exposição, Mário Pedrosa selecionou mais de mil peças, entre material arqueológico – peças de pedra e quartzo milenares – até a produção contemporânea: “A base principal de nossa mostra é o extraordinário acervo do Museu Nacional, em São Cristóvão, completado com obras dos seguintes museus: do Índio, da Universidade de São Paulo, do Ipiranga; Goeldi, no Pará, da Dinamarca, da Alemanha, da Basileia, da Áustria e também por peças que daqui se foram, do século XVI em diante, e estão no Musée de l’Homme, em Paris, como um raro manto tupinambá. Haverá projeções de filmes sobre a produção de mandioca e do curare, entre outros produtos, para mostrar o trabalho, a quase indústria indígena. A música participará também, com gravações antigas. Outro de nossos projetos é o de construir uma maloca, para que se veja a arquitetura indígena, que nasce da terra, usa seus meios e tem ensinamentos extraordinários de circulação de ar. Haverá também uma sala de máscaras, uma grande galeria com representações do modo como vivem os índios, com os paramentos que os envolvem – a cultura do corpo. Essa cultura é usada hoje, no plano das artes moderníssimas, e é intensamente séria entre eles. Isto quero mostrar, esta arte corpórea de que

já falei num dos meus ensaios publicados – o ‘Discurso aos tupiniquins ou nambás’.” E conclui, fazendo uma defesa da arte indígena e da sua importância frente a crise cultura que estamos vivendo: “A crise é profunda e uma das razões pelas quais ‘me virei’ para fazer uma demonstração da arte dos nossos povos, ditos mais atrasados, é mostrar ao brasileiro que o fenômeno cultural da criatividade artística não é um fenômeno de progresso, é de experiência, vivência, homogeneidade e defesa das virtudes das comunidades ainda vivas. Não que eu ache que o brasileiro depois vá se meter a fazer arte indígena. Quero mostrar que arte vem desta profundidade, deste nível, e não de marchands, bienais ou de outras combinações que se resumem, no fundo, em valorização de mercado. Espero que o nosso esforço seja coroado de êxito e ensine aos brasileiros que o progresso não está apenas em rodar num automóvel ou voar num avião. O verdadeiro progresso está na integridade, na justeza com que o homem do seu tempo vive naturalmente daquilo que a natureza, a vivência, a convivência lhe trazem, sem os grandes avanços tecnológicos”. A grande mostra de Mário Pedrosa acabou não se realizando na época, embora tenha inspirado a sessão de arte indígena da Mostra do Redescobrimento, em 2000, na Fundação Bienal, em São Paulo. E 35 anos depois, em junho de 2013, o Centro de Cultura da UFMG abriu a mostra MIRA! – Artes visuais contemporâneas de povos indígenas, que reuniu pela primeira vez no país pinturas,

desenhos, esculturas, fotografias, vídeos e cerâmicas de artistas indígenas na América Latina (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru). A mostra é uma contribuição para a divulgação e o debate sobre as artes dos povos ameríndios nesses países. Se em outros países, como Nova Zelândia, EUA e México, artistas de povos tradicionais já conseguiram se estabelecer dentro do circuito de arte, no Brasil isso ainda não ocorreu. Segundo Maria Inês de Almeida, atual diretora do Centro Cultural da UFMG e uma das mais ativas pesquisadoras de literatura indígena, que atuou como coordenadora da MIRA!, “No Brasil os artistas indígenas estão longe de conquistar espaço no mercado de arte. Espero que a MIRA! venha a contribuir, mesmo que minimamente, para que o mercado se transforme, ou se abra, no sentido de dar a esses artistas condições de sobreviverem de sua arte. Acho que é isto que eles desejam, mesmo que não seja prioridade. Dos artistas do Brasil participantes da MIRA!, acho que o único que está inserido no mercado de arte e vive da venda de seus quadros é o Jaider Esbell (etnia Macuxi)”. Ao trazer artistas de diferentes etnias, MIRA! abre a possibilidade para o público perceber a diversidade entre as obras indígenas. Como diz Maria Inês, “Os artistas da região amazônica demonstram, em seus depoimentos e em suas obras, o quanto aprendem com as plantas de poder, o cipó e o tabaco, principalmente, e com alguns seres especialmente sábios, como a jiboia e a onça. Os da região andina, em geral, têm como mestres a coca, o condor, o tigre (outro nome pro jaguar). Gran-


Trabalho de artes visuais na exposição MIRA!, em Belo Horizonte, 2013.

de parte das obras reunidas na MIRA! são fruto das mirações propiciadas pela relação com esses seres. Mirar é um ato de conhecimento. Esses saberes dos povos da floresta e dos Andes estão nos ensinando, com sua chegada em nossos espaços escolares, que não existe uma ciência apenas a ser considerada e aprendida. A medicina, a literatura, a arte, a filosofia, a música, a astronomia, a geografia, a biologia, etc. etc., tudo poderia ser mais consistente em nossa vida se fosse pensado de forma transdisciplinar. Em comum, todos têm também histórias de violência para contar através de suas obras”. MIRA! é uma importante iniciativa para o fortalecimento do diálogo cultural, e também de atenção à riqueza e diversidade da produção de artes visuais dos povos indígenas. São 75 artistas de 30 etnias diferentes. A relevância de iniciativas como essa pode ser vista na conclusão de Maria Inês: “Em vários momentos, as artes no Brasil foram ligadas aos índios. Nosso cânone literário é o primeiro a reconhecer o quanto o indianismo faz parte de nossa história. Por outro lado, podemos dizer que o modernismo foi quando os artistas brasileiros ousaram assumir a perspectiva indígena (o ‘Abaporu’, da Tarsila do Amaral é o exemplo mais famoso). Alguns poetas surrealistas, como Roberto Piva, tentaram escrever ‘à moda indígena’. Talvez toda a arte moderna e contemporânea seja extremamente devedora dos povos indígenas. Picasso, Artaud, Gauguin, são exemplos iniciais de quem bebeu nas fontes dos ‘primitivos’... Penso que as artes ameríndias são fortes no sentido de mostrarem ao público que arte é arte total. Arte e vida são a mesma coisa. Sempre que penso nas artes contemporâneas, lembro que ‘aqui e agora’ – a performance, o ato, o acontecimento – é o termo que as define. Para os indígenas, assim como a poesia para Mallarmé, a arte é gesto, roteiro, corp’a’screver, como diria a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol. As artes ameríndias, além de performáticas, ou até por isso mesmo, são xamânicas, represen-

tam conscientemente as passagens entre os mundos. Esta consciência é um avanço com relação à postura de muitos artistas experimentais contemporâneos, que ficam presos no conceito, sem assumirem ou demonstrarem suas relações com as substâncias psicoativas, por exemplo, numa sociedade que as aborda como ‘drogas’. As plantas de poder, as experiências místicas ou religiosas, enfim, tudo o que produz xamanismo e é jogado para debaixo do tapete pela sociedade restritiva e moralista... Talvez por aí vai a contribuição das artes ameríndias”.

CONCLUSÃO Lucia Sá é contundente quando afirma: “Existe uma questão bastante espinhosa que permeia o tema indígena, que é a questão da terra. No momento em que você começa a respeitar o índio, a respeitar a cultura indígena, começa a dar valor para a cultura indígena de uma forma geral, você está a um passo muito pequeno de reconhecer os direitos dos

índios a terra. E esta é uma questão muito complicada no Brasil”. Nos últimos anos, intensas lutas têm sido trazidas a público, com cada vez mais visibilidade, sobre os direitos indígenas: a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a luta contra a hidroelétrica de Belo Monte, que pode destruir parte do Parque Ecológico do Xingu, o massacre dos Guarani Kaiowá, que levou a milhares de pessoas a incluir o nome da etnia como sobrenome na rede social Facebook, a questão do antigo Museu do Índio no Rio de Janeiro, atual Aldeia Maracanã, desapropriada para a Copa do Mundo, entre outras. Enquanto os diversos governos brasileiros estão realizando imensos retrocessos políticos nas questões indígenas, com o risco de inclusive se perder os direitos conquistados na Constituição de 1988, há uma crescente movimentação da sociedade em prol dessas populações e seus direitos. A maior atenção dada aos índios brasileiros certamente é uma das maiores conquistas dos últimos tempos. E a cultura certamente exerce papel fundamental para isso.


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Poesia foto: Bel Pedrosa

André Vallias

André Vallias é um dos poetas mais interessantes na pesquisa das fronteiras da poesia com a cultura digital e as artes visuais. Nascido em São Paulo, em 11 de outubro de 1963, Vallias mora hoje no Rio, onde dirige a produtora Refazenda. Seu poema “Totem”, que serve de pôster desse número, é uma importante intervenção política, e mereceu um belo texto do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “(...) Nomes dos povos, nomes dos índios, nomes de nosso tios. Somos todos como Antônio de Jesus, aliás Tonho Tigreiro, aliás Macuncôzo, aliás Bacuriquepa, o onceiro de ‘Meu Tio, o Iauaretê’, o conto espantoso de Guimarães Rosa. O mestiço de branco com índia que, depois de passar a vida perseguindo o animal totêmico de seu povo, o Jaguar, volta para os seus, renega o pai branco, desvira branco e vira onça, isto é, revira índio. Assume assim o nome da mãe, o nome do tio materno. Estamos no matriarcado antropofágico profetizado por Oswald de Andrade; mas aqui sob a forma de tragédia. A lição do conto de Rosa é sombria: mestiço que volta a ser índio, branco mata. E nem lembra o nome. Todo povo é um nome. Todo nome é um meme. Uma memória sonora que não vai-se embora. Que este totem de André Vallias em forma de onomatopoema possa dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. [Sergio Cohn]


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O poema “Totem” dialoga com duas frases bastante representativas de visões distintas sobre os ameríndios no Brasil: “nós somos brasileiros, não somos guaranis”, de Joaquim Nabuco, e “no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, de Eduardo Viveiros de Castro. Como foi a elaboração conceitual do poema? “Totem” é um poema político, de circunstância, feito para interagir na campanha de solidariedade aos guarani-kaiowá, deflagrada nas redes sociais logo após a publicação de uma dramática carta-aberta que foi erroneamente interpretada como ameaça de suicídio coletivo. O moto adotado nos perfis do Facebook e Twitter – “sou guarani-kaiowá” – forneceu o primeiro verso (um ready made de sete sílabas), a partir do qual fui encaixando o maior número possível de etnias, obedecendo ao mesmo esquema métrico, até resultar no que Viveiros de Castro tão genialmente chamou de “poema onomatotêmico”. Você criou uma tipologia especial para o poema “Totem”, claramente baseada no grafismo indígena. Como foi a criação dessa tipologia? Inspirei-me na arte da cestaria indígena, construindo as letras numa malha geométrica triangular. Usei três tons de cor para dar um efeito tridimensional. É uma tipologia feita para ser usada em grandes dimensões. E gosto de pensar que se trata de um tributo tipológico à mãe de todas as revoluções tecnológicas: a neolítica. “Totem” se tornou uma instalação de poesia-arte num espaço cultural no Rio de Janeiro. Como foi essa experiência, e como você tem visto as iniciativas de fusão ou esboroamento de fronteiras entre poesia e artes visuais? Tão logo finalizei o poema, o encaminhei ao Alberto Saraiva, curador do Oi Futuro, responsável por um dos poucos espaços brasileiros – se não for o único – exclusivamente de-

dicado à chamada “poesia visual”. Com base nas peculiaridades do espaço, surgiu a ideia de se plotar o poema no piso térreo do edifício, acompanhado de diagramas informativos, do belo texto de apresentação de Viveiros de Castro e de um tótem multimídia com o vídeo-poema que fiz a partir de imagens do filme “Ao redor do Brasil” (1924–1930) do Major Luiz Thomaz Reis e com minha oralização dos versos. A exposição, inaugurada no dia 12 de janeiro, acabou sendo prorrogada até 28 de abril. Desejo agora levá-la para outras cidades do Brasil: especialmente para São Paulo, berço do Bandeirantismo, que já vitimou centenas de milhares de indígenas e continua ativo e mortífero no ideário de nossos empresários e governantes... O seu percurso poético passa desde sempre pela poesia expandida. Você é uma referência internacional em poesia digital. Fale um pouco da sua trajetória. Comecei fazendo poemas em serigrafia. Minha primeira “publicação” foi uma exposição individual na Galeria Macunaíma, em 1987. Não publiquei, até hoje, um livro de poesia, mas quem sabe não venha a fazêlo num futuro próximo. Em 1989, passei a usar o computador para compor poemas, embrenhando-me, em seguida, na floresta de símbolos da grande rede mundial. Desde então, tenho buscado ampliar o leque de formatos e espaços de minha atividade poética – sejam eles digitais ou não –, cada vez mais convencido de que a palavra poesia recusa adjetivos, e de que as vanguardas do século XX a emanciparam de vez da literatura (o que não quer dizer, de forma alguma, que não possam interagir, miscigenar etc.) Ainda torço para que as instituições culturais deixem de considerar as tais práticas nãoliterárias como anomalias toleráveis apenas nos limites de algumas poucas “reservas territoriais”.

dois poemas

“Nous n’avons pas compris Descartes”





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guilherme vaz entrevista por Afonso Luz e Sergio Cohn

[Afonso] Guilherme, você é de onde? Acho que todo mundo faz essa pergunta, todos os dias. Até as crianças se perguntam isso: “de onde eu sou?” E qualquer resposta é provisória, não existe uma resposta definitiva. Existe uma aproximação, porque a cada dia se descobre novos conteúdos sobre a própria trajetória. Então o que você pensava ser a sua origem passa a ser outra coisa. Você faz percursos novos, e se vê de outros lugares. Agora, todos nós temos algumas bases de flutuação, de gravitações, de nascimento, de alimentação, de leitura, de história que se mantêm. Por exemplo, a fundação de Brasília foi drástica para mim. Isso não é um elogio que eu estou fazendo a Brasília. A história não comporta elogios, ela comporta uma clarividência, mas não elogios. Mas Brasília mudou o país. Hoje quando se anda nas ruas do Rio – eu, pessoalmente, ando muito mais do que a maioria das pessoas – você vê uma sociedade que, se a capital tivesse continuado aqui, já tinha sido praticamente entregue. Porque é uma elite inteiramente entregue para o pensamento do exterior. E a fundação de Brasília foi exatamente esse passo na direção do interior do Brasil. O que é mais estranho é que foi na direção da autoestima de reconhecer que nós somos caipiras, e que mesmo como caipiras poderíamos nos tornar seres universais. Existem letras de música sertaneja que são universais. Então foi um arremesso muito grande para esse Brasil do interior. Ao mesmo tempo, toda a vanguarda – sobretudo a de São Paulo – estava na Universidade de Brasília. Eu já falei isso lá na cidade, mas eles ainda não reparam que a vanguarda paulista estava toda ali. Fala-se muito de Os-

car Niemeyer e Lucio Costa, que são cariocas, e a vanguarda paulista é menos comentada. Mas o Rogério Duprat, o Décio Pignatari, a poesia concreta, tudo estava inteiramente ali. A música concreta, a música estocástica... E eu conheci a obra do John Cage em 1963, o que não é brincadeira. Em Brasília, no meio do sertão do Brasil, através do Rogério Duprat. Então a fundação dessa cidade, cujo nome é Brasília – ela devia ter até outro nome, não sei, eu acho esse um nome muito pequeno para a utopia que quiseram fazer lá – foi fundamental para minha formação. Isso eu posso afirmar. Se você pergunta de onde eu venho, eu posso responder que entre as minhas cicatrizes – e quando eu falo “cicatriz”, não estou falando de coisas negativas, estou falando de carimbos históricos... [Afonso] ... Como nos indígenas... ... Como nos indígenas – está a fundação de Brasília, a convivência com a vanguarda de São Paulo e com a vanguarda do Rio, ao mesmo tempo, no alto sertão do Brasil. Aquilo foi fundamental para mim. Apesar de eu me conhecer muito pouco – como todos nós – isso eu posso afirmar. [Sergio] Você tinha quantos anos quando foi fundada Brasília? 13 anos. Essa idade, Sergio, é muito sensível. Entre 13 e 20 anos, você está muito aberto para as transformações e para as coisas que você ouve. Eu cheguei lá e a universidade era muito nova, uma planta semeada pelo Darcy Ribeiro, com toda a vanguarda de São Paulo, do Rio de Janeiro. Eu tive aula com o Oscar Niemeyer de arquitetura. Não era aula que ele

dava, isso que era interessante. Ele desenhava e explicava os desenhos, as formas, as curvas. Tive aula de cinema com o Paulo Emilio Sales Gomes. Mas daí veio a grande conjunção reacionária de 1964, todo aquele maremoto de reação, que foi gigantesco e destruiu a cidade, porque a cidade era a ponta de lança de todo o pensamento de vanguarda do Brasil, inclusive do Glauber Rocha. Eu o vi diversas vezes por lá, na época do lançamento do “Deus e o diabo na terra do sol”. [Sergio] Você acredita que Brasília é uma história abortada? É, a impressão que dá é a de uma história abortada. Mas a gente não pode desconsiderar o fato de que a tentativa de abortar movimentos reais e naturais são mal-sucedidas em algum ponto da história. Eu não sei qual ponto da história, mas não é possível você abortar permanentemente esse rio subterrâneo que existe no Brasil, essa pulsão de achar uma identidade de vanguarda para o país. Uma identidade avançada, que integre todas as suas culturas, como era Brasília. Eu não sei se é Brasília que era esse lugar. Não sei se acontece em Brasília ou na Amazônia. Eu sempre acho que o Brasil terá uma quarta capital. Eu vivi na primeira capital, que foi Salvador, porque depois desse golpe reacionário eu me transferi para lá – onde eu encontrei o Walter Smetak –, a primeira capital arcaica. É chocante você sair de Brasília para Salvador, porque você recua mais ainda no tempo: casas de madeira, e coisas de 300, 400 anos antes, um pensamento medieval... [Sergio] Só que era o avant-garde da Bahia,


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não? Você pegou o grande momento da Universidade da Bahia... Exato. Tinha o Rolf Gelewski, o Koellreutter, o Smetak... Era um período de grande invenção no teatro, na dança... E no cinema tinha o Glauber. Mas Brasília estava mais avançada. Depois, eu fui para o Rio de Janeiro, que é outra experiência. No Rio, há um sentido de liberdade muito grande, de informalismo, que é fundamental para conquistar novos planos na arte, conseguir não se render ao formalismo. Mas o carioca é um pouco superficial, às vezes. Então eu acho que nas três capitais ainda não se concluiu essa possibilidade de Brasil. Eu tenho quase como certo que vai haver uma quarta capital na Amazônia. Eu pressinto que é lá que o inconsciente coletivo estratégico do povo brasileiro, da nação, e da soma de todas as ideias conjugadas, o decantamento dessas ideias acabará produzindo uma quarta capital. O Amazonas é um ponto de soberania importante para a civilização do Brasil. Então é possível que em algum ponto haja uma libertação dessa tentativa de unir o pensamento, a soma do pensamento do Brasil, com a soma de uma utopia, de uma ideia de civilização. A civilização é uma vontade natural na sociedade brasileira, ela não é artificial. Há uma vontade de atingir alguma coisa indefinível, que a gente chama de “civilização do Brasil”. É meio indefinível, mas existe essa vontade. [Afonso] E como foi essa sua chegada a Brasília? Eu me peguei com 13 anos, saído do alto sertão, chegando nessa utopia de civilização. Eu nasci a 50 metros antes do fim do mundo, como eu digo. Uma cidade que é a boca do sertão. 50 metros depois, as últimas mercadorias eram colocadas ali, atravessando o rio era o ermo. Ali era Guimarães Rosa, não tinha lei, não tinha nada... A cidade se chamava Araguari, era uma cabecinha de alfinete no meio do sertão. Então depois daquele ponto, à frente você não tinha mais nada. E eu aprendi muito com a brutalidade, com a origem,

aprendi muito com os hábitos originais, que é uma coisa que no meu trabalho está muito claro, muitas vezes. É encontrar os hábitos originais da vida. E então, em 1958, aos 13 anos, eu dou um salto de 50 metros antes do fim do mundo, onde você está criando ali naquele pequeno piano de uma família de classe média do interior do Brasil (meu pai é médico), onde o

o índio, a maneira em que o Neanderthal surge de dentro da mata. [Afonso] Isso estava na sua infância também, o índio? Sim. Não os que eu conheci puros depois, na fronteira com a Bolívia, mas já um pouco mais aculturados, e outros mestiços. Mas essa cultura indígena estava ali.

Eu tenho quase como certo que vai haver uma quarta capital na Amazônia. Eu pressinto que é lá que o inconsciente coletivo estratégico do povo brasileiro, da nação, e da soma de todas as ideias conjugadas, o decantamento dessas ideias acabará produzindo uma quarta capital. conceito de arte, de música, é um conceito que tem que ver com um cerimonial, com a frase feita, a imagem pré-entendida, o que o Nelson Rodrigues chamava de “os Camões de piscina”, que são pessoas que se relacionam com a arte, mas de maneira reificada, para a música concreta que estava sendo realizada em Brasília. Em um ano você sair daquele universo arcaico para enfrentar a música concreta, “Variações para uma porta e um suspiro”, de Pierre Henry, é algo muito forte... Ao mesmo tempo é muito bom, porque você trás consigo elementos que os franceses, por exemplo, não tem muito mais, que são os elementos da origem da vida da humanidade no limite do não ser – o sertão. Isso é uma coisa muito formadora para mim: a vida no limite de onde começam os hábitos culinários, de como se faz uma comida que leva sete dias, quatorze dias, num tacho de cobre. A luta das cozinheiras, o suor das lavadeiras... Fazer sabão, coisa que todo mundo hoje compra no mercado... Isso tudo, a origem, o fogo, a mata,

[Afonso] Antes de você falar dos índios, que é uma parte fundamental da sua trajetória, conta um pouco dessa passagem. O que você foi buscar em Brasília? O Brasil inteiro ia buscar alguma coisa em Brasília. Aquilo era uma utopia para boa parte do Brasil na época. Fui com minha família, meu pai resolveu se transferir para a nova capital. Era um plano de ascensão genético-cultural do Brasil, se mudar para Brasília. E era um sonho dos sertões também, porque havia certo gosto inclusive de vingança dos sertões em relação ao litoral. A minha avó plantou um pé de jambo vermelho no dia da inauguração da cidade, chamado Brasília, no quintal dela. [Afonso] Em Araguari? Não, isso em Goiás. No ermo, porque meu pai nasceu do lado de lá. Então ela plantou esse pé, e havia certo gosto de sangue na boca, de vingança dos sertões em relação ao Rio, da dominância imperial – muitas vezes muito nefasta – da capital no litoral em rela-


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ção aos sertões. Havia um orgulho tremendo nos sertões da capital estar no centro. Os estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Pará, eles têm um orgulho muito grande de tomarem decisões longe do litoral. Então o meu pai era um partidário disso, e a primeira coisa que eu tenho a dizer é isso, a cidade exerceu o seu eixo antropológico, sua pulsão freudiana, em relação à mudança das coisas no país. E até uma coisa de vingança, que eu não sei se é boa, acho que não deve ser boa, mas existiu em relação ao litoral. E tem até as famosas citações de Antônio Conselheiro, de que um dia o sertão ia virar mar, que é interpretada da seguinte maneira, de que o poder se transferiria para lá. Não é o mar, mas o poder das decisões que se transfere do litoral para os sertões. E isso tudo combinou com a mudança da minha família pra Brasília. Então eu tenho uma segunda coisa, também de formação: certa autoestima formativa em relação à identidade brasileira, por conta disso daí. Mas não sou tropicalista, é diferente. [Sergio] O Rogério Duprat lançou em 1961, em parceria com o Gilberto Mendes, o Willy Correa, o Julio Medaglia, o Damiano Cozzella e outros compositores contemporâneos, o manifesto da Música Nova. Isso repercutiu para vocês em Brasília? Tudo que foi feito em São Paulo teve repercussão importantíssima em Brasília. Eu falei para o jornalista Severino Francisco isso, que é preciso atentar como o pensamento de vanguarda de São Paulo, na Universidade de Brasília, que é o que formou a música experimental. Há uma tentativa de escrever a história de Brasília através apenas das personalidades vindas do Rio, mas é importante atentar para a importância de São Paulo. Na verdade, a inteligência vinha sempre de São Paulo, na Universidade de Brasília. O entender a possibilidade de revirar a música ao avesso, e como proceder essa reviravolta, isso vinha de São de Paulo. Como inverter o jogo e saber a mecânica da inversão do jogo, não ser apenas um ato voluntário, isso vinha de São Paulo.

E do Rio vinha o que? O que vem até hoje, a noção de bom gosto, que é completamente distinta da noção de São Paulo. Não há bom gosto na inteligência de São Paulo colocada ali naquele momento. Existia uma engenharia do futuro, mas a noção de bom gosto estava fora. E essa noção da engenharia de futuro que está na inteligência de São Paulo, ao mesmo tempo se chocava muitas vezes com a ideia de bom gosto que vinha do Rio, ligada a Bossa Nova... Não há nada mais ligado ao bom gosto do que a Bossa Nova e a pintura neoconcreta do Rio. Havia muitos choques dentro da Universidade de Brasília que você tinha que administrar, entre a possibilidade de você reverter a linguagem musical... Por exemplo, o campo dos ruídos, que é tão fundamental, de sair do som dito musical para o ruído, e dar ao ruído o valor de expressão semântica que ele possui, dar o peso que ele pode ter. Os cariocas nunca citaram o ruído, e na verdade não citam a música concreta até hoje. Existe uma espécie de escravidão ao bom gosto – que é uma coisa nativa do Rio – que às vezes impe-

fazer uma música de sala de visitas, porque o ruído é o quintal do mundo, o entorno, a floresta do mundo. Não é o som da escala temperada criada por um código social, é o som em estado selvagem. E se a gente não conseguir incorporar isso à linguagem, nós vamos continuar fazendo uma linguagem do socialmente aceito, e aí a linguagem se empobrece profundamente. Na Universidade de Brasília existiu a tentativa de absorver essas possibilidades semânticas mais amplas. [Afonso] Quem era a sua geração nessa universidade? O Cildo Meireles, o Luiz Áquila, que teve uma formação boa, mas que depois optou pelo lado da pintura, o Luiz Alphonsus. No texto, o Eudoro Augusto, o Afonso Henriques Neto, que é irmão do Luiz Alphonsus. E eu acho que todos nós temos uma linguagem muito devedora do que estava se operando em Brasília naquele momento. Não há como interpretar o trabalho do Cildo, por exemplo, sem entender a Brasília da época.

Se os ruídos não participam da linguagem musical, vamos continuar a fazer uma música de sala de visitas, porque o ruído é o quintal do mundo, o entorno, a floresta do mundo. Não é o som da escala temperada criada por um código social, é o som em estado selvagem. de que a percepção do ruído seja alcançada. A música concreta não consegue entrar no pensamento do Rio. Agora, recentemente, com a arte sonora, é que tem os primeiros sinais que os ruídos vão participar da linguagem musical. Se os ruídos não participam da linguagem musical, nós vamos continuar a

[Afonso] Mesmo após a vinda de vocês para o Rio? Sim, era outra coisa em relação aos artistas cariocas, muito informada pelo caldo antropológico que a gente trouxe de Brasília. E é importante dizer que quando a gente cria a Unidade Experimental no Museu de Arte Mo-


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derna do Rio de Janeiro, eu, o Cildo, o Luiz Alphonsus e o Frederico Moraes, a ideia não era fazer arte conceitual. A arte conceitual tem um aspecto de macumba para turista, é uma coisa limpinha com uma palavra em cima. A nossa intenção era outra, estava mais para instalações humanas. Não era uma obra que queria demonstrar um pensamento, ela queria demonstrar uma existencialidade. A Unidade Experimental foi muito importante, e permitiu muitos encontros. Foi lá que eu conheci o Julio Bressane, por exemplo. Eu sempre penso que existe uma imantação entre as coisas, que possibilita os acontecimentos. Por exemplo, eu só poderia conhecer o Bressane dentro do campo da arte contemporânea. É uma coisa engraçada isso: o experimental chama o experimental, existe essa imantação entre as coisas. Foi um grande encontro. [Sergio] O Bressane foi a sua primeira experiência com cinema? Eu já havia trabalhado com o Nelson Pereira dos Santos, que foi meu professor lá em

que eu era um músico comum – como as músicas do Rio –, que ia fazer melodias e temas para os personagens. E eu nunca pensei nisso. E me chamaram no estúdio, o dono era o Herbert Richers, um senhor grandão, estrangeiro, com uma gravata enorme – ele parecia um produtor de Hollywood, poderoso. E ele me perguntou assim – em frente ao Nelson Pereira dos Santos: “você já tem os leitmotivs?”. Então foi uma risada geral, o Nelson começou a rir, ninguém conseguia conter o riso, e ele falou: “Olha, Herbert, aqui no Brasil é muito difícil falar em leitmotiv, né, o cinema que nós estamos tentando fazer no Brasil não é de leitmotiv, é outro cinema”. E eu falei: “Doutor Herbert, eu não vou fazer leitmotivs, eu vou fazer relevos de sons concretos”. Aí que ele não entendeu nada. Então eu usei bolas de pingue-pongue, ruídos de vidros quebrado no chão, usei as cordas do piano tocadas com a unha... Isso tudo em 1968. Os técnicos do Rio se juntavam em volta do estúdio para ver a gravação, porque eles estavam acostumados a gravar chanchada – Emilinha Borba, es-

A arte conceitual tem um aspecto de macumba para turista. A nossa intenção era outra, estava mais para instalações humanas. Não era uma obra que queria demonstrar um pensamento, ela queria demonstrar uma existencialidade. Brasília. Eu cheguei a fazer uma trilha sonora para ele, para o “Fome de amor”. Esse filme era baseado num livro do Guilherme Figueiredo, irmão do futuro presidente João Figueiredo, e tinha uma cenografia esplendida do Luiz Carlos Ripper e uma fotografia esplendida do Dib Lufti. O Ripper e o Nelson me convidaram para fazer a música. Eles achavam

sas coisas –, e queriam entender aquela coisa nova. E aí entrava um sujeito lá que colocava uma escada, subia na escada com um saco de bolas de pingue-pongue cheio de microfones embaixo, e começa a jogar as bolas no chão, e aquilo era uma música. E eles ficavam olhando espantados. Aí eu sei que descia, e pegava um monte de cacos de vidro quebrado, pedia

para uma pessoa andar em cima e gravava, e era outra música. E abria o piano, tocava com as unha nas cordas... Isso tudo vinha da experiência da minha educação, daquela utopia de Brasília, operando. [Afonso] E como nasceu a parceria com o Bressane? O Julio viu o “Fome de amor” na época, naquele cinema que havia no Catete, ao lado da UNE. Ele me disse que viu o filme umas quatro vezes. E fazia sentido, porque o “Fome de amor” já era um filme que prenunciava uma linguagem mais experimental, como ele estava buscando. Então, quando ele me encontrou no corredor da unidade experimental, ele estava montando dentro da cinemateca do MAM o “Anjo nasceu”. E ele me perguntou se era eu que tinha feito os ruídos do “Fome de amor”. E então ele me convidou para ver o filme que ele estava fazendo, e a gente já começou a trabalhar juntos. O filme ainda era narrativo, mas a gente encheu de música contemporânea. E assim começou o nosso trabalho conjunto. Já são 12 filmes em parceria. [Sergio] E o Hélio Oiticica era um nome forte para vocês? O Hélio é outra grande questão. É que nós, ligados a Brasília e a unidade experimental, nunca tivemos relação com os tropicalistas. Sempre foi muito complicado, mais do que complicado, não havia empatia nenhuma e não há até hoje. Esse perfume tropicalista não entrou. E eu acho até que existe uma oposição entre o nosso experimentalismo e o tropicalismo. E também existe uma coisa curiosa, havia certa crítica da nossa parte, do grupo experimental, de que houve uma espécie de estetização do mau-caratismo pelo tropicalismo. É uma espécie de tentar tornar estéticas ações que para nós eram de má-fé filosófica, má-fé estética, má-fé social, má-fé artística... E eu acho que isso é outra questão que nunca nos deixou aproximar e ter relação com o tropicalismo. O Hélio Oi-


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ticica estava na Information junto conosco, ele era um dos quatro brasileiros que estavam lá. Eram eu, o Hélio, o Cildo e o Arthur Barrio. Mas não havia um diálogo maior com ele, como nós estávamos tendo na Unidade Experimental, por exemplo. Nem com ele, nem com o Rogério Duarte, nem com nenhum tropicalista. Isso foi uma lacuna, um gap, que precisa um dia ser estudado.

e Gil voltam do exílio, eles vêm para o Rio de Janeiro. Para ele o tropicalismo termina aí, quando ele sai de São Paulo. Quando eles chegam aqui no Rio, o Duprat não é mais o grande pensador musical. Eu sei o preço que eu pago por estar no Rio, por exemplo, e ter uma imaginação musical, uma imaginação sonora mais avançada. Aqui, o tradicionalismo é enorme. O Rio é muito sala de visita, do

O pensamento de vanguarda foi incorporado pelas artes visuais. As artes visuais absorveram as iniciativas de vanguarda das outras formas culturais. E quem não participou disso de certa forma ficou um pouco desinformado. [Afonso] Gozado isso, porque havia pontos de ligação entre vocês, como o próprio Julio Bressane e o Rogério Duprat... [Sergio] Embora o Duprat só tenha participado mais ativamente do trabalho deles até o exílio dos baianos em 1969, e depois não ter sido mais chamado para quase nenhuma parceria. Sim. E tem duas coisas sobre o Duprat que são importantes. Em primeiro lugar, e isso precisa ser dito em algum momento, eu acredito que em grande parte ele expressou a imaginação dele ali um pouco sob tirania, às vezes. A imaginação dele é maior do que o que está nos arranjos tropicalistas. Eu acho que foi uma maneira de ele poder exprimir de maneira popular o que ele imagina, mas eu não tenho muita certeza – pelo que eu conheço do Rogério – que ele estava satisfeito com aquilo. Evidente que foi muito importante, mas ele é maior do que aquilo. Além disso, existe um componente que o Júlio Medaglia fala, que o tropicalismo volta para o Rio. O Medaglia, que é muito ligado aos tropicalistas, fala isso, que quando Caetano

ponto de vista inclusive técnico, e do ponto de vista de conhecimento. É uma produção sonora ainda ligada, primeiro, ao conceito de beleza que eu falei para vocês, uma beleza frugal, fácil. Apesar do Rio falar muito de senzala, a arte do Rio está toda ligada a Casa Grande. O quintal do mundo, os ruídos, não entram. Então, quando o tropicalismo vem para o Rio, o Rogério fica descartado, o que é uma pena, porque ele poderia ter feito coisas incríveis. [Sergio] A Information foi central para a sua trajetória, não é? Com certeza. Ela foi a exposição fundadora da arte contemporânea mundial, que aconteceu no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1970. Eram quatro brasileiros lá dentro, e eu fui um deles. O meu trabalho era uma área que possuía resistências elétricas por baixo do solo, e ficava mais quente do que o resto do chão. E não dava para saber, era tudo igual, a mesma cor que todo o resto, o chão mimetizava o resto do piso, era tudo igual. Então você estava andando e de repen-

te havia uns vinte metros quadrados que estavam com a temperatura altíssima. Se você botasse o pé, queimava. E esse foi o trabalho que eu mandei para lá. A Information foi muito importante, e foi um ato de coragem do Kynaston McShine, que foi o curador. Ele era muito digno, e escolheu pessoalmente os artistas que participaram da exposição, nos países que ele convidou. Ele era um negão altíssimo, muito elegante, parecia uma mistura do Coltrane com o Martin Luther King. Ele veio para o Rio de Janeiro conhecer artistas para a exposição, e encontrou o Frederico Moraes. O Frederico mostrou uma série de fotos e slides de trabalhos de artistas brasileiros, e ele selecionou alguns. O Kinaston está vivo ainda, em Nova York. É uma pessoa muito especial. Recentemente mandei um bilhete para ele. A Information foi uma exposição fundadora, e as pessoas aqui não percebem a importância de terem quatro brasileiros nela. E ainda mais quatro artistas, inclusive o Hélio, que são completamente despojados da noção de carreira fácil. Então são pessoas que estão lá por uma certa qualidade, por uma postura na sociedade, na vida, e não porque estavam querendo fazer uma carreira fácil. Isso é um grande mérito. [Sergio] O seu trabalho cria esse diálogo entre as artes visuais e a música contemporânea... Sim. O som é uma coisa que já entrou na arte contemporânea definitivamente. Eu tenho visto alguns trabalhos de arte sonora que me convenceram disso. Eu acho que o pensamento de vanguarda, não só da música, mas da vanguarda em geral, foi incorporado pelas artes visuais há muitos anos. As artes visuais absorveram as iniciativas de vanguarda das outras formas culturais. E quem não participou disso de certa forma ficou um pouco desinformado. [Afonso] E a sua relação com a cultura ameríndia?


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Essa relação com os índios para mim é crônica. Esses interesses crônicos têm muito a dizer sobre aquela primeira pergunta sobre o que você é, de onde você vem. Falam muito da nossa natureza. E os índios sempre foram um dos meus maiores interesses. Tanto que já estavam no catálogo da Information, a minha página já é a fotografia de um grupo indígena.

estético que algumas vezes a obra não tinha originalmente. É um valor conferido de forma abstrata. Isso não existe no mundo indígena. Lá, os trabalhos estão inseridos no contexto meteorológico, cósmico, das estações do ano. Cantos não são feitos a qualquer hora, por qualquer pessoa, de qualquer idade. Crian-

A gente buscava retomar a cultura indígena, mas não no sentido da arte indígena, da geometria indígena, por exemplo. Mais do que isso, era o ato indígena que nos interessava, a perspectiva indígena. Esse é um ponto importante da nossa ideia de experimental, que estava em torno do grupo do Núcleo Experimental. Não era apenas algo conceitual, formal, artificial, que poderia ser feito em qualquer país do mundo. Nós buscávamos algo mais localizado. E colocar os índios no catálogo da Information tem a ver com isso. Conviver com os índios é muito humilhante, se você tiver honestidade intelectual, porque você vê a maneira depauperada que nós estamos vivendo hoje. Por exemplo, a arte que nós fazemos, os conceitos deles são completamente diferentes. Por exemplo, dentro do pensamento deles, não podemos mudar uma obra de arte de local. Porque se achou que ela tem um local no mundo, você não pode transportar ela para qualquer lugar. A obra de arte ocidental está em todos os lugares, em todos os conceitos, ela não tem necessariamente que ver com algum conceito específico. Tem mais a ver com o valor e a estética. E quando uma obra vale tantos milhões, isso acaba influenciando a própria estética da obra. Acaba conferindo um valor

ças, homens, mulheres, curandeiros, cada um tem um canto. Não existe essa coisa genérica, existe como uma espécie de conexão da arte com o mundo, com todas as dimensões da existência. Nós vivemos completamente desconexos. Você vê a obra de arte do mundo não indígena, do mundo dominante, ela é flutuante, é muitas vezes vazia. Muitas vezes ela não está no contexto próprio. Às vezes ela está num contexto que a diminui, às vezes ela está num contexto que é diminuído por ela. E tudo isso afeta ela muito mais do que as pessoas estão acostumadas a perceber. Seria importante pensarmos mais nisso, nas diferenças do olhar indígena e do nosso, até para trazer elementos de cura para o mundo ocidental. [Afonso] Você acha que sua a arte, a do Cildo, trabalhava com essa perspectiva indígena? Sim, Afonso. Esse é um dos pontos mais importantes do nosso trabalho, e um dos menos claros e explorados. A gente buscava retomar a cultura indígena, mas não no sentido da arte indígena, da geometria indígena, por exemplo. Mais do que isso, era o ato indígena

que nos interessava. A perspectiva indígena, como você falou. A gente podia estar trabalhando com bolas de aço, mas utilizando uma perspectiva indígena. Isso é uma das coisas menos faladas, discutidas, experimentadas, comentadas, investigadas, estudadas que existe, essa tentativa de retomada da conexão indígena na nossa arte. Essa tentativa de recuperação do lugar, do locus, de tirar a arte do artifício do lugar, alienado, artificial e abstrato, e trazê-la para um lugar onde existam resultados reais dentro da sociedade. Esse pensamento era essencial para nós. [Afonso] No Música em Manaus, você estabelece indígenas como solistas na reinvenção de vozes da orquestra. Essa questão do solo é muito importante. O solista tem a função de ser algo maior ou superior dentro da orquestra, que é algo complicado. O solo e o clímax possuem essa função dentro da música. Tem um grande autor inglês, o Cornelius Cardew, que eu gosto muito, que tem um trabalho onde é proibido ter clímax. Ele é muito pouco estudado, um compositor que se dedicou à política depois, mas não a política comum. Ele tem um trabalho para tambores, usando uns 200 e tantos tambores, em que um não pode tocar mais alto que o outro e não pode ter clímax. Porque o clímax cria o trono, o ponto principal da música. E esse trabalho é espetacular, porque ele dá uma noção de anti-solo. Então essa é uma questão muito importante de ser pensada. [Afonso] A tentativa foi de inserção dos instrumentos e sons indígenas com o mesmo valor dos instrumentos e sons tradicionais das orquestras? Sim. Tem ali, por exemplo, um pequeno violino de boca indígena, que é feito a cada vez que eles vão tocar. A índia que tocou conosco na orquestra, ele pode fazer quantos ela quiser. E o violino acaba em um ano. Eu tenho alguns que ela me deu, que já precisam ser refeitos, a corda já rompeu. E junto


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com eles estão violinos que valem centenas de milhares de reais, que existem a centenas de anos. Então se cria essa relação entre o que fica e o que se dissolve no ato, que é muito interessante. Esse violino de boca foi muito interessante. Eu tinha lido que não havia instrumentos de arco nos índios brasileiros. E quando eu encontrei no meio da floresta as mulheres tocando esse instrumento, que você apoia um arquinho na boca, para transformá-la numa caixa acústica, e toca ele com o outro arco, achei incrível. Esse instrumento só pode ser tocado por mulheres. No Japão também tem um que que só pode ser tocado por mulheres, o koto. Isso é aquela contextualização da arte que estávamos falando, e que as pessoas não entendem, ou perderam a noção, ou nunca tiveram. E que considero que significa muito mais do que um instrumento que todo mundo pode tocar. Porque cria um conjunto, um ideograma de som e gênero, muito interessante. Esse instrumento, inclusive, não apenas só pode ser tocado por mulheres, mas também só pode ser tocado na água. Não pode ser tocado no seco, ele só pode ser tocado dentro do rio. O fato de eu ter levado para a sinfônica já não é correto. [Sergio] Quando foi que você realmente entrou em contato com os índios pela primeira vez? Você está falando de botar o pé na selva e entrar lá mesmo? [Sergio] Sim. Foi uns cinco anos antes do “Música em Manaus”. Mas isso de entrar lá de verdade é muito importante, porque não consegue entrar se não libertado por um deles. Você pode passear por lá, mas entrar é outra coisa. Quem me deu o passe foi um índio chamado Zauap. Ele é lá de Rondônia, e eu fiquei um ano tentando entrar nos Zoró, mas não havia como. Eles não são fáceis. E uma vez eu estava chegando na casa de trânsito e o Zauap me chamou, e foi aí que eu senti que estava sendo libertado. Ele disse umas três ou qua-

tro coisas, e desse dia em diante eu pude me aproximar deles realmente, na selva. [Afonso] E qual é a diferença que você sentiu? É que você realmente entra em um mundo completamente ordenado. Aparentemente você não vê ordem, mas desconfia que existe um lugar das coisas. E quando você entra, não tem mais dúvida. Tudo tem lugar, hora, contexto. Você não pode, de maneira nenhuma, cruzar essas coisas. É aquela contextualização que estávamos falando antes, que pensávamos na Unidade Experimental. É uma experiência diversa, que nos diz que não existe aquela coisa do eterno presente, e ajuda a desalienar o nosso pensamento. É preciso aprender com eles que a gente está

em uma realidade falsa, descontextualizada, imperada pelo capitalismo, pelos valores abstratos. E a arte está navegando nisso. Haverá um ponto em que a gente terá que rever isso. E eu acho que o que a gente propôs, na Unidade Experimental, ainda não foi absorvido de maneira nenhuma. A arte evoluiu linguisticamente para a arte contemporânea, mas em termos de hábitos, de discurso na realidade, ela ainda está no modernismo.


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a deusa branca

por

Alfeu França

1 Flávio de Carvalho era um artista bastante diverso, tinha interesse em tudo. Ele participou de um filme chamado “O grande desconhecido”, de Mário Civelli, na Ilha do Bananal, entre os índios Carajás, e ficou muito interessado em realizar um filme próprio. Começou a fomentar esse desejo. E já trazia também um interesse por expedições. Ele já havia tentado fazer uma expedição em parceria com a Tarsila do Amaral, em busca do berço dos gafanhotos no Brasil Central. Então, no fim dos anos 1950, ele lê um artigo no jornal sobre uma menina branca que havia sido raptada pelos índios, e que passou mais de 20 anos cativa entre eles. E aí encontrou a história que precisava. Então iniciou um longo trabalho de mobilização da classe artística e política para viabilizar o projeto, como costumava fazer. Ele tinha uma grande penetração no meio político e cultural paulista, e sempre utilizava desses contatos. Quando conseguiu uma estrutura mínima, ele fez um projeto de seleção bastante concorrido, e contratou duas jovens artistas loiras para serem as protagonistas do filme que pretendia realizar. Para fechar a equipe, chamou um cinegrafista para acompanhá-lo na expedição. Era um belga sobrevivente de campo de concentração chamado Raymund Fraymond, que tinha experiência como fotógrafo, mas praticamente nenhuma como cinegrafista. E então essa diminuta equipe foi para Manaus, onde se juntou com o pessoal do Serviço de Proteção aos Índios (a SPI, que mais tarde se tornaria a FUNAI), e partiu num barco para uma expedição de primeiro contato com uma tribo no Alto Rio Negro. O que o Flávio pretendia fazer do filme não era muito claro. Ele nunca escreveu um roteiro, mas pelo que podemos entender queria criar uma mistura de travelogue com documentário etnográfico e filme ficcional. Nisso tudo, ele insere vários elementos de surrealismo e psicanálise. A atriz principal, que seria a prisioneira, estava sempre acompanhada de um duplo. Estas eram as paixões de Flávio: a psicanálise, o surrealismo. Na cabeça do Flávio, essa prisioneira havia se tornado uma espécie de Deusa naquela tribo do Alto Rio Negro. Mas a viagem não foi fácil. O barco trazia dois grupos muito diversos, a equipe de Flávio e os expedicionários do SPI. E aquelas duas belas

jovens no meio dos trinta e poucos homens, peões, no meio da Floresta Amazônica, com o calor, mosquito, fome, todo o desconforto da viagem, tudo isso foi gerando uma tensão insuportável. A tensão foi acentuada pelo fato de o Flávio ter desenvolvido um romance com uma das atrizes, o que gerou bastante ciúme nele. Um jornalista, Norberto Esteves, do Última Hora, estava acompanhando a expedição, e atribui muito das crises ocorridas na filmagem, inclusive o motim final, ao ciúme do Flávio. Essa tensão resultou que depois de semanas de viagem a equipe de filmagem foi abandonada numa praia de beira de rio a mais de mil quilômetros de Manaus. Eles foram resgatados por missionários salesianos, que os ajudaram a traçar um longo retorno para a civilização. Mas o filme jamais foi concluído, e o Flávio nunca retornou a se interessar por ele ou por experiências cinematográficas. Ele se perdeu em outros interesses. Na verdade, já no meio da expedição ele estava se perdendo em outros interesses. Essa é uma questão importante. Ao ler as cartas que ele escreveu na época, é possível perceber isso: ele está cada vez mais atento às questões cromáticas dos barrancos de beira de rio, ao canto do sapo-boi, às orquídeas, das quais ele virou um colecionador. Num relato oral posterior, ele lamenta bastante ter perdido a coleção de orquídea após ter sido abandonado, muito mais do que não ter finalizado o filme.


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2 O primeiro contato que tive com o material filmado por Flávio de Carvalho para “A deusa branca” foi durante a Bienal de São Paulo de 2010. O evento trazia uma ala dedicada ao artista, contendo vários trabalhos dele, e nela um pequeno monitor contendo trechos do material original do filme. Eu já trabalho basicamente com documentários feitos a partir de imagens de arquivo, e achar aquilo me deixou completamente fascinado. Para alguém que trabalha com esse tipo de pesquisa, é como um arqueólogo que acha a tumba de Tutankhamun, um verdadeiro tesouro, um material praticamente intocado. Eu decidi então realizar um trabalho sobre esse material, e comecei um processo de pesquisa, amparado pelo espólio do Flávio de Carvalho, que fica no Centro de Documentação Alexandre Eulálio, na Unicamp. Fui lá, conferi a disponibilidade do material, con-

segui a licença dos familiares, que foram muito disponíveis, e com a Daniela Moreira submeti um projeto que foi aceito pelos Rumos Itaú Cultural, para realizar um média-metragem sobre o assunto. O material que encontramos, além de todas as cartas do Flávio, recortes de jornal da época, que mostravam toda a articulação dele para conseguir realizar o projeto, eram cerca de três horas de filmagem em 16 mm colorido. Era visível a ação do tempo sobre o material, mas não comprometia a qualidade visual. Um colorido muito forte, muito bonito. Além do material original do artista, procurei diferentes acervos do final da década de 1950, para contextualizar o período, e também adquiri o direito de usar alguns minutos de imagens do documentário de Alfredo Sternhein sobre o Flávio de Carvalho. É um filme de 1967, bastante interessante. O Alfredo foi um diretor muito famoso no período da pornochanchada, que dirigiu um clássico chamado “As prostitutas do dr. Alberto”. E com esse material na mão, busquei realizar um filme inteiramente composto de imagens de arquivo. Mesmo as entrevistas e depoimentos contidos no filme são de arquivos. Inclusive um curto depoimento oral do próprio Flávio sobre a expedição, que enriqueceu bastante o meu trabalho.


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3 Esse projeto me interessa bastante pelo que o filme poderia ter sido. “A deusa branca” seria um caso à parte no cinema brasileiro. Estamos falando do final da década de 1950. Era o período em que os grandes estúdios brasileiros, com o Vera Cruz, o Maristela, estavam fechando as portas, e o país estava buscando novos formatos de realizar filmes. Foi o começo do Cinema Novo, com os primeiros longas-metragens de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo. O filme do Flávio de Carvalho partia de uma tendência completamente diferente, era surrealista. Não seguia nessa tendência social, no retrato do país que o cinema brasileiro buscava realizar naquele período. Flávio buscava trazer elementos do surrealismo, que é algo pouquíssimo explorado no cinema nacional. Há uma pincelada de surrealismo no “Limite”, e

depois em alguns filmes do cinema marginal. O surrealismo de Flávio era muito baseado no André Breton, continha bastante elementos freudianos, o doppelganger, a busca do duplo, o acaso objetivo. Eu não sei se isso seria uma coisa única dele, ou se poderia abrir novos caminhos na nossa cinematografia, e ser desenvolvida por outros autores mais jovens. É uma questão que fica em aberto, com o filme tendo ficado incompleto e o projeto desconhecido por todos esses anos.

Flávio buscava trazer elementos do surrealismo, que é algo pouquíssimo explorado no cinema nacional. Eu não sei se isso seria uma coisa única dele, ou se poderia abrir novos caminhos na nossa cinematografia, e ser desenvolvida por outros autores mais jovens. É uma questão que fica em aberto.


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Vozes&Visões

constelações entre séculos

Frederico Coelho

I Já podemos falar de “pessoas do século XXI”? Já temos esse, digamos, perfil histórico constituído? Isto é, já podemos enxergar um tipo característico de um novo século ou isso é a eterna paranoia do enquadramento metafísico sobre a ação concreta de cada um? Quero dizer, por exemplo, Nicolas Jaar. Ele nasceu em Manhattan, em 1990. Ou seja, tem 22 anos. Em 2001 ele tinha onze. Obteve seus rudimentos intelectuais e sociais no final do século XX, em plena efetivação selvagem da era da informação digital, do sampler, do Napster, de efervescência histérica da América de Bill Clinton e, logo depois, da paranoia insana da era Bush pós 11 de setembro. Ao mesmo tempo, com pais chilenos (seu pai, Alfredo Jaar, é um conhecido e bem situado cineasta e artista visual), passou parte da infância em Santiago, em uma América Latina mergulhada nos governos liberais, nas privatizações e adequações à políticas econômicas dos mercado investidor mundial. O Chile foi uma das economias que mais mudaram e cresceram com a implementação de uma ocidentalização modernizante em plena virada dos séculos. A partir do século XXI, o continente muda o seu eixo com governos bolivarianos e a ascensão do PT no Brasil em 2003. Como tudo isso influencia ou forma um jovem como Nicolas (talvez essa pergunta esteja ainda apegada a uma concepção tradicional de história, em que contextos e textos travam relação de causa e consequência)? Aos 17 anos já trabalhava profissionalmente com música. É dono de um selo, grava seus discos de forma independente, não se interessa em

definir gêneros, fronteiras, não busca nenhuma meta utópica, não quer mudar o mundo nem salvar a música e a arte. Em uma entrevista declara de forma contundente que “minha geografia é minha família”. Nicolas apenas quer fazer a música que traz dentro de sua cabeça, a partir das múltiplas possibilidades que a TECNOLOGIA e o ARQUIVO lhe fornecem. Sua formação musical se deu a partir de uma fruição livre de fronteiras por causa da Internet. Sons de Cabo Verde, Cuba, Chile, Brasil, Nigéria, Nova York, Coltrane, Bob Dylan, Cage, Madlib, cruzam a mente do jovem que entrou na música eletrônica através do interesse por texturas e atonalismos. Nicolas Jaar não quer “se dar bem” como um yuppie, não quer comprar uma casa com vinte quartos ou obras de arte como ídolos de rock, não quer dentes de ouro nem quer o olimpo dos deuses do pop. Ele quer apenas fazer seu trabalho. Um tijolo em uma vasta construção rizomática. Uma estrela em uma vasta constelação. Será esse um novo sujeito estético do século XXI? Ainda em fluxo, ainda em construção, mas já desenhado, perfilado, atuante nas brechas da história hegemônica e míope ao seu próprio tempo?

II Pensamos pouco sobre o tempo entre séculos. Talvez porque a demanda frenética de “agoras” – e talvez de ágoras mais abertas e vorazes através das redes sociais – nos fazem viver um presente pesado, intenso e extenso, que cada vez mais se aproxima da perspectiva de “contemporâneo” sintetizada por Agambem em seu já famoso ensaio. Uma perspectiva que amarra passado e futuro no cerne do tempo presente. Assim, ao pensarmos a virada do século XX para o século XXI, talvez pensemos apenas que mais um ano seguiu o fluxo inexorável e ocidental da história. Se ampliarmos a lente para a grande angular de uma história caleidoscópica, veremos nosso momento de transição dos séculos através de uma perspectiva da História que cada vez mais está se sobrepondo à perspectiva evolucionista, genealogista (“a genealogia é cinza”!), horizontal e linear que aprendemos na escola e nas narrativas mais básicas da vida (histórias de ninar, por exemplo, sempre tem começo, meio e fim no lugar exato da perspectiva linear do tempo ocidental, essa diacronia que nos captura, nos esquadrinha, nos envelhece).


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Autores pouco lidos mas fascinantes para muitos como Aby Warburg invadem de forma insidiosa os debates intelectuais da academia e das artes, dos jornais e das teses de doutorado. Warburg e sua história feita a partir de vizinhanças, de aproximações intuitivas entre imagens, textos, símbolos, a perspectiva do GRANDE ATLAS (Atlas Mnemosyne) que se forma como o livro infinito de Mallarmé, em imagens que geram novas imagens que geram novas imagens, uma história de Hiperlinks ou uma história constelar, nos dizeres de Haroldo de Campos em sua contenda sensacional com Antonio Candido a favor

infinitas estrelas. Cada uma delas, com seu brilho próprio, intensidade, tamanho, beleza peculiar e intransferível. Podemos escolher qualquer uma delas para montarmos imagens, em uma transversalidade saudável, sem hierarquias, sem pressões de quem vem antes e quem vai depois, sem encadeamento lógico de uma racionalidade pré-concebida e aprisionante.

A história é uma ação física. Não apenas metafísica – do campo dos discursos e representações – mas também física, isto é, prática, material, palpável, sentida pelos sentidos. Não tem só tempo e espaço como variáveis, mas também a velocidade. O homem é a história em movimento e portanto todos nós praticamos história nos menores gestos, nos mais ínfimos fazeres, nos mais íntimos sentimentos. Somos estrelas em uma grande constelação chamada humanidade. Somos todos e somos um só. de Gregório de Mattos (O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira). Uma história, enfim, de relações e não de classificações. Lembremos que o curador Luis Pérez-Oramas citou Warburg – e o expôs – como base do pensamento de Constelação que funcionou de bússola para a belíssima e vasta 30 Bienal de São Paulo do ano passado (além de Warburg, ele cita também Gerard Richter e suas sensacionais Atlas Series).

III A história é uma ação física. Não apenas metafísica – do campo dos discursos e representações – mas também física, isto é, prática, material, palpável, sentida pelos sentidos. Não tem só tempo e espaço como variáveis, mas também a velocidade. O homem é a história em movimento e portanto todos nós praticamos história nos menores gestos, nos mais ínfimos fazeres, nos mais íntimos sentimentos. Somos estrelas em uma grande constelação chamada humanidade. Somos todos e somos um só. Abraçar essa concepção de história é entender que falar e pensar sobre o tempo passado, presente e futuro, é como olharmos para o céu durante a noite. Lá, enxergamos

E, eis aí o segredo, muitas delas, mesmo lindas em seu brilho supremo, estão mortas e, ao mesmo tempo, em movimento. São passado, apenas resquício físico de sua luz através do espaço e da noite eterna das galáxias. Mas nós as enxergamos em rotação. Nós as escolhemos como parte de nosa constelação pessoal (nunca veremos a totalidade das estrelas no céu assim como nunca veremos a totalidade dos atos geniais e desconexos da humanidade ao longo da história). Não importa se as estrelas são de hoje, de ontem, se nasceram agora ou morreram há séculos. Elas são pois brilham de forma transversal através dos tempos. A história dos homens: um imenso céu de passados e presente, prenhe de explosões de futuro. Assim falou Aby Warburg e Haroldo de Campos.


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Rafael Campos Rocha




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