Produção Cultural no Brasil volume 2

Page 1



Afonso Luz Fabio Maleronka Ferron José Luiz Herencia Rodrigo Savazoni Sergio Cohn Organização


Coordenação geral do projeto e entrevistas Fabio Maleronka Ferron | Beijo Técnico Coordenação editorial, entrevistas e edição final dos textos Sergio Cohn | Azougue Editorial Projeto gráfico e capa Carolina Noury | Azougue Editorial Preparação de texto Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto, Larissa Pinho Alves e Luana Maria| Azougue Editorial Revisão Eduardo Coelho, Evelyn Rocha, Letícia Féres e Victor Heringer Fotografias Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes | Garapa Multimídia Pesquisa Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy Participação especial em entrevistas Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P956 v.2 Produção cultural, volume 2 / - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010. 5v. ISBN 978-85-7920-047-2 1. Artes cênicas - Brasil. 2. Arte interativa - Brasil. 3. Artistas - Brasil - Entrevistas. I. Cohn, Sergio. II. Maleronka, Fábio. 10-5888. 11.11.10

CDD: 790 CDU: 792 18.11.10

[ 2010 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. Rua Jardim Botânico, 674 sala 605 CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel/fax 55_21_2259-7712 www.azougue.com.br azougue

2

- mais que uma editora, um pacto com a cultura

022684


MINISTÉRIO DA CULTURA João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira) Ministro de Estado da Cultura Alfredo Manevy Secretário Executivo José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais Afonso Luz Diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais CINEMATECA Carlos Magalhães Diretor Executivo SAC | SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA Maria Dora Genis Mourão Presidente da Diretoria Executiva Leopold Nosek Vice-Presidente da Diretoria Executiva

3



Os depoimentos reunidos nestes livros – bem como os materiais audiovisuais relativos, à disposição de todos, na internet – são esclarecedores e tocantes. São testemunhos de como se realiza a arte e a cultura no Brasil, não apenas nos anos mais recentes, mas ao longo das últimas décadas. A escolha dos entrevistados reflete esse interesse comparativo e reflete a disposição de ouvir diferentes gerações, profissionais de múltiplas procedências, com variada formação, variadas trajetórias e experiências complementares. Essa diversidade constitui a riqueza desta série, sobretudo quando considerada em seu conjunto, aliás, sem precedentes na vida cultural brasileira. Sabemos que o Brasil é um país multifacetado, com particularidades e disparidades regionais e locais. Um país cuja compreensão exige de nós um olhar aberto para essas variações. Num projeto como este, este olhar é fundamental. Se aquilo que está em questão é tentarmos compreender a complexidade de uma cultura e seus modos de elaboração, isso é impensável sem um cuidado especial, sem um olhar atento para essa diversidade. Nesses cinco volumes, todos temos a oportunidade de conhecer melhor figuras estruturais do sistema artístico e cultural brasileiro. Seus leitores terão também a opotunidade de reencontrar antigos conhecidos – além de poderem conhecer os “novos”, os que surgiram na cena da nossa produção cultural mais recente. Desses contrastes e dessas perspectivas faz-se a força da produção artística e cultural brasileira, de nossos artistas, produtores, técnicos, pesquisadores e gestores de instituições públicas e privadas. A política cultural brasileira atingiu um nível inédito de formulação, base para o surgimento de instrumentos de planejamento e marcos legais que fortaleçam as instituições culturais brasileiras e tornem os dispositivos de financiamento à arte e à cultura, bem como o sistema de propriedade intelectual, capazes de enfrentar os desafios do Século XXI. Nada disso seria possível, contudo, sem o intenso e extenso diálogo que a série Produção Cultural no Brasil representa, como conquista, sim, de todos os que estão presentes no projeto, mas também dos milhares de profissionais eventualmente ausentes desse recorte. Nossos aplausos para todos eles! José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais Ministério da Cultura



Produtores culturais Yacoff Sarcovas Presidente das empresas Articultura e Significa 13

Ruy Cezar Criador da Rede Latinoamericana de Produtores Culturais e da casa Via Magia 23

Thomas Farkas Cineasta e fotógrafo 33

Fernando Faro Produtor musical e criador do programa Ensaio, da TV Cultura 41

Luiz Carlos Barreto Cineasta, fotógrafo e produtor de cinema 47

Hermínio Bello de Carvalho Produtor musical e compositor 63

Nelson Motta Produtor e crítico musical 71

Claudio Prado Coordenador da ONG Laboratório Brasileiro de Cultura Digital 81


Flora Gil Diretora da Gegê Produções 91

Pablo Capilé Articulador do Circuito Fora do Eixo 99

Fabricio Ofuji Produtor do grupo musical Movéis Coloniais de Acaju 109

Valéria Cordeiro Produtora da Feira de Música de Fortaleza 119

Melina Hickson Diretora e produtora do Porto Musical 127

Tânia Rösing Organizadora da Jornada de Literatura de Passo Fundo 135

Vincent Carelli Documentarista e fundador da ONG Vídeo nas Aldeias 147

Luciana Tomasi Fundadora da Casa de Cinema de Porto Alegre 159

João Vieira Jr. Produtor de cinema e diretor da REC Produtores 169

8


Iatã Cannabrava Fotógrafo e diretor do festival Paraty em Foco 181

Fernando Yamamoto Fundador e diretor da Cia. Clowns de Shakespeare 193

Hugo Possolo Ator e diretor do grupo Parlapatões 201

David Linhares Diretor da Bienal Internacional de Dança do Ceará 213

Leandro Knopfholz Diretor do Festival de Teatro de Curitiba 221

Diva Pacheco Atriz da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém 235

Paulo Borges Produtor do São Paulo Fashion Week 245 Juliano George Basso Produtor do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros 255

9


10


Yacoff Sarcovas Ruy Cezar Thomas Farkas Fernando Faro Luiz Carlos Barreto Hermínio Bello de Carvalho Nelson Motta Claudio Prado Flora Gil Pablo Capilé Fabricio Ofuji Valéria Cordeiro

PRODUTORES CULTURAIS Melina Hickson Tânia Rösing Vincent Carelli Luciana Tomasi João Vieira Jr. Iatã Cannabrava Fernando Yamamoto Hugo Possolo David Linhares Leandro Knopfholz Diva Pacheco Paulo Borges Juliano George Basso 11


12


Yacoff Sarcovas Presidente das empresas Articultura e Significa.

Yacoff, como se deu seu primeiro envolvimento com cultura? Sempre fui apaixonado por cultura, particularmente por música. A princípio, tentei nortear minha trajetória profissional a partir dessa paixão. Comecei a me envolver com o mercado fonográfico aos quinze anos de idade. Aos dezessete, já estava frequentando os estúdios de gravação da RCA Victor e da Gazeta. Nessa época, fiz amizade com o produtor Cesare Benvenuti, responsável por diversas bandas então campeãs de vendagem. Conversávamos muito sobre o mercado fonográfico brasileiro. As gravadoras investiam maciçamente em divulgação, mas não havia nenhum mecanismo de controle sobre isso. Como eu já tinha alguma experiência com eletrônica técnica, comecei a bolar com Cesare um sistema de rádioescuta, a partir do qual se poderia controlar as músicas que tocavam nas rádios, gerando assim estatísticas para as companhias de disco. Montei um modelo para isso, e saímos em busca de um sócio capitalista para formar uma empresa. Encontramos Paulo Junqueira, dono de uma rede de lojas de discos importante em São Paulo, chamada Cash Box, e foi assim que surgiu a Informa-Som. Aos dezoito anos, já tocava a empresa. Cesare, a partir das relações que já tinha com o mercado fonográfico, fazia a ponte com as gravadoras. Paulo era encarregado da administração financeira. A primeira companhia a comprar nossos relatórios foi a Odeon. Emitíamos 13


relatórios diários – das sete da manhã às sete da noite – listando todas as músicas que eram tocadas. A partir dessas listas, fazíamos estatísticas semanais e mensais, tabulando por música, intérprete e gravadora. Como se articulava esse monitoramento? Comprei praticamente todos os equipamentos de gravação AKM 8 de São Paulo. Eu alterava o sistema de rotação dos gravadores, de modo que vinte e quatro horas de uma estação de rádio cabiam numa fita. Então, o transcritor ouvia uma dessas fitas (só o início das canções, e correndo) e em quatro ou cinco horas fazia a lista. Passamos por algumas dificuldades no início, porque o custo operacional não se pagava. Por conta de outras obrigações profissionais, Cesare acabou se afastando da empresa. Tive que seguir tocando-a até que se estabelecesse de maneira razoável. Depois de algum tempo de atividade, as principais gravadoras assinavam o boletim. Tornou-se um sistema de rádioescuta bem temido pelos divulgadores, já que certas gravadoras começaram a calcular bonificações e salários com base na performance do Informa-Som. Naturalmente, os divulgadores me odiavam. Afinal, eu era o sujeito que denunciava se o trabalho havia sido bem feito ou não. Paralelamente a isso – em pleno regime militar –, iniciou-se um grande movimento dos músicos brasileiros com relação à questão dos direitos autorais. Na época, essa área ainda era controlada por umas seis ou sete sociedades de direito autoral, todas respondendo aos interesses de seus diretores, não dos artistas. Tratava-se de articulações políticas que datavam dos anos 1940 e 1950. Toda a geração surgida após a bossa nova não via a cor do dinheiro. De João Gilberto em diante, ninguém recebia por direitos autorais. Por mais que tocassem canções de Caetano Veloso ou Chico Buarque nas rádios, o dinheiro não chegava a eles. Participei diretamente nesse movimento, que acabou redundando na SOMBRÁS. Os membros da Sociedade elegeram como ideal meu modelo para distribuição de direitos autorais, baseado em amostragem estatística. O governo acatou o clamor da classe artística e criou o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), este último um órgão estranhíssimo, por não ser nem estatal nem público. Quando o ECAD surgiu, encomendou-se ao SERPRO – que fazia o imposto de renda no Brasil – a criação de um sistema de processamento de dados para realizar a distribuição dos direitos autorais. Porém, para minha sorte, o SERPRO adotou uma estratégia equivocada. Propus uma solução que deu certo, de modo que 14


o sistema de distribuição de direitos autorais hoje no Brasil é uma extensão do que criei nos anos 1980. Cedi participação na minha empresa para o maior escritório privado de processamento de dados no Brasil. Com isso, consegui capital para informatizar minha base de dados. Foi o primeiro banco de dados informatizado voltado para a música no Brasil. Registrava obra, intérprete, gravadora. Acoplei a chapa de distribuição, os autores, a chapa de partição, a editora, o dono do fonograma e criei o sistema de distribuição direta, que foi adotado pela ECAD. Aos 27 anos, então, encontrei-me à frente de uma empresa com duzentos funcionários, dependendo de agiotas para cobrir a folha de pagamento. Comecei a pensar no meu futuro e concluí que não queria passar o resto da vida trabalhando com essa gente de companhia de disco e direito autoral. Qual foi o próximo passo? Bom, eu trabalhava numa espécie de intermediação tecnológica, estatística e técnica com a cultura. Ao mesmo tempo, senti que todas as minhas manifestações culturais prediletas – como o teatro contemporâneo e a música instrumental – careciam de espaço e profissionalismo. Foi esse o raciocínio que me levou à produção cultural. Por que essas manifestações não tinham tanto espaço quanto outras? Concluí que a base da questão era de natureza econômica. Havia apenas duas fontes básicas de financiamento: o público pagante e o Estado. Porém, o sistema de financiamento público era praticamente inexistente à época. Tinha-se somente uma Embrafilme moribunda, pauperizada e cheia de vícios internos. Buscando alternativas, ocorreu-me em algum momento que essas expressões culturais que me interessavam talvez interessassem também a certas empresas. Se as atrações chamassem público o bastante para se viabilizarem economicamente através do pagamento de ingressos, talvez essas expressões conseguissem certa repercussão midiática. A partir dessa repercussão, as marcas que se acoplassem a tais projetos poderiam se projetar. Você se desvinculou da Informa-Som? Sim. Vendi parte da empresa para meus sócios e parte para o ECAD. Organizei essa venda de modo a ter dinheiro o bastante para sobreviver durante quatro ou cinco anos, de modo que realmente pudesse me entregar à experiência da produção cultural. O primeiro projeto interessante que me surgiu 15


estava ligado à efeméride dos 80 anos de Samuel Beckett. Rubens Rusche, intelectual que traduzia Beckett, me procurou. Ele havia traduzido em torno de vinte peças inéditas de Beckett, que não era montado no Brasil havia décadas. Propus a Rubens um projeto maior, em comemoração aos 80 anos do Beckett. Então comecei a articular parcerias. Entrei em contato com a Editora Brasiliense, para lançarmos o romance Malone morre no Brasil, em tradução do Paulo Leminski. Negociei com o British Council a vinda de uma série de filmes inéditos que Beckett havia realizado para a BBC. Em suma, montei um multievento, com mostras de fotografias das principais montagens de Beckett pelo mundo, uma mostra audiovisual, o lançamento de Malone morre e a montagem de quatro textos inéditos de Beckett, que variavam entre cinco e vinte minutos. Rubens batizou esse conjunto de Katastrophé e teve a antevisão de convidar Maria Alice Vergueiro, uma atriz recém-saída do Ornitorrinco e tida como histriônica à época, para fazer as peças totalmente imóvel. Essa é a história do Projeto Beckett 80 Anos, que acabou ganhando o prêmio Governo do Estado, o Mambembe, entre outros. É assim que começa sua trajetória no teatro brasileiro? Sim, foi nesse momento que me apaixonei pelo teatro contemporâneo. A Articultura – nome da empresa que fundei – acabou dando suporte a uma série de diretores e encenadores que viriam a se tornar muito importantes. Criamos o Gerald Thomas com a Companhia de Ópera Seca, o Antônio Nóbrega, o Gabriel Villela, a Companhia de Teatro em Quadrinhos, da Beth Lopes. Tínhamos muita vontade de fazer coisas novas, e fazê-las da maneira mais profissional possível. Afinal, eu vinha do mundo corporativo. Todo esse lado não artístico era absolutamente novo para aquelas pessoas de teatro: a presença do gestor, o orçamento, o planejamento, a preocupação com o marketing. E como se dava a interação com as empresas? Eu ia para as ruas buscar financiamento. Batia nas portas das empresas e trazia um discurso bastante novo para o mercado empresarial à época, enfatizando a potencialidade da cultura na construção de uma marca. O repertório de branding que se tem hoje em dia era basicamente o que pautava meu discurso de então. A ideia de uma marca se constrói por meio de causas e conteúdos. Então, eu apresentava os projetos argumentando que o patrocínio, além de enriquecer o panorama cultural brasileiro, geraria certa 16


repercussão positiva para essas marcas. Comecei a me surpreender com o interesse das empresas. Certos empresários gostavam da ideia de trabalhar os atributos específicos de sua marca via Articultura e pediam projetos exclusivos. Comecei a receber briefings do Citibank, do Credicard, da Rastro, e a criar ações especialmente para eles. Nesse momento, eu estava com um pé em cada barco, igualmente comprometido com produção cultural e produção teatral. Cheguei a ter cinco produções em cartaz em um ano, além de lidar com esses briefings. Criei um projeto para o Citibank chamado Citibank Business and Night Club. Tratava-se de um clube de conteúdo fechado com programação exclusiva para clientes do banco. Por exemplo, ficamos sabendo que João Bosco havia preparado um show especialmente para uma turnê pelos Estados Unidos. Eu o trazia para fazer esse show especialmente para os membros do clube. Fazíamos montagens-relâmpago de peças que só chegariam a São Paulo no ano seguinte. Mas havia outras iniciativas acopladas ao Clube: por exemplo, comprávamos obras de artistas plásticos brasileiros e sorteávamos entre os clientes. Além do mais, havia as palestras para grupos de administração, atendendo ao Business do nome. Isso tudo se fazia com recursos da empresa. O que é a agência Significa? Bom, esse método de pensar ações culturais por encomenda através de briefings empresariais acabou evoluindo para um método mais sofisticado. Comecei a aplicar essa metodologia a conteúdos e causas sociais, ambientais, esportivas, de entretenimento, comportamento. O que faço hoje em dia é criar plataformas – temáticas ou integradas – para empresas. Eu poderia ter me estabelecido como produtor cênico, como produtor cultural, como profissional do marketing cultural, como promotor internacional de artes cênicas. Eu poderia ter me investido em qualquer uma dessas posições. Em determinado momento, abandonei a Articultura, cuja trajetória era de quase 15 anos. Hoje tenho a Significa. É uma consultoria que trabalha para a Natura, a Votorantim, além de ter criado as políticas de patrocínio e de editais públicos da Petrobras, que existem até hoje e se expandiram. À época que a Petrobras nos chamou para revisar as políticas de patrocínio, ela já investia de R$ 200 milhões a R$ 300 milhões em seus patrocínios. Isso foi em 1999, quando houve a queda do monopólio e a Petrobras se obrigou a um processo de modernização. A Petrobras era uma empresa constantemente permeada e pressionada por pedidos e solicitações políticas. Até então, era 17


costume chamá-la de caixa-preta, porque ninguém sabia o que se passava lá dentro. Percebemos que essa era uma questão com a qual ela teria de lidar. A política de patrocínio teria que expressar transparência, ser o inverso da caixa-preta. Foi por isso que levamos a ideia do edital, para que todas as políticas formais fossem de acesso público. Queríamos uma regra única para todos: datas, regras, critérios, instâncias técnicas de avaliação. Quando esse programa foi implementado, chegou a canalizar quase 65% dos recursos de patrocínio. Hoje é um pouco menos. De todo modo, parte dos recursos distribui-se diretamente. Estabelecemos alguns princípios básicos: o enfoque na cultura brasileira e a atuação em diversas áreas culturais. Mas há uma política específica – um olhar técnico e crítico – para cada área. Ela deve atuar como uma política pública, pois é isso que ela é: uma política de interesse público. Além disso, criamos algumas coisas mais específicas. Por exemplo, na área de esportes, todo o investimento da Petrobras ia para esportes a motor. Conforme planejávamos essa estratégia, percebemos que a Petrobras queria ser percebida como uma empresa de energia, e não apenas de petróleo. Ela não poderia sair do esporte a motor – não há como uma empresa de petróleo não participar de esportes a motor – mas precisava trabalhar com conceitos alternativos de petróleo. Por isso criamos o programa náutico, que tornou a Petrobras a principal patrocinadora dos circuitos de surfe e vela, representando, assim, a água e o vento. Esse foi o trabalho que desempenhamos de 1999 a 2002. Creio que a Petrobras tem uma imagem extremamente positiva no país hoje em dia. Isso decorre de uma série de fatores, naturalmente, mas nosso trabalho foi bastante relevante para a construção de sua reputação. O que você pensa da Lei Sarney? Quando a Lei Sarney surgiu, fiquei bastante entusiasmado com seu potencial. As empresas poderiam pegar parte do dinheiro de comunicação, que gastavam quase integralmente em publicidade, para tentar se comunicar através das artes. Outra questão ligada ao momento histórico – mais especificamente, à ditadura militar – era a distância que se impunha entre o mundo empresarial e o mundo cultural, ambos cheios de restrições um em relação ao outro. De alguma maneira, minha função ali era restabelecer um trânsito entre esses dois campos. Pois então, a lei estabelecia que essa reaproximação era não apenas lícita, como incentivável, porque 30 % do dinheiro investido poderia ser deduzido do imposto de renda da empresa. Achei aquilo tão extraordinário 18


que me incumbi de criar o primeiro manual da Lei Sarney. Dois meses depois da promulgação da lei, criei uma cartilha ilustrada para o mundo empresarial. O manual da Lei Sarney decodificava aquilo em oito lições básicas: o que era a lei, quais práticas beneficiava, como se fazia o cálculo de dedução, providências legais básicas que a empresa deveria tomar etc. Encartei o manual no Meio e Mensagem. Paguei por uma edição e consegui apoio do Grupo Ticket, que também distribuía o manual entre sua base de clientes. Com isso, começava a criar um segundo degrau na minha trajetória profissional. Agora eu, não apenas o produtor de artes cênicas, era também o homem do marketing cultural. A Lei Sarney durou algum tempo, até Collor desligar da tomada. Perdi uma montanha de projetos, foi um momento dificílimo para a economia do país. Quando voltei, continuei batalhando. Foi mais ou menos nesse período – em 1992 ou 1993 – que fui procurado por uns meninos empreendedores de Curitiba, que tinham a ideia de fazer um festival de teatro que levasse as grandes produções do eixo Rio-São Paulo para Curitiba uma vez por ano. Percebi o potencial de vitrine que uma iniciativa dessas teria para o teatro contemporâneo brasileiro, e o fato de levá-la a efeito fora do eixo RioSão Paulo faria com que a mídia especializada e o público percebessem a força do conjunto. Foi assim que nasceu o Festival de Curitiba. No início desenhei o conceito e assumi a direção artística do festival. Depois acabei assumindo a direção de marketing e de comunicação e, em seguida, a direção geral. Qual é seu posicionamento quanto à Lei Rouanet? Bom, quando Collor produziu aquela catástrofe na economia e no meio cultural brasileiro, ele saiu desligando as coisas da tomada sem qualquer planejamento, sem qualquer estratégia. O que houve ali foi o desmonte da parca e anacrônica estrutura cultural pública brasileira, sem que nada fosse colocado no lugar, e o Estado tem um papel fundamental nisso. Quando falo sobre o papel do gestor cultural, sempre digo que a economia da cultura precisa basear-se num tripé: público, empresa e Estado. Afinal, o gestor precisa trabalhar com um preceito de diversidade de fontes. O público consome cultura, portanto, é preciso seduzi-lo sempre. Ampliamos seu repertório, e ele paga – na medida do possível – por isso. Em seguida temos a empresa, pois, através dessa troca simbólica entre arte e estratégias de construção de marca, gera-se um capital enorme e que só tende a crescer. Isso não tem nenhuma relação direta com leis de incentivo. O eixo histórico de desenvolvimento da relação entre marca 19


e produção artística não tem nada a ver com dedução fiscal. É apenas da lógica empresarial, que as marcas invistam bilhões em projetos ambientais, sociais, esportivos. Esses recursos precisam vir de seus próprios orçamentos institucionais e mercadológicos. É aí que entra o Estado, fechando o tripé: porque o tempo da cultura é um tempo diferente do tempo do mercado. Como já disse, num primeiro momento fiquei bastante entusiasmado com a Lei Sarney, porque vi que o Estado começava a sinalizar algo na nossa direção. Aos poucos, no entanto, fui percebendo que aquilo era uma grande armadilha. O papel do Estado é operar como agente qualificado e financiar – dentro de um regime de competência – tudo aquilo que é culturalmente relevante para a sociedade e que não está no tempo do mercado. Isso abarca processos experimentais, formação de público, preservação, acervo, distribuição regional, mecanismos de internacionalização da cultura do país e até mesmo a oferta de contrapartidas no sentido de viabilizar o intercâmbio cultural entre países. Como se vê, há uma série de áreas no campo da cultura que são de interesse coletivo. A meu ver, essas três fontes de financiamento são necessárias. O que a lei de incentivo criou foi um embaralhamento disso, gerando uma confusão entre público e privado. Isso não aconteceu com a Lei Sarney. Esse processo – a meu ver, nefasto – teve início porque a Lei do Audiovisual subverteu inteiramente o conceito de incentivo fiscal, porque não era apenas incentivo, e sim uma dedução integral. A ignorância do governo que promulgou a lei – e não do legislador – acabou permitindo uma dupla dedução, fazendo com que ela passasse a ser lucrativa em si. Uma empresa que investe R$ 1.000,00 num filme deduz diretamente – dependendo da faixa de imposto em que se encontra – R$ 1.250,00 ou R$ 1.333,00. Ela ganha dinheiro, cash, para decidir quais filmes serão produzidos no Brasil. Só isso já sublinha o absurdo do mecanismo. De todo modo, a Lei do Audiovisual já era absurda quando surgiu. Mas como estava restrita a 1% do imposto a pagar não teve impacto considerável. Porém, em algum momento, o bem articulado lobby do cinema brasileiro passou isso para 3%, e o absurdo começou a ganhar escala. Nessa época, a Lei Rouanet já existia (a Lei Sarney terminara ainda no governo Collor, que promulgou uma nova legislação de incentivo à cultura, que persiste até hoje). A providência que a área cultural tomou foi – ao invés de corrigir a Lei do Audiovisual – pressionar o governo para também ter a dedução integral. O que o Estado deveria ter feito desde então é restabelecer as formas conhecidas e consagradas de ação cultural do Estado segundo o modelo francês ou alemão. Operar como agente fomentador, investindo. A diferença é que esses 20


modelos europeus foram criados num tempo em que o Estado atuava mais autarquicamente, criando teatros oficiais, companhias de dança oficiais, museus oficiais. Boa parte dos recursos era canalizada por uma estrutura própria. Sou da opinião de que o Estado tem mais é que estabelecer políticas públicas, e usar essas políticas (que podem ser setoriais ou transversais, contanto que ambas existam) como critérios de financiamento. Essas leis de incentivo que estamos discutindo criaram uma massa de transferência de recursos do Estado para a cultura que atualmente ultrapassa um bilhão de reais por ano. Isso tudo por um mecanismo indireto que é torto e perdulário. Parte do dinheiro fica no caminho, num sistema de intermediação. O sistema pode até ser legítimo e se justificar, mas não é necessário. Trata-se de um problema estrutural, que pede uma argumentação condizente. Por isso que não venho com uma ideia de melhoria, ajuste e aprimoramento. Não há o que melhorar, é preciso desmontar. Mas não proponho um desmonte como o de Collor, e sim um fade out/fade in, uma estratégia de transição que não cause nenhuma interrupção abrupta. Você poderia falar um pouco sobre a relação entre cultura e BRICs e entre ecologia e cultura? Minha reflexão sobre BRICs está muito ligada a meu trabalho de atitude de marca. Existem, como se sabe, algumas empresas internacionais na área de comunicação muito interessadas no Brasil, em função da posição que ele ocupa entre as economias emergentes. Inclusive, estou envolvido com a possibilidade de internacionalizar as metodologias de atitude de marca que mencionei por intermédio de algumas agências internacionais. Pensando pelo ponto de vista da cultura, das oportunidades e do intercâmbio, vejo uma grande distância cultural entre o Brasil e os demais países de economias emergentes. Mas esse conceito de BRICs tem um eixo estritamente histórico e econômico. O que de fato está ocorrendo é que o BRIC é um conceito criado pelo mundo economicamente desenvolvido a partir do olhar deste sobre as economias emergentes. É uma invenção das principais economias do mundo. Existe um trânsito político e econômico que está começando a se estabelecer, mas ele ainda não é cultural. Não sei como trocaremos com essas economias emergentes. Trocamos tão pouco com os demais países da América Latina, e decorremos todos do mesmo processo colonizante. De todo modo, creio que essa questão passe por uma minuciosa reavaliação do papel da cultura na nossa sociedade e no Estado. 21


22


Ruy Cezar Criador da Rede Latinoamericana de Produtores Culturais e da casa Via Magia.

Como começou a sua relação com a cultura e a política? Na verdade a cultura foi me levando para a política. Eu sou uma pessoa da fazenda, da região rural da Bahia, e estudei num colégio agrícola muito repressor, onde me formei como técnico em agropecuária e comecei a fazer teatro e um jornal. Era um colégio ligado a CEPLAC, que era o plano de recuperação da lavoura cacaueira, ligado ao governo federal. Então, tinha um nível de repressão muito grande, e aí o jornal foi apreendido e a peça foi proibida. Desde muito jovem eu sentia essa necessidade de expressão, mas não tinha contato com nenhum movimento político. Isso só aconteceu depois, quando fui estudar jornalismo em Salvador e encontrei a universidade invadida pelo Exército, nos meados da década de 1970. E aí, novamente, fizemos um jornal, que foi apreendido, e eu fui preso. Quando fazia militância nos grupos de teatro e me apresentava nas assembleias na Universidade Federal da Bahia, eu passava em sala de aula fazendo cenas, fazia teatro invisível dentro dos ônibus, na periferia de Salvador. Nós nos apresentamos muito na periferia, discutindo a situação da mulher, a violência contra a mulher. Eu fazia sempre um teatro muito político, e isso me levou à presidência do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal da Bahia. Depois cheguei à presidência da UNE, no fim dos anos 70. Eu coordenei o congresso de Salvador, e foi 23


bastante difícil, foram lançadas bombas, teve várias situações de risco em que tive que intervir. A polícia cercou as estradas, e nós alojamos os estudantes nas casas das pessoas, foi uma situação bastante complicada. Eu tinha dito que coordenaria o congresso e depois iria embora, mas quando terminou, havia um apelo generalizado para que eu assumisse a presidência da UNE. E eu assumi já prometendo que sairia, que não ficaria na política, embora fosse muito sedutor. Havia pesquisas sendo feitas no Rio, na Bahia, em São Paulo, que apontavam que eu seria um candidato a deputado eleito por votação recorde, porque havia uma cobertura da mídia sobre as ações da UNE, e eu tinha sido capa de revistas, sempre estava em manchetes na Folha, no Jornal do Brasil e na televisão. Então, havia a perspectiva de que essa liderança fosse aproveitada. Mas eu não tinha esse interesse, e minha saída foi um momento de bastante conflito. Quando deixei a política estudantil, voltei à mídia, inclusive às capas de revistas, fazendo uma peça de teatro, onde eu representava vários papéis. Isso gerou uma polêmica no Brasil inteiro. A capa da IstoÉ falava em “Profeta do Desbunde”, com a minha foto na capa, já o Jornal do Brasil publicou: “Ruy Cezar desencaminha a juventude brasileira”. Por quê? O que tinha na peça? A peça era um cordel, e tinha vários papéis, um deles era o de um travesti. Eu já fiz outros papéis femininos em outros espetáculos, mas nesse era uma coisa bem escrachada, e o presidente da UNE não podia aparecer de minissaia, peruca de ráfia e uma bolsa no palco. Então foi um escândalo, uma confusão danada. A mídia nacional entrou pesado, foi um negócio feio, muita discussão, questões sobre política de comportamento, a questão do corpo, quem está transando com quem, a discussão sobre liberdade de orientação sexual, drogas. Eu dizia que tudo era válido, dei entrevistas defendendo que as pessoas tinham que ser quem elas eram, e também defendi o uso da maconha. Mas dentro dessa política, isso não podia ser dito, as pessoas não falavam publicamente sobre essas coisas, nem apareciam de minissaia nas revistas, então foi um negócio muito sério. Eu era muito jovem, não sabia a dimensão que isso tinha. Então, a minha entrada na política foi retumbante, com capas de revistas, e a saída foi apoteótica, também com capas de revistas. Depois encerrei essa fase e voltei ao ativismo na área da cultura. Eu sabia que não ia mais assumir nenhum cargo político e que também não ia militar em partidos.

24


Conte um pouco desse ativismo na área de cultura. Nesse retorno eu fundei, em São Paulo, um grupo de teatro, que até hoje dá nome à instituição que eu dirijo, Via Magia de Teatro. Em 1984 me mudei para Salvador e me instalei lá, em um espaço de uns quatro mil metros quadrados, onde estamos até hoje. O projeto cresceu muito, e o lugar tem até um circo, que chamamos de Teatro de Pano. Através do teatro montamos também um espaço de arte e educação, que reúne hoje cerca de 300 crianças, e mais 80 jovens, que estudam música, circo, teatro, dança, artes visuais. No final dos anos 80, eu buscava internacionalizar esse movimento, e já havia um certo desencanto com o teatro político, com militância, com ativismo, e uma sedução pela sociedade de consumo, pela coisa do livre mercado. Além do movimento teatral estar mais profissionalizado, cada vez mais dedicado às comédias e à música, especialmente a baiana, alcançando um patamar comercial mais forte. Então, isso me fazia querer buscar caminhos, parceiros, e foi aí que nós começamos a ideia de montar redes, e de buscar parceiros na América Latina para trocar ideias e fazer circular os espetáculos. Queríamos trocas intelectuais, experiências de colaboração, que não estavam acontecendo ou sendo favorecidas por governos, ou mesmo por outras instituições. Tínhamos o Instituto Goethe, a Aliança Francesa, mas na América Latina não tinha como circular, não conhecíamos nada. E essa busca, esse sonho de estabelecer uma troca com a América Latina, vinha mesmo dessa nossa origem no movimento de esquerda. Quem estava com você nesse começo? Estavam o Teatro Espaço de Paraty, Marcos Caetano Ribas e Rachel Ribas, que foram fundamentais nesse processo, o Yacoff Sarkovas, que já aparecia com uma cabeça interessante, pensando, jogando embriões de uma questão que hoje a gente discute como sendo a da economia da cultura, e desenvolvendo todo esse trabalho da comunicação por atitude. Estavam também alguns grupos de artistas da Argentina, no caso, Alberto Félix Alberto, que é um diretor de teatro muito controverso e que hoje também dirige um centro cultural. E pessoas de outros países, como o Octavio Arbelaez, da Colômbia, que dirige vários festivais, artistas e intelectuais de Cuba, do Chile, do Uruguai, de Córdoba. Essa rede teve muito sucesso nos anos 90 e se expandiu para outros continentes, passou a se relacionar com outras redes muito importantes, como a NPN, que é uma rede de teatro e dança dos Estados Unidos, 25


o ITM, que é uma rede europeia também de artes cênicas. Hoje nós somos da diretoria executiva do fórum europeu de festivais, o European Forum, que congrega os 120 maiores festivais da Europa e forma uma das maiores e mais interessante redes de distribuição de artistas independentes do mundo hoje. Então estavam comigo pessoas com essa cabeça, à procura de movimentos novos, apostando nos processos, na inovação, na juventude, no risco, não só no sucesso. Fale um pouco sobre como funciona a rede latino-americana, presencialmente e via web, e o que é o Mercado Cultural. A rede latino-americana está numa situação bem diferente da qual estava nos anos 90, quando havia financiamento da Fundação Rockfeller. Em 2001, com o episódio das torres gêmeas, houve um corte violento dos recursos, principalmente das fundações americanas, e a rede sofreu muito. Mas ela tem associados em todos os países da América Latina, funciona muito através do trabalho virtual de informação contínua, de suporte mútuo, e é totalmente horizontal. Então, quando nós enviamos uma pessoa a um país, sempre tem alguém da rede para receber, para indicar os grupos, para abrir caminhos. E quando nós escolhemos um grupo para trazer, sempre tem alguém da rede fazendo a gestão de passagens e de auxílio governamental ou privado, para esse grupo poder chegar. Então eu diria que 50% do que nós fazemos envolve dinheiro, e 50% envolve articulação. Talvez o percentual da articulação seja até maior. Eu troco cerca de 200 e-mails por dia, e a grande maioria é sugestão de grupo, de pessoas querendo saber quem está fazendo coisas interessantes no Peru, na Bolívia. A internet ajudou muito a gerir essas redes? Quando nós nos reunimos o telefone era muito caro, então tínhamos esse problema. Em 1992, alguém me apresentou o fax, e passamos a usar. Eu não acreditei que o papel entrava de um lado, passava pelo fio e saía do outro. E em 1995, quando nós estávamos a todo vapor com o fax, alguém falou da internet. Mas era muito complicado, tudo muito analógico, e nós não tínhamos computadores. Então fomos a uma fundação americana chamada AT&T, de telefonia, e conseguimos uma doação. Colocamos computadores em todos os associados da rede da América Latina, com modem. Nessa época já existiam cerca de 60 associados, e o Caribe já estava plugado. E o que começou a 26


acontecer é que nos encontros presenciais, que no início da rede eram feitos com 10, 20 pessoas, passaram a ir delegações da Europa, dos Estados Unidos, da Ásia, para ver a produção das regiões que a gente estava apresentando. Então os encontros passaram a ficar entupidos de gente, e as apresentações regionais, compostas de vídeos de três minutos para cada espetáculo, tiveram que ser comprimidas, porque não dava mais tanta gente. Os que vinham de fora não queriam só ver, queriam também mostrar, então surgiu a ideia do Mercado como um ponto de encontro, onde nós pudéssemos mostrar ao vivo a produção brasileira, latino-americana, com um número de espetáculos razoável e sempre novos, cortando radicalmente a hipótese de artistas chamarizes. Nós enfrentamos lobbies homéricos para a entrada dos artistas, mas nunca programamos ninguém que estivesse já com inserção na mídia ou no circuito comercial. Não que tenhamos nada contra, achamos maravilhoso, mas não é para isso o projeto. Então, o Mercado veio com essa proposta, de ser um centro de discussão de ideias, um espaço de troca, promovendo a diversidade cultural, o trabalho em rede, a visibilidade para a arte independente, a distribuição sistemática da produção cultural, a valorização da produção com identidade. Nós trouxemos a questão da visão da cultura mesmo, não só a visão da arte, mas a visão do fazer cultural, da valorização das tradições, dos saberes, dos fazeres, das ideias sobre cultura. Muitos acadêmicos vieram colaborar, e participaram do Mercado, que tinha a dimensão pensamento, a dimensão intercâmbio, e três eixos de produção. Esses eixos eram sistematizar uma oferta inovadora e diferenciada, promover e dar visibilidade a quem não tem, e distribuir. A partir disso conseguimos algum impacto. O turismo, em geral,tem características predatórias com relação à cultura. Como você vê o turismo cultural, e as contradições do turismo, a partir de uma cidade como Salvador? O grande fator de atração do turismo, no mundo, é a cultura. O líder de atração turística, no mundo, é a França, e as pessoas vão pra lá por causa dos museus, dos espetáculos, da história. Da mesma forma é a Espanha, que passou a ser relevante no turismo mundial com Madri estreando 200 espetáculos por mês, e com as livrarias, a gastronomia. Já no Brasil não há relação entre turismo e cultura. Você pega um folheto de promoção do turismo do Rio Grande do Sul, e é igual a qualquer um do norte, não tem diferença. Um país com tanta diversidade, e você vê a mesma imagem da família na praia, 27


ou a pessoa sambando. Quer dizer, passa a ideia de um lazer rápido, essa é a imagem que é vendida do Brasil. Na Bahia, nenhum hotel relaciona cultura e turismo, não existe oferta de cultura nos hotéis, você não tem nenhum escaninho de teatro, de shows, cursos, museus, nada, não tem vínculo. Então, é bastante predatório o trabalho do turismo do Brasil, ele ainda não avançou. Embora tenha se usado muito o turismo em cultura. O que se apresenta nos hotéis são extratos da cultura da pior espécie, são arquétipos da capoeira, ou da dança. Eu vi, por exemplo, num encontro internacional, uma capoeira com as pessoas vestidas com maiôs das cores da bandeira da Bahia, tocando um playback, sem instrumental nenhum, e as pessoas fazendo umas danças sexualizadas. Eu acho que o turismo da experiência, de você poder envolver-se com as comunidades, é que é a chave de uma solução econômica, e de uma valorização das culturas locais, mas nós não estamos aproveitando. Temos um projeto em comunidades da Bahia em que as pessoas estão indo ajudar a construir casas, cisternas, a plantar em assentamentos. No fim do ano vamos fazer um evento lá, junto com o Mercado Cultural, e o interesse internacional é muito grande por essa forma de convivência, pela realidade local. Então, eu não penso hoje naquele tipo de turismo de esconder as mazelas, penso que seria correto conviver com essas possibilidades, porque onde tem a falta é onde está a possibilidade. Todo mundo quer passar pelo sul, pelo sudeste, pelo Rio e São Paulo, para ser aprovado. É mais fácil um artista de Pernambuco ir ao Rio do que se apresentar em Sergipe ou no Piauí, porque não há circuitos montados. Então, é nisso que estamos trabalhando agora. A inteligência não está nos centros, eles estão congestionados e gastos. As soluções estão nas periferias, são nesses desertos que elas podem surgir. Uma coisa curiosa é ver em várias cidades o mesmo tipo de artesanato, porque foram desenvolvidos em oficinas, que padronizaram. Qual a sua reflexão sobre essa inserção da cultura popular hoje, e dessas relações com o aprimoramento? Isso é um fenômeno mundial. Nas tendas de artesanias da América Latina, você vê um artesanato industrializado, padronizado. O pensamento que gerou isso foi o industrial, da quantidade para exportação, e não da originalidade. Mas o movimento da originalidade também é crescente, muita gente está 28


buscando de novo a questão das raízes. Você não pode prender a tradição num museu, não pode dizer para as pessoas das comunidades tradicionais, dos quilombolas, das aldeias indígenas, das comunidades rurais, das pequenas vilas, que elas não podem se comunicar, e também que elas não podem se apropriar. Elas têm o direito de se apropriar. E não dá para impedir que a tradição dialogue com a inovação. Provavelmente a inovação não virá do centro, e também não virá do centro a inclusão do desenvolvimento social. Um centro que se fecha à imigração, que se isola em condomínios fechados, que blinda seus carros, que vive nos apartamentos de luxo e não convive com seus vizinhos, não entende o que é sociedade. O centro está medroso, então a inovação das soluções de partilhamento, de que o planeta precisa, não virá do centro. A sua trajetória toda é traçada pela criação de possibilidades, e nesse sentido eu queria que você refletisse um pouco sobre a política cultural, sobre os papéis do Estado, da sociedade e do setor privado. Nesse momento, como você entende o papel de cada um, e onde estão as deficiências? Tem uma questão que se fala sempre, que é a do Estado ser o grande indutor, eu diria até que facilitador. Às vezes, o Estado pode também fomentar movimentos embrionários, porque ele não é um monstro congelado, tem pessoas ali. Por trás das instituições estão as pessoas, e elas podem ajudar a implementar políticas. O erro em que o Estado pode incorrer é o de querer protagonizar demais, e prender demais. É o erro da vaidade, das pessoas que querem ser os autores, os protagonistas. Isso em qualquer instituição, não só no Estado. As empresas estão cometendo erros seríssimos, extremamente graves, no Brasil, porque o valor da cultura é da cultura, não é o do dinheiro, nem do patrocínio. Eu acho inadmissível que uma marca seja exibida dentro do palco. Se alguém quiser patrocinar algum projeto meu, jamais poderá colocar sua marca atrás do artista, dentro do palco, pode colocar no folheto, em um banner. Mas no palco é como colocar uma marca em uma obra de arte. Acho desagradável, uma anticomunicação, uma apropriação indevida, e uma deselegância de pessoas oriundas de áreas que não sei quais são, mas que assumem um departamento de marketing e passam a agir dessa forma violenta e agressiva. E isso acontece especialmente no Brasil, principalmente nos grandes shows de música. Você vê, por exemplo, os festivais, que estão cada vez mais se transformando nos festivais das marcas. É uma coisa impres29


sionante, porque os movimentos culturais têm identidade, têm tempo, eles se transformam, não podem ficar estagnados. Eles não podem ser apropriados por uma marca, porque, se isso acontece, eles ficam parados e presos dentro de uma janela e param de ser movimentos. Acho que há uma ignorância, porque é um luxo, é uma honra para uma empresa associar a sua marca a um movimento cultural sério, então, é melhor abrir um catálogo dizendo porque está apoiando aquilo, do que esse excesso. Quer dizer, esse excesso, no Brasil, vai precisar ser contido em algum momento, ele é extremamente predatório. E toda essa discussão da Lei Rouanet, do patrocínio, eu traria para esse lado, o da apropriação indevida do valor da cultura pelas marcas das empresas. Nisso a sociedade tem um papel importantíssimo, porque a renovação vem do que está desorganizado; nada que está estruturado renova. O conhecimento sistematizado é sobre o que já foi feito, o que a gente ensina já é passado. Para se criar, precisa de caos. Um cientista, para descobrir uma vacina, erra milhares de vezes para poder acertar. Mas hoje não se admite erro, quer-se eficiência em tudo. Então, os projetos precisam estar redondinhos, não podem ter erro, e têm que dar até resultado econômico. No entanto, em um ambiente de arte e cultura, das soluções culturais, a criação é fundamental, e para criar é preciso um pouco de desordem, de caos, de vazio, de risco, de apostar no que não está visto. A sociedade também quer parecer com as empresas, quer se enquadrar, parecer bonitinha, competente, eficiente e exata. Esses são valores da revolução industrial, que já passou. Nós estamos na era da comunicação digital, da internet, e os valores agora são o da rapidez de pensamento, da facilidade de desconstrução, da construção de novas hipóteses, novas inflexões, inclusive de discursos que não são lógicos, discursos interrompidos e associados entre si, entre linguagens diferentes. E são esses valores que podem trazer renovação. Então a sociedade precisa tomar cuidado para não assumir o jargão das empresas, as empresas precisam tomar cuidado para não se apropriarem do valor da cultura como parte do seu marketing privado, e o governo tem que ser o grande indutor, mas tomar cuidado para não querer ser o gerente. Acho que essa seria a equação. Fala um pouco sobre cultura e BRICs. A cultura é a última coisa que é considerada dentro desse símbolo, embora o BRICs comece a se fazer enquanto cultura também. Quando você monta 30


essa sigla, e ela começa a circular, um olhar começa a se projetar, e esse olhar é desejante, mas não é exatamente o olhar do desejo. Quando você olha desejando pertencer, desejando dominar, desejando participar de um jogo, você agrega valor àquele jogo, agrega valor àquele território. Se você acha que o centro cultural mundial é Nova York, e você olha desejando ir lá, ser aprovado lá, o metro quadrado da cidade fica cada vez mais caro, o tíquete de teatro, também, fica cada vez mais caro. Então está tudo congestionado, e tem artistas maravilhosos vivendo em cubículos. Ao mesmo tempo, conheço pessoas sem dinheiro nenhum, que vivem em apartamentos maravilhosos na Bahia, e que também fazem sua arte. Então, acho que a questão é saber qual o desejo dessas comunidades em relação ao movimento global. Para ter uma ideia, nós não temos trocas intelectuais ou estéticas com a China ou com a Índia. Entre o Brasil e a África, temos dois voos semanais, contra 15 para os Estados Unidos e dezenas para a Europa. Quer dizer, para trazer um artista ou um intelectual africano, tem que ir para a Europa. Às vezes, a Europa escolhe, te oferece, e você não tem direito de escolher, nem o artista de dizer se quer. Então, se não tem esse fomento das trocas diretas, dificilmente esse imaginário poderá povoar o mundo com a liberdade das novas formas de que o mundo precisa. Mas esperemos que essa sigla, BRIC, comece também a projetar esse imaginário, que as pessoas comecem, como um mantra, a puxar o que está por baixo dela, as almas, as pessoas, os anseios, as aspirações, os ritmos, os cantos, os jeitos de ser, os sonhos, os medos, as angústias, e passem a se movimentar também, e a criar interlocução. Vamos torcer para que isso aconteça. Por questões de desenvolvimento econômico e de infraestrutura, o Brasil parece que olha cada vez mais para o Pacífico, e que pode, em médio prazo, ter uma nova onda de imigrantes. Como você vê isso? É, eu acho isso bem provável. Há um movimento planetário natural e cultural, e a natureza e a cultura, de alguma forma, estão se aliando e projetando novos centros. Porque o que é hegemônico, em primeiro lugar, é uma cultura. Os Estados Unidos se tornaram hegemônicos muito pela cultura americana, os modos de vida, os modos de consumo, as lojas de vestir, o seu cinema, os seus modos de comer, a língua. Então, eu penso que a gente tem que apreciar e admirar esses movimentos do planeta, essas inversões de lógica, que eu acho que são da natureza da cultura.

31


32


Thomas Farkas Cineasta e fotógrafo.

Como era a revista da Fotoptica? A revista Fotoptica nasceu comigo. Nós começamos a fazer porque era um meio de promover a fotografia e promover a firma. Durante muitos anos, nós fizemos a revista como uma espécie de propaganda da Fotoptica. Fizemos cento e tantos números. Tenho tudo arquivado. Era mensal, se não me engano, e era uma coisa muito interessante e muito produtiva. A revista era muito universal, dada à fotografia, ao cinema, e ótica, que era com o que nós trabalhávamos. E a sua ida para o cinema, como foi? Desde pequeno que eu mexo com fotografia e cinema. Desde os nove, dez anos, eu mexo com fotografia, e o cinema entrou logo, porque como a Fotoptica tinha equipamento, eu comecei a filmar e revelar. Visitei vários lugares, fazia reportagens, era uma coisa muito pessoal. A fotografia nunca foi, para mim, tão importante quanto o cinema. Como surgiu a Caravana Farkas? Com a Caravana Farkas a gente corria o Brasil inteiro. Eu tinha uma pickup Chevrolet C-14 com uma plataforma em cima, da qual a gente filmava, 33


fotografava e fazia uma espécie de cobertura interessante sobre o país, as pessoas, os costumes e os usos. Isso do ponto de vista cultural, econômico e físico. Eu me interessava muito pelo Brasil. A minha vontade era fazer coisas sobre o Brasil, saber como era o Brasil por cima, por baixo, pelo interior. Era essa a minha preocupação. Eu tinha idealizado documentar o país. E era uma preocupação política. Nessa época, todo mundo tinha uma preocupação política na vida. Então, os filmes tinham viés político, de estudar o que acontecia nos lugares e de como as coisas aconteciam. Daí é que veio essa questão toda do projeto cultural. Era um projeto que a gente fazia a partir da C-14, do carro em que viajávamos, e nós, lá dentro, reportávamos e registrávamos as coisas, de modo que era um registro que resultou em trinta e tantos filmes. E nossos filmes até hoje são projetados em escolas. Como você juntou as pessoas que trabalharam na Caravana Farkas? Eram três ou quatro pessoas que trabalhavam juntas. Tinha o motorista do carro, que, geralmente, fazia o som, eu fazia a direção, tinha um fotógrafo, mais uma outra pessoa que ajudava no som. Nós revezávamos os trabalhos. Como foi possibilitar o Afonso Beato e o Maurice Capovilla, que você conheceu muito bem, a fazer parte desse projeto todo? O projeto alcançava muita gente. Para cada lugar que a gente ia, levávamos alguém. Se fosse no Nordeste, levava alguém de lá. Então, a gente trabalhava com muita gente, tinha muitos colaboradores. O diretor da brincadeira era eu, eu que manobrava as coisas, mas não dirigia todos os filmes, só alguns. Então, Capô, esse pessoal todo, de que você falou, veio trabalhar conosco naquela época. O senhor lembra de algum evento interessante? Uma viagem pelo Brasil, naquela época, devia ser cheia de aventuras incríveis. Não tinha muita aventura incrível, mas tinha o conhecimento do Brasil, que era uma coisa muito interessante. E conhecer o Brasil já era o princípio da coisa, saber como é o Brasil do norte, como é o Brasil do sul, como é que eu posso ilustrar isso, como eu posso fazer os filmes. O que acontecia é que o carro quebrava muitas vezes, a filmadora também. Tinha problema de iluminação. Então, a gente fazia as coisas conforme a possibilidade. Tinha vários momentos de trabalho e cada trabalho, era feito por uma equipe diferente, 34


mas eu sempre ficava atrás de tudo, porque a ideia era minha. Trabalhavam três ou quatro pessoas, não mais. Eu falo que é muita gente porque eu achava que era muito. E como foi a escolha dos lugares? Nós tivemos a assessoria de um professor de geografia humana, então havia uma espécie de preparação sobre o que acontecia em cada lugar. Nunca fui para nenhum lugar sem uma assessoria, sem uma prévia feita por esse geógrafo. Daí, tinha essas várias propostas. Você ia na C-14 pelo Brasil inteiro, desde Norte e Nordeste até o Sul. Tínhamos essa mobilidade, e filmávamos desde a geografia física até geografia humana, que era a coisa mais interessante que havia. Portanto, eram os costumes e os usos do Brasil. Eu fui atrás disso, e daí nasceram os trinta e tantos filmes que nós fizemos. Quem financiou esses filmes? Como se conseguiu dinheiro para fazer isso tudo? Ah, do meu bolso. Não era uma época de coisas caras, então eu podia financiar do meu bolso. Pegava o dinheiro que eu tirava da Fotoptica e aplicava nisso, mas era muito pouco dinheiro em relação ao que se gasta hoje. Depois, eram quase todos amigos, era muito mais uma questão entre família, entre amigos, do que profissional. Da Caravana até agora, o Brasil mudou muito? Eu acho que sim. O Brasil teve um progresso muito interessante, muito sensível. A nossa proposta era de estudar o Brasil, de correr o Brasil e de documentar as diversas fases, por isso fizemos tantos filmes. Eu desconfiava o que era o Brasil, mas não tinha certeza. Então, nós fomos atrás dessa minha desconfiança e atrás do que esse professor de geografia ia nos ensinando, mas não fomos fazer só isso. Em vez de fazer um filme, fazíamos dois ou três. Os filmes eram curtos, de modo que você tinha essa possibilidade, mas sem uma obrigação, porque o dinheiro era meu, e eu não devia nada a ninguém, só a mim mesmo. Aí eu conseguia os resultados que me interessavam. A gente tinha a possibilidade de fazer essas coisas porque eu conseguia filme barato da Kodak, a revelação eu fazia lá perto, então isso tudo era possível. E não tínhamos muitas despesas, éramos eu e mais três, de modo que não era uma coisa industrial, não era nada disso. Era uma coisa muito amadora. 35


Você teve vontade, em algum momento da sua vida, de refazer a Caravana? Já me foi proposto fazer novamente, mas eu acho que não é mais a minha época. Agora são outros que estão fazendo. Todo mundo está fazendo, essa documentação brasileira continua com outras pessoas, e a gente está vendo por aí os filmes que estão sendo feitos. De onde surgiu essa preocupação em desvendar o Brasil? Essa preocupação vem da minha cabeça. Eu é que achei que devia fazer isso, porque me interessava. Eu me interessei muito pelo Brasil, e a gente tinha isso como modelo de vida. Interessar-se pelo país em que você vive é uma coisa maravilhosa, e isso deu um resultado muito satisfatório. Todos os filmes que eu fiz me satisfazem muito. Enquanto você fazia os filmes, como você imaginava que seria a repercussão deles? Como nós tínhamos uma investida pessoal, eu esperava que resultasse numa coisa importante, como resultou. Então, eu tentei botar toda a minha experiência, dinheiro, tempo, toda a minha vida, para fazer esses filmes. Nosso projeto resultou em vinte, trinta filmes, em vez dos dois ou três que a gente pretendia fazer. E isso me proporcionou uma satisfação pessoal muito grande, que era o que eu procurava. Como foi filmar Pixinguinha? Ah, o Pixinguinha foi uma coisa minha, porque eu adorava a música brasileira regional, e, nessa época, não tinha muito material, muitos filmes sobre isso. E o Pixinguinha foi o ideal, porque era uma figura visível, uma figura maravilhosa, e era interessante ter uma documentação sobre ele. Tanto que resultou num filme bastante bom. Conta um pouco sobre a Galeria Fotoptica. A Galeria Fotoptica era o ponto onde a gente ficava, e a Fotoptica era o lugar central de onde nós saíamos. A Fotoptica era, basicamente, a base de tudo, base de operação e de dinheiro também. Então, a coisa veio de lá. Eu consegui que me dessem filme mais barato, e que a revelação fosse mais barata. Eu era profissional do ramo, então sabia como é que fazia para conseguir filme mais barato e revelação mais barata e bem feita. Nós conseguimos muita coisa, basicamente, sem gastar dinheiro. 36


Uma coisa sobre o trabalho de vocês é que os filmes são críticos, mas não são violentos. São filmes de registros, de modas, de descobertas. Essa é uma opção política? Isso é coisa minha, de explorar isso politicamente, mas eu não usava esse termo. Eu explorava todas as coisas que aconteciam em torno das regiões que visitávamos. Então, a gente fazia tudo que fosse possível. Quando chegava num lugar, a gente sentava e falava com as pessoas importantes, mostrava o que era cinema, a máquina, punha o microfone na feira para gravar o que eles estavam falando, mas tudo explicado. Não havia mistério, nem havia segredo. A gente explicava que ia gravar, que ia colocar o microfone para ouvir o que eles estavam conversando na feira. E isso era uma coisa muito natural. A gente perguntava para eles também o que tinha por perto, o que eles achavam que era interessante. Era uma aventura muito aberta. E você tinha vontade de voltar e mostrar para essas pessoas o que você filmou? Não, porque não dava para voltar: eram muitos lugares. Nós só projetávamos esses filmes nas escolas e nas universidades, não voltávamos aos lugares onde eram filmados. Era impossível, era muito longe. Não mostrei para as pessoas filmadas, mas mostrei para as escolas, que eu achava um ponto interessante, um lugar interessante para difundir essas coisas. Fale sobre a ideia que você e o Paulo Gil tinham de filmar o Francisco Julião, em Pernambuco... O Julião era uma figura pernambucana muito importante na época, por causa da revolução que havia, mas nós não filmamos o Julião, infelizmente. Nós filmamos as ideias dele, e aquilo que ele conversava, que ele distribuía. Você falou que a Caravana toda foi movida por um sentimento pessoal, que você tinha uma ideia do que era o Brasil, e queria ir atrás. Então, o que você descobriu sobre o Brasil? O Brasil era um desconhecido conhecido. Quer dizer, não era uma coisa que a gente não conhecia, mas era uma coisa que a gente conhecia mais de ouvir falar e de ouvir contar. Então, havia essa possibilidade de explorar o que a gente ouvia, e de contar o que achávamos que era interessante. Nós tínhamos algumas pessoas que nos contavam o que havia nas regiões, mas 37


as descobertas das coisas eram nossas. A gente trocava muita ideia, discutia muito. Era sempre uma construção coletiva. Você ajudou muita gente, muitos fotógrafos, não foi? Só os que trabalhavam conosco. Era o pessoal que trabalhava conosco, que recebia apenas o salário mínimo, mas recebia um salário. Ninguém trabalhou de graça. Como era feita a distribuição dos filmes da Caravana? Bom, não havia uma distribuição comercial, porque não havia comercialização possível. É verdade que nós conseguimos ampliar alguns filmes para passar em 35 mm, mas também não deu lucro nenhum, não houve nenhuma possibilidade comercial. O que nós tivemos de alegria foi a possibilidade de projetar nas universidades. Como era a recepção nas universidades? Ah, era muito boa, porque a gente já vinha com a fama boa. E tínhamos o equipamento para projetar, já tinha tudo pronto. A gente ia para o Nordeste, para o Sul, para o Sudeste, não só filmar, mas também promover aquilo que estávamos fazendo. Isso era muito importante. E as discussões oriundas dessas exibições, como eram? Eram universidades: as perguntas eram de alto nível, então era possível conversar. Passávamos os filmes e perguntávamos o que eles tinham achado. Aí, vinham as perguntas, e eram muito importantes porque eram perguntas sobre o material, e sobre como eram feitos os filmes, como aconteciam as coisas. De modo que, nas exibições, eu falava bastante e contava como é que as coisas iam acontecendo. Caravana Farkas foi um nome dado antes ou depois? Não lembro de quem deu esse nome agora, mas o pessoal sabe. Eu não chamava de minha caravana, até que uma hora apareceu esse nome, Caravana Farkas. Enquanto estava acontecendo eu não chamava de nada. Depois é que começaram a chamar assim, porque foi um acontecimento muito importante no cinema. Esse tipo de cinema ninguém fazia naquele tempo, só eu. 38


Havia o interesse de intelectuais, como Mário de Andrade, por exemplo, na cultura brasileira tradicional, mas não no cinema, não é? Não, mas a gente aproveitou tudo que tinha, tudo que havia sobre o Brasil. Nossa viagem tinha mais de aprendizado do que de exploração, quer dizer, era muito mais de aprendizado nosso, de passar isso para filme, do que uma exploração sem fins. Thomas, muita coisa do Brasil, do nosso registro, se perdeu. Como foi preservar esse material todo? Eu tinha cuidado. Eu sabia como as pessoas que forneciam os filmes os guardavam, como é que copiavam, como eram arquivados na cinemateca. Não era científico, mas era profissional. Onde você guardou esses materiais? Num laboratório da Fotoptica. Agora está na Cinemateca de São Paulo. Naquele tempo, não tinha uma cinemateca bem desenvolvida, então a gente guardava na Fotoptica, mas bem guardadinho, em latas, tudo. Quando a Cinemateca abriu, foi tudo para lá. A Cinemateca foi muito importante para nós. Você lembra do Paulo Emílio Sales Gomes? Foi meu colega. Nós trabalhamos juntos. A gente o consultava muito. Em alguns filmes ele ajudou muito, então era uma pessoa importante. E era muito interessante, muito dedicado. Ele tinha um ótimo senso de humor, era uma pessoa muito legal, uma pessoa com quem a gente se dava bem. Ele tinha uma coisa bem positiva. Depois da Caravana, como você continuou ligado ao cinema? Continuei ligado ao cinema porque eu tinha equipamento, tinha esses filmes todos que eu explorei. Eu continuei mostrando os filmes e, mostrando os filmes, eu participava, discutindo sobre eles com o público.

39


40


Fernando Faro Produtor musical e criador do programa Ensaio, da TV Cultura.

Faro, conte um pouco da sua história. Acho que eu sou um metido. Eu nasci em Aracaju e fui para Laranjeiras, onde morava minha família. Rua Direita, número 8. Comecei trabalhando em um jornal comunista da época, chamado Notícias de Hoje, e em outro chamado A Noite, famoso no Brasil todo. Depois fundaram o Jornal de São Paulo, onde me deram a coluna de cinema e teatro. Aí eu comecei a me interessar pela representação, pelos atores. Depois fui trabalhar na Rádio Cultura, da avenida São João. Não tinha nada a ver com a rádio estatal. Só então começou o negócio da televisão. Uma noite encontrei o Dermeval Costa Lima, que era o dono das comunicações de São Paulo, e das de um pedaço do Brasil, e ele me chamou para trabalhar no grande jornal da TV Paulista, que era presidido pelo Carlos Rezini. Após algum tempo no jornal, o Costa Lima pediu para que eu quebrasse um galho para ele, fizesse o musical da Hebe Camargo com a irmã dela. Depois disso, fiz coisas inesquecíveis para mim. Como é que foi essa transição, sair do jornalismo e ir para um programa musical? Depois de dois anos no jornal da Paulista, 1948, 1949, eu pedi demissão ao Rezini. Disse que não aguentava mais fazer aquele trabalho. Então ele 41


me deu uma carta de recomendação e mandou eu levar à Tupi. Lá me pediram para apresentar alguma coisa para a TV de Vanguarda, e fizeram um contrato experimental de dois ou três meses. Peguei O tempo e o vento, do Erico Verissimo, e adaptei um dos textos, que foi para o ar. Uns dois meses depois renovaram meu contrato por mais dois anos. A Tupi já me pôs para fazer televisão e rádio. E como surgiu o Ensaio? O Ensaio surgiu a partir de um programa que eu fiz de Natal, em que eu comecei a gravar enquanto os caras ainda estavam arrumando o cenário. Achei aquilo ótimo e pensei em fazer um programa de televisão com essa linguagem. De repente, eu comecei a achar bom, bonito o erro, o cara dizer que se enganou, que não era aquilo que queria dizer, desafinar e pedir para repetir. Eu pensava nesse negócio do erro o tempo todo. E também, o plano geral não identifica ninguém, então eu passei a usar essa coisa mais próxima, close-ups. Como o programa foi recebido? Alguns caras não gostavam. Outros achavam muito legal. Os convidados divergiam. A sua relação com a música já vinha de antes da TV? Você ouvia muita música? Ah, essa relação surgiu na Tupi, quando o Cassiano me pediu para fazer um programa no domingo ao meio-dia, chamado Hora de Bossa, que era um programa só com o pessoal da bossa nova. Tinha até o Geraldo Vandré, Alaíde Costa, Pery Ribeiro, esse pessoal. Como se faz uma boa entrevista? Qual a mágica que você faz quando alguém não tem nada para dizer, por exemplo. É só começar. Tem uma coisa tátil, de tocar na pessoa, que aproxima. Não pode ter aquela postura contida, oficial. O Ensaio para você foi a concretização desses momentos afetivos, de segurar na mão? Não é que foi a concretização, é que o ensaio é isso, a conversa que eu tenho com eles antes. Quer dizer, antes de chegar nesse momento. 42


É mais fácil entrevistar alguém que você conhece muito ou alguém que você está descobrindo? Ah, tanto faz. Para que serve uma entrevista? Ah, para conhecimento, para a gente conhecer as pessoas, para a gente saber do mundo, da alma. Acho muito importante isso, conhecer. Conhecer a alma, conhecer o mundo através das pessoas. Você construiu uma trajetória ímpar ligada à televisão, à produção de disco. Naquele momento, como era para você fazer cultura na TV? Eu vejo o artista como um ser humano, e é isso que eu tenho a intenção de pegar dele, essa coisa humana. Do ponto de vista musical, o Ensaio é como se fosse um horizonte, onde cabe Tonico e Tinoco, Hermeto, Chico, Caetano, Gil. É essa coisa diversificada. É assim que eu vejo a música brasileira, variada, múltipla. Como é que você vê hoje o papel de programas musicais na televisão? Eles resistem só na TV pública? É o espaço que hoje se consegue falar sobre música? Não. A Globo, por exemplo, está fazendo um programa que se chama Por toda minha vida, que é o interesse pelo artista, pela figura, pela vida. Mais pela música do que pela vida. Quais perspectivas você vê para a programação musical na televisão? Como você acha que vai ser daqui para frente? E como você gostaria que fosse? Eu gostaria que tivesse mais vida. Eu lembro dum cara dadaísta que tem um poema que diz assim: “as coisas passam, resta a vida”. Então isso é o que eu vejo. Os dadaístas faziam aqueles congressos, aquelas reuniões nos bares, e terminavam sempre assim: “Abaixo dadá. Viva a vida.” Os documentários estão voltando a ter força, é a procura da vida. Boa parte desse trabalho que você faz, dessa sua produção, depende de uma equipe. Como é a sua relação com a equipe? O que você atribui a ela dessa obra sua? 43


Ah, eu acho que a equipe é tudo. Hoje, por exemplo, quando eu vou fazer um programa, os canais já sabem como eu gosto. Os iluminadores já sabem a luz que eu quero. Então eu acho que a equipe é o miolo da coisa. Em relação à produção cultural no Brasil, muito se discute sobre o peso das verbas que as empresas, o ministério, os governos, as prefeituras colocam. Em relação à sua trajetória, como foi a questão do recurso? No comecinho, não tinha recurso. Eu lembro que fazia luz com panela, papelão. Teve um tempo em que, para todo artista que vinha, eu dava o equivalente a R$ 1 mil. Era o que tinha. Quando o Chico Buarque veio, não tinha violão, trouxe meu violão de casa para ele. E ele gostou tanto do violão que quis ficar com ele. Só um ano depois que eu peguei de volta. Mas não lembro de ter patrocínio. No começo da década de 1980, você faz o Calunga, que é um projeto de shows em Angola, fora da TV. Como foi essa história? O Chico me chamou para dirigir um show dele em Luanda, mas eu achava um desperdício fazer um show só dele lá, já que o investimento era muito alto. Achava que devíamos reunir mais pessoas e fazer um show de artistas do Brasil solidários com os angolanos em Luanda, que libertaram a cidade. Então resolvemos fazer esse projeto, e chamamos de Calunga, que é a boneca do maracatu, que vai passando pelo pessoal do bloco para energizar. Como foi a recepção angolana aos artistas brasileiros? Ah, eu achei fantástico. Achei o povo caloroso, entusiasmado. Eu lembro que escolhi o lugar porque era perto de um musseque, que é favela, e a gente podia chamar atenção para a favela. E lembro também que achava importante que os artistas angolanos e de outros países vissem o show e pudessem recomendar, até que chegou um cara e disse que quem recomendava espetáculo era o povo. Achei ótimo. Nesse primeiro espetáculo, teve um problema sério, tinha uma porção de gente que tocava piano, e não tinha piano lá. Tiveram que descobrir um piano não sei onde. O espetáculo começava com a Elba Ramalho, que fazia uma música do Elomar como se fosse cega. Depois ela dizia: “Meu nome é Elba Ramalho, eu sou da Paraíba”.

44


É mais fácil produzir um programa de música hoje, com os avanços tecnológicos, equipamentos mil e tudo o mais? Que recursos você tinha naquela época? Naquela época, tinha um microfone para o baixo, um para a bateria, um para o cantor, um para o violão. E hoje você tem mesas com canais de som para essas coisas todas. Mas esse aparato todo interfere na sensibilidade do artista? Eu acho que não interfere. Esse monte de coisas é para que você veja por trás, o sangue, a vida. Como é que você percebe o Brasil? Eu acho uma terra legal. Se eu tivesse que escolher um país para nascer, escolheria o Brasil. E Laranjeiras, que eu digo sempre que é a comoção da minha vida. Como diz o Mário de Andrade falando de São Paulo, eu falo de Laranjeiras, comoção da minha vida.

45


46


Luiz Carlos Barreto Cineasta, fotógrafo e produtor de cinema.

Como você começou a trabalhar com fotografia? Eu trabalhei como repórter de redação n’O Cruzeiro nos anos 1950, e era quase uma regra que fotógrafos e repórteres formassem uma dupla. Havia Jean Manzon e David Nasser, a dupla mais famosa. Em São Paulo, tínhamos Henri Ballot e Jorge Ferreira, José Medeiros e José Leal, e eu fiz dupla com Indalécio Wanderlei. No meio do caminho, um companheiro e conterrâneo meu, Luciano Carneiro, que era repórter, fotógrafo e paraquedista, veio para o Rio de Janeiro e também virou repórter d’O Cruzeiro. Repórter fotográfico. Surgiu então o repórter sem dupla, e isso começou a virar moda, uma nova vertente. Essa nova coisa do repórter fotográfico fez com que as duplas se desmanchassem. Esteticamente mudou tudo. Nós passamos a usar a Leica, que era uma máquina proibida. Antes só usávamos a Speed Graphic, ou a Rolleiflex. Nós fundamos outra escola e adotamos a Leica. Houve uma briga muito grande para isso prevalecer. Passei a gostar muito mais de fotografar do que de fazer texto, e virei fotógrafo. Como fotógrafo de cinema, você fez o Vidas secas e o Terra em transe. Exato. Só fiz dois filmes. O Vidas secas aconteceu de forma engraçada. Quando eu fui à Bahia, o Genaro Carvalho, que é um artista plástico baiano, me 47


levou para ver as filmagens do Barravento. “Ah, tem um garoto aqui, na Bahia, genial, uma pessoa fantástica. Você precisa dar um pouco de cobertura a ele n’O Cruzeiro. É um rapaz muito talentoso e está filmando em Buraquinho.” E fui para lá com o Genaro e conheci o Glauber Rocha. Era o primeiro longa dele. Ele estava fazendo uma cena com a Luiza Maranhão e o Antônio Pitanga. Fiquei ali fotografando, e, no intervalo, o Genaro me apresentou o Glauber, e em dez minutos parecia que éramos amigos de infância. Ele largou um pouco a filmagem, saímos passeando pela praia e ele me falando do cinema brasileiro. Depois ele veio para o Rio, para montar o filme, e ficou morando lá em casa. Eu morava numa casa grande em Botafogo. Eu já conhecia o Nelson Pereira dos Santos, e o Glauber falou: “Ah, o Nelson vai fazer o Vidas secas, e eu queria chamar você para fazer a fotografia, porque a fotografia, no Brasil, está muito careta nos filmes, está tudo mal fotografado, o filme da Vera Cruz imitando Hollywood. E você é um fotógrafo moderno.” Eu falei: “Mas, Glauber, eu nunca fiz fotografia de cinema, nem é o meu projeto fazer fotografia para cinema.” E ele foi incisivo: “Você vai fotografar o Vidas secas.” Chamou o Nelson, disse que eu faria o filme. E eu falei: “Olha, eu não sei fotografar para cinema. Eu sei fotografar para jornalismo; eu vou fotografar como eu faço. Eu não sei usar esse negócio de filtro, essas tecnologias aí de rebater luz, refletor. Eu não gosto desse negócio. Eu gosto de fotografia com luz existente.” E o Nelson topou: “É isso mesmo! Vamos acabar com esse negócio, essas tralhas aí. Vamos fazer uma fotografia só com a luz do sol.” Fomos para Alagoas fazer o Vidas secas, como eu tinha proposto, com uma fotografia despojada de artifícios, e deu certo. Então, o Glauber me pediu para fotografar Terra em transe da mesma maneira. Ele queria que o Terra em transe se passasse num país imaginário. Portanto, não podia identificar muito as paisagens, tinha que ter uma certa superexposição, para driblar a censura da ditadura. Mas, logo em seguida ao Terra em transe, veio o problema de organizar uma empresa de distribuição, e passei a me ocupar mais com o lado da produção e distribuição e larguei a carreira de fotógrafo de cinema. Fiquei nesses dois filmes. Não me arrisquei mais. Foi bom, porque os dois filmes são considerados, não por causa da fotografia, mas por causa do conteúdo. A revista inglesa Sight and Sound fez uma enquete, nos anos 60, que perguntava quais os cem filmes do mundo que deveriam ser preservados de um bombardeio atômico. E, dos cem filmes, os dois brasileiros eram Terra em transe e Vidas secas. Por ironia do destino, o negativo do Terra em transe pegou fogo num laboratório na Bélgica. 48


Esse trabalho anterior, da parte criativa e de elaboração, ajuda no processo como produtor, ajuda a saber como pensa o criador? É importante o produtor saber da parte criativa? Claro. Tem uma frase do Nelson Pereira interessante, que diz o seguinte: “Produtor, no Brasil, passou a ser sinônimo de cara que financia o filme, o cara que assina cheque.” Não é isso, não assina nada. Como diz o Nelson: “Quem assina cheque é o gerente, é o contador, é o administrador.” Produtor, pela lei do direito autoral, é reconhecido como um coautor. Ele tem que ter uma atuação quase de alter ego do diretor. Tem que ser uma pessoa que lê, discute o roteiro, participa da elaboração do roteiro, colabora com o diretor na formatação e na conceituação do filme. Não é um cara que fica só cuidando do dinheiro. O produtor tem que ser equipado para exercer essa função, sem querer coagir o diretor, usando a prerrogativa de ter a gestão financeira do filme para limitar a criatividade. Ele tem que ser um parceiro do diretor. O grande barato do cinema é isso. O produtor não é a pessoa que manda. Isso já acabou. Mesmo em Hollywood não existe mais isso. Você declarou que o Brasil tinha muito diretor para pouco produtor. Isso mudou? Não, não mudou. Está começando a mudar um pouquinho. Uma vez, o Bernardo Bertolucci veio ao Brasil, nos anos 1970, e marcamos um almoço na minha casa. Eu morava em frente ao Fluminense e tinha um jogo no Maracanã, era um Fla x Flu, se não me engano, e combinamos de levar o Bertolucci para ver o jogo. Reunimos a turma do Cinema Novo, tinha duas kombis para levar a gente para o Maracanã. Na hora de entrar nas Kombis, resolvendo quem vai aqui, quem vai ali, o Bertolucci olhou e disse: “Bom, o cinema brasileiro está todo aqui, mas só tem um produtor.” Aliás, o Wim Wenders escreveu um artigo no Le Monde muito bom sobre a inexistência do produtor. Era só traduzir aquele artigo e era exatamente o retrato do cinema brasileiro. Criou-se um cinema onde o diretor tinha que ser, por necessidade, produtor e diretor, e isso criou uma deturpação, porque passou a ser o diálogo dele com ele mesmo, um espelho. Isso causou uma deformação grande durante muito tempo. Está melhorando. Hoje já existem vários produtores. Sobretudo, uma coisa boa: são muitas mulheres produtoras. Nós sempre tivemos na LC Barreto uma produtora. Quem mais dialogava com os diretores era a Lucy, minha mulher, que sempre se dedicou muito ao 49


roteiro. Eu nunca tinha muito saco para ler roteiro. Hoje em dia, mais velho, eu leio roteiros. A Paula assumiu o lugar da Lucy, como produtora mesmo. Ela mergulha no filme, lê, convive com o diretor, acompanha a filmagem etc. E, como ela, existem outras: Renata Magalhães, Gláucia Camargo, Marisa Leão. A diretoria do sindicato de produtores é feita por sete mulheres, não tem nenhum homem no sindicato de produtores do Rio. Como era produzir cinema na ditadura? Eu tive uma experiência no primeiro filme em que colaborei, que foi O assalto ao trem pagador, que foi muito importante para a minha vida. Fiz o roteiro junto com o Roberto Farias e o Alinor Azevedo. Quando acabamos o roteiro, eu perguntei para o Roberto Farias: “Mas, Roberto Farias, e agora? Está pronto o roteiro. O que nós vamos fazer?” Ele falou: “Vamos procurar um produtor.” Eu falei: “Quem é esse produtor?”, e ele me respondeu: “O produtor é um cara que arranja dinheiro.” Aí eu falei: “E depois?”; “Aí tem que ter um distribuidor”. Aí eu falei: “Pô, mas esse negócio é muito encadeado, muita intermediação.” Aquilo ficou na minha cabeça. Fizemos O assalto ao trem pagador, o filme teve um resultado comercial muito bom, um resultado artístico também muito bom, mas ficou aquela sensação de que podia ter sido melhor. Lancei a ideia de fazer uma distribuidora. Comecei a entrar mais na questão de cinema, eu já estava me desligando do jornalismo, e comecei a me aprofundar. Percebi que o problema da distribuição era fundamental: a distribuidora não financiava os filmes – nos Estados Unidos, são as distribuidoras; na Europa também são as distribuidoras. E fundamos a DIFILME. Éramos 11, um grupo do Cinema Novo. Até coincidiu, porque, na época da ditadura, tinha um grupo na oposição, o Grupo dos Onze, um grupo libertário e revolucionário. Diziam que éramos financiados por Moscou: “Essa distribuidora aí recebe dinheiro de Moscou.” O famoso ouro de Moscou. Corria no meio do cinema, dos exibidores, que éramos o Grupo dos Onze financiados por Moscou, para fazer filme subversivo. Assim mesmo tocamos a distribuidora para frente. Tivemos um apoio grande do Banco Nacional de Minas Gerais – na época o José Luís Magalhães Lins era o seu presidente – e fizemos um sucesso enorme com a distribuidora. Ela consolidou o grupo. Começamos a ter capital para concluir filmes que estavam parados, de pessoas que não eram associadas à distribuidora, outros diretores como 50


Domingos de Oliveira, depois o Leon Hirszman, com o Garota de Ipanema. Todo o esquema era armado pela distribuidora. Virou uma coisa séria, até o momento em que veio uma palavra de ordem de uma parte da turma da DIFILME, de que era a hora de fazer uma distribuidora de Estado, e o Estado estava na mão da ditadura. O Brasil era governado pela ditadura. “Mas vamos fazer uma distribuidora estatal.” Era praticamente nos entregarmos na mão da ditadura. E fizemos a Embrafilme, um golpe de audácia muito grande. O Golbery ajudou? Não, isso foi antes. A Embrafilme foi criada no governo Médici, no pior período do governo militar. O ministro da Educação e Cultura era o Jarbas Passarinho, um cara oriundo do Partido Socialista do Pará, um militar intelectual. Ele tinha muito respeito pela questão cultural, pelo cinema. Apesar de o Jarbas Passarinho ter projetado uma imagem muito autoritária, na questão cinematográfica ele foi muito correto conosco. Ele dizia: “Olha, nós estamos vivendo tempos difíceis e temos que entender que é um regime autoritário”, mas ele deixou a coisa seguir caminho. A projeção internacional do Cinema Novo dificultou muito para a ditadura fazer qualquer coisa contra o cinema, porque cinema tem repercussão internacional. Essa foi a sorte. Os filmes começaram a ter muita projeção nos festivais. Então, para nós, a ditadura não foi uma coisa tão grave. Não houve uma repressão enorme em cima do cinema. É preciso ser honesto e dizer. Chegaram ao ponto de achar que tínhamos sido cooptados. Acusaram o Glauber de ter sido cooptado. Quando chegou o governo Geisel, a coisa desanuviou. O Geisel foi muito importante para o cinema brasileiro e também para a nação brasileira. Eu tenho a ousadia de dizer que me dá certo conforto quando eu vejo o Lula e o José Dirceu falarem do Geisel de uma maneira positiva. Porque ele foi um grande nacionalista. Fotografei o coronel Geisel desembarcando no Rio Grande do Sul, voltando da China, trazendo o Jango para assumir a presidência. Ele era uma espécie de “garantidor” do Jango. Houve polêmicas recentes dizendo que isso nunca aconteceu. Tenho a fotografia dele descendo do avião. E o João Goulart tinha dito ao Glauber: “Glauber, avisa para o pessoal de esquerda que o próximo presidente da República vai ser o Ernesto Geisel. Ele não deve ser hostilizado porque ele vai proceder a abertura democrática. Ele é um homem nosso e vai levar o país de novo para a democracia.” O Geisel foi muito aberto e muito corajoso no campo cultural, inclusive com oposições e ameaças do 51


setor de extrema-direita das Forças Armadas. Em uma audiência, onde estávamos eu, Nelson e Roberto Farias – e também a Beth Faria e a Sônia Braga –, ele falou com muita clareza assim: “Não se incomodem com o combate que estão fazendo a vocês, dizendo que o cinema brasileiro é um cinema só de pornografia, disso, daquilo, daquilo outro. Isso aí não me impressiona; eu sei muito bem quais são os interesses contrários à cultura brasileira que estão aí. Mas eu quero dizer a vocês o seguinte: no terreno econômico, a gente vai trazer certos recursos. Hoje, estou aqui com o coração sangrando, porque assinei um decreto, abrindo a prospecção de petróleo para empresas estrangeiras, coisa que eu jamais poderia, mas fui obrigado a fazer por questões econômicas. No campo cultural, eu não vou fazer concessões, porque a atividade cultural é a ponte que nos permitirá voltar ao que a gente é, ao que a gente quer ser.” Ele disse isso com toda tranquilidade. “Eu vou dar a vocês um exemplo concreto. Hoje, eu estou assinando aqui o crédito para a editora José Olympio, que está tecnicamente falida, e todas as análises de especialistas do BNDES são contra. E eu estou dando o financiamento para a José Olympio porque, se ela falir, esse acervo vai ser todo adquirido por uma grande editora norte-americana, que já está com a proposta feita.” Claro que tivemos muitos problemas com censura. Era difícil tirar filmes como Terra em transe e Como era gostoso o meu francês da censura. Existem passagens folclóricas da hora de luta, mas sempre conseguíamos liberar os filmes. Tanto que, quando a gente fazia mostra do Cinema Novo, na Argentina ou em Nova York, a imprensa sempre dizia: “Mas como é que um país em ditadura militar violenta, como o Brasil, consegue fazer filmes tão vigorosos assim?” Éramos muito jovens, vigorosos, tínhamos uma militância muito grande, combatíamos muito dentro da censura. Ultrapassamos. Não tivemos os mesmos problemas que o teatro e a música tiveram com a censura. Porque sempre estávamos numa posição de não nos omitir, de não ficar de vítima, e, sim, de disputar coisas. Eu tomaria muito tempo aqui, se eu fosse contar a vocês coisas de bastidores que aconteceram para liberar os filmes. Alguns autores do Cinema Marginal tiveram uma resistência muito grande à criação da Embrafilme. Tem uma série de artigos violentos, da época, sobre isso. Como foi esse período? Foi um período conturbado? Podia até ser para efeito externo, porque internamente não havia nenhuma pressão nesse sentido. O Júlio Bressane, o Andrea Tonacci, todo o pessoal do 52


Cinema Marginal não queria uma radicalização política. Era uma radicalização muito mais estética do que política. Apareciam na mídia e parecia que era uma coisa política, e não era. Os filmes do Julinho não são políticos; os do Tonacci não são políticos. Os filmes do Cinema Novo são filmes políticos. O desafio, Terra em transe, Memórias do cárcere são filmes de conteúdo político. O Cinema Marginal era mais uma coisa de querer ser o underground norte-americano, de fazer um cinema esteticamente mais despojado, mais desarrumado, uma coisa nesse sentido. E o Cinema Novo estava em busca de fazer um cinema narrativo, que se comunicasse. Não adiantava fazer um cinema político, que não se comunicava, só para ser exibido para grupos seletos de privilegiados que entendessem uma linguagem revolucionária, do ponto de vista de linguagem. Mas o Cinema Novo foi marchando, foi se dirigindo para se comunicar com o público. Foi aí que o grupo decidiu “Vamos fazer Garota de Ipanema”, do Leon Hirszman, que é um comunista fantástico, um romântico, e radical às vezes. Fizemos Garota de Ipanema para criar um cinema comunicativo, retratar um pouco a pequena burguesia da zona Sul do Rio de Janeiro. E assim foi. Foram feitos Xica da Silva, Dona Flor; e aí vem o Babenco, o Jabor. Gerações se sucedendo e entrando com o mesmo intuito de se comunicar. Não interessa fazer um cinema hermético para a satisfação da nossa cabeça, de dizer: “Olha que original que eu sou!” Até hoje, não se sabe fazer política no Brasil para a pluralidade. É sempre uma coisa misturada, não tem nenhuma racionalidade. Numa atividade como o cinema, o meu discurso atual é o seguinte: o Brasil tinha um sério problema na produção agrícola. Falava-se que tínhamos 2% das terras cultiváveis, que produziam 80% dos alimentos. O governo Lula chegou e fez uma coisa simples: fez o Ministério da Agricultura e, ao lado, fez o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O Ministério da Agricultura cuida da agroindústria, e o do Desenvolvimento Agrário cuida da agricultura familiar. São políticas diferentes, são aproximações econômicas diferentes. Ambas com grande sucesso. Na cultura nunca houve essa iluminação, é uma coisa difusa. Cultura é uma espécie de atividade ornamental para a sociedade, e é preciso acabar com essa mentalidade e encarar de frente. Você tem a indústria cultural e você tem outra cultura, que corresponde à agricultura familiar. Que permite a renovação de linguagem. É obrigação do Estado desenvolver pesquisas, renovação, formação de público, cinematecas, patrimônio histórico. A indústria cultural não é só o 53


cinema. Ela nunca foi encarada, nunca foi planejada, no Brasil. Houve uma tentativa agora, um pouco com o Gilberto Gil, um cara que veio da indústria cultural, mas não conseguiu. Você chega ao Ministério da Fazenda, ao BNDES, nesses órgãos, e eles não conseguem ver a sociedade de consumo, onde bens culturais são consumidos. É a realidade existente. Estão sempre tratando a cultura como uma coisa muito difusa. É uma promiscuidade muito grande entre o que é indústria cultural e o que não é indústria cultural. E aí ficam as duas afogadas. Sobre o período Collor, quem desligou a Embrafilme da tomada e quem acabou com a Lei Sarney? No Brasil, todo mundo pensa que as coisas acontecem por acaso, sobretudo na área de cinema. Mas não foi por acaso. O Collor teve uma ajuda da indústria internacional de cinema de US$ 5 milhões na campanha, via Uruguai. Em troca, assumiu o compromisso de acabar com a Embrafilme e com as leis de proteção ao audiovisual brasileiro. Era uma coisa concreta, primária. Não tinha ideologia do ponto de vista do concorrente, dentro da indústria internacional. Mas da parte do Collor era um oportunismo pegar uma grana para colocar na sua campanha. E ele depois cumpriu sua parte. Um dos primeiros atos do governo Collor foi extinguir a Embrafilme e toda a legislação que protegia o mercado do audiovisual. Em nome do neoliberalismo, extinguiu as leis de proteção, o mercado, as leis de reservas. Tudo isso acabou. E isso colocou o cinema brasileiro no zero. Não se produzia, não se exibia, zerou. Inicialmente, ficamos perplexos. Eu estava nos Estados Unidos – fiquei de dezembro a maio – e de lá me correspondia com Cacá Diegues, com Nelson Pereira, com todo mundo: “Vamos... Faz uma proposta para a gente privatizar a Embrafilme. A gente fica com a Embrafilme. Não deixa isso morrer.” Mas não havia espaço, parecia que tinha acontecido outro golpe militar no Brasil, os políticos todos acovardados diante da popularidade do Collor. Naquela época, a popularidade do Collor não chegava nem a um terço da do Lula, mas todos os partidos estavam subjugados, mesmo os partidos mais democráticos estavam todos com medo do governo Collor. E o governo Collor fez, do cinema, terra arrasada, para cumprir um compromisso assumido em troca de US$ 5 milhões. Quando ele começou a perceber o que tinha feito, chamou o Sérgio Paulo Rouanet – o Papa do ilumineux brasileiro – para iluminar um pouco o setor. Aí vimos que tinha espaço para entrar e fizemos o 54


primeiro protesto de um ponto de vista concreto: “Você está aí falando de um país potência, de modernização. Como é que você quer modernizar um país sem uma atividade cultural? E, sobretudo sem um cinema?” E levamos um projeto para a ministra Zélia Cardoso de Mello, que mandou seus auxiliares entrevistarem cineastas no Rio, em São Paulo e tudo o mais, para saber o que fazer. A primeira tentativa da Lei do Audiovisual foi feita por todos nós, com a ajuda do Marcílio Marques, ministro da Fazenda, e cunhado do Glauber na época. Essa lei foi aprovada no Congresso, do jeito que o Collor mandou. Quando voltou, o próprio Collor vetou 14 artigos da lei, exatamente a parte de fomento. Aí houve uma reação. Evidentemente que os caras cobraram: “Olha, a gente botou US$ 5 milhões aí, e agora você está voltando com tudo de novo?” Então, conseguimos que ficasse a parte de proteção de mercado, mas a parte de fomento foi eliminada, ficou vetada por ele. Tinha um tal de João Santana, que era ministro da Administração e também era contra o negócio. A sorte é que vieram os caras pintadas, o escândalo do Collor, e entrou o Itamar Franco. E, com o Itamar, nós pegamos os 14 artigos que tinham sido vetados e transformamos em Lei do Audiovisual. Mas, a essa altura, o Rouanet tinha feito a reforma da Lei Sarney, transformando a Lei Sarney em Lei Rouanet. Ele não tem culpa nenhuma. Mas a Lei Rouanet, na verdade, é a Lei Sarney piorada e foi piorando e piorando. Então, nós conseguimos separar o audiovisual. O Itamar entendeu a importância de separar a Lei do Audiovisual e adotar os incentivos fiscais, a renúncia fiscal, e com isso nasceu a chamada retomada do cinema brasileiro, o movimento da retomada. O Luiz Roberto Nascimento, o ministro, foi indicação sua? Foi. O Luiz Roberto foi criado junto com o Bruno, meu filho. Aquela turma ali de Botafogo, e ele era poeta, desde menino escrevia poemas. Depois se tornou advogado fiscal e continuou sempre com um olhar voltado para o problema cultural. O pai dele tinha sido ministro durante o governo militar, da Previdência. Quando o Collor estava pensando em rearrumar o negócio da cultura, ele me mandou um recado em Los Angeles, através do Bruno, dizendo que ele queria consertar a cagada que tinha feito na cultura, queria consertar a partir do cinema, e perguntou quem seria um bom ministro. Mas ele não queria ninguém que tivesse ligação com o governo militar, nem com outros governos. Ele queria uma pessoa nova, da geração deles. E o Bruno pensou: “Que tal 55


o Luiz Roberto?” Mandou o nome, e o Collor mandou de novo uma pessoa falar com o Bruno que ele devia indicar o nome do Luiz Roberto para o irmão dele, Leopoldo Collor, para tirar a impressão de que o Leopoldo tinha sido o sujeito que tinha a tese de que cinema e teatro eram negócio de bandido e prostituta. Então, o Bruno disse: “Não, eu não vou falar com o Leopoldo Collor.” E o Bruno não falou, e o Luiz Roberto foi esquecido. Quando veio o governo Itamar, falamos com o José Aparecido. Aí já tinha Nelson Pereira, todo mundo era muito relacionado, porque o Luiz Roberto chegou a ser assistente de direção, fazer cinema e tal. E a turma do cinema todo gostava muito do Luiz Roberto. O José Aparecido queria o embaixador Sette Câmara, uma bela figura, mas não era condizente com o tempo, com a cultura moderna. E o pessoal começou a fazer o lobby para o Luiz Roberto, e o Itamar teve a sensibilidade de nomeá-lo. O Luiz Roberto foi fundamental porque era um fiscalista. Mesmo no governo Itamar a Receita tinha reações fortíssimas contra qualquer negócio de renúncia fiscal. Mas o Luiz Roberto, com o conhecimento que tinha, segurou a Receita, botou a mão no peito da Receita, e não a deixou destruir. Porque a Receita tem o poder de fazer instruções normativas. Cada instrução normativa que fazia era liquidando com um determinado mecanismo. Depois veio aquele embaixador cearense, meu conterrâneo – eu não estou lembrando o nome dele agora –, aí o Fernando Henrique já era ministro da Fazenda. O Itamar e o Fernando Henrique se afinaram em relação à melhoria das leis gerais, tanto a Rouanet quanto a Lei do Audiovisual. Aí o Fernando Henrique tratou de melhorar. Autorizou o Francisco Weffort a se reunir com a gente para passar de 1% para 3%; e o Fernando Henrique mandou dar uma ajeitada. Porque ele dizia para o Sérgio Motta e, depois que o Sérgio Motta morreu, ele dizia para o Francisco Dornelles: “No meu governo, eu quero deixar uma marca. Assim como Juscelino Kubitschek deixou, como o criador da indústria automobilística, no Brasil, eu quero deixar uma marca da indústria cultural. Eu quero fundar uma indústria cultural no país.” Então, ele pediu ao Dornelles e pediu, na época, ao Sérgio Motta, que colassem no Weffort, para o Weffort ter apoio econômico do governo, para poder fazer uma indústria cultural. E não conseguiu. O presidente da República tinha a vontade política de fundar uma indústria cultural, através de mecanismos; como se criaram outras indústrias, a indústria de alumínio, do automobilismo, a indústria naval, a indústria siderúrgica. Nós somos um país que tem uma montanha – assim 56


como montanhas de minério –, nós temos uma montanha cultural. Está no meio da rua, nos campos, a cultura brasileira está ali. Nós temos que extrair essa matéria-prima dali. Nós, produtores e artistas, temos que transformar essa riqueza cultural em produto cultural. É uma indústria de transformação, como outra qualquer. Isso tem que ser encarado dessa maneira. O que é que tem o Brasil? O Brasil é um país multicultural, com uma riqueza cultural enorme, e tudo isso pode ser transformado em produtos culturais: música, cinema, teatro, livro... Lei de renúncia fiscal é fazer política privada com dinheiro público? Quando há renúncia, não há dinheiro público. Isso é uma falácia. Todo o mundo, inclusive nos meios oficiais, falam em recurso público. Não existe. O que é renúncia? “Olha, você tem que me pagar dez, mas eu te dispenso três, fica com você, não me paga, e você tem que fazer isso assim: aplicar isso, isso e isso.” Esse dinheiro, eu renunciei, o Estado renunciou esse dinheiro, ele virou privado. Por que o Estado faz isso? Para desamarrar, porque cultura não rima com burocracia, e o que está atrapalhando atualmente a cultura brasileira é um excesso burocrático, porque o governo julga que aquilo é recurso público e cria regras absolutamente absurdas, e você cai na mão do Tribunal de Contas, e o Tribunal de Contas não sabe dizer se é ou não recurso público. Essa é uma discussão que vai se acirrar, porque esse dinheiro é privado, ele ficou com o empresário. O Estado tem que ficar atento, para saber se esse dinheiro está sendo bem utilizado, socialmente bem utilizado. Mas o dinheiro não é dele. O Estado tem que manter mecanismos de fiscalização, cumprir com a sua parte. No governo Lula, na gestão do ministro Gilberto Gil, a grande obra cultural são os pontos de cultura. Mais de dois mil e quinhentos, três mil pontos culturais que estão aí pelo Brasil, disseminando uma produção cultural popular, com liberdade total, sem burocracia. Isso é muito importante. Agora, no que diz respeito à indústria cultural, é um desastre, porque há essa concepção de que é dinheiro público. Não é dinheiro público. E no cinema então muito menos, porque nós tivemos a paciência e a coragem de fazer um mecanismo – que nenhuma lei de renúncia fiscal tem – que é atrelar o investimento à Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, transformando o investimento em um ativo financeiro fiscalizado por uma instituição rigorosa, que fiscaliza mesmo. A partir do momento em que um empresário bota um dinheiro em um filme, ele passa a ser um investidor e tem a obrigação de fiscalizar isso e de saber se 57


o dinheiro investido foi bem aplicado. É o que a Comissão dos Valores Mobiliários faz. Essa foi a primeira tentativa que nós, do cinema, fizemos. Em dez anos, eliminava-se essa lei e passava-se a não ter mais renúncia fiscal, porque o mercado se desenvolveria, criaria um mercado de consumo e haveria um espaço para produzir com dinheiro próprio, com dinheiro não renunciado, nem incentivado, nem nada. Se os governos tivessem entendido essa estratégia... Mas não, os governos trataram de transformar isso numa coisa pública e ficou-se amarrado na burocracia do Estado. Então, a indústria cultural como um todo ainda continua sendo uma coisa paternalizada pelo Estado. Isso não funciona. E hoje em dia nós estamos tratando de colocar isso muito claramente. Não tem mais discurso de identidade cultural, mais não sei o quê. Nós temos que fazer um discurso objetivo. Nós queremos que sejam estruturas de governo adequadas à nossa atividade e não para chegar e proibir a gente de fazer as coisas. Porque, na verdade, os maiores investidores das leis de renúncia fiscal são as estatais, e essas estatais criam, além dos regulamentos dos ministérios, o regulamento delas próprias, segundo a cabeça dos seus burocratas. É uma burocracia superposta à outra e está se avolumando, e isso é muito grave, e está cerceando cada vez mais a atividade criativa. Qual será o impacto do Vale-Cultura? O Vale-Cultura vai ter o mesmo efeito que o Vale-Refeição. O Brasil tem a maior rede de restaurantes populares do mundo, a baixíssimos preços. Come-se muito bem nos restaurantes do Vale-Refeição com menos de R$ 10,00. Nós estamos esperando quarenta milhões de trabalhadores, que serão incluídos no mercado de consumo de objetos culturais. Pessoas que recebem até cinco salários mínimos vão receber o Vale-Cultura para comprar livro, comprar disco, comprar jornal, comprar revista, ir ao cinema. Então, isso cria um mercado de consumidores, são quarenta milhões de pessoas. Hoje, são 14 milhões de brasileiros que consomem objetos e eventos culturais. E não tem equipamento cultural para isso. Se não tem sala de cinema, tem que se criar uma política de construção de salas de cinema. Vai surgir uma rede comercial de cultura para desaguar a produção. Aí, bom, começa-se a falar em uma coisa que é autossustentável. É por aí. Para a gente fechar, comente dois filmes seus: Dona Flor e seus dois maridos e Lula, Filho do Brasil. 58


Olha, Dona Flor e seus dois maridos foi uma mudança que nós buscávamos desde o momento em que imaginamos fazer um cinema que competisse com a indústria internacional, logo no começo dos anos 1960. Foram feitos alguns filmes nesse sentido, como o Como era gostoso o meu francês, Xica da Silva, Lúcio Flávio. Uma série de filmes que foram feitos para competir. Filmes com temática forte, mas com embalagem industrial e distribuição própria. O Dona Flor chegou e completou esse ciclo. O custo médio de produção de um filme brasileiro era de US$ 200 mil, e o Dona Flor custou, na época, US$ 700 mil. Pode-se botar mais recursos na produção, inclusive recurso de banco. Não tinha a Embrafilme, não tinha nada, era recurso privado mesmo, de investidores. E o filme foi feito com recurso suficiente para dar uma qualidade técnica e artística. Eu tinha oferecido o filme ao Anselmo Duarte, ofereci ao Cacá Diegues, ao Joaquim Pedro de Andrade para fazer. O Bruno tinha 18 anos e tinha feito um filme, o Tati. No fim de dois anos, ele já estava com vinte anos, já tinha feito a Estrela sobe, e ninguém queria fazer o Dona Flor, todo mundo com medo: “Ah, isso é muito.” Tinham sido vendidos 750 mil exemplares do livro, na época. E o Bruno, com a audácia do pós-adolescente, disse assim: “Eu topo fazer esse filme, mas só se você me der duas câmeras, porque comédia com uma câmera só não dá.” Eu falei: “Mas nunca se filmou com duas câmeras no Brasil”, e ele disse: “Não, se não for assim, eu não faço, porque não vai sair bom”. Então, nós procuramos fazer o filme com todos os requisitos de um filme industrial, para aproveitar o mercado que estava preparado para isso, e deu certo. O filme fez 12 milhões de espectadores, e circulou o mundo inteiro. É o filme brasileiro mais exibido no mundo. Até hoje ele ainda é exibido em televisões e tudo o mais. É uma espécie de boia para nós. De vez em quando a gente está sem caixa e aparece um distribuidor que vendeu o filme pela quinta vez para a televisão e ali vai render um dinheiro. Isso aconteceu com o Dona Flor. A partir daí, percebeu-se que havia possibilidade de se fazer um filme brasileiro para o mercado interno e do mercado interno sair, fazer escala para o mercado internacional. O filme tinha valores artísticos. Inicialmente, foi percebido pela mídia como uma pornochanchada de luxo porque tinha cenas de sexo, várias críticas foram feitas nesse sentido, mas no exterior ele é considerado um clássico. Hoje, dentro do Brasil, já é considerado um clássico também. E até hoje é um filme que parece que foi feito agora. É um filme moderno ainda. 59


Já o Lula, filho do Brasil é um filme que, evidentemente, foi bolado e inspirado única e exclusivamente numa história de um ser humano, numa história de superação de uma pessoa que tinha tudo para ser um marginal, de uma família pobre brasileira, como milhões de outras famílias Silvas. E que é uma história atraente, bonita. Quando eu li o livro da Denise Paraná, eu falei: “Isto aqui parece ficção.” Ia ser feito um docudrama, era a concepção inicial do filme. Em 2003 começamos a fazer o projeto, e houve dificuldades. Era um documentário de três ou quatro capítulos e não foi viável. De 2007 para 2008, começamos a tirar da gaveta o projeto, analisá-lo, conversar com o roteirista, e todo mundo dizia que havia ali um filme de ficção. Conseguimos chegar a um roteiro que era consensual, com participação do Fernando Bonassi dando o “pente fino” final, um roteiro que eu considero exemplar. Embora pudesse fazer esse filme através de leis de incentivo, não nos interessava esse caminho. Então, começamos a fazer pré-vendas internacionais, pré-vendas nacionais para a televisão – a TV Globo fez compra antecipada do filme para a televisão aberta, para a televisão a cabo, para satélite. E começamos a arrumar investidores e patrocinadores, que investiram no filme sem usar nenhuma lei de incentivo. Isso não foi suficiente para mostrar que esse filme não tinha nenhum compromisso oficial com ninguém, que era uma história absolutamente isenta de qualquer louvação política. O Lula já era o cara, já estava consagrado, inclusive internacionalmente. Nós estávamos, de certa maneira, nos aproveitando da popularidade dele – se quiser analisar por esse ponto de vista. Acontece que eu considero o filme, cinematograficamente, como um dos filmes mais bem realizados no Brasil, do ponto de vista de produção, de roteiro, de montagem, de música, de cenografia, fotografia, de direção de atores etc. Fizemos questão de usar o máximo de atores que não fossem conhecidos, para dar credibilidade. Descobrimos esse rapaz, um ator de teatro, um iniciante. Nós caímos no olho de um furacão; dizia-se que nós estávamos fazendo um filme para eleger a dona Dilma Rousseff. Saiu das páginas culturais e foi para as páginas de economia, de política. Você não esperava isso? Eu não. Eu queria que o filme fosse divulgado como todos os outros: nas páginas culturais. E todos só falavam do filme para dizer que ele era de pro60


paganda, que era encomendado. Uma coisa violenta. Nós tínhamos feito um filme popular, um filme de emoção, um melodrama, um melodrama benfeito, e foi encarado dessa maneira. Foi encurralado. Evidente que não foi só isso. Houve erros da nossa parte, inclusive erros de avaliação de data, concorrência com um blockbuster como o Avatar. Isso deu uma deformação na visão sobre o filme. Essa visão está sendo corrigida agora, depois do reconhecimento internacional que o filme está recebendo, os convites que estamos recebendo para grandes eventos internacionais para exibir o filme. Todo mundo pede o filme, a partir da visibilidade do filme no mercado de Cannes, nas sessões privadas feitas para compradores. E o filme está com estreia marcada para setembro na Argentina, com grandes expectativas – vai entrar simultaneamente no Chile, no Peru, no Paraguai, na Colômbia e na Venezuela, na América do Sul toda. E, logo em seguida, o mercado norte-americano e europeu. Já estamos em negociações. Mas, aqui, no Brasil, ficou essa sensação de que nós tínhamos feito um filme de encomenda, o que é certa leviandade. Inclusive, é um filme que tem aspectos que revelam certas coisas negativas do Lula, e nem ele fez reparos a isso. O filme é isento, porque é um filme sobre uma família e sobre um elemento dessa família que conseguiu sair de lá para a ponta da onda. Depois do Lula, acabou o tema da luta de classes. Existe a inclusão social e não uma revolução social. E esse filme é o filme da ideologia da inclusão social e não da luta de classes. Não tenho nada contra a luta de classes, mas é uma coisa já envelhecida e esquecida, que já foi superada. Pelos avanços tecnológicos, por tudo isso, a luta de classes é uma coisa que ficou no século XX, e já estamos no XXI. No século XXI, o Brasil criou a grande ideologia, que vai se expandir pelo Terceiro Mundo todo, que é a inclusão social. E esse filme é o filme da inclusão social.

61


62


Hermínio Bello de Carvalho Produtor musical e compositor.

Hermínio, como você se define? A grande dificuldade que tenho para me definir é essa diversidade de rótulos que ficaram me colocando a vida inteira. Na verdade, sou um poetaletrista. Exerço uma função memorialística também. Escrevo artigos, faço meus livros. Não me concedem espaço vital no pódio onde se encontram os luminares da cultura porque sempre fui um operário da palavra, trabalhando nos bastidores. Muito raramente ia à frente, e quando o fazia era para brigar (coisa que adoro). Só não admito que me chamem de pesquisador. É o rótulo que mais odeio. Sou um poeta-letrista, operário da palavra, brasileiro em tempo integral. Não que eu viva enfurnado aqui, vestido de cangaceiro com um pandeiro na mão. Nada disso. Sou um cara que escuta de tudo. Amo jazz, por exemplo. Vivo de discos e livros. Eis a síntese da minha vida. Como você despertou para as artes? Bom, o destino da gente não está na bola de cristal. Somos atropelados pela vida, pelos acontecimentos. Sobretudo, vamos tropeçando nas dificuldades, o que ajuda demais na formação da nossa personalidade. Fui uma criança muito atenta. Adorava a Rádio Nacional, ouvia sempre. Como era meio carola, fazia umas pecinhas na igreja que frequentava. Já na escola pública, descobri 63


esse pendor – que palavra horrível, não? – para a escrita. Quando frequentei a Escola 3-3 Deodoro, estavam na minha classe Wilson das Neves, Maurício Azevedo (hoje presidente da Associação Brasileira de Imprensa), Anilza Leoni, Claudete Soares. A escola pública, como eu a conheci, era um lugar naturalmente efervescente em termos culturais. Nós escrevíamos, fazíamos pecinhas ligeiras. Um declamava Olavo Bilac, outro, Castro Alves. E, permeando tudo isso, havia o canto orfeônico. Villa-Lobos. Sim. O canto orfeônico era uma coisa muito importante. Lembro quando Villa-Lobos foi inspecionar a escola, com Mindinha e o grande compositor Lorenzo Fernandez. Já se ouvia falar muito das reuniões cívicas que ele promovia no Vasco da Gama. Tanto que, durante anos, menti desbragadamente nas minhas entrevistas, dizendo que tinha assistido aquilo tudo. Não era nada disso. É que sou o caçula da família (apesar dos 75 anos), e meus irmãos mais velhos falavam um bocado sobre as reuniões, viviam encantados com aquilo. De tanto ouvir falar, comecei a me interessar pela vida do Villa-Lobos. Ele tinha essa coisa de levar todo mundo para o Vasco da Gama: a bateria da Mangueira, Cartola, Augusto Calheiros, Paulo Tapajós. Meu Deus! Que cabeça fantástica tinha aquele homem! E levava a música popular para junto da criançada. Quando entrei na 3-3 Deodoro e passei a vivenciar aquele universo, imediatamente comecei a buscar as informações que estavam lá: Teatro Municipal, Concertos Para a Juventude. Não perdia um. Passei a frequentar o curso de autointerpretação musical dado por Magdalena Tagliaferro. Que maravilha, aquela mulher com os cabelos de fogo, dando aquelas aulas incríveis. Eu era só um garoto perplexo diante de tanta beleza e paixão. As vezes que vi À noite sonhamos, aquela fita sobre a vida de Chopin! Há pouco um amigo me deu o filme de presente... Não é lá essas coisas, na verdade, é um filme ruim, mas foi importante na minha formação, faz parte do meu enredo pessoal. Isso se chama “formação de jovens plateias” e é coisa importantíssima. Você pode passar a vida inteira achando que a juventude não se interessa, mas não é o caso. É só dar um pulo na Escola Portátil de Música, ali na Praia Vermelha, aos sábados. São oitocentos jovens discutindo Pixinguinha, Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Patápio Silva, Chiquinha Gonzaga, Tom Jobim, Guinga. Imaginação só se forma assim, através do conhecimento. A cultura tem que circular. A Escola Portátil de Música é um celeiro de professores com cabeças 64


ótimas, abertas, quase todos compositores, empenhados em formar outros compositores. Como se deu a criação do musical Rosa de Ouro? Nada nasce de repente. Em primeiro lugar, devo muita coisa a muita gente. Lembro de frequentar uma roda de amigos comunistas em Santa Teresa, onde se ouvia, entre outras coisas, muita música de Espanha. Eu ficava fascinado com as gravações de uma mulher chamada Pastora Pavón, La Niña de los Peines, porque sua voz era tão rusguenta. Isso me chamou a atenção para a estranheza de vozes como as de Billie Holiday, Isaurinha etc. Se eu não tivesse ouvido a Pastora Pavón, se ela não me tivesse aberto a percepção para o estranho, o não assimilado pela indústria, talvez não tivesse prestado tanta atenção na voz de Clementina de Jesus. Eu estava passando pela Taberna da Glória, e lá estava aquela mulher vestida de branco, em rendas guipure, com saltos altíssimos, cantando entre os compadres. Quando ouvi aquela voz, perguntei: “O que é que é isso?” Fiquei deslumbrado. Naquela época, estava hospedando o casal Oscar Cáceres (violonista) e Irma Ametrano (pianista). Levei Oscar para conhecer Clementina, e ele me disse: “Você tem que fazer alguma coisa. Ela é fantástica, ela é impressionante.” No ano anterior ao Rosa de Ouro, 1964, eu já havia feito uma experiência no Teatro Jovem, um teatro-laboratório voltado quase que exclusivamente para a dramaturgia brasileira. Era o projeto Menestrel, que envolvia a distribuição de panfletos com poemas – de Jacques Prévert, de Leopold Senghor, de Carlos Drummond de Anrade – e uma série de shows que unissem eruditos e populares. A primeira a se apresentar no Menestrel foi Clementina, ao lado de Turíbio Santos, então um jovem violonista. Depois, foi Araci Cortes, com Jodacil Damaceno e Jacob do Bandolim. Enfim, quando a série de concertos acabou, o então diretor do teatro, Cléber Santos, me disse que eu tinha um musical nas mãos. Comecei a pensar, pensar, e surgiu o Rosa de Ouro, que, na realidade, era uma coisa muito simples: palco desnudo e os músicos tocando. Como você juntou os músicos? Quem me apresentou Araci Cortes foi Jota Efegê (João Ferreira Gomes). Era uma senhora que já havia se retirado da ribalta, estava vivendo no Retiro dos Artistas. Clementina eu já conhecia. Paulinho da Viola já frequentava minha casa. Ele também acompanhou Clementina no primeiro show da 65


série Menestrel, junto a Benedito César, seu pai, e Elton Medeiros. O Elton trouxe Nelson Sargento, o Paulinho trouxe Anescarzinho do Salgueiro, autor de “Xica da Silva”. E Jair do Cavaquinho veio aí pelo caminho – possivelmente arregimentado por Zé Keti, figura iluminada que costurava nossas vidas. Daí começamos a ensaiar o repertório. Eu tinha o hábito de gravar Clementina lá em casa. Já estava inteirado do que ela cantava. Eram coisas completamente inéditas, lundus, corimas, batuques, cantos de pastorinha. Foi assim que o roteiro do Rosa foi se desenhando, todo baseado em coisas que eu vinha ouvindo, coisas fora do circuito da indústria. Paulinho e Elton contribuíram com várias músicas. O repertório de Araci já era intocável. Agora só faltava alguém para contar essa história, alguma espécie de narração que costurasse o espetáculo. Então, tive a ideia de colher depoimentos de luminares como Almirante, Jota Efegê, Sérgio Porto, Cartola. Esses depoimentos, exibidos num telão ao fundo do palco, dividiam os blocos temáticos do Rosa. Enfim, era um espetáculo rico de informações. Quem saía de lá, saía abastecido de histórias. E era um espetáculo limpo, sem nada demais. Como disse, o palco desnudo, o telão, os músicos. A estrutura era simples, mas pegou. Ficamos alguns meses no Teatro Jovem, depois fomos para São Paulo... As coisas que germinaram desse espetáculo é que são realmente importantes... Que coisas são essas? Muita coisa. Inclusive, o próprio processo de criação do Rosa de Ouro resultou no disco Rosa de Ouro II, lançado dois anos depois do espetáculo original, mas a maior contribuição do primeiro Rosa de Ouro foi essa abertura para os compositores ditos “do morro”, que finalmente tiveram a oportunidade de serem gravados por grandes nomes da música brasileira, como Elizeth Cardoso. O disco Elizeth sobe o morro, cuja produção é minha, não era nada mais que a trilha sonora do Rosa na voz de Elizeth, e foi um de seus discos mais vendidos, um sucesso no Brasil inteiro. Houve outras gravações. Produzi o primeiro disco do Paulinho, mais uns dez ou 11 da Clementina, outros tantos da Elizeth. Foi um ponto de partida para uma onda brasileira, profundamente brasileira. Você pode falar um pouco sobre o projeto Pixinguinha? Antes de mais nada, não existiria projeto Pixinguinha se não fosse pelo projeto Seis e Meia, idealizado por Albino Pinheiro, que era uma ideia que 66


ocorreu ao Abílio enquanto estávamos passeando pela praça Tiradentes no final da tarde. “Repara só”, ele disse, “todo mundo sai do trabalho nesse horário, depois se enfia nas filas de ônibus, pega chuva, não tem para onde ir. Tinha que fazer um negócio nesse horário, rapaz”. Essa foi a grande sacada do projeto Seis e Meia: aproveitar aquele bocado ocioso de tempo que os teatros tinham nesse horário. Imagina, a pessoa sai do trabalho e, pelo preço de um maço de cigarros, pode entrar num teatro e ver Clementina de Jesus e João Bosco, Beth Carvalho e Nelson Cavaquinho. O projeto Pixinguinha nada mais é do que uma cópia servil do Seis e meia. Tanto que, quando o projeto começou, usamos algumas das mesmas duplas que se apresentaram no Seis e Meia. A ideia, em ambos os casos, era unir uma figura consagrada com alguém que estivesse começando, ou que não fosse muito famoso. Tomar um personagem secundário, no dizer de Antonio Candido, e trazê-lo ao mesmo patamar dos protagonistas. Fiz questão, também, de um roteiro enxuto, uma apresentação cuidadosa dos artistas, boa luz, som de primeira. É apenas uma questão de respeitar a inteligência do público. O projeto Pixinguinha diferia do projeto Seis e Meia em algum aspecto mais importante? Sim. O Seis e Meia estava localizado ali, no Rio de Janeiro, no Teatro São Caetano. O Pixinguinha circulou pelo Brasil, não só levando músicos para as cidades, como agregando músicos dos lugares pelos quais passávamos. Canhoto da Paraíba, por exemplo, quando se juntou ao projeto Pixinguinha e tocou com Paulinho da Viola, foi um escândalo, o público ficou fascinado. Pegamos Radamés Gnattali, que estava encostado, e juntamos aos jovens do Camerata Carioca, e foi outra maravilha. Era assim que casávamos as duplas: observando afinidades ideológicas, não estéticas, nos trabalhos dos músicos. Queríamos colocar a própria diversidade estilística em pauta. Além disso, havia sempre a preocupação de deixar algum “resíduo cultural”. Por exemplo, caprichamos muito nos programas, para que o espectador curioso pudesse se informar melhor acerca do que tinha visto. Os programas continham minibiografias, o roteiro do espetáculo, fichas técnicas. Tudo isso considero essencial, mas não era só isso: quando o projeto Pixinguinha estourou, fui percebendo que ele podia ter mais ramificações, gerar mais produtos. Sentia que era necessário ampliar nossa bibliografia sobre música popular. Daí veio a ideia de promover o projeto Lúcio Rangel de Monografias. Foi realizado o concurso 67


de monografia sobre o Pixinguinha. Sérgio Cabral mandou anonimamente seu primeiro trabalho biográfico (“Pixinguinha, vida e obra”), concorrendo com uma porção de gente, e ganhou a publicação. Hermínio, como se deu essa proximidade com a Funarte, órgão público que acabou viabilizando o Pixinguinha e o projeto Lúcio Rangel? Tudo começou quando a Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais, a SICAM, expulsou 11 músicos amigos meus, creio que em 1976, entre eles Sueli Costa, João Bosco, Aldir Blanc, Gutemberg Guarabyra etc. Daí surgiu a ideia de formar a Sombrás, uma sociedade independente só de autores, de compositores, onde pudéssemos não só acolher os que haviam sido expulsos, como formar uma célula que lutasse pela moralização do direito autoral, que era uma esculhambação infernal. Mas é preciso lembrar que vivíamos em pleno período ditatorial. O momento ainda era de muita conturbação política, apesar da distensão lenta, gradual. Formamos a Sombrás, e a ideia surgiu logo em seguida: “Que tal apresentarmos esse projeto – o projeto Pixinguinha, no caso – em nome da sociedade musical brasileira?” Podemos falar um pouco mais sobre a Sombrás? Claro, sempre achei gostoso falar da Sombrás. A sociedade foi fundada aqui, neste apartamento onde vocês estão me entrevistando. E todos os músicos brasileiros que você possa imaginar passaram aqui para assinar a ata. Quem foi eleito presidente – por unanimidade – foi Tom Jobim. Fui colocado de vice-presidente, provavelmente por eu ser dono da casa. Na diretoria, estavam Maurício Tapajós, Jards Macalé, Gutemberg Guarabyra, Ivan Lins, Victor Martins, Gonzaguinha... Nem lembro direito todos os nomes, temo cometer injustiça. E começamos a atentar em primeiro lugar a uma lei do direito autoral absolutamente defasada. Ela privilegiava os “errados” autorais, não os direitos autorais. Havia toda uma revolução por fazer. Então nos escorávamos no Gonzaguinha, que era um gênio para escrever e para assuntos contábeis, e no Aldir, que tinha todo um discurso de protesto muito bom. Acabamos parando numa salinha do MAM, de onde mandávamos nossos torpedos para a imprensa. Sofremos bombardeios violentíssimos, de todos os lados possíveis e imagináveis, por conta de nossas denúncias do sistema, do mercado, da podridão do jabá. Todos os interesses que circundavam o direito autoral se voltaram contra nós. Volta e meia recebíamos uma ameaça 68


na sede. Um de nossos diretores chegou a ser espancado. Foi com esse espírito revolucionário – e com um senso de organização interna eficientíssimo – que apresentamos o projeto Pixinguinha ao ministério, e ele foi (milagrosamente) aceito. E calhou de ser o que o povo queria, mesmo. Quanto ao fim do Ministério da Cultura, ocasionado pelo governo Collor: como foi isso para a classe artística? Isso foi um revide sujo, imundo, porco da parte do senhor Collor por não ter tido o apoio dos artistas quando de sua candidatura. Donde, a primeira coisa que fez quando venceu a eleição foi tirar o Ministério da Cultura do organograma do governo. Foi um revide, não há meio termo, não. É preciso dar nome aos bois, aos bois canalhas, porque as coisas não acabam assim de repente, tampouco se reconstroem de um dia para outro. Lembro-me de dizer, na época: “Vamos levar vinte anos para soerguer isso.” Tudo por causa daquela desestruturação fatal que deu cabo de tudo, inclusive do projeto Pixinguinha. Hermínio, o que falta para obtermos uma boa política cultural? Como você encara nossos atuais desafios? Não é que me seja um assunto difícil, mas não tenho distanciamento crítico o suficiente. Como operário, vejo muito desrespeito. É preciso transferir conhecimento. Uma boa maneira hoje em dia de se fazer isso é a mídia eletrônica, que é poderosíssima. Não se vive sem isso hoje em dia. Por que não existe um bom acervo on-line de vídeos relacionados à música brasileira, por exemplo? Quando eu dava oficinas na Escola Portátil de Música, sempre levava meus vídeos e mostrava àquela gente músicos aos quais nunca tinham tido acesso; Radamés, Canhoto da Paraíba... O que você diria a um jovem que pretende trabalhar com cultura? Existe essa gente cheia de sonhos. E o que é que você faz com gente de sonhos? Diz: “Vá em frente.” Não tenha dúvida que minha primeira providência seria estimular, encorajar essa pessoa a observar as trilhas, dar uma cacetada ali, receber outra acolá... É claro que não podemos esconder os problemas que existem, é preciso dizer que há coisas ruins no processo. Mas, contanto que não desista, está tudo bem. Caso contrário, a pessoa está perdida. Há uma geração nova e muito atuante agora, fazendo coisas que você nem pode imaginar. Precisamos alimentar esse lado utópico das pessoas, porque dá resultado. 69


70


Nelson Motta Produtor e crítico musical.

Como você começou a trabalhar como produtor musical? Eu me apaixonei por música com o João Gilberto. Antes, eu nem ligava. Mas é uma paixão não correspondida, a música não se apaixonou por mim. Eu não tenho talento musical: tudo que eu conseguia com música era com muito esforço. Então, eu fui fazer design na Escola Superior de Desenho Industrial. Estava sempre ligado à música, mas decidido a ser designer. Quando estava no terceiro ano de faculdade, tive um professor de português que dava aulas maravilhosas, ensinava os designers a escrever, a redigir os seus projetos. O professor era Zuenir Ventura. Nas aulas, ele falava sobre o novo jornalismo, sobre literatura, expressão, sobre a palavra. Eu fiquei louco com aquilo e, no último ano da faculdade de design, fui fazer um estágio no Jornal do Brasil e acabei largando o curso. Eu era um jornalista iniciante, um estagiário, mas tinha um grande background de música, além de conhecer pessoalmente todos aqueles artistas. Já fui para o caderno de cultura. Depois passei a ser crítico de música e colunista. Isso com 21 anos, por aí. Em 1968, esse ano fatídico, minha vida pessoal também sofreu uma revolução. O André Midani, que era amigo dos meus pais e a quem eu conhecia desde os tempos da bossa nova, voltou do México, onde tinha trabalhado em 71


gravadora, e me chamou para ser produtor de discos. Eu nunca tinha produzido disco, e o que eu sabia dessa área era como músico precário, vinha da minha vivência na música, mas eu larguei o jornalismo para produzir discos. Houve uma mudança muito grande, porque eu tinha uma base teórica muito forte, tinha só uma visão, que era a visão do crítico. Eu queria o melhor. Meu padrão sempre foi de muita exigência, porque eu sou filho do João Gilberto, dessa geração do grande jazz americano, da bossa nova, de Tom Jobim. Então tinha essa fé na qualidade absoluta. E quando você entra no estúdio e tem que produzir um disco, você passa a encarar vários outros fatores, como o relacionamento humano com os músicos. Eu era moleque ainda, fiquei apavorado, me perguntava o que eu ia fazer ali, com caras como Wilson das Neves, todos aqueles gigantes da música que a gravadora chamava como se fossem motoristas de táxi. O primeiro disco que produzi foi o da Joyce, que estava começando, e a gravadora chamou Wilson das Neves para a bateria, o Luizão para o baixo, só os melhores, porque era a tabela de músicos da gravadora. Então o que dizer para essas pessoas? Você tem que saber o que quer e como passar para os músicos sem impor, sem ser tirano, mas sendo firme. Você não pode ser enrolado, senão os caras dão um nó no teu rabo. Essa parte de relacionamento é fundamental, e eu acabei me dando bem nisso, porque tenho um talento inato para o relacionamento pessoal. Eu sou muito habilidoso nesse sentido. Fui desenvolvendo um jeito, um estilo de lidar com as coisas e aprendi muito com isso. O que interessa, na verdade, é o resultado. Se no estúdio eu tiver que pedir desculpas cem vezes ao músico para que a coisa saia como quero, vale a pena. E, se eu tiver que soltar os cachorros, está valendo também. O segredo da história é primeiro ter claro o que você quer, e depois saber pedir com generosidade, fazer um clima. É como um técnico de futebol: na dinâmica da gravação, você exerce um papel parecido. E depois de cinco, seis, oito horas gravando, às vezes a mesma música, você tem que ter nervos de aço. Se tem algum erro, algum problema, você não fala na frente de todo mundo, você chama o cara e fala que ele é maravilhoso, é o músico da sua vida, mas que esse pedaço aqui não foi legal, e o cara reconhece sempre, numa boa. Mas, se você chega no meio de três pessoas e fala que o cara errou a letra, ele vai dizer que não errou, e aí já começa a encrenca. As pessoas não gostam de testemunhas para seus eventuais erros. Então, o que interessa é o resultado, e eu vou usar todas as táticas para conseguir o resultado que eu quero, porque estou sendo pago para isso, para ser um administrador da gravadora ali no estúdio. 72


Eu passei a ver que a música era um dos elementos do disco, e que várias outras coisas entravam, como a imagem, por exemplo, que hoje em dia é fundamental. Eu aprendi na prática a ver a música por outros ângulos, o que foi uma experiência muito enriquecedora. A minha formação de produtor de disco tem essa base teórica, de um aprendizado musical, da crítica, e depois da prática de estúdio, em condições ultraprecárias. A gente gravava em estúdio de quatro canais. Hoje, na minha casa, tem muito mais recursos do que no estúdio em que eu gravava com Elis Regina, em 1969. O meu laptop tem muito mais do que aquilo. Qual foi o melhor disco que você produziu? A melhor situação, o melhor resultado final? Tenho dois discos muito especiais, que se tornaram históricos. Em pleno verão, da Elis Regina, que tem “As curvas da estrada de Santos”. É um dos maiores discos da maior cantora, e foi um disco trabalhado em condições ideais, com os músicos que a gente queria. Tínhamos a fina flor dos músicos: Toninho Horta, Antônio Adolfo, Wilson das Neves, Luizão, Zé Roberto, o Azimuth. Todo mundo tocou nesse disco, com arranjos do Érlon Chaves. E por incrível que pareça – e é bom que se grave isso, senão ninguém acredita –, nós gravamos durante dois meses com a Elis Regina, sem um grito, sem um bate-boca, sem barraco, em clima de paz total. O clima no estúdio foi tão harmônico que passou para o produto final. Foi um grande sucesso popular e um sucesso crítico extraordinário: marcou a mudança no rumo da carreira da Elis. Ela gravou Roberto Carlos pela primeira vez, uma música inédita do Gil e outra do Caetano, que mandaram de Londres para ela (eles estavam brigados por causa do tropicalismo). Por tudo isso, o disco é extraordinário. O outro é o disco da Marisa Monte, o primeiro dela [MM], que aí foi o contrário. Eu já tinha 42 anos e mais de vinte de experiência na área musical. Eu me vi com aquela garota de 19 anos, com uma imensa cultura musical, que sabia tudo de Chiquinha Gonzaga, João Gilberto, Vicente Celestino, Cartola. Ao mesmo tempo, estava ligada na geração dela, de Renato Russo, Cazuza, Paralamas. Era obcecada com aquilo, queria ser cantora de palco, era fã de Maria Callas. Ela dizia que não queria fazer disco, não queria fazer sucesso, ser rica e famosa. O objetivo dela era ser uma grande cantora de palco. E também era uma garota de classe média, morava muito bem com a mãe e as irmãs, não tinha problema de dinheiro, não precisava correr atrás. Muitas vezes, ao 73


gravar o disco, o pessoal acaba fazendo muitas concessões porque não tem tempo, tem um segundo emprego, um terceiro. Marisa tinha uma condição ideal, e estava disposta a fazer isso. Então nós começamos o trabalho e eu tentei usar nesse disco tudo que eu aprendi de gravação, de show, de marketing, de crítica, de televisão. Não fiz a menor concessão, a mais mínima, de lado nenhum, porque essa era a posição dela também. Eu fiz o disco como se fosse uma tese de doutorado, usei tudo para fazer um disco como eu acho que deve ser feito, com todo o respeito. Primeiro, selecionamos o repertório, ficamos dois meses ouvindo milhares de vinis. Depois, arranjamos um pianista e começamos a passar as músicas com a Marisa para ver de quais ela gostava. Quando já estava tudo mais ou menos encaminhado, chamamos um baterista, depois um baixista, formamos a banda e começamos a ensaiar. Começamos a fazer show no Rio de Janeiro, em um espaço para duzentas pessoas. Nas primeiras duas noites, foi um sucesso espetacular; na terceira noite, a manchete do jornal já dizia: “Nasce uma estrela!” É um clichê, claro, mas era a manchete do Jornal do Brasil, no primeiro show da Marisa Monte. Então fomos para um teatro maior, em Ipanema, depois para um outro ainda maior, e assim foi indo. A repercussão foi no boca a boca. Falei que a Marisa não ia dar entrevista, não ia ter marketing, não ia ter badalação. O mistério foi aumentando, e ela foi tocando em lugares maiores. Até que chamaram Marisa para tocar em São Paulo, no Museu de Arte Moderna, um teatro de trezentos e tantos lugares. Eu me perguntava quem conhecia a Marisa em São Paulo, a menina não tinha disco gravado, não dava entrevista. Mas lotou! Ela fez show com o Nouvelle Cuisine. E assim foi. Depois de quase um ano nessa, quando a Marisa já estava fazendo shows em teatros de mil lugares, sem disco e sem entrevista, começamos a fechar pequenas matérias, onde ela falava o mínimo possível. As pessoas ficavam perplexas, porque o repertório dela incluía Waldick Soriano, Phillip Glass, Caetano Veloso, Peninha, Renato Russo, Carmen Miranda, Mutantes, jovem guarda. Diziam que era uma cantora eclética. Não fui eu que inventei essa besteira, as pessoas que diziam, era o rótulo do não rótulo. Bem ou mal, isso tudo ajudou. A minha tese para o disco ideal era montar um repertório e malhar o disco na estrada, durante um ano. Claro que ao longo desse projeto fomos tirando uma música, acrescentando outra, mudando o arranjo. Depois de um ano, quando ela já podia cantar essas músicas no escuro, sozinha, de memória, ela estava pronta. Aí fizemos três shows no Rio e gravamos um disco 74


ao vivo. Um absurdo, porque nunca um artista novo começa com um ao vivo. Geralmente, o primeiro disco é sempre em estúdio, com todos aqueles cuidados pra falsear ao máximo, ajeitar, afinar, mas eu estava tão seguro sobre a capacidade da Marisa que fizemos ao vivo. Filmamos um especial de televisão, dirigido por mim e o Walter Salles, que na época já era talentosíssimo, mas não era conhecido. Passou na TV Manchete antes do disco ser lançado. Para culminar, decidi lançar o disco em janeiro. A gravadora ficou de cabelo em pé, enlouquecida, porque os discos saem todo fim de ano, para o Natal, aquela conversa de sempre. Se você lançar no Natal, vai brigar com todo mundo, com Roberto Carlos, Ivete Sangalo, Sandy e Junior. Então eu decidi lançar em janeiro, sozinho, e até junho o disco tinha vendido quinhentas mil cópias. A Marisa tinha páginas inteiras de jornal, porque não tinha assunto nenhum em janeiro, ninguém está lançando disco, show, nada... O Midani falou que nasceu com o vinil, e morreu com o download... Como você vê a produção musical após a internet? Eu espero que o Midani ainda viva até o download em 3D, mas realmente a internet mudou muito a minha vida. Uma pessoa que lida com a palavra, com escrita, com imagem, com música, e aparece uma caixinha que tem tudo isso junto, é uma coisa que você não imagina nem nos sonhos mais delirantes. Eu li muita ficção científica quando eu era adolescente, nos anos 1950 e 1960, com as invenções mais loucas, mais futurísticas, viagens espaciais, naves. Nunca ninguém falou de uma caixinha que abria com uma tela dentro onde você poderia acessar vários conteúdos, porque seria totalmente inverossímil, seria impossível explicar logicamente o funcionamento daquilo. Isso é o sonho da minha vida, porque eu posso trabalhar em casa o dia inteiro, eu tenho acesso a todas essas possibilidades, que, no meu caso, se integram. A internet está estreitamente ligada à minha vida de músico e de escritor. Eu morei nos Estados Unidos entre 1992 e 2000, justamente no boom da internet, e acompanhei toda a guerra das gravadoras americanas com o Napster. Acompanhei aquilo indignado, enfurecido com o gangsterismo, porque essa associação das gravadoras americanas, a RIAA, se tivesse poder e lobby, teria conseguido parar a evolução da tecnologia da informação pra proteger o espaço dela. Aquilo era formação de quadrilha! Mas eles se deram mal porque trataram todas as trocas de arquivos como pirataria. Antes todas as gravadoras davam fitinha cassete nas universidades, para copiar, distribuir aquilo, que era o que fazia 75


sucessos acontecerem. Então, para eles, copiar fita é legal, mas mandar a mesma música por e-mail é pirataria, coisa de bandido, ladrão. É uma estupidez enorme. O resultado foi que eles perderam dois, três anos. Podiam ter feito um acordo com o Napster, ter um catálogo, um mailing list com setenta milhões de nomes, com informações sobre as pessoas, sabendo que o cara gosta de reggae, que aquele é preto, tem 25 anos e gosta de rock, ou que aquele é branco, tem 17 anos e gosta de high school musical. Eles tinham tudo nas mãos: é o sonho de qualquer gravadora. Fizeram o contrário, se transformaram em inimigos e atrasaram loucamente esse processo, que desde o início se sabia que seria inevitável. Aquelas coisas ridículas que a EMI fez: lançou uns discos no Brasil com uma marca para não piratear, você não podia botar no seu iPod. Então, o cara que compra o pirata é mais beneficiado do que o que paga um produto oficial da gravadora. Quem é honesto é castigado. A indústria do disco fez erros clamorosos na condução disso. E agora, dez anos depois do Napster, o que você vê? Ah, o futuro é luminoso. O futuro sempre foi luminoso. Teria sido antes. Hoje mesmo o Black Eyed Peas completou 5,5 milhões de downloads pagos. Cinco milhões e meio: é vendagem do tempo de Madonna, Michael Jackson, do pop, do delírio dos anos 1980. Então, essa transição está se processando rapidamente. No Brasil, é diferente, mas no mundo... Hoje é mais fácil ou difícil constituir uma carreira de músico? O sucesso muitas vezes depende de fatores fortuitos. Naquela época do analógico, muita gente fez sucesso sem nenhum motivo aparente. Fazia um sucesso e acabou, nunca mais voltou à vitrine. Tem incontáveis casos desses. Outros que construíram uma carreira. Muitos até nunca fizeram grandes sucessos, mas construíram uma carreira. A carreira é um sucesso que não é feito de pequenas conquistas individuais. Acredito que hoje existe muito mais possibilidade de você desenvolver uma carreira. Primeiro, porque se tem uma possibilidade de gravação muito acessível, barata. Antigamente, só as gravadoras tinham estúdio e nem se você tivesse dinheiro poderia alugar. Hoje em dia, você faz um estúdio no banheiro da sua casa. E faz como Ed Motta, como Max de Castro: grava todos os instrumentos do seu disco, canta, dança, representa, produz sozinho, ali na sua casa. Isso é uma possibilidade maravilhosa para um músico de talento. Às vezes eu fico pensando, imagina 76


se aos 22 anos o Tom Jobim tivesse tudo isso à disposição dele, com o talento dele. Porque tecnologia é que nem droga, não dá talento a quem não tem. E como conseguir visibilidade na profusão de informações da internet? O João Gilberto tem uma definição genial: perguntaram para ele como ele promovia, como fazia publicidade, e ele respondeu que era só informar corretamente as pessoas interessadas. Parece uma obviedade, mas aí estão os dois pontos: informar corretamente e informar as pessoas interessadas. Se a música é boa, não precisa mais do que isso. Esse é o plano de marketing de João Gilberto, é o que eu usei e no qual acredito totalmente. Essa possibilidade multiplicadora, instantânea que tem hoje é maravilhosa. Você fala para dez pessoas, que falam para cem, que falam para mil, que falam para trinta mil. De repente, você está com um alcance de público imenso. Como você vê o jabá? A discussão em torno do jabá sempre existiu e sempre vai existir. Isso faz parte da condição humana, do lado escroto que a gente tem, desse lado aproveitador. Sempre vai ter gente disposta a fazer esse papel por dinheiro. Só as formas de jabá é que estão mudando. O jabá também não tem essa eficiência toda que as pessoas atribuem a ele. Hoje em dia, para se fazer jabá, você movimenta uma grana monstruosa para ter um resultado bem pifiozinho, mesmo quando dá certo. Jabá tem limite também, porque os caras de rádio perdem audiência se tocarem qualquer porcaria. Então, tem esse equilíbrio. E, como tem várias músicas e artistas competindo entre si e pagando jabá, a tendência é eles se anularem. E o impacto da internet no mercado editorial? Está acontecendo com o livro o processo que aconteceu há mais de dez, 15 anos com a música. Agora temos os leitores digitais e todo esse comércio, mas as editoras, o mundo editorial é gutemberguiano, é da palavra impressa, do papel. Elas são antigas. Mesmo as editoras americanas mais modernas, agressivas, são antigas em relação à indústria do disco. A coisa literária é mais composta, ao menos aparentemente. Rola muita sujeira ali, mas é mais careta. E as editoras aprenderam com os erros da indústria do disco, estão tentando encontrar novos formatos, e tudo indica que estão indo bem. Por mim, eu já teria colocado todos os meus textos na internet, mas a editora 77


não quer nem ouvir falar nesse assunto. Conversando com o Paulo Coelho anos atrás, contei sobre essa minha vontade, e ele me disse que concordava e que já tinha feito isso. Ele falou que tinha contratado um hacker para soltar o texto integral de um dos livros dele na internet. E o livro vendeu feito louco, está vendendo até hoje. No livro sobre o Tim Maia, eu coloquei quatro capítulos para serem lidos. Depois convenci a editora a fazer um hotsite, um site específico. No livro, tinha trinta fotos, era caro, grosso, custava mais de R$ 50,00; no site, tinha trezentas fotos – tudo que eu não pude botar no livro, eu botei lá. Tinha todas as músicas do Tim Maia, absolutamente todas as músicas que eram citadas no livro. O cara podia ir lendo, podia clicar e ouvir a música, além de ter um monte de vídeos do Tim Maia. Tem coisas no livro que as pessoas acham que é mentira, que estou inventando, mas aí no site tem o vídeo. Olha que maravilha! Se você fosse botar tudo isso em formato material, em papel, em fotos, em discos, seria um pacote enorme, que não ia ter preço. É um outro conceito. Eu fiz um romance de ficção chamado Ao som do mar e à luz do céu profundo, que se passa no Rio de Janeiro, em 1960. Eu fiz um site com músicas da época, com fotos do Rio de Janeiro da época, tudo. São recursos que ajudam a criação literária. Vou pedir para você comentar dois artistas que marcam, talvez, as duas fases mais conhecidas da música brasileira fora do Brasil: Carmen Miranda e Tom Jobim. Carmen Miranda provoca muita ambivalência. Ao mesmo tempo em que era uma caricatura grotesca das piores coisas brasileiras, era também uma síntese das melhores. Acho Carmen Miranda um caso muito complexo. Quanto mais passa o tempo, mais se vê a fabulosa cantora que ela era, sua fase brasileira, as qualidades de cantora, o estilo, os compositores que ela lançou, que ela escolhia. Você vê que todas as cantoras, as melhores cantoras, têm fascinação por ela: Elis Regina, Marisa Monte, Cássia Eller, Maria Bethânia, Gal Costa, todas amam Carmen Miranda. É um fenômeno único. Já sobre o Tom Jobim, quando eu morava nos Estados Unidos, eu dizia para os americanos que ele, para nós brasileiros, é como uma mistura de Gershwin e Cole Porter. O Tom Jobim tem essa profunda brasilidade, ele vem da linhagem do Villa-Lobos, que foi o primeiro que produziu em grande escala essa integração da música internacional com as especificidades brasileiras. E o Tom Jobim transportou isso para um plano popular. A música do Tom 78


tem sua origem também nos impressionistas franceses, Ravel, Debussy, e no Cole Porter, no grande jazz americano. Ele inovou aquilo, totalmente, com a linguagem rítmica, melódica e harmônica da bossa nova. Quando a bossa apareceu nos Estados Unidos, ela não era muito estranha para o público de jazz: era um jazz diferente, como já teve o afro jazz, o cuban jazz. Jazz brasileiro não era uma coisa muito distante, como era a Carmen Miranda. A Carmen Miranda era um absurdo para o americano, mas a linguagem do Tom Jobim era familiar. Então, ele teve um alcance universal. O que eu acho também interessante sobre o caráter brasileiro, o mau caráter, nesse caso, é o ressentimento que os brasileiros tinham do sucesso da Carmen Miranda e do Tom Jobim. As pessoas agiam como se eles tivessem se vendido para os americanos. Vários artistas brasileiros são desprezados, no Brasil, porque ousam fazer sucesso fora do Brasil. Isso é um traço de inveja, de ressentimento, de mesquinharia, que é muito brasileiro. Dê um toque rápido a um produtor cultural que está começando. Coragem, amigo! Coragem! Primeiro, é preciso saber muito bem o que você quer. Quem quer tudo, não quer nada. Depois, é preciso correr atrás disso com todos os meios legítimos, lícitos, honestos. Isso faz parte do meu caráter, das minhas filhas, dos meus netos, que o meu pai ensinou. Eu fiz tudo para conseguir os melhores resultados com os produtos, nos meus livros, nos meus discos, nos meus programas de televisão, meus roteiros de cinema, meus programas de rádio. Eu fiz tudo o possível. Eu xinguei, pedi desculpa, fui fofo, fui enganador, puxei o saco de pessoas. Não interessa. Você, nos meios legítimos, na sua dignidade, tem que fazer. E saber que nem sempre se consegue, mas a obrigação é tentar.

79


80


Claudio Prado Coordenador da ONG Laboratório Brasileiro de Cultura Digital.

Cláudio, fale um pouquinho da bandeira do Brasil que servia de colcha na sua casa. Em 1966, na Copa do Mundo de Futebol, eu estava chegando a Londres e arrumei um bico de guia turístico da Copa do Mundo. Era uma agência mequetrefe, que havia trazido umas quarenta pessoas do Brasil, dado para mim todas as reservas, os vouchers de comida, de hotel, os ingressos, e desmilinguido. Eu fiquei com aquele treco todo na mão, e a agência desapareceu. O Brasil saiu nas oitavas de finais nessa copa, e eu peguei a bandeira do Brasil que estava no estádio de Wembley. Ela virou um símbolo. A gente só andava com ela. Como você conheceu os tropicalistas em Londres, em 1969? Eu era amigo do Rubens Barbosa, que depois foi embaixador em Londres. Ele era primeiro-secretário da embaixada. Um dia eu fui para a casa dele, e estava lá o Nelson Motta, que eu não conhecia. Ele estava indo ver o Caetano Veloso, e eu fui junto. Ele me levou à casa do Gilberto Gil e Caetano. Foi engraçado, porque o Guilherme Araújo encasquetou que eu era da polícia. Eu estava vindo da casa do Rubens, o Nelson não soube explicar quem eu era, e o Guilherme achou que eu era da polícia, que estaria espionando o que eles estavam fazendo. Foi assim que eu os conheci. Foi logo que eles chegaram, 81


bem no começo da estada em Londres. Ainda estavam em Chelsea, um bairro de gente fina. A amizade entre vocês surgiu imediatamente? Foi muito rápido e contagioso. Na época, eu estava começando a desbundar. Estava descobrindo os porões, esse mergulho no mundo underground, onde estavam acontecendo as coisas. Esse foi o nosso elo. O Gil mergulhava mais, o Caetano tinha uma relação com droga bem estranha, morria de medo, nunca tomou nada. Ele mantinha uma certa distância. Eu já estava ligado nas fontes de LSD ideológico. O LSD era revolucionário, era uma compreensão política do estado alterado de consciência. Eu participava de um movimento chamado Keep Drugs Illegal, uma turma que brigava para não legalizar as drogas, porque, se legalizadas, elas perderiam seu sentido político. O LSD foi uma coisa essencial nesse momento para o movimento hippie, e para a nossa relação lá também. Como foi a participação de vocês no Festival da Ilha de Wight? O primeiro festival dessa leva foi o de Bath. O sentido dos festivais era ser uma extensão dos porões. Eram porões mesmo, era underground, debaixo da terra que as bandas aconteciam. Os festivais eram a junção de um monte de porões ao ar livre, e as pessoas ficavam acampadas. Era um território liberado, onde se conquistava o direito a ficar pelado, tomar ácido, transar. Não tinha polícia. Os festivais eram territórios liberados por três, quatro dias de autogoverno, a política do êxtase. Era, literalmente, uma zona autônoma temporária. Sim, e muito antes disso ter sido colocado nessas palavras. Era uma conquista política de poder viver e se relacionar baseado no tesão. Tinha o Steal this book, do Abbie Hoffman, que aliás eu roubava para dar de presente... A Ilha de Wight foi considerado o primeiro grande festival da Inglaterra. Sim, eu não estava lá no primeiro. Fui ao de 1970, que era o segundo. O Festival da Ilha de Wight foi o maior de todos. Aconteceu mais de uma vez. O Woodstock foi uma explosão única, porque ninguém esperava aquele milhão de pessoas. Aquilo era para ser um concerto e virou uma manifestação polí82


tica gigantesca, inesperada. Já o Festival da Ilha de Wight era do sistema, das gravadoras. Na época, eu fazia vaquinha com as pessoas, alugava uma van, arrumava comida, comprava o fumo, o LSD. Arrumava tudo para todo mundo e ia para o festival com conforto. No festival de Bath, as barracas eram do exército, da cavalaria, onde cabiam 15 pessoas. Eram enormes. Nós roubamos duas dessas barracas, enfiamos no porta-malas do carro e levamos embora. No Festival da Ilha de Wight, usamos essas barracas. A fatídica bandeira do Brasil tremulava lá em cima de uma delas. Ajeitamos tudo e fizemos a fogueira. Quem estava lá? Gilberto Gil, Caetano Veloso, Antonio Bivar, Zé Vicente, Gal Costa, os meninos da Bolha, que era a banda que acompanhava a Gal, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane. Foram umas trinta pessoas. O Arnaldo Brandão, que era d’A Bolha, acabou dizendo que foi a experiência da vida dele. Nesse festival, logo que nós chegamos, fui para o alto do morro olhar aquele mar de gente. Eram quinhentas mil pessoas. Tomei o meu Orange Sunshine, que era o ácido californiano, de fina estirpe. Um ácido ideológico, nada comercial. No meio da viagem, me baixou a certeza de que eu tinha que descer o morro, pegar a minha turma e levar para o palco do Festival da Ilha de Wight, porque eles tinham que tocar lá. E isso não me provocou nenhuma ansiedade, nenhuma dúvida. Então, eu continuei curtindo a terra, respirando as plantas, mas indo na direção das barracas. Cheguei lá, o pessoal estava se juntando para fazer um som. Peguei um gravador cassete, tecnologia de pontíssima na época, e pus para gravar. A gente tocou durante uma hora: Gil, Caetano, Gal, todo mundo. Obviamente, pus o gravador lá para gravar o som que eu queria levar para o palco, para convencer os organizadores a deixarem a gente fazer um show. Acabou a gravação, eu pus o gravador debaixo do braço, não combinei o jogo com ninguém. Fui para o palco com o gravador debaixo do braço, só de sunga. Não tinha nenhum conhecimento prático de produção e de como as coisas funcionavam. Eu tinha que chegar no palco, o que era uma encrenca: tinha um crachá branco, um outro azul, um outro verde para chegar lá, mas eu sabia exatamente o que eu precisava falar. Eu tinha a tomografia do pensamento dessas pessoas quando olhava para elas, e elas me deixavam passar. É poder, uma coisa de absoluta consciência. Eu seria capaz naquele momento de falar sobre qualquer assunto. E eu fui entrando, passei de cueca com o gravador embaixo do braço. Se tivesse me vestido ou 83


feito alguma concessão, não daria certo. E cheguei no último portão, onde saquei que eu não ia passar. Estava o Jimi Hendrix do outro lado da cerca. Aí eu fiquei lá parado, vendo as pessoas, e apareceu um, e falei para ele: “Olha aqui, ó. Você vai entrar lá, então, por favor, leva para mim esse gravador, toca isso aqui para aquele cara lá.” O cara era o apresentador. Eu fiquei ouvindo o que estava acontecendo no palco. Naquele festival, tinha uma discussão profundamente política, que é uma discussão clássica do mundo da contracultura, sobre a cobrança de ingresso. Tinha uma quantidade brutal de gente que nem foi lá ver festival nenhum: ficou acampado o tempo todo, porque para acampar não precisava pagar ingresso. Só para entrar na arena e assistir ao show. Entramos na brecha dessa discussão política. Eles toparam nos botar no palco para mostrar que eles eram liberais. Você usou a argumentação que eram exilados políticos, o que comoveu muitos também... Eu dizia: “Esse povo aqui não pode cantar no Brasil.” Isso foi uma das coisas que eu usei lá. O cara voltou e me levou para dentro. Em segundos eu estava no palco, conversando com o apresentador e marquei de tocarmos no dia seguinte. Eu não sei reproduzir essa conversa, não lembro dela direito. Ele falou: “Quantos vocês são?” Eu falei: “Uns trinta.” “Você está louco!”, e me deu um papel autorizando entrar com 15. Eu descobri que tinha duas portas, então botei os trinta. Eu botei 15 por uma porta, 15 por outra, com o mesmo papel. A história daí para frente foi enlouquecida, porque não tinha nada preparado, não tinha instrumento, ninguém tinha pensando na possibilidade da gente tocar no festival. Foi todo mundo para lá só para assistir. No meio do caminho, descobri um cara com um tamborzão enorme e falei: “Cara, me empresta esse tambor? Eu preciso de um tambor para tocar no palco amanhã.” O cara olhou para mim espantado. Falou: “Não, tudo bem. Eu empresto, mas eu vou junto.” Eu falei: “Tá legal”. Já eram 31. O cara deve estar contando essa história até hoje: ele tinha um tambor africano com uma pele de boi, enorme, e acabou no palco do Festival da Ilha de Wight porque apareceu um louco de sunga, com um gravador debaixo do braço. E marquei com ele: “Então, amanhã, a tal hora, na boca do palco; você me espera lá com o tambor, que a gente vai.” Eu não sei exatamente como é que foi a história de ir botando cada um. Marquei hora com algumas pessoas para o dia seguinte, no palco. 84


E vocês passaram o resto do dia pensando como seria a apresentação? Uma amiga nossa, uma escultora belga, tinha levado uma roupa, uma espécie de plástico vermelho, enrugadinho. Ficavam vestidas com a mesma roupa 12 ou 13 pessoas, só com o rosto de fora. Era um bicho que andava. Eu decidi levar essa roupa para o palco. Só que eu combinei com as pessoas que fossem peladas dentro dessa roupa e, num determinado momento, elas todas sairiam e dançariam peladas no palco. Tudo aconteceu, não houve planejamento algum. Foi completamente porra louca. Como foi o show? Foi o Gil no violão, o Caetano, a Gal. Um amigo nosso, inglês, que tinha uma banda totalmente doida, a Hawkwind, tocava flauta e se pintou de prateado inteirinho. Péricles Cavalcanti estava também: ele fazia parte da corte do Caetano. Caetano tinha aquele grupinho dele lá, aquela corte, era engraçado. E o Gil cantou as coisas dele, Caetano cantou as coisas dele, cantaram Beatles. Foi uma coisa acústica, extremamente bonita, porque era Gil, Caetano, num momento de explosão. Eu botei a bandeira brasileira na frente do palco, pisei na bandeira, fiz discurso político. Aí sentei naquele tamborzão africano, dei as minhas batidas. A revista Rolling Stone disse que foi a única coisa acústica que valeu a pena no Festival da Ilha de Wight. Ninguém sabia direito o que é que era. Dizia o seguinte: “Gil, diretor musical daquele bando de gente...” A gente arrumou tudo emprestado, foi uma jam session, como aquela que se faz, de repente, num boteco, só que foi no palco do Festival da Ilha de Wight. Como foi a repercussão? Foi aquela coisa. As pessoas curtiram para dedéu, foi uma repercussão bem interessante. A revista Rolling Stone escreveu essa crítica sobre o festival inteiro, apontando isso como uma surpresa. Agora, para mim, foi uma coisa maluca, que mudou minha vida de uma forma brutal. Eu ganhei um crachá de subir no palco. Eu tinha um crachá que me dava livre acesso ao festival inteiro, e com isso eu entendi o festival de dentro para fora. Eu entendo produção cultural a partir desse momento, a partir dessa entrada no palco por uma porta que não existe. Eu inventei uma porta para entrar. Foi a primeira vez que subi no palco: eu toquei, cantei, produzi e fiz acontecer, do nada, um negócio daquele tamanho. A produção que me interessa é essa na fronteira do possível e do impossível. O momento mágico pode acontecer, está latente 85


dentro de circunstâncias que precisam ser analisadas, e ser feito o que é possível fazer, mas está sempre no limite do impossível. Não é o produzir dentro de uma realidade econômica, era uma compreensão política. Como você virou produtor cultural? Tem uma outra história, que sai daí, que é o Festival de Glastonbury. Com esse crachá dourado, conseguindo circular, comecei a me inteirar um pouco mais do que era aquele movimento político que estava contra o movimento econômico das gravadoras. Entrei no epicentro de uma discussão que não acabou até hoje, da música como trilha sonora da liberdade, como uma nova forma de olhar para o mundo e a vida. Comecei a encontrar algumas pessoas que queriam fazer um festival de graça, que fosse inteiramente dedicado a essa energia da música como catalisadora de um movimento político muito claramente voltado para uma grande mudança de valores no planeta. Enfim, a revolução hippie, usando música como catalisadora das coisas. No fundo é isso. Eu digo sempre que rock é a trilha sonora de um momento, em torno do qual aconteceu uma grande mudança. Eu comecei a cruzar com gente, encontrar pessoas que estavam nessa onda de construir um festival que fosse inteirinho baseado nisso, que não tivesse poder financeiro, poder de grana na história. Quinze dias depois, reencontrei algumas pessoas, num concerto dos Rolling Stones. Foi ali que nasceu o Festival de Glastonbury, que existe até hoje. Eu participei dessa criação. Como foi? Era inteiramente maluco. Tinha um aeroporto preparado para descer UFO, com um bando de gente que tinha absoluta certeza que os UFOs iam baixar ali durante o festival. Foi um festival que levou nove meses de gestação. Achamos uma fazenda de um maluco em Glastonbury para fazer o festival. Teve um palco de pirâmide prateada, que era uma loucura. Foram umas vinte mil pessoas. Conseguimos envolver o exército, fizemos o festival inteiramente de graça, tinha comida de graça para as pessoas. O microfone dizia: “Olha, não comprem ácido, não comprem fumo; tem de graça na cantina. Tragam uma coisa para trocar lá.” O exército andando lá para cima, de um lado pro outro, para resolver os problemas. Eu era um curinga nesse festival. Chegou uma hora em que se criou um problema sério: os doidões estavam no palco, que era uma pirâmide prateada, sentados, fazendo suas meditações, delirando, tomando 86


ácido, mas lá era o lugar onde iam montar o som, e tinha que tirar os caras lá do palco, e os caras não queriam sair. Afinal de contas, era um festival livre, não tinham que sair de lugar nenhum. Aí deram para mim a missão de tirar os caras de lá. Eu tinha que resolver. Combinei com eles que íamos fazer um outro palco realmente livre. Aí, nós saímos, juntei aquele bando de gente, que era a fina flor da maluquice, e fizemos um outro palco com restos de coisas. Arrumamos equipamento de som, construímos um bastidor, arrumei um sofá velho, uma sala velha. Fizemos um palquinho baixinho na frente de uma fogueira. Quando acabava o palco grande, esse começava. Era um microfone aberto, quem quisesse tocar, tocava, fazia o que quisesse. E quando eu estou terminando o palco, e eles acendendo aqueles baseados enormes, entra um oficial do exército inglês, com uma papeleta na mão, fardado, perguntando: “Aqui é o palco B?” Eu falei: “Bom, deve ser o palco B.” “Eu vim instalar o telefone.” Anos 1960, telefone de manivela, com fio, instalado até o palco A. O exército estava lá fazendo treinamento para evacuar numa situação de emergência. Afinal, seria um enorme problema tirar vinte mil pessoas do meio do mato. Tínhamos telefone, comunicação, banheiro e água garantidos pelo exército. Só que literalmente metade das pessoas estava nua. Então, tinha um coronel de monóculo, andando de cima para baixo, achando tudo maravilhoso, e a loucura correndo solta. Foi o que inspirou o Gil naquela música: “Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou”. É nesse momento que a turma brasileira estava com as duas barracas roubadas, só que o exército foi lá e descobriu. Pegou de volta as barracas. Nesse festival, estava o Julinho Bressane, o Glauber, o Sganzerla, o Jards Macalé, o Neville de Almeida. Eles fizeram, inclusive, um filme super-8, trocando de mão, um para o outro, que Macalé diz que está com a Dedé, a Dedé diz que está com Macalé. Não sei onde está, mas seria legal achar isso. O Glauber passava para o Julinho... A câmera ficou rodando ali. Esse festival foi a coisa mais maluca que eu já vi na minha vida. Dessas duas experiências completamente libertárias, o que ficou para você de lição para a produção cultural? Eu aprendi que temos que ser radicais. A turma do “pera aí” não dá. Tudo o que tentei fazer de intermediário não deu certo. Temos que cair de cabeça. Para mim, isso virou uma camiseta, que não fiz, mas ainda vou fazer, que é: “Foda-se o plano B”. O plano B é uma cagada monstruosa para quem mexe com criatividade e criação. 87


Claudio, você tem uma visão positiva do que estamos vivendo hoje? Tem uma molecada que fala: “Ah, os anos 60 eram maravilhosos!”, uma nostalgia romântica dos anos 60. Eu vivo falando para eles: “Os anos 60 eram uma merda, não tinha nada, não tinha condição nenhuma de fazer nada, era difícil, era ruim, era pesado, era bravo, a gente precisava espremer pedra para tirar água, era muito complicado”. Hoje é o paraíso, nós temos que acabar de desconstruir a ideia da gravadora, acabar de desconstruir a ideia da Globo, mas já estamos avançadíssimos nisso. Quando a gente falava “A Globo é uma merda!” naquela época, era Dom Quixote com o Moinho de Vento. O que adianta dizer que a Globo é uma merda? Era inexorável. Agora você tem o YouTube, tem a Globo e tem o YouTube. Então há uma escolha. Existe onde ver coisas que você sabia que não existiam. Digite lá “japonês maluco” para você ver o que acontece, você vai descobrir coisas incríveis. A internet é a coisa mais porra louca que tem. O maior desbunde do mundo é a internet. A internet acaba com a telefonia, acaba com a televisão. Você imagina que porrada que é isto em última instância? É a coisa mais subversiva que tem. Mas é isso que dá a expectativa do delírio. É claro que a internet não resolve todos os problemas. Eu nunca disse isso, eu estou dizendo que a internet abre horizontes, novas possibilidades. Você se estimula e estimula outros. Este é o desbunde, eu vejo ele todos os dias, de gente com sonhos, Não tinha gente com sonhos até pouco tempo atrás. O sonho era arrumar um bom emprego, era arrumar um salário. Isso que está acontecendo agora eu batizei, eu inventei um nome disto: é a molecada pós-rancor, é a atitude cultural pós-rancor. Existe uma coisa rancorosa que está sendo superada, que é a discussão direita/esquerda da política, é a discussão freudiana. Freud é um gênio, mas os freudianos são rancorosos. Os freudianos são caras que querem cristalizar Freud. Vai falar de Complexo de Édipo para um moleque emo... Estes moleques superaram isso já de monte. O mundo está obrigado a se reinventar inteirinho, as gravadoras tem que se reinventar, as televisões tem que se reinventar, as companhias de telefone tem que se reinventar, a indústria tem que se reinventar, todo mundo tem que se reinventar, não tem mais como. O digital provocou uma revolução no meio disto, no meio desta confusão. É uma confusão muito maior do que as confusão dos anos 60. Para finalizar, é preciso produzir o impossível? 88


A internet é isso: o impossível acontecendo do nada, e absolutamente não planejado por ninguém. Eu consegui entender que eu tinha que separar a minha intuição da minha vontade, saber que o impulso instintivo está sempre certo. Eu tenho convicção disso. Eu aprendi a separar isso da minha vontade, isso é meu processo pessoal. Agora, como fórmula, penso o seguinte: a coisa mais cansativa e mais idiota que tem é pegar uma ideia e correr atrás. Isso é, para mim, de uma insanidade total. Eu vejo um monte de gente fazendo isso, mas eu não vou nessa. É perder tempo, porque o que faz acontecer uma ideia é a conjuntura. A conjuntura estimula a ideia de uma forma impressionante. Ela dá uma condição às vezes muito maior do que aquela que você imaginava. Se você estiver limpo, intuitivamente ligado na possibilidade da conjuntura, você empurra ela um pouquinho e já está no território do impossível. Então é isso, é ficar quieto e esperar a hora. Uma arte zen. A outra vertente disso, que me parece extremamente importante, é o seguinte: para uma coisa dessa dar certo, é preciso estar envolvido de tesão, de vontade das pessoas envolvidas. O contágio desse tesão é que traz o público para esse tipo de coisa. Essa coisa tem que ser mágica para cada uma das pessoas que está envolvida diretamente, e essa magia irradiando é o momento da coisa original, da coisa do impossível. O impossível é original, uma coisa que nunca foi feita exatamente daquele jeito. Então, essa condição tem uma explosão de energia, e produzir é provocar essa explosão de energia, é provocar essa condição da magia acontecer com hora marcada. E isso, na verdade, é muito simples: é só você não querer interferir, estar disponível para a conjuntura. Como diz o Chacal,“Só o impossível acontece. O possível apenas se repete”. É isso aí. Pronto. Matou.

89


90


Flora Gil Diretora da Gegê Produções.

Como você começou a trabalhar com produção cultural? Comecei a trabalhar no escritório de produção do Gilberto Gil, no início dos anos 1980, no Rio de Janeiro. Quando eu me casei com ele, o Daniel Rodrigues era o seu empresário, e eu me interessei pela questão de direito autoral em edição musical. Então, primeiro fiquei tomando conta dessa parte, que é verdadeiramente o que eu gosto de fazer. Gil tinha a obra, as composições dele, espalhada pelas editoras do Brasil. Antigamente, se assinava contrato de cessão de direito autoral. Então, tinham algumas músicas em São Paulo, algumas no Rio de Janeiro, espalhadas em diferentes editoras. Principalmente a do Guilherme Araújo, que era o antigo empresário que tomou conta do Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Era comum assinar contratos de edição com os empresários também, fora as gravadoras multinacionais. Então eu vi que o Daniel Rodrigues tinha acabado de abrir uma editora, a Gegê Edições, e propus a ele que, em vez de só editar as novas músicas do Gil, devíamos recolher as que estavam espalhadas. Foi uma luta de seis ou sete anos na justiça, e a gente conseguiu todas as obras de volta, pelo direito de resilição, que é o direito de não querer mais ceder sua obra. Hoje todas as obras do Gil estão dentro da Gegê Edições, que é parte da Gegê Produções. A Gegê toma conta do Gil, tanto nos discos como no direito autoral. É gravadora, editora 91


e produtora dos shows. O Gil foi durante muitos anos da Warner, ficou lá até 2007. E aí quisemos ser também gravadora, então hoje temos a Geleia Geral. A relação com as gravadoras mudou? Sim. Antigamente, quando se vendia um milhão, dois milhões de cópias, era a gravadora que produzia o vinil ou o CD e distribuía para as lojas, além de editar também as músicas. As gravadoras tinham uma editora, que era um pequeno departamento dentro da empresa. Hoje em dia inverteu, a gravadora é que virou um departamento, porque o disco não vende mais como se vendia antes. Alguns artistas, talvez a partir da Marisa Monte, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, começaram a ser donos dos seus fonogramas. Ou seja, o disco é deles. A propriedade é do artista, sai pelo selo deles, e é distribuído pela gravadora. Então, hoje, a gravadora faz mais o papel de distribuir o disco, mas não é mais proprietária dos fonogramas. Em 1987, você assume a produção artística de shows. Como foi essa mudança? Em 1988, o Gil entrou na política, se tornou vereador por Salvador. Então eu fui morar lá, abri um escritório de produção e comecei a fazer shows. O escritório tomava conta do Gil, mas fazíamos shows de outras pessoas também, como Caetano, Gal, Titãs, Paralamas do Sucesso. Fizemos muitos shows na Concha Acústica, no Teatro Castro Alves. O direito autoral é um trabalho muito mais de formiguinha, de busca. É um trabalho que você vai recebendo o resultado a longo prazo. A produção não, é mais ativa. Se você faz um show, tem que resolver o artista, o local, a comunicação, o dinheiro imediatamente. E como se produz um show? Quais são as regras? O básico de produção é isso: ter o artista, o local, o dinheiro e pensar na comunicação. Eu sou geminiana, então a comunicação é a parte que eu mais gosto. Eu adoro divulgar. Quando a gente fecha um show, eu penso logo como será a mídia. É o que eu mais me preocupo. Eu comecei em Salvador, que é uma praça atípica, a comunicação lá até hoje é outdoor. Salvador usa muito pouco televisão e rádio. Se a pessoa quer saber o que está acontecendo, ela anda pela cidade e olha as placas. Até hoje é assim. Então, a comunicação depende do lugar. E, como eu sou casada com um artista, aprendi muito por poder ver os dois lados, produzindo por conta própria e acompanhando os 92


outros produtores que trabalhavam em eventos com o Gil. Antigamente não tinha lei de incentivo, ou era recurso próprio, ou patrocínio local. Não tinha esse megapatrocínio, dinheiro à beça, era muito mais doméstico. Havia pequenos patrocínios, era a companhia aérea e o hotel que davam desconto, porque o artista ficava hospedado lá. Às vezes tinha o patrocínio de um restaurante, os artistas comiam lá e a gente não precisava dar a diária de alimentação. Isso eu estou falando de 25 anos atrás. Depois é que veio essa história toda do patrocínio, leis de incentivo, o que inflacionou os projetos, mas permitiu uma produção mais caprichada. Pode-se fazer uma entrega de comunicação bacana, ter qualidade de som e de luz também. É possível muitas vezes até captar aquele evento, fazer um registro, transformar num DVD e comercializar depois. Em Salvador tem uma particularidade, existem os shows em lugares físicos e os shows em trios elétricos, que é o caso do Expresso 2222. Qual a diferença entre eles? O Expresso sempre foi de graça. Então eu não dependo de bilheteria, o que é uma delícia. Você não fica na tensão da bilheteria. Lá em Salvador, eu produzi muitos shows na Concha Acústica, onde cabem seis mil pessoas. Um lugar lindo, com uma acústica linda, ao ar livre. Os artistas que vão à Bahia geralmente fazem shows ali, é um anexo do Teatro Castro Alves. E eu dependia de bilheteria. É um preço popular, mas é preciso ter a bilheteria. No trio eu sou obrigada a ter patrocinador, porque eu não tenho um centavo de volta do consumidor. Eu não vendo. É mais complicado, mas é gostoso. É muito mais gostoso você fazer um projeto sem pensar em cobrar. Como você trabalha os patrocínios? É difícil conseguir patrocinador, mas as leis de incentivo federais, estaduais e municipais facilitam. Então quando faço um projeto e vejo que vai ficar caro, tento aprovar nas três leis, para poder ter um leque de opções para a empresa decidir. Se a empresa se interessar, se o projeto for sedutor, é importante ter a outra sedução pela facilidade das leis de incentivo. Como trabalhar produção em outros países? A Gegê tem produtores locais em cada cidade, em cada região, na verdade. Na Europa, a gente tem um produtor que toma conta da Itália, outro que toma conta de Alemanha e Áustria, um que toma conta da França. O Gil vai 93


lá há muitos anos, então eles já estão acostumados. No verão, quando esses artistas fazem show, normalmente a produção de festivais já está pronta. São os festivais de verão da Europa, que abrigam três, quatro, cinco artistas por noite, então você usa aquela estrutura de um palco que já está montado, de uma comunicação que já está feita. A produção não é da Gegê, é europeia, daquele produtor local. Nós entramos com nosso equipamento, com nossa equipe de som, de luz. Nossa produção se resume muito ao interno, ao Gil. Como você contata os seus produtores? Na área de música as pessoas se conhecem, são fiéis a cada artista. No meu escritório, não tem muita rotatividade, não acontece de hoje eu estar com uma produtora, amanhã com outra. Na minha equipe tem gente que trabalha há dez, vinte anos. Entram e ficam. Mas quando preciso, ligo para os escritórios dos músicos amigos e pergunto se conhecem alguém para recomendar. E aí sempre aparece alguém. Então trabalhamos com esse círculo de artistas amigos. No seu caso, que é esposa do Gil, como você lida com a vida profissional e a pessoal? Eu lido bem, porque eu comecei assim. Talvez eu não soubesse lidar de outro jeito. Eu lido bem tendo o Gil como marido e sendo a produtora dele. Não atrapalha e não mistura. É tudo junto, já nasceu assim. Eu não tenho muito problema com isso, para mim é mais fácil. Às vezes eu acordo, pergunto coisas ao Gil, ele fala se prefere assim ou assado, continua um pouco escritório-casa, casa-escritório. Mas não me incomoda. O que você falaria para quem quer trabalhar com produção cultural? Eu acho que hoje a diversão com responsabilidade é o que mais seduz o artista, o público e o patrocinador. Antigamente se fazia um evento grande, e quando acabava era um mar de lixo. Hoje em dia é preciso anunciar que fará um evento e que o lixo vai ser reciclado. Colocar as lixeirinhas separadas, como eu fiz agora no São João e no carnaval. Construí um camarote inteiro de TetraPak. Então o conselho que eu dou para um produtor é pensar na sustentabilidade caminhando junto com o evento. Pensar desde o lixo até a contratação de pessoas, até a geração de renda local. Não é preciso trazer gente de fora para trabalhar. Se for fazer brindes, faz na cidade mesmo, economiza papel, economiza correio. É tanta coisa que economiza, e pode-se gerar renda 94


para a cidade que vai sediar o evento. Isso educa, fala de coisas que as pessoas muitas vezes não sabem. Fiz um carnaval agora em que os copos eram feitos de fécula de mandioca, e cem dias depois eles viravam adubo. Então isso seduz o patrocinador, e é uma beleza incrível produzir um evento onde a sustentabilidade está presente. Se eu fosse começar hoje eu só faria evento sustentável. Eu tentaria material que eu pudesse reciclar, faria a reciclagem do lixo, faria medição de carbono, daria prato de fécula de mandioca e fécula de milho. Tudo que eu fiz no carnaval da Bahia agora, que foi incrível. Um pouquinho mais caro, mas é incrível trabalhar assim. Eu daria esse conselho. Fala dos prazeres de produzir, dos shows que você mais gostou de fazer... O último show que eu fiz do Gil com a Gal, Zeca Pagodinho, Martinália, Vanessa da Mata e Alcione, foi inacreditável! Foi um show de São João, com todos cantando suas músicas em ritmo de forró. Muito lindo! Eu fiquei muito orgulhosa de ter produzido. E além de tudo, foi um evento sustentável. A sensação de ver aquilo realizado, saber que você estava ali com a sua equipe, fazendo aquilo que deu certo, é maravilhosa. Algo que começa com uma pequena reunião de quatro ou cinco pessoas, e quando você vê já está trabalhando com cinquenta, cada um fazendo uma coisa, e no fim ver tudo dar certo e todo mundo feliz... Você trabalha com produção há bastante tempo. A imagem da música brasileira mudou nesses 25 anos? Mudou sim. A música brasileira lá fora está muito respeitada. A música brasileira era conhecida pelo samba, pelas mulheres bonitas. Mas hoje em dia, na Europa, eles não acham que a música brasileira é só o samba. Eles conhecem a música brasileira, eles conhecem João Gilberto, a música do Gil, do Caetano, conhecem Jorge Ben. Hoje em dia é fácil achar discos. A música brasileira está bem representada. Algumas pessoas falam sobre a preocupação do Brasil em vender alegria, que isso apresenta um risco.Você vê isso? Eu acho ótimo. É incrível chegar a um país feliz. Todo país quer levar alegria. O Brasil leva alegria, sim, mas o Brasil é alegre, ele é assim, tem que levar o que ele é. A gente não tem óperas tristes, não tem nada pesado. O brasileiro é diferente, na Europa, EUA ou na Ásia, você reconhece um brasileiro na rua, é difícil se enganar. Você reconhece o jeito de andar, de falar, 95


o sorriso. Acho que é isso mesmo, o Brasil está bem representado lá fora, é alegre. E deveria continuar. Eu sou a favor disso, acho bom vender alegria. Não deve vender barato, tem um preço, mas deve vender, sim. Como você vê a Internet, a cultura digital, no seu trabalho e na relação com a música? No início dos anos 1990, o Gil fez uma música que chama “Pela Internet”, e transmitiu ao vivo. Foi o primeiro artista que transmitiu uma música ao vivo pela Internet. Lembro-me que foi no prédio da Embratel, no Centro do Rio, e era uma parafernália gigante. Então o Gil abriu essa portinha da Internet lá trás e nunca mais fechou, e levou um monte de gente junto. Lançamos um disco agora, e ele está em stream, mas daqui a pouco vamos disponibilizar para download grátis. Só não fazemos mais isso porque tem a gravadora que distribui os nossos CDs, e ela também tem que ganhar dinheiro com isso. A gente não pode dar tudo. Hoje é bacana na Internet poder buscar um parceiro que pague para você poder dar. Quando decidimos disponibilizar músicas na Internet, não é que o Gil esteja dando a música dele. Ele está dando sim, para o consumidor, mas alguém está pagando a ele para ele fazer isso. Esse modelo de negócio é ótimo. Hoje é a Natura que está pagando para o Gil colocar as músicas no Portal Natura. Então, ao invés de o consumidor comprar, ele pega de graça, e aquele dinheiro que o Gil ia ganhar do consumidor, a Natura já deu como advance. As pessoas às vezes têm uma impressão errada, ou um entendimento errado, não entendem direito, reclamam porque o Gil está dando suas coisas na Internet. Mas ele dá porque alguém pagou para ele. E como você vê a crise que isso causou na indústria fonográfica? As gravadoras hoje em dia estão ruins das pernas. Elas agora são até empresárias de artistas. Hoje em dia, as gravadoras contratam um artista e têm participação até nos cachês dos shows, na receita de shows. Há dez anos não existia isso. As gravadoras tinham muito dinheiro, elas detinham a propriedade de um fonograma para a vida inteira. O disco que era gravado lá era dela para sempre. O direito autoral era da gravadora também, ao menos um percentual. Então ela tinha tudo ali. Hoje ela não tem nem a propriedade do fonograma, nem da edição. E nem o recurso da venda, porque o disco não vende. É complicado. Então há essa crise, e as formas de adaptação delas frente a isso. 96


O que você acha da formação universitária em produção cultural? Hoje é muito mais importante do que antigamente. Eu, por exemplo, não fiz faculdade. Na minha época era meio a universidade da vida, aprender na prática, fazendo. Vamos entendendo um pouco de som, um pouco de luz, de cenário, onde imprimir os ingressos. Antes, mesmo fazendo o evento na Bahia, a gente mandava fabricar os ingressos em São Paulo, com medo de ter falsificação. Tinha uma gráfica que fazia o ingresso com marca d’água. Para você ver como as coisas mudaram, hoje em dia nem tem mais ingresso, são cartões ou códigos de barra. Outro dia eu tava conversando com uma amiga minha que fez o curso de produção cultural, e ela estava me contando novidades, coisas incríveis que estão aprendendo e que eu, que atuo na área, nem sabia. Então é importante, até para se localizar frente a todas essas mudanças. Sobre a concepção estética do show, a cenografia, a ambientação, como é pensar isso? Tem que ter um cuidado grande. Com o Gil, damos o disco para o cenógrafo, que conversa com o iluminador e com o técnico de som, depois conversa com a gente e começamos a pensar o figurino, tudo costuradinho, andando junto. Cenário, figurino, a estética do show. Com o repertório, o Gil às vezes pergunta se está bom uma música ou não, como faz o bis, se abre com tal música. E aí o cenógrafo, o iluminador e o técnico de som podem opinar, dizer que não é bom terminar com tal música e começar com outra, porque tem troca de violão e guitarra, essas coisas. Tem certas costuras que só com experiência mesmo é possível fazer. Todos os tropicalistas sempre tiveram essa preocupação com o figurino, com a estética, desde o começo... Claro! E é bacana, você vai assistir a um show e a pessoa está bem-arrumadinha. Passa que ela se arrumou para aquilo, é um respeito com a plateia. Não sai de casa, pula da cama e vai para o Canecão fazer um show. Não, você descansa, está com uma voz boa, com uma cara boa. É respeitoso você entregar aquilo que eles esperam: um som bom, uma luz boa, uma roupa bonita. É importante, é um respeito com quem foi lá prestigiar o artista.

97


98


Pablo Capilé Articulador do Circuito Fora do Eixo.

Como começou o Espaço Cubo? Começamos dentro da universidade, na Universidade de Cuiabá, na Universidade Federal do Mato Grosso, fazendo um encontro chamado ECOS, o Encontro de Comunicação Social. Nele reunimos os centros acadêmicos das faculdades de comunicação. O encontro foi um sucesso, mas os alunos ainda estavam muito viciados naquele modelo de movimento estudantil, e viúvos da década de 1980. Então vimos que ia ser muito difícil dar continuidade aos trabalhos dentro da universidade. Resolvemos sair e organizar um festival de música, chamado Calango. Na época, ingenuamente, a gente achava que os rumos da música no país ainda passavam pelas grandes gravadoras e até levamos o Tadeu Valério, da Paradoxo Music, ao festival. Uma das coisas que ele falou, e a única que a gente absorveu, foi que não adiantava nada ter só um festival durante o ano; se a gente não organizasse ações periódicas e permanentes, o movimento cultural local ia continuar muito disperso. Só ia produzir alguma coisa autoral na época do festival; durante o ano inteiro, eles não teriam outros ambientes para dar suporte. Então, resolvemos montar um coletivo e precisávamos de um nome. Na época, tinha um coletivo de audiovisual no Nordeste chamado Telefone Colorido, e a gente pensou também em criar um nome composto que não fosse 99


tradicional. Veio a ideia de Cubo Mágico. Criamos o coletivo, e todas as ações que íamos desenvolvendo ganhavam um nome derivado de Cubo Mágico: Cubo Estúdio de Ensaio, Cubo Comunicação... Como surgiu o Cubo Card? Na época do movimento estudantil, estávamos, na verdade, muito mais envolvidos com música e audiovisual, mas víamos a universidade e o movimento como uma plataforma de difusão. Então, quando saímos dos muros da universidade para construir outras plataformas, começamos a perceber que, dentro do setor cultural, a música talvez fosse o segmento onde a gente conseguisse ecoar melhor as propostas que a gente queria para uma cidade como a nossa. Cuiabá tem quinhentos mil habitantes, é a única cidade das capitais do Centro-Oeste que tem trezentos anos. As outras são bem mais novas. Então tem uma cultura tradicional muito forte. Quando entramos na música, tínhamos dois objetivos principais: construir um mercado e, concomitante a essa construção, debater a política pública com as pessoas que estavam envolvidas com esse mercado. No primeiro ano, criamos o Estúdio Cubo de Ensaio, mas depois as bandas quiseram começar a se apresentar em público, e nós montamos a Cubo Eventos. Com muita dificuldade, começamos a criar oportunidades. Com o Cubo Eventos, começou a aumentar o número de bandas, porque aquele público que ia assistir passou a montar bandas também. Começamos a perceber que a gente precisava divulgar melhor essas bandas e montamos a Cubo Comunicação. Na época, a Cubo Comunicação servia para nos relacionarmos com os parceiros locais de comunicação – jornal, TV e rádio – e para criarmos nossas próprias interfaces de comunicação. No fim do ano, percebemos que as bandas precisavam gravar e criamos um estúdio de gravação. Só em 2003 tivemos um estúdio de ensaios, estúdio de gravação, um coletivo de comunicação e um coletivo de eventos. Só que, no fim de 2003, percebemos que as pessoas não estavam muito dispostas a discutir política pública: elas não conseguiam enxergar que aquilo ali era realmente um mercado, porque não eram remuneradas. Começou um buxixo na cidade que o Cubo Mágico estava crescendo muito e explorando os artistas que se apresentavam junto a eles, porque a gente já tinha estúdio de ensaio, estúdio de gravação, e os artistas não estavam recebendo pelos shows que faziam, mas, naquela época, a gente ainda estava trabalhando com a troca solidária. A galera tinha feito “gato” de luz e de água na nossa sede para a gente 100


conseguir pagar as contas. Ainda era muito difícil viabilizar as coisas todas, era nosso primeiro ano, todo mundo muito novo, a coisa toda não estava muito estruturada. E a gente começou a perceber que era preciso criar uma alternativa que estabelecesse um equilíbrio. É daí que surge a necessidade de arranjar uma forma de remuneração para as bandas. Em espécie, a gente não conseguiria pagar, então pensamos em estabelecer uma troca solidária. A banda poderia se apresentar e depois trocar isso por ensaio, por gravação, por assessoria de imprensa. As bandas começaram a receber o Cubo Card em troca dos shows. Recebiam trezentos cards e podiam usar um estúdio de ensaio, um estúdio de gravação e assessoria de imprensa. Com isso, as bandas começaram a entender a lógica do que estávamos fazendo e voltaram a militar com a gente, nesse debate de política pública. A partir daí, foi um processo de consolidação do sistema. Alguém já falsificou o Cubo Card? Como será se um dia vocês tiverem inflação? Não, ainda não falsificaram. Na época em que a gente não tinha moeda física, não era tão organizado, não havia tanto controle, algumas pessoas alegavam que tinham mais moeda do que era verdade. De certa forma, essa era uma falsificação, mas como a gente ou tinha perdido o papel ou apagado o e-mail, era preciso aceitar, para não diminuir a credibilidade da moeda. A partir do momento em que a gente transformou em papel, ainda não tivemos nenhum caso de falsificação. Mesmo ainda sendo bastante embrionária, a nossa fiscalização está em cima do número de série. A gente tem que, mensalmente, estar conferindo os números. Vocês tiveram problemas de lastro com a moeda? Sim. Em 2003, em Cuiabá, por sermos desorganizados, não termos ainda contato com a economia solidária, não sabermos o que era lastro – a gente achava que estava tendo uma ideia genial e que talvez não existisse em nenhum outro lugar. Por falta de pesquisa mesmo da nossa parte, no primeiro momento a gente distribuiu muito mais cards do que a gente tinha condições de pagar. Então, no início de 2004, rolou o nosso subprime. Tínhamos 150 mil cards na rua e não tínhamos condições de pagar. Tem um momento muito engraçado, no final de 2003, quando eu vi que a galera toda em vez de usar seus cards para ensaiar, gravar, ter assessoria de comunicação, estava usando para tomar cerveja. Foi o primeiro momento em que a gente resolveu fazer 101


um mapeamento de como esses cards estavam sendo utilizados na real, e vimos que a incidência da utilização nos eventos, para tomar cerveja, era muito grande. Em setembro ou outubro de 2003, eu resolvi reunir todo mundo para falar que era muito mais interessante que utilizassem esse sistema para se qualificar. Analisando, muito tempo depois, eu vi que foi uma besteira, porque, naquele momento, nós ainda não estávamos preparados para essa consciência da cena. Depois daquele papo, a cena deu uma acordada, e todo mundo solicitou os serviços ao mesmo tempo. Só que a gente não tinha condições de prestar os serviços, então demos uma quebrada, tivemos que trazer a iniciativa privada para perto e aumentar o número de pessoas. Foi ali que começamos a entender a importância de trabalhar coletivamente e começamos a ser mais abertos para receber novos parceiros. Fale um pouco do passo seguinte,que foi a criação do Circuito Fora do Eixo. O Fora do Eixo surge em 2005. Na verdade, começamos a construir todas essas plataformas em 2002. O Cubo Card surge em 2003, e começamos a distribuí-lo dentro dessas plataformas. Em 2005, com o Cubo Card estabilizado, e a partir do Festival Calango, percebemos que tínhamos criado em Cuiabá um ambiente cultural favorável, que podia ser uma referência no diálogo com outros movimentos do país que tinham problemas comuns aos nossos. No festival, chamamos produtores do Brasil inteiro para apresentar o case do Cubo, e vários deles se interessaram. Naquele momento, surgem dois movimentos muito fortes: a ABRAFIN, que é a Associação Brasileira dos Festivais Independentes, e o Circuito Fora do Eixo, que era um movimento social, sem uma natureza jurídica clara, mas que já estava muito mais disposto a debater comportamento do que propriamente cadeia produtiva da música. Era uma forma de tentarmos visualizar como aquela moeda complementar poderia interferir no comportamento dos agentes produtivos. Começamos a buscar, ao invés de produtoras, coletivos que quisessem dialogar e trocar experiências. O que possibilitou isso foi a internet, que permite que pequenos produtores passem a conhecer mais rapidamente o que acontece em outros lugares. Antes disso, o cara de Goiânia não sabia o que acontecia no Acre. A passagem era cara, o interurbano era caro, a carta demorava, mas foram precisos dez anos de amadurecimento para a cena perceber o impacto da internet. Em 1994, por exemplo, surge o Abril Pro Rock em Recife, junto com o Mangue Beat. Um potencializando o outro, mostrando que era possível existir uma cena fora do eixo Rio–São Paulo. E a internet vem 102


reafirmando isso. Essa história vem se fortalecendo. Antes eram muitas relações no varejo, os festivais trocavam no varejo, os pequenos empreendedores trocavam no varejo. Em 2005, veio a consciência da necessidade de parar de trocar no varejo e começar a se organizar coletivamente. Como você tem visto a consolidação das propostas do Fora do Eixo nesses cinco anos de existência? O principal ponto de avanço foi sair dessa perspectiva de sermos coletivos de música para sermos coletivos de tecnologia social. Paramos de pensar a cultura somente como linguagem artística e tentamos estabelecer uma transformação comportamental. Cada um dos agentes desses coletivos pode ser consultor de um alicerce para uma série de linguagens, que não precisam ser necessariamente artísticas. Podem construir uma liga de futebol amador, desenvolver um projeto conectando a música com as escolas ou pensando sobre a saúde pública. Tudo dentro de uma outra perspectiva. Criamos conteúdo suficiente para ver que aquilo ali era muito maior do que a música. Então, por exemplo, em 2006, tínhamos duzentas bandas, cinco coletivos, 13 festivais, três web rádios e web TVs. Hoje estamos com duas mil e quinhentas bandas, cinquenta coletivos, 83 festivais, 74 web rádios, 112 web TVs, 95 blogs, 43 zines informativos. Conseguimos criar uma estrutura de comunicação para dar suporte a essa história toda. Conseguimos ter hoje, nos mesmos coletivos, audiovisual, literatura, teatro, festivais para cada uma dessas plataformas. Temos também o Fora do Eixo Card, que possibilita o uso do sistema de crédito em qualquer um dos lugares do Brasil, mas entendemos que ainda estamos em um processo de construção. Aonde vocês pretendem chegar? Na política formal? Pretendemos criar um ambiente favorável para que daqui a trinta anos o presidente da República possa sair de uma perspectiva ligada a isso que nós estamos construindo. Há trinta anos, ele saiu do sindicato, então podemos tentar criar uma plataforma onde a cultura consiga ganhar mais espaço na agenda. Como foi a chegada de vocês a São Paulo, para dentro do eixo? Num primeiro momento, a gente entendia o fora do eixo como uma questão geográfica, depois começamos a ter clareza que era fora do eixo tradicional de produção. Muitas vezes, dentro do eixo Rio-São Paulo, você tem muito mais gente fora do eixo do que a fora do eixo geográfico. O distanciamento 103


histórico do eixo de debate, ou do eixo econômico, fez com que a região Norte, por exemplo, seja muito preparada para o debate, muito politizada, entenda muito o que está acontecendo no país. A galera do Centro-Oeste também se preparou bastante. Então, as iniciativas que rolam em São Paulo e no Rio de Janeiro desconhecem mais as que rolam em outros lugares do que o contrário. A partir daí, pensamos em dar suporte para essas iniciativas também. Só que, até pela estrutura e tamanho das cidades, percebemos que precisamos ter mais de um ponto Fora do Eixo em cada uma delas, senão não damos conta. As cidades que estão envolvidas no Circuito Fora do Eixo contam de quinhentos mil a setecentos mil habitantes. É possível ter um foco apenas de trabalho e conseguir atingir boa parte desses habitantes. Então, a experiência de trabalhar com dez milhões, 15 milhões de pessoas precisa de um tempo de reflexão e processamento antes de começar a acontecer. Essas experiências do crescimento trazem novos desafios, novas questões e, certamente, novas tensões e críticas. Como vocês estão lidando com isso? A experiência local nos deixou um pouco calejados para esse enfrentamento nacional. O ciclo de tensão é muito parecido com o que acontece quando se está começando na sua cidade. No primeiro momento, você aparece como algo novo, e isso gera um tipo de reação. Aí você responde a essa reação, e é muito bacana, porque começamos a nos ver mais como coletivo porque é preciso defender aquela história. Num segundo momento, a coisa se estabiliza. O setor cultural brasileiro ainda é muito desorganizado, ele não age em bloco. Tem uma dificuldade de criar oposição às coisas que são situação. Localmente era assim também. A partir do momento em que você se estabelece, as pessoas tendem ou a parar de criticar ou a se aproximar, e nacionalmente não foi diferente. Em determinado momento, éramos o futuro, e as pessoas eram extremamente entusiastas desse futuro, até porque os lugares delas estavam estabelecidos. Quando começamos a virar um pouco mais o presente, gerou uma tensão, porque você ocupa um espaço que alguém estava ocupando, e dificilmente as pessoas saem desse espaço sem espernear. Então essas críticas vão vir, mas elas nos fortalecem como rede, porque ativam o debate interno. Como você vê a questão da sobrevivência do artista hoje? Estamos no início do caminho, ainda. Tem um grande debate sobre a sobrevivência, principalmente sobre o cachê, a remuneração. Tem muita gente 104


achando que o festival é linha de chegada, quando, na verdade, essa estrutura toda é ponto de partida. Conseguimos aumentar o número de cidades onde esses artistas podem se apresentar. Então, por exemplo, uma banda hoje no Brasil, que não seja o Jota Quest, nem Ivete Sangalo e nem o Skank, consegue fazer noventa shows num ano e desses noventa apenas oito ou nove são em festivais. Nesses festivais, elas não recebem o cachê, mas são vistas por vários compradores, que estarão ali levando essas bandas para outros shows, e vários jornalistas, que estarão divulgando essa banda. Em cima disso, começa-se a formar público e a aumentar a remuneração. Então, uma banda como o Macaco Bong, que faz oitenta, noventa shows por ano, movimenta só de cachê R$ 150 mil. É uma banda que tem três integrantes, então R$ 150 mil são R$ 50 mil para cada integrante por ano, R$ 4 mil por mês. No Brasil, existem poucas bandas que conseguem ganhar isso. Estamos começando. Temos a esperança que com o tempo consiga-se aumentar esses números. Não existe o risco de um conjunto de bandas, mais ligadas à centralidade do movimento, ocuparem o espaço protagonista dentro do próprio circuito? Como fica a renovação da base? Com certeza absoluta. Quando o Fora do Eixo surge, um dos seus objetivos é não deixar a ABRAFIN se transformar numa panela. Demoramos dois anos para virar a referência dentro da ABRAFIN. No começo, éramos apenas os politizados. Hoje a grande maioria dos festivais da ABRAFIN é do Fora do Eixo. Começamos abrindo as planilhas dos nossos festivais, colocando para serem baixadas na internet, mostrando como funcionavam nossas curadorias. Isso gerou um impacto lá dentro. Fizemos também pesquisas para mostrar todas as bandas que tocaram nesses festivais, o número de vezes que cada uma dessas bandas tocou, em quais festivais, e começamos a publicar como funcionava a curadoria de cada um deles. Impedir que bandas mais próximas consigam uma maior difusão é difícil, mas diminuir esse estrago é um campo possível. O Macaco Bong, por exemplo, uma banda que trabalha com a gente em Cuiabá, já tocou em 25 festivais. Nenhuma banda tocou em tantos festivais quanto o Macaco Bong. Só que em 23 desses festivais eles foram se bancando. Então a proximidade do movimento deixou a banda mais esclarecida desse processo, mas não, necessariamente, fez com que eles conseguissem mais vagas dentro desses festivais. As bandas que não tocam nos festivais são as que não entendem a lógica de que um festival é uma grande mostra. Os festivais 105


são zonas autônomas temporárias, as bandas vêm e se aproveitam daquele levante, mas não é dali que elas vão tirar seu sustento. E aí tem uma questão interessante, que é o da reflexão crítica sobre a qualidade da produção. Você tem sentido um amadurecimento nesse sentido? Porque dentro desse discurso, você vê que quem se mexe mais, ganha mais espaço. Mas como você vê essa questão da qualidade? Ao mesmo tempo em que nunca antes, na história deste país, tivemos tanta banda ruim, nunca antes, também, tivemos tanta banda boa. São dez mil artistas querendo se apresentar, e você tem três mil vagas anuais para colocar esses artistas, então, você tem sete mil artistas que ficam de fora desses espaços que a gente está construindo. A disputa é grande. Como temos quatro anos, o filtro estético está se aperfeiçoando. Hoje festivais como o Calango ou o Goiânia Noise colocam sessenta ou setenta bandas, então você experimenta algumas e muitas delas não vão conseguir dar continuidade, mas o festival serve para isso, para buscar uma alternativa de lançar alguém, de apostar. Muitas vezes as bandas que estão localmente dando suporte a um coletivo vão circular, mesmo não sendo as mais legais. Só que tem um X da questão aí. Você tem três pilares nessa história, o público, o jornalista e o produtor. O público é o que mais importa nessa história: ele que vai definir se o produtor vai chamar a banda na próxima vez. É uma questão de gosto, mas também não é uma questão de levar a banda que tem mais público. O estético é um processo,também, não? Há uma qualificação natural com a troca de experiências... É. A gente tomou muita porrada quando começou a levar bandas de Roraima, do Amapá e do Acre, que, no começo, eram bandas muito ruins. Então, elas iam para os festivais e os jornalistas desciam o cacete na gente, dizendo que eram ótimos empreendimentos, mas que pecavam enquanto entretenimento. Tem uma cota política também. Se não fosse isso, não teríamos, por exemplo, uma banda tão boa do Amapá, como Mini Box Lunar. As primeiras bandas não eram tão boas, mas a gente sabia que estava num processo de formação de um cenário, que nunca ia se estimular, se transformar, se não tivesse tido contato com o que acontecia no resto do país. O André Midani disse que nasceu com o vinil e morreu com o download, 106


o que você acha? É uma frase bastante coerente e sincera da parte dele. A Associação Brasileira dos Produtores de Discos acredita que ainda não morreu, que ainda vai contratar, que está buscando novas alternativas, e é muito bacana que uma figura central nessa história toda, como o Midani, tenha a clareza que talvez demore mais tempo do que eles acham para se encontrar alguma alternativa. No nosso recorte, por exemplo, o último artista que estourou foi a Pitty, há dez anos, ou seja, se em dez anos nada mais aconteceu daquela forma, é porque a coisa não vai mudar. E, dificilmente, eles vão conseguir dar esse contra-ataque, até porque em vinte, trinta anos, essas iniciativas rizomáticas vão virar o establishment. Por isso que, para mim, o grande desafio é o debate de comportamento. É isso que vai criar o ambiente favorável para que, quando essa história virar o establishment, novas pessoas possam tentar desconstruir. Com certeza absoluta essa estrutura que está sendo construída na música vai substituir a indústria da forma como ela era antes e vai criar um ambiente mais democrático, mas, em algum momento, vai ter que ter outro levante, porque você terá cinquenta mil artistas querendo se apresentar e poucas estruturas para receber. Existe um teto para essa democratização também. Quando a gente tiver trezentas, quatrocentas cidades estruturadas, teremos um circuito com um número X de artistas, e aí será preciso um novo levante para abrir mais flancos. Nesse sentido, vamos sofrer a mesma pressão que as estruturas de hoje estão sofrendo. Uma outra perspectiva que o Midani coloca é que não vão mais existir carreiras como as do Chico Buarque, da Elis Regina. O sucesso continua existindo, mas carreiras como essas não existem mais. O que você acha? Penso completamente o contrário. Aquele sucesso não tem mais, e o modelo de carreira será muito mais equilibrado. O que mais existe hoje são artistas pensando a sua carreira, lançando um CD por ano, formando público pouco a pouco. Não tem mais a pressão de estourar, então ele faz aquele CD dentro de suas convicções, sem precisar se encaixar em um parâmetro específico ou um parâmetro da época. Os parâmetros de sucesso hoje são outros. Tanto o processo democrático no Brasil, em relação ao poder público na cultura quanto esse processo de queda do antigo modelo são muitos recentes. Essa visão de sucesso que está sendo construída não está tão clara para todo mundo, mas eu acredito que em cinco ou dez anos haverá escalas de sucesso diferenciadas, e as pessoas já terão a compreensão disso. 107


108


Fabricio Ofuji Produtor do grupo musical Movéis Coloniais de Acaju.

Fabrício, o que é produzir uma banda? Bom, meu trabalho como produtor se confunde um bocado com a própria história do Móveis Coloniais de Acaju, a banda/empresa da qual faço parte. Hoje mesmo pode-se trabalhar com a imagem do produtor – o que no exterior se chama manager – como aquele que gerencia desde a agenda do grupo até a alocação das verbas que a banda recebe. No exterior, há também a figura do agente, cuja função é vender shows, mais ou menos como o empresário brasileiro. No entanto, o trabalho no Móveis é um pouco mais complexo. Depois de adotarmos o modelo de empresa, tivemos que dividir algumas áreas internas. Inclusive, após a formalização da empresa (em 2007, salvo engano), contratamos um serviço de consultoria em administração, para que pudéssemos organizar melhor a banda internamente. Afinal, são nove músicos e um produtor. Para coordenarmos isso de maneira satisfatória, alguma orientação se fazia necessária. Conforme essa orientação, criamos uma direção colegiada encarregada de decisões gerais, formada pelos 10 membros. Formamos também outras diretorias, cada qual supervisionada por um integrante: marketing, relações institucionais, diretoria administrativa, departamento financeiro. Paralelamente a isso, temos também o setor de vendas, ligado tanto ao de marketing quanto ao financeiro. 109


Todos os integrantes vivem da banda/empresa? Atualmente, nove dos dez membros dedicam-se exclusivamente à banda. Apenas um integrante tem uma ocupação além do Móveis. De todo modo, tentamos alinhar a formação de cada integrante com as atividades da banda. Temos dois biólogos, dois músicos, um cientista social, um economista, um jornalista, dois designers e um arquiteto da informação. Por exemplo, os designers trabalham na área de programação visual, algo que tentamos incorporar à banda. Se eu mesmo, como jornalista, quiser fazer uma assessoria de imprensa para um determinado evento, é um serviço prestado pela Móveis Coloniais de Acaju Produções Artísticas. Você poderia falar um pouco sobre as estratégias da banda? Por exemplo, o evento Móveis Convida. Antes de mais nada, é melhor contextualizarmos um pouco o próprio ponto de vista da banda. Em primeiro lugar, são nove músicos. Só a banda e a equipe (sem instrumentos) já ocupam uma van inteira. Isso já apresenta uma dificuldade considerável num mercado tão pouco consolidado como o da música independente brasileira. Nossa primeira aposta foi fortalecer o grupo em Brasília. Como eram muitos integrantes de cursos diferentes, fizemos eventos universitários no intuito de formar um público local. Isso foi em 2003-2004, e ainda tínhamos aquela mentalidade calcada no “estourar”. Queríamos gravar um primeiro disco grandioso, bem produzido. Gravamos o disco com Rafael Ramos, do Rio de Janeiro. Uma vez pronto, decidimos fazer um grande lançamento em Brasília. Para organizar o evento, entramos em contato com outros produtores de evento de Brasília e promovemos uma festafusão. Tinha o show do Móveis, o lançamento, e mais duas festas agregadas ao evento. Tivemos um público de 3.500 pessoas. Foi então que percebemos que sabíamos organizar um evento. Dez dias depois do lançamento, já havíamos vendido 2000 dos 3000 discos que prensáramos de forma independente. De modo que, em 2005, tínhamos o CD em mãos e um bom público em Brasília. A banda se bancava há um tempo. Ninguém tirava do próprio bolso para investir na banda. Então decidimos viajar. Era um movimento arriscado, porque – naquele momento – não tínhamos uma associação de festivais. O circuito Fora do Eixo ainda estava em maturação à época. Mas acreditávamos que, se conseguíssemos tocar para um público expressivo de formadores de opinião e produtores musicais, aquele crescimento se manteria. Então fomos para o 110


Rio de Janeiro, para São Paulo, para Curitiba. Percebemos também que, para viabilizar essas viagens, o mais interessante seria trabalhar com a ideia do intercâmbio musical. Tínhamos o know-how para promover eventos, então, criamos o nosso Móveis Convida, festival que vai agora em sua 12ª edição. A graça do Festival é que ele é organizado por músicos, portanto, tentamos sempre dar o melhor tratamento possível aos convidados. Nessa altura já tocávamos para um público de mais ou menos 2000 pessoas. Portanto, se convidássemos um músico de expressividade nacional que nunca tocara em Brasília, ele podia contar com nosso público. Nosso contato sempre foi primordialmente com o público. Inclusive no sentido de trazer atrações interessantes, tanto conhecidas como desconhecidas. Tentamos aplicar um pouco dessa experiência em outras cidades do Brasil. Tocávamos em qualquer evento de qualidade, fosse de reggae ou de metal. Havendo oportunidade, estávamos lá. São Paulo foi especialmente boa nesse sentido. Tocamos para públicos de hardcore, ska, rock etc. Do ponto de vista da organização do evento, o que significa dar aos músicos o melhor tratamento possível? Quais são os parâmetros de qualidade para um trabalho como esse? Para nós, o mais fundamental é a atenção ao artista. Conseguir que ele vá às rádios locais, colocá-lo nos jornais para que o público conheça seu trabalho. Promover esse contato nos parece uma das principais características de um festival. Ou seja, criar um ambiente de contato, relação e escambo de experiências. Quando falo em troca, refiro-me também à troca entre os conjuntos que participam do evento. No geral, escalamos uma banda local para abrir o evento. Em seguida, a banda de fora se apresenta, e o Móveis faz o show de encerramento. Naturalmente, trabalhamos com limites orçamentários – 97% das despesas do Móveis Convida são arcadas com investimento nosso –, mas sempre que ficamos a par de algo interessante em algum outro festival, tentamos implementar em Brasília. Nesse sentido, a experiência mais marcante que tivemos foi no festival belga Pukkelpop, para o qual fomos convidados em 2008. Trata-se do segundo maior festival de música da Bélgica, e naquele ano eles estavam recebendo bandas como Metallica, The Killers, Flaming Lips, Bloc Party. Porém, todas as bandas eram tratadas do mesmo modo. Você tinha contato com todos os artistas, dividia o mesmo restaurante etc. Inclusive, os camarins eram divididos em grupos, e cada 111


grupo tinha uma hostess responsável. Se faltasse comida, por exemplo, era só chamar que ela levava. Fosse o Móveis ou o Flaming Lips, o tratamento era o mesmo. No Brasil, não se vê muito disso. Geralmente, quando se tem uma atração internacional, ela é sempre tida como a principal, e as atrações menores sempre se dão mal. Para você, quais são os formatos – tanto de show quanto de festival – mais interessantes no Brasil agora? Isso é algo que discuto bastante com outros produtores. Por exemplo, algo que me incomoda muito é essa tendência a inflar grades de atração, encaixar 10 bandas consecutivas num palco só. Em primeiro lugar, geralmente não se tem orçamento para arcar com tudo isso. No mais dos casos, tem-se apenas um técnico de som para operar todas as atrações, o que é péssimo. Depois da terceira banda, o técnico já não consegue mais prestar atenção. E também é preciso pensar pelo lado do público. Quando vou a algum festival, consigo assistir a no máximo quatro bandas seguidas, e isso depende muito das próprias condições do festival. Em suma, um festival precisa oferecer condições técnicas não apenas para o artista, mas para o público também. Tem que ser um ambiente agradável, com praça de alimentação, um espaço para escapar um pouco ao barulho e descansar. Sem mencionar a divulgação, que é importantíssima para que o espectador possa se organizar com alguma antecedência. Quanto a formato de show, a cada apresentação criamos um set diferente. Tentamos sempre inovar de alguma maneira, seja na performance, seja introduzindo vinhetas de outras versões. Não acreditamos em “música de trabalho”. Temos dois discos, cada um com doze canções, e confiamos no potencial de todas. O setlist é sempre variado, e o contato espontâneo e imediato com o público ocasiona sempre uma ou outra mudança. Inclusive, o público do Móveis inventou algo sensacional para os shows: o “flash móvel”. Trata-se de um flash mob que acontece durante o show do Móveis. Num deles, todos escolheram uma música e, numa determinada parte da música, encheram balões e jogaram. Isso tem acontecido em vários shows. Já aconteceu do público organizar um flash mob para uma canção que não estava no setlist do show. Naturalmente, incluímos a canção na hora. O que nos traz de volta à questão da banda/empresa. Para nós, um dos valores mais importantes a cultivar é justamente a flexibilidade. Flexibilidade e alegria, para fortalecer ainda mais a relação com o público. 112


Você poderia falar um pouco sobre a indústria fonográfica como um todo? Acompanhando o movimento, constatamos uma coisa engraçada. Associar-se a uma gravadora não é garantia de trabalho. Vimos bandas que eram apostas de grandes gravadoras não darem em nada. Portanto, desde logo percebemos que o ideal seria trabalhar em esquema de parceria com uma gravadora. Foi o que aconteceu com nosso segundo disco, o Complete. O disco é uma parceria entre a Trama e o Móveis. Ou seja, houve investimento tanto por parte da banda como da gravadora. Os direitos gerais pertencem à banda, embora licenciados à Trama. E a parceria resultou interessante porque ambas as partes acreditavam nas mesmas coisas: a música disponibilizada gratuitamente via internet, a divulgação de conteúdo na web (a Trama tem apostado muito na TV Trama). O CD ainda nos parece fundamental, tanto que lançamos o disco em quatro formatos diferentes: o álbum virtual, com encarte disponível na internet. O disco na caixa de acrílico, distribuído para as lojas. O de papelão (digipak), produzido pela banda para ser vendido em shows para aquela parcela do público que faz questão de um material um pouco mais elaborado. E uma versão que consistia apenas no CD-R encartado, bem simples, para distribuição gratuita. Afinal, em situações de show, há toda uma rede de pessoas trabalhando na bilheteria, no bar, fazendo segurança. Eles estão assistindo ao show também, e talvez gostem do que estão ouvindo. Podem não ter acesso à internet, mas têm um aparelho de CD e querem ouvir o trabalho da banda em casa. Não vão comprar na loja, porque não é todo mundo que paga R$ 20,00 num CD hoje em dia. Então, distribuímos para essas pessoas. Nos hotéis pelos quais passamos fazemos a mesma coisa. Uma das nossas principais apostas é a formação de público. Discutindo a situação atual do mercado fonográfico, André Midani nos disse que acha difícil que algum músico brasileiro atual tenha uma carreira tão sólida quanto as grandes estrelas da MPB. Como você se posiciona em relação a isso? Ainda creio que grandes hits sejam necessários. Precisamos de atrações que chamem público, porque o custo de um evento é sempre muito elevado. Paulo André Pires, do Abril Pró-Rock, costuma dizer que há muito mais gambiarras no Brasil do que casas de show propriamente ditas. Mas acredito que, em algum momento, conseguiremos ter um circuito tão movimentado como 113


os de axé ou sertanejo, onde há shows de segunda a segunda e frequentes incursões por cidades do interior. No momento, não estamos nem próximos disso. Precisamos trabalhar mais a formação do público. Não é sempre que um festival com várias bandas agrega um público expressivo, não importa o quão interessantes sejam as atrações. Eu acho que a gente precisa trabalhar sempre com artistas de maior expressividade. Por mais que exista toda uma cultura de nichos hoje em dia, nós do Móveis acreditamos que a formação de público é livre. O mais importante é tentar alcançar o máximo número de pessoas. E continuar tendo a alegria como um valor a cultivar. A pessoa pode não gostar da música, mas pelo menos precisa se divertir no show. Trabalhamos para isso – para que as pessoas se divirtam. Acredito que o Móveis esteja num caminho bom. Realizamos uma meta antiga, que é a de estar em constante aceleração. Seria correto pensar que o negócio do Móveis não é tanto a música, e sim a construção de um público? Bom, como disse, apostamos muito na alegria e na diversão, mas a qualidade da música é tão importante quanto. Inclusive, um dos nossos projetos mais recentes chama-se Adoro Couve, no qual lançamos um vídeo por mês em que fazemos um cover. Até agora fizemos Flaming Lips, Cartola e Talking Heads. É uma boa maneira de seguir estudando, pensando a construção das músicas enquanto as desconstruímos. Nossa banda produz muito conteúdo, e sempre tivemos uma preocupação muito grande com a estética. Uma das principais influências da banda, por exemplo, são os filmes do Emir Kusturica. Também gostamos muito de bandas que se utilizam de referências do leste europeu, e é interessante pensar que o Móveis antecedeu bandas como Beirut e Gogol Bordello. Em suma, tentamos manter esse equilíbrio entre as atividades de marketing e a qualidade do conteúdo em si. Por mais que miremos na diversão e na alegria, o produto precisa ter uma mensagem. Prezamos muito isso e fazemos questão de atentar ao que está acontecendo no Brasil e no mundo. Ano passado mesmo participamos de um evento muito importante: as comemorações dos 30 anos do Tamar, um projeto de preservação das tartarugas marinhas. O diretor do projeto, Guy Marcovaldi, é um homem muito musical, e já tinha convidado artistas como Lenine e Margareth Menezes. Ele queria uma atração mais voltada ao público jovem, portanto fomos lá para a Praia do Forte para conhecer de perto o projeto. Já saímos 114


de lá com a ideia de uma canção de conscientização chamada “Mergulha e Voa”, que em um mês já estava pronta. Mesmo no Móveis Convida, sempre tentamos ampliar essas questões sociais. Nosso baixista, Fábio, é sociólogo por formação. Em cada cidade que visitamos, tentamos conhecer um pouco da realidade local. Outro programa que temos é o “Agora ou Para Viagem”, no qual aproveitamos o fato de estarmos sempre de viagem e tentamos dar conta daquelas realidades, tanto conversando com músicos como com produtores locais. Recentemente fomos a Belém ao Ver o Peso, entender o que as pessoas estavam fazendo ali, como enxergavam a música e a cultura. Quando fomos à praia do Forte, por conta do projeto Tamar, fizemos a mesma coisa. Queríamos entender o impacto do projeto naquela região, o fato daquele vilarejo perto de Salvador ter se tornado um ponto turístico depois do projeto ter recebido tantos apoios da Petrobras e afins. É nosso dever enquanto artistas atentar ao que se passa. E quando as pessoas percebem que a banda tem essa preocupação com o social, coisas acabam surgindo espontaneamente. Recentemente, uma moça do Rio nos apresentou um projeto chamado Veia Social, visando estimular a doação de sangue. Já estamos dialogando com isso. Por mais que nosso carro-chefe seja a alegria, e por mais que a consideremos fundamental para o desenvolvimento individual, queremos atingir as pessoas por outros meios que não a música. Naturalmente, ainda temos essa barreira da consolidação da nossa própria carreira artística, mas estamos trilhando esse caminho. De qualquer maneira, quanto maior a projeção do artista, maior sua responsabilidade social. Você poderia falar um pouco sobre o impacto da Internet no cenário cultural como um todo? Bom, a história do Móveis deve muito à internet. Desde o início, o grupo já tinha o hábito de usar hospedagens livres para colocar no ar fotos da banda e trechos de música. Em 2003, antes de vários artistas adotarem o download como mecanismo de distribuição, o Móveis já havia disponibilizado em seu site um EP com três músicas, além de um encarte que se podia imprimir e colorir. Falando de modo mais geral, é inegável que a internet facilitou o acesso ao artista. Já não dependemos de grandes mídias, apresentações em programas de TV com o número de nosso empresário piscando na tela. Agora, se alguém tem interesse em contratar o Móveis, basta jogar nosso nome em algum mecanismo de busca pela internet. Outra coisa extremamente positiva – procuro sempre 115


ver o lado positivo – é a facilitação do acesso a outras manifestações culturais, o que é muito importante para qualquer artista. Não precisamos mais viajar e trazer referências do estrangeiro. Podemos acessá-las via internet. Todos os integrantes do Móveis baixam música pela internet? Sim. Ou baixam ou ouvem por streaming. De fato, essa prática ocasionou uma queda na venda dos discos, porém, por outro lado, muito mais gente está escutando música hoje em dia. Um mp3 circula muito mais do que um CD. Mas o impacto para a indústria fonográfica – refiro-me às majors, onde se concentra a maior parte das discussões – é um pouco superestimado. O que houve foi uma pequena alteração de foco. Eles mantêm o monopólio. Quando vemos a relação dos mais vendidos nos últimos vinte anos, a composição é sempre muito parecida: duplas sertanejas, cantoras de axé, trilhas de novelas. Isso não mudou tanto assim. Qual é a importância econômica do show para a estrutura da banda? A receita majoritária vem dos shows. Calculo algo em torno de 70% da receita geral. Para o Móveis, o show é tanto cartão de visita como fonte de receita. Se vamos tocar numa praça onde não somos conhecidos, mas existe potencial de público, encaramos aquele show inicial como investimento, não necessariamente fonte de receita. Há várias maneiras de equilibrar isso, como você vê. Como no caso das atividades on-line. Vendemos CDs pela internet, mas é durante os shows que realmente divulgamos nosso conteúdo. Vocês pensam em trabalhar para outras bandas? Exportar, de alguma maneira, essa lógica de trabalho? Muita gente nos questiona sobre essa possibilidade. Mas seria complicado tentar isso agora, já que nos dedicamos tanto à banda. São muitos compromissos, muitas atividades. Por exemplo, enquanto dou esta entrevista, a banda está ensaiando com o Teatro Mágico para uma transmissão ao vivo na TV Trama. Mas é uma possibilidade a se considerar, quando tivermos tempo. No Brasil, publicações voltadas para logística de turnê e divulgação de banda são muito escassas. Portanto, estive elaborando com o guitarrista – economista por formação – uma apresentação para outras bandas, propondo novos modos de atuação. Outro ponto importante, mas pouco discutido, é a próprio comportamento do músico no palco. O comportamento do músico é 116


tão importante quanto a própria estrutura do festival. Uma coisa é o músico estar lá apenas para se divertir, beber, sair com a galera depois do show. Outra coisa é o músico estar lá, preocupado em fazer contato com outras bandas e mostrar o melhor de si. Mas falo também do comportamento do músico frente a seus companheiros de banda. O guitarrista não pode colocar o volume dele no máximo, por exemplo, porque isso atrapalha tanto o desempenho dos outros integrantes como o trabalho do técnico de som. Todos os integrantes de uma banda precisam se policiar nesse sentido. Muitos produtores de banda costumam reclamar da estrutura do festival, quando na verdade eram os músicos que estavam prejudicando o som. Qual é o pior lado de se ter uma banda-empresa? Bom, não temos a quem responder, então – quando necessário – precisamos dar bronca uns nós outros. Isso é complicado. Mas há muitos aspectos positivos. Por exemplo, todos os integrantes sabem quanto seus colegas ganham. Essa transparência é importante, afinal, trata-se de um vínculo formal entre dez indivíduos. Em muitos sentidos, é como um casamento. Precisamos pensar em onde queremos estar daqui a cinco ou dez anos, precisamos ter em mente o fato de que não estamos construindo algo volátil, que pode vir abaixo por conta de algum desentendimento. O Móveis é realmente um golpe de sorte. São dez pessoas muito distintas, tanto no comportamento quanto no gosto musical. Nem Beatles é uma unanimidade entre nós. Por fim, como se dá a sua integração na banda? Apesar de produzir, você está em todas as fotos, compõe junto... Eu costumo brincar que minha função é “tocar móveis”. Não toco saxofone, não toco guitarra: toco a banda. Sou como o mestre-titereiro. Ou a figura oriental que chega para apimentar uma relação... Mas, falando sério, fui o primeiro a me dedicar exclusivamente à banda. Eles trabalhavam no palco e eu me encarregava de praticamente toda a parte do backstage: contratação, divulgação, até mesmo assistência de roadie, ali no palco. Já naquela época – 2005 ou 2006 – as pessoas me reconheciam como integrante da banda. Penso que não existe maneira de mensurar o valor de cada integrante da banda em separado. Todos os membros trabalham em prol da banda, então, nada mais justo que nivelar, não é?

117


118


Valéria Cordeiro Produtora da Feira de Música de Fortaleza.

Valéria, como começou a PRODISC? A PRODISC começou no Fórum de Música do Ceará. Nas primeiras reuniões, percebemos que algumas pessoas tinham objetivos bem próximos e pensamos em realizar um evento que viabilizasse a discussão de algumas questões relacionadas à música no estado, a Feira da Música. Para isso, criamos a instituição. Qual era a proposta inicial da Feira da Música? A feira tinha como objetivo ser um ambiente onde se encontrassem outros produtores do Nordeste e onde também conversássemos com mais gente. Um evento para o qual viessem bandas, produtores, trabalhadores da área de música. Queríamos mostrar para a moçada o trabalho que estava sendo feito em outros estados, inclusive do Sul e Sudeste. Nós nos sentíamos muito fora de tudo, e esse encontro serviria para entender o que o Ministério da Cultura pretendia no apoio aos projetos. Na época, poucos projetos de música eram apoiados na região. Desde a primeira feira, já houve participação dos demais estados do Nordeste? 119


Na primeira feira, fizemos convites e abrimos inscrições, mas trabalhamos, primeiramente, a cidade de Fortaleza e o estado do Ceará, pois havia uma necessidade interna de aproximação entre os grupos. Então, propusemos uma feira que reunisse a cidade e convidamos pessoas do Ministério e das secretarias de Cultura. Havia oficinas também, workshops. Na segunda edição, organizamo-nos para fazer um encontro maior, que abarcasse o Nordeste inteiro. A resposta foi surpreendente, quando se leva em consideração o fato de que os convites não eram bancados, tampouco o transporte. Não havia cachê. Investíamos nas palestras, nos workshops, nos encontros, mas não bancávamos completamente os grupos. A ideia é que dentro da feira se aproveite para fazer negócios, parcerias, que se criem formas de inserção em outros estados. Antes da feira, visitamos todos os estados, em colóquio com o SEBRAE, secretarias de Cultura e fundações, para organizar caravanas que facilitassem a locomoção. Fazemos isso até hoje. Um ônibus pode trazer até cinco grupos. Vinham juntos jornalistas, luthiers e músicos, e recebíamos todos num mesmo hotel. Era uma grande festa, uma grande confraternização. A cada ano ficava mais interessante. Com o tempo tentamos nortear essas discussões, organizar uma rede, fazer projetos em conjunto. Antes do grande choque da internet em toda indústria da música, quais eram as questões centrais? Existiam gravadoras locais? Existiam formas de sobrevivência para as bandas no Ceará? Existem vários estúdios bons em Fortaleza, portanto, os músicos conseguiam fazer seus discos. Como em todo canto, conseguiam gravar ou através de um edital ou juntando recursos próprios, ou com o auxílio de algum outro patrocinador. A distribuição é que barrava todos. Apenas as rádios universitárias tinham interesse nesses artistas. Então, faziam-se shows na cidade, mas o negócio estava completamente engarrafado. Um ou outro conseguia fazer uma viagem e voltar com alguma novidade. Que estética tinham esses trabalhos? Era uma estética um pouco setentista, remontando a um período que nos deu Ednardo, Rhodia, Tetê. Na realidade, o Nordeste inteiro ficou nisso por bom tempo. O que vinha acontecendo de mais diferente era o rock and roll mesmo. A moçada tinha – e tem até hoje – um público bem fiel. Quando começamos a feira, achávamos tudo muito parecido, mas acreditávamos 120


que algo de novo vinha por ali. E eventualmente veio. A cidade começou a se enxergar em vários grupos, que diziam coisas diferentes de formas diferentes. Quem eram? A Karine Alexandrino, por exemplo. Gradualmente, fomos conhecendo os outros grupos de Pernambuco, da Paraíba. Pernambuco é muito interessante, toda essa safra que trouxe Mombojó e tantos outros. Isso foi dando um ar para a feira. Quanto mais trazíamos grupos diferentes, mais sentíamos a cidade se movimentar, questionar, questionar-se também. Depois disso veio a internet, como uma grande rede de distribuição de música. Como isso influiu na feira? Há uns quatro anos iniciamos uma rede Nordeste. A partir daí, saímos para encontrar as pessoas em outros eventos, para continuar as discussões. Era importante que esse grupo fizesse uma rede de discussão que não acabasse junto com os festivais, mas não durou muito: ela se dispersou. Nessas reuniões, conhecemos o pessoal do Fora do Eixo. Convidamos Pablo Capilé para ir a Fortaleza, à feira, e ele mexeu com todo mundo com seu discurso agregador e apaixonado. Você falava com o Brasil inteiro rapidamente através do Fora do Eixo. Ali ninguém dorme no ponto. É impressionante como, a qualquer hora, tem alguém do Fora do Eixo on-line. Depois disso nos conhecemos melhor no Congresso Fora do Eixo, no Acre. Eram duzentas pessoas juntas, do Brasil inteiro. A PRODISC tem um ponto de cultura. Como conseguiram isso? É um ponto de cultura pela prefeitura. Temos uma casa, bem grande, onde morávamos. A cada evento que fazíamos a casa ficava com menos espaço, pois o que sobrava dos eventos ia para lá. Todo mundo já tinha se apropriado do espaço. Era mais ou menos organizado, tem um pequeno estúdio, um estúdio mix, que se aluga a preço de nada. O espaço funciona para planejamento, projetos, produção, gravação. Quando vimos, já havia atividades acontecendo o tempo todo. Então, entramos com o projeto na prefeitura e fomos contemplados. Foi quando começamos a fazer oficinas para TV, rádio e web, para a moçada (inclusive, a Mostra de Música é transmitida ao vivo). Realizamos oficinas técnicas, pois se tem dificuldade aí. A Feira da Música, por exemplo, tem seis palcos funcionando todos os dias, precisamos de uma 121


boa equipe técnica. Nesses anos todos, formamos muita gente com as oficinas e botamos esse pessoal para fazer estágio. Existe formação formal de produtores em Fortaleza? Formal, não. Se não me engano, no ano passado, a Secretaria de Cultura colocou um curso de produção cultural mais longo no interior do estado. Essas oficinas de produção em cultura foram formando os “anjos”. Colocamos um produtor com mais experiência, e os assistentes, os “anjos”. São jovens na sua primeira experiência, que gostam da área, têm interesse e acompanham tudo. Com isso, eles vão ganhando experiência. Se acharem interessante, vão por aquela área. Não sendo esse o caso, fazem um teste em outra. O “anjo” é remunerado por esse trabalho? Ele recebe uma ajuda de custo. Além disso, bancamos transporte e alimentação enquanto ele estiver conosco. Eles trabalham poucas horas e não ficam até tarde. É uma experiência muito interessante. Há vários “anjos” que já são ótimos assistentes. Essa é uma questão de formação técnica. No estúdio, por exemplo, vocês têm produtores qualificados tecnicamente? Estamos pensando num edital para uso do estúdio, um edital para bandas. Nosso técnico, que é muito bom, vai supervisionar. Antes, o técnico acompanhava a gravação das bandas, mas não tinha alguém para estagiar. Temos alguns roadies que já foram para muitas produções, acompanharam muitas gravações e masterizações. Vão a palco e têm uma convivência significativa com estúdio. Hoje em dia, quais são os temas que dão diretrizes à Feira da Música? Sentíamos que as necessidades eram muito parecidas. Tínhamos o SEBRAE como parceiro, e a gente sabia que o SEBRAE tinha um projeto que era regional: entre Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Conversando com uma pessoa do Núcleo de Cultura, a gente descobriu que o SEBRAE tinha projetos parecidos em outros lugares. Aí íamos até o SEBRAE propor: “Por que não fazemos um projeto integrado? Vamos chamar a moçada do Rio Grande do Norte e da Paraíba!” Então, a gente juntou os SEBRAEs e criou o Esquina Brasil, que é um projeto que uniu vários grupos. Era um projeto onde os grupos se 122


inscreviam; cada estado mandava as inscrições dos grupos para fazer um CD que juntasse grupos de vários estados. Nesse primeiro CD, eram quantas bandas e quantos estados? Não foi só um CD. Foram dez grupos de cada estado, e eram três estados. Temos parcerias com o SEBRAE desde o começo. Primeiro, como uma feira de negócios da música. Depois, começamos a trocar tecnologias. Para os técnicos do SEBRAE era difícil entender como funcionava a cultura. Na época, nenhum SEBRAE, com exceção do de São Paulo, tinha um núcleo de cultura. Provocamos o SEBRAE a cumprir também essa demanda, tanto que, há dois anos, usamos até rodada de negócio, coisa que existe em todas as feiras do SEBRAE. Nas rodadas de negócio, o SEBRAE junta quem quer comprar com quem quer vender. O comprador senta numa mesa, e uma série de pessoas vem conversar com ele. Por exemplo, o Centro Cultural Banco do Nordeste tem o Rock Cordel, o Bang Bang Instrumental, vários espaços e projetos. Ele vai para encontrar os grupos para preencher o calendário dessas iniciativas. Forma-se uma fila dos grupos, e eles conversam com o diretor de programação, deixando o seu material. Quais são as propostas para o negócio de música que vocês consideram mais interessantes? Uma questão atual é a ideia de mobilidade, como propõe o Fora do Eixo. Por exemplo, quem quer sair do seu estado para fazer seu trabalho pode sair se quiser, mas não queremos que tudo saia do Nordeste para sobreviver. Queremos que os artistas possam, caso queiram, viver de seu trabalho lá mesmo. Queremos difundir a ideia de que não são necessárias grandes produções para que o artista faça um show na sua cidade. Ele pode abrir a varanda de sua casa e chamar seus amigos. Pode, inclusive, chamar artistas da cidade vizinha para se apresentar. Não só isso, como também ir até a cidade vizinha, com a banda inteira dentro de um carro, e fazer seu show. Esse é um passo fundamental. Depois, a banda pode dar outros passos, e para tanto há pessoas dispostas a ajudar no Brasil inteiro. Então, a atitude é mais ou menos esta: não precisamos fazer para trinta mil pessoas. É sempre difícil no começo, mas não deixa de ser um caminho. Quais são os próximos passos da feira? 123


Durante oito anos, nossa maior preocupação era divulgar o festival, criar um espaço onde todo mundo se juntasse. Em 2009, com os congressos, câmaras setoriais e o Fora do Eixo, nossa prioridade mudou um pouco. Agora, queremos dizer que o ouvido tem que ser tão independente quanto a música que se faz, ou seja, a feira já se consolidou. A meta agora é a formação do público. Já somos um evento de porte nacional. Tem coisa boa do Brasil inteiro, de todos os estilos, para todos os gostos. Queremos que o público se permita ouvir coisas às quais não está acostumado. Quais são as estratégias para isso? O público jovem, em geral, é o que tem mais poder de transformação. Esse é o público do qual nos aproximamos primeiro. Como estreitar relações com esse público? Pela internet, com certeza. Blogs, flickers, sites. Qualquer lugar onde é possível pôr informações sobre o que está acontecendo. Outra estratégia é comparecer a todos os outros eventos. Passamos a ser convidados a todos os festivais, e também convidamos todo mundo para vir. Distribuímos fonogramas e CDs. Temos uma parceria com a ARPUB, a Associação de Rádios Públicas do Brasil, que acabou de fazer um festival nacional que reuniu um bocado de gente em Salvador. Através das rádios públicas, distribuímos esse material, e é sempre muito bem recebido. Eles estão em vários festivais agora, gravando e transmitindo ao vivo essa programação. Há muitos canais alternativos para ocuparmos. Qual a possibilidade de subsistência de um músico jovem, hoje? Continua difícil. Recentemente, houve um festival mundial, cuja seletiva brasileira foi organizada pelo Centro Cultural Banco do Nordeste. O que a banda que ganhou resolveu fazer? Todos os integrantes abriram mão do seu cachê para custear a ida de apenas um deles para esse festival. A solidariedade é uma forma, porque nos projetos, na cidade, nos festivais, o grupo ganha cachê, ou faz festas, e divide os lucros com os parceiros e produtores. Em Fortaleza, é difícil encontrar um lugar onde não tenha música ao vivo. Tem no supermercado, na padaria. Para alguns grupos, é mais difícil a apresentação. Esses fazem os seus discos e vendem nos shows. O músico vira produtor também, de seus projetos e de outros grupos. Ele se diversifica. 124


Como vocês veem a relação da música com as outras artes? Estamos começando a operar a inserção do cinema, cavando espaços para exibir o material da moçada. Aos poucos, trazemos para perto alguns coletivos. Trabalhamos com o pessoal do Coletivo da Moda, no ano passado. Eles fizeram camisas e bolsas para a feira, e ficaram lindas. Fizemos também algumas intervenções com grafite nos espaços. Estamos próximos de alguns grupos, mas a ideia é melhorar isso. Desde os anos 1960, existe uma ponte muito forte entre Recife, Natal e João Pessoa. Como está isso agora? O Ceará teve diálogos culturais aprofundados com os vizinhos? Aprofundados, não, mas creio que esse momento seja um dos mais promissores. Recebemos muito mais grupos vindos de Pernambuco e da Paraíba. A feira contribuiu muito para abrir os canais de comunicação entre produtores de todos os estados. Como a questão da cultura tradicional se incorpora à Feira da Música, à PRODISC? Dentro da feira existe o Música de Raiz. São projetos convidados, não entram na seleção, são tratados de outra maneira. Sempre contamos com três grupos populares muito grandes de estados como Piauí ou Maranhão. Vêm coco, maracatu, boi do Maranhão. Além desse caráter de festa, trata-se de uma ótima maneira de divulgar essas manifestações para um público mais jovem. Promover um encontro com a tradição. Com o tempo, esses encontros acabam gerando diálogos? Sim, e pesquisas também. Já vi vários projetos surgirem desse encontro. O Don L, do hip-hop, está agora com um projeto de pesquisa. Vai para o Pará, para Pernambuco, para o Maranhão, se aproxima dessas fontes e propõe coisas conjuntas. E é uma festa, passar quatro dias dentro da feira com, mais ou menos, 450 músicos do Brasil todo. Temos programação de tarde e de noite. De tarde, são encontros, workshops, grupos de trabalho; à noite, são apresentações. Depois das apresentações, é o momento em que o povo se mistura.

125


126


Melina Hickson Diretora e Produtora do Porto Musical.

O que é o Porto Musical? É uma convenção internacional de música e tecnologia, que foi criada em 2003, em parceria com a WOMEX, que talvez seja a maior convenção de música do mundo e acontece uma vez por ano na Europa. Nossa produtora foi a primeira do Brasil a participar da WOMEX, há uns 12 anos, já com a intenção de desenvolver a carreira internacional dos grupos com que a gente trabalhava, como Chico Science e Nação Zumbi. Então a equipe do WOMEX começou a se interessar pelo Brasil e em 2003 visitou Pernambuco. Lá eles conheceram a iniciativa do Porto Digital, que é uma OS (Organização Social) que incuba empresas de tecnologia e software e que hoje tem mais de cem empresas ancoradas; tiveram contato com muitas bandas que circulavam na época, como Lenine, Silvério Pessoa, Siba, DJ Dolores, a própria Nação Zumbi. A partir daí, começamos a projetar um evento que juntasse estes dois produtos de exportação: música e tecnologia. Nessa época, vivíamos já a revolução da tecnologia na música. Quer dizer, a tecnologia mudou completamente o cenário do criar, do produzir, do divulgar, do vender música. E a gente acabou juntando esses dois conceitos, mas a tecnologia é em relação à música, não é qualquer tecnologia. Nesse sentido, fizemos o primeiro Porto Musical, em 2005, um evento de pensamento, de discussão, de formação de produtores 127


e de profissionais para essas áreas. O evento é composto por conferências distribuídas em três plataformas de discussão, que a gente chamou de “Go Brasil”, “Go International” e “Go Digital”. O que são elas? “Go Brasil” é para os grupos e profissionais estrangeiros que desejam entrar no mercado brasileiro e querem saber como fazer para lançar seu disco aqui, fazer sua turnê, conhecer um pouco como funciona a divulgação, distribuição e essas coisas todas no Brasil. A “Go International” é o contrário: a gente traz profissionais e players importantes do mercado internacional para mostrar para os artistas, grupos e profissionais brasileiros como eles devem fazer para sair do Brasil. E a “Go Digital” traz essas ferramentas todas, essas tecnologias, e levanta questões sobre como criar a partir disso, como divulgar o seu trabalho, promover, distribuir etc. Esses são os três pilares de discussão. Conte um pouco do que é a WOMEX. A WOMEX tem hoje 12 ou 13 anos. É uma convenção criada dentro de um escritório alemão, baseado em Berlim, especificamente para atrair, para um só lugar, profissionais de música do mundo inteiro. Na época em que ela foi criada, estava muito em voga o termo “world music”, então quer dizer World Music Export. Profissionais e artistas que desejassem desenvolver uma carreira internacional de música poderiam ir para a WOMEX encontrar outros agentes, outros players, outros profissionais, e ali trocar experiência e divulgar o seu trabalho para outros países. Isso começou com trezentos, quinhentos profissionais. Hoje a gente viaja para a WOMEX e encontra lá mais de três mil profissionais do mundo inteiro. É uma coisa maravilhosa, porque há uma convergência, as pessoas realmente investem nessa ida, os negócios são realmente fechados. A WOMEX é uma oportunidade ímpar para quem deseja desenvolver a carreira internacional de uma banda. Ela hoje é um ponto de convergência fundamental para quem tem pretensões de desenvolver suas carreiras, ou as carreiras de seus artistas, fora dos seus lugares de origem. Como a questão do digital mudou essas carreiras? Quer dizer,o alcance,o download, levou a um conhecimento muito maior lá fora? Você percebe esse impacto? 128


Ah, claro, sem dúvida. O digital é um meio, não é um fim. Na verdade, ele é um meio para essa revolução. Ele fez o mercado fonográfico se diluir, e só agora, com quase vinte anos de revolução, parece que as majors e as grandes gravadoras estão começando a se inserir dentro desse ambiente e buscando o seu lugar ali. No mundo inteiro, a tecnologia e o digital estão inseridos em todas as etapas da produção musical, desde a criação até a divulgação, passando pela promoção, pela venda. E isso é desafiador, mas é muito democrático. Acabou aquele formato do grande artista, em quem a gravadora investia todo aquele dinheiro, e que não fazia nada além de criar, deixando a cargo do empresário da gravadora todo o desenvolvimento da sua carreira. Isso acabou completamente. Agora, por causa dessa democratização tecnológica, a gente tem uma quantidade enorme de grupos, uma produção independente violenta, e o que esses grupos devem fazer para emergir nesse mar, como ser a garrafinha que vai subir, é extremamente desafiador. Não existe mais formato, um modelo que o artista deve seguir para vender discos ou para atingir a expectativa que tem para sua própria carreira. A única coisa que ele não pode mais fazer, no meu ponto de vista, é colocar a carreira dele na mão de uma pessoa e esquecer o resto. O artista tem que meter a mão na massa mesmo, porque quanto mais ele se envolve com a carreira dele, em todos os aspectos, mais rendimentos ele tem. Essa é uma das discussões centrais no âmbito da música hoje, com opiniões divergentes. O André Midani, por exemplo, fala que hoje é mais fácil colocar o seu trabalho na rua, mas é mais difícil sustentar uma carreira. O Pablo Capilé fala o contrário, que com esse processo da tecnologia você tem uma carreira muito mais sustentável. Como você vê isso? Eu sou a coluna do meio, sou o centro. Na ABRAFIN, a Associação Brasileira de Festivais Independentes, de que o Capilé é presidente, eu participo com eventos fundadores, como o Porto Musical e o Abril Pro Rock. Eu consigo perceber essas ferramentas que o Circuito Fora do Eixo criou, de circulação, de sustentabilidade para esses grupos, consigo perceber exatamente o que tem de positivo. Para muitos grupos desconhecidos, isso é maravilhoso: eles criaram realmente um circuito, uma atmosfera completa de produtores e pessoas que ajudam na divulgação, na sustentabilidade, mas isso, por exemplo, não serve para o meu artista Siba, que teve uma carreira de muita repercussão, primeiro com o Mestre Ambrósio, depois no seu trabalho solo. No caso dele, o Circuito 129


Fora do Eixo já não serve muito mais. Ele realmente precisa de cachê para fazer as coisas, ele vive de música. Cada um tem que avaliar o seu momento. O Midani também tem razão, porque realmente é muito fácil gravar seu disco hoje, é muito fácil divulgar, você faz tudo isso no seu computador, mas é mais complicado para se sustentar. No entanto, já existe um mercado aí, e dependendo das expectativas de cada grupo, de cada banda, é possível se sustentar. É um mercado que é para muitos. Na época do Midani, o mercado era para poucos, era muito dinheiro, mas para poucos. Hoje tem dinheiro para muitos, e cada um tem que encontrar o seu caminho nisso aí. Eu concordo com ambos, as experiências são distintas e não são definitivas. Cada artista, dentro dos seus históricos, das suas trajetórias, vai se encaixar num modelinho desse, seja o que Capilé propõe, seja o que Midani diz, seja o que ele próprio vai descobrir que é melhor para ele. Tem uma coisa etária aí, uma questão de você ter vinte e poucos anos, poucos compromissos financeiros e a possibilidade de uma entrega grande a uma questão mais voluntariosa da música. Com o tempo, as pessoas acabam tendo compromissos financeiros e obrigações, e esta é uma tendência que a gente tem visto nos últimos anos: e bandas que poderiam ganhar maturidade se dissolvem por dificuldades financeiras. Como trabalhar com a sustentabilidade? Porque, na realidade, a questão não é só o momento, é como se sustentar, não é? Realmente. A turma do Circuito Fora do Eixo está fazendo o que a gente fazia há dez, 12 anos, quando começamos a fazer o Abril Pro Rock, por exemplo. Não existiam as terminologias de coletivo, associativismo, cooperativa, mas a função social e de mercado que esses festivais que começaram há 18, vinte anos exerceram a mesma. Eles começaram na época em que não se tinha técnico de som, não se sabia o que era roadie, nenhuma banda tinha um mapa de palco, ninguém sabia o que era um rider. Esses festivais, apesar de não terem sido pensados como cooperativa, coletivo, funcionaram, na época, como hubs; foram responsáveis pelo começo do desenvolvimento dessas redes, desses segmentos de pessoas envolvidas no mercado, da formação de um técnico de som, da formação de um técnico de PA, de um roadie, de um produtor de banda. As próprias bandas começaram a se profissionalizar. Eles começaram a desenvolver esse mercado há vinte anos. Na época, era o famoso lema punk do “do it yourself”, faça tudo sozinho se quiser fazer 130


alguma coisa. Hoje é o “do it together”, faça coletivamente se quiser sair do canto. Cooperative-se, colabore, faça parte de coletivos. Tudo isso que a gente está vivendo é uma consequência do passado, é uma evolução natural do mercado. A grande palavra no meio disso tudo é a “sustentabilidade”. Vivemos numa época em que os governos municipais, estaduais e principalmente o federal começaram a perceber a importância desse setor e a importância dessa economia da cultura. A música, que é a minha área, vive um momento extraordinário, em que todos esses segmentos estão discutindo na transversalidade da coisa mesmo, desde o produtor até o artista, o técnico, a gravadora. Está todo mundo numa discussão única, e quem quiser participar dessa discussão deve e pode participar. E o governo está acreditando nisso com os editais, com os incentivos. Agora, edital não é uma política pública, é uma ferramenta. E do mesmo jeito que o governo e as empresas devem pensar em como fazer os editais, os produtores e os artistas também devem pensar em como usar esses editais, pensando na sua sustentabilidade. Temos que aproveitar esse momento, porque a gente não sabe o que vem daqui para a frente. Do mesmo jeito que antigamente tínhamos a política de balcão, agora temos a política de editais, e daqui a dois, três, dez anos, pode ser outra coisa. Então, se eu pegar o dinheiro que eu ganho no edital, aproveitar esse momento de subvenções e investir num momento pontual, eu não estou pensando na sustentabilidade. Não adiantam editais para fazer discos, para os discos ficarem dentro da gaveta do cara! Ou na gaveta da mãe do cara, da namorada do cara, dos amigos do cara. Tem que pensar no desenvolvimento daquele disco. O que é a Rede Música Brasil? A Rede Música Brasil é a junção de várias entidades significativas da música brasileira para discutir esse novo mercado, juntamente com o Ministério da Cultura e a Funarte. São entidades como a Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN), Associação Brasileira da Música Independente (ABMI), que agora está retomando as suas atividades e que foi a associação produtora da primeira Feira Música Brasil. Além dessas, há outras entidades, como o Fórum dos Músicos do Brasil, câmaras setoriais, gravadoras independentes, editoras. A rede apresentou dez pontos básicos de consolidação e das necessidades desse novo mercado durante a Feira Música Brasil. Entre eles, a formação da 131


agência da música, assim como tem a Ancine, no cinema; a volta da música na formação acadêmica e escolar, que já é lei, só não está regulamentada, e que é fundamental para a formação de plateias; o olhar para a exportação, que, dentre os dez pontos é o que o ministério, por pura falta de tempo e de intenção, ainda não conseguiu moer. Você acha importante ser um trabalho contínuo de exportação? Claro, naturalmente é um trabalho contínuo. Vamos plantando sementes e despertando interesses. O mercado norte-americano é extremamente difícil para qualquer música que não seja americana. A brasileira então, nem se fala. Já a Europa é infinitamente mais aberta para a música brasileira, mesmo que neste momento ela não esteja em alta lá. Houve um boom da música brasileira lá, em 2005, quando aconteceu o Ano do Brasil na França. O ano de 2006 também foi muito bom. Nessa época, a gente fazia turnê com DJ Dolores que durava sessenta dias! Com o Siba, eram 15, 16 datas nos principais festivais. Mas, naturalmente, tem momentos e momentos. O que uma banda nova deve fazer para conseguir chegar ao mercado internacional? As bandas, muitas vezes, por saber do trabalho que a gente faz, perguntam para mim como devem fazer para sair do Brasil. Aí, dependendo da banda, eu pergunto se ela já saiu da cidade. É muito importante ser primeiro local, para depois ser global. Tudo tem o seu momento. Acho que uma coisa fundamental para que essas bandas se desenvolvam, em vários aspectos, é reconhecer a sua comunidade, é se reconhecer naquele ambiente, contribuir para aquele ambiente. Aliás, essa contrapartida deveria ser fundamental, inevitável. As bandas deveriam olhar para a sua comunidade, consolidar seu primeiro público, compreender os seus pares, e ver, a partir dali, como pode se divulgar e sair. Muitas bandas novas têm a pretensão de sair do Brasil no primeiro disco, sem ainda nem ter um público formado aqui. Por outro lado, pode ser que a banda faça todo esse caminho dentro do Brasil, percorra com a maior tranquilidade, mas nunca consiga nada fora, porque não é todo som que tem potencial lá fora. Então não adianta essa ilusão. Estão incluídos nos pontos da Rede Música Brasil o pensamento crítico, a divulgação e a reflexão? 132


Em segundo plano. Tem o envolvimento disso, mas eu acho que essa discussão ainda não chegou lá. Temos uma lista virtual com trinta, quarenta e-mails diários, com cada um perdendo seu tempo de trabalho para discutir, para contribuir como processo. Tirando as mazelas pessoais que aparecem de vez em quando, existe, realmente, uma discussão importante ali. Estamos nesse caminho, que pode ter os seus tropeços naturais, mas que é um caminho. Aí vem um jornalista, com um espaço público importantíssimo de formação de opinião e crítica, e põe uma desgraceira numa matéria que, de uma hora para outra, pode fazer cair por terra uma boa parte dos meses e das intenções que estavam ali. Eu acho isso uma tristeza, uma temeridade. A imprensa não acompanha. Ao mesmo tempo, a imprensa perdeu muito do seu poder, não é mais a formadora de opinião que era. Por que a Rede Música Brasil não criou uma interlocução mais ampla com a sociedade? Você não acha que poderia existir uma revista, um boletim, alguma coisa para trazer essa informação para a sociedade de forma mais ampla, e não só para os interessados de primeira mão? Naturalmente, é um caminho. A gente não consegue dar o laço no boi, montar no cavalo e sair correndo ao mesmo tempo. É um caminho a ser percorrido. A Rede Música Brasil está se reconhecendo ainda enquanto organismo. Travamos essa discussão dentro de uma rede que tem uma Associação de Festivais, um Fórum de Músicos, editoras, gravadoras, o governo, tudo. Estamos, na medida do possível, tentando construir um discurso. Então é um processo enorme ainda, difícil de se entender. Há agora uma discussão muito grande sobre o cachê, se o músico deve ou não ganhar. Aí fica uma briga entre músicos e produtores, um dizendo que está indo dinheiro demais para um lado, essas coisas. Eu acho isso uma baboseira. O que todo mundo tem que entender é que estamos juntos, temos que ir juntos. Se o festival tal não pode dar cachê, é só não ir tocar lá, o músico não é obrigado a tocar. Agora, se ele entender que é bom, que fazer aquele show é estar formando duzentas pessoas de público possível, ganhando um público novo que vai comprar o CD depois do show, então tudo bem, vai lá e faz. Estamos todos juntos ali, tentando discutir e entender quais são as prioridades, as necessidades de cada segmento na transversalidade. É esse momento novo, estamos no “do it together”. 133


134


Tânia Rösing Organizadora da Jornada de Literatura de Passo Fundo.

Tânia, lembre um livro da sua infância e um outro da adolescência. Na minha infância eu tive uma formação literária diferenciada. A minha mãe é uma pessoa muito religiosa, e nós pertencíamos, pertenço ainda, à Igreja Metodista. Então eu fui iniciada no gosto pela leitura literária através de episódios bíblicos. A história do Noé, a história do Zaqueu. As histórias que me eram contadas são episódios que a Bíblia relata sobre Jesus Cristo. E a minha mãe contava e cantava. Havia episódios que eu ouvia muitas vezes, porque era muito gostoso, havia uma modulação de voz. Então eu comecei com os contos, episódios bíblicos. Em seguida, aos oito anos, lembro de ter lido O pequeno príncipe, e aos 11 anos lembro de ter lido Poliana e Poliana moça, que foi um presente da minha mãe. Aos 14 eu lembro de ter lido escondido Bom dia, Tristeza, de Françoise Sagan, que era uma leitura proibida, a gente lia escondido dentro de outro livro. Aos dez anos um colega meu de escola, que era de uma família rica, ganhou de presente toda a coleção do Monteiro Lobato. Como a gente se dava muito bem, ele me emprestou. Então aos dez anos eu li Monteiro Lobato inteiro. São essas as experiências marcantes. E esse deslumbre infantil foi encaminhando você para a literatura? 135


O papel da minha mãe foi fundamental. Ela era uma pessoa que gostava de ler, embora não tivesse um alto nível de escolaridade. Como gostava de ler, e em voz alta, ela foi me estimulando. A gente lia junto, compartilhadamente (é a expressão da moda agora, leitura compartilhada, que é a leitura com a família junta). Assim eu fui desenvolvendo o gosto pela leitura. Eu lembro que ela reclamava, me pedia para arrumar o quarto, então eu ia arrumar, mas se eu encontrasse um livro ou uma revista já interrompia a minha tarefa. Aí ela dizia: “Hoje não é dia de ler, hoje é dia de limpar o quarto.” Eu lia muito. Lia coisas relacionadas à igreja, revista Bem-te-vi, revistas que apareciam e os livros que ela ia comprando. Passo Fundo tem hoje o maior índice de leitura do Brasil, seis livros e meio por habitante. Sempre foi assim? Não. Um movimento pela leitura mais efetiva foi encadeado em 1981, quando foram criadas as Jornadas Literárias, a partir de uma conversa que tive com o Josué Guimarães. Eu me queixava sobre o curso de letras, e ele me perguntou o que eu pretendia fazer para melhorar. Então eu falei da ideia de organizar uma jornada literária com a participação de escritores do Rio Grande do Sul, mas que fosse um evento diferenciado. Eu queria primeiro ler as obras com os participantes e depois trazer os escritores. Ele achou uma ótima ideia, e combinamos de fazer juntos: eu organizava em Passo Fundo e ele se encarregava de trazer os escritores. Ele convidou oito autores: Carlos Nejar, Moacyr Scliar, Antônio Carlos Resende, Cyro Martins, Armindo Trevisan, e dois jovens que teriam futuro como escritores, Deonísio da Silva e Sérgio Caparelli. Convidou também o Mário Quintana, que já não fazia mais conferência, tinha 75 anos na época. Aconteceu até uma coisa engraçada. O evento foi marcado para o dia 14 de agosto, aí no dia 7 recebi um telefonema do Scliar, perguntando se estava tudo certo. Eu respondi que sim, que quando ele chegasse o carro da universidade estaria esperando por ele no aeroporto. Aí ele falou que já tinha chegado, que estava lá no aeroporto. Ele chegou sete dias antes! Aí meu marido e eu fomos buscá-lo, levamos para casa, fomos visitar uns amigos dele e então ele foi para Porto Alegre de ônibus. E o meu medo era que ele não voltasse, posto que ele já tinha gasto a passagem e eu não tinha muito dinheiro. Mas ele veio, todos vieram. E no movimento de pré-jornada, ou seja, naquela leitura antecipada, apareceram 250 professores de diferentes áreas do conhecimento, professores de matemática, 136


história, geografia e língua portuguesa. Então já se estabeleceu um contato interdisciplinar na leitura literária. Nós não sabíamos quantas pessoas iam participar do evento, porque a inscrição era feita nos três dias anteriores. E apareceram 750 pessoas. No momento da avaliação com o Josué, nós vimos que realmente foi um sucesso. Principalmente porque não teve o ranço acadêmico. Um seminário, uma jornada não pode ter o ranço da academia. A universidade é cheia de protocolos, e a leitura tem de ser tratada de forma agradável para que as pessoas realmente possam se envolver com o tema e colocar seu conhecimento prévio a serviço daquela leitura, dentro de um protagonismo do leitor, que é o que a gente defende. Vocês podiam ter escolhido vários nomes, por que “Jornada”? Sabe que eu não sei? Na época eu achei que seria somente esse encontro e nada mais. Mas acho que o nome foi uma sugestão do Josué. Eu já me fiz essa pergunta, mas não sei por que “Jornada”. Hoje ela tomou outra dimensão, que envolve outras coisas muito mais amplas. Mas talvez tenha vindo desse tom inicial, dessa aproximação, a “desmitificação” do escritor, a aproximação com o público. O escritor sabendo quem é o seu leitor. Porque as pessoas passam hoje o livro para a rede, e esse livro toma o destino que ninguém sabe qual é. Não sabem mais quem são seus leitores. Em Passo Fundo o escritor encontra o seu leitor, e isso é um diferencial. Faz um balanço das 14 Jornadas até hoje. Em toda essa trajetória nós mantivemos uma metodologia, procuramos focar a atenção na leitura prévia. Eu acho um descompromisso ou, vou dizer uma palavra um pouco mais forte, uma irresponsabilidade colocar um leitor diante de um escritor sem o conhecimento da obra. É irresponsável porque nós temos um respeito ao escritor, mas nós também temos de ter, mais do que nunca, um respeito ao leitor. Porque ele precisa saber o que será discutido, e tem de ser respeitada a sua história pessoal. A sua história de interferência nisso. Durante todas as jornadas, nós aumentamos o número de escritores, mas mantivemos a metodologia. Desde a primeira programação nós envolvemos ações culturais com outras linguagens, já preparando esse leitor para que pudesse se envolver não apenas com o livro, mas com a pintura, a escultura, a música, a dança, o teatro. Porque essa ampliação da leitura, que hoje 137


é evidente a partir do uso da internet e de toda essa inovação tecnológica, nós perseguimos desde 1981. O que foi acontecendo é que em função dos participantes ampliamos a programação. Por exemplo, os cursos matutinos surgiram porque em 1985 um dos participantes me disse que vinha para a Jornada e ficava quatro dias com a manhã livre. Em 1988 criamos os primeiros cursos. Inicialmente na área de ensino de língua portuguesa e de literatura. Na continuidade nós ampliamos para cursos na área de comunicação, de história e sobre questões literárias misturadas com sociologia. Depois vieram os de teatro, música, os cursos na área de ensino. Além disso, até 1988 o evento se pagou, porque não eram tantas as ações. A partir de 1991, com as ampliações e o aumento da quantidade de atividades, o custo aumentou. Então fui buscar o apoio da prefeitura, queria dividir os lucros e as perdas. Cada parte entrou com 50% e nós conseguimos, inclusive, um superávit. A trajetória foi essa, o evento foi sendo ampliado. Mudamos o lugar das realizações, o circo que ficava montado no centro da cidade passou a ser montado no campus universitário, ampliamos as ações da manhã, o número de escritores e artistas, incluímos contadores de histórias, shows, cinema, mostras de filmes. Existe uma crítica muito grande em relação ao ensino de literatura no Brasil, que só trabalha com autores mais antigos ou já mortos. É interessante e estimulante perceber que vocês não só trabalham com autores novos, como também trabalham com uma temática nova, que aborda um cotidiano jovem de uma forma bastante livre, tratando de alguns temas que seriam tabus em muitos lugares. Como é a recepção dessa literatura nova por parte dos jovens? Um dos aspectos que eu defendo é que o trabalho que é feito agora, que é feito, por exemplo, dentro do mestrado, ou em qualquer universidade brasileira, tem que resultar em modificações na escola, no ensino fundamental e médio. Se nós trabalhamos com um público massivo, que é predominantemente de professores, nós temos de apontar caminhos, porque é mais fácil falar de escritor morto. Hoje, se você traz escritores novos, jovens, o diálogo se efetiva não só na leitura do livro, mas entre o autor e o leitor. Muitos autores disponibilizam o endereço eletrônico, então é possível criar um vínculo por e-mail também. Nós temos trazido essa literatura atual e também escritores da Academia Brasileira de Letras, acadêmicos que nos dão o viés da importância de se trabalhar os clássicos. Mas estamos preocupados em valorizar 138


a produção atual brasileira e fazer com que as pessoas conheçam quem são os ilustradores, os autores, quais são as temáticas. Agora temos um elemento novo na nossa trajetória, começamos a introduzir temáticas. O primeiro tema foi o da inclusão. Um outro tema foi a Galáxia de Gutemberg, e nessa Jornada conseguimos trazer da Alemanha uma réplica da prensa do Gutemberg, coisa que as pessoas achavam impossível. Essa questão do tema é muito enriquecedora, porque nós damos um foco, e as discussões, das mais diversas, são centralizadas nesse foco. Uma coisa que foi importante no ano passado, quando tratamos de arte e tecnologia, foi trazer escritores e intelectuais que abordam a questão tecnológica, e que falaram no mesmo nível. Não havia os grandes destaques, ficou todo mundo discutindo com o mesmo potencial. Trazer novos escritores, com obras que estão no mercado agora, é apontar caminhos para que as escolas possam se interessar. É bom salientar que o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura estão colocando um acervo riquíssimo, de coisas atuais, nas mãos das escolas. O que está faltando é levar esses acervos para um público em formação. Nós temos esse objetivo de formar os leitores, para que esses acervos saltem das prateleiras, sejam dinamizados. O valor vultoso destinado pelo governo às prefeituras, para as bibliotecas municipais, para as escolas, não tem a contrapartida da formação dos professores que possam trabalhar com esses materiais. Então nós nos dispomos a desenvolver uma metodologia de leitura anterior, oferecendo sugestões e práticas de leitura multimediais. Porque não podemos mais deixar de trabalhar o literário, a internet, o filme, a pintura, a escultura, a música, enfim, tudo que possa enriquecer aquela leitura e fazer aquilo que se chama de transdisciplinaridade. Isso é uma tônica importante, valorizar o escritor que está no mercado, que tem qualidade, e também desenvolver as parcerias com as editoras. Nós desenvolvemos essas parcerias. Como a senhora vê a relação da universidade com essa literatura nova? Colocando a universidade como um todo, como instituição, eu vou usar de novo a palavra “ranço”. Há coisas que entram na academia e coisas que não entram na academia. Por exemplo, nós estamos trabalhando com um ensino de literatura que parte do envolvimento com a obra. É aí que se faz a formação do leitor. O que a academia faz é trabalhar com periodização. Ela trabalha o arcadismo, o romantismo, o simbolismo, o pré-modernismo, o 139


modernismo, tudo que não se entende como um processo complexo. Porque a literatura traz elementos da história, ela é contextualizada, evidentemente. E há os elementos que são baseados no real. Então temos história e literatura, sociologia e literatura. Nós não podemos trabalhar de forma fragmentada. Agora as pessoas dizem que com a internet nós precisamos trabalhar a literatura a partir do hipertexto. Mas, gente, o hipertexto sempre existiu! O que é o hipertexto? Você está lendo um livro e por não ter uma informação você vai buscar em uma enciclopédia, vai buscar num dicionário. São informações sobre palavra ou sobre a biografia do autor. Um texto mais um dicionário, mais uma enciclopédia. Isso é hipertexto. Assim como “A máquina do mundo”, do Drummond, vai trabalhar com Camões, que por sua vez vai trabalhar com a Bíblia. Exatamente. Aí você tem a intertextualidade. Intertexto. Tem um livro da Cecília Ramal que fala da cibercultura. Tem o texto impresso e os códigos à direita. Retângulos tracejados são um sinônimo, depois um quadrado pontilhado é uma definição. Tudo no texto impresso. A nossa cabeça já é uma cabeça hipertextual. Então precisamos fazer com que as pessoas entendam a perspectiva da leitura, da literatura. É muito atual falar em letramento literário, mas o letramento literário precisa começar primeiro pelo professor! Que não é um leitor! Nós estamos conseguindo resultados muito mais significativos com as crianças e com os adolescentes do que com os professores. Temos em Passo Fundo o que chamamos de “livro do mês”. Cada mês vai um autor a Passo Fundo. Mês passado foi o Joel Rufino dos Santos. Foi escolhido um livro dele, que foi lido pelos alunos de letras, e depois foi feito um seminário com esses alunos e o autor. E também com os alunos de sétima e oitava série do município. São escolhidas quatro escolas por vez, a prefeitura compra duzentos livros e os alunos leem. Você precisa ver a desenvoltura dos alunos das escolas municipais diante do escritor. É maravilhoso! Eles dominam o livro e questionam o autor. Com o Joel Rufino falaram sobre exílio e ditadura, coisas que aconteceram muito antes de eles nascerem. Temos também outro seminário, com escolas estaduais e particulares, mas os melhores alunos são os municipais. A cada mês nós temos esses seminários e um autor convidado, que vai a Passo Fundo. Fale um pouco para nós sobre festivais e eventos no Brasil e fora do Brasil. 140


Vou falar de uma forma geral. É muito positiva a existência de eventos que promovam a literatura, a música, a pintura, a dança, a dança folclórica. Tudo isso é altamente positivo para colocar em alta o viés cultural, a manifestação cultural. Mas um evento termina como iniciou, ele tem o ápice e então termina, acaba a movimentação. Festivais, feiras, bienais têm esse viés. Na Jornada, a nossa preocupação é que o evento seja permanente, aconteça uma preparação anterior a ele, com leituras das obras dos convidados, e também desdobramentos. Isso é muito importante para que realmente se consiga criar o hábito de leitura. As bibliotecas são importantes, mas é altamente relevante para a formação da cidadania o direito à posse do livro, porque o livro é um objeto com o qual você se relaciona, é preciso poder voltar ao livro, interagir com ele, riscar, reler. Como pensar uma política no Brasil que ajude a democratizar não só a leitura, mas o direito ao livro, esse objeto que tem memória, afetividade, ao qual você retorna para releitura, que tem permanência? O problema todo está na formação do professor que não é leitor. O Brasil teve um programa chamado Literatura em minha casa, em que os alunos da quarta e quinta séries ganhavam livros para levar para casa e iniciar a constituição de sua biblioteca. Mas o que aconteceu foi que os livros ficaram fechados na grande maioria das escolas brasileiras, e outros foram vendidos a sebos. Não aconteceu a leitura compartilhada na escola nem a entrega do livro para as pessoas iniciarem suas bibliotecas. Evidentemente que ter o livro em casa é altamente estimulante, é uma coisa muito boa; é o meu livro, é a minha prateleira de livros, não é? Todo mundo gosta de canto. Só na Disney é que não tem canto, tudo é redondo. Mas nada disso vai funcionar se não tivermos professores leitores, porque são eles que deveriam dar o estímulo. É claro que a classe mais pobre, entre comer e comprar o livro, escolherá comer. Mas o caso não é esse, é que o livro não é um objeto imprescindível para as pessoas. É preciso haver uma valorização do livro. Nós desenvolvemos o programa Sacolas Circulantes, dentro do Centro de Referência em Literatura e Multimeios. Nós temos 35 livros em cada sacola e emprestamos gratuitamente aos professores. Os livros ficam dez dias na escola e podem ser renovados por mais dez dias. As crianças também podem levar os livros para suas casas. Então há uma forma de posse, o livro fica na casa das crianças. Mas 141


acho que é outra cultura que nós temos de desenvolver, que é a do compartilhar. Nem todo mundo pode assinar uma revista, mas você lê uma revista em um dia, e nos outros cinco dias ela fica ali jogada. Então por que não compartilhar? Eu acho que indo por aí nós começamos a desenvolver um gosto pela literatura. Nós criamos túneis adesivados com textos literários e espalhamos por Passo Fundo. A cada 15 dias trocamos os textos. Estamos trabalhando isso há dois anos. Não é um projeto que estimule a posse, mas é um estímulo à leitura. As pessoas vão caminhando, lendo e se divertindo. Passando por um processo de letramento literário sem se dar conta, lendo coisas de qualidade... Fale um pouco sobre a Jornada e o MERCOSUL. Eu participei do encontro ibero-americano de literatura infanto-juvenil, em Santiago do Chile, onde estavam escritores, ilustradores, produtores culturais e literatos de 17 países. E fiquei muito feliz em descobrir a produção ibero-americana. Ela é muito grande e de muita qualidade. Nós estamos de costas para esses países e para sua produção. O encontro me deu estímulos para envolver esses países no trabalho que desenvolvemos em Passo Fundo. Mas é muito difícil, nós tentamos os contatos via editoras, mas às vezes elas conseguem trazer e às vezes não. E as embaixadas não têm muito interesse. Como produtora cultural e dinamizadora é preciso usar peito e raça, senão não acontece. Nós temos esse fechamento no MERCOSUL. É difícil trabalhar com a Argentina, é difícil trabalhar com o Uruguai. O Paraguai não tem lá tantas coisas. Vi um pouco de abertura no Chile, porque começamos a trabalhar com a bibliotecária número um de lá, a Constanza Mekis, que criou o programa das bibliotecas CRA. O que são bibliotecas CRA? A partir da implantação de computadores, doados pelo Bill Gates, em todas as bibliotecas chilenas, criou-se um programa de biblioteca escolar. Dentro desse programa há um conjunto de ações, distribuídas em oito arquivos ou álbuns, que devem ser seguidas pelo professor ou pela pessoa que chega a essa biblioteca. Dentro das ações existem orientações sobre livros para ver, que são os álbuns, livros para ler, que são as narrativas, e livros para ler em conjunto, trazendo para dentro da biblioteca a família. A Constanza Mekis é uma artista, ela trabalha todas as linguagens nesse projeto. Quando ela faz uma conferência, enquanto está falando do trabalho, 142


sustentando teoricamente, ela de repente tira os sapatos, coloca uma música e começa a dançar. Depois ela sempre pergunta ao público se quer que ela leia uma receita, um poema ou um conto. Em uma dessas, eu solicitei que ela lesse uma receita. Ela não só leu a receita, que era de um pão, como me deu o pão que ela já tinha pronto. O que me doeu é que tive de dividir com todas as pessoas da mesa, porque eu queria ter comido sozinha. A senhora tem uma opinião positiva sobre a diversidade de títulos nas editoras brasileiras? Eu entendo que é a questão do mercado, e o mercado tem as suas regras. Agora há lugar para outras editoras, que não são tão grandes, desde que essas editoras se disponham a fazer um trabalho diferenciado. Por exemplo, as editoras universitárias estão mortas, pois não conseguem colocar seu material à disposição. Nós editamos, através da universidade, sete livros sobre práticas leitoras para uma cibercivilização. O último livro foi publicado no ano passado. Agora mudamos o esquema. Como no Centro de Referência de Literatura e Multimeios (CRLM) nós fazemos práticas leitoras para educação infantil, da primeira série ao ensino superior, então resolvemos criar roteiros de leitura dessa prática específica a partir de um tema que é “Arte e tecnologia, novos desafios”. Cada professor que levar sua turma lá no mundo da leitura vai receber esse roteiro. Vamos desenvolver uma atividade dentro do CRLM e o professor sairá com esse roteiro para a sua escola, onde ele deve dar continuidade. Então eliminamos o livro e criamos esses roteiros. A atividade não termina quando eles saem do CRLM. O que me interessa é o movimento permanente. A movimentação cultural permanente... Tem um número que é contundente por si só. O mercado de livros no Brasil representa 0,11% do PIB. A gente discute as políticas de acesso, a falta de livrarias, o mercado editorial, mas o número é muito contundente. O brasileiro não gosta de ler? O problema está na falta do estímulo. As pessoas não leem porque não há estímulo de leitura, e não há estímulo de leitura porque não há leitores na escola, professores leitores. A escola é o lugar com maior potencial para isso, com maior capilaridade. Se essa escola não se propõe a estimular a criança e a família, fica difícil. Por outro lado, como ela vai estimular uma pessoa que trabalhou a semana inteira, que está cansada, que está mais a fim de levantar 143


suas pernas e descansar um pouco, e que não está em situação de se envolver, por exemplo, com contos tradicionais que trabalhem a questão da peraltice? Então eu entendo que não é só a escola. Na biblioteca pública também temos uma situação. Quem está na biblioteca são pessoas que não estão preparadas. Mas nós só vamos ter o aumento da leitura na medida em que nós tivermos estímulo. Estou há 29 anos nessa insistência. A maior parte dos projetos são desenvolvidos por cinco, dez anos, e depois as pessoas desistem. Mas temos que forçar. Trabalhando com professores da rede estadual, percebo o quanto estão desestimulados e desmotivados. É uma questão cultural. Eles ganham R$ 500,00, mas mesmo que ganhassem dez vezes mais o desestímulo com relação à leitura seria o mesmo. Porque ele não tem ideia do que seja envolver-se, por exemplo, com o acervo disponível da cultura indígena. Ele não tem ideia nem do que seja envolver-se com a cultura afrodescendente. Ele não se envolve. Ele não está interessado em saber, por exemplo, o que é o grafite. Como se dá a evolução do grafite para uma arte de rua. Isso não o atinge. Então eu entendo que, se nós não motivarmos as pessoas com ações na comunidade, passando pela escola, pela biblioteca municipal, pelas associações de bairro, não vamos conseguir alterar esse nível. Saindo da produtora para a leitora. Como você tem visto a literatura brasileira contemporânea? Nós temos um concurso chamado Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, que é uma iniciativa da prefeitura dentro da Jornada da Literatura. Nós recebemos não mais que de 230 a 240 romances inscritos. A inscrição é gratuita, então eu acho esse número muito pouco. E o que a gente nota na tendência desses romances é a questão histórica. No período pós-ditadura existia uma motivação temática muito forte, mas me parece que hoje estão faltando grandes temas, e por isso não temos tantos escritores. A produção no Rio Grande do Sul não aumentou muito, nós temos muitos escritores jovens, mas suas obras não chegam à escola. Então nós temos acadêmicos que são repetitivos. Temos grandes autores repetitivos. Lembre de um fato específico, da Jornada, que marcou estas 14 edições? Em 2003 conseguimos, através do consulado, a presença de um escritor alemão que ficou surpreso e demonstrou até indignação com o fato de haver 144


no Brasil uma cidade interiorana, e não uma capital, com um projeto tão sólido. Pude perceber a surpresa no Sérgio Paulo Rouanet também, quando ele foi a Passo Fundo como convidado da Academia Brasileira de Letras. Quer dizer, essa surpresa causa em nós um certo estranhamento, como se uma cidade pequena não pudesse pensar grande. Sempre perguntam por que isso não pode ser feito em São Paulo ou no Rio de Janeiro, mas isso pode ser feito em qualquer lugar! Agora, o que nos sustenta em Passo Fundo é essa vontade de fazer. Não recebemos nenhum tostão pelo trabalho. Eu coordeno isso há 29 anos, sem querer ser vereadora, sem querer ser deputada, sem querer ser reitora, sem querer ser prefeita da cidade. E as pessoas que trabalham junto têm essa certeza. Estamos trabalhando para ampliar a vontade das pessoas lerem. Isso é o diferencial. Pode-se fazer em qualquer lugar, inclusive em Passo Fundo. E é lá que acontece, foi lá que foi criado. Seria muito bom se isso se repetisse em todos os lugares do Brasil, desde que houvesse o mesmo espírito e essa preocupação permanente. E sempre me perguntam como fica o projeto quando eu sair, mas eu tenho um grupo muito forte. Um grupo que acredita, que trabalha e que sustenta. Porque nada é feito sozinho.

145


146


Vincent Carelli Documentarista e fundador da ONG Vídeo nas Aldeias.

Vincent, fale um pouco sobre a sua formação. Eu comecei a conviver com os índios aos 16 anos. Isso revolucionou minha vida, deu um rumo a ela, e eu acabei nas ciências sociais. Eu já tinha lido muita coisa sobre etnografia, então passei só um ano no curso e tranquei, vi que a minha não era essa. Meu problema era existencial mesmo. Fui morar com os xikrins, uma etnia kaiapó no sul do Pará, perto de Altamira, e levei uns dez anos para voltar a São Paulo. Meu irmão queria ser padre, e ele tinha um guia espiritual dominicano, um padre dominicano francês, de vocação tardia, que trabalhava com os xikrins. Naquela época, os xikrins estavam abandonados, e ele era um missionário que não fazia proselitismo, que estava ali por uma função. Eu insisti e ele me levou junto. Estava lá também a Lux Vidal, professora de antropologia da USP. Eu era muito novo, e isso realmente explodiu minha cabeça, me abriu para o mundo. Deu uma compreensão mais ampla da humanidade. Eu acho que a experiência do choque cultural, principalmente neste mundo globalizado, é vital na formação dos jovens. O choque cultural é fundamental para ele não ficar mais enclausurado no seu mundinho. É evidente que isso pode se dar de muitas formas. Nem todo estudante brasileiro pode ir a uma aldeia indígena. Não tem aldeia suficiente. Mas qualquer forma de choque cultural é uma experiência fundamental na formação de um jovem. 147


E a experiência com audiovisual, como começou? Eu sempre fui fotógrafo de still. Quando passei a conviver com os índios, eles viviam isolados na mata e ainda faziam cerimoniais fantásticos. Eu tinha o sentimento de estar sozinho ali, presenciando uma coisa que o mundo nunca tinha visto. Eu achava que isso não podia desaparecer sem que o mundo tivesse a chance de conhecer. Então assumi a função do registro e me aprofundei na fotografia. A questão do audiovisual veio muito mais tarde. Mas o registro é uma coisa que se impôs, justamente por estar tendo acesso a um mundo marginalizado, e um mundo absolutamente fascinante. Mais tarde, nos anos 1980, eu participei da criação de um projeto chamado Povos Indígenas no Brasil (e não do Brasil). O projeto era do Centro Ecumênico de Documentação e Informação, que hoje é o Instituto Sócio-Ambiental. A ignorância sobre o mundo indígena era tão profunda que não existia no Brasil um banco de dados confiável. Não havia sequer um censo das populações indígenas, quanto mais dados que pudessem servir para jornalistas, pesquisadores, e principalmente para agentes do governo. Não havia mapas, não havia nada. Então a proposta desse projeto era criar uma rede de alianças, independente de ideologia, que juntasse missionários, antropólogos, indigenistas, pesquisadores, fotógrafos, viajantes, de forma que a gente pudesse reunir dados. Para além das divergências – porque é um mundo muito dividido, indigenista não suporta antropólogo, que não suporta missionário –, a gente precisava, dentro de uma proposta básica, criar um banco de dados neste país sobre a realidade indígena. Eu trabalhei dez anos nesse projeto. Além de costurar alianças, eu fiz o arquivo fotográfico, juntei oito mil fotos sobre os povos indígenas, juntei todos os arquivos públicos, cruzei com os de museus, antropólogos etc. Ali ficava evidente que todo esse material histórico tinha uma enorme importância para os índios. Eles vivem processos de mudanças extremamente intensos, e a questão da memória é fundamental para as novas gerações. Toda vez que eu ia para a aldeia levando esses materiais, eu percebia um interesse enorme, um fascínio da parte deles. Então, essa ideia do audiovisual como uma contribuição fundamental para o processo dos próprios índios, no sentido de ter uma consciência dos seus processos de mudança, de ter uma reflexão sobre isso, foi se consolidando. E aí que começa o projeto Vídeo nas Aldeias.

148


O antropólogo Claude Lévi-Strauss fala o seguinte no site de vocês, “O DVD (O amendoim da cotia) que você me emprestou é de longe o melhor filme que eu jamais tenha visto sobre índios da América do Sul. Tudo é acertado: a escolha dos temas, das locações, o enquadramento; e a qualidade das imagens é notável. Temos constantemente a sensação de poder ver a vida indígena de dentro... A cura xamanística é uma sequência antológica.” Gostaria que você comentasse sobre o Lévi-Strauss e sobre essa frase. Eu acho que o Lévi-Strauss é de uma lucidez incrível. Ele tocou na questão chave, a de se sentir transportado para a realidade indígena, enxergando-a de dentro. Ele sacou o ponto essencial da coisa. Depois recebemos outra carta sua, um ano antes de ele morrer. Era sempre manuscrito, quase que ilegível. Ele era um dos nossos fãs. Até o fim da vida se atualizou, leu tudo. Tudo que saía de etnografia brasileira ele lia. É um cara que com quase cem anos assiste a esse filme e põe o dedo na questão. Então, quer dizer que esses filmes também seriam formas de construir choques culturais? Essa sensação de transposição? Sim. Essa produção dos cineastas indígenas está hoje sendo colocada para a rede escolar. Evidente que eles são didáticos, mas não no sentido literal da palavra. Eles não estão aí para explicar como é que são os índios, como é o mito. Eu acho que são filmes de imersão, filmes que podem gerar uma vivência e uma empatia com esses personagens. Nesses filmes, são expressos o humor indígena, a sacanagem, a alegria de viver. Às vezes a gente fica se perguntando como isso vai ser interpretado, qual vai ser a leitura. Eles são sinceros, abertos, os índios se impõem. O problema não é criar os índios, é criar empatia através dessa imersão sensitiva no mundo indígena. Uma coisa que me chama muita atenção na frase do Lévi-Strauss é quando ele fala que tudo é perfeito, temas, enquadramento, locações. Comente um pouco sobre isso. Quando a gente chega à aldeia, não temos uma ideia e falamos que queremos um filme assim ou assado. O processo de filmes nas aldeias é radicalmente diferente disso. Primeiro, porque a gente chega diante de uma demanda. A gente não chega falando: “Oi, estou aqui, vocês querem fazer um filme com a gente?” Não é assim. O vídeo já surge de uma demanda, ou de jovens, ou 149


de uma liderança que tem uma preocupação com um discurso de resistência cultural, que sabe que esse audiovisual vai potencializar o seu discurso. Então, quando você chega, já há um desejo coletivo do filme e o processo de criação é coletivo. O tema é escolhido coletivamente, provavelmente a partir do que está acontecendo ali no momento. O processo de filmagem é de aprendizagem coletiva dos jovens cineastas. Eles filmam, assistem juntos, e de noite tem cinema na aldeia. Então a sala de edição e a sala de oficina são um espaço aberto. Toda a aldeia, conforme o seu ritmo, vai passando por ali, vendo as imagens que estão sendo produzidas. A postura dos índios é de apropriação total. Principalmente porque a gente parte de uma experiência de todo negativa que eles tiveram: a frustração com o audiovisual. As pessoas vão fazer seus projetos lá e nunca retornam. Quer dizer, é uma expropriação. A intenção é a melhor possível, mas, de fato, quando você vive na aldeia e vê as pessoas vindo e indo embora, é uma coisa chocante. E depois, quando eles assistem à matéria na televisão, ficam frustrados. “Poxa, mas isso ele inventou, que história é essa? Cortou isso, cortou aquilo”, quer dizer, no fim não resta nada. E os índios, em geral, se empenham. Sempre acabam recebendo, ao menos que o cara realmente pise na bola. Eles sempre partem de uma experiência extremamente negativa. “Nós não somos isso, ele inventou aquilo e não disse o fundamental.” Quando você chega com uma proposta diferente, há uma apropriação coletiva do processo. As pessoas dialogam com a câmera, se expressam. Tem uma crítica de cinema, a Andrea França, que escreveu um texto muito legal sobre isso, sobre o desejo coletivo que as pessoas têm de se expressar na forma de se relacionar com a câmera. Acho que as culturas indígenas são esteticamente extremamente sofisticadas na questão do enquadramento. É claro que têm os menos talentosos, mas os mais talentosos já têm isso inato, pela sofisticação estética dessas culturas. Têm caras que fazem um enquadramento clássico, lindo. Isso nem se ensina, o cara pega a câmera e faz. É impressionante. Os Ashaninka fizeram um filme chamado Shomõtsi, que o Eduardo Coutinho considera uma obra-prima. O enquadramento é uma coisa de cinema. Então é uma coisa que brota ali, está na formação deles. Hoje em dia a televisão chega a todas as aldeias indígenas, quase todas. Então os índios não têm cultura cinematográfica, eles têm uma cultura televisiva. Adoram filmes de ação, Tela Quente, futebol e jornal. Então o nosso primeiro trabalho é desconstruir imediatamente essa linguagem televisiva 150


que o cara tende naturalmente a imitar. O repórter, a entrevista. Porque é muito construtivo, dentro de um processo de formação, a perspectiva do cinema direto, sem entrevista formal. É um cinema de observação: o cara tem de estar ali atento não só ao olhar mas ao escutar. Esse é o primeiro ponto importante. A gente tem uma série de regrinhas no começo, é proibido zoom, só pode plano aberto, se quiser detalhes tem que chegar junto. O documentário é a relação do autor com o seu personagem e com o seu assunto. E isso o cara tem de enfrentar sozinho. Então nunca estamos no local da filmagem, ficamos meio reclusos em um espaço e eles vão procurar seus personagens. E essa é uma experiência fundamental para o cara que está aprendendo a fazer documentário. As aldeias continuam produzindo? A produção é contínua? A proposta é de uma formação continuada. Hoje já tem vários cineastas formados, já editando, com seus equipamentos em mãos, e pouco a pouco a gente vira produtor. De formador, a gente vira produtor e distribuidor. Como tudo é novo e eles são de uma cultura oral, o domínio da escrita ainda é muito relativo. Hoje são internautas apaixonados, mas nesse mundo da competição por financiamento cultural a escrita ainda é o grande meio de se chegar lá. E para eles a questão da escrita é um pouco difícil. Então a gente cumpre um pouco essa função. Depois de formados, a gente tem que ajudar os caras a captar recursos para produzir. E a questão da autoria, quem assina? Quem é o responsável? É muito intrincado, porque primeiro os cineastas são escolhidos pelo coletivo e são podados na medida em que eles deixam de seguir a vontade do coletivo. O jovem cineasta tem de ter um compromisso de escuta e de atender as demandas da coletividade. A gente assina contratos com eles em que é contemplada essa questão. Tem os autores, que são os cineastas, e os direitos de imagem do coletivo. Mas, na verdade, isso é um modelo quase obrigatório. Porque depois você quer trabalhar o filme, quer ter certificados do filme, e, se não tiver autor, a burocracia não aceita. Na verdade, eu digo que os personagens que eles filmam são tão autores quanto os cinegrafistas. Porque a partir do momento em que o cara aceita o desafio, entra na brincadeira e diz: “Tudo bem, eu vou ser seu personagem, você vai ficar me seguindo e me filmando.” Aí a pessoa começa a criar o seu personagem, propondo cenas, e ele é tão autor 151


quanto o cara que está filmando. São produções de autoria coletiva. Agora, por questões burocráticas, acabam assinando o coletivo – cinco ou seis autores – ou algum autor especial. Porque sempre tem aquele cara que se apaixona pelo negócio e diz que isso é o que ele quer fazer na vida. Esse é o cara. Você falou em uma entrevista sobre essa dificuldade. Tem um edital do MINC para 150 pontos de cultura indígena, mas é extremamente difícil de conveniar, não é? Como preparar as pessoas para poder fazer os convênios, tocar a burocracia e executar os trabalhos? Eu acho que não é uma questão de preparar as pessoas. A questão é mudar as regras do jogo. Outro dia, uma mulher, quando recebeu o prêmio culturas populares, lá no Nordeste, disse: “O prêmio eu agradeço, é de Deus; agora, o regulamento é do capeta.” É do capeta. No começo da gestão de Gilberto Gil, quando fizeram essa revolução na questão cultural, eu acho que era uma guerra interna no executivo, dos funcionários de carreira com os criadores dessa política. Os funcionários públicos parecem odiar essa possibilidade de ONGs e OSCIPs, da sociedade civil receber dinheiro público. Então ficam ali “acochando a rosca” cada vez mais. O número de regras só piorou. Eu acho que a questão não é preparar as pessoas para atender essas exigências, a questão é mudar as exigências. Acho que a gente chegou no fim da linha do subsídio cultural. Temos que repensar isso. Nós estamos numa virada. Primeiro, essas linhas de subvenção têm de ser tornadas perenes, precisam virar políticas públicas, deixar de ser política de governo, passar pelo congresso e ser institucionalizado. E tem que mudar as regras, porque a proposta é muito legal, fantástica, mas essa experiência de oito anos nos levou a um impasse. Temos que dar um novo salto. O ensino de história da cultura afro-brasileira e indígena virou lei 11.645. Quem o deve ensinar nas escolas? Quem deve ensinar? Bom, os professores. Não tem saída. Agora, a questão chave da implementação dessa lei é a formação dos professores. O grande investimento que tem de ser feito é na reciclagem dos professores. É impossível os professores ensinarem uma matéria que eles nunca tiveram, nunca aprenderam, porque senão o tiro sai pela culatra e aí vai ser um desastre. Se cada um chegar e quiser ensinar aquilo que eles acham que sabem sobre os índios, aí nós estamos lascados. 152


O que deve ser o conteúdo, como deve ser pensado esse conteúdo? É uma questão difícil, porque aí a gente está topando de frente com todos os equívocos nacionais sobre a questão indígena. Não é fácil. É evidente que é uma decisão politicamente ousada e bem-vinda, e que estamos aqui para ajudar a implementar isso. Tem que haver um grande investimento na formação dos professores e na produção de material. O Vídeo nas Aldeias acabou de distribuir três mil kits para escolas públicas do ensino médio, e escrevemos um livro chamado Guia para professores e alunos, exatamente tentando combater os grandes equívocos do senso comum sobre a realidade indígena, ou seja, que índio é tudo igual, que vão desaparecer, que as culturas são atrasadas. Estamos tentando trabalhar também numa releitura da história do Brasil. Quer dizer, conforme a perspectiva, o lado em que você está, a versão da história é uma. Porque a história tem muitas versões e muitas leituras. Pretendemos trazer a versão dos índios, dos períodos históricos em que eles viveram. Os do Acre viveram o ciclo da borracha, que é um período histórico. Dá para fazer uma releitura da história do Brasil. Esse é um trabalho experimental nosso. Insistimos nas escolas e queremos retorno. Tem filmes que já foram vetados, por exemplo, são muito provocativos. Tem um filme sobre os cantos do cipó, sobre a religiosidade acreana em torno do Ayahuasca, que parece que foi unânime, disseram: “Esse filme não passa na minha sala de aula.” E aí estávamos comentando, por que, poxa, esse não é um assunto para ser tratado nas escolas? Falar de drogas com adolescentes. Mas a resposta é: “De jeito nenhum!” As escolas não estão preparadas, então tem alguns filmes que vão chocar. Estamos pedindo um retorno, que digam qual o filme que agradou, quais os temas de debate, tentando coletar esse feedback para ter um entendimento. Inclusive para orientar futuras produções para esse público escolar. Para fazer um estudo de como esses filmes estão sendo vistos, interpretados e sentidos. E a distribuição comercial deles, é possível? Ou eles ficam presos à marginalidade do audiovisual? A demanda por ele em festivais está crescendo? Sem dúvida. Eu comecei em 1986. O primeiro filme foi para a TV Cultura. Pensamos: “Vamos remontar o filme?” Não era o formato, não era a linguagem, não era o tamanho, não cabia na grade. Hoje, a TV Cultura já passou mais de quarenta filmes nossos, domingo, às 18h30min, no horário nobre. Quer dizer, nesses trinta anos houve uma abertura, que é um movimento 153


nacional, este despertar do Brasil que não conhece o Brasil. Acho que esse enfoque que foi dado à diversidade cultural brasileira, essas políticas que foram implementadas criaram um outro ambiente no país. Desde o começo esses filmes são muito bem-vistos em festivais internacionais. Hoje em dia, há um pipocar de centenas de festivais, né? Em qualquer cidadezinha do interior tem um festival. E os filmes dos índios estão sendo muito bem recebidos. Eles têm um diferencial que surpreende as pessoas. Eu ouvi muito isso no fim das projeções: “Eu nunca tinha visto um filme apresentando a realidade dos índios assim.” Esse “assim” é essa coisa de você se sentir dentro. Porque o olhar externo sempre tendeu a focar e pontuar o que é exótico. “Olha que estranho! Eles comem isso!”, focado em quão diferente os índios são. Eu acho que a produção indígena traz um sentimento exatamente oposto. O humor, tudo isso, é uma coisa que humaniza os índios. “Ele ri do que eu riria, ele chora...”, entende? Para além das nossas diferenças, nós somos gente, não é? É uma coisa que aproxima as pessoas e as surpreende. É muito legal isso. O país passou por um julgamento político decisivo, a questão da Raposa Serra do Sol. Como você vê isso? Eu acho que foi super importante, mas que foi alardeado pela imprensa como a grande vitória. Só que, na verdade, junto com isso vieram 19 ressalvas gravíssimas! Eu acho que a demarcação, o reconhecimento da Raposa Serra do Sol gerou o maior pacote legal de expropriação dos direitos indígenas dos últimos cinquenta anos da história do Brasil. Eu acho que a gente substituiu o conceito de segurança nacional pelo conceito de utilidade nacional. O conceito de utilidade nacional está acima de qualquer direito. Se o Brasil precisa fazer uma hidroelétrica no meio da aldeia, ele vai fazer e ponto. Porque é de utilidade nacional. Isso é muito parecido com a prepotência do “segurança nacional”. A partir da última Constituição, nenhuma reserva poderá ser ampliada. Tem muitas reservas indígenas sendo questionadas, pedindo revisão. Então eu acho que eles engoliram a Raposa. O clamor nacional e internacional foi muito forte, mas eles empacotaram aí 19 ressalvas que a Advocacia Geral da União não contestou, e elas são inconstitucionais. Ficou aí uma questão grave para ser resolvida. E mais grave do que isso, gerou – puxado pelos militares, e depois toda a direita entrou a reboque, o Ives Gandra e os juristas – a questão dos índios em área de fronteira, que é um perigo para a segurança nacional ter reservas indígenas nessa zona. 154


Eu não sei se na Escola Superior do Exército estuda-se a história do Brasil, mas quem ajudou Rondon e a comissão de limites a demarcar as fronteiras atuais foram os índios. Parece que eles não estudam história. Quem convive com os índios sabe muito bem que eles têm um sentimento de pertencimento ao Brasil, de cidadania brasileira. Eu acho de uma ingratidão... A gente volta para o arquétipo que o outro, o estrangeiro, é sempre um inimigo em potencial. Os índios são tratados como potenciais traidores do Brasil e, por isso, estar em zona de fronteira é uma ameaça ao Brasil. Essa lei foi encabeçada pelo Aldo Rebelo, do PCdoB. A direita e a esquerda nacionalistas, nessas horas, se juntam contra os índios para acabar com as reservas indígenas em zona de fronteira. O Lula, para contemporizar, propôs colocar um batalhão de fronteira em cada reserva indígena que tiver. O caso Raposa Serra do Sol trouxe tudo isso. Existem duas forças antagônicas. O índio é um dos elementos fundamentais do mito nacional, e há, por parte da população brasileira, uma simpatia pelos índios. É uma ficção, mas genericamente a população brasileira é simpática aos índios. E tem toda essa coisa contra. Esse embate político é eterno. Você acha que o Vídeo nas Aldeias está servindo para gerar uma maior visibilidade e trazer conquistas políticas para as aldeias e para os índios como um todo? Sem dúvida nenhuma. Tem uma importância política enorme, porque são minorias invisíveis. A questão da visibilidade – e aí a questão da imagem – é estratégica, política. A identidade e a afirmação da diferença são uma questão vital para a sobrevivência das minorias. A cultura é a questão política das minorias. Então, essa valorização cultural através do audiovisual tem repercussões políticas internas, nas comunidades, e a nível de representação nacional, o que é muito importante. Eu acho que hoje o projeto é bastante conhecido no mundo indígena. Ano passado eu fui do júri do Prêmio Culturas Indígenas, que o Ministério da Cultura lançou, e, das oitocentas propostas, 85% eram de registros audiovisuais. Tem um clamor, uma demanda enorme, porque tem uma importância estratégica para eles, no seu processo de revitalização. Nós estamos saindo da Idade Média para o que os índios chamam de o tempo dos direitos. Uma das lideranças indígenas, que é casado com uma branca, conta que durante 12 anos falou que era japonês para a família da mulher. Nós estamos 155


saindo dessa situação em que o índio não queria ser índio e caminhando para uma situação radicalmente diferente. Há muitos povos indígenas que foram arrasados culturalmente, e que agora, a partir desse clima de valorização, estão tentando juntar os cacos. Mesmo aqueles que estão com uma cultura totalmente operante estão preocupados com o olhar, com a questão da transmissão, do interesse da nova geração em aprender. O cinema é um mecanismo muito interessante para os jovens fascinados pela tecnologia, pelo celular, a câmera é um fetiche legal. E esse processo do cinema, do documentário, da ficção, do que seja, gera uma dinâmica interna na comunidade, de reencontro de gerações, porque no processo de filmagem precisamos dialogar com os velhos também. Os velhos dizem que normalmente os jovens não os procuram, não querem saber. Então, nesse processo, os jovens descobrem coisas que estavam ali, mas que nunca perguntaram. Esse encontro de gerações é muito importante. E é aí que se dá a questão da transmissão, da revalorização, do resgate. O cinema é muito interessante nesse sentido. O Vídeo nas Aldeias não tem a pretensão de ser uma megaorganização social, que atenda todas as demandas. É impossível. Dentro dessa demanda, para que a produção cultural indígena seja mantida, é necessário criar novos centros de capacitação. É preciso possibilitar, significativamente, o acesso dos índios aos meios audiovisuais. E isso não é uma instituição só que vai fazer, é um conjunto. O Corumbiara foi muito influenciado pelos vídeos produzidos no Vídeo nas Aldeias? E o cinema brasileiro, o Vídeo nas Aldeias influencia de alguma forma? Ou você vê que ainda existe um “não-ouvido” para isso? Eu acho que há um ouvido crescente para isso. Acho que Corumbiara é um caso à parte. É um filme biográfico, um filme de balanço de vida. Corumbiara é um filme de guerrilha. O cinema é a única forma de superar a impotência de ver um crime acontecendo e ninguém tomando conhecimento da coisa. A imagem foi o grande recurso, a única maneira possível de repassar um crime, um genocídio, que nunca foi investigado. Eu trago ali provas inequívocas da existência do crime. Pode não ter servido de nada no sentido concreto, prático, já que a procuradoria não abriu o caso. Mas de qualquer jeito fica dito que os índios foram atacados dez anos atrás. Fiquei muito satisfeito com a acolhida do filme no Brasil. Muitas vezes você acha que o estrangeiro valoriza mais o seu trabalho, e de fato o Vídeo nas 156


Aldeias foi reconhecido muito cedo no exterior e só agora, com o Ministério da Cultura, que o projeto foi redescoberto. Santo de casa nunca faz milagre. Então eu fiquei muito satisfeito porque com o Corumbiara foi exatamente o contrário. Genocídio, guerra, loucuras, tem milhares de pessoas morrendo todo dia. Catástrofe é o que não falta em todo o mundo. Mas, no Brasil, Corumbiara tocou fundo. É um filme que emociona, que comove as pessoas, que leva à reflexão, e fico pensando de quantas Corumbiaras é feita a história do Brasil. Eu fiquei muito satisfeito com a recepção do filme. E eu acho que, se ele não moveu a Procuradoria da República, ele fez muita gente pensar sobre a dívida histórica que o país tem com os índios. Eu acho que o último grande intelectual brasileiro a ter uma relação visceral com os índios foi o Darcy Ribeiro. Em O povo brasileiro, ele recria quase que ficcionalmente, e de uma maneira muito bela, os cem primeiros anos da história do Brasil, antes dos africanos chegarem. Ele fala do cunhadismo, em que os tupis estabeleciam alianças com os portugueses, franceses e holandeses, dando-lhes uma mulher para casar. Ele reconstitui o começo da formação cultural brasileira. O Brasil tem uma cordialidade, uma amabilidade que é herança indígena. Mas o país desconhece isso. É uma coisa muito profunda. O ethos do Brasil, do povo brasileiro, deve muito aos índios. A rede, a mandioca, isso não é nada. A contribuição indígena para a formação do Brasil é muito mais profunda do que isso.

157


158


Luciana Tomasi Fundadora da Casa de Cinema de Porto Alegre.

O que é a Casa de Cinema de Porto Alegre? A Casa de Cinema é uma produtora com 22 anos de existência. Passou por várias fases. Desde o início da sua criação, tinha como proposta produzir apenas cinema, ou trabalhar com coisas relacionadas ao cinema, no ensino, nas mostras e na distribuição. Porque sabíamos que se fossemos para a publicidade – principalmente no Rio Grande do Sul – ficaria muito difícil concentrarmo-nos em projetos autorais. A publicidade suga muito. Nós tínhamos uma estrutura para fazer cinema. Hoje, somos seis, mas quando a Casa de Cinema começou, era formada por um grupo de 13 pessoas. Não começamos como uma empresa. No início, a Casa de Cinema era uma associação de produtoras e de pessoas. Aí, com o tempo, algumas pessoas foram saindo. Restaram seis sócios, que continuam produzindo cinema. Na época nós fomos responsáveis pelo filme Deu pra ti anos setenta, que foi um sucesso no Rio Grande do Sul e, em parte, no Brasil. Esse grupo fazia longa metragem em super-8, e existiam filas para assistir ao filme. Era uma novidade. Depois começamos a fazer filmes em 35 mm, e mais para frente a trabalhar para a televisão. Hoje, trabalhamos para a Rede Globo, para a RBS, trabalhamos para a Columbia Pictures e também para a Fox. Mas continuamos com a nossa personalidade alternativa, que 159


vem de uma história de esquerda que a Casa de Cinema tem. Nós trocamos a bitola – vamos dizer assim –, mas não trocamos a questão autoral dos filmes em que acreditamos. Os diretores têm liberdade para fazer o que quiserem. Como funciona a organização de produção e de comercialização dos filmes? Existem duas formas: a produção idealiza os projetos ou os diretores apresentam uma proposta, principalmente quando é documentário ou alguma coisa para a TV. Aí, nós saímos para realizar o projeto: inscrever nas leis, buscar patrocínio, e ver de que forma conseguimos realizá-lo. Tentamos sempre fazer uma produção que tenha começo, meio e fim. Nunca deixamos um trabalho pela metade. Por isso, nós nos preocupamos muito em saber se tem como realizar o filme até o final. Não começamos um filme se não soubermos como vai terminar, porque isso é uma das coisas que mata as produtoras. Muita produtora já acabou por causa disso: tem grana para filmar, mas não sabem se conseguirão finalizar o trabalho, e acabam parando no meio. Nós sempre temos a verba para finalizar e para a pós-produção. Depois vem a distribuição, que é sempre mais complexa. A distribuição é o grande problema do cinema brasileiro. Filmar, qualquer um consegue, mas distribuir não. Se você não estiver ligado a uma distribuidora grande – como a Columbia, a Fox, a Warner –, você não consegue lançar seu filme. As distribuidoras grandes não querem qualquer filme. Se você fizer um filme muito radical, que fale de sexo, de drogas, ou de qualquer coisa, já complica. Se você quer lançar seu filme, isso pode demorar anos. Levamos seis anos para fazer esse último filme, o Antes que o mundo acabe. Tem que ter muita paciência, senão você não consegue ter remuneração nesses seis anos. E quando chegar a hora de distribuir, se você não tiver as grandes distribuidoras, não consegue visibilidade. Nós conseguimos a Imagem, que é uma distribuidora nacional, que está fazendo um trabalho bem legal. O que você considera um bom público para uma produção nacional? Se um filme alcançar cem mil espectadores, é um sucesso, porque, do jeito que o mercado está montado, com o cinema norte-americano tomando conta de 95% e às vezes até 99% das salas, não sobra espaço para exibir os filmes nacionais.

160


Como é produzir um curta-metragem? Para uma grande produtora fazer um curta-metragem significa colocar grana nele, porque o curta não dá retorno. A exceção é o Ilha das Flores, que se paga até hoje. No curta-metragem o cachê é simbólico. Não dá para fazer nada com um orçamento de R$ 80 mil para um filme de vinte minutos. Então, é mais uma questão de dedicação, de acreditar no projeto. Mas não é fácil profissionalmente investir três meses de tempo de trabalho para fazer um curta-metragem no Brasil. E como produzir um longa-metragem? Atualmente, no Brasil, não é fácil captar recursos para fazer um longametragem. Não só para mim, mas para as outras produtoras também. Mesmo assim, dá muito trabalho. Sempre que você vai fazer um longa dá a impressão de que está começando tudo de novo. Você sempre tem a sensação de que está começando na carreira de artista. Quantos filmes eu já fiz, a Casa de Cinema já fez? Então, eu vou nas empresas gaúchas, nas empresas paulistas, que recebem incentivo 100%, não pagam nada para o filme, e ainda ganham, e eu ainda tenho que chorar para colocar algum investimento no meu filme. É muito difícil. O empresário não tem consciência de que ele deve colocar dinheiro no cinema. Não sabe qual será o resultado, se haverá algum retorno. O filme pode ser ótimo, mas atualmente o mercado de cinema é tão louco que se define num final de semana. Você trabalha durante seis anos; na sexta-feira do lançamento do seu filme, você o exibe à noite e já sabe se teve sucesso ou não. Para mim, isso é uma tragédia artística. Você é balizado pelo público do shopping de uma sexta-feira. E isso dificulta muito conseguir patrocinadores. Várias entrevistas que fizemos apontaram uma mudança que tivemos nos últimos vinte anos, que foi a presença das mulheres na produção do cinema. As mulheres são as produtoras do cinema brasileiro. Se você for olhar, vai ver que 90% dos produtores de cinema são mulheres. O homem se concentra mais em cima de um assunto. A mulher se concentra não tão bem, mas em dez assuntos ao mesmo tempo. Isso para produção é fundamental, porque a produção é como uma orquestra. Se você vai fazer um filme, tem que dar a mesma atenção para toda a equipe. Tem que compor, estar sempre pensando 161


tudo ao mesmo tempo, e isso a mulher faz melhor que o homem. Não adianta. Não é uma questão machista ou feminista. Não que não existam casos em as mulheres não façam tão bem o trabalho de produção, ou que não tenha homens que façam um bom trabalho. Conheço homens que são ótimos produtores. Mas eu já trabalhei com muita gente, tanto mulheres quanto homens, e digo que as mulheres são mais indicadas para essa função. O que mudou na esfera da produção desde que vocês começaram a atuar? Ah, o que mudou é que hoje as pessoas estudam para isso. Eu fiz jornalismo, na UFRGS, e tive uma cadeira de cinema durante o curso. Mas a maioria das pessoas que trabalharam com a gente é autodidata. Atualmente, eu trabalho com pessoas que fizeram faculdade de cinema. Eu tenho duzentos pedidos de trabalho, e cinquenta são de formados em cinema. Isso faz uma total diferença, principalmente no Rio Grande do Sul. Lá a PUC tem uma faculdade de cinema, e a UNISINOS também. O curso da PUC é de tecnólogo e tem duração de dois anos e meio, e o da UNISINOS é de bacharel e são quatro anos. Isso aí fez uma diferença total, porque eles já entram discutindo cinema. Trabalho com produtoras que têm conhecimento dos filmes, conhecimento do cinema clássico, e já entram sabendo muito mais do que a gente. Quando a gente fazia filme super-8, eu era a produtora, mas eu também era atriz, eletricista. Se tivesse que arrumar o banheiro do set, eu ia arrumar, entende? Então, fazia-se de tudo. Hoje em dia está cada um na sua função, o que é ótimo, e cada um com seu conhecimento. Houve uma renovação através da educação para o cinema. Os festivais são importantes para o filme conseguir visibilidade? O filme ir bem no festival não significa absolutamente nada. É até perigoso. Porque geralmente se a crítica aceita muito bem, o público vai detestar. Se eu tenho um filme que eu sei que vai agradar a crítica, eu boto no festival. Agora, se é um filme feito comercialmente, aí não se bota em festival, porque ele pode levar muita paulada. Por exemplo, você pode se sair muito bem nos jornais, ganhando festival, mas isso não vai representar nada para o grosso do público, para a audiência dentro da sala de cinema. Mas para nós os festivais foram fundamentais. Quando a gente começou o Festival de Gramado, foi a nossa vitrine. As pessoas só passaram a saber quem nós éramos, que existia gente talentosa fazendo cinema no Rio Grande do Sul, porque nós conseguimos 162


botar os nossos filmes em super-8 em Gramado. É muito importante para o cinema que os festivais existam, mas não significa nada comercialmente. Entrevistamos um produtor de cinema, e ele falou que acabou essa coisa do produtor autoritário, que fica gritando no set, que isso é até um pouco cafona, e que isso mudou dentro do set... Eu não sou exatamente uma produtora de set. Já fiz muito set, na época do super-8 e também dos curtas, mas a minha produção é mais de escritório. Eu realizo os projetos, busco as parcerias, contrato as pessoas e, principalmente, administro os orçamentos. Faço uma produção nesse nível. Mas meu perfil não é para trabalhar em set. Eu jamais entrei no set gritando, seja com quem for. Nunca gritei com nenhum funcionário, esse não é o meu estilo. Cada uma na sua história. Gritar não está com nada, em lugar nenhum. Como funciona o processo de captação de recursos? Como é chegar no patrocinador? Eu adoraria ter uma empresa, aqui no Brasil, para a qual eu dissesse: “Por favor, vou entregar o meu projeto, e vocês captem.” Falta isso, no Brasil. Não existe uma boa captação, uma empresa que se disponha a ir em todas as possibilidades, que apresente os projetos, faça contatos. O produtor não deveria sair captando. Mas, vira e mexe, a gente tem que fazer isso, e nem sempre tem sucesso. Eu já cansei de procurar por indicação empresários que eu não conheço. E mesmo quando chego numa empresa em que eu já trabalhei, em que já fiz alguma coisa, é muito difícil conseguir patrocínio. Porque, hoje em dia, o cara que me recebe tem 250 projetos de longas no escaninho dele, esperando também uma avaliação. Todo mundo quer patrocínio. Tem muito projeto para pouca verba. O artigo primeiro do patrocínio direto não está funcionando. A Rouanet ainda funciona um pouco melhor, tem mais abertura, porque não envolve a CVM, não envolve a bolsa de valores. A sorte é que temos os concursos da Petrobras, que são maravilhosos. Quem está mantendo o cinema é a Petrobras. No BNDES também tem bastante coisa. O MinC tem uma coisa aqui, outra ali. Mas são esses apoios que mantêm o cinema. Se ele dependesse da iniciativa privada, podíamos esquecer. A questão do imposto de renda, de dedução, está acontecendo minimamente. A maioria dos produtores, no Brasil, não consegue viabilizar os seus filmes através da iniciativa privada. 163


É diferente produzir para televisão? Totalmente diferente. Na TV tem o padrão. No cinema, eu posso ser totalmente criativo, fazer tudo que quero. Na TV, você tem que discutir com a linha editorial do programa, do que a TV quer. Não tem a mesma liberdade criativa que tem no cinema. A TV é mais por encomenda, você tem que se submeter. Mas ela dá uma segurança, sustenta a produtora. Porque nunca sabemos quando conseguiremos produzir outro filme. Agora, estou iniciando um com baixo orçamento, seguindo a experiência do Carlos Gerbase, no filme 3 Efes. Ele fez o filme em vídeo, e lançou ao mesmo tempo em várias mídias: no cinema, em DVD, na internet, na TV aberta e no Canal Brasil. No cinema foi mais fraco, como sempre. Mas na internet foram quarenta mil espectadores por dia, na época em que foi lançado. Quando vamos conseguir isso numa sala de cinema? É isso que vai mudar a estrutura? Isso já está mudando a estrutura totalmente. Não se pode mais fazer um filme pensando apenas no cinema. Principalmente o filme médio, o filme de baixo orçamento. Tem que pensar na internet, no DVD, na TV aberta. Como está a formação técnica de mão-de-obra para cinema? Não mudou muito. Nas faculdades de cinema, formam-se diretores de fotografia, produtores, roteiristas, diretores, mas não os técnicos. Com os técnicos, nós fazemos cursos de atualização. Fazemos workshops, oficinas, mas é uma coisa esporádica. Nós ainda temos carência de formação de pessoal técnico. Mas, mesmo assim, muitos técnicos nossos saem de lá para fazer um curso de especialização em São Paulo ou no Rio de Janeiro. O nível dos técnicos melhorou muito, e nesse aspecto nós não perdemos em nada para o cinema europeu. Com os Estados Unidos não dá para comparar por causa da tecnologia. E nem é o nosso objetivo, não nos interessa fazer um Matrix. O nível técnico do cinema brasileiro subiu, e isso se expressa no filme. Já não se pode falar que o filme brasileiro peca por ter um som de má qualidade ou coisa do tipo, como diziam vinte anos atrás. A Índia tem uma grande indústria de cinema, a Bollywood, e a China hoje faz um forte investimento em economia da cultura, o que é uma prioridade. Você vê alguma ação nesse sentido no Brasl? 164


O Brasil ainda não tem a visão da importância de produzir imagem. Não falo do cinema, mas de tudo que pode ser produzido, que gere imagem. É vital na atualidade. Por isso que falo da questão da Petrobras, porque, se não tivesse esse programa brasileiro – e ainda bem que tem –, nós estaríamos muito atrás do restante dos países. E isso é muito importante. O ser humano ama se ver, ama ver a sua cultura retratada. Não dá para vivermos apenas com uma cultura de televisão. Ficar assistindo a esses reality shows, a esse tipo de TV, compromete o crescimento cultural da população. O mundo inteiro precisa de material visual. Há uma pulverização da mídia que abre muito espaço para ser preenchido. E quem é que produz para isso tudo? Por isso que a China e a Índia estão de olho. Mas me preocupo com o conteúdo, com o engrandecimento da civilização. Porque também não adianta produzir porcaria, como o filme B norte-americano. Como você vê a atividade de base dos cineclubes? Ah, eu adoro. Tem um cineclube lá em Porto Alegre, que é administrado por uns caras que são tão fãs de cinema, que a sessão de exibição deles é domingo de manhã. Agora, imagina que em Porto Alegre é um frio desgraçado e, às 10 da manhã, os caras estão todos ali no cineclube para ver um filme escolhido e debatê-lo. Eu acho lindo, acho muito nobre a atividade do cineclube. Porque eles assistem o filme, debatem depois, trocam informações. E ainda existem muitos cineclubes – pelo menos no Rio Grande do Sul! Existe muita atividade de cineclube no interior, porque o interior não tem as salas, nem boas locadoras de vídeo. Luiz Carlos Barreto diz que no Brasil existem dez diretores para cada produtor... Diretor é o que mais tem. Na faculdade de cinema, 90% dos alunos querem ser diretores. Eu tenho, por exemplo, uns trezentos roteiros no meu escritório. É óbvio que eu não vou conseguir ler todos. Então eu dou uma olhada na sinopse e vejo se o assunto interessa ou não. Entre os roteiros que eu recebi, tem maravilhas. Isso que me deixa louca, porque não tem oportunidade para todo mundo. Então, não adianta ser apenas talentoso, tem que ter oportunidade e sorte. Porque senão você não sai da gaveta de um produtor. Isso não é brasileiro, acontece no mundo inteiro. Desses estudantes que querem ser diretores, muitos poucos conseguirão. Não adianta. Todo mundo quer ser 165


diretor, mas ninguém quer produzir. Não é fácil ser produtor, e não traz a fama que se consegue dirigindo. Ao mesmo tempo, muitos grandes diretores nunca abriram mão da produção. Sim. Atualmente, está acontecendo de vários diretores assinarem a produção. É muito difícil conciliar essas duas atividades. Às vezes, acontece um problema com o filme e o diretor não pode ficar achando que não vai terminálo. O diretor não pode nem ser avisado: “Olha, pode ser que o nosso filme não acabe.” Vai atrapalhar a questão artística dele, ele vai se preocupar com coisas que ele não deve. O diretor tem que ser preservado na hora de fazer a obra. É curioso, porque a gente imagina o mítico produtor de cinema norteamericano, aquele que tem a entrada da sala disputada a tapas pelos diretores... Lá é outra coisa. Em Hollywood, você tem que mostrar resultados. Se o seu filme não der certo, você pode até fazer o segundo, mas o terceiro vai ter muita dificuldade para fazer. Nos Estados Unidos é uma atividade muito mais complicada que aqui. No Brasil, se o filme não vai bem no cinema, o que pode ser feito? É até normal. Mas lá não tem isso, porque um filme paga o outro. Lá é um mercado de verdade. Não dá para dizer que o Brasil tem uma indústria cinematográfica. Não tem. Lá sim. Para terminar, com toda a preocupação política e social que vocês sempre tiveram, como você vê essa questão da indústria da celebridade, uma coisa que começa a surgir no Brasil? Eu acho que faz parte. Cinema também é glamour. Você sempre quer saber quem é a atriz daquele filme, se há uma atriz ou um ator que arrasa, quem são os bonitinhos, os interessantes ou os carismáticos. Então, é bom ver pessoas, não digo bonitas, mas interessantes no vídeo. É gostoso olhar para a beleza, assim como olhar para uma obra de arte. É gostoso ver pessoas bonitas atuando bem. É claro que só a beleza sem o conteúdo dramático não é suficiente. Se o cara não é ator, não adianta ele querer ser. Ele pode fazer quantos cursos quiser. Algumas pessoas não vão fazer sucesso. Mas, de qualquer forma, o glamour faz parte do cinema, senão eu teria que procurar outra coisa para fazer. 166


Eu adoro documentário. Acho que atualmente eu gosto mais de documentário do que de ficção, mas o documentário não tem glamour. Por isso também ele é tão real, tão verdadeiro. Se você está fazendo uma ficção, uma história de amor, os seus protagonistas têm que ter uma dose de brilho. Faz parte. Eu não vejo problema nenhum. Eu não leio sobre celebridades, a não ser alguma coisa que todo mundo leia. O que eu acho chato é o paparazzo indo atrás das celebridades e revistas inteiras tratando da vida das pessoas. É uma perda de tempo total, mas cada um com o seu gosto.

167


168


João Vieira Jr. Produtor de cinema e diretor da REC Produtores.

O Baile perfumado quebrou um silêncio de vinte anos dos longas-metragens em Pernambuco. Acho que seria importante a gente começar contando o que era essa história prévia, o que Pernambuco viveu no cinema antes do Baile... Posso falar a partir da minha história, a partir de como me formei produtor, porque esse momento fica um pouco difícil de dissociar. Nos anos 1980, eu estava na universidade, e quando alguém queria fazer um curta-metragem era um pandemônio, era superdifícil. Você não tinha nenhum equipamento na cidade do Recife. Financiar um filme era uma grande dificuldade e também um grande acontecimento. E não existiam produtores ali. Se você fosse minimamente organizado, talvez lhe fossem atribuídas as responsabilidades da produção, de organizar esse equipamento, de pensar uma pequena logística ali para as pessoas. Acho que esse conceito do produtor criativo só foi aparecer em Recife, entre os meus amigos, nos anos 1990. A produção dos anos 1980, de Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Claudio Assis, Lírio Ferreira, Adelina Pontual, que são os grandes realizadores que apareceram naquele momento, era absolutamente pontual e sem nenhum vislumbre, nenhuma possibilidade de continuidade. Só no final dos anos 1990 é que algumas políticas públicas foram instituídas e sistematizaram essa produção. 169


O Baile perfumado apareceu em meados dos anos 1990 como um respiro. Ele reúne todas as pessoas que se identificavam com artes, com a produção cultural. Quase todos os amigos entraram naquele projeto, e alguns acabaram construindo uma carreira a partir dali. Fale um pouco da cena cultural de Recife no começo dos anos 1990. O Recife do início dos anos 1990 vivia um marasmo gigantesco, aquela ressaca dos anos 1980. A saída da ditadura, uma falta de perspectiva muito grande dos profissionais. Talvez a classe média alta estivesse saindo do Brasil, mas a grande maioria das pessoas de classe média estava presa na cidade e não tinha um plano de trabalho ou um plano de construção de uma carreira. A minha geração era interessada em conhecimentos muito diversificados, então lia psicologia, lia os existencialistas, e via todos os filmes de Bergman na primeira oportunidade que tivesse. Ela tinha um certo inconformismo. Curiosamente, no início dos anos 1990, um veículo de comunicação, não lembro bem qual era agora, publicou uma relação sobre quais eram as melhores metrópoles do mundo para se viver. Recife era a 4ª pior das cem metrópoles do mundo. Aquilo deixou as pessoas chocadas, mas ao mesmo tempo a gente se ria um pouco, porque já conhecia exatamente em que contexto a gente estava. Começamos a brincar, a ironizar com esse fato. Isso coincidiu com a história dos tubarões, que começaram a aparecer na praia de Boa Viagem. Era o resultado de uma interferência enorme causada pela construção do porto de Suape. Então, quando tudo parecia que ia desmoronar, essa autocrítica começou a gerar uma nova produção cultural, e, como sempre, cabia à música ser o carro-chefe. Acho que a música, historicamente, sempre parece se adiantar a esses processos. Foi aí que apareceram o manguebit e várias bandas de subúrbio, de amigos. Eles alugaram um grande galpão, no bairro do Recife, que era um bairro histórico, no Centro, mas que estava abandonado, e começaram a fazer shows. Isso gerou um interesse por essas bandas, alguns acabaram entrando para a história recente da música brasileira, como Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio. Mas, naquele momento, todos comungavam de uma precariedade de recursos e de oportunidades também. O manguebit, na música, tinha os caranguejos com antenas parabólicas. No Baile perfumado os cangaceiros assistentes do Benjamin Abraão são 170


o Moderno e o Elétrico. Era essa tentativa de vocês de juntar o estar em Recife com estar num mundo globalizado de fim de século XX? Essa geração já tinha um olhar voltado para a tecnologia, e isso ajudava a criar um conceito que talvez ainda fosse incipiente. As pessoas não tinham tanta clareza naquele momento, elas só estavam vivendo. E nesse sentido a música também parece ser o carro-chefe. Eles procuraram meios alternativos de se lançar, o que hoje está acontecendo no cinema. A discussão atual sobre a distribuição no cinema já aconteceu na música há dez anos, quando as pessoas começaram a gravar, a montar seus próprios estúdios e a criar seus próprios sistemas de distribuição. Você trabalha filmes com temas superdifíceis, como Baixio das bestas, por exemplo. Como se dá a captação de um filme como esse? Vou falar um pouquinho como é a minha relação com os diretores e aí eu chegarei à captação. O produtor e o diretor de cinema estabelecem uma relação de cumplicidade longa, duradoura. Um filme leva muito tempo para ser feito. A captação de recursos sempre é difícil, e mesmo depois dele pronto você vai passar anos e anos representando e defendendo, e ainda dizendo porque é que você fez aquele filme. Então é super importante o casamento entre produtor e diretor, é importante que os interesses da relação estejam muito claros, muito afinados, e que as pessoas comunguem, se possível, até dos mesmos pensamentos estéticos. Por exemplo, o cinema que me interessa é muito parecido com o cinema pelo qual Marcelo Gomes ou Karim Aïnouz se interessam. São diretores com quem eu já trabalhei e com quem possivelmente eu voltarei a trabalhar. Vejo que a gente tem uma interseção, que é a nossa cinefilia. Acho que todos nós passamos por cineclubes, e isso talvez tenha ajudado muito a construir um diálogo. Quando eu resolvi abrir a Rec Produtores Associados, há dez anos, eu queria muito ter uma empresa produtora que desse certo, então eu convidei dois amigos, duas pessoas queridas para serem meus sócios. Eles estão comigo até hoje, e a gente entendeu que precisava criar áreas de atuação. Eu não conseguiria ter uma produtora pontual, que fizesse um filme por dois ou três anos e depois não soubesse qual seria o próximo projeto. Eu queria ter uma produtora que mesmo na entressafra de filmes pudesse continuar abrindo as portas, pagando contas, contratando. Porque tem esse dado que eu sempre falo, que o cinema além de caro, como todo mundo já sabe, leva 171


muito tempo para ser feito. Então o que você faz entre um filme e outro? Como você sobrevive? Como tira as certidões negativas que são importantes para o trabalho de um produtor que lida com os sistemas de incentivo à cultura? Eu me perguntava muito isso, e entendemos que precisávamos ter, mesmo que em volumes menores, alguns outros trabalhos de audiovisual: alguma coisa para televisão, um pouco de publicidade ou vídeos institucionais que fizessem uma segunda camada, que protegessem essa atuação no cinema. A mim coube dirigir o departamento de cinema e TV, um dos meus outros sócios faz o administrativo-financeiro, e um terceiro, o atendimento comercial. Isso também foi uma certa novidade. Depois disso, fizemos quatro longas, esse ano a gente filma o quinto, o novo filme de Marcelo Gomes. E estamos lançando o Viajo porque preciso, volto porque te amo, do Marcelo e do Karim Aïnouz. É um filme conceitual, que à primeira vista parece difícil de distribuir. Mas conseguimos um distribuidor sensível, o Adhemar Oliveira, do Circuito Espaço de Cinema, que entendeu o filme e vai lançá-lo nacionalmente. A Rec fica em Recife, ou seja, está fora do centro financeiro de captação, que é no Rio e em São Paulo. Então os editais das estatais são importantíssimos para os projetos que eu decido fazer. E eu faço os projetos que os diretores decidem fazer, os temas que eles escolhem contar. Eu absorvo, me identifico com esses temas e tento entender e justificá-los da melhor forma possível. Talvez o que fez com que construíssemos uma situação favorável para a empresa, além do talento dos diretores, foi o Brasil do ministro Gilberto Gil, que é um outro Brasil para a cultura. Foi a visão do Ministério da Cultura de descentralizar, de criar novas oportunidades, que foi fundamental. O fortalecimento de novas políticas contribuiu para que temas, por vezes mais difíceis, pudessem aparecer dentro do segmento de cinema, que é tão caro e difícil de acessar financiamentos, e pudessem também chegar até nós. Então eu juntaria no mesmo caldeirão um pouco de talento dos diretores e essas novas políticas criadas pelo Ministério da Cultura, que eu acredito ser uma mudança fundamental para a produção cultural brasileira. Então esses temas que seriam mais complicados no balcão encontram um espaço mais democrático nos editais? As comissões de seleção dos editais são diferentes. O roteiro é fundamental, mas elas leem uma série de outros dados. O currículo daquele produtor, 172


se ele tem usado dinheiro público, que responsabilidade ele tem tido com esse dinheiro, se ele tem acabado seus filmes, se os seus filmes têm sido lançados, quais os resultados desses filmes. Existem outras coisas que também são importantes para o cinema. Por exemplo, o Cinema, aspirinas e urubus foi a oitenta festivais internacionais, quer dizer, que trabalho maravilhoso de difusão da cultura brasileira esse filme fez! Ele chegou a vender para dez países. O produtor tem a obrigação de estar construindo carreiras o tempo inteiro. É a sua, a dos diretores que trabalham com você, das pessoas que você seleciona para o seu filme. Você olha aquele perfil e vê se realmente ele vem somar numa equipe. Quando você convida uma pessoa pela segunda vez, e ela deixa de ser assistente de arte para ser diretor de arte, o produtor está construindo, cuidando ou alimentando essa carreira. Na verdade, isso é uma coisa que me encanta muito nesse trabalho. Conte um pouco para a gente como é fazer uma locação no sertão. É incrível. Tenho uma coisa romântica em filmar no sertão, não só porque as pessoas estão envolvidas com o tema, com o filme que elas querem fazer, mas porque é muito fácil. As pessoas o recebem tão bem, abrem as casas com honestidade, você cria relações tão verdadeiras. Não sei também se é o isolamento do sertão que faz com que aquela caravana passe e permita que pessoas aparentemente tão diferentes criem entrosamentos muito verdadeiros. Nas três experiências que eu tive, fazendo filmes de baixo orçamento, essas relações foram maravilhosas. Se você vai filmar no sertão e precisa alugar uma charrete de uma família que está numa fazenda e que sobrevive com um salário mínimo, você não pode alugar por R$ 500,00, porque vai causar um rebuliço na vida daquelas pessoas. Você tem que pagar alguma coisa, claro, mas precisa entender qual é a dinâmica daquilo tudo, qual o impacto que vai causar, para que aquilo tudo seja correto. Tem que ter o cuidado para não abusar da boa vontade das pessoas, porque elas dão muita coisa quando você se relaciona com elas, principalmente se chega educadamente, gentilmente, e se não passa como um trator por cima delas. Um outro dado, e esse também é um lado romântico, é que filmar no sertão blinda a equipe. As pessoas se concentram no trabalho, porque você não pulveriza os interesses, as saídas. Então existe uma imersão, todo mundo se volta de fato para o trabalho, e acaba que no dia da folga as pessoas ficam juntas, fazem coisas juntas. E esse processo faz com que o cinema se torne 173


intenso demais. A produção cultural é uma atividade intensa, principalmente quando você lida com cinema, com equipes que trabalham 12 horas por dia com uma folga por semana. A renovação de diretores é uma preocupação da Rec? Trazer diretores jovens, abrir espaço pra outros diretores? Totalmente. Quando abrimos a Rec, nosso primeiro projeto era o Cinema, aspirinas e urubus, que era o primeiro longa-metragem do Marcelo Gomes, o primeiro longa da produtora, o primeiro longa do fotógrafo, que era o Mauro Pinheiro, o primeiro longa do ator, o João Miguel. Agora estamos desenvolvendo o primeiro longa de ficção de Hilton Lacerda, que foi roteirista dos filmes de Claudio Assis, e que também dirigiu Cartola, junto com Lírio Ferreira. Eu acabei de produzir um documentário chamado KFZ1348, longa de estreia de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedrozo, dois jovens diretores recifenses, com 25 e 28 anos, que já foram assistentes de Marcelo. Aliás, esse é um caso atípico, foi o longa mais rápido que eu fiz na minha vida. Um dia eu estava no escritório, e eles chegaram dizendo que tinham um filme, que eles iam pegar um fusca no ferro-velho e iam pesquisar a rede de ex-proprietários. Eu achei bem interessante, porque passa por toda essa história recente do Brasil. Em um ano a gente conseguiu financiar o projeto, era um filme barato, de R$ 500 mil. Ganhamos logo o primeiro edital, complementamos os recursos e um ano depois ele já estava filmado. E eram diretores estreantes... A fidelização dos diretores a uma produtora é muito importante? É muito importante, mas também não pode ser só assim. Por exemplo, eu acho muito legal ter uma empresa só de produtores. Eu não tenho diretores associados a mim, porque ou eu faria só os filmes deles ou eles teriam a prioridade. Como produtor entendo que não posso ter só um projeto, eu tenho que ter mais de um, tenho que entender qual é a prioridade do momento. Se você tem quatro projetos e um deles é mais rápido porque você conseguiu uma fonte de financiamento, ou percebeu que ele tem um tema que interessa mais às pessoas naquele momento, que interessa mais à discussão da sociedade, é provocante, você tem que dar prioridade. Você tem que acabar manejando isso, principalmente quando tem uma produtora ativa. Eu acredito muito nesse perfil do produtor criativo, que está junto do 174


diretor, mas o produtor tem que ser empreendedor também, tem que somar um conceito com o outro. Primeiro que aquela ideia do produtor que grita, que está suando, que está estressando, é uma cafonice gigantesca. Outro dia eu estava lendo uma crônica do Truman Capote sobre uma montagem de teatro americana do Porgy and Bess, em 1955. O grupo estava excursionando pela Europa, e iriam a Moscou e a Leningrado. Era a primeira vez que um grupo de teatro americano iria para a União Soviética, então tinha uma loucura para quebrar aquelas barreiras. Ele, como historiador e jornalista, acompanhou o grupo, e descreveu as pessoas, os bailarinos, os cantores, as pessoas que acompanhavam. Quando ele fala do produtor, sempre aparece essa imagem de uma pessoa nervosa, sempre suando e que não dormia. Até ele caiu nessa falácia. É fundamental que você tenha tranquilidade para ter uma compreensão de todo o processo, que pense no seu futuro, que se planeje como produtor, como empresa produtora. É ótimo pensar como artista, com a pesquisa, com o tempo, mas esse planejamento é fundamental para a vida não só da empresa, mas das carreiras que você está trazendo junto com você. A produtora é muito importante para todo mundo daquela equipe, não se faria isso sozinho. Uma coisa que eu achei fundamental nos últimos anos é que eu e meus sócios passamos por uma consultoria de gestão, porque você pode cair na bobagem de achar que, por ser produtor, pode administrar qualquer processo. Você pode criar logísticas muito interessantes, pode colocar setenta pessoas no sertão fazendo deslocamentos de 100 km entre uma cidade e outra com equipamentos, juntar pessoas do mundo inteiro, mas administrar a gestão, pessoas que têm que estar satisfeitas com o seu trabalho, com as suas funções definidas, com procedimentos muito claros, as suas atividades naquele processo, é uma outra coisa. Foi aí que vi como era enriquecedor poder conversar com os diretores e viajar em todos os temas, mas que você tinha que olhar para isso não meramente como administrador, mas para saber que produtora você é, como você vai ser daqui a quatro anos, como vai ser daqui a dez, que tipo de projetos você precisa para continuar existindo. E, principalmente, para poder se antecipar aos problemas. Então você é o produtor que viaja, que acompanha, está perto? Eu sou um produtor pé no chão. Eu vou junto, apesar de eu não gostar muito do set. Eu acho que eu não tenho uma função muito clara ali, 175


me sinto um pouco desnecessário. Eu posso ir nele todo dia, conversar com o diretor um momento, mas acho que se estou no escritório vou produzir muito mais do que no set. E também, como produtor, acredito que quanto menos gente naquele lugar, melhor, para que ele funcione bem. Então tenho que dar um pouco desse exemplo. Em alguns desses filmes, além de produtor, acumulei a produção executiva também, ou sozinho ou dividindo com alguém. Eu estava muito presente, acabava tendo um conhecimento muito grande do que se queria fazer, da articulação, do acompanhamento do dia a dia, das contas, da relação com as pessoas. Eu não sei se no futuro essa possibilidade ainda vai ser possível, mas me sinto também mais seguro hoje porque eu entendo todo o processo de produção de um filme. Você quer dizer que entende as necessidades desse processo, e aprendendo sobre elas você antecipa problemas? Sim. Se você é um produtor que não tem a obrigação de estar no set acompanhando, pode não entender porque a alimentação custa tão caro para uma equipe que trabalha 12 horas. Mas se passou pela executiva antes, ou se foi diretor de produção, você avalia isso tudo com muito mais tranquilidade, sabe os reais motivos. O produtor que tem que fazer as articulações e reunir ali aquelas fontes de financiamento, garantir prazos. Mas eu estou falando de um modelo próximo a mim, que são os filmes de baixo orçamento, de uma empresa produtora que está no Recife, que tem dez anos e só fez cinco longas, o que não é um número tão significativo assim quando você vê outras produtoras, mas que é bastante para entender de planejamento. Fala um pouco sobre as novas tecnologias e a internet. O que isso representa para o cinema? Eu acho que, quando se fala em tecnologia e internet, a primeira coisa que a gente pensa é no acesso democrático que isso trouxe para tantas gerações. Eu lembro que há uns quatro anos eu vi um palestrante da Petrobras falando sobre editais, que na área de tecnologia e novas mídias, coisas desse tipo, eles tinham ficado surpresos porque metade dos projetos era do Recife. O que não deixa de ser engraçado quando você se reporta ao Recife dos anos 1990, quando as pessoas sentiam que moravam na pior cidade do mundo. Então, sem dúvida, essa questão do acesso é maravilhosa e ajudou muito o crescimento da produção na cidade. O que me preocupa um pouco, e isso 176


não é um fenômeno só do Recife, é que as pessoas algumas vezes deixam de estudar. Você quer ser diretor, aí começa a operar aquela câmera, faz os vídeos da família e, aos 18 anos, acha que já é um diretor de cinema. Mas aí você não foi às exposições de arte, não foi ao teatro, não estudou as escolas de interpretação. Na produtora todo mundo que aparece para fazer um estágio está interessado em ser diretor, mas roteirista quase ninguém quer ser. É realmente maravilhoso ser diretor, mas você tem que estudar muito, tem que se informar o tempo inteiro. E pode até aparecer uma pessoa que aos 18 anos é genial, mas não se pode deixar de prestar atenção à interface, à interseção com as outras artes, para a própria formação dele como diretor, para que as pessoas se interessem pelo trabalho. Essa geração acessou muito cedo essa tecnologia que permite usar com maestria uma câmera e se debruçar sobre ela, entender como tudo isso funciona, mas não viu esses outros filmes que formaram diretores de outras gerações, que é uma parte fundamental do processo. Acho que não vão nem ao teatro. É importante o produtor também conhecer as artes? Isso facilita o trabalho dele? O produtor tem que ter no mínimo essa curiosidade. Por exemplo, eu escolhi ter uma empresa produtora que prioritariamente trabalhe com cinema, mas eu já trabalhei com teatro, com exposição de arte, porque realmente acredito na possibilidade desses diálogos. É importante que as outras artes não estejam tão distantes assim da compreensão. Por exemplo, quando um diretor fala para mim que quer fazer um experimento de commedia dell’arte, aquilo não pode parecer de outro mundo. Além do produtor ter que ser empreendedor, ele também tem que conhecer todo um processo criativo para que o trabalho possa fluir com toda a equipe criativa, que é a direção, a arte, a fotografia, a montagem. Ele não precisa conhecer essas coisas em profundidade, pode conhecer também como espectador, como um admirador dessas artes. Como você faz para pensar com o diretor do que o filme precisa? Essas decisões são tomadas em conjunto com toda a equipe criativa. Como a relação do diretor e o produtor é muito anterior a tudo isso, eu escuto muito o diretor e vou embarcando, tentando entender como é aquele sonho. Se o 177


projeto me dá segurança para administrar o orçamento, os prazos, os cronogramas, eu tento propiciar e adequar o máximo possível, porque o diretor precisa estar feliz. Ele está conduzindo, tem uma responsabilidade gigantesca sobre aquela equipe, aquele elenco, sobre o resultado final de todo aquele material. Então, quanto mais feliz e satisfeito ele está, mais seguro será o processo e mais curto o caminho para se chegar a algum lugar. E quando isso é imposível, quando você fala:“Esse sonho vai ser impossível de realizar com esse orçamento”? Ah, claro, isso também acontece. Isso não é uma dificuldade tão grande porque é uma coisa matemática, você está lidando com números, e aí cabe um pouco de organização do produtor, da quantidade de planilhas que ele cria, que ele carrega, os orçamentos gerais, os orçamentos de fase, os orçamentos por semana, o orçamento das coisas específicas, o orçamento do dia de filmagem, o orçamento da situação, se tem aéreo ou se não tem, o impacto que uma coisa tem sobre a outra. Você tem que pegar os números e ver qual o valor real que eles têm dentro do filme, se você vai ter que escolher uma coisa em detrimento de outra. Se você tem uma cena com três mil figurantes, é provável que vá perder uma semana de filmagem, então talvez seja preciso correr com esse plano. Mas você também não pode dizer isso no dia em que a pessoa estiver mais cheia de problemas. Tem coisas que em algum momento você vai precisar dizer, mas nem sempre você precisa falar quando as coisas são apresentadas, você tem que dar o tempo da pessoa. Nem sempre eu aponto um problema no exato momento em que ele me assusta, porque às vezes a pessoa muda de ideia no dia seguinte, e aí você já evita um conflito desnecessário. Em outras palavras, ser produtor é também trabalhar com relações humanas, não são só números. Fazer um filme é como se você administrasse uma empresa dentro de outra empresa. Essa empresa tem os seus departamentos, tem a fotografia, tem a arte, tem um monte de pessoas com suas aspirações, desenvolvendo suas carreiras, ou que estão longe das suas famílias. Às vezes é véspera de Natal e as pessoas querem voltar para casa, mas estão numa situação em que não podem sair. Então, nesse contexto, você precisa olhar as pessoas e saber que elas têm necessidades reais, talvez tão graves e tão complexas quanto a sua de 178


produtor, que é de acabar aquele filme, e que, na maioria das vezes, é preponderante para fechar o processo. Com esse modelo do produtor autoritário, não se chega a um lugar muito legal. Talvez em algum momento isso tenha sido possível. Eu acho bacana procurar um nivelamento com toda a equipe, mostrar o quanto você está envolvido naquele processo, que você não está à margem ou superior a ele.

179


180


Iatã Cannabrava Fotógrafo e diretor do Festival Paraty em Foco.

Como começou a sua relação com fotografia? Comecei moleque. Meus pais eram exilados políticos, então morei dos seis aos 17 anos fora do Brasil. Nos últimos dois anos de exílio, eu morei em Cuba, e lá um professor da escola me deu uma máquina soviética, plástica. Uma porcaria de máquina, mas foi com ela que fiz as minhas primeiras fotos. E adorei aquilo. Demorou dois meses para revelar o filme, porque foi para a Empresa Estatal de Revelaciones de Peliculas, mas eu me senti abrindo uma porta de comunicação com o mundo através desse primeiro filme. Uma pena que eu não tenha a máquina soviética para pôr no meu museu de memórias, porque ela ficou um dia no banco de trás do carro, pegou sol e virou um engruvinhado, derreteu. Quando voltei para o Brasil, nenhuma escola queria aceitar a documentação de Cuba. Era o início do fim da ditadura militar, março de 1980. Eu e meu irmão fomos finalmente matriculados no colégio Equipe, para terminar o segundo grau. Era um colégio bastante avançado pra época, um bastião da resistência contra a ditadura militar. Todos os professores tinham envolvimento com a luta pela liberdade, tudo muito disfarçado, para poder sobreviver. Então eles deram uma força e nos aceitaram, mas como era uma escola particular tínhamos que pagar mensalidade. Eles perguntaram como podí181


amos pagar, e eu disse que era fotógrafo. Entre Cuba e Brasil passamos um ano no Panamá, onde fiz estágio em um laboratório de fotografia, então com isso já me intitulei fotógrafo. Me pediram para montar um portfolio, para provar que eu era fotógrafo, e as minhas primeiras fotos profissionais foram para montar um portfólio para dizer que eu era fotógrafo. Assim eu comecei. E como produtor cultural? Minha atuação como produtor vem um pouco dessa história de ser filho de militantes políticos, o que me fez entrar em contato com o fazer coletivo, com essa atividade de juntar pessoas. Um fazer político. Hoje é muito estranho usar essa palavra, “política”, porque ela está deturpada do uso do dicionário, mas eu sou um amante do fazer político, do ato de fazer política, de você conseguir conciliar os interesses de uma sociedade em detrimento de um caminho individual e a favor do caminho comum. É o que deveria ser a política. Esse fazer político, coletivo, é o que muitas vezes coloca o artista numa posição de gestor. Eu costumo dizer que o produtor é o que faz algo para terceiros. Ele tem seus interesses, lógico, mas ele tem um guarda-chuva maior que é para terceiros. Então um editor de livros, por exemplo, edita os livros dos outros e não os dele. O curador cura a foto dos outros e não as dele. Não tem nada errado no artista que faz o trabalho para ele, para mostrar ao público, mas o que diferencia o gestor é que ele age para o terceiro, ele tem essa visão mais política do fazer cultural. Mas como você se profissionalizou? Meus pais eram jornalistas, intelectuais, então eu tinha essa formação em casa. Eu era moleque, cheio de energia, tinha vontade de fazer militância política e fotografia ao mesmo tempo. Lembro que fui, em 1984, para o Festival Mundial da Juventude dos Estudantes, em Moscou, na época União Soviética. Era um festival da juventude dos partidos socialistas do mundo inteiro. Levei minha mochila de fotógrafo com as câmeras, quatro lentes e vários filmes, mas eu não sabia o que fazer: se ia para as reuniões políticas, para as manifestações que havia ou se fotografava tudo isso. No fim, eu fazia as duas coisas ao mesmo tempo. Passei um bom tempo da minha vida assim, entre a militância política e a fotografia. Eu militava na juventude do PDT, um fã do Leonel Brizola, naquela época governador do Rio de Janeiro, e cheguei a ir para o governo 182


trabalhar no projeto dos CIEPs. Ao mesmo tempo, eu fazia meus trabalhos fotográficos. Trabalhei no Centro Cultural de São Paulo por muito tempo, e em 1984 desenvolvemos um trabalho coletivo, que virou um livro chamado São Paulo – Gigante Intimista. Era um projeto original do Fernando Lemos. O que eu fiz na minha carreira foi deixar de viver aquela esquizofrenia, entre a fotografia e a militância, e passei a ser um fotógrafo ativista. Fiz a conexão. Hoje eu divido o tempo entre o ato de fotografar e o de gestar projetos culturais. Eu tenho uma empresa, a Estúdio Madalena. A figura do produtor cultural, dessa forma que você estava falando, só existe no Brasil? Eu acredito que o grande diferencial do produtor cultural que existe no Brasil é que hoje ele se configura como uma empresa. Ele monta pequenas produtoras, e isso é uma coisa que eu não vejo em outras partes do mundo. Nos outros lugares, tem a figura do produtor cultural sempre ligado a instituições públicas ou privadas, ou como um curador autônomo. Isso existe em toda parte do mundo, mas essas pequenas empresas de produção são uma coisa típica do Brasil, que surge a partir dessas figuras que são agitadores do meio, com uma grande formação cultural. Como surge o estúdio Madalena? O nome “Estúdio Madalena” surge no momento em que eu mudo meu escritório para a Vila Madalena, mas começou com outro nome, “Clínica Fotográfica”. Era uma clínica bem no modelo das clínicas de tênis, de aperfeiçoamento. Era moda na época, centro de workshops, de treinamento. Havia escolas muito boas, que já seguiam um modelo de gestão que atualmente funciona muito bem nas escolas de fotografia do Brasil, mas havia uma lacuna no aperfeiçoamento. Hoje em dia todo mundo faz workshop, mas, na época, em 1990, não se fazia. Então eu montei uma estrutura para gerar workshops de fotografia, que acabou se tornando o Estúdio Madalena. Como estava a cena da fotografia naquele momento? Foi o momento em que se consolidavam os festivais internacionais de fotografia no mundo todo. Já havia alguns, como o de Arles, com bastante tempo e história. E se consolidavam também, no Brasil, as semanas nacionais de fotografia da Funarte. Começavam a se formar novos modelos, o fotógrafo 183


deixava de ser a figura que atuava isoladamente e começava a se agrupar em festivais, encontros, workshops, oficinas, cursos. A Funarte fez as semanas nacionais de fotografia. Rio de Janeiro e São Paulo tinham suas estruturas, galerias passaram a vender fotografia. Os últimos trinta anos foram de um processo crescente que culmina hoje em um mercado fotográfico poderosíssimo. Só que esse mercado não tem gestor. A grande deficiência é a formação do gestor, de curadores, produtores culturais, montadores de exposição. O Brasil e o mundo vivem um boom na fotografia, mas, além da falta de verba e das questões já conhecidas, tem outro problema: falta mão de obra, um gestor para utilizar a grana e produzir. A deficiência é maior no setor produtivo do que no governo. Não dá para responsabilizar o governo por essa falta de formação de gestor cultural. O Brasil vive um grande drama de falta de mão de obra qualificada. Isso da construção civil à produção cultural, sem falar na academia. Ao mesmo tempo em que temos grande desemprego, temos falta de mão de obra qualificada. Estamos ainda na fase de aperfeiçoar essa base de apoio à produção cultural. A produção artística é fenomenal, mas hoje em dia não basta o artista ter uma grande obra e esperar que o público bata na sua porta. O artista precisa ser, ele mesmo, seu produtor cultural, precisa se produzir. São dois trilhos: por uma lado é preciso ter uma produção artística com frescor, por outro lado tem que administrar essa produção, gerir a carreira artística. No fundo, sempre foi assim, só que hoje, com o mercado mais competitivo, é necessário pensar não só na qualidade do seu trabalho, mas na forma de levar o seu trabalho a conhecimento do público. Um grande exemplo de mecanismo para o financiamento de um projeto hoje são os editais, privados, públicos, nacionais, internacionais. Você precisa saber preencher o formulário de um edital, saber escrever um projeto, objetivar, justificar. Eu brinco que é quase aprender um idioma, o “projetês”. Não basta ter uma boa ideia, precisa falar projetês. Boas ideias não significam nada hoje em dia. Falando em boas ideias, fale um pouco sobre o Paraty em Foco. O Paraty em Foco é um festival que nasce no momento em que o Brasil já tem uma fotografia pulsante. Ele foi fundado por Giancarlo Micarelli, um italiano que veio para a Flip – o festival de literatura que acontece em Paraty – e sugeriu que fizéssemos algo parecido, só que com fotografia. Eu fui convidado para pegar essa ideia e transformar em um projeto: montar um 184


esquema curatorial, um esquema de produção, transformar em algo viável, agradável, funcional. Então uma das coisas interessantes é que o Paraty em Foco nunca buscou ter uma fonte única de financiamento. Apesar de ser o sonho de todo mundo, conseguir um projeto na lei do incentivo e conseguir um único patrocinador que financie 100% o projeto, nós sempre fugimos disso. Procuramos ter diversas fontes de financiamento. O Paraty em Foco tem uma energia muito grande, sempre brinco que é o Arles tropical. Arles é uma cidade do sul da França onde acontece o mais famoso festival de fotografia. Então temos nosso Arles Tropical aqui. É um festival que não dá para andar de salto alto, no sentido mais filosófico e poético da brincadeira. Tem que andar de Havaianas. As ruas de Paraty são de pedra, e isso traz uma característica ao festival. Acontece no centro histórico de Paraty, com pelo menos de vinte a trinta workshops a cada ano, sendo realizados em pequenas casas, em pequenos galpões, naqueles casarões antigos, com muro de pedra. Grandes fotógrafos do Brasil e do mundo conversando ali, não só no auditório, mas no que eu chamo de programação não oficial. Quando você vai tomar um lanche ou quando vai beber uma cerveja no fim do evento, você está sentado com os grandes personagens da fotografia mundial. O real sentido de um festival, de um encontro de qualquer área cultural, é esse intercâmbio, é a rede de contatos que se cria neles. A base de um festival está no incentivo a essa rede de conexões variadas entre artistas, produtores e instituições. Mesmo que as suas palestras não sejam as melhores, as mais brilhantes, o simples fato de acontecer um encontro internacional de qualquer área cultural é um grande ganho para todos. O que é o Encontro de Coletivos Fotográficos? Uma das manifestações que chama atenção nos últimos anos é a formação de coletivos fotográficos. Não é exatamente uma novidade: o fotojornalismo teve sua fase das cooperativas de produção fotográfica, mas os coletivos misturam essa produção comercial com a produção do fazer cultural, não mais focada no autor indivíduo, e sim no coletivo. O encontro surge da observação desse movimento que acontece na sociedade. Se há um movimento cultural, então vamos fazer um encontro disso, gerar uma discussão. Isso pode servir não só para balizar esse movimento como para gerar conhecimento sobre o que está acontecendo. O resultado disso não é a formação de centenas de novos coletivos, mas disponibilizar informações e diálogos para que um fo185


tógrafo possa mudar sua produção individual a partir da percepção de outras formas de produção. Você estava falando de uma preocupação em relação à produção. E quanto ao alcance? Como a fotografia pode alcançar um público mais amplo? Acredito que a Funarte teve um papel fundamental no crescimento da produção da fotografia brasileira, e, quando o governo Collor destrói a Funarte, ele faz um grande dano e um grande bem à produção cultural brasileira, e especificamente eu falo da fotografia. Ele nos deixa órfãos. Faço um paralelo com o México: lá a presença do Estado é fundamental na cultura até hoje. Então enquanto os mexicanos têm ainda um pai forte, durão, controlador, os brasileiros são órfãos da Funarte, ou seja, tivemos que ir atrás de outros mecanismos, pegar dinheiro no mercado, criar leis de incentivo, bolsas. A Funarte nos deu uma base. Não só ela: aqui em São Paulo houve movimentos muito peculiares, como a galeria Fotótica, o Mês Internacional da Fotografia e outros diversos eventos que nos deram uma base. Existe hoje uma série de agentes na produção cultural que não são fruto só do Estado, que são fruto de uma diversidade da sociedade civil. E o público com tudo isso? Da mesma maneira que a gente não precisa mais de uma figura paternal dizendo como fazer as coisas, a gente também não tem que dizer ao público como ele tem que fazer as coisas. A fotografia digital e a popularização do equipamento, do uso dos instrumentos de captação de imagem, como o celular com câmera, a câmera de pequeno porte, trouxe uma democratização do uso, do acesso à produção de imagem. Há uma grande massificação na produção de imagem. Cabe a nós gerar informação cultural para que isso tenha um desenvolvimento além do simples ato de fazer um clique, mas não cabe mais a nós dizer qual o caminho que se deve seguir. A Kodak divulgou alguns dados que representam bem a difusão da fotografia digital. O número de cliques no mundo passou de cem milhões em 2001 para duzentos bilhões em 2008, com uma média de seiscentas fotos por pessoa. Como você vê isso? Eu adoro esses números. Dois bilhões! Por que não dois bilhões 101 milhões 365 mil vírgula dois? Uma foto que ficou cortada... Mas sem dúvida nenhuma, embora eu ache esses números engraçados, eles mostram a realidade. Você tem uma massificação do fazer fotográfico que não necessariamente vem acom186


panhada de um reflexão. Mas e antes, existia reflexão? Antes tinha uma elite dona de uma chamada reflexão, como tem hoje um grupo de pessoas fazendo uma reflexão muito profunda. Mas o que existe hoje é “a possibilidade de”. Você tem um parque de produção de imagens, uma estrutura de produção de imagens brutal. Quando falamos que o Brasil tem deficiências de formação, é de formação genérica. Então, para o moleque que tem problemas de formação, aprender a fotografar é só um ganho. Houve muito medo, por parte da classe fotográfica, dessa invasão de fotógrafos amadores. Quer dizer, “amadores” é uma palavra muito bonita, no Brasil é que tem um sentido estranho, em português e no Brasil especificamente. Amador é um cara que ama, um cara que gosta. Acredito que essa massificação traz possibilidades, então, se a pessoa tiver um estímulo, tiver energia, ela vai usar aquele aparelho com uma curiosidade diferente. Um mesmo aparelho pode ser usado tanto para fazer uma foto qualquer, sem grandes pretensões, como também pode ser usado para começar um processo criativo, um processo de descobertas. Na verdade o que a fotografia digital e a máquina precária, a máquina simples, trouxeram foi um instrumental riquíssimo de desenvolvimento de linguagem do indivíduo. Passamos a ter um instrumento universal, que pode ser usado tanto por um menino chinês quanto por um menino brasileiro. Ele não precisa aprender português e nem o brasileiro precisa aprender mandarim. Então o que se pode dizer da câmera fotográfica hoje é que talvez ela seja o maior instrumento universal do fazer cultural. E isso é tão importante que qualquer crítica se torna pequena. A partir disso, o que podemos fazer é aumentar a base cultural do indivíduo para que esse instrumento seja usado com mais riqueza. É mostrar imagens, propor discussões, levar cursos e informações para a internet, comunicar mais. Maior que a invenção da câmera digital é a invenção da internet, porque mais importante do que poder fazer fotos com mais facilidade é poder mostrar essas fotos facilmente, disponibilizá-las. Esse é um grande ganho para a fotografia, tanto para profissionais quanto para amadores de todo o mundo. Criou-se a possibilidade de intercâmbio, de construção de conhecimento. O conhecimento que antes era produzido de dentro pra fora, ou seja, do centro, da academia e da elite para o resto da sociedade, dialoga e se mistura hoje com o conhecimento produzido fora dessas estruturas. Não existe mais barreira. Fale um pouco sobre o Fórum Latino-Americano de Fotografia. Existe um pensamento latino-americano, existe um diálogo? 187


É engraçado. Eu falo que temos de acabar com as fronteiras e organizo um Fórum Latino-Americano de Fotografia. Criamos um fórum com essa nomenclatura, “latino-americano”, porque acreditamos que há uma necessidade real de evidenciar um trabalho que encontra uma maior dificuldade para entrar no mercado da arte do que, por exemplo, a produção tradicional europeia ou norte-americana, que são os dois blocos de produção de fotografia mundial. Existe a necessidade de se chamar a atenção para uma fotografia produzida na América Latina. Não que tenha um viés latino-americano, mas, por outro lado, há também esta questão: a fotografia latino-americana é olhada por esse viés. É o jeito como ela é vista e não como ela se mostra. É o jeito como somos vistos, como latino-americanos. Culturalmente as coisas se dão em duas vias. A comunicação é quem fala e quem ouve. Muitas vezes saber comunicar é saber falar para quem ouve. Às vezes, a gente nega: “Ah, mas não existe mais fronteira. Não tem fotografia latino-americana.” Mas aí você olha uma fotografia e diz: “Ah, isso aqui parece fotografia latino-americana.” Essa é uma discussão que o próprio fórum coloca. Quando propusemos ao Itaú Cultural fazer o fórum latino-americano, a ideia era aproximar o Brasil da América Latina, porque se você pergunta para um brasileiro se ele é latino-americano, ele demora dez segundos para responder, e muitos deles respondem não. Dizem que se você perguntar a mesma coisa a um argentino ele demora os mesmos dez segundos, mas responde que sim. Essa é a única grande diferença. Existe um sentimento do brasileiro de distanciamento da América Latina. Ela é “o outro”. Quase toda a América Latina fala espanhol, e o Brasil não. Então, tem mais essa distância. A ideia do fórum era também de inserir o Brasil no circuito da fotografia latino-americana. Dois anos depois do primeiro fórum que fizemos, em 2007, a quantidade de protagonistas da fotografia de diversos países latinoamericanos fazendo exposições, conferências, workshops nos outros países foi brutal. Nós aumentamos o ticket médio de viagem do fotógrafo brasileiro para a América Latina, e apesar de não termos a escala, os números, temos a sensação clara de que é uma escala brutal. Como você vê o mercado da fotografia atual? Quando se fala em “mercado da fotografia”, parece que se está falando da galeria de arte, não é? Acredito que hoje temos de falar dos mercados para a fotografia. Eu, por exemplo, estou muito feliz com o meu mercado para a 188


fotografia. Para mim e para as pessoas que trabalham comigo, é um excelente mercado. Estou trabalhando, ganhando dinheiro, faço uma coisa de que gosto, divirto-me profundamente com o meu trabalho. Eu tenho um mercado de fotografia muito grande ao meu redor, que é o mercado de produzir eventos, festivais, encontros, atividades, ações sociais com fotografia. O mercado fotográfico não é só o mercado da arte fotográfica, porque, se todo mundo quiser vender em galeria, não vai haver espaço e nem sentido para isso. Publicar no jornal é um mercado de fotografia; fotojornalismo é um mercado; publicidade é um mercado; dar aula é um mercado. De qualquer forma, existe um boom no mercado de arte, e uma inserção muito grande da fotografia nesse mercado. A fotografia vem de uma origem, de um pensamento diferente, separado. O artista é uma coisa e o fotógrafo é outra, até porque o “fotógrafo” é uma coisa um pouco ampla. Quando se fala de fotografia e arte, se fala do contexto no qual você joga a fotografia. Nós, inclusive, no fórum latino-americano de 2007, inventamos uma brincadeira muito séria, que é a de começar a mudar nomenclaturas. Não tem mais o fotógrafo documental e o que faz uma fotografia construída, que é o artista. Começamos a falar em o caçador e o agricultor. Então o fotógrafo caçador é aquele que está caçando imagens e o agricultor está semeando, interferindo, regando imagens para que elas produzam. Um dos fotógrafos ícones do Brasil, o Sebastião Salgado, é caçador? Ele é um caçador. Um caçador que rega as plantinhas de leve, mas é um caçador. Ele está mais perto do caçador, mas você tem o caçador que é agricultor também, tem o recoletor. A Rosângela Rennó, por exemplo, é uma recoletora, uma catadora do material já produzido. Tem muitos artistas hoje que trabalham com a produção já realizada, ou seja, o ato da criação não é necessariamente o ato do clique. É o ato da reunião, da reorganização das ideias, da reordenação das imagens, da reconstrução de uma imagem. Existem muitos termos hoje, e o segredo é não ser radical na leitura deles. A questão não é dizer se é uma fotografia construída ou se é fotojornalismo, e sim se a foto foi feita para ser utilizada no jornal, com uma ética jornalística, e neste momento está sendo aplicada numa sala de aula, como instrumento de ensino, e amanhã pode estar sendo aplicada e vista em uma galeria, porque foi deslocada para uma leitura outra. Existe essa maleabilidade. E o mercado atua também, porque ele tem seus interesses, seus jogos. A fotografia passou a adquirir valor de mercado. Tem os jogos e as brincadeiras do mercado de 189


arte, que sempre teve dessas coisas de valorizar e desvalorizar artistas por regras e razões que não dizem respeito aos mortais como eu. Quais políticas você acha que seriam importantes, públicas ou privadas, para a fotografia? Recentemente, nós estivemos discutindo muito isso, até com o Ministério da Cultura. A Funarte lançou uma série de editais em que os fotógrafos participaram da discussão. Então, pela primeira vez, são editais muito amplos. Com isso estou respondendo a sua pergunta. Esse é um dos caminhos. É você criar mecanismos de repasse de recursos, que não sejam só a Lei Rouanet, que não seja só o patrocínio privado direto. Um desses mecanismos foi criado nesse momento. Existem quatro editais que atendem o mercado fotográfico. Um deles é para realização de encontros e festivais de fotografia. Eu costumo dizer que um jovem fotógrafo que participa de um festival de fotografia evolui em quatro dias o correspondente a três ou quatro anos de vida. Pela energia, pelos contatos. É uma revolução, uma transformação. O festival não é feito apenas para congregar seus protagonistas, é feito para que você gere novos protagonistas. Não há um festival em que não surja uma nova liderança, um novo artista ou um artista que alcance um novo patamar de reconhecimento. Então o grande papel do Estado neste momento é aperfeiçoar os mecanismos de repasse de recursos públicos, para que a distribuição seja feita da maneira mais democrática possível, e, ao mesmo tempo, que sigam linhas de conduta, ou seja, não adianta fazer um edital em um ano sem que haja continuidade nos outros anos. É preciso tentar manter essa continuidade. Se você fortalecer uma cultura de encontros, de festivais de fotografia, todas as outras ramificações vão surgindo. Ou se for mantido uma linha de editais de produção fotográfica voltada a um olhar sobre o Brasil, por exemplo, teremos durante dez anos um país olhando para si mesmo, através da fotografia. Daqui a vinte ou trinta anos, colheremos os frutos dessa conduta linear, de apostar em um caminho. O grande segredo hoje é apostar na formação pelo viés não tradicional. A relação com a educação tradicional não é um caminho interessante? Eu acho que a fotografia tem, de uma vez por todas, que ser inserida no currículo escolar básico, obrigatório. Até aula de alfabetização visual deveria ser curricular básico. Toda criança, a partir de uma certa idade, deveria 190


aprender a discutir uma imagem, porque não precisa ensinar a fazer, não precisa dar aula de fotografia para ensinar a usar câmera. O aprender técnico se dá naturalmente hoje, neste mundo digital, mas a alfabetização visual é aprender a ter uma reflexão. É aprender o que quer de uma foto, aprender a pôr uma pausa nesta loucura digital. Isso deveria ser um papel das escolas, sim, com certeza. E pode ser viável hoje. Antes, ensinar fotografia e ter um laboratório fotográfico em todas as escolas, em um país como o Brasil, não era viável, mas hoje, com câmeras digitais e computadores, deveria ser viável. Tem uma entrevista em que você se refere a um escritor argentino e usa a seguinte referência do romance dele: “Quando você volta ao lar do qual partiu, pensa que fechou o ciclo, mas percebe que sua viagem foi só de ida. Do exílio, ninguém regressa.” É, eu levei um susto quando recebi esse texto pela internet. porque pensava que tinha regressado do exílio. E então eu leio esse texto e percebo que não, não regressei do exílio. Todas as grandes transformações do indivíduo são para sempre, não é? E isso não é no sentido catastrófico, nem dramático, nem nada, mas você tem de ser consciente. Isto estava em um texto do Tomás Eloy Martínez, referindo-se a um texto de um outro escritor, do qual não me lembro o nome. Eu senti isso na pele. Não tem regresso das coisas vividas. Você se transforma, mas não há regresso. Então você se apropria... É um pouco o que a gente fala da educação. Tem um espetáculo da Reneé Gumiel, que ela fez já com a idade bastante avançada, que se intitula Memória gruda na pele. Acho que tem o mesmo sentido dessa expressão. A memória gruda na pele, faz parte de você. Para mim, a experiência do exílio é parte integrante da minha vida. Eu me sinto sempre um exilado.

191


192


Fernando Yamamoto Fundador e diretor da Cia. Clowns de Shakespeare.

Por que Clowns de Shakespeare? O grupo surgiu de uma brincadeira na escola, no ensino médio. O professor de literatura estava com uma turma em dificuldade, era a época do vestibular, e tinha um grupo de alunos com quem ele costumava conversar sobre teatro, sobre cinema, e chamou essa moçada, e propôs: “Vamos montar uma peça de teatro para dar uma ilustrada na questão pela qual vocês estão passando?” Foi o “vamos” mais despretensioso, sem nenhuma ideia de que iria mudar toda a trajetória das nossas vidas. Montamos então um espetáculo que falava sobre as escolas da literatura brasileira, e foi uma experiência muito forte, muito bacana. Tanto é que resolvemos continuar. Esse nem é considerado o primeiro espetáculo do grupo. Oficialmente, o grupo foi fundado no ano seguinte, em 1993. Nós estávamos influenciados por toda a aura em volta do Sonho de uma noite de verão, do Ornitorrinco, do Cacá Rosset. Por isso resolvemos montar a mesma peça. Pouco tempo antes da estreia, faltava apenas fechar o material gráfico, a gente precisava assinar ou criar o nome do grupo. E tinha um poema do Manuel Bandeira, que chama “Poética”, que adorávamos, e que acabava com “Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbedos / O lirismo difícil e pungente dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare // – Não quero 193


mais saber do lirismo que não é libertação”. Esse poema estava dentro dessa peça anterior. E muito inconsequentemente, pelo simples fato de estarmos montando Shakespeare, resolvemos pegar a citação daquele poema, sem ter ideia do tamanho do peso desses dois ícones que colocávamos no nosso batismo: clown e Shakespeare. Shakespeare, sabendo muito mal o que era, e tratando-o de uma forma meio irresponsável, o que era até bom naquele início do trabalho, e clown, a gente não tinha a menor ideia do que se tratava. O grupo surgiu de uma forma praticamente casual. Nossa história, com o tempo, foi tentar aprofundar e descobrir um pouco o que era esse clown e o que era esse Shakespeare. Depois de muitos anos, chegamos a trabalhar com palhaço, para entender o que era. E esse encontro com o palhaço foi completamente transformador, revolucionário para a nossa forma de fazer teatro. Essa é a história do Clowns de Shakespeare, a partir do Manuel Bandeira. Sofremos um pouco com isso porque quem não tem essa referência acha que somos colonialistas, que botamos nome inglês. E ainda tem o pessoal mais ligado a circo, mais ligado a palhaço, que não gosta do termo clown. Entre 1998 a 2002, o grupo mergulhou num projeto extremamente ousado da construção de um centro cultural, que é a Casa da Ribeira. O que é esse espaço cultural e o que é produzir teatro em Natal? A nossa experiência é atípica para a cidade. A gente é exceção. Hoje, conseguimos ter uma infraestrutura bacana, uma sede que não é própria, é alugada, mas que tem uma estrutura muito legal de apresentação. Mas isso tudo independe da Casa da Ribeira, que foi um projeto de R$ 1,5 milhão, levantado por uma molecada de dezenove, vinte anos. O projeto da Casa era um centro cultural, que ainda existe. É um espaço que tem um teatro com 160 lugares, uma sala de exposições e um café. Hoje, está voltado para um viés mais social, apesar de ainda funcionar para os artistas. Mas a cidade tinha só dois teatros na época, o Teatro Alberto Maranhão, que é histórico, grande, em que você conseguia duas, três pautas por ano, e o Teatro Municipal, que era meio maldito, numa área meio ruim da cidade. A estrutura dele era muito precária – hoje, inclusive, está embargado. A ideia de temporada era uma coisa que não existia em Natal, como não existe praticamente no Nordeste inteiro. Temos em Salvador, Recife, no máximo em Fortaleza. Não existem condições para a temporada. Quando montamos exatamente A megera do nada, que era uma versão nossa para A megera domada, 194


conseguimos fazer uma temporada num espaço alternativo, em condições muito precárias de conforto para todos. Mas mantivemos uma temporada de quinze apresentações, o que era inédito para aquele momento da cidade. A partir dessa experiência decidimos construir um espaço. Apesar de muito jovens e inconsequentes, inacreditavelmente, conseguimos. Com a nossa idade, hoje, a gente teria desistido no meio do caminho, mas naquela época a gente foi embora e construiu. Era um espaço pequeno, mas lindo, muito bem equipado, de bom gosto. Durante cinco anos a gente levantou dinheiro para botar a casa de pé. Quando conseguimos, viramos então reféns da administração dessa casa e paramos de fazer teatro. Viramos administradores: cuidávamos de contratar funcionário, trocar lâmpada, da manutenção do ar-condicionado. Algumas pessoas do grupo acabaram se identificando muito com isso, e outras não. Os que não se identificaram acabaram naturalmente se voltando novamente para o trabalho artístico. Hoje em dia, só existe esse vínculo histórico, afetivo, entre a Casa e nós, mas não tem mais nenhum vínculo direto. Vocês estão realizando um mapeamento da produção cênica da sua região. Conte um pouco sobre isso. Pelo fato do nosso grupo circular muito pelo Nordeste e por sempre termos procurado uma circulação que ultrapassasse essa ideia de apresentar espetáculo e partir, sem se envolver com as cidades, com as cenas locais, conhecer os grupos, tentar ter algum tipo de troca, começamos a nos inquietar com a necessidade de tentar entender quem somos. E acho que a primeira etapa disso surge com a criação de um movimento, Lapada, que é de grupos da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, por enquanto, e tem foco na troca artística. Óbvio que tem um contexto político, na sua essência, pelo fato de estarmos juntos, discutindo o nosso fazer. Mas o foco da nossa troca é de procedimento de trabalho, de pensamento. E isso já começou a nos colocar num lugar em que ficou mais forte ainda essa necessidade de conhecer: quem eram esses grupos? Quem somos? Quem éramos nós naquele momento? Paralelamente a isso, surge uma questão episódica, que é a Revista Subtexto, do Galpão Cine Horto. Na quarta edição, a revista convidou algumas pessoas para fazer o mapeamento do teatro de grupo no país, e me convidaram para escrever sobre o Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. Eles não definiram um formato específico, não tinham na verdade a pretensão de que fosse realmente 195


um mapeamento. Mas para ter pelo menos uma ideia, uma provocação. E a partir dessa oportunidade, despertou em mim o desejo de tentar aprofundar, de uma forma um pouco mais sistemática, por toda região, essa inquietação que já tínhamos. E com isso consegui a Bolsa de Estímulo à Pesquisa Crítica da Funarte, e consegui desenvolver uma boa parte desse mapeamento: um formulário padrão que pudesse tratar um pouco das questões administrativas, de gestão, artísticas e, de modo de produção: desde se o grupo tem CNPJ, se tem sede ou quantas horas trabalha por semana. Pensar se tem algum integrante que trabalha especificamente com administração, que não tenha nenhuma função artística. Tentava assim mapear de uma forma muito genérica, sem nenhum critério de definição do que era grupo de teatro naquele primeiro momento. Eu consegui cerca de 250 grupos do Nordeste. E desses 250, de 110 a 120 me devolveram esse formulário. A partir desse primeiro mapeamento geral, eu selecionei alguns grupos de cada estado, grande parte deles das capitais, até porque grande parte dos grupos que me retornaram foi de lá, e algumas cidades do interior. E selecionei, a partir de alguns critérios, grupos que tinham pelo menos dois integrantes fundadores até hoje, que tinham mais de cinco anos de existência, que tinham mais de três integrantes e, preferencialmente, grupos que tinham sede. Com essa triagem, eu passei pelos nove estados, entrevistando cerca de cinquenta grupos. Eu tenho um material muito rico. Essa bolsa não chegava a contemplar financeiramente a publicação disso. Estou, exatamente neste momento, tentando concluir essa primeira etapa. É possível fazer uma leitura panorâmica bacana. Não abrange tudo, e por outro lado, apesar dessas dimensões geográficas gigantes da região, de realidades tão diferentes, é impressionante como a gente consegue encontrar coisas em comum. Entrevistei um grupo que relata como resolver uma questão de um espaço, por exemplo, que está lá em Ilhéus, no sul da Bahia, quase região Sudeste. Outro grupo, no Maranhão, fala de um problema equivalente. E como o grupo de Ilhéus resolveu, é possível que o grupo do Maranhão consiga fazer a mesma coisa. E isso não é só no Nordeste, mas a gente tem um vocabulário comum em todo lugar em relação ao teatro de grupo. Todos falam em continuidade, em pesquisa, em intercâmbio. É um discurso em que todos se reconhecem. Mas quando você conhece de perto o que isso significa em cada experiência, é impressionante como a gente está falando de coisas completamente diferentes. 196


O que acaba nos aproximando é uma afinidade ética, mas que me dá a impressão de que talvez seja o grande problema desta nossa articulação política hoje. Temos de encontrar uma forma diferente de nos articular, que não passe pelo viés burocrático demais ou sindical demais, como nós costumamos ver nas organizações de classe. Se pensarmos em organização de classe, temos que abranger desde os teatros mais comerciais até os teatros mais experimentais, e estamos falando especificamente de um tipo de teatro quando falamos em teatro de grupo. E tenho impressão de que ainda nos conhecemos muito pouco. Por que a utilização do termo “cartografia”, em vez do termo “mapeamento”? A ideia de cartografia remete a grafismo, de estar traçando isso, de estar desenhando, de estar construindo essa ideia de movimento. O mapeamento me sugere uma postura mais distanciada, uma fotografia apenas. Desenhe, então, os festivais de teatro do Nordeste. Há dois anos tem um grande festival do Nordeste, que é o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, que está ligado ao núcleo de festivais internacionais e que surge ligado aos preceitos desse núcleo, ocupando um papel muito importante no país. Tem trazido muita gente importante de fora, mas acho que não ocupa todo o espaço que poderia ocupar. Existem alguns festivais que estão nesse meio do caminho, que são legais de citar. Um deles é o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, no Ceará. Guaramiranga é uma cidade de serra, então é um festival de inverno no meio do Ceará. A cidade está fria nessa época, e é uma cidade minúscula, tem duas ruas e dois teatros. É um festival que já está na sua décima sexta, décima sétima edição, que tradicionalmente era um festival competitivo. Muito tempo depois, com os artistas brigando para que deixasse de ser competitivo, deixou de ser. Por que brigaram para deixar de ser competitivo? Um viés dessa questão é mais pragmático, está ligado à questão financeira. O festival provia uma ajuda de custo irrisória para os grupos irem, e quem ganhasse, ganhava um prêmio bacana. Isso acabava definindo quem ia ou não ia para o festival. Além disso, o universo competitivo atrapalhava a troca de bastidores, pois íamos até lá para competir e ganhar. E o bacana de ir não 197


era isso. Sempre teve debate, e isso continuou. Hoje, o festival tem um formato bem mais interessante e enriquecedor. Que outros festivais acha interessante mencionar? O Festival Nacional de Teatro de Recife é que tem crescido muito, e que tinha um viés um pouco menos ligado a essas atividades paralelas. Na Bahia, tem um outro festival, que é o Filte, o Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia, que também tem trazido gente muito importante da América Latina inteira. Eles funcionam nesse formato que nos interessa muito, que vai além da simples mostra de espetáculos. A mostra Cariri, do Sesc, tem um valor inquestionável, leva muita gente boa. Contudo, ela é tão grande, é tão inchada, com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e é ainda tão descentralizada que não favorece tanto as trocas. E Nova Jerusalém? Nova Jerusalém entra numa questão que me toca profundamente. Eu acho que eles estão mais próximos de um evento de marketing do que de um evento artístico. Em Pernambuco, na Paraíba, no Rio Grande do Norte têm uma política cultural há muitos anos que é praticamente exclusiva desses autos, desses megaespetáculos de rua, nos quais se gastam R$ 600 mil, R$ 500 mil, R$ 1 milhão para os artistas ensaiarem dois meses e se apresentarem duas vezes, e não há nenhum outro tipo de fomento durante o resto do ano. É uma grande distorção. Eu entendo todos os tipos de retorno de mídia, de imagem, de turismo, que os governos podem ter, e é por isso que nós defendemos o seguinte: se você quer que tenha, jogue isso com o dinheiro do turismo, e não com o da cultura. Eles entendem que estão fazendo política pública para teatro, quando, comprovadamente, esses autos não formam público para teatro. Como vocês se mantiveram? Nós, do Clowns de Shakespeare, particularmente, nos mantemos com editais nacionais. Uma exceção representativa é o edital do Banco do Nordeste, que tem um papel importantíssimo para região. E não usa benefício fiscal, não usa renúncia. Ampliaram muito a quantidade e o valor, com um diálogo muito direto. É um edital que o país inteiro precisa saber que existe, porque é muito importante. É um edital que contempla todas as áreas, e contempla 198


qualquer tipo de atividade. Pode ser manutenção, circulação, produção do espetáculo, projeto de pensamento, publicação. É um formato muito aberto, que tem beneficiado muita gente. Eles têm uma parcela relativamente grande de interesse em projetos que beneficiem cidades menores. Eles fazem uma coisa importante, que é o proponente receber a avaliação dos projetos, sendo aprovado ou não. Qual a relação de vocês com os ícones da cultura popular, Câmara Cascudo, cordel? Natal, durante a Segunda Guerra, sofreu uma recolonização pelos norteamericanos, que vieram com aquela delicadeza tradicional. Então, Natal é a primeira cidade do Brasil a tomar Coca-Cola, tem a primeira fábrica de Coca-Cola do Brasil, é a primeira cidade do Brasil a mascar chiclete. Natal era geograficamente um ponto estratégico, porque é mais próxima da América do Norte, Europa e África. Fica ali na esquina. Então, a população mais do que dobrou. Isso causou uma barreira cultural para a cidade, que até hoje briga para se reconquistar, mesmo depois de Câmara Cascudo. A identidade nordestina é mais frágil lá do que nos outros estados. Qual a sua opinião sobre as universidades e a formação de produtores culturais e técnicos no Nordeste? Há uma distância completa entre a academia e a produção, à exceção do que está acontecendo na Bahia. Conheço melhor a experiência do Rio Grande do Norte, mas por onde eu passo escuto isso. Nacionalmente, existe um movimento de aproximação, muito por causa de pessoas que estão ligadas às duas coisas. O Lume, o Antônio Araújo, o Sérgio Carvalho, tem muita gente que está ligada na ponta da produção teatral contemporânea e que está na academia. Essas pessoas têm conseguido estabelecer pontos muito benéficos para os dois lados. No Nordeste, essa aproximação está num estágio ainda muito embrionário.

199


200


Hugo Possolo Ator e diretor do Grupo Parlapatões.

Como você se formou palhaço e produtor de circo? É muito longa a trajetória para descrever, porque desde criança eu já queria ser artista, e queria ser artista de teatro. Meu pai é editor de livros e sempre teve uma paixão muito grande pelo mundo do espetáculo. Ele levava minha irmã e eu, os mais novos da família, a espetáculos de todo tipo, o que me criou um fascínio muito grande pelo espetáculo em si. Não necessariamente circo ou teatro, mas à ideia de espetáculo. Desde pequeno eu já queria participar do espetáculo, mas escrevendo para teatro. Eu era muito tímido na adolescência e acabei me infiltrando no grupo de teatro da escola, para poder quebrar a timidez. E também para poder ver se alguém montava os meus textos. Acabei atuando e me apaixonando pela representação cômica, o que me levou ao circo. Eu tentei inicialmente a Academia Piolim de Arte Circense, que é a primeira escola de circo brasileira. Quando cheguei lá, a academia estava fechando. Era um momento triste dela. Não pude nem me matricular. Esperei mais um pouco e depois peguei, praticamente, o início do Circo Escola Picadeiro, que ficou instalado durante vinte e tantos anos na avenida Cidade Jardim. Foi essa lona, que é do José Wilson Moura Leite, que formou uma série de artistas e de circos contemporâneos. A partir daí, eu percebi que eu tinha que desenvolver os meus próprios projetos. Sempre 201


quis formular algo que fosse uma base, um grupo que fosse dono do seu meio de produção. Entre 1984 e 1987, fiquei na escola de circo. Ali junto com um amigo meu, o Jairo Mattos, tentamos formar um grupo, que já se chamaria Parlapatões, e não deu certo. Encontros e desencontros. Saí da escola de circo e resolvi produzir teatro para crianças. Já trabalhava profissionalmente em teatro havia um bom tempo, e em vez de ser empregado pelos outros e ficar esperando me empregarem, resolvi produzir. Produzi uma série de espetáculos infantis, eu vivia de vender apresentações em escola, e percebi aos poucos que a educação no Brasil não é boa o suficiente para que os professores tenham preparo para entender o que é uma manifestação artística vinda de fora. Isso me incomodou muito. Em geral, os professores encaram como uma hora de entretenimento, de um momento de recreio para eles, professores, enquanto os artistas são babás daquelas crianças. Então desisti de ter essa relação com escolas. E também tinha um incômodo artístico, estético, de achar que não estava me realizando, não estava me comunicando com o público. Eu tinha feito comunicação, estudei jornalismo, estudei história também, e não via nada disso lá. Já tinha a experiência toda do circo acumulada, e achei que eu tinha que criar uma ruptura absoluta. Isso no início dos anos 1990. Larguei tudo o que tinha, até certo patrimônio, e resolvi ir para rua, passar o chapéu. Comecei a observar muito os artistas de rua populares, a banda Peixe Elétrico, uma série de bolivianos, que tocam “Quantanamera” na flauta. E aí você percebe que eles têm um método de aproximar o público, de seduzir, de formar uma roda. Em cima disso, eu comecei a usar os números de palhaço de circo, alguns números de malabarismo também, para atrair o público. Primeiro, fazia isso sozinho. Depois, convidando alguns amigos. O Jairo é um deles. Mais tarde, convidaria o cara que tinha sido meu professor de teatro amador, no Teatro Infantil Monteiro Lobato, no começo da década de 1980, Arthur Leopoldo e Silva. Chamaria também o Alexandre Roit. Nós formamos um núcleo básico, que acabou virando os Parlapatões. Mas não foi esse o início. Só depois do terceiro espetáculo que passou a se chamar Parlapatões, um texto meu que já estava engavetado havia um bom tempo. O Jairo Mattos insistiu muito que o nome do grupo se tornasse Parlapatões. Os outros três eram contra, mas como ele era mais chato, acabamos aceitando o nome. E assim que a gente aceitou, o Jairo saiu do grupo, mas o nome 202


se consolidou. Por um pequeno período, procuramos um produtor externo, embora quiséssemos ter controle sobre o modo de produção. Fomos atrás de quem pudesse orientar, e aprendemos muito com o Leopoldo. Depois de três anos achamos que em vez de repassar para ele a porcentagem daquilo que ele vendia da gente, a gente podia usar essa porcentagem para manter uma estrutura própria. Disso, passamos a exercer atividades de produção. O primeiro passo foi locar um espaço onde a gente pudesse ensaiar e guardar material. Era muito complexo cada vez que saísse com um espetáculo, passar na casa de cada um, pegar as coisas que estavam guardadas na garagem, mal acomodadas, e que não garantiam também o fluxo de um trabalho artístico constante. A sala de ensaio junto com o material é fundamental, você cresce artisticamente. E passamos a ser nossos próprios produtores, podendo optar se queríamos ou não fazer cada trabalho que aparecesse. Em torno de 1994/1995, consolidamos esse núcleo básico. Em 1993, entrou o Raul Barreto, que está no Parlapatões até hoje. Esse núcleo é de três artistas, eu, o Alexandre Roit e o Raul Barreto, com a ajuda de uma secretária. Essa estrutura foi crescendo bem aos poucos, percebendo que no Brasil não existia um mercado para artes cênicas, apenas alguns nichos mercantis. Em São Paulo, um deles era o Sesc. Fazíamos avaliações semestrais e anuais de como era o nosso fluxo de trabalho. A gente passava chapéu na rua, vendia cachês para o Sesc, lidava com a bilheteria. Uma das avaliações que a gente fez, depois de dois anos, é que 60% do que obtínhamos de recursos era oriundo de vendas de espetáculos para o Sesc. Aí a gente chegou à seguinte conclusão: 60% é muito, é a nossa fonte mantenedora, estamos virando empregados do Sesc. Limitamo-nos em um ano a fazer no máximo 35% para o Sesc, para que buscássemos espaço em outras relações. E aí mudou a nossa visão de produtores. Qual era o cenário mundial de quando você começou a atuar em circo? Como era o ensino? A linguagem circense independe da arquitetura, da lona, e independe da itinerância. No entanto, ela tem a sua imagem muito vinculada a isso. O circo moderno tem quatrocentos anos de história, uma pequena parcela dos mais de seis mil anos do circo, que é oriundo das primeiras demonstrações de habilidade. Quatro mil anos antes de Cristo, na China, o circo apresentava forma circular como arquitetura para o espetáculo de apresentação de 203


habilidades e repertório. O atual formato espetacular é recente, do século XVII, pós-Renascimento. Esse formato é tão recente quanto o teatro de palco italiano. A formação do artista circense vai se caracterizar, durante todo esse período, por uma tradição oral de transmissão de conhecimento feita de geração para geração, não necessariamente de pai para filho. Há uma formação diferente, cuja ruptura é feita somente com a revolução socialista, de 1917, na Rússia de então, na qual se adotam novos métodos de ensino, em todas as áreas, inclusive na arte. E para o circo cria-se a grande companhia, que é o Circo de Moscou, que vai buscar em crianças de cinco a dez anos qual é a vocação, corporal inclusive, dessas crianças, e onde começa um preparo diferente, que não é mais o aprendizado feito de geração para geração e por tradição oral. Cria-se uma sistematização desse conhecimento e organiza-se isso para pessoas que não são oriundas de famílias circenses. Isso fica restrito à União Soviética. O Circo de Moscou se torna a maior companhia circense do mundo, com mais de cinco mil artistas. O Cirque du Soleil ainda não ultrapassou essa dimensão. Com a decadência da URSS, há uma forte emigração de artistas-professores, que saem do Leste Europeu e começam a ir para a Europa. A França é sensível a essa situação, durante o início da década de 1980. Não sendo mais concorrência para a Inglaterra na dramaturgia, nem para os Estados Unidos no cinema, a França vê no circo uma possibilidade de penetração nos outros países. O circo pode ser um tipo de investigação artística e pode ser entretenimento muito abrangente, de diálogo fácil, que independe da língua. Então, aplicam uma fonte de recursos enorme, em termos de política pública. Até hoje é muito grande. A França hoje tem universidade de circo; cinco anos atrás, tinha oitenta escolas de circo, de preparação profissionalizante e com professores do Leste Europeu. Isso chega no mundo inteiro, inclusive no Brasil na década de 1980. E o circo no cenário brasileiro? Para alguns pesquisadores, o circo chega ao Brasil antes do século XVIII, mas a presença mais forte está ligada à vinda da corte portuguesa para o Brasil, que atrai artistas de vários gêneros. Com a corte instalada no Rio de Janeiro, há uma procura em atender a demanda da cultura nobre. Só que ela também acaba pulverizando, contaminando aquilo que é mais popular, e não há contaminação mais forte do que a do circo. O circo se torna uma casa de espetáculos itinerante, que abriga outras linguagens além da circense. 204


Algumas famílias se instalam no Brasil, famílias europeias, grande parte de origem francesa ou italiana, e começam a viajar com o circo. Existem até famílias japonesas na história do circo brasileiro. Há aventuras narradas em livros, como é o caso do Circo Merino, que é o primeiro circo brasileiro a percorrer toda a costa e o interior, itinerando, levando seus espetáculos a vários pontos, já no século XIX. Mas todos esses circos tradicionais vão se vincular, de uma maneira ou de outra, a uma determinada região. Eles não conseguem ser nacionais. Durante o início do século XIX, você tem um símbolo muito forte, que é o Palhaço Piolim, muito ligado à cidade de São Paulo. Ele instalou o seu circo no largo do Paissandu, que ainda hoje é um ponto tradicional de encontro de artistas circenses. Às segundas e terças-feiras, ao final da tarde, artistas do Brasil inteiro se encontram em alguns bares da região, como o Café dos Artistas. Hoje, felizmente, existe o Centro de Memória do Circo, que fica na Galeria Olido, exatamente ao lado do Café dos Artistas. Ter um centro de memória e ser exatamente nesse local foi uma conquista importante, histórica, para os artistas circenses. A prefeitura promete construir lá um circo de alvenaria, um circo de inverno. Espero que seja realizado. Abrigaria o Centro de Memória, uma escola de circo e uma casa de espetáculos. Ali os modernistas assistiam ao Piolim. O Oswald de Andrade defendia que aquela linguagem era exatamente popular e brasileira, como ele achava que devia ser o modernismo. Enxergavam isso, a amplitude de comunicação, uma forma de manifestação expressiva tipicamente brasileira. O Piolim ganhou destaque nacional depois, mas que era muito fixado em São Paulo. Esses grandes circos que a gente ouve falar hoje em dia, como o Circo Garcia, que acabou tem pouco mais de dez anos, ou o Circo Ivanovitch, são empresas de caráter familiar, são famílias que há seis gerações mantêm a mesma estrutura, mas que contratam outras famílias, outros artistas, trupes que vivem no entorno desse circo, dentro de trailers, com a vida organizada para itinerar pelo país. E isso vai entrar em choque exatamente com aquele outro momento, que é na década 1980, quando pessoas de outra formação, em geral de classe média, ligadas a teatro e à dança, vão procurar as escolas de circo para se formar. Isso cria um embate no modo artístico e no modo de produção. Conte um pouco sobre a diferença entre os circos tradicionais, com domadores de animais, e o circo de escola da geração 1980. 205


Essa é a grande polêmica desse conflito. Existem outras coisas nesse choque, como a formação, porque são pedagogias diferentes. Entra em choque também um problema de reserva de mercado: quem são esses jovens que estão chegando e dominando essa linguagem, ocupando outro espaço, às vezes um espaço que não é igual? Eles sobrevivem de maneiras diferentes, geram recursos de maneira diferente. Mas a questão dos animais passa a ser uma coisa manipulada por uma mentalidade politicamente correta, ecologicamente correta, que põe em conflito uma tradição milenar de dominação do homem sobre a fera. Os tradicionais foram achatados por uma visão politicamente correta, e que não soube fazer um processo de transformação para que não se tivesse mais animais em circo. Foi uma machadada na vida do circo tradicional. Eu não sou favorável ao animal no circo, mas eu acho que é injusta a proibição que aconteceu em várias cidades brasileiras – São Paulo e Rio de Janeiro são duas grandes cidades onde é proibido. No entanto, a televisão usa animais. Recentemente, eu dei entrevista no Jô Soares, ele me fez a mesma pergunta, e eu falei: “E a novela da Globo que tem o chipanzé? E a publicidade que usa animais para vender produtos?” Enquanto que no circo tem uma questão de tradição: aquele domador, que aprendeu com o pai dele, que não teve outro aprendizado, não vai ter o que fazer da vida. Esses animais que viviam em cativeiro estão agora em chamados paraísos ecológicos. Na verdade, são zoológicos particulares de péssima qualidade, onde se cobra pela visitação a esses animais. Um animal cujo custo de manutenção é alto, que custou uma fortuna para ser trazido da África ou da Índia, seja um leão, seja um tigre, é tirado desse artista, subitamente, e levado por uma ONG, que se diz no direito de manter aquele animal, que pode até estar mantendo bem, mas que o aprisiona da mesma maneira. Ele só não demonstra mais habilidade e o doma, mas cobra a entrada para visitá-lo. Há uma contradição violenta nessa ação. É porque o poder dos ambientalistas, ecologistas, do ponto de vista político, é muito forte. Eles fazem uma pressão muito grande. Eu fui coordenador nacional de circo, o primeiro que teve na Funarte, depois de mais de duzentos anos sem nenhum tipo de política pública voltada para o circo. Tive o privilégio e a dificuldade de ser o primeiro, carreguei um peso enorme e um monte de coisas que não foi feita para a área circo. Aí tentei, numa comissão de educação e cultura, no Congresso Nacional, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, passar um tipo de regula206


mentação que organizaria o cuidado com os animais, criaria o RG do animal, um registro para animais em trânsito no país. Não existe legislação para isso. A tentativa era criar uma lei para o animal em trânsito e desmembramentos dessa lei para cada categoria de animais, para cada espécie ter um critério de como seria a sua jaula, de qual seria o tamanho mínimo, de qual seria o tipo de cuidados. E se alguém infringe esse tipo de lei é devidamente punido, mas não retirariam mais o animal assim, subitamente. A grande dificuldade para discutir isso, a lei, foi a pressão de ONGs com as quais eu conversei em separado e falei: “Gente, deixa uma lei que regulamente o trabalho com os animais e no passo seguinte partam para a proibição.” Eu já fiz a provocação num espetáculo de teatro, eu coloquei um jumento como um grande astro, até para mostrar que não tem problema nenhum. Mas eu acho que há uma dificuldade nessa questão do pensamento. Como produzir para uma atividade que é por natureza itinerante? E como fazer política pública para uma atividade que é itinerante? Primeiro, precisaria ter um grande mapeamento da atividade. Um circo está restrito a certa região. O Brasil, até a última estimativa que tive, na Funarte, tinha em torno de trinta circos de médio e grande porte, de setecentos até dois mil lugares de acomodação. É uma quantidade muito grande de circos, em torno de vinte famílias que administram e gerenciam cerca de trinta circos. Os circos de até oitocentos lugares são em torno de sessenta. E um montante enorme, mais de duzentos – a gente estima muito mais que isso, mas o que a gente conseguiu contar é em torno de duzentos – de circos muito pequenos, que suportam até trezentas pessoas na plateia. O que significa isso? Que a maior parte dos circos brasileiros são muito pobres, em geral de estrutura familiar, um núcleo familiar único, de oito, dez pessoas. O circo de grande porte consegue circular nos grandes centros, ainda que sem os animais, e vive de bilheteria, não têm foco na obtenção do patrocínio. Já nos circos menores, a relação é outra. Um artista de circo, hoje, não é só o artista, ele é também o comerciante do circo, porque ele é contratado por um cachê para fazer o seu número e parte dos seus recursos vem da venda de produtos na entrada do circo. Da pipoca, que é um produto nobre, até bonequinhos. Isso é dividido entre todos os artistas do circo tradicional, para que ele possa ter uma fonte de recurso maior. Em geral, o ganho do artista é praticamente o subemprego, porque também o dono do circo classifica 207


as seguintes questões: “Você está tendo espaço de moradia, você usufrui de água, luz.” E há sempre uma troca nisso. Às vezes, o artista que conseguiu mais recurso, que tem um trailer maior, consegue manter-se melhor, consegue investir mais e ter, por exemplo, um produto nobre, que é a pipoca, que vai dar mais dinheiro às vezes do que o cachê que ele está recebendo. E assim se mantém a economia do circo tradicional e itinerante. Ela não cria vínculos. Além de tudo, as grandes cidades foram se expandido, e os terrenos, diminuindo. Mesmo os maiores circos foram empurrados à margem das cidades, hoje são periféricos. Portanto, eles acabam se voltando para um público que tem uma certa visão do que é o espetáculo, e a visão do espetáculo se adequa a isso. A influência da cultura de massa também é um problema. Há uma procura muito grande de imitar, a cada tempo no circo, aquilo que é um modelo artístico da cultura de massas e reproduzir isso. Uma coisa é imitar a televisão. Recentemente, passou a se imitar o grande monopólio do circo mundial, que é o Cirque du Soleil. Que estética é essa do Cirque du Soleil? O princípio do Cirque du Soleil vem com um discurso de não ao animal e não ao palhaço, porque eles achavam que era uma coisa antiga do circo. É o princípio, o livro da história do Soleil narra isso, mas eles voltam atrás. Quando eles chegam aos Estados Unidos e conseguem um manager que vai realmente impulsionar aquilo, repensam a estratégia. O Cirque du Soleil nasce como um grupo de circo, teatro pequeno, com uma lona pequena, dez artistas, que depois vendem sociedade até sobrarem só três. E eles vivem de recursos públicos, como uma boa parte da nossa atividade aqui no Brasil, de editais públicos, de patrocínios via incentivo fiscal. Eles viviam dessa forma, porque o Canadá tem esse modelo, e Montreal é uma cidade com muitos recursos públicos, que atende a energia elétrica de Nova York e Boston. Não é pouco dinheiro que entra lá. Mas, nos Estados Unidos, o Cirque du Soleil entra na indústria do entretenimento e passa a ser a maior empresa de entretenimento ao vivo, superando, inclusive, a Disney nesse quesito. Eles percebem, no modelo estético, que a questão do animal não soava muito bem, mas que o palhaço era fundamental. E hoje, depois de muito pensar, o palhaço é o melhor remunerado. Números são comprados de todas as partes do mundo. O artista que chega como palhaço lá não se submete tanto à visão estética do diretor do espetáculo quanto os outros artistas, 208


porque ele já vem com um núcleo de números adequado àquela linguagem. Já sabe o potencial que tem. É muito diferente o palhaço do restante dos artistas do Cirque du Soleil. O próprio Cirque du Soleil percebeu que se estabelecesse esteticamente um padrão ele rapidamente se esgotaria. Eles até foram buscar artistas do mundo inteiro de outras áreas para colaborar. Chamaram grandes diretores de teatro, como Robert Lepage, e de dança, como a Deborah Colker, que vinha do Intrépida Trupe, para dirigir espetáculos. Com a difusão do DVD, e agora com a Internet e com o YouTube, o circo brasileiro tradicional, se antes copiavam a música da televisão, começou a ver o Cirque du Soleil e pensar: “Nossa! Isso pode agradar o público” e começa a imitar isso. O circo se reinventa esteticamente, especialmente o tradicional, porque bebe em várias fontes, sem o menor preconceito. O circo é eclético por natureza, porque ele é casa de todos. Como eu disse, ele foi também casa de espetáculos no Brasil. Aqui não tinha casas de espetáculos, o circo abrigou na lona toda a formação da música de raiz, a chamada música caipira, durante muito tempo. A formação do samba brasileiro se dá também dentro do circo, através dos lundus e das modinhas, que eram executados por palhaços cantores. O Eduardo das Neves, o primeiro negro a gravar disco no Brasil, sambista e criador de vários lundus, tocava em circo e era palhaço de circo. A mesma coisa acontece com o Benjamin de Oliveira, que é um grande ícone da palhaçaria brasileira, o primeiro grande palhaço brasileiro, que também tocava e cantava lundus, embora fizesse também representações teatrais, como, por exemplo, a representação de A viúva alegre. Como está a segurança física na atividade circense? Ocorreu um cruzamento muito benéfico durante a década de 1980, que levou à criação de modelos e patamares de segurança, oriundos dos esportes radicais, especialmente do alpinismo. O que antes era um gancho feito de ferro, ou até de aço, para sustentar um cabo de aço, virou um mosquetão de alumínio, mais leve, com a garantia de que possui um coeficiente de segurança. Isso virou uma preocupação nas escolas de circo. As pessoas vindas de outras origens que não a família circense passam a questionar a segurança do circo, porque elas estão alçando voo pela primeira vez. É diferente para uma pessoa que desde os três anos de idade é jogada do alto, cai numa rede, se pendura, tornando tudo isso muito natural. Quando uma pessoa jovem, oriunda de classe média, que teve uma formação amedrontadora dos pais, 209


entra num circo e tem que se pendurar num trapézio, há uma preocupação diferente em torno da segurança. Toda uma geração se formou assim, aprendendo com a tradição e se preocupando com a segurança. Não existe um padrão brasileiro de segurança. O que temos é menor em relação à segurança que existe lá fora, mas nem lá fora isso é sistematizado. Recentemente, eu tive um diálogo com o Centre National des Arts du Cirque, o CNAC, que é a grande universidade de circo francesa. Pedi a sistematização deles e foram obrigados a confessar que não têm uma sistematização de segurança nem regras para todas as modalidades circenses. O que temos são regras gerais, que já são seguidas aqui, desde como montar um circo, se preparar para uma ventania, arriar a lona diante de uma tempestade, controlar a entrada e saída de vento. Há também algumas questões internas: qual é o cabeamento exato, a força exata, a tensão exata. Tudo isso é um saber popular, que precisa ser sistematizado no Brasil. É preciso pegar os grandes capatazes de circo, os caras que têm esse saber popular, ouvi-los e documentar. Existe gente pesquisando em algumas universidades, gente não ligada à universidade, inclusive, mas nada disso está publicado ou acessível. Como se forma um palhaço? Existem raízes diferentes na formação da arte do palhaço e da arte do circo atual. A formação dos palhaços trouxe os tradicionais para ensinar, que vêm com o vício da formação familiar, que é de escolher. Por mais que tenha dez alunos pagando para ensinar-lhes, ele vai adotar alguém, paternalmente, e vai ensinar mais àquele do que aos outros, porque ele enxerga naquele um potencial maior. É um enxergar intuitivo. Eu fui um privilegiado nisso, enxergaram o meu potencial. Tive um professor, que era o Meroel, irmão do Zé Wilson, dono do Circo-Escola Picadeiro. Ele me chamava de lado quando tinha espetáculo, eu tinha que fazer reuniões intermináveis, de três, quatro horas, algumas regadas à cerveja, outras, trancado dentro de um trailer, sentado e ouvindo repetidamente o que eu tinha feito de certo e de errado. E nisso havia uma carga histórica da vida dele, do que ele passou, do que a família dele passou, para eu entender o que eu tinha que fazer em cena. Então, é um tipo de aprendizado diferente. Eu compreendi nesse aprendizado que o arquétipo do palhaço é muito grande e que você não precisa se descobrir ridículo para representar o ridículo da humanidade. A outra tendência de aprendizado de palhaços ocorre 210


na França, com Jacques Lecoq, que é o primeiro mestre a pensar em ensinar palhaços para não artistas circenses. Ele trabalha com atores, com gente de várias origens, para desenvolver isso. Um dos discípulos dele, o mais forte, que é Philipe Gaullier, criou uma escola de palhaços por onde passaram diversos brasileiros. Um deles é o Luís Otávio Burnier, que vai pra lá e passa a transmitir isso no Brasil, através do Lume, que nasce como um grupo de pesquisa da Unicamp. Eles começam a fazer oficinas e a preparar um monte de gente. O Teatro de Anônimos é um dos grupos que nasce fazendo essas oficinas e desenvolve o seu trabalho com essa mesma linguagem. Por que a criança se assusta com o palhaço? O palhaço não nasceu voltado para a criança, ele é um arquétipo que representa o erro do ser humano. Se errar é humano, o palhaço é a maior representação do erro. Desde as sociedades primitivas, o lado profano é aquele que faz brincar, que detém o universo lúdico pelo viés da alegria, sempre cometendo erros daquilo que a gente imagina que seria a moral vigente. O palhaço moderno, que é esse palhaço com o nariz vermelho, surge no meio da Idade Média e se consolida até o Renascimento. Se alguém acredita que pode ir do ponto A ao B sem nada lhe acontecer, ele está no plano do intelecto, enquanto que a natureza é cheia de surpresas. Você pode levar um tombo porque você escorregou numa casca de banana. Isso é risível porque somos sempre surpreendidos por algum evento da natureza. O palhaço é uma representação grotesca da humanidade, que passa pelo instintivo. E aí, uma vez grotesco, ele não é uma figura comum. O Fellini diz que ele é a sombra, deformação. Como toda deformação, ela não é tão palatável. A representação do palhaço se torna infantilizada, ceifada da sua pulsão sexual, escatológica, por causa do mass media. Quando o cinema e a televisão adotam a figura do palhaço, resolve infantilizá-lo para voltá-lo ao público infantil. Por exemplo, a maquiagem do palhaço tradicional, em circo, só usa três cores: branco, vermelho e preto. Na televisão, começam a surgir milhares de cores. O figurino tinha uma falsa elegância, porque ele é exagerado, é um paletó grande, uma calça grande, que representa também aquele que é oprimido, vestindo a roupa do seu opressor, e inadequado ao mundo. O palhaço é o inadequado, ele não cabe nesse ambiente. Já a cultura de massa vai encurtar, acomodar melhor a roupa do palhaço, deixá-la mais colorida, mais bufante. Um tipo de exagero que não é da representação. 211


212


David Linhares Diretor da Bienal Internacional de Dança do Ceará.

Conte um pouco da sua história, David. Aos 18 anos, trabalhei em Brasília, com o Ademar Dornelles. Ele me convenceu que eu fosse bailarino e que fosse de Brasília para o Ballet Stagium, em São Paulo, para trabalhar com Marika Gidali e Décio Otero. Quando eu cheguei e vi a realidade da dança em São Paulo, saí correndo e disse que não era isso que eu queria. Abandonei a dança e fui morar na Europa. Por quê? Porque eu quebrei meu braço, fiquei como indigente num hospital, não tinha dinheiro para sobreviver. E quando cheguei numa audição no Ballet Stagium, vi um bailarino solo fazendo um gran de car num desespero tão grande de passar na audição que no momento em que ele saiu dali, já saiu numa maca, dentro de uma ambulância. Não era a dança que eu sonhava ou que eu imaginava. Era o começo, o Ademar tinha saído de lá e ido para Brasília para criar a companhia Ensaio Teatro de Dança com a Graciela Figueroa. Os dez primeiros anos de Brasília foram de grande efervescência. Era o começo da dança contemporânea no Brasil, que já existia na Europa. A dança contemporânea chega à Europa com Trisha Brown e Carolyn Carlson, essas duas revolucionárias da dança. Carolyn Carlson leva a dança contemporânea 213


para Europa, encontra Pina, e começa esse movimento nos anos 1980 – é muito recente essa revolução. E eu, por um acaso, com o azar de ter me machucado aqui, eu digo: “Não é isso que eu quero.” Meu pai não sabia mais o que fazer e me dá uma passagem: “Para onde você quer ir?” “Eu quero ir para Paris.” Então, desço em Paris, começo a estudar francês e vejo o que estava acontecendo em nível artístico. Era esse movimento que nascia. Depois eu voltaria para o Ceará. É aí que entra a Bienal de Dança do Ceará? Quando volto, sou convidado pela Aliança Francesa para ser seu produtor cultural. Trago Mano Negra, a Semana Amado, com Jorge Amado. Começo a trabalhar com música, teatro, com artes plásticas. A Bienal de Dança do Ceará foi um projeto criado no final da gestão do então secretário Paulo Linhares, meu irmão. Naquela época, foi criado o Centro Cultural Dragão do Mar, um polo de cinema do Ceará. E meu irmão me convida, diz: “Por que você não faz um projeto para dança? Não tenho nenhum.” Propus a Bienal de Dança do Ceará, que começou em 1997, tímida, trabalhando com o clássico. Convidei o Balé Municipal do Rio de Janeiro, com quatro coreógrafos contemporâneos. Qual é a ideia central da Bienal? A ideia central da bienal é criar um campo, uma festa de criação, na qual exista troca, colaboração entre as pessoas. Um espaço para promover o que é feito no Ceará. Nós estamos fazendo um trabalho, que, sobretudo no começo, é para nós mesmos, cearenses. Quando eu cheguei em Fortaleza, existiam duas companhias de dança contemporânea. Hoje, acabamos de ir para a África, em um avião com 96 artistas cearenses e dezessete companhias. Para viver de cultura, você tem que pensar em uma série de questões. De como se sustentar, como viver, como trocar. Por isso é importante trazer as pessoas da Europa para o Ceará, para esses encontros. A troca tem que se estender. O encontro pessoal ou o intercâmbio mesmo por meio de workshops? Intercâmbio e encontros pessoais. Por exemplo, tem o off da Bienal, que é de onze horas da noite até três horas da manhã, onde as pessoas se embriagam, trepam, onde as pessoas se amam, se encontram. É o lugar mais maravilhoso. Quando eu trago Bóris Charmatz, a maior celebridade do mundo, ele se esfrega na parede com a neguinha que está limpando o bar em Fortaleza. E ao mesmo 214


tempo discute com o coreógrafo. Essa festa, essa celebração, esse encontro, é superimportante. Tudo maravilhoso. Os ateliês de manhã, os workshops à tarde, as apresentações à noite. Mas em tudo isso existe uma tensão, que não existe nos encontros à noite, em que estão todos relaxados, tomaram uma cerveja, as pessoas se veem de outra forma. São os momentos mais ricos da bienal, nos quais não existem apenas os convidados oficiais, e é aberto para músicos, atores. E disso nasceu a Bienal de Par em Par, que acontece nos anos pares, quando se destrói as fronteiras que existem, é o Encontro Terceira Margem, em que as outras linguagens vêm para dialogar com a dança. Conte um pouco como é a produção de dança. O que é o tensionamento de linóleo, o que é preparar o espaço de dança, os espaços de aquecimento, o espaço de saída de palco? Como diretor da Bienal de Dança, eu faço tudo isso: desde o linóleo, a fita crepe, a bilheteria... O linóleo é o tapete de dança, que é usado no palco, que os bailarinos, normalmente, usam para ter um solo mais uniforme. Você tem o cara que coloca o linóleo, mas no Ceará é um bailarino que tenha um curso técnico. Nós não temos jornalista em dança ou críticos de dança, não temos profissionais na área. Então é obrigatório que se faça um pouco de tudo. O meu produtor cultural é bailarino, ele ensina na periferia, no Dragão do Mar, nos bares periféricos, e quando o cara do linóleo está doente, é ele que coloca o linóleo. Quando a bienal começou, não tínhamos nem iluminador para a dança. Isso melhorou com o tempo? Sim. As primeiras companhias internacionais que foram convidadas vinham pelo saber artístico, e acontecia uma troca. Elas formaram os técnicos dos teatros para fazer luz, para colocar linóleo, para trabalhar com cenografia, construir e tudo mais. Não tinha quem escrevesse sobre o que fazíamos. Levávamos o release do espetáculo para o jornal, e o texto era publicado no dia seguinte tal como foi entregue. Tivemos que investir no Diário do Nordeste, no jornal O Povo, convidar os jornalistas. Hoje, nós temos um curso técnico em dança e fizemos um fórum para discussão de políticas em dança no Ceará. Nós temos também um programa de televisão que está sendo exibido pela TV O Povo. É videodança, fruto de uma junção com a Alpendre Casa de Arte. Nós chamamos o pessoal de 215


audiovisual para trabalhar junto e pensamos o vídeo como um suporte para dança. Por exemplo, como é trabalhar essa zona fronteiriça entre o vídeo e a dança? O que o enquadramento traz para a dança? O que significa o bailarino começar a ter os olhos através de uma câmera? Trabalhamos com o Dança em foco; ano passado, nós fizemos o Fórum Latino-Americano de Videodança, trazendo os festivais mais representativos da América do Sul. Hoje os profissionais estão estabelecidos? O Walter Façanha, que é diretor técnico do Dragão do Mar, é um cara apaixonado por dança. Ele quem faz a luz de todas as companhias de dança, e não deixa a desejar mais a nenhum gringo que venha para o Ceará. Mas há dificuldades com o Teatro José de Alencar, aquelas pessoas trabalham ali há trinta anos. É como o secretário de Cultura, que, quando entra, é obrigado a trabalhar com aquele pessoal que não tem qualificação, que está ali porque passou no concurso. Hoje, quase todos os técnicos trabalham dentro do Dragão do Mar, criando com as companhias de dança. Esse trabalho de formação se deu principalmente com o intercâmbio entre as companhias que trouxemos para a bienal e os técnicos de luz e som do Ceará. Como vocês tratam o figurino na bienal? Nós trabalhamos com grandes companhias. São cuidados tomados por elas. A camareira do Teatro José de Alencar, que também não é especializada, não tem o direito de tocar na roupa deles. A roupa já chega lavada aqui e, normalmente, quando nós temos que lavar, eles acompanham. Para engomar a roupa deles, é a mesma coisa. Porque, se acontece alguma coisa, eles não têm duas. Isso porque eles têm que circular para outros estados – nós fazemos parte de um circuito de festivais: Recife, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. E a parte de som? Nós temos a maior dificuldade em som. Normalmente, o Teatro José de Alencar tem 20% de condições de receber o que exige a companhia mais simples que a gente traz para o Brasil, e mesmo uma nacional. Então, 20% só do material funciona. Não existe lâmpada, tem não sei quantos mil refletores que não funcionam. Dos 860 lugares, sessenta cadeiras estão furadas, com as palhinhas destruídas. O diretor técnico de som recebeu uma aparelhagem 216


nova que ele não sabe usar. Ele aperta o on e bota lá os microfones. Os recursos que o som têm não são utilizados. A gente tem problemas seríssimos. Por exemplo, as companhias vêm da Europa com tudo programado, com um programa que é colocado na mesa de luz, e o programa já faz com que tudo funcione, já está tudo pré-registrado. Já aconteceu de o computador não reconhecer. O cara sai do país dele com tudo programado e é incapaz de fazer a história manual se acontecer uma pane. Tínhamos dois caras que faziam a luz, traziam tudo o que precisávamos, a mais, mas não chegava a dois quilos. Aí chegava alguma companhia e dizia: “Eu quero cinco quilos.” Era pânico a bordo, tem que adaptar. No final, a gente consegue. É muito raro o material que eu tenho que trazer para a bienal. Por exemplo, a gente tem agora, com a Carolyn Carlson, uma máquina simples, que tem em qualquer lugar aqui em São Paulo, mas que nós não temos em todo o resto do Brasil. Isso custa € 3 mil para ir para Fortaleza. Como é o gerenciamento de conflitos desse tipo? Nós trabalhamos há doze anos com a mesma equipe, os produtores, os receptivos, mesmo os jornalistas. Acaba que todo mundo faz parte da bienal. Todos os anos, eles sabem, a partir do mês de julho, que eles têm a grana deles certa, que a gente vai trabalhar nessa grande festa. São três meses de festa. São dez dias como o carnaval: quando acabam, dormimos quinze dias para poder começar tudo de novo. Na bienal, é proibido dar ordem a uma outra pessoa. Quem é responsável por aquilo tem que responder por aquilo. E, normalmente, eles não podem nunca culpar os outros, têm sempre que falar comigo. O que é complicado para mim: eu tenho que estar presente quase em todas as coisas. A minha diretora artística, Andréa Bardawil, questiona muito isso. Existe um certo paternalismo. O que mudou no cenário da dança no Ceará desde que vocês começaram a trabalhar? Hoje nós temos quarenta companhias de dança. Quinze já são independentes, sobrevivem de dança. Nós temos um curso técnico em dança. Este ano estamos comemorando a graduação em dança. Em toda bienal conseguimos um grande passo. Primeiro, o Fórum de Dança. Depois, o curso técnico em dança e então a graduação. E hoje nós somos a linguagem artística melhor organizada no estado. O cinema está com dificuldades enormes. 217


O Ceará chegou num patamar superimportante de audiovisual, mas hoje teve um retrocesso. Por exemplo, no ano passado, quando o secretário de Cultura não deu dinheiro para a Bienal de Dança, os artistas da dança, sem que eu pedisse, foram para a porta da Secretaria de Cultura e impediram o secretário de entrar na sala dele. Para entrar, tinha que passar por eles. Fizeram um cordão em torno da Secretaria de Cultura e exigiram dinheiro para a dança. A bienal é dos artistas do Ceará. Ela é pensada por articuladores, por pessoas da dança popular, do tango, do sapateado, do Dançando nas Escolas. É pensada por eles, ao longo do ano. Eles recebem uma ajuda mínima para pensar quais foram as dificuldades que nós tivemos na última bienal, o que deve melhorar, como devemos trabalhar com os jornalistas. Quer dizer toda a bienal é pensada com os artistas. Eles também têm acesso a todo o nosso orçamento e decidem sobre ele: em que setor investimos, como interiorizamos, como a gente vai para a África, quais são os passos que temos que dar. Qual a relação com o teatro? A dança não é próxima ao teatro. A dança, no Ceará, é mais forte, existe uma proximidade maior com as artes plásticas e com o audiovisual. Nós trabalhamos com o Alpendre, com a Vila das Artes, com o audiovisual. Temos um programa de televisão em videodança. Hoje, o que se utiliza num palco de dança é vídeo e artistas plásticos, com esculturas e pinturas. Teatro foi uma coisa que foi um pouco abandonada. Neste ano, nós temos uma preocupação, chamamos Marcos Moraes, Teresa Rocha, pessoas que trabalham com dramaturgia, para trabalhar com a dança. Mas existe uma dificuldade. O festival de teatro, no Ceará, está passando por dificuldades enormes. Nós temos um festival nordestino de teatro, que acontece em Guaramiranga, numa cidade a 120 km de Fortaleza. Fortaleza não tem um festival de teatro. Conte algo que aconteceu, com relação a uma companhia do Ceará, que o fez pensar: “Ah, consegui mudar alguma coisa. Valeu a pena tentar.” Eu posso dar o exemplo do Fauller. Eu convidei o Rachid Ouramdane, que trabalhava com o estudo da identidade, para fazer um trabalho em Fortaleza, e, aliás, foi um dos trabalhos mais criticados quando não tínhamos jornalistas especializados em dança. Foi um momento bem difícil da bienal, em que recebemos críticas sobre essas relações que estabelecemos com países europeus. Disseram que eram relações colonizadoras. E foi num momento que 218


convidamos o Rachid, que escolheu três coreógrafos cearenses para montar um trabalho que se chamava Cover. Um dos artistas era o Fauller, que tem um dos trabalhos mais bonitos que o Ceará já produziu até hoje, seu trabalho é referência no Ceará e no Brasil, que se chama De-vir. Fez uma turnê, esse espetáculo foi uma grande produção franco-brasileira, passou por todos os palcos da Europa. O Fauller foi o primeiro coreógrafo cearense que teve uma visibilidade nacional e internacional. Foi convidado para o Move Berlim, já fez todos os festivais brasileiros. E eu acho que nós temos várias coisas. Temos Andréa Bardawil agora, com O tempo da delicadeza, que foi premiado com o Klauss Vianna. Hoje, nós temos várias companhias. Quando estou no Rio de Janeiro, em São Paulo sinto uma presença mais forte do que vem de fora, acho que essa influência é menor entre os cearenses. Apesar de eles terem sido muito influenciados, se trata de uma relação melhor resolvida. Digerimos bem o que nos trouxeram. Como trabalhar com a formação de público para a dança? Temos um público de vinte mil pessoas por edição. E tudo é de graça, talvez por isso o público é tão grande. Acho que é o único festival, no Brasil, em que tudo é de graça. Existe uma expectativa muito grande para o que vai acontecer. Tudo fica lotado. Existe uma expectativa para a bienal, também por conta talvez dessa festa e dessa celebração que acontece no entorno. E lembrando do Festival de Inverno de Ouro Preto, acho que é essa convivência, essa celebração, essa coisa da festa, do glamour, que as pessoas precisam se tocar um pouquinho, que eu não vejo nos outros festivais. Na França, tem a abertura de um festival, que, quando, acaba, vai todo mundo para a casa, aquele bode, aquela coisa deprimente. Com a gente são 24 horas, durante dez dias. As pessoas só voltam para a casa no oitavo dia. Esse clima todo ajuda a aproximar o público da dança.

219


220


Leandro Knopfholz Diretor do Festival de Teatro de Curitiba.

Como começou o Festival de Curitiba? A partir de uma percepção de um grupo de amigos que se tornaram sócios. Curitiba tinha uma estrutura física de salas e pouca oferta de espetáculos. Então, com este diagnóstico, começamos a agilizar e conseguimos sensibilizar patrocinadores. Assim fizemos o primeiro evento. Não tínhamos nenhum envolvimento com o teatro. Era um momento diferente, isso tem que ser lembrado. Não existia Internet, a informação não corria como hoje. Então não tínhamos nenhuma ligação específica. Nenhum de nós é ator. Minha formação é em administração, um dos sócios era engenheiro, outro era sociólogo. Nós nos conhecemos na comunidade judaica, e quando percebemos que existiam muitas salas, decidimos preencher esse espaço. Um ano depois a gente conseguiu viabilizar. Você sente que depois do Festival de Teatro de Curitiba aumentou a oferta de peças na cidade? Um público foi criado? Ou o Festival continuou sendo um movimento isolado na cidade? Ano que vem chegaremos à vigésima edição. Tem uma geração de pósadolescentes que já cresceu com o advento do festival. O festival sempre existiu para essas pessoas. Eu acredito que o teatro se tornou um marco importante 221


na sociedade curitibana. Então acho que sim, o festival impactou a produção e o consumo de teatro na cidade. Conte o que é o festival, como são as várias partes do festival. O festival começou como uma reunião de espetáculos, nasceu para ser um evento para Curitiba. A ideia era trazer para a cidade o que não chegava antes, então trouxemos doze espetáculos para as salas e dois para a rua. Isso era o festival, usando cinco teatros. O evento foi crescendo, e uma série de necessidades foram mudando a cara dele. Como nasceu na era pós-Collor, existia um ceticismo enorme, a economia não ia bem, ninguém investia. O Collor tinha desmontado o mecanismo estatal cultural, e a gente estava indo na contramão. Conseguimos um patrocínio privado em um banco e também que a prefeitura construísse um teatro, que é a Ópera de Arame. E neste primeiro ano a gente conseguiu, além disso, reunir muitos encenadores, muitos diretores. A gente tinha uma curadoria e entendeu que o encenador era a figura central do teatro naquele momento. E como eu já disse, não tinha essa profusão de informação; a dificuldade logística era gigante. Hoje você pega um avião e vai, a passagem é barata. O fato de termos reunido tantas pessoas importantes em um contexto absolutamente desfavorável, em uma circunstância inusitada, e em Curitiba, que é um centro bem menor, fez com que o festival extrapolasse a cidade e chamasse a atenção do país. E daí começamos a ter mais demandas, só reunir estas pessoas já não era mais suficiente. O festival começou a potencializar e a catalisar estreias nacionais, passou a interessar à mídia nacional; os programadores, nacionais e internacionais, passaram a vir para Curitiba para ver o que acontecia no teatro brasileiro e levar para fora, para suas cidades. Uma coisa levou à outra, o fato de a gente ter programadores, diretores de festivais, a mídia, fez com que outros espetáculos não programados começassem a se apresentar em Curitiba na mesma época, espetáculos curitibanos. A cena local começou a se organizar para isso. Em 1998 a gente organizou uma situação que era simultânea ao festival de teatro, e chamamos de Fringe, no modelo do festival Escocês de Edimburgo. Fringe quer dizer franja. A ideia era colocar um guarda-chuva, ou seja, uma marca, e dar visibilidade para espetáculos que não são selecionados pela curadoria. Nessa época o festival tinha quinze ou dezesseis espetáculos, e o primeiro Fringe teve sete. 222


O Fringe é uma parte do festival sem curadoria? O que aconteceu, em um determinado momento, é que todos os espetáculos que podiam vir, vinham. Então tivemos de organizar, e estipulamos que o espetáculo não pode ser proselitista de nenhuma religião, porque senão dá uma cara que a gente acha que não é a certa, e o espetáculo tem que ser profissional. Esses são os únicos dois parâmetros para o espetáculo participar da mostra Fringe. Essa mostra cresceu, tanto que no ano de 2010 o Fringe teve 370 espetáculos. De sete, em 1998, para 370 em 2010. Grande parte dos espetáculos são de Curitiba, e 40% são paranaenses. Isso permitiu que as companhias e os encenedores de Curitiba ficassem na cidade ou há um êxodo para os grandes centros de cultura? Eu entendo o Fringe como um propulsor, uma forma de exibição muito grande. Por exemplo, o espetáculo A vida é cheia de som e fúria, do Felipe Hirsch, foi encenado no Fringe em 1999; os espetáculos do Grupo XIX de Teatro, Hygiene e Hysteria, foram apresentados no Fringe; O Grupo Espanca!, de Belo Horizonte, foi vista pela primeira vez no Fringe; Alice através do espelho, de Paulo de Moraes, do Armazém, foi encenado no Fringe e depois teve temporadas na Fundição Progresso por muitos anos. O Fringe traz sempre essa possibilidade. Os festivais mudaram. Se você olhar historicamente, essa característica da feira, da reunião, aconteceu muito e acontece ainda, mas nos últimos dez anos, com a informação correndo tão rápido, ficou um pouco esvaziado o sentido de reunir tanta gente no mesmo local. É o que eu estava dizendo no começo. Reunir aquelas pessoas todas em 1992 foi um marco. Hoje é mais difícil impressionar as pessoas, o cara estreia e já está no YouTube! Você fala de qualquer espetáculo e as pessoas falam: “Ah! Já vi!” As coisas são muito mais rápidas e muito mais fáceis, então tem o desafio de pensar qual é o sentido de fazer isso. E, na verdade, eu entendo que o sentido é exatamente a reunião. Eu penso nessas ruas com lojas que vendem uma coisa só, a rua das noivas, rua dos carros, ruas das lojas para restaurante, por algum motivo estarem todas juntas faz com que vendam mais, as lojas brigam para estar naquela rua. Eu acho que a mesma coisa acontece no festival. Quando você coloca pressão, quando você traz isso à tona, todo mundo só fala nesse tema ao mesmo tempo, e o todo cresce. E as pessoas estão ávidas por uma novidade. Nesse sentido, os espetáculos que estão se arriscando e indo para o Fringe têm 223


essa possibilidade de apresentar coisas que, mesmo não sendo tão novas, as pessoas não prestaram atenção ainda. Então reunir essas pessoas no mesmo local e ao mesmo tempo faz com que elas fiquem mais atentas ao que já existe. E o público é majoritariamente local? A prefeitura realizou uma pesquisa – e então a fonte é absolutamente isenta – que diz que 15% do público é de fora de Curitiba. A gente tem um público estimado de 180 a 190 mil pessoas, o que quer dizer que vinte mil são de fora, mais ou menos. É bastante, mas é bem diferente do Festival de Edimburgo, do Festival de Avignon e de grandes eventos do gênero no mundo. Fazemos o festival no dia 29 de março, que é o aniversário da cidade. Escolhemos essa data porque, quando estávamos começando, a cidade ia completar 299 anos, e existia todo um trabalho de “faça alguma coisa para os trezentos anos da cidade”. Então achamos conveniente agendar para a data de aniversário. Porém, é uma data ingrata, porque não é um período de férias, não é nenhum marco específico como carnaval, São João. A possibilidade de deslocamento é mais restrita, vendo de um ângulo mais comercial. E vocês decidiram que não vale a pena trocar a data? Virou um marco? São vinte anos. As companhias se preparam para essa época do ano. Terminou o festival desse ano e, como o próximo é a vigésima edição, eu já tenho mais de trinta propostas de espetáculos para março do ano que vem. Não tenho muito como mudar isso agora. Talvez em 2014 a gente comece a mudar alguma coisa. Em 1992, em texto ao Estado do Paraná, uma jornalista disse: “Em um momento em que estamos vivendo um grande boom do teatro, nós não temos nenhum crítico trabalhando regularmente dentro de um jornal.” Esta realidade mudou? Como você vê a crítica dentro do processo do festival de vocês? Eu acho que tudo mudou. A ideia do site do festival é que ele permita a crítica. Queremos que o público indique para o público o que ele acha que vale a pena. É importante a gente entender que essa coisa das pessoas precisarem do endosso de alguém sempre existiu, o crítico que indica, o boca a boca, principalmente nessa área de teatro. Hoje em dia as pessoas têm menos medo de expressar a opinião, é mais fácil apresentar o que você pensa para 224


um monte de gente. E o festival busca isso na sua interação digital com as pessoas. Desejamos que as pessoas participem, opinem, deem respaldo e tentem indicar, dentro dessa profusão de mais de quatrocentos espetáculos, ao que o próximo espectador deve assistir. Então o papel da crítica continua sendo muito importante, mas em um sentido mais amplo, não dedicado a um cidadão só ou a poucos cidadãos que ocupam um espaço em determinado veículo. A meu ver, essa crítica que vem da opinião de vários é mais rica. Mas, ao mesmo tempo, um profissional que acompanhe criticamente a cena cultural tem a possibilidade de ter uma visão mais panorâmica, de fazer um mapeamento da produção e comparar com a informação diferencida que ele tem. Isso não é importante também? Claro, sem dúvida. Esse profissional está dedicado a isso, e o repertório dele é muito maior que o de um espectador comum. O espectador menos assíduo, por exemplo, vai dizer “gostei” ou “não gostei”. O profissional dirá se uma referência está bem-colocada ou não, se falta adereço. Eu não acho que uma coisa mate a outra, elas se somam. O papel do crítico é rico e ainda superimportante, porque é um profissional dedicado a essa atividade. Mas o crítico era muito poderoso. Quando eu comecei a fazer o festival, era fundamental que um crítico aprovasse, endossasse. Ele tinha o poder de acabar com o espetáculo. Ele ainda tem poder, mas também tem muito mais responsabilidade a partir do momento que as pessoas têm mais informação e se comunicam mais rapidamente, e podem relativizar a sua opinião. Num festival o encontro de backstage é muito forte. Não houve o interesse de estes encontros acontecerem em público, de criar debates públicos? Sim, isso existe desde o começo do festival. Essa coisa do encontro é fundamental. O festival cresceu muito, então houve um momento em que, por questões logísticas, nós usávamos vários hotéis e restaurantes, mas percebemos que o evento não estava tendo função de festival para as companhias, porque elas acabavam não se encontrando. Com este gigantismo é muito mais fácil dispersar. E Curitiba, apesar de ser uma cidade grande, funciona como uma cidade pequena. As pessoas saem do teatro e os restaurantes já estão fechados. Então tentamos concentrar as pessoas nos mesmos hotéis, e aí as pessoas se encontravam no elevador, no saguão, nas 225


vans. Criamos um restaurante único para o festival. As pessoas começaram a se encontrar de novo. Fora isso o festival tem uma sede, que é um espaço público chamado Memorial de Curitiba. O local tem um bar, e a ideia é que as pessoas frequentem esse bar, que seja aberto para quem quiser se aproximar delas, para ter essa interação também com as pessoas da cidade. Fazemos também encontros formais, debatendo determinados temas e fazendo oficinas e atividades de aperfeiçoamento com profissionais. É o que eu falei no começo, as responsabilidades do evento vêm de acordo com a evolução do próprio evento. Os preços do ingresso em 2010 foram de R$ 45,00 o inteiro e R$ 22,00 a meia-entrada. Não é caro? Não acho. É dentro de uma realidade até de valorização do que a arte custa e vale. Primeiro eu acho que isso é um negócio, é uma cadeia produtiva, e uma cadeia produtiva precisa dos insumos, dos recursos humanos, estruturais e financeiros. E a bilheteria compõe esta estrutura financeira. Segundo, fazendo uma relação entre cinema e teatro, o teatro é feito ao vivo e todos os dias, então tem de custar cinco vezes mais que um ingresso de cinema. Isso numa relação econômica estudada, científica. Terceiro, esses são os valores praticados pelos teatro em Curitiba e em São Paulo. E existe a questão da meia-entrada. De fato, o valor praticado é o da meia-entrada. Temos uma média de 92% de pagantes com meia-entrada, a R$ 22,00 o ingresso. Acho que está absolutamente dentro do valor viável. A meia-entrada é uma questão que você acha que tem atrapalhado o negócio da produção cultural? Totalmente. Nós estamos inseridos em uma atividade chamada economia criativa ou economia da cultura. Então é economia. A agricultura, por exemplo, tem uma série de subsídios estatais, nem por isso você paga a metade do preço no pacote de arroz. Nem por isso o agricultor recebe a metade pela tonelada de arroz. Tudo bem que é subsidiado para o consumidor final, pelo governo. Aqui é a mesma coisa. Se está na constituição que o acesso à cultura é um direito do cidadão, o sujeito que está trabalhando com cultura não tem nada com isso. É um direito, então o governo tem que criar situações, e não tirar os recursos. Principalmente um show de música, por exemplo, que dificilmente tem um apoio estatal. Se o projeto tem um apoio estatal, como 226


uma lei de suporte à cultura, talvez isso possa servir como uma contrapartida e talvez seja justo. Mas eu não acho certo e deve até ser inconstitucional, no que se refere à ingerência do Estado sobre a atividade privada, que haja uma lei obrigando que o estudante, que o idoso, que o doador de sangue, que o professor da rede pública pague meia-entrada. Não acho certo com atividades que não têm subsídio. No caso de teatro, temos uma série de apoios estaduais. Mas o orçamento do festival do ano passado, por exemplo, foi de R$ 3,2 milhões. Esse montante foi captado, não é? Não. Ele foi composto de patrocínios, bilheteria e outras receitas, merchandising. E a bilheteria do Fringe é toda destinada para os espetáculos. Os espetáculos ocupam setenta e tantas salas em Curitiba. A prefeitura diz ter quase duzentas salas, mas na verdade não são salas mesmo, são espaços. Então você não tem um box truss para colocar luz em cima, você não tem coxia, você não tem um elevado para palco, não tem plateia, você não tem nada, só um espaço. E aí o festival monta a estrutura para as companhias, coloca gente trabalhando. Um operador de som, um operador de luz, gente para a bilheteria. O festival presta serviço para estes espetáculos, mas não dá apoio para o espetáculo chegar em Curitiba, e nem acho que é função do festival fazer isso. O festival funciona como uma vitrine. Há uma preocupação em preservar e disponibilizar as memórias dos espetáculos? Muito! Tudo isso está disponível no site do festival. Temos a TV Festival que registra todas as atividades, além de um registro fotográfico imenso. Temos um pesquisador, chamado Geraldo Peçanha, que organiza também toda a programação do festival. O próprio site do festival, quando as pessoas se cadastram, também tem uma memória muito rica, porque a gente pode indexar tudo, por texto, por diretor, por nome do ator, por procedência, e esses dados são todos arquivados e disponibilizados. Para a Funarte, inclusive. Fale um pouco sobre a Ópera de Arame. A Ópera é um teatro inspirado na Ópera de Paris, feito em metal e vidro. Quando começamos a fazer o festival, a gente achava que tinha estrutura, mas não tinha oferta. Aí conseguimos patrocínio com o Banco Bamerindus, mas o então governador Roberto Requião tinha uma briga com o controlador 227


do banco e, quando fomos reservar o Teatro Guaíra, que pertence ao estado, recebemos um recado do Oswaldo Loureiro, que era o superintendente do teatro, de que qualquer evento patrocinado pelo Bamerindus não teria espaço no Teatro Guaíra. A gente tinha que escolher, ou o Bamerindus ou o Teatro Guaíra. Como era mais difícil ter o recurso financeiro, a gente procurou a prefeitura, que era gerida pelo Jaime Lerner, e falamos que tínhamos o festival, os espetáculos, o dinheiro, mas não tínhamos teatro. Então ele disse que tinha um projeto para construir um teatro no parque das Pedreiras, e que isso só seria feito pelo sucessor dele, na gestão seguinte, mas como tinha esse festival ele ia acelerar as obras. Então o teatro foi construído. Como as pessoas não conheciam a gente, nós trazíamos os diretores para conhecer os teatros, dizíamos, “Olha, você vai fazer na reitoria, você vai fazer no Sesc”. E a Pedreira era uma espécie de pântano, porque chovia e não tinha escoamento, não tinha nada. Os diretores iam lá e a gente dizia que naquele espaço seria construído um teatro. “Nesse buraco aqui, nesse pântano, a gente vai construir o teatro”, e eles diziam: “Tem certeza?” O palco da Ópera de Arame é adaptado, ele tem quatro elevadores, porque era uma necessidade que o Cacá Rosset tinha para montar Sonho de uma noite de verão. A passarela que dá acesso ao teatro foi soldada na tarde da estreia do Sonho de uma noite de verão. A gente estava ensaiando, montando o cenário e o espetáculo, e eles terminando de montar o teatro. Inacreditável. E como foi? Ah, foi sensacional. O teatro era todo aberto, foi construído para ser um anfiteatro em um primeiro momento, só o fundo era fechado. Então a pedra dava uma acústica perfeita. Muitas pessoas reclamam da acústica da pedreira, mas a pedra era um fator fundamental no som, que foi perdido quando foram fechadas as laterais por causa do frio. A gente, que tinha previsto três sessões, acabou fazendo cinco, todas abarrotadas. E a pedreira tem uma vegetação atrás, então passava borboleta no palco, as pessoas estavam dentro da floresta. Inacreditável. Eu não tenho registro em vídeo disso. Só fotos. Fale um pouco dos festivais do mundo, de companhias internacionais. Sempre trazemos um espetáculo internacional, desde o primeiro ano. O festival reúne a atual produção teatral brasileira em Curitiba, então a ideia 228


de trazer um espetáculo de fora é fazer um contraponto, são 29 espetáculos nacionais e um espetáculo internacional. Este ano a gente trouxe um espetáculo chamado O lamento de Dulcineia. Comparando com o que vejo lá fora, o que eu percebo, apesar de não ser um cara apto a dizer o que é a produção teatral nacional, é que muita tecnologia está sendo utilizada nos palcos. As pessoas querem projeção, som, o último lançamento, os refletores mais não sei o quê. Cada vez mais a tecnologia está sendo usada. Isso está sendo feito há bastante tempo, principalmente em Montreal, mas eu acho que é uma coisa recente no Brasil. A tecnologia está sendo usada, no teatro brasileiro, um pouco como fim, e não como meio. Um pouco exibicionista. Acho que foi importante esse contraponto para as pessoas entenderem isso. A gente sempre busca no espetáculo internacional uma referência. Há peças internacionais que marcaram o festival? Trouxemos pela primeira vez ao Brasil o Robert Lepage, um canadense que é um grande ícone do teatro mundial. O espetáculo era Tango varsoviano, de um transgressor argentino chamado Alberto Félix Alberto. Trouxemos também um francês chamado François Tanguy, um cara supercontestador, que faz um teatro diferente. Então estamos procurando estar sempre atentos a esse movimento mais radical, porque se trazemos só um temos de evidenciar o argumento. Não adianta trazer, na média, o que está sendo feito fora. A ideia não é fazer um festival internacional. Então trouxemos um espetáculo chileno também, que tinha uma inovação de linguagem, misturando teatro e cinema. A ideia é trazer sempre um espetáculo internacional que tenha uma radicalidade. Não necessariamente o melhor espetáculo, mas alguém que evidencie uma proposta que está sendo percebida neste momento. Enquanto que no festival nacional trazemos um pouco de cada coisa, tem teatro de repertório, teatro de companhia, teatro de pesquisa, clássicos. A gente tenta montar um mosaico que represente o que se faz no Brasil neste momento. Qual a sua opinião sobre a Lei de Fomento ao Teatro? Eu fiz mestrado em indústrias criativas, na City University, em Londres, e a minha dissertação foi sobre o vale-cultura. Hoje se dá dinheiro para a produção, o que, comparando com o vale refeição, é a mesma coisa que dar dinheiro diretamente para o restaurante. Então o cara pode fazer qualquer 229


tipo de comida, porque afinal ela já está paga. Com o vale-refeição, o dinheiro está com o trabalhador, então o restaurante tem que se esmerar. Eu acho que as leis de cultura estão investindo atualmente na ponta errada. Óbvio que não pode sair totalmente, existem pesquisas, existe inovação. Mas eu acho que falta entender a cultura como uma atividade econômica produtiva como qualquer outra e trabalhar neste sentido. Trabalhar pesquisa, linguagem, em qualquer área, na música, arquitetura etc. É pesquisa, logo este cara precisa de investimento direto, e aí sim pode se investir na produção. Se este cara tem uma situação mais estável e mais comercial, então ele está apto a receber o dinheiro do vale-ingresso, porque neste caso o dinheiro está na outra ponta. Então eu acho que falta mesclar uma série de situações. Este ministério está fazendo um trabalho muito consistente nesse sentido, porque o BNDES abriu uma linha de crédito. Fantástico, quem quer empreender tem, agora, uma linha para isso. Acho também que tem de ser feito um trabalho de restauro de espaços para apresentações. É fundamental. Não sei se existe uma linha ou um trabalho nesse sentido. Acho que este não é um trabalho exclusivo do ministério, um trabalho exclusivo da esfera federal. Um bom exemplo é o que a cidade de Paulínia vem fazendo, que é meio como Dubai. Dubai viu que o petróleo vai secar, então começaram a investir no turismo cultural. As pessoas podem ir a uma cidade porque a acham linda, mas elas não vão voltar. As pessoas cansaram de ir para Paris, para ver a torre Eiffel, elas querem ir para Paris viver. Então o que Dubai faz é comprar todos os ativos criativos que ele achava interessantes. Tem o Louvre, tem o Stomp, tem o Cirque du Soleil, tem tudo. Tem uma arquitetura fantástica. Paulínia está fazendo a mesma coisa quando investe no cinema. Tudo bem que tem a refinaria e isso deve dar muito dinheiro para a cidade, dá o hardware, mas o software o cara só consegue com essa atividade. É bem inteligente o caminho que eles estão seguindo. O vale-cultura corre o risco de se prender às grandes produções, que já possuem seu ponto de exibição e distribuição. Como fazer para reverter esse processo? Você vê possibilidades? Eu acho que aí o mercado se encarrega. Porque se existe dinheiro naquele lugar, as pessoas vão para aquele lugar. Eu entendo que o vale-cultura será distribuído para o trabalhador. O trabalhador está em todos os lugares do Brasil. Nos grandes centros e nos centros mais afastados. Esse cara terá uma 230


grana lá para gastar. Imagino que as pessoas vão até lá, atrás da grana desse trabalhador. Eu acho que dar essa possibilidade para o mercado, injetar esse recurso no mercado, fará com que o mercado se organize. Sobre outro aspecto da Lei de Fomento, o que você acha da ideia de uma companhia dentro de um teatro por um período de tempo? Da relação companhia de teatro e o teatro como espaço físico? Acho que é uma situação cultural bastante distante no Brasil. Na Europa as salas de teatro têm um dono, um programador, têm uma importância social que não é dada aqui. No Brasil só o Sesc tem esse entendimento com relação a espaços. O que mais acontece, seja com salas públicas, que nasceram com essa função, seja com as privadas, é que elas são caixas prontas para serem alugadas. Não tem uma linha curatorial definida, não tem uma cara, não tem um público comprando temporada. Tem lugares em que isso é muito diferente. Na Argentina, por exemplo, aqui do lado, tem temporada tal de música erudita, temporada tal de dança clássica, temporada tal de dança contemporânea e assim por diante. Isso não é uma cultura difundida no Brasil. Uma coisa é o espetáculo fazer três semanas de temporada, outra coisa é fazer dois anos de temporada, porque aí tem um questionamento: “Em março do ano passado eu tive mais público. O que aconteceu aqui?” Tem dono. Acho que é isso. As coisas são um pouco soltas aqui, sem questionamento, sem porquê, sem nada. Como você vê a qualificação dos produtores e gestores culturais no Brasil? Acho inevitável que aumente, porque cada vez mais tem dinheiro neste mercado. Principalmente com as novas leis de incentivo. E cada vez mais se profissionaliza. Mas onde há mais profissionais no mercado hoje, no meu entendimento, é onde tem dinheiro, que é a captação, a produção. Como não tem dinheiro na ponta do ingresso, as pessoas não estão se especializando na venda de ingresso, no serviço ao cliente, na experiência como um todo. Ir ao teatro, na maioria das vezes, é um grande estresse. É difícil estacionar, a bonbonnière é “supercaída”. O espetáculo é direitinho, mas a experiência como um todo é mais difícil. É bom observar que aquele cara que está assistindo ao espetáculo não é visto como um recurso. Recurso é o patrocinador, é o edital. É como no futebol, o dinheiro está na TV. Vai assistir a um jogo para você ver o 231


estresse que é. Porque ali o dinheiro não está na bilheteria, está na camisa, no jogador. O cidadão que está na arquibancada não importa para o time, não é? Se você fosse produzir uma peça para o Fringe, qual seria sua estratégia? Eu já pensei bastante nisso. Acho que é informar. Porque eu acho que as pessoas estão muito suscetíveis a apreciar o espetáculo, a comparecer, a falar, mas falta chegar informação. Os críticos estão ávidos por uma novidade, mas as coisas acabam passando desapercebidas porque não há comunicação. Eu faria uma estratégia de informação e comunicação dirigida a esse público que está interessado. Eu trabalharia assim. Para uma companhia de teatro dar certo você acha importante ter programas bem-pensados, com textos críticos, e uma preocupação com a memória? Acho fundamental. Eu trabalho com a Deborah Colker, a companhia vem da primeira metade da década de 1990 e eles têm tudo registrado. Não é à toa que eles têm sucesso. Só o talento não garante sucesso, tem que existir gestão. E nessa área, a gestão passa pelo registro, passa pela manipulação de informação. É o caso da TV Globo, eles têm o Cedoc, um excelente centro de pesquisa e registro, que é fundamental para você contextualizar. Estava vendo uma entrevista com o Cid Moreira e ele falava que o momento mais constrangedor foi quando uma mosquinha entrou no cenário do Jornal Nacional, em 1972 ou 1974, não sei. E aí em seguida mostraram a imagem da mosquinha! É um grande trabalho de gestão de informação. Não é à toa que os caras são os líderes. Claro que tem uma série de outros fatores, mas olhando por esse lado, você percebe a importância do registro e da gestão da informação. Até porque eles vivem disso, passando conteúdo jornalístico ou entretenimento. Afinal de contas, é tudo informação. O Casseta Popular tinha uma camiseta com a seguinte frase: “Vá ao teatro, mas não me convide.” Essa camiseta ainda provocaria risos? Acho que sim. Eu volto a dizer, a experiência pode ser desagradável. Comprar ingresso pode ser traumático, o antes do teatro é desconfortável, numa salinha, e tudo isso faz parte. Teatro muitas vezes pode ser muito ruim, mas pode ser bom também. Quer dizer, quando é bom, ele é muito bom! Diferentemente do cinema, que é testado, é visto, é mudado e tem essa possibilidade; 232


o teatro é feito todo dia. O mesmo espetáculo pode ser bom em um dia e ruim no outro. Mas eu acho que essa coisa do “não me convide”, hoje, vai muito mais da experiência como um todo do que da interação público/espetáculo. Acho que o público mudou, eles querem certo conforto, certo padrão, que o cinema já consegue dar. As pessoas pagam caro, mas elas recebem. Até a pipoca é uma fortuna. É a pipoca mais cara do mundo, mas é uma pipoca legal, a poltrona é confortável, o som é bom. É uma estrutura resolvida. Eu acho que temos ainda um gap grande a preencher, mas que já estamos no caminho. Essa frase ainda é válida, não na relação da arte com o público, mas no sentido da experiência como um todo.

233


234


Diva Pacheco Atriz da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém.

Diva, como começou a Paixão de Cristo? Nós começamos em 1951, fazíamos Paixão de Cristo de brincadeirinha, só a família. Minha mãe era doente por teatro, doente. Para tudo que era santo, ela fazia espetáculo, pastoril, Papai Noel. A vila era muito pequena e não tinha nada. Papai tinha vários hotéis. A cidade era turística, então nessa época aparecia muita gente. E tinha água mineral que curava, da fonte Fazenda Nova. Hoje, não cura mais porque está poluída. Mas antes curava males do fígado, estômago. Tinha uma lama que deixava a pele maravilhosa. Os homens iam para o sertão, levando queijo, carne de sol para vender. Paravam em Fazenda Nova, e tomavam dessa água; davam bebida e comida aos animais, dormiam em Fazenda Nova e seguiam. Essas idas e vindas passaram a trazer turistas. Mamãe foi exatamente para lá para tratamento de saúde, foi passear. Ela era de Panelas e papai, de Quipapá, Zona da Mata, foram para lá se tratar. Meu tio também foi. E ela já era viciada em teatro, desde os treze anos. Ela aprendeu com o colégio de freiras francesas, em Maceió. Todos nós entrávamos na dança, até papai, que odiava, que gostava era de política. Em 1951 ele leu uma revista que meu cunhado mandou para minha irmã, sobre um espetáculo na Alemanha, em Oberammergau. Veio daí a ideia de fazer a Paixão de Cristo. Meu irmão, Luis Mendonça, escreveu um texto 235


pequeno, e fizemos o primeiro espetáculo em 1951. Eu era o Demônio do Horto e uma menina de Jerusalém; meu irmão foi o Cristo; minha irmã foi Nossa Senhora; a cunhada foi Madalena; o outro irmão foi Pilatos. Quer dizer, era a família. O elenco era de vinte pessoas, todos da Vila de Fazenda Nova. Aproveitamos as casas antigas que havia para estadia dos turistas e fizemos a primeira Paixão de Cristo. Eu tinha onze anos e fazia o demônio com rabo, com o chifre, com tudo. Uma vez disseram: “Dona D., levei uma carreira tão grande que fui bater em casa, porque eu pensei que a senhora tinha virado o demônio.” Assombrava mesmo. Era só a sua família? Tinha um padre que ajudava a decorar o texto, que ninguém sabia. As falas eram longas. Meu pai odiava. E mamãe, que era a diretora, dizia assim: “Esse ano você vai ser Caifás.” Ele dizia: “Eu não vou ser nada.” “Você vai ser Caifás.” “Qual roupa eu faço?” “Vou fazer sua roupa.” Ela desmanchava um lençol do hotel e fazia. Papai não tinha barba, era um coronel, só tinha bigode. E ela arrancava o cabelo daquelas velhas e fazia uma barba. Não tinha microfone nem luz. Então apareceu Plínio, namorou comigo e se tornou meu marido. Ele era da Aeronáutica e trouxe de lá um gerador bem pequenininho que botava nas costas de quatro soldados romanos; acendia no início e apagava no fim do espetáculo. A partir daí, foi crescendo muito, foi ficando bonito. O túmulo de Jesus era no chão, perto da árvore de Cristo. Aí cavaram um buraco e botaram o meu irmão. O sangue era feito com açúcar, clara de ovos e anilina vermelha. E quando botaram o Cristo morto lá, os figurantes estavam chorando. Para figurante, era fácil demais. Num instante, meu irmão levantou-se depressa: “Me acudam, que eu estou sendo mordido por formigas!”, e saiu correndo, todo mordido por aqueles formigões. Saiu todo encaroçado. Ia um matuto assistir ao enforcamento de Judas e eles mesmos levavam alfinetes, prendiam suas roupas e entravam na cena. Foi quando começou a crescer o espetáculo. Aí foi mudando o cenário. Foi chegando público de fora? De Recife, de Caruaru, do interior. Veio o figurinista, Victor Moreira. Octávio Catanha, que fazia cenário. E eu não tinha sido promovida, continuava com o Demônio. Depois eu virei Verônica, mulher de Pilatos e contava o sonho que tinha com Jesus, pedia para não matá-lo. 236


Fazíamos o cenário e o figurino com papel de cimento. Emendávamos com cola de goma e cada um pintava uma parte. Artistas de Recife passaram a fazer parte do espetáculo. Meu irmão trabalhava na Secretaria da Fazenda e chamava as pessoas. Todos tiravam as férias na Semana Santa, porque o secretário da Fazenda era amigo do papai. Todo mundo ficava hospedado na casa de papai e trabalhava com boa vontade. Plínio trouxe um ônibus de jornalistas para assistir ao espetáculo, isso foi um estouro. Ficou lindo, a imprensa fez muita propaganda. Trouxe mais e mais gente. Com isso já tínhamos quatro hotéis, em Fazenda Nova, inclusive o Grande Hotel, que já era de papai. Mas como vocês mantinham a ocupação desses hotéis quando não tinha espetáculo? Mas tinha o Natal. Fazíamos o espetáculo de Natal – fazemos ainda. Eu fazia o Judas, para animar a vila. O Judas é muito engraçado, porque faz o testamento e sai de porta em porta: “Para quem você vai deixar a tua mulher?” E tinha o Serra Velho, que era o melhor, porque diziam que quem é serrado morre naquele ano – ninguém queria ser serrado. Como serrado? Batíamos na porta: “Fulano?” Aí responde – de noite, todo mundo morrendo de medo: “Diga. Quem está batendo na porta?” “Para quem você deixa a sua mulher?” Aí, era uma miséria! Saía tudo que era história. Os caras saíam com espingarda para matar a gente. Teve um ano que uma atriz foi para lá com a saia muito justa, coladinha. A saia rasgou quando ela pulou uma cerca, ficou nua – porque nem calcinha ela podia usar de tão justa que era a saia. E durante o ano, festejávamos o sete de Setembro no teatro. Fazíamos espetáculo de santo: Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Lourdes. Mamãe fazia muita festa de santo. “Vamos fazer uma peça hoje. Pega o lápis todo mundo.” Ela mesma ditava a peça, um texto tão doido. E assim ela fazia as festas. “Vamos fazer a festa de Santana.” “Mas não tem dinheiro.” “Vamos fazer pastoril para ganhar. Pastoril ganha dinheiro.” Aí aqueles fazendeiros iam, brigavam: “Cem contos para Diana dançar a noite todinha debaixo do palco.” O palco era um caminhão; as pastoras ficavam dançando em cima e a Diana, embaixo. Ganhávamos dinheiro para fazer as festas. Quando faltavam dois dias, fazíamos o balanço para saber se o dinheiro dava. A festa de Santana era a 237


maior de Fazenda Nova. Mamãe comprou até um carrossel que tinha um candeeiro em cima e um sanfoneiro tocando a noite todinha. E como vocês tiveram a ideia de montar a Nova Jerusalém? Quando Plínio viu que Fazenda Nova não lotava mais, disse: “Seu Epaminondas, eu vou construir uma cidade.” Papai disse: “Você está doido?” “Vou construir um teatro.” Aí falamos com Alfredo de Oliveira e com Paschoal Carlos Magno, que era ministro do Turismo, que era compadre nosso. Com isso conseguimos a verba para comprar o terreno. Para começar Nova Jerusalém vendemos uma casa em Recife, as joias de família, tudo o que tínhamos. Compramos um Jeep 1951, uns telefones da Aeronáutica, que não falavam nada, para nos comunicarmos de um cenário para outro. Aí fomos fazer cinema para ganhar dinheiro e fazer a Nova Jerusalém. Como vocês iam fazer cinema? Nós fizemos doze filmes, e o dinheiro que ganhávamos era todo para a construção da Nova Jerusalém. Porque lá ninguém sabia trabalhar em pedra. Nós trouxemos um senhor do Porto para ensinar as pessoas a fazer colunas e o desenho de Herodes. Hoje, tem um parque de esculturas maravilhoso em Fazenda Nova graças a esse ensinamento! Mas o que é Nova Jerusalém? É uma cidade, tem tudo. Tudo o que você sonhar. Só não tem médico de plantão e hospital, mas o resto tem tudo. Tem um hotel quatro estrelas, uma lojinha de conveniência, tem água, tem luz. As pessoas de Fazenda Nova sobrevivem da Sulanca de Caruaru, de Santa Cruz – vocês já ouviram falar? Compram em São Paulo os retalhos nas fábricas e começam a costurar para fazer roupa em Santa Cruz. Quando chega Semana Santa, os colégios param, a cidade para. Em um colégio se hospeda os soldados, em outro a cavalaria etc. E uma parte é só figurante – a maior parte vai ser figurante. Tudo vem de lá mesmo. Três ou quatro atores é que vão para lá fazer os papéis principais. Só pra se ter dimensão: quantas pessoas foram na última Páscoa? Oitenta mil pessoas.

238


E quem escolhe esses atores convidados pra fazer o papel principal? Escolhemos quem estiver desocupado na época, porque todos eles têm uma novela para entrar no ar. A gente escolhe e vai saber se eles têm tempo. Claro que escolhemos os mais engraçados, porque tem que ser quem traga público. Mas vem muita gente para pagar promessa. Vem gente de Belém de ônibus, meu filho, com a passagenzinha contada. Tem gente que paga os ingressos com moedas de R$ 1,00. Quanto é o ingresso? Varia de R$ 25,00 a R$ 60,00. Sexta-Feira Santa é o dia que tem mais público e é mais caro por isso, é dia de penitência, os pagadores de promessa querem ir na Sexta, não adianta. Agora está tudo moderno, eles levam um isopor com a comida, só compram lá o refrigerante. Trazem as cadeirinhas e armam, armam a mesa e ali lancham. E entram no espetáculo, entram em Nova Jerusalém. Às quatro horas os portões são abertos e todo mundo entra para conhecer o teatro. Na Quarta, Quinta e Sexta-Feira Santa não sai ninguém de Fazenda Nova. A maioria é católica e evangélica. Se Maria chora, eles choram, com Jesus é a mesma coisa. Vão por fé. Os jovens ficam nos bares, na rua, mas as pessoas mais velhas vão por fé, eles têm fé na Paixão de Cristo. Vem gente do Crato, dormem em Arco Verde, vêm para Caruaru, para Fazenda Nova, chegam cedo, assistem a tudo. Agora, do lado de fora da Nova Jerusalém, quando o público vai saindo, organizamos shows. Traz Dominguinhos, Elba Ramalho. Mas não faz tanto sucesso. A maioria sai chorando. Quando eles olham a mão de Jesus tremer, quando Jesus leva uma chicoteada, eles choram três dias. Vocês são católicos? Eu sou católica, desde que nasci, meu pai e minha mãe também. Meu pai era daqueles chatos que quando via um bispo saía correndo, andando ajoelhado, pedia a bênção. Todos os filhos pediam a bênção. Eu não criei os meus filhos assim, eles não quiseram, não aceitaram. Mas eu sou católica. Quando o espetáculo começou a fazer sucesso não apareceram outras pessoas querendo copiar? Todos! Em Gravatá, Arco Verde, Triunfo, Recife. Hoje são 130 Paixões de Cristo. Tem no agreste e no sertão inteiro. Eles preparam o figurino todo, copiam 239


o nosso, mas só que eles são pobres, os bichinhos. As prefeituras dão bem pouco dinheiro. Mas eles preparam o espetáculo. Isso eu acho importante, porque quando nós começamos não tínhamos nada. Tem um retrato de meu irmão, como Pilatos, cujo manto era uma saia de bolinha da minha cunhada – já pensou Pilatos com uma saia de bolinha? Uma vez, trouxeram um ator muito bom de Recife para fazer Herodes. E ele foi para a rua, se embebedou e ninguém notou. A mãe de minha cunhada morava num corredor perto de onde o ator estava hospedado, veio o ator sem roupa – isso já três horas da tarde –, embriagado. Mamãe disse: “Esse não vai fazer Herodes. Pode botar... Arranja um carro e manda embora.” E papai disse: “E quem vai fazer Herodes?” “Você.” Papai: “Eu? Mas eu nunca vi o texto de Herodes.” “É você quem vai fazer.” E ele fez Herodes, cumpriu o dever dele. No outro dia, arranjaram outro Herodes. Mas hoje é tudo dublado. É tudo dublado? É tudo dublado, porque ninguém ouve. Mas se perdermos uma palavrinha, atrapalha toda a encenação. Então, mesmo dublado, temos que saber o texto na ponta da língua. A coisa é muito séria. Uma das coisas mais impressionantes é construir uma cidade-teatro de cem mil metros quadrados. Foi aos poucos? Cada ano, um pedaço. Quando fomos morar lá, eu com os quatro filhos, dormíamos num arruado e fazíamos as refeições em outro arruado defronte, onde hoje é uma torre de som. Ali eu recebia embaixador, governador. Chegava o governador: “Vim jantar aqui.” Aí eu dizia: “Valha-me Deus, doutor Nilo Coelho!” Mas ele gostava de xerém, sopa, carne de charque... Não tinha geladeira. Era o retrato da miséria. Fritávamos o peixe todo antes de chegar a Semana Santa. Secávamos para guardar e não estragar. Com o tempo, Plínio conseguiu construir uma escola, que hospeda os atores, e alugou um prédio para botar a imprensa. Nós tínhamos também um coral, o Coral do Carmo, que cantava quando terminava o espetáculo. Conte um pouco a maneira de montar o espetáculo. Todos recebem. Robson consegue patrocínio com o governo do estado, que ajuda muito. Só a verba necessária para recuperar a estrada já seria impossível para nós fazermos sozinhos. 240


Tem que recuperar a estrada antes da Paixão de Cristo, é isso? De Caruaru à Fazenda Nova tem estrada, mas era toda de barro. Doutor Nilo Coelho, da família Coelho de Petrolina, fez a estrada. A estrada é conservada, e demarcada, porque é muito público, é muito ônibus, é muito carro. Porque tem quem vai assistir ao espetáculo quer ver Fazenda Nova, conhecer Brejo da Madre Deus, por causa da água medicinal. Quem teve a ideia de chamar atores da Globo? Em 1968 nós fizemos A compadecida no Brejo da Madre Deus, e Plínio ficou muito amigo de Armando Bógus, Antônio Fagundes e Ari Toledo. Estávamos construindo Nova Jerusalém. E Plínio levou todos os atores para mostrar Nova Jerusalém. Aí Antônio Fagundes – que é muito amigo nosso – disse assim: “Meu Deus! Será que um dia eu subo nesse palco?” E Armando Bógus disse assim para Antônio Fagundes: “Claro que vamos subir!” E isso ficou. Então começamos a experimentar. Porque quando Pimentel saiu, o espetáculo estava já arriando. Plínio foi com Robson ao Rio, falou com Antônio Fagundes. De outra vez, arranjamos Fábio Assunção – por sinal, foi um Cristo lindo. Silvia Pfeiffer fez Nossa Senhora. E Pilatos foi Jackson Antunes. Foi muita gente para ver Fábio Assunção de perto, deu certo. Desde então, todo ano levamos três atores da Globo, e dá muito certo. Mas tem de levar a sério. Afinal, é muito sacrifício que as pessoas fazem para ver o espetáculo. Como é o figurino que vocês usam? O clima de Fazenda Nova é seco, então não estraga a roupa. Se fosse em Recife, mofava tudo. Xuruca foi quem ficou responsável pelo guarda-roupa, quando eu saí. Penduramos num cano, cobrimos as roupas principais. E as roupas de soldados romanos e dos soldados judeus são lavadas e guardadas. Tem época que tem que lavar, porque se chover pode molhar e estragar algo. E depois da Semana Santa, lavamos e engomamos tudo. Como acontece a crucificação, a coisa do ator ficar pendurado àquela altura? Você está querendo saber demais! [risos] Tem uma argola de ferro no calção do ator. Tem um armador de rede na cruz. Os pulsos são amarrados e os pregos nas mãos são de isopor, imitando o de verdade. Colocamos o sangue e batemos os pregos. Nos pés e joelhos, a mesma coisa. Mas já me disseram, 241


todos eles, que, do meio pro final, passam mal. Porque ficam parados, morrem, são carregados. Eles dizem que essa argola prende a circulação. Todos eles dizem a mesma coisa. Agora, o Judas é pior. Por quê? Porque o Judas usa um calção todo de lona, todo entrelaçado com armadura de rede nas costas. Embaixo tem uma porção de colchões, e ele cai em cima de vez. Teve um ano que ele caiu e quase morreu, caiu fora do colchão. Tem vários colchões, mas a pessoa vem tonta, rodando. Mas eles treinam para isso? Muito! Tudo só acontece depois de muito ensaio. Começa às sete horas o ensaio e termina de madrugada. E Jesus e Judas são os que mais treinam. E tem a consciência de Judas, que sempre está presente. Como assim? Porque Jesus era o maior amigo de Judas, tanto que ele era quem tomava conta de todo o dinheiro dos apóstolos. Era riquíssimo e doou tudo para a Igreja, para ficar junto de Jesus. Ficou, então, o remorso. Como quando se faz uma farra, no outro dia fica-se arrependido, e pensa-se: “Se eu não tivesse feito, estava melhor.” Aí Judas fica pensando: “Como é que eu fiz isso? Vendi por tão pouco um homem desses.” O público termina tendo pena dele. Tem uma palavra de Judas que é belíssima, e foi Plínio quem escreveu o último texto. Judas diz assim, quando ele vai morrer: “O desencanto entrou no meu coração, porque ele fez o que jamais pensou fazer com o maior amigo”. O desencanto entrou no meu coração. De todos esses personagens, o Judas é o mais difícil de fazer? Eu acho. Judas, Caifás, Anás e Pilatos. Pilatos é lindo! Anás é sogro de Caifás. São os dois que compram Jesus. Pilatos não tem coragem de soltar Jesus, bota Barrabás, e o povo não aceita. Herodes era falso, não queria entrar em briga. Ficou o pobre do Pilatos lavando as mãos. A cena de Pilatos é belíssima. A entrada de Pilatos numa biga com dois cavalos pretos, dois cavalos brancos, você enlouquece! É linda, linda, linda! O cenário de Pilatos é belíssimo. Aparece Pilatos, que começa a discutir com Anás e Caifás. Os dois querendo prender e matar Jesus. E Pilatos procurava, mas não encontrava defeito em Jesus. 242


Por isso que eu digo: o papel de Caifás é muito importante, porque é uma figura bonita. Vitor Moreira fez um levantamento sobre Caifás, que era tão vaidoso, era o maior sacerdote. Andava com a roupa cheia de sininho pendurado para, quando passasse na rua, todo mundo visse. Ele queria de qualquer maneira matar aquele homem, para mostrar que tinha poder. Anás, não, já era fraco, velho, mas apoiava tudo o que o genro fazia. Então, Caifás é um dos caras mais importantes do espetáculo; e ele só não entra no Horto e na ceia. A ceia é a mais bonita, emociona todos, choram. O Horto, eu não gosto, fiz muitos anos. Eu mesma fiquei com medo de mim, fiz o demônio muitos anos, não assisto. Quando chegam as mulheres de Herodes, quase nuas, os homens endoidam. Nem olham para o pobre do Herodes. O que é que é o teatro para a senhora? Minha vida, né? Fui eu quem fiz Nova Jerusalém com Plínio, dei a vida toda, passei a vida toda nela. É como se fosse um filho que não envelhece, se renova a cada ano. Nova Jerusalém, a cada ano, tem uma novidade, e vai ficando mais nova. É um filho bom, que não envelhece. Vocês montam a mesma peça. O que muda de um ano para o outro? O texto é o mesmo que foi escrito em 1967. A roupa não, aí vai melhorando. Todo ano melhora o cenário, todo ano melhora uma coisa. Porque tudo é caro, porque tudo é em pedra. Não pode ter nada falso, é tudo pedra. Começamos sem som, depois botamos umas caixas de som, botamos microfone sem fio pendurado nos cachos de uva. Botamos gerador, não resolveu. Nada resolvia. Aí botamos umas caixas de som, resolveu, mas ficou feio porque era cheio de caixa de som, você não via nada, só via as caixas de som. Agora tem uma torre de som, tudo moderno. Todo mundo assiste ao espetáculo, todo o mundo sai satisfeito. Eu estou elogiando, eu mesma, mas eu tenho que elogiar, porque se fosse ruim, eu dizia.

243


244


Paulo Borges Produtor do São Paulo Fashion Week.

Atualmente, notamos uma aproximação considerável entre a moda e o pensamento cultural, até num sentido de política institucional. Como você encara essa aproximação? Trabalho com moda há quase trinta anos. Creio que o grande desafio que se apresentou durante esse tempo foi justamente o de romper a linha imaginária que separa a moda dos movimentos culturais. Isso decorre da própria história do país e da maneira como a indústria de moda se desenvolveu aqui. Nos anos 1960, por exemplo, o movimento encabeçado por Lívio Rangan misturava absolutamente tudo: teatro, música, artes plásticas. O próprio Movimento Modernista era completamente integrado. Isso acabou se perdendo ao longo do tempo. O Brasil desenvolveu-se de maneira a distanciar essas linguagens, que acabaram – num movimento muito pouco moderno – se segmentando. Fato é que essa segmentação não exprime o que a sociedade vive hoje em dia. Os jovens de hoje misturam todas as linguagens, e a moda é isso. A moda é um processo de comportamento, não mero processo da roupa. A roupa é instrumental. A inspiração do universo da moda é completamente plural e participa de diversas áreas. Os movimentos sociais acabam se refletindo na moda, tornando-a um funil de convergência daquilo que a sociedade está vivenciando naquele momento. A moda não quer disputar com a arte, seu 245


lugar não é o museu, mas certamente se apropria de elementos artísticos. Creio que, ao longo desses trinta anos, o norte de nosso trabalho tem sido justamente a criação de uma cultura de moda. Por exemplo, nosso projeto para a São Paulo Fashion Week sempre foi ambientá-lo no prédio da Fundação Bienal. A cada edição da São Paulo Fashion Week, propomos um tema específico e uma série de debates, indo da arte a causas ambientais. Hoje em dia vemos trabalhos feitos a quatro ou seis mãos, com ilustrações e estampas realizadas por artistas visuais, por exemplo. Existe um trânsito de criações. Como você encara o fazer dos alfaiates e costureiras, esse trabalho silencioso que se estende por gerações aqui no Brasil? Temos uma cultura manual riquíssima. Porém, creio que corremos um risco sério de perdê-la. As novas gerações não veem tanto interesse em herdar esses saberes manuais – no geral, transferidos hereditariamente – e estão abandonando um princípio e um processo extremamente relevantes para o registro cultural brasileiro. Estamos sistematicamente perdendo uma mão de obra preciosa, que traz uma cultura tradicional de qualidade. Afinal, não temos um plano eficaz que traga isso à luz, que resgate isso como um princípio de diversidade cultural, e muito precioso para o Brasil. Não falo apenas de alfaiates e costureiras. Refiro-me igualmente a floristas, chapeleiras, bordadeiras, rendeiras. Em cada região do Brasil há uma imensa variedade de fazeres manuais legítimos. São teares, técnicas de tingimento, bordado, costura. Como trazer esses saberes para a moda? A transferência para a moda se dá quando empregamos a linguagem do design. Isso nos sugere um outro problema, afinal, a bordadeira que mora no interior da Bahia e leva um mês para fazer cinco metros de renda receberá em torno de R$ 300,00 por seu trabalho. Já a pessoa que comercializa os dois vestidos feitos a partir desse material vai ganhar R$ 5 mil. A bordadeira segue sem nenhum tipo de incentivo ou fomento para se atualizar, transpor esse saber clássico para uma realidade contemporânea. Como lidar com esse conhecimento único, oral, cujo ensino ainda não foi sistematizado? Talvez seja necessário sistematizar essa fonte de informação para resgatá-la e evitar que se perca de todo. Isso demandaria um tempo de crescimento, de inclusão social através da cultura. Não da cultura tida necessariamente como arte, e sim como diversidade de expressões. 246


Porém, se sistematizarmos esse saber, não estaremos eliminando a principal fonte de renda de seus detentores originais? Essa é uma questão delicada. Por um lado, existe essa possibilidade que você aponta em sua pergunta. Por outro, sabemos que, se não trabalharmos esses saberes no sentido de sistematizá-los, eles podem simplesmente desaparecer. Com efeito, já estão desaparecendo. Nos anos 1980, havia uma considerável riqueza de modelistas e alfaiates no Brasil. Porém, na década seguinte, a alfaiataria da roupa brasileira passou a ser realizada no Uruguai, porque era mais barato e a qualidade do tecido era melhor. Ou seja, uma série de profissionais se encontrou sem trabalho de um momento para outro. Hoje, a imagem mental que nos vem à cabeça quando se fala na figura do alfaiate é a de um velhinho com óculos, curvado sobre sua fita métrica e seu giz de riscar terno. Uma figura do passado. Porém, o alfaiate – o modelista – é uma das figuras mais sólidas e necessárias da indústria da moda. Sem ele, não há criação que fique em pé, não importa o quão brilhante seja o estilista. Você poderia falar um pouco sobre nossos primeiros grandes estilistas, como Dener e Clodovil? Dener e Clodovil tornaram-se figuras mitológicas do Brasil contemporâneo porque vestiram todos os estereótipos do personagem de um estilista. Tanto caíram na cilada do estereótipo como se valeram dela. Até porque precisavam construir seus nomes num determinado ambiente. O Brasil de então tinha uma economia fechada. Como a tecnologia da comunicação ainda era muito precária, o mundo era algo distante. Tudo era muito longe, e nosso papel como país terceiro-mundista era claríssimo. Quando alguém viajava, voltava com as malas cheias de queijo, pasta de dente, desodorante, roupa, tecido. Não éramos turistas, éramos muambeiros de nós mesmos. Foi esse o ambiente onde Dener e Clodovil nasceram e se iconizaram. Uma coisa se pode dizer sobre o trabalho de ambos: tanto Clodovil como Dener defenderam desde o princípio certa brasilidade na moda. Ambos partiram do princípio de que nossa moda poderia se inspirar em nossas próprias riquezas culturais e naturais, bem como nossa diversidade racial. Nesse sentido, a atuação de Clodovil foi particularmente marcante. Lembro da campanha que ele fez quando lançou o jeans Clodovil Hernandez. O material publicitário mostrava a imagem de um cacho de bananas inteiramente revestido em jeans. Era maravilhoso. Já Dener assumiu, por seu turno, o 247


papel de vestir as mulheres importantes da época. Seu trabalho passou a ser referencial, afinal, ele vestia as mulheres mais bonitas e proeminentes do país, incluindo a primeira-dama. Isso foi muito importante, no sentido de estreitar relações entre o design brasileiro e o próprio ambiente nacional. Clodovil também buscou vestir pessoas importantes, mas seu traço na cultura brasileira foi mais profundo. E Flávio de Carvalho? Poderia falar um pouco sobre ele? Sou da opinião de que éramos muito mais modernos em 1922 do que em 2002. Há oitenta anos os princípios eram muito mais intensos do ponto de vista da criação, do fomento e da efervescência. Além de um grande artista, Flávio de Carvalho era um autêntico transgressor cultural, porque transitava em vários ambientes. Ele também defendia a ideia de que a moda reflete o comportamento e o pensamento de uma sociedade. Quando ele criou o “new look” do homem – que era o homem de saia – e fez uma passeata pelas ruas de São Paulo, a mensagem que tentou passar foi de que o Brasil tinha uma forma própria de ser, de viver e de se comportar. O Brasil precisava romper com a colonização cultural europeia, que era muito intensa no país. Portanto, foi um movimento em função da transgressão e da reflexão. A intenção não era apenas lançar moda, e sim romper com certos padrões e posturas vigentes. Como se encontra atualmente a questão do material no Brasil? O Brasil tem um histórico fabuloso de capacidade, sabedoria e vocação para a indústria têxtil. E houve, com efeito, um auge nos anos 1970. Depois começou a entrar em declínio. Hoje o Brasil precisa entender quais são suas vocações de verdade. À vocação, alie-se fomento, investimentos, estrutura. Afinal, o mundo inteiro produz muito bem. A China, hoje em dia, é uma potência incontornável em termos de produção: sua seda é melhor e mais barata que a nossa, seu tecido plano é melhor e mais barato que o nosso. O que ocorreu, então, nessas últimas décadas? Falta de planejamento, falta de investimento, falta de conhecimento e falta de visão de Estado. É aí que entra o preconceito. A moda não foi entendida pelo governo como uma indústria de vulto, como a automobilística. Disso, decorre que nossa indústria ficou muito reduzida e, consequentemente, incapaz de atender à demanda atual do universo da moda. Atualmente, temos milhões de matérias-primas que têm a ver com tecnologia e inovação. Hoje o tecido pensa, respira, aquece, 248


pega forma. O tecido é elástico, o tecido tem conforto. Esses atributos dizem respeito a tecnologias que não encontram muito espaço aqui no Brasil. Você poderia contar um pouco sobre o início da São Paulo Fashion Week? Como disse, trabalho com moda há praticamente trinta anos. Quando comecei, o mercado e a economia ainda eram fechados. A inflação era galopante, e não conseguíamos ter uma ideia de moda no sentido de coleção, desenvolvimento e criação. A inflação criou uma série de monstros. Um deles era a questão do volume: não podíamos produzir nada com volume, porque não conseguíamos distribuir a produção a tempo. Dez dias depois da entrada do produto no mercado, ele já não tinha mais preço. Alterava-se o preço do produto quase diariamente, por conta da influência. Portanto, tudo era feito em baixa escala. Era uma produção voltada ao balcão. Ficamos três décadas nessa inflação, o que acabou criando um sistema engessante, tanto para a moda quanto para a indústria. Era esse o cenário quando entrei, no final dos anos 1970, início dos anos 1980. Aos dezoito anos de idade, comecei a viajar para cobrir moda em Paris, Milão, Londres, e ficava fascinado com esse conceito de semana de moda. Em Paris, por exemplo, os desfiles ocorriam dentro do Louvre. Ou seja, o maior museu do mundo abrigava o lançamento dos estilistas na França. Depois de cinco minutos de desfile, eu já não conseguia prestar atenção na roupa. Observava a quantidade de modelos na passarela, a colocação da luz, as pessoas sentadas na primeira fila, aquela efervescência toda. Prestava atenção no networking mesmo, no sistema, em como tudo se desenrolava de maneira organizada e fluida. Entendi de imediato que aquilo precisava acontecer no Brasil. Quando voltei, comecei a discutir essa possibilidade com algumas pessoas. A opinião mais comum que ouvia de jornalistas da área era de que o Brasil não tinha moda de verdade. Não tinha indústria, não tinha mercado, apenas se limitava a copiar. Mas não era verdade. O próprio ato de se vestir já é uma expressão de moda, não é? Aquilo ficou na minha cabeça até 1992, quando fui convidado a fazer um trabalho para a Elite. Era um concurso mundial de modelos, e eles me convidaram para organizar o desfile. Pedi permissão para fazer do meu jeito, e eles deram. Foi no antigo Palace. Coloquei no palco do Palace um octeto de violoncelos com uma cantora lírica, e eles fizeram as Bachianas. Pus um grupo indígena, que fazia uma espécie de ritual de chuva. E, no meio, as modelos desfilando roupas de jovens estilistas então desconhecidos. Quando a plateia viu aquilo, entrou em estado de choque. Era quase Macunaíma na moda. Uma 249


mistura de referências culturais brasileiras nunca vistas num contexto de moda. Quando acabou, todo mundo queria saber o que era aquilo. Perguntaram até o que estavam tocando. Em seguida, Cristiana Arcangeli me disse que havia adorado o desfile, e disse que tinha interesse em patrocinar algum projeto meu. Foi quando lancei – em 1993 – o Phytoervas Fashion, projeto pioneiro para a cultura do patrocínio da moda, voltado exclusivamente para jovens estilistas. Contamos com Alexandre Herchcovich, Fauze Haten, Walter Rodrigues, Ronaldo Fraga, Marcelo Sommer. Todos eles nasceram com esse projeto, que chamou a atenção da imprensa imediatamente. Foi como se o país acordasse para a moda após um marasmo de décadas. Para mim, foi esse o embrião do São Paulo Fashion Week, que nasce como calendário de moda em 1996, com algo entre trinta desfiles abrangendo grifes do Brasil inteiro. Esse movimento foi automaticamente absorvido tanto pela imprensa quanto pelo mercado. Posto melhor, ele começou a organizar o mercado, que era extremamente solitário e desarticulado, apesar de seu potencial (de produção e inclusão social) gigantesco. Eram trinta mil empresas, cada uma fazendo por si. O São Paulo Fashion Week fez com que isso tudo confluísse para um mesmo lugar. Convergiu o processo e criou uma competitividade natural, muito salutar para o processo criativo. Nossa prioridade era investir na qualidade, na inovação e na criação, donde começamos a dar inputs para a cultura brasileira. O primeiro São Paulo Fashion Week, por exemplo, foi em homenagem a Portinari. O segundo, a Lasar Segall. Comecei a propor essa discussão para a imprensa, mostrando que esses artistas também desenhavam roupas e figurinos. Fomos a museus, pegamos esses desenhos e expusemos para as pessoas. Pedia para que os estilistas estudassem aquelas obras e dessem sua interpretação. Foi esse tipo de preocupação que acabou tornando o São Paulo Fashion Week um evento mundialmente reconhecido, tanto pela imprensa quanto pelos compradores, como um formato inovador e único. É seguro dizer que nenhuma outra semana de moda é igual ao São Paulo Fashion Week, porque conseguimos trazer uma dinâmica de diversidade, informação e cultura para uma semana de moda. Nos outros países – na França, na Itália ou na Inglaterra – isso já não fazia tanto sentido. Além disso, tentamos ser pioneiros em todas as áreas. A primeira semana de moda a transmitir os desfiles ao vivo pela internet foi a São Paulo Fashion Week, em 2000. A primeira semana de moda sustentável no mundo é a São Paulo Fashion Week; 95% de todo material usado é reutilizado, fazemos compensação de carbono e outros procedimentos. 250


Como pensar a questão do fomento aos novos nomes da moda? Em 2000, a São Paulo Fashion Week já contava cinco anos. Como havíamos parado de fazer o Phytoervas Fashion em função do São Paulo Fashion Week, muitas pessoas me pediam um projeto voltado para os estilistas jovens. Portanto, criamos o Amni Hot Spot, um projeto inspirado no Phytoervas Fashion. Foi a primeira incubadora de moda. Selecionamos – tanto em faculdades como fora, pois o Brasil é campo fértil para autodidatas – jovens que tivessem talento para design, mas que não tinham estrutura para criar. Então, incubamos nove jovens estilistas para o Hot Spot. Eles passaram a ganhar a coleção, o showroom, uma consultoria técnica, uma consultoria de mercado de varejo. Esse projeto se estendeu até 2006 e lançou outra safra de jovens estilistas que hoje está no São Paulo Fashion Week: Dudu Bertolini, Wilson Raniere, Samuel Cirnansck, Priscila Dalrot, Simone Nunes e outros. No entanto, acabamos percebendo que esse formato começava a se esgotar também, porque o processo criativo é tão dinâmico quanto complexo. Por mais que disponibilizemos ferramentas, isso não significa que o estilista vá absorver e incorporar tudo aquilo à dinâmica de seu negócio. Ele pode ser muito criativo, mas precisa de tino, mão, para o negócio crescer. Desde o fim desse formato, no entanto, estamos estudando novos projetos. Muito em breve lançaremos o Movimento Hot Spot, a terceira geração desse projeto para jovens. O Movimento Hot Spot abrangerá várias áreas no Brasil. Será uma plataforma plural, dedicada não apenas ao design e à moda. O projeto abarca quinze categorias profissionais que transitam pelo universo da moda. Afinal, falar de moda hoje em dia é falar de artes plásticas, fotografia, arquitetura, música, cenografia, tecnologia, inovação, distribuição. Haverá um prêmio anual para ideias, pois nossa intenção primordial é fomentar a inovação. O projeto é de alcance nacional e durará um ano. Ao cabo desse período, realizaremos a primeira grande final do movimento. Depois, começa todo o processo de formação de uma empresa júnior para esse segmento de jovens profissionais. Você qualificaria a indústria da moda como cruel? Bom, creio que a questão não seja assim tão simples. Um pouco como o futebol, a moda trouxa para o jovem – em especial, o público jovem feminino – o sonho do sucesso, da riqueza. A moda dialoga com o novo, com autoestima, com o desejo de colocar o indivíduo sempre para cima. É óbvio que isso seduz. Disso advém a popularização da moda e seu papel como plataforma 251


internacional. A moda se expandiu para um universo muito maior do que aquele onde se situava anteriormente, que era mais profissional. É isso que torna complexo o discurso da moda. Há duas décadas, esse universo era muito mais restrito. O consumidor via a moda na vitrine, já traduzida para o seu olhar. Hoje, o consumidor vê a moda lançada em seu ponto inicial. Até as pessoas entenderem que aquela imagem da passarela não devia ser transposta para a rua “literalmente”, passaram-se quinze anos. As plataformas de divulgação são tão maciças hoje em dia que qualquer pessoa é atingida. O mundo ficou muito pequeno e sem filtro. Essa ausência de mediação faz com que a informação vá do ponto de partida ao ponto final sem nenhum tipo de interpretação. Criou-se então um grande desejo de referência, ou seja, as pessoas se indagavam se deviam ser magras daquele jeito, usar aquelas roupas, ser como modelos. Essa nunca foi a mensagem da moda – esse fenômeno se deu por conta da falta de filtro que o mundo vivencia. A informação acaba transbordando, atingindo o consumidor final sem nenhuma tradução. Mas a moda é, em sua expressão de lançamento, como um balé. Todo mundo pode achar o balé lindo, mas quem consegue dançar? Como a moda é – em tese – algo para o cotidiano, para o dia a dia, isso acaba gerando uma confusão. Na verdade, o que se expõe são apenas caminhos, inspirações. Falta filtro, apenas. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre um caso que nos parece fundamental, o da Havaianas. A seu ver, trata-se de um case de marketing bem-sucedido ou um processo criativo mais profundo, que realmente captura o modo de ser brasileiro? Esse é um ponto de partida muito interessante para discutirmos a força da moda como expressão de cultura, identidade e design. A Havaianas era uma sandália de borracha que não deforma e não solta tira, consumida em massa no Brasil pela classe operária. Quando a empresa entendeu que poderia trabalhar inovação, tecnologia, design e cultura – além de trazer uma identidade específica para aquele produto –, ela reinventou a indústria inteira. A partir do momento em que eles colocaram informações de desejo, design e cultura brasileira, conseguiram vender para o mundo uma identidade de Brasil. Afinal, o Brasil é um país quente com quilômetros de praia: chinelos fazem sentido. Associamos imediatamente um par de Havainas com caminhadas na praia, água de coco, pôr do sol. Foi o trabalho com esses elementos que transformou a Havaianas. Naturalmente, a empresa acabou crescendo ainda 252


mais em termos de tecnologia, o que ampliou e diversificou seu produto. Há Havaianas com quatro tiras diferentes, dois solados diferentes, estampas. Mas tudo começa com a integração desse imaginário brasileiro ao produto. Esse é o sucesso da Havaianas, tanto no Brasil quanto lá fora. Como pensar a exportação da moda brasileira sem passar pelo exótico, pelo caricato? Não é tão simples quanto no caso da Havaianas. No caso específico da moda e do design, você incorre no risco de criar caricaturas. Não só daquilo que somos, mas também do que as pessoas querem. Afinal, o que o mundo ainda quer do Brasil? Diversão. O mundo exige do Brasil a caipirinha, o futebol e a mulata. Mas não podemos nos resignar a vender isso, porque somos muito mais. Moda não se faz para o vizinho: é global.

253


254


Juliano George Basso Produtor do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros.

Fala um pouco sobre São Jorge, sobre a Chapada dos Veadeiros, a cultura local, o garimpo e tudo que aconteceu lá. São Jorge é um lugar de natureza exuberante, que começou a ser colonizado em 1912, com os primeiros achados de quartzo. Depois teve novo pico de ocupação, durante a II Guerra Mundial, em 1942, quando acharam outra jazida grande, e vieram garimpeiros de vários lugares do país. Na época em que o garimpo entrou em decadência, a região começou a ser descoberta pela sua beleza natural e, aos poucos, o ecoturismo passou a movimentar a economia do lugar. O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros foi criado, e começaram a aparecer vários projetos de preservação, como, por exemplo, o da WWF, que ajudou, inclusive, na formação de associações. Quando eu morava em Goiânia e estudava Filosofia na Universidade Federal, fui muito a São José. Depois morei muito tempo fora do país, na Espanha, Índia, África. Em 1997, quando voltei para o Brasil, fui morar em São Jorge. Em 7 de setembro do mesmo ano, comecei o trabalho com a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, propondo conhecer um pouco mais a cultura da região, integrando a perspectiva do humano na questão da fauna e da flora e no desenvolvimento do ecoturismo local.

255


E como estava a cultura local? Existiam manifestações ainda muito vivas? Estava muito viva, mas não adaptada a esse novo momento, que seria do ecoturismo. Existia uma vivacidade nas comunidades, com algumas tradições sendo mantidas pelas pessoas mais velhas, mas com certa dificuldade de repassar para os mais novos. Então, começamos um trabalho de registro, por meio da ideia do patrimônio imaterial. Junto a isso, passamos a fazer o encontro de culturas tradicionais, para mostrar um pouco da cultura da região e possibilitar o encontro entre os produtores de cultura das comunidades, que viviam muito isoladas. Em 1998 e no ano seguinte, fizemos um festival de cultura, na Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, e juntamos os grupos locais com coisas da capital, de Goiânia, mais voltadas ao teatro. Em 2000, sentimos a necessidade de fazer uma coisa mais específica, mais local, e passamos a fazer o Encontro das Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Trouxemos os grupos da região, música caipira, criamos um espaço para a troca de experiências. E levamos coisas de fora também, para dialogar com os grupos locais, como o Cordel do Fogo Encantado, que na época não tinha tanta inserção na mídia. No segundo ano, misturamos mais as coisas, trouxemos os Kalungas, os povos indígenas do Tocantins, os krahôs, o Naná Vasconcelos, que fez uma oficina incorporando isso tudo. Em 2003, com a mudança política no país, a vontade de apoiar essas manifestações foi maior. Então conseguimos um patrocínio da Petrobras, e o encontro cresceu um pouco mais. Levamos grupos do Parque Nacional do Grande Sertão Veredas para trocar experiências e, no final, tivemos um show com Hermeto Paschoal. Nesse ano conseguimos uma boa divulgação. Esse é um dos objetivos do projeto, divulgar as culturas tradicionais brasileiras. Então a cada ano fomos trazendo mais pessoas relacionadas à cultura, e o encontro foi se consolidando. Você tem visto interesse de pesquisa em relação a essas culturas em outras áreas além da música? Em um dos encontros, levamos um pesquisador do Congo, que se chama Kazadi Wa Mukuna, um etnógrafo que escreveu um livro sobre a influência Bantu na música popular brasileira. A presença dele foi como um tema, e a partir disso trouxemos vários grupos que estão dentro desse universo. Depois criamos as rodas de prosa e discutimos assuntos como o patrimônio imaterial, que é um dos focos, além de questões sobre o conhecimento tradicional agregado às comunidades, e como isso pode ser resguardado. Existe uma 256


grande dificuldade em relação a essa questão do resguardo, em saber a quem pertence essa cultura. Você não pode, por exemplo, pegar o patrimônio genético, de conhecimentos, de uma comunidade indígena e voltar isso como um benefício às comunidades, sem antes ter autorização. O direito autoral coletivo, e não individual, é um grande desafio? Esse é um problema, porque o coletivo é da comunidade. Mas, ao mesmo tempo, tem um indivíduo que a representa. Essa discussão não é só nossa, envolve o mundo inteiro, e não há resoluções firmes, como uma lei que consiga abarcar tudo isso. Temos avançado, mas ainda não chegamos a um lugar razoável. Procuramos trazer discussões como essa para dentro do encontro, e esse ano sediaremos a reunião da Comissão Nacional da Política Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, que traz também o tema da sustentabilidade. Essa comissão tenta pensar maneiras de criar mecanismos sustentáveis para essas comunidades, que são extrativistas. Outra discussão que trazemos para o encontro é sobre a diversidade cultural, questão que começamos a pensar por meio da Convenção da Diversidade Cultural, da Unesco. Então passamos a trazer grupos de outros países, como Índia, Colômbia, como uma forma de abrir para as comunidades essa perspectiva da globalização, mostrando que essa cultural tradicional que existe no Brasil, que é passada de pai para filho, também acontece em outros lugares do mundo. E que é possível estabelecer um contato, trocar experiências. Qual a relação de vocês com os índios krahôs? Na verdade tenho uma relação pessoal com os krahôs. Aprendi muito com eles, ganhei nome, família, fiz parte do ritual, criamos uma amizade. Trabalhamos em projetos muito avançados relacionados aos krahôs, como a feira de sementes tradicionais, em que, através da recuperação da agricultura, eles conseguiram resgatar todos os seus mitos, suas festas, seus rituais. Houve um processo de entrega de sementes para todos os povos indígenas do Brasil, e isso foi tirando um pouco desse resguardo da semente tradicional, das roças tradicionais. Com a introdução do arroz, por exemplo, as pessoas passaram a fazer roças só de arroz, ou roças das sementes que era entregues, como o milho híbrido. Mas os krahôs ainda tinham essas sementes antigas, e o retorno delas proporcionou uma retomada da sua cultura. Eles têm 250 anos de contato, são uns guerreiros, conseguiram preservar sua cultura tradicional. Os krahôs 257


estão há dez mil anos no cerrado e têm coisas demais para nos ensinar. São professores, mestres no conhecimento da região, do bioma. Então, desde o começo do encontro, eles foram nossos parceiros. Em 2007, montamos uma aldeia multiétnica, chamamos representantes de sete etnias e fundamos uma aldeia tradicional. Esse projeto, que ocorre antes do festival e dura uma semana, cresceu, e hoje congregamos mais de dez etnias. Cada dia uma etnia toma conta, com seus rituais, sua culinária, passa filmes, e ensina um pouco sobre sua cultura. Então há uma integração entre os grupos. É uma oportunidade de se reencontrarem, de se unirem. Os grupos indígenas ficaram muito dispersos no Brasil, e a ideia é que possamos uni-los, até para que se tornem mais fortes politicamente, na exigência dos seus direitos como povos primários do Brasil. Você percebe um amadurecimento de políticas possíveis tanto para a cultura indígena quanto para as culturas tradicionais não indígenas? Nos últimos oito anos do Ministério da Cultura, e do governo em geral, avançamos muito. Claro que desejamos avançar mais, e é para isso que trabalhamos, mas tivemos um avanço significativo. Conseguimos que a questão fosse pautada dentro da política cultural, porque, antigamente, não fazia parte da agenda. Os Kalungas, por exemplo, são uma comunidade quilombola fixada ao lado de Brasília, que não tem um acesso fácil, não tem luz e ainda vive de modo tradicional, apesar de sofrer alguma influência da sociedade contemporânea. E a nossa ideia é tentar fazer uma ponte entre esse pensamento mitológico, mágico, com o pensamento moderno, e trazer isso para a perspectiva das políticas públicas. Nesse sentido, como vocês trabalham a cultura digital? Percebem ela como uma rede de troca, de possibilidade de ampliação do encontro? A ponte se faz pela cultura digital. São povos analfabetos, mas que não precisam, necessariamente, serem analfabetos digitais, porque essa cultura não é apenas escrita, é imagem, som, é uma maneira diferente de fazer. E os povos indígenas têm muita vontade de participar desse processo, de mostrar sua cultura para o mundo todo, através do digital. Em 2006, São Jorge passou a ter acesso à Internet, por meio de uma antena do Ministério das Comunicações, e isso facilitou enormemente a nossa vida, porque podíamos produzir, agregar e acessar de lá mesmo. Hoje, a maior parte do povoado não é mais de analfabetos digitais, e as pessoas conseguem fazer coisas que 258


antes parecia impossível. Isso é de extrema importância para a manutenção da cultura tradicional. A Chapada é uma região muito mística, e existe um interesse turístico ligado a isso. Como vocês lidam com essa questão? O misticismo é uma coisa forte no brasileiro, que vem de uma tradição indígena e africana, de povos que têm uma ligação forte com o mundo espiritual, com mitologias. E a Chapada tem uma questão esotérica, ligada ao cristal e à posição geográfica. Muitos estudiosos apontam o local como um centro irradiador. Dentro da cultura popular, essa crença também é muito forte. Próximo à Chapada tem uma cidade chamada Natividade, uma das mais antigas de Tocantins, onde mora uma mulher chamada Dona Romana. Ela é uma figura mística, que desenvolve uma mescla de catolicismo popular com as religiosidades africanas e indígenas e que se diz portadora de um fundamento cósmico, trabalhando para a “firmeza do Grande Eixo”. A Dona Romana tem um discurso um pouco apocalíptico, fala de um momento de transição, de mudança, que está para vir. Não tem dia certo, mas está cada vez mais perto. Essa questão também está presente na região, nos povos tradicionais. O caso é que algumas pessoas se aproveitaram disso, criam um turismo místico, e não se sabe até que ponto elas estão sendo verdadeiras. E o registro dessas manifestações tradicionais? O IPHAN criou uma metodologia chamada Inventário Nacional de Referências Culturais, que é bem técnica, mas serve para esse fim e vai registrar todo o patrimônio imaterial: os modos de fazer, os costumes, as festas e as celebrações. O que é patrimônio imaterial? É o tombamento de manifestações culturais? Tombar não é uma boa palavra. Usamos essa palavra quando falamos do patrimônio material, para o imaterial usamos “registrar”. E registrar tem a ver com memória, com a preservação. Mas, para nós, tão importante quanto isso, é a visibilidade. Quando algo é registrado, de alguma forma, toma uma valia nacional, aparece para um cenário nacional, e isso possibilita que esse conhecimento entre nas escolas e se espalhe. Mas quem vai fazer tudo isso são as políticas públicas. Nós usamos os mecanismos que as políticas públicas nos dão. Um exemplo prático é o registro da Caçada da Rainha. O IPHAN 259


tinha um edital público para registro de patrimônio imaterial, e nós fomos aprovados. Nossa intenção era registrar esse patrimônio, acompanhar tudo, saber como as coisas são feitas, e preservar a memória dos mais velhos. Então conversamos com a comunidade e tentamos explicar de forma prática, porque esse é um processo muito técnico e difícil de ser entendido. Explicamos que a ação iria resultar em um filme e um livro, que seria doado e estaria nas escolas, nas bibliotecas, e que, com isso, a festa da Caçada da Rainha cresceria e seria preservada e valorizada. Nessas festas tradicionais tem muita gente para ver e pouca gente para entender. Existe a festa em si, e a folia, o ritual de fé. Então decidimos fazer um registro geral, pegando a festa e um filme focado na tentativa de entender aquilo, saber como é feito, qual a importância. Fomos de casa em casa registrando a festa da fé, as pessoas fazendo promessas, se dedicando a um santo, fazendo acordos com ele para obter uma cura. Hoje, a Caçada da Rainha tem seu registro, tem seu filme, e isso aumentou a autoestima da comunidade. A festa tomou um corpo diferenciado, sobreviveu à modernização, absorveu muitas coisas, e passou a interessar os jovens, que assumiram a folia e deram continuidade a tradição. Além do registro, a criação artística dessas culturas tradicionais tem sido crescentemente absorvida pelas culturas modernas, digamos assim, pelo cinema, teatro. Você percebe esse movimento? Como você vê isso? Acho que existe um movimento, e nós também fazemos parte dele. É um movimento que já começa com Mário de Andrade, de alguma forma, quando passamos a tentar nos entender como brasileiros. Somos uma grande e eterna mistura, e isso é muito importante na nossa formação, no nosso entendimento. E vejo hoje um boom no interesse pela cultura popular, as pessoas montaram vários grupos de maracatu, existem estudos, filmes. Fale um pouco sobre o estado de Goiás. Qual é a articulação de vocês com o estado e com os índices culturais da região. O estado de Goiás é um pouco complicado. Ao fazer o encontro, tivemos certa dificuldade de contato com o estado e estabelecemos uma relação mais próxima com Brasília e Tocantins. Apesar de ter coisas maravilhosas em Goiás, como as Congadas de Catalão, que são muito fortes e vivas, e as Folias de Reis, espalhadas por toda a região, não existe uma política pública do estado para isso. As políticas públicas ficam restritas à capital, nada vai para o interior, 260


onde se encontram comunidades quilombolas pequenas e festas tradicionais. Como quem faz a política está na capital, geralmente abandonam um pouco o interior, ou querem modernizar. Não existe um pensamento muito forte dentro do estado, a não ser aquele antigo, folclórico, que quer manter a cultura parada no tempo. Mas a gente sabe que ela é dinâmica, está sempre em movimento, absorvendo as coisas.

261


262



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.