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Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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REVISTA PODER & CULTURA ISSN: 2359-1072 Volume 3, Número 5, Jan.–Jun.2016 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Prof. Dr. Roberto Leher Vice-Reitora: Profa. Dra. Denise Fernandes Lopez Nascimento INSTITUTO DE HISTÓRIA Diretor: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa Vice-Diretor: Prof. Dr. Murilo Sebe Bon Meihy LABORATÓRIO DE HISTÓRIA, CINEMA E AUDIOVISUALIDADES (LHISCA) Coordenador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira PATRONESSE DA REVISTA PODER & CULTURA Nélida Piñon (Imortal da Academia Brasileira de Letras)
COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Editor Chefe) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Profa. Mestranda Quezia Brandão (Editora Executiva) — Universidade de São Paulo (USP), Programa de PósGraduação em História Social (PPGHS)/Faculdade de Letras, São Paulo (SP), Brasil. Bacharela Beatriz Moreira da Costa (Editora Técnica e Web designer) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Doutorando Leandro Couto Carreira Ricon (Editor Administrativo) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Dr. Christiano Britto Monteiro dos Santos (Editor Assistente) — Universidade Federal Fluminense (UFF) – Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Dr. Cristiano José Pereira (Editor Assistente) — Faculdade Campos Elísios (FCE), São Paulo (SP), Brasil. Prof. Ms. Danilo de Lima Nunes (Editor Assistente) — Secretaria Municipal de Educação (SME – Prefeitura do Rio de Janeiro) / LHISCA-IH-UFRJ, Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
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Prof. Ms. Leonardo Montanholi dos Santos (Editor Assistente) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Mestrando Marco Vallada Lemonte (Editor Assistente) – Universidade de São Paulo (USP), Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHS), São Paulo (SP), Brasil.
CONSELHO EDITORIAL NACIONAL Prof. Dr. Alexander Martins Vianna — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. Alexandre Busko Valim — Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Prof.ª Dr.ª Ana Paula Torres Megiani —Universidade de São Paulo (USP) Profª. Drª. Andrea Casa Nova Maia — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Profª. Drª. Angélica Müller — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Antonio Carlos Amador Gil — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Prof. Dr. Antônio Pedro Tota — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Prof. Dr. Carlos Alberto S. Barbosa — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Profª. Drª. Carolina Amaral — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Cláudia Wasserman — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Prof. Dr. Cristiano José Pereira — Faculdade Campos Elísios (FCE), São Paulo (SP), Brasil. Prof. Dr. Deivid Valério Gaia — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão — Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) Prof. Dr. Eduardo Natalino dos Santos —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin—Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Elton Oliveira Souza de Medeiros — Faculdade Sumaré Prof.ª Dr.ª Elizabeth Cancelli—Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Flávio Vilas-Boas Trovão — Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert Júnior —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho—Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos T. da Silva— Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Frederico Alexandre Hecker — Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Gabriel Passeti — Universidade Federal Fluminense (UFF) Prof.ª Dr.ª Gabriela Pellegrino Soares —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Gerson Damiani — Centro Ibero-Americano — Universidade de São Paulo(USP) Prof. Dr. Gian Carlo de Melo Silva — Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Prof.ª Ms.ª Helena Wakim Moreno — Faculdade Sumaré Prof. Dr. Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Ignácio Del Valle Dávila — Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Prof.ª Dr.ª Ivana Barreto — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. José D’Assunção Barros— Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Julio Cesar Pimentel Filho — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Kátia Gerab Baggio — Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
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Prof. Dr. Leandro Karnal —Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Leonardo Valente Monteiro — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Profª. Drª. Liliane Cristina Coelho — Universidade Federal Fluminense (UFF) Prof. Dr. Luís Edmundo de Souza Moraes — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Marcus Dezemone — Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Prof.ª Dr.ª Maria Antonia Dias Martins — Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) Prof.ª Dr.ª Maria Helena Rolim Capelato — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Mariana Joffily — Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Prof.ª Dr.ª Mariana Martins Villaça — Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Prof.ª Dr.ª Mary Lucy Murray Del Priore — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Maurício Cardoso —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Murilo Sebe Bon Meihy — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello —Universidade de São Paulo (USP) Profª. Drª. Norma Musco Mendes — Universidade de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Osvaldo Luis Angel Coggiola —Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Patrícia Valim — Universidade Federal da Bahia (UFBA) Prof.ª Dr.ª Priscila Ribeiro Dorella —Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG) Prof. Dr. Raphael Nunes Nicoletti Sebrian— Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) Prof. Dr. Ricardo Antônio Souza Mendes — Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Prof. Dr. Ricardo Figueiredo de Castro — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Robert Sean Purdy —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Rodrigo Farias — Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Rodrigo Ricupero — Universidade de São Paulo (USP) Profª.Drª Silvia Adriana Barbosa Correia — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Tânia Regina de Luca — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) Prof. Dr. Thaddeus Gregory Blanchette — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/Macaé) Prof.ª Dr.ª Vanessa dos Santos Bodstein Bivar —Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) Prof. Dr. Vinicius Cesar Dreger de Araujo — Universidade Estadual de Monte Carlos (UNIMONTES) Prof. Dr. Vitor Izecksohn — Universidade de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Yone de Carvalho —Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC-SP) CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL Prof. Dr. Alex Houen — University of Cambridge Prof.ª Dr.ª Archana Ojha — University of Delhi Prof. Dr. Diogo Ramada Curto — Universidade Nova de Lisboa Prof. Dr. Fernando Rosas — Universidade Nova de Lisboa Prof.ª Dr.ª Marie-Christine Pauwels — Université de Paris X Prof. Dr. Lorenzo Delgado GómezEscalonilla — Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Madrid Prof.ª Dr.ª Patrícia Funes — Universidad de Buenos Aires Prof. Dr. Pere Gallardo Torrano — Universitat Rovira i Virgili / Universitat de Lleida Prof. Dr. Philip M. Hosay —New York University Prof. Dr. Wolfgang Benz — Technische Universität Berlin
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PRODUÇÃO EDITORIAL Secretária-Geral: Beatriz Moreira da Costa Projeto Gráfico: Quezia Brandão Capa: Beatriz Moreira da Costa Diagramação: Beatriz Moreira da Costa e Danilo de Lima Nunes Editoração: Danilo de Lima Nunes Revisão: Danilo de Lima Nunes e Marco Lemonte Web Designer: Beatriz Moreira da Costa
IMAGEM DA CAPA Logo Revista Poder & Cultura (Nova Versão – 2016). Créditos: Humberto Bianchi/ Mundo das Logos
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA REVISTA PODER & CULTURA LABORATÓRIO DE HISTÓRIA, CINEMA E AUDIOVISUALIDADES (LHISCA) INSTITUTO DE HISTÓRIA — UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Largo de São Francisco, 01 - 3º Andar / Sala 320-G - Centro CEP:20051-070 – Rio de Janeiro - RJ - Brasil E-mail: poderecultura@gmailcom – www.poderecultura.com
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APRESENTAÇÃO
A
Revista Poder & Cultura é uma iniciativa que nasceu dos cursos, produções historiográficas e debates realizados pelos pesquisadores do Laboratório de História, Cinema e Audiovisualidades (LHISCA), coordenado pelo Prof. Dr.
Wagner Pinheiro Pereira, no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/UFRJ), desde o ano de 2011. Demarcando seu campo de investigação na pluralidade de experiências históricas travadas pela relação entre Poder e Cultura, a Revista pretende ser um canal de expansão da temática e de divulgação de artigos, resenhas, entrevistas e ensaios de crítica histórica, estando aberta a abordagem de questões e conceitos acerca de todos os campos disciplinares, especialidades, períodos e temas históricos que tangenciem, de alguma forma, as noções de poder e/ou cultura. Nosso propósito é abrir um espaço de ampla circulação às pesquisas acadêmicas da área das Humanidades, contribuindo para educação pública e socializando o espaço acadêmico. Nossos esforços caminham no sentido de produzir uma integração entre os círculos intelectuais e seculares, promovendo conhecimento e cidadania através do acesso ao resultado de pesquisas de ponta que versam sobre os mais variados aspectos da sociedade e sua cultura através dos tempos.
“Do ponto de vista do poder político, a cultura é absolutamente vital. Tão vital, de fato, que o poder não pode funcionar sem ela. É na cultura, no sentido de hábitos diários e crenças de um povo, onde o poder repousa, fazendo-o parecer natural e inevitável, transformando-o em reflexo e resposta espontâneos” . (Terry Eagleton)
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SUMÁRIO / table of contents EDITORIAL / EDITORIAL …………………………………………………………… 10 ARTIGOS / ARTICLES DIREITO E PODER NA PÉRSIA AQUEMÊNIDA LAW AND POWER IN ACHAEMENID PERSIA Por Matheus Treuk Medeiros de Araujo ………………………………………………………... 16 “A CORAJOSA MULHER”: Representações femininas de poder na Inglaterra AngloSaxônica “THE BRAVE LADY”: Representations of feminine power in Anglo-Saxon England Por Elton O. S. Medeiros ……………………………………………………………………... 30 UMA COMPARAÇÃO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA HUMANA NOS ESCRITOS DE JERÔNIMO E AGOSTINHO A COMPARISON OF THE HUMAN NATURE’S REPRESENTATION IN WRITINGS OF JERÔNIMO AND AUGUSTINE Por Fabiano de Souza Coelho …………………………………………………………………. 48 REPRESENTAÇÃO DO HERÓI E DO ANTI-HERÓI MEDIEVAL EM FERNÃO LOPES MEDIEVAL HERO AND ANTI-HERO REPRESENTATION IN FERNÃO LOPES Por Amanda Lopes Blanco ……………………………………………………………………. 64 O TRIBUNAL DE SEGURANÇA NACIONAL E O PROCESSO DE NESTOR CONTREIRAS RODRIGUES: O Integralismo sob a repressão judicial no Estado Novo THE COURT NATIONAL SECURITY AND THE PROCESS OF NESTOR CONTREIRAS RODRIGUES: The Integralism under judicial repression in New State’s Dictatorship Por David Rodrigues Silva Neves ………………………………………………………………. 82 SOBRE A AUTONOMIA MUNICIPAL NAS CONSTITUIÇÕES DE 1891, 1934, 1937 E 1946: Reflexos em Taboão da Serra – SP NOTES ON MUNICIPAL AUTONOMY IN THE CONSTITUTIONS OF 1891, 1934, 1937 AND 1946: Reflections in Taboão da Serra – SP Por Adalberto de Carvalho Graciano …………………………………………………………… 104
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A UNIÃO DA GUANABARA AO RIO DE JANEIRO E A DIVISÃO DO MATO GROSSO: O (des)aparecimento das unidades federativas durante o governo militar THE UNION OF GUANABARA WITHIN RIO DE JANEIRO AND THE DIVISION OF THE MATO GROSSO STATE: the (dis)appearance of the federal units during the military government 124 Por Daniel Almeida de Macedo ………………………………………………………………... DE LOS LIBROS A PUNTO DE VISTA: Algumas observações sobre revistas da Nova Esquerda Argentina FROM LOS LIBROS TO PUNTO DE VISTA: Some observations about Argentina's New Left magazines Por Raphael Nunes Nicoletti Sebrian …………………………………………………………... 144
O DESPREZO (JEAN-LUC GODARD, 1963): O cinema como um mundo confor-
mado a nossos desejos CONTEMPT (JEAN-LUC GODARD, 1963): The cinema as a world conformed to our desires Por Carolinne Mendes da Silva ………………………………………………………………… 162 EM DEFESA DO NACIONAL-POPULAR: O papel da voz over no documentário Partido Alto (1976/1982), de Leon Hirszman IN DEFENSE OF THE NATIONAL-POPULAR: The role of voice over in the documentary Partido Alto (1976/1982), by Leon Hirszman Por Mariana Rosell ………………………………………………………………………….. 178 NÃO PERGUNTE. NÃO FALE. Mutismo e homossexualidade em um filme de guerra americano DON’T ASK, DON’T TELL. Mutism and homosexuality in an American War Movie Por Flávio Vilas-Bôas Trovão ………………………………………………………………… 195
OS INFILTRADOS E A MORALIDADE PÓS-ONZE DE SETEMBRO
THE DEPARTED AND THE MORALITY AFTER SEPTEMBER ELEVEN Por Tiago Gomes da Silva …………………………………………………………………….. 208 RITMOS PLÁSTICOS: Os bailados de Eros Volúsia e os desenhos de Rugendas e Debret PLASTICH RHYTHMS: The ballets of Eros Volúsia and the paintings of Rugendas and Debret Por Andréa Casa Nova Maia e Ana Paula Brito Santiago ………………………………………... 230 “IN MARKETING WE TRUST”: Trabalho e mercado religioso na Bola de Neve Church “IN MARKETING WE TRUST”: Labor and religious market in the Snowball Church Por Manuela Lowenthal Ferreira e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho ……………… 249
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EXCOGITANDO A PROPOSTA DE LINHA DO TEMPO INTERATIVA NO ENSINO DE HISTÓRIA: O caso da Ilha d’Água e seus diálogos com as Histórias Ambiental, Patrimonial e Local EXCOGITATING A PROPOSAL OF INTERACTIVE TIMELINE IN HISTORY TEACHING: The case of Ilha d’Água and its dialogues with the Environmental, Heritage and Local Histories Por Marcella Albaine Farias da Costa, Marcus Leonardo Bonfim Martins, Fabiano Cabral de Lima, Juliana Bacelar de Matos, Luana Souza da Silva, Thais Sachie T. Fernandes e Thayenne Roberta Nascimento Paiva …………………………………………………………………………………. 268 ENTREVISTA / INTERVIEW PARA UMA HISTÓRIA INTELECTUAL DA AMÉRICA LATINA FOR AN INTELLECTUAL HISTORY OF LATIN AMERICA Antonio Mitre por Priscila Dorella …………………………………………………………….. 296 NORMAS DE PUBLICAÇÃO / PUBLISHING NOTES …………………………….. 324
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EDITORIAL
A
Revista Poder & Cultura, Vol.3, Nº5, Jan. - Jun. 2016, apresenta neste semestre uma edição muito especial para o seu público leitor. Para comemorar o seu terceiro aniversário de publicação, a revista ganhou uma nova logomarca e um novo projeto
gráfico que procuram representar e sintetizar a sua missão acadêmica de promover o desenvolvimento e a divulgação da discussão sobre as relações históricas entre poder e cultura ao longo dos séculos, e de buscar ter na cultura e na educação instrumentos de conscientização política crítica e importantes alicerces na luta pela conquista de uma consolidação plena da democracia e da cidadania em nosso país que, infelizmente, encontra-se em um momento tão delicado e difícil de sua vida nacional. Além do novo design, nosso periódico tem a honra de contar, a partir da presente edição, com a presença e participação inspiradoras de Nélida Piñon, imortal da Academia Brasileira de Letras, como a Patronesse da Revista Poder & Cultura (RPC). Dentre tantas figuras intelectuais e acadêmicas do cenário nacional, a escolha de Nélida Piñon como a Patronesse da Revista Poder & Cultura ocorreu sob o duplo signo de um mesmo sentimento compartilhado pelos membros da Comissão Editorial da RPC: o de profundo respeito e admiração tanto por sua marcante trajetória na vida cultural nacional e internacional, quanto pela sua carismática e apaixonante figura pessoal. Como relatei em discurso proferido na Cátedra José Bonifácio, em 10 de março de 2016, posso dizer que, enquanto professor de História das Américas dos cursos de História e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em estudos sobre a relação poder e cultura na Ibero-América, eu já conhecia a sua brilhante trajetória no mundo da literatura, das artes e da cultura, sendo as suas obras temas e fontes de discussão com os meus alunos em sala de aula. Afinal, Nélida Piñon, a escritora imortal da Academia Brasileira de Letras, a “Casa de Machado de Assis”, como ela gosta de dizer, publicou mais de 25 romances, dentre eles clássicos como Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (1961), A Casa da Paixão (1972), A República dos Sonhos (1984), Vozes do Deserto (2004), O aprendiz de Homero (2008), Coração andarilho (2009) e Livro das Horas (2012), dentre muitos outros. Suas obras foram traduzidas em mais de 30 países, contemplando romances, contos, ensaios, discursos, crônicas e memórias. Ficou conhecida como defensora dos direitos humanos durante a ditadura militar e também, mais tarde, dos direitos das mulheres. Em 1996-1997 tornou-se Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
a primeira mulher, em 100 anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano do seu 1º Centenário. Recebeu numerosos prêmios e distinções, entre os quais se destacam: Juan Rulfo (1995), o mais importante da América Latina e do Caribe, concedido pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa (1995); o Menéndez Pelayo (2003); o Príncipe de Astúrias (2005); e o Jabuti (2005). Em 2012 foi nomeada Embaixadora Ibero-Americana da Cultura e, em 2015, na qualidade de primeira mulher e brasileira, assumiu a Cátedra José Bonifácio da Universidade de São Paulo1. Foi durante a sua atuação enquanto Catedrática Titular da Cátedra José Bonifácio no ano de 2015, que dois membros da Comissão Editorial da RPC – Quezia Brandão e Wagner Pinheiro Pereira – tiveram a oportunidade excepcional de conhecê-la pessoalmente. Nélida Piñon apresentou uma proposta bastante ousada e ambiciosa em sua proposta de curso: Refletir com os seus alunos “As Matrizes do Fabulário Ibero-Americano”, realizando um percurso que partia das tradições orais das civilizações autóctones das Américas e dos narradores das Conquistas portuguesa e espanhola, passando pela composição literária da nacionalidade brasileira em escritores como José de Alencar e Machado de Assis, por clássicos da literatura mexicana como Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, O Labirinto da Solidão (1950), de Octávio Paz, e A Morte de Artemio Cruz (1962), de Carlos Fuentes, chegando até o Tempo Presente onde nos revela o enigma da criação e da ilusão de sua própria arte, ou nos denuncia as “nebulosas do poder” autoritário através dos romances de ditadores2. Por tudo isso, pudemos perceber como a visão artística e intelectual de Nélida Piñon estava em plena sintonia com a área de pesquisa trabalhada pela Revista Poder & Cultura. Afinal, compartilhamos a posição da Imortal ao dizer que: “O escritor não deve apenas criar, mas deve também emprestar sua consciência à consciência de seus leitores, sobretudo num país como o Brasil”.3 Nós, da Comissão Editorial da Revista Poder & Cultura, esperamos ser dignos do apoio vindo de uma figura tão importante e renomada como Nélida Piñon e prometemos nos esmerarmos para apresentar sempre ao público leitor uma revista de alta qualidade acadêmica. Para o sucesso da realização desta empreitada, contamos com mais um motivo de orgulho para esta belíssima e especialíssima edição: os autores responsáveis pela autoria de quinze artigos, frutos As informações biográficas de Nélida Piñon podem ser encontradas no website da Academia Brasileira de Letras (http://www.academia.org.br/academicos/nelida-pinon) e na reportagem “Nélida Piñon: Um coração andarilho” publicada pela Revista Pesquisa Fapesp, nº 175, setembro de 2010. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/09/02/n%C3%A9lida-pi%C3%B1on-um-cora%C3%A7%C3%A3o-andarilho/ 2 O resultado do trabalho realizado por Nélida Piñon na Cátedra José Bonifácio em 2015 foi publicado em livro: PIÑON, Nélida (Coord.). As Matrizes do Fabulário Ibero-Americano. São Paulo: Edusp, 2016. 3 Revista Pesquisa Fapesp, nº 175, setembro de 2010, p.7. 1
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dos resultados das pesquisas acadêmicas realizadas por jovens historiadores brasileiros, que possibilitam compartilhar com o público leitor um pouco da diversidade temática e do diálogo interdisciplinar que tem caracterizado as abordagens dos trabalhos historiográficos mais recentes. Além disso, a presente edição conta ainda com uma entrevista fascinante do historiador boliviano Antonio Mitre, importante intelectual e acadêmico da América Latina, que foi entrevistado, especialmente para a Revista Poder & Cultura, pela historiadora Priscila Dorella, Professora de História das Américas da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Cabe, por fim, registrar um agradecimento especial a todos os membros do Conselho Consultivo – uma verdadeira equipe de notáveis do mundo acadêmico – e da Comissão Editorial – Quezia Brandão, Beatriz Moreira da Costa, Danilo de Lima Nunes, Leandro Couto Carreira Ricon, Christiano Britto Monteiro dos Santos, Cristiano José Pereira, Leonardo Montanholi dos Santos e Marco Vallada Lemnonte – pela dedicação e empenho fundamentais na realização dos trabalhos da Revista Poder & Cultura. Desejo uma boa leitura a todos! Wagner Pinheiro Pereira Editor-Chefe da Revista Poder & Cultura
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DIREITO E PODER NA PÉRSIA AQUEMÊNIDA Matheus Treuk Medeiros de Araujo* RESUMO: O pensamento político do iluminismo enfatizou, com frequência, a natureza despótica do poder na Pérsia Aquemênida. Autores clássicos e modernos desafiaram, igualmente, a ideia de um conjunto de normas públicas que restringiriam o exercício do poder na Pérsia à época dos Grandes Reis. Atualmente, acadêmicos têm reproduzido, de maneira equivocada, o mesmo enquadramento teórico fundamental que faria o modelo despótico parecer verossímil. Embora esse cenário possa parecer, em algum grau, autêntico, ele é grosseiro e ignora a importância e sofisticação do direito persa e do sistema jurídico aquemênida. O exercício de poder do rei persa só pode ser adequadamente descrito dentro de seu contexto jurídico. PALAVRAS-CHAVE: Direito; Pérsia; Cultura Jurídica.
LAW AND POWER IN ACHAEMENID PERSIA ABSTRACT: Enlightenment political thought has often emphasized the despotic nature of power in Achaemenid Persia. Classical and modern authors alike have sometimes challenged the idea of a set of public norms that would restrain the exercise of power in Persia during the time of the Great Kings. Currently, scholars have mistakenly reproduced the same basic theoretical framework that would make the despotic model seem plausible. Although this scenario may be true to some degree, it is oversimplifying and ignores the importance and sophistication of Persian law and the Achaemenid legal system. The Persian King's exercise of power can only be appropriately described within its legal context. KEYWORDS: Law; Persia; Legal Culture. ***
em História Social – FFLCH/USP. E-mail: mathtreuk@gmail.com.
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* Doutorando
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o seu Espírito das Leis, o barão de Montesquieu descreve a constituição política da Pérsia de sua época como uma espécie de despotismo. Na opinião do autor francês, esse país se caracterizaria, desde a antiguidade aquemênida, por um di-
reito público fundado na discricionariedade do rei, traduzindo-se, outrossim, numa fragilidade nefasta do direito privado. Com essa noção em mente, Montesquieu mobiliza, ao longo de sua obra, vários exemplos para demonstrar que os governos despóticos, como o persa, careceriam de balizas normativas fundamentais efetivas, revelariam desprezo pela proteção da propriedade fundiária, apresentariam sinais de irracionalidade jurídica e um apreço desmedido pela guerra.1 O modelo de Montesquieu, cujos ecos são tão encontradiços na historiografia contemporânea, representa uma ruptura em relação a outros autores modernos, como Jean Bodin, que, possuindo uma tipologia de monarquias própria, encontrou a oportunidade de elogiar os persas antigos.2 Assim, por um lado, Montesquieu, creditando aos persas a convalidação de vícios grosseiros, expressava-se da seguinte forma sobre a irrevogabilidade dos éditos do rei, Na Pérsia, uma vez que o rei tenha condenado alguém, não se pode mais dirigir a palavra a ele, nem solicitar a graça. E se o rei estivesse embriagado ou fora de si, seria necessário que a sentença fosse executada da mesma maneira; se assim não fosse, ele se contradiria, e a lei não pode se contradizer. Essa maneira de pensar sempre existiu nesse país: não sendo possível revogar a ordem de Assuero de exterminar os judeus, optou-se por lhes conceder a permissão de se defenderem.3
Bodin, por outro lado, tratando do mesmo tema ao examinar livro bíblico diverso, duvidava da existência do referido princípio, alegando que essa afirmação seria, antes, “uma pura calúnia que os cortesãos dirigiram a Daniel”.4 Defensor do caráter “senhorial” da monarquia persa, justificado pelo direito de conquista, Bodin não é o único autor que demonstra a novidade (ao menos em grau) representada pela crítica iluminista ao direito público dos aquemênidas. Maquiavel, em O Príncipe, compara a Pérsia de Dario III a uma espécie de governo centralizado, mas disso não decorre nenhuma avaliação moral, apenas uma tipologia de Estados em face dos empreendimentos de conquista.5 Thomas Hobbes, no Leviatã,
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do Espírito das Leis. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2004. p. 68-69; 98-104; 373. 2 BODIN, Jean. Les Six Livres de la Republique. Lyon: Imprimerie de Jean de Tournes, 1579. p. 194. 3 MONTESQUIEU. Op. cit., 2004, p. 69. 4 BODIN. Op. cit., 1579, p. 102. 5 MACHIAVELLI, Niccolò. The Prince. Londres: Penguin Books, 2004, p. 17-20. 1
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fala da paz proporcionada pelo governo do rei absoluto como condição necessária do desenvolvimento intelectual, inclusive (e pioneiramente) na Pérsia.6 Apesar disso, o pensamento de Montesquieu não é absolutamente estranho às formulações clássicas a respeito do mesmo tema. Afinal, na visão helênica, representada pelas elaborações teóricas de autores como Aristóteles e Platão, a constituição dos persas também teria algo de tirânico e o seu governo poderia revelar um aspecto despótico, isto é, pertinente à relação entre senhor e escravo.7 Não por acaso, muitos especialistas continuaram, por algum tempo, a nutrir a concepção de uma economia próximo-oriental predada pelos setores palaciais e desprovida de um setor privado relevante, referendando, da mesma forma, a visão (que encontraram nas fontes clássicas) de um Estado intumescido que avança sobre as faculdades dos particulares. No pensamento de Aristóteles, as monarquias poderiam ser de vários tipos, entre as quais incluir-se-iam as monarquias bárbaras.8 Estas últimas, híbridas, teriam elementos de tirania, contando com um governo sujeito ao exclusivo julgamento do príncipe, apesar de se regerem conforme as leis e em benefício da coletividade. A tirania propriamente dita, para Aristóteles, exerceria seu governo forçosamente sobre os súditos e seria conduzida pelo interesse privado do tirano, em prejuízo do bem comum.9 Em alguns casos, não há dúvida de que os governantes persas poderiam ser vistos como tiranos pelo estagirita, uma vez que o império aquemênida forneceria até mesmo exemplos para os tiranos gregos que desejavam preservar suas posições.10 Segundo Aristóteles, todos, sem distinção, seriam tratados como escravos entre os bárbaros, inclusive os filhos11 e as esposas.12 A diferente qualidade das instituições políticas gregas e persas, por sua vez, estaria atrelada às condições geográficas de cada povo,13 de forma que a adoção da monarquia entre os bárbaros poderia representar uma adequação das instituições à imaginada inferioridade social dos orientais.14
HOBBES, Thomas. Leviathan. Londres: Penguin Books, 1981, p. 683-684. RICHTER, Melvin. Despotism, Oriental. In: GRAFTON, Anthony. MOST, Glenn W. SETTIS, Salvatore (eds.). The Classical Tradition. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2010. p. 262. 8 ARISTÓTELES, Política, 1284b.35- 1285b.35. 9 Idem. Política, 1295a.1-25. 10 Idem, Política, 1313a20 - 1313b10. 11 Idem. Ética a Nicômaco. 1160 b 27-33. 12 Idem. Política. 1252b.5-10. 13 Idem. 1327b.25-30. 14 BODÉÜS, Richard. Le premier cours occidental sur la royauté achéménide. Bruxelas: L’Antiquité Classique (Tomo 42), 1973, p. 458-472. 6 7
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A visão aristotélica do despotismo oriental foi sintetizada por Koebner, em já clássico artigo sobre o tema. Segundo esse autor, (...) [Aristóteles] tem conhecimento de situações nas quais governos que submetem seus súditos a condições análogas à escravidão estão de acordo com a lei - κατὰ νόμον. Assim havia sido outrora com as cidades-estado gregas cujos cidadãos, por razões de conveniência, tinham se comprometido a colocar-se sob o controle de tiranos eleitos: os Aisymnetai. Mas a realeza arbitrária, quase “tirânica”, estaria ainda mais de acordo com o direito em alguns países bárbaros. Neles, ela seria hereditária e legal; suas monarquias são κατὰ νόμον καὶ πατρικαί.15
Em As Leis, de Platão, de maneira pouco diversa, a constituição dos persas é apresentada como um tipo de despotismo que tolheria a liberdade dos súditos.16 Esse retrato do império, como se sabe, surge como o resultado de uma exposição histórica que reconhece momentos de brio e ponderação, a saber, os reinados de Ciro II e Dario I.17 Ainda assim, no diálogo platônico, o império seria, em seu estado contemporâneo, produto de certa degeneração, especialmente devido à educação equivocada dispensada aos príncipes herdeiros.18 Espelhando essa visão no campo do direito privado, a historiografia econômica moderna, especialmente aquela produzida pelos teóricos de tipo primitivista, alega que a Pérsia e as economias do Oriente Próximo se conformariam a um modelo de economia planificada, precária quanto às seguranças dos proprietários e possuidores e marcada pelo protagonismo exagerado de instituições estatais como o templo e o palácio.19 Essa economia palacial, na opinião de autores como Moses Finley, se distinguiria da economia de gregos e romanos, entre os quais os institutos do direito privado seriam mais sólidos.20 Nas palavras de Finley, (...) quanto ao resto, se eu definisse “antigo” de maneira a englobar os dois mundos, não haveria um único tópico que pudesse discutir sem ter que recorrer a seções desconexas, usando conceitos e modelos diferentes. A exclusão do Próximo Oriente não é, pois, arbitrária (...). Não quero simplificar demais. Havia no Próximo Oriente terras cuja posse e exploração eram privadas. Havia artífices e vendedores ambulantes ‘independentes’ nas cidades. Os nossos dados não permitem a quantificação, mas não acredito que seja possível considerar esta KOEBNER, Robert. Despot and Despotism: Vicissitudes of a Political Term. Warburg: Journal of the Warburg and Courtauld Institutes (Vol. 14, n.° 3/4). 1951, p. 277. 16 PLATÃO, As Leis, 697C. 17 Idem, As Leis, 693d - 696c. 18 Sobre o império aquemênida em Platão, Cf. LENFANT, Dominique. Les Perses vus par les Grecs. Paris: Armand Colin, 2011, p. 277-282. 19 MANNING, J. G. MORRIS, Ian. The Ancient Economy. Stanford: Stanford University Press, 2007. p. 12 e ss. 20 FINLEY, Moses Israel. A Economia Antiga. 2ª Edição, revista e ampliada. Porto: Edições Afrontamento, 1986. 15
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gente como representando o padrão dominante da economia. O mundo greco-romano, pelo contrário, era essencial e precisamente um mundo de propriedade privada, quer de alguns hectares de terra, quer dos imensos domínios dos senadores e imperadores romanos, um mundo de comércio privado e de indústria privada.21
Tal visão teórica é coroada pela reiterada ênfase dos estudiosos no poder absoluto do rei persa, muitas vezes contraposto à liberdade cívica antiga.22 Na Pérsia, segundo alguns, o rei seria o verdadeiro titular de virtualmente todas as propriedades fundiárias, não passando os particulares de meros possuidores desprovidos de qualquer mecanismo contra expropriações e aquisições hostis.23 À luz de alguns cuidados teóricos e estudos recentes, os historiadores fariam bem em mitigar essa perspectiva tradicional. Em primeiro lugar, porque nem as fontes clássicas, nem a evidência oriental permitem insistir na ideia de uma soberania persa que se coloca “acima” do direito, capaz de afastar pura e simplesmente os ditames da lei costumeira e frustrar totalmente as expectativas dos particulares. Depois, contrariando as brumas do orientalismo, devido à relevância muito maior das inovações dos aquemênidas no campo legal do que o contrário. Como se sabe, a atividade legiferante dos reis persas não se dava num vácuo normativo, seu sistema legal continha mecanismos inovadores e a condução de processos judiciais na Babilônia desse período era formalizada e sofisticada. É irrelevante, para nossos propósitos, insistir na óbvia indistinção relativa entre direito, cultura e poder na antiguidade. A noção de direito como um sistema autônomo da sociedade, pairando sobre, digamos, a política e a religião, seria estranha aos gregos e persas. Isso em nada enfraquece a importância de um recorte analítico à luz de categorias modernas, instrumento didático que visa, tão somente, possibilitar a adoção de novas perspectivas teóricas sobre as relações sociais e políticas no mundo antigo. De uma perspectiva normativa, o direito é um conjunto de regras e normas de conduta aplicadas coercitivamente.24 Trata-se, portanto, de uma categoria deôntica, dizendo respeito à maneira como as pessoas deveriam reger suas condutas, mas que não entretém relação de identidade com a vida material. Essa distância entre a forma e a substância levou os autores clássicos a representar os reis persas de maneira ambígua, por vezes realçando a transgressão de normas, noutros casos sugerindo uma ação conforme à lei, a depender da avaliação de um monarca individual a que pretendiam
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Idem. p. 35. BROSIUS, Maria. The Persians. Nova Iorque: Routledge, 2006. p. 32; 76-78. 23 Cf. a esse respeito BRIANT, Pierre. Histoire de L’Empire Perse: de Cyrus à Alexandre. Paris: Fayard, 1996, p. 427 e ss. 24 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 15. 21
conduzir sua audiência. Mesmo os clássicos, entretanto, jamais negaram a existência de uma espécie de direito público persa regendo a relação dos governos com os particulares, isto é, de um conjunto de normas cogentes circunscrevendo, ao menos em teoria, a ação dos reis. Os exemplos são muitos. Se Aristóteles, na Política, admite que as monarquias bárbaras se conformavam à lei, como já dissemos, Platão nos informa sobre as normas que Dario I teria estabelecido entre os persas após sua ascensão ao trono, tendo por fito promover “certa igualdade” política.25 Os autores, portanto, não ignoravam a aderência dos monarcas às regras. Heródoto, por sua vez, nos conta do papel da lei costumeira (νόμος) num episódio de suas Histórias. Segundo o historiógrafo, a rainha, Améstris, tendo descoberto a existência de um romance entre Xerxes I e a sobrinha, Artainta, aproveitou as exigências de um costume persa para requisitar ao rei autoridade sobre a cunhada, quem julgava verdadeiramente responsável pelo incidente. O rei, a princípio, relutou em aceitar o pedido, mas foi, finalmente, suplantado pela norma.26 Plutarco também nos reporta uma história parecida, em que Artaxerxes II, ao indicar o filho Dario à sucessão, foi obrigado a fazer-lhe uma concessão por força do costume. E o pedido que o rei foi forçado a acatar não era de pequena monta. Dario queria, nada mais nada menos do que Aspásia, uma das concubinas do rei.27 Em outras esferas, os persas possuíam disposições regulando as ações dos reis contra particulares. Heródoto menciona uma norma persa segundo a qual não seria permitido ao rei executar um indivíduo por apenas uma ofensa28 e, ainda, quanto ao direito internacional, nos informa que foi Xerxes I, e não os gregos, quem demonstrou respeito à imunidade diplomática dos embaixadores, observando o ius gentium nascente (“τὰ πάντων ἀνθρώπων νόμιμα”)29. Outra disposição, também mencionada por Heródoto, impediria a aplicação da pena contra um delinquente antes da ponderação de seus bons e maus serviços em juízo.30 Os gregos, é claro, tiveram a sagacidade de perceber que, na prática, esses usos e costumes poderiam ser infringidos. Assim, tanto Heródoto quanto Plutarco nos falam das relações incestuosas de Artaxerxes II e Cambises I com suas consortes, contrárias ao costume, mas legitimadas pelos reis
PLATÃO, As Leis, 695d. HERÓDOTO, 9.111. 27 PLUTARCO, Vida de Artaxerxes, 27. 28 HERÓDOTO, 1.137. 29 Idem, 7.136. 30 Idem, 1.137; 7.194. 25 26
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a partir das atribuições autocráticas que eles alegavam deter, igualmente, por direito.31 Cambises, notese, é caracterizado por Heródoto como um rei de excessos, indiferente aos costumes persas ou aos costumes dos povos dominados (embora esse retrato não se conforme bem às outras fontes de que dispomos). Por fim, Heródoto relata mais de uma vez a oposição, presente nos discursos dos espartanos, entre a obediência dos lacedemônios à lei e a obediência dos persas à vontade do rei, colocando esses últimos na posição de escravos de um ato volitivo individual.32 Mesmo nesses casos, contudo, é preciso notar que o fracasso em se ater à dimensão normativa não seria exclusividade dos persas e, mais importante, que o conflito do rei com a norma implicava na necessidade de encontrar legitimidade noutra disposição imperativa. A autoridade suprema dentro do império pertencia, sem dúvida, ao rei, cujas prerrogativas compreendiam até mesmo a supervisão e eventual punição dos “juízes reais”33, guardiães e intérpretes do direito costumeiro iraniano.34 A pretensão do rei à legitimidade, contudo, presumivelmente o levaria a se ancorar mais na reprodução dos protocolos e regras herdadas do que na pura expressão de sua vontade. As injunções reais produziam direito, mas também participavam de um ordenamento jurídico fundamentalmente costumeiro. Nas palavras de Rachel Magdalene, o rei “não estava acima da lei, mas era parte integrante dela”. 35 Ou, ainda, como se expressaram Dandamaev e Lukonin: Os persas tinham seu próprio direito primitivo baseado nos costumes. As decisões do rei eram o tribunal de último grau recursal e não estavam sujeitas a alterações, mas o rei era obrigado a governar em conformidade com as práticas tradicionais dos persas e tinha que buscar conselho junto aos representantes dos sete principais clãs da aristocracia, que cumpriam um papel central na vida jurídica do país.36
Os persas, ao que tudo indica, não produziram códigos de leis escritas, contendo regramentos abstratos para serem aplicados em seu país de origem ou no império. Em primeiro lugar, tal fato não deveria causar surpresa, uma vez que toda a evidência documental jurídica anterior aos aquemênidas tem levado os especialistas a reafirmar a ausência, entre os povos do Oriente Próximo, de leis escritas HERÓDOTO, 3.3. PLUTARCO, Vida de Artaxerxes, 23. Idem, 7.104 e 7.136. 33 Idem, 5.25; 7.194. 34 BRIANT, Pierre. Histoire de L’Empire Perse: de Cyrus à Alexandre. Paris: Fayard, 1996. p. 142. 35 MAGDALENE, F. Rachel. Judicial an Legal Systems: Achaemenid Judicial and Legal Systems. Encyclopaedia Iranica, 2009. Disponível em: <http://www.iranicaonline.org/articles/judicial-and-legal-systems-i-achaemenid-judicial-and-legal-systems>. Acesso em: 27 de março de 2016. 36 DANDAMAEV, Muhammad A. LUKONIN, Vladimir G. The Culture and Social Institutions of Ancient Iran. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 117. 31 32
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e sistemáticas equivalentes aos diplomas legais da modernidade codificadora. Em segundo, a própria documentação jurídica do império é esparsa, diversa e multifacetada, indicando antes o casuísmo do que qualquer normatividade centralizadora. As disposições dos textos legais mesopotâmicos, dissemos, eram casuísticas, sem pretensão de exaustividade e, para muitos autores, não eram normativas. A respeito desses “códigos”, entre eles aquele que leva o nome de Hamurabi, autores como Kraus e Bottéro asseveraram terem estes cumprido o papel de tratados acadêmicos sem finalidade prática. Outros autores consideraram tais documentos meros tratados instrutivos ou subsidiários.37 Nas palavras de Bottéro, “o
‘Código’ não era
de forma alguma destinado a exercer por si mesmo um valor normativo unívoco na ordem legislativa, mas um valor de modelo, instrutivo e educativo, na ordem judiciária”.38 E, ainda: Para concluir, seria o Código de Hamurabi um código de leis? Não! E eis o porquê. O código de leis de um país é antes de tudo um apanhado completo de leis e requisitos legais que regem esse país: “o conjunto da legislação”. (...) Mesmo entre os temas abordados, com mais ou menos detalhes, no texto, muitos dos pontos capitais são relegados às sombras, até mesmo escamoteados, preterição que é difícil de justificar em um código autêntico. 39
Além da referida (e preponderante) visão quanto à natureza jurídica dos códigos antigos, é preciso dizer que a hipótese de Olmstead de que os persas teriam criado uma espécie de Código Imperial não foi amparada pela documentação disponível.40 A “lei dos medos e dos persas” à qual se referem as fontes bíblicas41 deve corresponder, basicamente, a um conjunto de normas costumeiras e injunções reais voltadas a casos particulares. A “lei do rei” à qual as inscrições reais42 e algumas fontes babilônicas se referem deve, na bem fundamentada opinião de Briant, denotar os regulamentos fiscais do império43, ou, na visão de Sophie Démare-Lafont, ser uma referência a verdadeiros rescritos reais, isto é, opiniões jurídicas dos monarcas acerca de casos complexos, que adquiriam valor normativo a partir do momento em que eram invocadas e impostas pela autoridade judicial.44 BOUZON, Emanuel. Origem e Natureza das Coleções do Direito Cuneiforme. São Paulo: Revista Justiça e História (v. 2, n. 3), 2002. 38 BOTTÉRO, Jean. Mésopotamie. Le “Code” de Hammurabi. In: L'écriture, la raison et les dieux. Paris: Gallimard, 1987, p. 303. 39 Idem, p. 292. 40 OLMSTEAD, Albert T. History of the Persian Empire. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1948. p. xiv. 41 Daniel, 6.8; Ester, 1.19; 8.8. 42 DB, I. §8°; DSe, §3; XPh, §4°d. Apud KUHRT, Amélie. The Persian Empire: a corpus of sources from the Achaemenid Period. New York: Routledge, 2007. 43 BRIANT, op. cit., 1996, p. 526-528; 981-982. 44 DÉMARE-LAFONT, Sophie. dātu ša šarri. La “loi du roi” dans la Babylonie achéménide et séleucide. Paris: Revista Droit et Cultures (vol. 52.), 2006, p. 13-26. 37
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Em verdade, a lei do rei era a lei local, à qual se atribuía validade e vigência por meio do seu reconhecimento pelo poder central. É precisamente por isso que Peter Frei chegou a defender a existência de uma “autorização real”, fenômeno definido como “um processo por meio do qual as normas estabelecidas pela autoridade local não são apenas aprovadas e aceitas pela autoridade central, mas adotadas como suas próprias normas”.45 Amparando tal teoria, o autor de Esdras, ao mencionar uma suposta carta do rei Artaxerxes, afirma que “a lei do seu Deus” seria “a lei do rei”.46 Da mesma forma, a tradição reporta que Dario I teria ordenado a uma comissão de escribas que compilasse os precedentes legais egípcios para estabelecer um corpus de normas aplicáveis localmente.47 Tal configuração jurídica demonstrava a engenhosidade e inovação dos aquemênidas, que encontraram uma primeira solução institucional para o problema da diversidade normativa internacional ao acolher como válidas as normas originais de cada povo, integrando-as a um sistema supranacional. Alguns autores, ademais, supuseram lógico o desenvolvimento de um direito comum persa em todo o império (ius commune achemenide), consubstanciado em princípios gerais, como a Arta (supostamente correspondente à epiekeia grega, isto é, a justiça do caso concreto).48 Pela ótica do direito internacional, tais desenvolvimentos se somariam a outros institutos já reconhecidos pelos persas, destacando-os pela elaboração de um incipiente ius gentium.49 Como dissemos, as injunções do rei da Pérsia eram fonte de direito e se destinavam a casos específicos. Um exemplo célebre é a ordem destinada a reforçar um costume perante a insolência da rainha Vasti, em Ester. Tais injunções tinham o valor de sentença e, uma vez escritas, eram imutáveis, como atestam, contrariamente à opinião de alguns comentaristas,50 os autores de Ester e Daniel51, e, possivelmente, Diodoro Sículo.52 O próprio Código de Hamurabi, note-se, contém indícios da concepção de imutabilidade das sentenças muitos séculos antes do advento dos aquemênidas.53 A regra ne bis in idem também pode ser inferida a partir de documentos legais do terceiro milênio a.C., nos quais FREI, Peter. Persian Imperial Authorization: A Summary. In: WATTS, James W. Persia and Torah: The Theory of Imperial Authorization of the Pentateuch. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2001, p. 7. 46 Esdras, 7.26. 47 BRIANT. Op. cit., 1996, p. 490. 48 BUCCI, Onorato. L'impero achemenide come ordinamento giuridico sovrannazionale e arta come principio ispiratore di uno "ius commune Persarum" (data). Roma: École Française de Rome, 1983, p. 89-122. 49 Para uma visão geral, Cf. CASELLA, Paulo Borba. Direito Internacional no Tempo Antigo. São Paulo: Editora Atlas, 2012. pp. 233-258. 50 MOORE, Carey A. Esther: A New Translation. Nova Iorque: The Anchor Bible, 1971, p. 11. 51 Ester, 3:1-15; Daniel, 6:14-16 52 DIODORO SÍCULO, Biblioteca Histórica, 17.30.6. 53 Código de Hamurabi, Juiz Corrupto, §5. 45
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os litigantes são obrigados a prestar juramento comprometendo-se a não insistir na mesma ação contra a mesma parte.54 Montesquieu, núncio da crítica orientalista, ironiza a irrevogabilidade das injunções reais e a menciona apenas para denunciar a irracionalidade do despotismo persa, uma vez que esse mecanismo poderia tornar insanável um vício grosseiro.55 Não obstante, tal imutabilidade era antes um sinal de limitação do arbítrio real, estabelecendo segurança jurídica ao reconhecer, pioneiramente, uma espécie de coisa julgada (res iudicata) ou preclusão da sentença do rei. Em todo o império, tribunais locais aplicavam os costumes de cada povo ao resolver litígios. A justiça do rei, que, como vimos, não admitia recurso, era o maior grau dessa estrutura jurídica. Os reis distribuíam a justiça segundo determinados procedimentos e preceitos, e os autores clássicos dão testemunho de julgamentos nos quais o sopesamento das qualidades do réu, sua resposta e a proporcionalidade são levados em consideração para a formulação de um juízo final: Dario I considera as boas obras de Sandokes ao absolvê-lo por ter-se deixado subornar56, enquanto Ciro, o menor, condena Orontas à morte após obter sua confissão num interrogatório e formar um juízo puramente racional.57 Apesar de conter distorções literárias consideráveis, a Ciropédia de Xenofonte apresenta uma simulação de tribunal de Ciro, o Grande, no qual o então menino teria feito uso de um juízo de proporcionalidade ao resolver uma disputa sobre direito de propriedade.58 Além da justiça do próprio rei, conhecemos bem os tribunais locais da Babilônia, onde os templos, as assembleias das cidades, os juízes reais e o sátrapa tinham competência para julgar disputas relativas a propriedades e ofensas privadas. Para alguns autores, quanto à jurisdição, poder-se-ia falar em tribunais “sociais” destinados à resolução de litígios advindos de conflitos entre privados, e tribunais “reais” incumbidos de julgar lides relativas às propriedades públicas ou nas quais o Estado fosse parte.59 Esses tribunais tinham caráter inquisitivo, havendo confusão entre os julgadores e o acusador. Eles seguiam fases bem delineadas, com propositura da ação, citação, resposta do réu, instrução, prolação da sentença e execução. Numa impressionante antecipação de um mecanismo jurisdicional da WILCKE, Claus. Care of the Elderly in Mesopotamia in the Third Millernium B.C. In: STOL, Marten. VLEEMING, Sven P. (eds.) The Care of the Elderly in the Ancient Near East. Nova Iorque: Elmer Holmes Bobst, 1998, p. 55. 55 MONTESQUIEU. Op. cit., 2004, p. 69. 56 HERÓDOTO, 7.194. 57 XENOFONTE, Anabasis, 1.6. 58 Idem. Ciropédia, 1.3.16-17. 59 FRYE, Richard N. The Heritage of Persia. Londres: Weidenfeld and Nicolson. 1993, p. 105. 54
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tradição romanística, tais cortes admitiam recurso de apelação. Além disso, ao contrário do que já foi sustentado60 a instrução dos juízes se dava, crescentemente, por meio de evidências racionais e testemunhais, em contraste com o frequente uso de ordálias e juramentos nos processos da tradição oriental anterior. Uma modalidade de sentença, “condicional”, por exemplo, exigia a apresentação de uma testemunha adicional para que a decisão fosse validada ou tornada exequível, o que demonstra a relevância da evidência testemunhal nesses tribunais.61 A esse respeito, a rica documentação processual a que temos acesso é um inestimável tesouro. A importância das testemunhas e o fenômeno da sentença “condicional”, por exemplo, figuram no seguinte documento, datado do reinado de Artaxerxes I (434 a.C.): Na eventualidade de [Aqubu] ser pego com mais do que essas 110 ovelhas, pela posse de bens roubados, ou (por) um informante ou uma testemunha, Aqubu deverá pagar 300 ovelhas a Enlil-šuma-iddin. Testemunhas: Ubar, filho de Bunene-ibni; Ninurta-nādin-šumi, filho de Ubalissa-Marduk; Ribat, filho de Niqudu; Bel-nasir, filho de Bēl-ušēzib Nusku-iddin, o escriba, filho de Arad-Gula. Nippur. 8. Nisannu, ano 31 de Artaxerxes, rei de países.62
Os reis babilônicos e, depois, aquemênidas, respeitavam tais instituições judiciais. Os chamados “juízes reais” (dayyani ša šarri), por exemplo, oficiais que entretinham aferível relação com o poder central, pertenciam à elite da Babilônia e continuaram a servir no cargo mesmo após a ascensão de Ciro II e a ruptura com a velha ordem. A evidência documental indica que os reis não depunham ou investiam novos funcionários quando havia uma alteração na sucessão. Parece, antes, que os reis neobabilônicos e aquemênidas respeitavam a “supremacia da lei” e conferiam certa autonomia a tais funcionários. Nós conhecemos, inclusive, o exemplo de Nabucodonosor, que respeitou as formalidades processuais num caso em que acusava um traidor perante um tribunal.63 Notavelmente, o período neobabilônico tardio e o período aquemênida assistem ao advento do que poderíamos chamar de um direito administrativo. Documentos do período demonstram que, nessa época, os tribunais passaram a regular as responsabilidades de suas autoridades ao cominar uma
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Idem. WELLS, Bruce. The Law of the Testimony in the Pentateuchal Codes. Wiesbaden: Harrasowitz Verlag, 2004. p. 118 e ss. 62 HOLTZ, Shalom E. Neo-Babylonian Trial Records. Atlanta: Society of Biblical Literature, p. 39. 63 Idem, p. 9. 60
sanção à inobservância dos deveres administrativos. Assim, uma série de documentos analisados por F. Magdalene apresenta, por meio de uma cláusula fixa, um oficial “cedente”, ao qual se atribui diretamente uma responsabilidade, um cessionário e uma terceira autoridade superior à qual cabe a aplicação de uma penalidade contra o cessionário na hipótese deste violar os deveres que lhe foram delegados.64 Se o cenário do direito público persa não era, por assim dizer, puramente determinado pelas arbitrariedades e caprichos do poder central, a situação do direito privado não seria diferente. Mesmo assim, ao abordar a propriedade fundiária na antiguidade oriental, há aqueles que evitam o emprego da noção romana devido ao parcelamento dos direitos reais dos particulares ou em razão das grandes restrições ao direito de alienar bens imóveis nessa época. Moses Finley, ao abordar a economia dos antigos, agrupa as sociedades orientais sob o modelo de complexos dominados por instituições palaciais, detentoras da maior parcela da terra cultivável. Para alguns autores, pensando nos mesmos termos, o rei aquemênida seria, em tese, o proprietário de todas as terras do império, restando aos possuidores das propriedades agrárias a posição de destinatários de direitos concedidos pelo monarca.65 Ao contrário do que poderia indicar o modelo de Finley, contudo, nossa documentação atesta a presença de terras cultiváveis cujos titulares eram famílias e particulares, inclusive durante os períodos neobabilônico e aquemênida. As terras eram vendidas, herdadas e entregues em garantia.66 A visão da propriedade teórica absoluta do rei também foi contestada recentemente por autores que identificam vários tipos diferentes de títulos no império e recusam que tal noção tivesse sido formulada nesse período.67 Mesmo que o rei pudesse expropriar os fazendeiros, ademais, ele não tinha interesse em confiscar as terras dos súditos exceto em ocasiões excepcionais. Assim, é preciso ter muito cuidado ao reduzir a vida econômica do Oriente Próximo a um modelo de economia planificada e palacial, ignorando os direitos e iniciativas dos entes privados, que parecem ter conduzido seus negócios sob o amparo dos sistemas legais locais.68
MAGDALENE. Op. cit., 2009. BRIANT. Op. cit., 1996. p. 427. 66 BEDFORD, Peter R. The Economy of the Near East in the First Millennium BC. In: MANNING, J. G. MORRIS, Ian. The Ancient Economy. Stanford: Stanford University Press, 2007. p. 79 e ss. 67 DANDAMAEV Muhammad A. Economy in the Achaemenid Period. Disponível em: <http://www.iranicaonline.org/articles/economy-iii>. Acesso em: 27 de março de 2016. 68 Cf. a esse respeito ELLICKSON, Robert C. THORLAND, Charles D. Ancient Land Law: Mesopotamia, Egypt, Israel. Yale: Faculty Scholarship Series (Paper 410), 1995. 64 65
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Por essa ótica, portanto, o direito aquemênida revela uma outra face do poder político exercido pelos reis. O rei, autoridade teoricamente suprema, governava, em grande medida, conforme as normas costumeiras dos persas. Ele tinha suas faculdades restritas pela “imutabilidade” de suas sentenças, o que criava um ambiente de pacificação e segurança jurídica. Ele respeitava o processo legal e a autoridade dos oficiais reais que vigiam na Babilônia. Ele reconhecia e respeitava institutos do direito internacional, como a imunidade diplomática dos embaixadores. Ele conferia validade às normas locais, estabelecendo os primeiros e tímidos critérios de resolução de conflitos dentro de uma entidade pluriétnica. Seus tribunais julgavam conforme critérios e normas racionais e garantiam a satisfação das expectativas no advento de pretensões resistidas levadas à justiça, que, enquanto instituição, começava a criar normas administrativas para o seu próprio funcionamento. Nada, portanto, poderia ser mais distante do retrato que da Pérsia antiga pinta Montesquieu e aqueles que seguem em seu encalço.
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“a corajosa mulher”:
Representações femininas de poder na Inglaterra Anglo-Saxônica* Elton O. S. Medeiros** RESUMO: Nas fontes literárias do período da Inglaterra anglo-saxônica, assim como em outras sociedades europeias da época, é comum a presença de personagens masculinas (ficcionais ou históricas) desempenhando papeis heroicos, sendo figuras centrais de tais narrativas. Contudo, em tal documentação temos personagens femininas na posição de líderes militares frente à grandes adversidades, algo singular na documentação existente. Esse artigo visa abordar a relação entre tais personagens femininas na literatura anglo-saxônica e sua importância para os estudos na área. PALAVRAS-CHAVE: Inglaterra anglo-saxônica; Æthelflæd; Judite, Inglês Antigo.
“THE BRAVE LADY”: REPRESENTATIONS OF FEMININE POWER IN ANGLO-SAXON ENGLAND. ABSTRACT: In the literary sources from the times of Anglo-Saxon England, as it happens in other European societies from the same age, it is usual the presence of male characters (fictional or historical) playing heroic roles as central figures in those narratives. However, within these same sources there are feminine characters behaving as military leaders facing great peril, something unusual in the sources of the period. The aim of this article is to show the relationship between these feminine characters of the Anglo-Saxon literature and their importance for further analysis in this field of studies. KEYWORDS: Anglo-Saxon England; Æthelflæd; Judite; Old English. ***
Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada durante o evento Gender and Medieval Studies Conference 2014 realizado na Universidade de Winchester, Inglaterra, durante o mês de janeiro de 2014. Agradeço profundamente a Elena Woodacre e Katherine Weikert pela leitura, críticas e sugestões da versão prévia desse texto. Quando não explicitado, todas as traduções do inglês antigo para o português são de nossa autoria. ** Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, professor de História Medieval da Faculdade Sumaré (SP), membro da International Society of Anglo-Saxonists – ISAS e BRATHAIR – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos; e-mail: eosmedeiros@hotmail.com *
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Introdução
A
importância de elementos como fama, riqueza, prosperidade, honra, lealdade e coragem, vinculados a personagens masculinos emblemáticos, se manifesta de forma muito evidente nas fontes escritas de todo o período da Inglaterra anglo-saxônica
(c. 500 – 1066). Orgulhosas figuras masculinas, projeções ou construtos de um ideal de sociedade, são comumente interpretados como um elemento chave do mundo anglo-saxônico medieval. Entretanto, entre as personagens de tais narrativas – a respeito dos feitos de corajosos guerreiros e homens santos destemidos encarando inimigos ferozes, monstros e mesmo o próprio Demônio – existe um número significativo de personagens femininas. De maneira geral, figuras femininas nesse contexto anglo-saxônico são representadas por personagens devotas, leais, passivas e submissas. Apesar disso, é possível encontrarmos personagens femininas que se adéquam confortavelmente a um papel mais aguerrido: na literatura em inglês antigo, com Judite, no poema homônimo, confrontando o exército assírio e, na realidade política da Inglaterra do século X, Æthelflæd, a “Senhora dos Mércios”, filha de Alfred o Grande, com sua liderança contra os invasores vikings. Diferentemente de outras personagens femininas, elas são caracterizadas como figuras de suma importância à frente de seu povo em momentos de grande perigo. Sendo assim, os propósitos deste artigo são destacar algumas similaridades entre essas duas figuras femininas da Inglaterra anglosaxônica e uma possível ligação entre elas. Algo que poderia ir além do estudo de gênero propriamente dito e adentrar no campo da investigação sobre a elaboração de textos detentores de valores ideológicos, ou melhor, “propagandístico” dentro de tal sociedade.
Heroísmo textual A respeito das fontes textuais da Alta Idade Média inglesa, uma parte muito importante da literatura vernácula anglo-saxônica foi escrita em verso. Inicialmente voltadas a apresentações públicas, podemos dizer que a poesia anglo-saxônica representava não exatamente a voz ou os anseios de
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um único indivíduo, mas os valores de sua sociedade – ainda que, infelizmente, não se possa falar da
existência de nenhuma mulher poetisa anglo-saxã conhecida. Tais obras, assim como podemos constatar em outras fontes semelhantes do período vinculadas a elementos legislativos e religiosos, se baseavam tanto nas tradições do passado germânico quanto cristão. Uma das formas mais conhecidas de manifestação da poesia em inglês antigo é o que podemos chamar de “poesia heroica”, como um contraponto ao que também podemos chamar “poesia religiosa”. Contudo, a utilização do termo “poesia heroica” é algo extremamente subjetivo, principalmente no que concerne à própria definição do que seria “heroico” neste cenário norte-europeu de fundo cristão e germânico.1 Talvez, especificamente dentro do contexto da cultura literária anglo-saxônica, nós não possamos dizer que exista de fato uma “poesia heroica”, mas que seu “heroísmo” seria na verdade um elemento da poesia em inglês antigo como um todo, e não um simples ramo da literatura anglo-saxônica. Uma vez que é possível encontrá-lo tanto na poesia religiosa quanto secular, assim como nas obras em prosa do período (por exemplo, textos como As Maravilhas do Oriente e a Carta de Alexandre para Aristóteles). De forma geral, ao falarmos sobre poemas heroicos rapidamente recordamos de textos como Beowulf, A Batalha de Maldon2 e O Fragmento de Finnsburh. 3 Entretanto, poemas como, por exemplo, Êxodo, Guthlac e Judite – tradicionalmente considerados como poemas religiosos e hagiográficos – também detêm os mesmos e importantes elementos heroicos, os quais poderiam ser identificados de forma abrangente através de quatro pontos principais na literatura em inglês antigo: a) Uma ênfase a respeito de elementos marciais, b) Personagens que estão de alguma maneira além dos padrões humanos, c) A ameaça de uma grande adversidade, d) A lealdade incondicional ao líder (seja o senhor terreno ou Deus). Podemos ainda acrescentar a essa lista um quinto item que é o ideal ou o conceito de: e) Sabedoria e Força (Sapientia et Fortitudo).
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MURDOCH, Brian. The Germanic Hero: Politics and Pragmatism in Early Medieval Poetry. Londres: Hambledon Press, 1996, p. 1 – 32. 2 MEDEIROS, Elton O. S. “A Batalha de Maldon”, Brathair 12 (1), 2012, p. 161 – 183. 3 MEDEIROS, Elton O. S. Beowulf. São Paulo: Ed. 34, 2016 (no prelo). 1
Esse ideal foi identificado primeiramente por Ernst Curtius em seu trabalho Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (1948) e posteriormente utilizado por R. E. Kaske no contexto da Inglaterra anglo-saxônica – mais especificamente no estudo sobre Sabedoria e Força como os temas norteadores do poema Beowulf.4 Esse mesmo ideal pode ser encontrado nos escritos de Alcuíno de York – principalmente seus textos poéticos5 – e, mais importante, na Etymologiae de Isidoro de Sevilha quando explica o conceito de “herói”: Heroicum enim carmen dictum, quod eo virorum fortium res et facta narrantur. Nam heroes appellantur viri quase aerii et caelo digni propter sapientia et fortitudinem. [“São chamadas de canções heroicas porque falam sobre os feitos de homens de valor. São chamados heróis especialmente os homens dignos do céu por sua sabedoria e força”].6
Assim, a partir de tais características para a elaboração do topos heroico nas fontes em inglês antigo, poderíamos argumentar que uma parte importante do heroísmo anglo-saxônico seria o resultado da performance de um indivíduo em batalha: o efeito produzido por personagens a partir de atitudes específicas tomadas dentro das particularidades de papéis sociais definidos em relação à beligerância e a guerra em si.7 Dessa forma, enquanto poder e status poderiam ser representados através de um grande horizonte de elementos, como contatos ou vínculos sociais e posses – como bens móveis, propriedade, laços matrimoniais e genealogias de prestígio –, o heroísmo seria representado por meio do envolvimento e desempenho da personagem em combate (físico ou espiritual). Um grande problema é o fato de que por muito tempo – ao menos até a metade do século XX – o tratamento dado a essa ideia de heroísmo na cultura e literatura anglo-saxônica estava profundamente vinculada a uma perspectiva centrada em figuras masculinas, onde muito pouco era dito sobre personagens femininas.8 Essa tendência, de se voltar exclusivamente ao heroísmo masculino e subestimar o papel das mulheres em tais fontes, conduziu ao que se tornou um senso comum entre
KASKE, R. E., “Sapientia et Fortitudo as the controlling theme of Beowulf”, Studies in Philology 55, 1958. SCHEIL, Andrew P. The Footsteps of Israel: Understanding Jews in Anglo-Saxon England. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004, p. 147 – 151. 6 SEVILHA, Isidoro. Etymologiae, livro I, cap. 39. 7 KLEIN, Stacy S. Ruling Women: Queenship and Gender in Anglo-Saxon Literature. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2006, p. 91. 8 Ibid. p. 88. 4 5
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os pesquisadores: os componentes do binômio “heroísmo e mulher” como duas coisas completamente diferentes, senão opostas.9 E ainda mais problemático, podemos dizer que essa forma tradicional de lidar com as fontes excluiu também a possibilidade de análises apropriadas dos papéis desempenhados e as motivações de tais mulheres em tais narrativas, assim como em outros tipos de fontes anteriores à conquista normanda no século XI.10
“A Corajosa Mulher” Sem dúvidas nós podemos dizer que o poema Beowulf é um dos mais importantes e famosos textos da poesia anglo-saxônica e detentor de um grande número de estudos dedicados a ele, com uma longa tradição de pesquisas. Contudo, compartilhando o mesmo manuscrito em que se encontram as façanhas do herói matador de monstros, mas não tão popular quanto, se encontra o poema em inglês antigo conhecido como Judite. É muito bem conhecida a importância e a influência do Velho Testamento nas fontes escritas da Inglaterra anglo-saxônica.11 Enquanto entre os francos havia uma predileção a emular o passado clássico – do mundo romano e mesmo a lenda da origem troiana dos francos – entre os anglo-saxões existia uma forte identificação com a representação da sociedade e a história dos hebreus veterotestamentários, com as tribos de Israel e o conflito contra os pagãos inimigos de Deus e de seu povo escolhido. Por exemplo, no período da “Baixa Inglaterra Anglo-Saxônica” (séculos IX – XI), podemos encontrar nas fontes da época referências ao livro de Jeremias12 a respeito dos invasores vindos do norte contra Israel como um paralelo para as invasões escandinavas; e o tema sobre a Criação divina – como descrito no livro do Gênesis – como um assunto recorrente em textos como no poema de
Ibid. p. 87. LERER, Seth. “Beowulf and Contemporary Critical Theory” in: BJORK, Robert E. & NILES, John D. A Beowulf Handbook, Lincoln: University of Nebraska Press, 1998, p. 336. 11 MEDEIROS, Elton O. S. “Alfred o Grande e a Linhagem Sagrada de Wessex: a construção de um mito de origem na Inglaterra anglo-saxônica”. Revista Mirabilia n. 13, v. 2, 2011, p. 134 – 172. 12 Isto pode ser visto nas cartas de Alcuíno e também no livro do profeta Jeremias (Jr 1, 14; 4, 6; 6, 22-23). Ao lermos Jeremias é clara sua influência referente não só aos ataques, mas também a questão de idolatrias e práticas pagãs. O livro de Jeremias se encaixa perfeitamente no sermão de Wulfstan, Sermo Lupi ad Anglos (e, por que não dizer, em Beowulf em relação aos ataques de Grendel e os cultos pagãos dos versos 175-188). Dentre os livros das Sagradas Escrituras, entre os mais apreciados estariam justamente os profetas. Isto ocorria possivelmente devido a temática e a forma de se expressar ser semelhante ao mundo germânico anglo-saxão em que viviam; cf. PAGE, R. I. “The Audience of Beowulf and the Vikings” In: CHASE, Collin. The Dating of Beowulf, Toronto: Toronto University Press, 1997, p. 187. 9
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autoria do lendário Caedmon, em Beowulf e no poema em inglês antigo Gênesis, entre outros. É interessante também observar o fascínio sobre os aspectos militares do Velho Testamento. Livros bíblicos como Judite, Macabeus, Reis e outros eram recorrentes em homilias anglo-saxônicas, como um modelo para o período de resistência frente aos vikings. Um exemplo de como essa tradição bíblica e seus aspectos militares se mesclaram à tradição heroica germânica pode ser visto no poema supracitado: Judite – que é uma reinterpretação inspirada no livro bíblico de mesmo nome – e na homilia de Ælfric baseada no mesmo livro bíblico e também chamado Judite. Em ambos os textos anglo-saxônicos, mas principalmente no poema, é claro o poder de Deus manifesto como um “Senhor dos Exércitos” que assegura a vitória contra invasores através da figura da corajosa e leal Judite. O poema Judite é baseado no livro do Velho Testamento da Vulgata, mas em nenhum momento a obra em inglês antigo tenta ser uma reprodução poética em vernáculo do texto bíblico. Ele se utiliza dos principais elementos da narrativa original e os reconstrói dentro do contexto e dos elementos da produção poética do período. Onde podemos visualizar idealizações culturais e religiosas da sociedade anglo-saxônica. Por exemplo, no texto em inglês antigo, após o ataque dos hebreus sobre os assírios, é dito que: Hi to mede hyre of ðam siðfate sylfre brohton, eorlas æscrofe, Holofernes sweord ond swatigne helm, swylce eac side byrnan gerenode readum golde, ond eal þæt se rinca baldor swiðmod sinces ahte oððe sundoryrfes, beaga ond beorhtra maðma, hi þæt þære beorhtan idese ageafon gearoþoncolre. [“Como recompensa, o destemido guerreiro trouxe de volta para ela da expedição a espada e o sangrento elmo de Holofernes, assim como sua grande cota de malha adornada de ouro vermelho; e tudo que o implacável senhor dos guerreiros possuía de riquezas ou bens pessoais, de anéis e de belos tesouros, eles deram para aquela iluminada e astuta dama”] (Judite, vv. 334-341).
Enquanto a Bíblia diz apenas que:
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et dederunt Iudith tabernaculum Holofernis et omne argentum et lectus et vasa et omnem apparatum illius. [Deram a Judite a tenda de Holofernes, toda a sua prataria, os leitos, as vasilhas e todos os seus móveis] Judite 15, 11.
Infelizmente o início e o final do poema em inglês antigo estão perdidos e apesar das conjecturas a este respeito dificilmente iremos descobrir – baseados na pouca evidência que temos na atualidade – qual seria a verdadeira extensão do texto.13 Mesmo assim, tomando como referencial a fonte como a conhecemos e a maneira como foi reelaborada a história de Judite em inglês antigo, é clara a influência da hermenêutica cristã e da interpretação patrística do livro de Judite e os modelos da hagiografia latina. No poema, a personagem de Judite é representada por uma mulher fiel e virginal devotada a Deus, que concede a ela força espiritual para que seja capaz de empunhar uma espada e decapitar o terrível Holofernes – que é retratado como detentor de características monstruosas, mais em um sentido espiritual e moral do que físico – enquanto está bêbado e desacordado, após o grande banquete que proporcionou a seus homens. Com a morte de seu líder, a moral do exército assírio é destruída. Judite, então, consegue escapar da tenda de Holofernes e retorna ao campo dos hebreus, inflamando seus guerreiros com a novidade que trás e os incita a atacar, a avançar durante a alvorada totalmente equipados para o combate, prontos a aniquilar os comandantes inimigos com suas espadas reluzentes; tudo isso enquanto ela mostra à sua plateia a cabeça ensanguentada do infame Holofernes em suas mãos. O poema, como nós o conhecemos, termina com a vitória dos hebreus e Judite agraciada com muitos tesouros, espólios de guerra que são trazidos do campo assírio para ela e em especial aqueles itens que estavam na tenda de Holofernes. E quase ao final do poema o texto diz: eal þæt ða ðeodguman þrymme geeodon, cene under cumblum on compwige þurh Iudithe gleawe lare, mægð modigre [“Todo aquele povo venceu esplendidamente, valente sob seus estandartes no campo de batalha, por meio do sábio conselho de Judite, a corajosa mulher”] (Judith, vv. 331-334)
Como fica claro, uma das características principais do poema Judite é o fato de que sua personagem principal seja uma mulher. Diferentemente de muitas obras voltadas a narrativas heroicas da poesia anglo-saxônica, não é uma figura masculina que serve de ponto central da história. E é exatamente isso que faz do poema e de sua personagem nessa história algo único entre as obras literárias do período. Personagens femininas estão presentes em muitos poemas em inglês antigo. Temos, por
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ROSSER, Susan. “Judith” in: LAPIDGE, Michael. The Blackwell Encyclopaedia of Anglo-Saxon England. Blackwell: Oxford, 2001, p. 263-264. 13
exemplo, as rainhas Wealhtheow e Hildebuhr em Beowulf; Helena, mãe do imperador Constantino o Grande, no poema religioso apologético Elena; o poema hagiográfico Juliana ou ainda a personagem anônima do poema elegíaco O Lamento da Esposa. Em uma corrente mais tradicional de estudos a respeito da poesia heroica anglo-saxônica tais personagens costumeiramente seriam vistas como parte de um papel secundário da narrativa. No caso de Beowulf, por exemplo, elas seriam interpretadas como imagens aristocráticas idealizadas e símbolos de nobreza e moralidade, tradição e de uma cultura de corte (no caso de Wealhtheow); instrumentos de relacionamento político com outros reinos e tribos – através de matrimônio entre grupos rivais – e elegia (como a personagem de Hildebuhr), e exemplos de comportamento feminino apropriado e aceito por tais sociedades (ou o oposto: comportamento social inaceitável para uma mulher, representado pela personagem da temida e impetuosa rainha Modthrytho em Beowulf, vv. 1925-1962). Podemos dizer que essa concepção de uma personagem feminina anglo-saxônica passiva e submissa possa derivar em grande medida da ideia de que o único modelo de moral aceitável para eles (anglo-saxões ou para a mulher medieval de forma geral) era a figura da Virgem Maria. Assim, o papel principal da mulher anglo-saxônica, por esta convenção, seria se submeter a uma postura de passividade e se dedicar ao talento de ser capaz de “tecer a paz”14 (principalmente como esposa em uma corte estrangeira), um ideal que seria preenchido perfeitamente pelo arquétipo social e religioso da Virgem. Contudo, obviamente, essa seria uma visão muito obtusa ao se tratar esse assunto. Na interpretação teológica da patrística a principal virtude da Virgem Maria é sua anuência incondicional dos planos de Deus, o que a torna o exato oposto, por exemplo, da figura de Eva. A personagem de Eva no livro do Gênesis é aquela que se rebela contra a vontade divina, Maria é aquela que se submete ao Senhor; Eva é loquaz, Maria é o modelo do silêncio, entre outros exemplos. Através dessa interpretação viria o ideal da “passividade feminina”15. Entretanto, as manifestações da Virgem Maria ao longo da Alta Idade Média não são exatamente, ou melhor, não são sempre representadas por meio de um ser gentil e pacífico, como viria a ser assumido como uma regra geral. Não são raros os casos em que ela surge como uma “corajosa mulher”, encorajando seus seguidores à vitória em freoðuwebbe: do inglês antigo, “tecelã da paz” (Beowulf, vv. 1942); este é um epíteto muito comum dentro da poesia anglo-saxônica e que reflete a função destas mulheres dentro da narrativa. Elas costumavam representar um acordo de paz entre dois grupos, tribos ou reinos, onde a filha de um líder é entregue como noiva ao filho do outro líder, selando o acordo. Entretanto, dentro da literatura, tais acordos costumam sempre terminar de forma trágica. Cf. MEDEIROS, Elton. O. S. Beowulf. São Paulo: Ed. 34, 2016 (no prelo). 15 LEYSER, Henrietta. Medieval Women: A Social History of Women in England 450 – 1500. St Helen: Phoenix Press, 2002, p. 62. 14
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combate. Por exemplo, quando sua imagem apareceu nas muralhas de Constantinopla e encorajou os soldados, os auxiliando a salvar a cidade durante o cerco de 626 pelos ávaros. Após a vitória, coros entoavam o hino Akathistos em homenagem à Mãe de Deus, com uma nova abertura composta pelo Patriarca de Constantinopla, dando-lhe credito pelo feito: “Eu, vossa cidade, atribuo a vós, Mãe de Deus, poderosíssima comandante, o preço da vitória, e dou-vos graças por nossa libertação de uma terrível calamidade”. 16
Na Inglaterra anglo-saxônica o culto à Virgem Maria se desenvolveu cedo, possivelmente por meio da influência de Teodoro de Tarso, arcebispo de Canterbury, em c. 667, e sua “Escola de Canterbury”.17 Na literatura em inglês antigo ela é retratada em muitos textos em momentos e papéis de extrema importância, mas – o que é interessante – não exatamente como um modelo de passividade e submissão. Por exemplo, no poema Cristo I, a respeito de sua gravidez e do nascimento de Jesus, o texto em inglês antigo diz: þæt þu sie hlæfdige halgum meahtum wuldorweorudes, ond worldcundra hada under heofonum, ond helwara [“você, com suas virtudes sagradas, é Senhora das hostes celestes e dos desígnios terrenos daqueles sob os céus e dos que habitam o Inferno”] (Cristo I, vv. 284-286)
No caso do poema Judite, fica evidente que a noção tradicional do papel de uma personagem feminina dentro dos paradigmas de “passividade virginal” e “tecelã da paz” não se aplicam. Ao invés disso, o que temos é uma imagem muito mais próxima à da manifestação da Virgem Maria da Alta Idade Média como uma líder de seu povo sob a vontade de Deus. Diferentemente de outros textos, em Judite nós temos a figura de uma mulher como protagonista enquanto os representantes masculinos permanecem nos bastidores como meros personagens coadjuvantes. A única exceção é a personagem de Holofernes, uma vez que ele serve como o antagonista da trama, representando tudo que seria avesso a Judite e ao que ela representa. Além disso, exceto por Judite e Holofernes, nenhuma das outras personagens que aparecem no poema são nomeadas ou identificadas com clareza. Na verdade,
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ANGOLD, Michael. Bizâncio: A Ponte da Antiguidade para a Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 48. BISCHOFF, Bernhard & LAPIDGE, Michael. Biblical Commentaries from the Canterbury School of Theodore and Hadrian, Cambridge: Cambridge University Press, 2007. 16
não são nem mesmo representados como indivíduos. Eles são identificados apenas como grupos: os hebreus e os assírios. É quase impossível não recordar – intencionalmente ou não – ao se deparar com essa representação de Judite contra o exército assírio dos ataques vikings à Inglaterra e a defesa do reino de Mercia, liderada pela personagem histórica de Æthelflæd, a “Senhora dos Mercios”. Assim como ocorre na poesia anglo-saxônica, as fontes dos tempos das incursões vikings – especificamente, a Crônica Anglo-Saxônica – geralmente estão centradas em personagens masculinas, como o rei Alfred o Grande, rei Edward e etc. Porém, há uma série de passagens do início do século X, presentes em três das versões da Crônica Anglo-Saxônica, conhecidas como “Os Anais de Æthelflæd”.18 Como o nome sugere, tais passagens têm por foco a figura de Æthelflæd – filha de Alfred o Grande e esposa de Æthelred, senhor de Mercia – e sobre seu período à frente do governo de Mercia. E podemos dizer que este seria o mais longo e atencioso relato existente em toda a Crônica AngloSaxônica referente a uma mulher.19 Há uma quantidade muito grande de detalhes e elementos a respeito de “Os Anais de Æthelflæd” que mereceriam um artigo a parte apenas para os abordarmos com a devida atenção. As passagens na Crônica reconhecidas como “Anais de Æthelflæd” se encontram entre os anos de 902 até 924, sendo os anos de 909 a 919 os mais importantes. Ainda que muitas vezes sejam passagens lacônicas, sem maior desenvolvimento narrativo, essas passagens estão tematicamente conectadas. Começando com a morte de Ealhswith – viúva do rei Alfred e mãe de Æthelflæd – em 902, e terminando com a ascensão de Athelstan – seu sobrinho, filho do rei Edward – como rei escolhido pelos mercios em 924. Como dissemos anteriormente, dentre os elementos do ideal heroico anglo-saxônico se encontra a atuação do indivíduo em batalha. No âmbito do contexto histórico da época – indo além dos Versões B, C e D; a Crônica Anglo-Saxônica, como nós a temos hoje, é a união de vários relatos feitos durante toda a história da Inglaterra que acabaram por serem reunidos numa única obra. Existem sete versões conhecidas, chamadas respectivamente de versões A, B, C, D, E, F e G. Até o reinado de Alfred os relatos são esparsos e muitas vezes confusos, informando apenas os nomes de imperadores romanos, santos, papas e mais tarde os primeiros reis saxões a se fixarem na Inglaterra. Foi Alfred quem ordenou uma melhor organização dos registros; isto ocorrendo em torno do ano de 890, marcando justamente a ascensão da casa de Wessex. Isto pode ser comprovado ao lermos a Crônica, pois os relatos de seu governo e posteriores passam a ser mais precisos dos que aqueles que os antecedem. Para uma discussão mais ampla sobre as diferentes versões da Crônica Anglo-Saxônica ver SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicle. Londres: Dent, 1996, p. xi – xxxv. 19 STAFFORD, Pauline. “The Annals of Æthelflæd: Annals, History and Politics in Early Tenth-Century England” in: BARROW, Julia & WAREHAM, Andrew. Myth, Rylership, Church and Charters: Essays in Honour of Nicholas Brooks. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 101 – 116. 18
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arquétipos literários da poesia em inglês antigo – a guerra, com todos os seus elementos sociais e posturas, era, evidentemente, vista como algo essencialmente masculino. Ainda que existam alguns poucos relatos de presença feminina envolvidas com guerras, mulheres eram consideradas como integrantes secundárias de grandes exércitos.20 Mesmo assim, enquanto o linguajar e os ideais de uma cultura guerreira presentes nos textos sejam masculinos, existem exceções. O que demonstra que o que temos é um sistema de valores e não exatamente uma representação da realidade, o que não podemos esquecer ao considerar representações de batalhas na poesia e outras formas de literatura. Tais construções textuais tinham o objetivo de servir para reforçar anseios de uma sociedade que buscava viver através de tais códigos de conduta. Entretanto, tais códigos não eram tão rígidos a ponto de servir como prisões ao comportamento social. Caso contrário, seria praticamente impossível a existência de uma personagem como Judite ou de Æthelflæd nessas mesmas fontes. Sendo assim, uma pergunta pertinente – realizada originalmente pelo historiador anglo-saxonista Ryan Lavelle – é como a filha do rei Alfred o Grande era vista por seus contemporâneos? 21 É interessante notarmos que o termo em inglês antigo hlæfdige (“dama” ou “senhora” em português), o feminino de hlaford (“senhor”), foi utilizado para se referir a Æthelflæd na documentação da época, sugerindo que enquanto os saxões de Wessex não podiam consagrá-la abertamente com o título de “rainha” (cwen, em inglês antigo), seu status era claramente reconhecido como tal. A partir do uso em tempos posteriores do título de “senhora” na casa real de Wessex (por exemplo, a rainha Emma) podemos presumir que o uso do termo tinha conotações régias e, como filha do rei Alfred e também descendente de uma ramificação da casa real de Mercia, Æthelflæd podia utilizar de tal termo sem nenhum problema. Ainda que não exista nenhuma evidência concreta de que Æthelflæd tenha alguma vez se feito presente no campo de batalha, ela está claramente vinculada com as campanhas militares nas regiões de ocupação escandinava na Inglaterra e, principalmente, suas atividades militares: a construção de fortalezas e cidadelas (os buhrs), seu ataque de retaliação contra os galeses, sua tomada de regiões
Na Crônica Anglo-Saxônica, referente ao ano de 893, nota-se a descrição da presença de mulheres e crianças com os vikings em Benfleet; a importância de realizar tal registro sobre sua captura por anglo-saxões e seu translado para Londres (talvez para serem vendidos como escravos?) sugere que ainda que tal informação sobre eles pudesse ser uma exceção na fonte, sua presença com um exército não era; cf. LAVELLE, Ryan. Alfred’s Wars: Sources and Interpretations of Anglo-Saxon Warfare in the Viking Age. Woodbridge: Boydell Press, 2010, p. 13. 21 LAVELLE, Ryan. Alfred’s Wars: Sources and Interpretations of Anglo-Saxon Warfare in the Viking Age. Woodbridge: Boydell Press, 2010, p. 13 – 14. 20
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fortificadas sob o controle dinamarquês entre outras ações, como podemos ver na Crônica Anglo-Saxônica: 912. Aqui, na sagrada véspera da Exaltação da Santa Cruz, Æthelflæd, Senhora dos Mercios, veio a Scergeat e construiu uma fortaleza lá, e nesse mesmo ano outra em Bridgnorth. 913. Aqui, com a ajuda de Deus, Æthelflæd, Senhora dos Mercios, foi com todos os mercios para Tamworth, e então construiu uma fortaleza lá no início do verão, e depois em Stafford antes do Lammas (festival da colheita). 914. E aqui, no ano seguinte, foi feita a fortaleza de Eddisbury no início do verão; e mais tarde no mesmo ano, durante os tempos da colheita, aquela outra em Warwick (...). 916. Aqui, antes dos meados do verão, em 16 de junho, o abade Ecgberht, inocente de culpa, foi morto com seus companheiros. No mesmo dia era o festival de São Ciro o mártir. E três dias depois Æthelflæd enviou um exército para Gales e derrubou Brecon Mere, e lá capturou a esposa do rei (...).22
Além do aspecto militar tão evidente ligado a imagem de Æthelflæd, faz-se necessário também pensarmos como o relacionamento dela com seus guerreiros ocorria, se lembrarmos que as relações dentro desse ideal de comportamento dos campos de batalha eram geralmente expresso em termos de um homem para com seu senhor, especialmente do que se refere aos votos de lealdade; algo extremamente enfatizado na poesia anglo-saxônica. Na segunda parte de A Batalha de Maldon, por exemplo, essa manifestação do conceito de lealdade se faz presente pelas ações das personagens e seu comportamento frente à morte de seu líder e o desenrolar da batalha. Os doze guerreiros 23 que permanecem leais não fazem parte exclusivamente da aristocracia, mas representam todos os grupos da sociedade anglo-saxônica e de várias partes do reino. A decisão de ficar e lutar é articulada e conscientemente tomada em conjunto, através dos discursos de cada um deles, enfatizando a lealdade para com seu senhor e líder e entre eles mesmos. Lealdade que os impulsiona para a decisão de lutar e vingar a morte de Byrhtnoth e de outros companheiros: Þa ðær wendon forð unearge men
efston georne;
hi woldon þa ealle lif forlætan
wlance þegenas, oðer twega,
oððe leofne gewrecan
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SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicle. Londres: Dent, 1996, p. 96 – 100. Os “doze guerreiros leais”: Offa, Ælfwine, Leofsunu, Dunmere, Æscferth, Edward, Wistan, o filho de Wigelm, Oswold, Eadwold, Byrhtwold e Godric (filho de Æthelgar) (versos 202-235). 22
[Então os valentes guerreiros avançaram, os corajosos homens avidamente apressaram-se; eles todos queriam uma de duas coisas: perder a vida ou vingar seu querido (senhor)]. 24 (A Batalha de Maldon, vv. 205-208)
Já um exemplo contrário, de deslealdade e covardia, pode ser encontrado em Beowulf. A ideia de deslealdade, nesse universo militar anglo-saxônico, em romper com o elo estabelecido entre servo e senhor, seria algo abominável para essa sociedade, como podemos ver nas palavras de Wiglaf no final do poema ao falar aos guerreiros que abandonaram seu rei – Beowulf – no momento crucial da batalha: londrihtes mot þære mægburge idel hweorfan
monna æghwylc syððan æðelingas
feorran gefricgean domleasan dæd. eorla gehwylcum
fleam eowerne Deað bið sella þonne edwitlif
[(...) dos direitos de suas terras devem todos os homens de sua parentela ser privados quando os nobres de lugares distantes souberem de sua fuga, do ato de desonra. A morte é melhor para qualquer homem do que uma vida de vergonha]. (Beowulf, vv. 2886b – 2890).
No caso da realidade retratada nos Anais de Æthelflæd, como a visão de mundo de seus guerreiros poderia diferir da visão daqueles que serviam a um senhor e não uma senhora?25 Talvez uma pista possa ser encontrada na Crônica Anglo-Saxônica referente ao ano de 917 e seus quatro guerreiros “que lhe eram os mais queridos” (ðe hire besorge wæron), demonstrando que o modelo de um ideal voltado a aspectos heroicos e exaltando o conceito de lealdade dominada por figuras masculinas seria muito mais flexível e permissiva a adaptações que os teóricos mais tradicionais afirmavam:26 917. Aqui, antes de Lammas (festival da colheita), com o auxílio de Deus, Æthelflæd, Senhora dos Mercios, tomou posse da fortaleza cujo nome era Derby, juntamente com tudo o que lá
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MEDEIROS, Elton O. S. (trad. ed.). “A Batalha de Maldon”, Brathair, n. 12, v. 1, 2012, p. 175-176. LAVELLE, Ryan. Alfred’s Wars: Sources and Interpretations of Anglo-Saxon Warfare in the Viking Age. Woodbridge: Boydell Press, 2010, p. 14. 26 Ibid., p. 14. 24
se encontrava; quatro de seus guerreiros (thegns), que lhe eram os mais queridos, também foram mortos lá dentro dos portões (...). 27
No caso dos Anais de Æthelflæd, temos uma produção textual claramente focada na personagem de Æthelflæd e suas atividades como soberana do reino de Mercia, enquanto o mesmo não ocorre em relação a outros governantes do mesmo reino durante o século X (como seu esposo e seu irmão, por exemplo). Além de se concentrar em suas atividades militares, também são retratados elementos que legitimam seu poder. Com passagens que a apresentam como uma governante, envolvida profundamente no papel tipicamente régio e masculino de um líder guerreiro. Com uma clara e constante ênfase do apoio de Deus para com ela.28 E é aqui que podemos estabelecer um paralelo entre os Anais de Æthelflæd e o poema Judite. Primeiramente, em ambos os casos temos uma personagem feminina representada como uma líder de exércitos frente a um inimigo retratado como cruel. Em segundo lugar, o que chama a atenção, ambas as fontes são do mesmo período da história anglo-saxônica, fins do século IX – X. Além disso, nos dois textos é possível encontrarmos elementos do inglês antigo característicos dos dialetos de Mercia e Wessex.29 Um conjunto de elementos no mínimo fascinantes, se lembrarmos das características gerais mais tradicionais desse tipo de fonte da época (i.e. centradas em figuras masculinas). E assim podemos constatar que, ao mesmo tempo, durante a segunda metade do período da Inglaterra anglosaxônica, dois textos decidem descrever mulheres com características similares e desempenhando funções quase idênticas. Fato extremamente curioso para ser talvez uma mera coincidência. Considerando essa hipótese, de que a existência de tais narrativas não seria um mero acaso, o relacionamento entre Judite e Æthelflæd não seria assim algo tão surpreendente, pensando esses textos como o produto ou consequência das produções literárias do período alfrediano dos séculos IX – X. Em uma análise mais apurada sobre a linguagem e as fórmulas narrativas para a construção textual usadas na Crônica Anglo-Saxônica, é possível notar que a utilização de tais elementos demonstra que cada conjunto de anais foi composto sob circunstâncias específicas, e que as narrativas refletem os objetivos
SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicle. Londres: Dent, 1996, p. 101. STAFFORD, Pauline. “The Annals of Æthelflæd: Annals, History and Politics in Early Tenth-Century England” in: BARROW, Julia & WAREHAM, Andrew. Myth, Rylership, Church and Charters: Essays in Honour of Nicholas Brooks. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 103. 29 GREENFIELD, Stanley B. & CALDER, Daniel G. A New Critical History of Old English Literature. New York: New York University Press, 1986, p. 219. 27 28
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do governante corrente na época, legitimando o soberano e justificando suas práticas políticas, e encorajando seus súditos a se submeterem a essas práticas. Principalmente as partes que foram produzidas durante os reinados de Alfred o Grande, Edward I e Æthelflæd.30 Ao mesmo tempo, o uso de um discurso político-teológico durante os tempos alfredianos – baseado especialmente no Velho Testamento e na ideia de uma divindade vitoriosa manifesta através da imagem de um “Senhor dos Exércitos” – não seria de todo estranho, muito pelo contrário.31 A ideia dos anglo-saxões como um “Novo Povo Escolhido”, como um “Novo Israel”,32 era muito presente nas elaborações políticas ou, como Paul Kershaw chama, na “imaginação política” do período.33 Neste sentido, seria possível estabelecer uma conexão importante entre os textos a respeito de Æthelflæd e a personagem descrita em inglês antigo no poema Judite: a elaboração de uma identidade, para refletir uma teologia-política distinta, que se utilizaria de tropos de exceção e de exclusão para demarcar em tais narrativas uma fronteira entre os anglo-saxões e seus inimigos.34 Assim, se lermos os Anais de Æthelflæd e Judite como fontes onde está presente um discurso com um propósito, uma mensagem, para seus leitores e ouvintes, poderíamos interpretá-las como “discursos ritualizados”: onde “discurso” deveria ser entendido como a associação de significados e símbolos ao lidar com certo tema que proporciona uma aproximação ou identificação, ao mesmo tempo em que estabelece um horizonte de relações entre um corpo de informações e um conjunto de normas comportamentais e práticas institucionais. E por “ritualizado” – quando aplicado, principalmente, a elaborações míticas, poéticas e etc. – estaríamos nos referindo a um tipo mais elevado de linguagem direcionada essencialmente a apresentações públicas dentro de um ambiente ou ocasião especial que estaria associado a elementos estéticos, éticos e a um rito ideológico e também ao status e poder daqueles que tomariam parte de tal ato.35
KONSHUH, Courtnay. Warfare and Authority in the Anglo-Saxon Chronicle, c. 891 – 924. Winchester: University of Winchester (PhD thesis), 2014. 31 MEDEIROS, Elton O. S. Dominus exercituum: política, poesia heroica e narrativa bíblica durante o período alfrediano. São Paulo: Universidade de São Paulo (PhD thesis), 2011. 32 MEDEIROS, Elton O. S. “Alfred o Grande e a Linhagem Sagrada de Wessex: a construção de um mito de origem na Inglaterra anglo-saxônica”. Revista Mirabilia n. 13, v. 2, 2011, p. 134 – 172. 33 KERSHAW, Paul J. E. Peaceful Kings: Peace, Power, and the Early Medieval Political Imagination. Oxford: Oxford University Press, 2013. 34 ZACHER, Samantha. Rewriting the Old Testament in Anglo-Saxon Verse. London: Bloomsbury, 2013, p. 123. 35 NILES, John D. Homo Narrans: The Poetics and Anthropology of Oral Literature. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999, p. 120 – 121. 30
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Testos como os Anais de Æthelflæd e Judite poderiam ser vistos, entre outros, como formas de expressar uma ideologia capaz de proporcionar súditos leais e governos mais harmoniosos ao estabeleceram um sentimento de identificação entre seu público. Através do que pesquisadores como David Pratt chamam de “o teatro da corte”. Onde textos de perfil legislativo e de regulamentação social e outros que estivessem ligados à figura régia se tornariam exemplos de “discursos ritualizados”, voltados à demonstração e legitimação da autoridade do governante e também da elaboração de uma identidade comum da sociedade em questão; ao menos entre os indivíduos vinculados ao ambiente aristocrático.
Considerações finais Talvez Judite e Æthelflæd sejam os melhores paralelos que nós podemos estabelecer entre uma personagem ficcional e uma histórica no período da Inglaterra anglo-saxônica: elas são exemplos femininos singulares entre as fontes, e ambas surgem como mulheres extremamente poderosas em papéis que geralmente são interpretados por personagens heroicos masculinos; liderando e encorajando seus povos contra seus inimigos e extremamente devotados a Deus. Sendo assim, poderíamos dizer que a composição do poema Judite, de alguma forma, refletiria ou poderia ter sido inspirada pela história de Æthelflæd contra os vikings? Talvez. Como Judite é parte do manuscrito de Beowulf e existem hipóteses de que partes do poema poderiam ter sido compostas no reino de Mercia, seria possível que Judite tivesse também sido originalmente oriundo de Mercia – assim como os Anais de Æthelfæd também parecem ser de origem da mesma região – mas, até agora, infelizmente, não há nenhuma evidencia concreta disso. Entretanto, pensando a respeito desse paralelo entre o poema e a narrativa da Crônica AngloSaxônica, seria talvez interessante pensarmos em um processo contrário de composição, através de uma ideia provocadora: e se ao invés da figura histórica de Æthelflæd ser um modelo para o poema, na realidade os Anais de Æthelflæd – refletindo a respeito da forma como sua personagem é representada ao longo da Crônica Anglo-Saxônica – tivesse sido elaborada seguindo o topos heroico como uma forma de legitimar o poder de Æthelflæd, como uma espécie de “propaganda” política ou ideológica? Isto é, a ficção ter inspirado a construção da narrativa histórica: Judite como um modelo para Æthel-
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flæd das fontes?
Seja qual for o caso, o que podemos dizer com certeza é que a personagem principal do poema Judite e Æthelflæd da Crônica Anglo-Saxônica, diferentemente de outras “mulheres santas” das fontes em inglês antigo, são as personagens femininas cristãs mais heroicas que podemos encontrar na literatura anglo-saxônica, semelhantes a aquelas que nos vem à mente quando tratamos sobre heroísmo: como Beowulf contra monstros no salão dos dinamarqueses, ou earl Byrhtnoth contra os vikings em Maldon. Em função disso, acreditamos que tais personagens (a Judite do poema e a “Senhora dos Mercios” da Crônica) deveriam receber uma atenção redobrada em estudos futuros deste início do século XXI.
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Referências bibliográficas
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UMA COMPARAÇÃO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA HUMANA NOS ESCRITOS DE JERÔNIMO E AGOSTINHO Fabiano de Souza Coelho* RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo apresentar, por meio do método comparado, as representações da condição da natureza humana em alguns discursos proferidos pelo monge Jerônimo (347 a 419 d. C.) e o bispo Agostinho (354 a 430 d. C.); esses estavam compilados no Livro I de Adversus Iovinianum e no Livro XIV da Civitate Dei; tais discursos foram produzidos em torno do debate com Jovinianismo, Paganismo e Pelagianismo, entre os anos 380 a 420, no Império Romano Ocidental. Portanto, para executar tal objetivo faremos uso do conceito representação, proposto por Chartier, e a abordagem comparativa pensada por Kocka. PALAVRAS-CHAVE: Jerônimo; Agostinho; Joviniano; Cristianismo.
A COMPARISON OF THE HUMAN NATURE’S REPRESENTATION IN WRITINGS OF JERÔNIMO AND AUGUSTINE ABSTRACT: This study aims to present, through the comparison method, the representations of the condition of human nature in certain discourses by the monk Jerome (347-419 AD) and the bishop Augustine (354-430 AD). These discourses were compiled in Book I of Adversus Iovinianum and Book XIV of Civitate Dei; they were produced around the debate with Jovinianism, Paganism and Pelagianism, between the years 380-420, in the Western Roman Empire. Therefore, to perform this aim we will use the concept representation, proposed by Chartier, and the comparative approach thought by Kocka. KEYWORDS: Jerome; Augustine; Jovinian; Christianity. ***
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Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ), mestre em História (PPGHIS/UFES), bolsista da CAPES. *
J
erônimo (347 a 419 d. C.), monge e sacerdote católico, e Agostinho (354 a 430 d. C.)1, bispo de Hipona, foram dois cristãos romanos intelectuais que viveram no período de transição do Mundo Antigo para o Medieval e, da mesma forma, foram considerados
como Padres da Igreja. Assim, esses dois pensadores cristãos viveram no Império Romano Ocidental que aderiu, em finais do século IV, o Cristianismo como religião oficial do Estado. Por conseguinte, esse período que norteou o debate entre o monge Jerônimo e o bispo Agostinho sobre a natureza, convenhamos chamar de Antiguidade Tardia, e, utilizaremos esse conceito para expressar essa temporalidade. Optamos por fazer uso dessa expressão para definir esse período, pois nos consideramos um pesquisador mais próximo da Antiguidade do que do Medievo e acredito que foi importante a reflexão feita por aqueles que defenderam esse conceito de Antiguidade Tardia ou Late Antiquity. De fato, o período em que o monge Jerônimo e o bispo Agostinho produziram suas obras é em termos historiográficos a última fase do Império Romano Ocidental. Os historiadores, durante muito tempo, reconstruíram esse período histórico o qualificando como uma época de declínio, queda, crise, ruína ou esgotamento e, com isso, existiu uma vasta produção historiográfica que apresentou essa posição pejorativa do Império Romano do Ocidente. Desta forma, desde o século XV temos uma reflexão sobre a parte final do Mundo Romano Antigo, a partir de obras clássicas latinas, por conseguinte, pensouse esse período de forma negativa e essa época foi considerado prelúdio da Idade Média entre o Mundo Antigo e o Renascimento ou Modernidade. Vários pensadores produziram uma literatura nessa perspectiva, no entanto, somente a partir do século XX, temos o surgimento de uma historiografia que refletiu esse período em outro âmbito, não observou essa etapa de uma maneira negativa. Em suma, temos duas expressivas correntes historiográficas que refletiram esse período de transição da Antiguidade para o Medievo. Primeiro aqueles que privilegiam os aspectos do mundo tardo antigo que mantem na continuidade, relativizando as questões políticas e militares ante às mudanças lentas das mentalidades. Outros que defendem as continuidades estruturais com as tradições romanas anteriores, diminuindo o impacto da religião cristã sobre as evoluções da Antiguidade e enfatizando as rupturas, germânica, no século VI, no Ocidente e islâmica, no século VII, no Oriente2.
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Todas as datas deste presente trabalho são d. C., salvo quando expresso em contrário. INGLEBERT, H. Antiquité Tardive. In: DELACROIX, C.; DOSSE, F.; GARCIA, P.; OFFENSTADT, N. (Dir.) Historiographies, II: concepts et débats. Paris: Gallimard, 2010, p. 967-970. 1
Assim posto, ancorado numa vertente culturalista de explicação desse período, os historiadores Peter Brown3, H.I. Marrou4, J.-M. Carrié5, Friguetto6, pensaram nesse conceito de Antiguidade Tardia como uma proposta de superar as concepções pejorativas elaboradas por historiadores após o Renascimento e o Iluminismo sobre esse período de transição da Antiguidade para a Idade da Média, pois para eles essa época não foi marcado por uma catástrofe, nem por queda e nem por declínio de uma sociedade, pelo contrário, por uma transformação e fusão de culturas. Outrossim, superando a visão negativa da transição do fim do mundo clássico para o medieval, o conceito de Antiguidade Tardia vai bem mais além de simples visão da estética e do vestuário; revestindo, inclusive, a construção entre os séculos III e VIII de um preceito político que conectava elementos da tradição política clássica imperial romana, a necessidade e a legitimação daquela forma de poder monárquico com as construções teóricas que indicavam a relação entre a centralização do poder e as práticas religiosas de cunho monoteísta, seja de procedência pagã, seja de procedência cristã. Ademais, não podemos esquecer que toda tendência historiográfica existe seus limites e recebe relevantes críticas, na qual não podemos nos furtar de conhecê-las. Lembramos aqui dos trabalhos de Hilário Franco Junior7 e Paulo Duarte Silva8 que fazem apontamentos sobre os limites existentes nos campos de trabalhos entre aqueles que fazem uso do conceito de Antiguidade Tardia e esses pesquisadores apresentam a ideia a adoção da expressão “Primeira Idade Média” ou “Alta Idade Média”. Com efeito, esses Padres da Igreja tiveram que lidar com querelas religiosas contrárias ao Cristianismo católico e consideradas heterodoxias; em particular, Jerônimo combateu as ideias de Lucífero, Helvídio, Joviniano, Vigilâncio, João de Jerusalém, Rufino e Pelágio, e, o bispo Agostinho, discutiu com partidários do Maniqueísmo, Donatismo, Priscilianismo, Paganismo, e, por último, os Pelagianismo. Desta feita, a sociedade em que Jerônimo e Agostinho viveram fora edificada mediante a tensão
BROWN, P. O Fim do Mundo Clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1972. MARROU, H. I. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia. Lisboa: Áster, 1979. 5 CARRIÉ, J.-M. Introduction “Bas Empire” ou “Antiguidade Tardive”? In: CARRIÉ, J.-M.; ROUSSELLE, A. L’Empire Romain en mutation: des Sévères à Constatin (192-337). Paris: Seuil, 1999, p. 9-25. 6 FRIGHETTO, R. Política e Poder na Antiguidade Tardia – uma abordagem possível. História Revista, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 161-177, 2006. 7 FRANCO JUNIOR, H. A Idade Média: O nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. & FRANCO JUNIOR, H. Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média? In: ANDRADE FILHO, R O. (org). Relações de Poder, educação e Cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005, p. 233-242. 8 SILVA, P. D. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Revista Signum, v. 14, p. 73-91, 2013. 3 4
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entre cristãos e pagãos; católicos e hereges; católicos e cismáticos; verdade cristã e suposição mundana; Igreja e século (saeculum); alma e corpo9. Toda essa conjuntura fez Jerônimo e Agostinho figuras polemistas e apologistas que debateram inúmeras questões referentes as realidades temporais e espirituais de seu tempo. Assim, acontecimentos, objeções e questionamentos particulares contrários a religião cristã, entre os anos 390 a 415, levaram o monge Jerônimo e o bispo Agostinho a inúmeras discussões sobre as diversas realidades morais cotidianas. Ademais, para uma compreensão melhor da condição do gênero humano na sociedade, os Padres da Igreja – em especial, Jerônimo e Agostinho –, ancorados na tradição judaico-cristã formularam as representações identitárias do polo masculino e feminino na Igreja Católica. Essa construção social e cultural tinha características ligadas a elementos em torno da sexualidade humana, em especial, a renúncia das práticas consideradas como obras tidas como da carne. Para grande parte dos cristãos dos primeiros cinco séculos a verdadeira liberdade exigia renúncia – a continência, acima de tudo. A renúncia sexual significava o repúdio do mundo da sociedade comum e de suas vicissitudes negativas, sendo um caminho de se ter o controle da própria vida10. Na segunda metade do século IV, observou-se um forte movimento ascético dentro do Cristianismo, tanto no Oriente quanto no Ocidente. No tempo de Jerônimo e Agostinho uma das crenças difundidas entre os cristãos ocidentais era que aqueles que viviam em contato com a religião deveriam guardar a pureza do corpo; porque, ao contrário, a impureza carnal afastaria o homem da divindade. Os membros do clero do Cristianismo na Antiguidade tardia, “voltaram sua atenção para a Igreja na Terra e, entre suas muitas contribuições, trouxeram o ascetismo para o Ocidente” 11; e para entendermos a discussão feita por esses autores sobre a temática proposta temos que entender que a expressão carne no Cristianismo foi um baluarte contra o mundo. Desta feita, reflexões sobre a sexualidade e, consequentemente, sobre o casamento, a virgindade, ascetismo e o celibato nesse período geraram um intenso debate na Igreja do Ocidente – Agostinho de Hipona e Jerônimo participaram diretamente da discussão em torno dessas questões. Esses buscaram nas escrituras cristãs e na cultura antiga o fundamento para a construção do papel social de
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BROWN, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 318-319. 10 PAGELS, E. Adam, Eve and the Serpent: Sex and Politics in Early Christianity. New York: Vitange Books, 1989, p. 115. 11 SALISBURY, J. E. Pais da Igreja, Virgens independentes. São Paulo: Scritta, 1995, p. 25. 9
homens e mulheres da sociedade da Antiguidade tardia. Por conseguinte, a sexualidade, representadas pelos Padres da Igreja com tendências ascéticas foi entendida como consequência do pecado original. Com isso, ancorado nessa conjuntura social e religiosa, optamos por selecionar algumas fontes de Agostinho e de Jerônimo para podermos pensar como eles representaram a natureza humana, em especial, como eles formularam nessas obras a ideia de carne. Para isso faremos uso do conceito de representação social proposto por Roger Chartier e usar-se-á o método comparativo, tendo como base de Kocka, para analisar essas respectivas fontes. Tendo como ponto central o conceito de representação, a Nova História Cultural proposta por Roger Chartier12, “[...] tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, [...]”. Deste modo, Chartier13 define o conceito de representação social da seguinte forma: A representação como dado a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado [...] e a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma imagem capaz de o reconstruir em memória e de o figurar tal como ele é.
Consequentemente, a criação das representações do mundo social, embora aspirem à universalidade, são sempre determinadas ou estabelecidas pelos interesses de grupo que as produzem. Então, daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos pronunciados com a posição de quem os utiliza14. Uma das propostas da História Cultural ou História Cultural do Social seria, pois, decifrar as realidades do passado por meio das representações. Essa linha historiográfica tenta chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo. Portanto, o historiador lida com uma múltipla temporalidade que só se torna possível acessar através de registros e sinais do passado que chegaram até ele.
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CHARTIER, R. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 16-17. CHARTIER, R. Op. cit., 1990, p. 20. 14 CHARTIER, R. Op. cit., 1990, p. 17. 12
Além disso, concordamos com Cardoso e Brignoli15 que asseveram que a “[...] construção de modelos históricos não podem ser feitas sem recorrer-se ao método comparativo [...]”. Por conseguinte, conforme nos apresenta Kocka16 que “[...] comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenças de modo alcançar determinados objetivos intelectuais”. Com isso, escolhemos como parâmetro de comparação as representações sobre a natureza humana proposta por Jerônimo e Agostinho, nas seguintes fontes: Livro I de Adversus Iovinianum e o livro XIV da Civitate Dei. Assim, Jerônimo elaborou o tratado Contra Joviniano – Adversus Iovinianum – entre os anos 392 e 393. Essa obra refutou os argumentos de Joviniano que defendia a igualdade espiritual de todos os cristãos batizados e o monge Jerônimo apresentou a superioridade daqueles que eram continentes e castos, e, com isso, esse tratado causou escândalo na sociedade romana por sua radicalidade17. O monge Jerônimo com a finalidade de combater as ideias Joviniano interferiu em questões romanas, pois esse último propagava a doutrina de que os casais unidos em matrimônio estavam num mesmo nível das virgens consagradas da Igreja. Desta maneira, apresentou a comunidade romana escritos contra Joviniano, contudo esses causaram espanto por seu profundo rigor moral e ascético; Pamáquio, amigo de Jerônimo, teve tirar esse livro de circulação na cidade – a obra contra Joviniano, por um lado, funcionou como instrumento de inspiração para os cristãos e, por outro lado, como meio irritante para os cristãos romanos18. Por outro lado, o bispo Agostinho decidiu escrever De Civitate Dei contra os opositores do Cristianismo, numa perspectiva de fortalecer a fé e a identidade dos cristãos abalados com o que estava acontecendo no mundo depois do saque de Roma em 410. A obra Cidade de Deus veio a continuar a campanha que havia feito o bispo de Hipona durante o tempo de calamidades e ameaças, desde o fim do ano 410 até 412, com sermões, conversas e cartas19.
CARDOSO, C. F. S.; BRIGNOLI, H. P. Os Métodos da História: introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 412. 16 KOCKA, J. Comparison and beyond. History and Theory, Malden, n. 42, p. 39-44, 2003, p. 39. 17 VESSEY, M. Jerónimo. In: FITZGERALD, A. (ed.) Diccionario de San Agustín. Burgos: Monte Carmelo, 2001, p. 754. 18 BROWN, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 309. 19 COELHO, F. S. Religião, Identidade e Estigmatização: Agostinho e os pagãos na obra De Civitate Dei. Dissertação de Mestrado − Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011, p. 95. 15
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Essas duas obras foram escritas em realidades próximas temporalmente e geograficamente, ou seja, Jerônimo escreve sua obra contra Joviniano, em Belém, mas tendo como público alvo aqueles que habitavam na cidade de Roma, em finais do século IV; e Agostinho, no norte da África, escreveu os livros da cidade de Deus, para os cristãos e politeístas romanos do Império, em especial, aqueles que acusaram em Roma que a culpa da devastação da cidade sagrada era proveniente do abandono do culto aos deuses e a religião cristã, no início do século V. Primeiramente, o monge Jerônimo estando ante a controvérsia Joviniana representou a natureza humana, tendo como base os escritos de Paulo; temos o discurso desse monge que discorre sobre a vida perfeita cristã e o estado primário humano, a saber: [...] Bem aventurado o homem que pode se assemelhar a Paulo! Feliz quem dá ouvidos ao Apóstolo quando ele faz uma recomendação, não quando perdoa. Ele disse: isto é o que quero e desejo: que sejais meus imitadores como eu sou de Cristo. Cristo era virgem, nascido de uma virgem, um ser incorrupto nascido de alguém incorrupta. Nós que somos homens e não podemos imitar o nascimento do Salvador, imitemos ao menos seu comportamento. Aquele é prerrogativa da divindade e da santidade; este outro é próprio de nossa condição humana e do esforço que este o compete. Quero que todos os homens sejam semelhantes a mim e, imitando-me, que se convertam também em semelhança de Cristo, do mesmo modo que eu me assemelho a Ele. E aquele que crer em Cristo deve seguir o mesmo caminho feito por Ele [...]. Oh, palavras verdadeiramente dignas de um apóstolo e de uma rocha de Cristo! Dita uma lei a homens e mulheres, condena o adorno da carne, prega a continência e o adorno interior da pessoa, em um adorno eterno de um espírito pacífico e tranquilo, vivendo de certo modo assim: dado que o vestido exterior do homem é corruptível e vós deixastes de possuir a beatitude da incorrupção, típica das pessoas virgens, imitando ao menos a incorrupção do espírito mediante uma tardia continência e exibindo na mente aquele que não exibir no corpo. Pois essas são as riquezas e esses são os ornamentos que Cristo deseja [...] 20.
Para Jerônimo, mesmo carregando uma estrutura exterior corruptível, os homens e as mulheres deveriam manter a virgindade ou abraçarem a continência sexual; propõe que todos imitem Paulo e não vivam segundo os adornos da carne, mas vivam associados às coisas espirituais e incorruptíveis. Nesse discurso percebemos como o monge associou questões ligadas a sexualidade humana com as coisas carnais; o ideal de perfeição cristã aqui nesse argumento está em conexão com a renúncia sexual e como resultado desse ascetismo nos apresenta que isso era o desejo Jesus. O monge Jerônimo continua a sua defesa da pureza carnal e da natureza humana, tendo como base a renúncia sexual, e as Escrituras, a saber:
Contra Joviniano I, 7.
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[...] O Senhor tentado pelos fariseus ao pergunta-lo se era lícito, segundo a Lei de Moisés, separar-se da mulher, mas Ele proibiu taxadamente que se fosse feito isso. Considerando estas palavras, os discípulos disseram: se tal é a situação do homem com sua esposa, não convém se casar. E Ele os respondeu: Nem todos compreenderão essas palavras, mas somente aqueles que tem recebido esse dom. Existe eunucos que nasceram assim de sua mãe; existe eunucos que foram feitos eunucos pelos homens; e existe eunucos que a si mesmo se fizeram eunucos por causa do Reino dos céus. Quem puder entender que entenda. Por isso que Cristo ama especialmente as virgens, porque essas oferecem espontaneamente o que não se tem exigido a elas. Maior motivo de agradecimento significa oferecer o que não se solicita, de entregar aquilo que não se pede. Os apóstolos ao considerar a carga que teria uma mulher, disseram: Se tal é a situação do homem com sua esposa, não convêm se casar. O Senhor, aprovando sua opinião, respondeu: ‘Vosso critério é verdadeiramente correto, porque o homem que se encaminha ao Reino dos céus não convém ter esposar; mas isso é uma tarefa muito difícil e nem todos compreenderão essas palavras, salvo aqueles que receberam respectivo dom. Temos eunucos aos que a natureza tem o transformado em tal. Mas a mim me agrada os eunucos que não castrou a necessidade, mas sim a vontade. Com sumo gosto recebo em meu seio aqueles que se castraram pela causa do Reino dos céus [...]. É próprio de uma grande fé e de uma grande virtude ser um puríssimo Templo de Deus e oferecer-se inteiramente como holocausto ao Senhor e, de acordo com Apóstolo, ser santo em corpo e espírito [...] 21.
O monge Jerônimo nos mostrou nesse discurso que tem uma especial predileção a virgindade e continência sexual – para os eunucos por causa do Reino dos céus; apresentou que aqueles que mantem seu corpo puro e que não se casam são homens e mulheres de grande fé e virtude; o casamento era para Jerônimo um estado de vida onde se cometeria pecados e se viveria uma vida carnal e não espiritual. Ademais, Jerônimo escreveu que: “[...] O que temos a dizer de Adão e Eva é que eram virgens, antes de cometerem a falta no paraíso; depois do pecado e precisamente fora do paraíso foi quando eles se casaram [...]”22. Para Jerônimo a virgindade é apresentada como um retorno simbólico a condição humana natural, à vida do Paraíso antes de Eva e Adão terem desobedecido a Deus. O castigo de Eva foi parir em dor e sentir desejo pelo marido que seria seu mestre: as virgens puderam escapar desta penalidade. O fato de permanecer virgem possibilitava a quebra do ciclo vicioso, iniciado com o primeiro pecado de Adão e Eva, vida-pecado-morte. A virgindade consistia em um possível retorno ao estado original da criação, enquanto que o casamento manteria a humanidade em permanente estado de pecado23. Da mesma forma, relatou o monge que “[...] o matrimônio povoa a terra e a virgindade o paraíso [...]”24; para Jerônimo o casamento traria apenas frutos temporais e passageiros, e a virgindade
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Contra Joviniano I, 12. Idem. I, 16. 23 CLARK, G. Women in Late Antiquity – Pagan and Christian life-styles. Oxford: Clarendon Press, 1994, p.75. 24 Contra Joviniano I, 16. 21
era revestida de valores simbólicos religiosos; para ele era mais importante a vida espiritual e ascética, associada a renúncia sexual, em detrimento da vida carnal, pois somente a primeira poderia levar a humanidade ao Reino dos céus. De fato, os membros cristãos castos consideravam os casados que geravam filhos como uma espécie inferior, mais pecadora, enquanto os celibatários e os solteiros eram um grupo superior e mais santo25. Com isso, existia uma visão dualista para esse Padre da Igreja, que via uma divisão no mundo muito nítida entre o que era carnal – sexual – e o que não era da carne – espiritual. Essa perspectiva dualista se aplicava unicamente a realidade terrena, em especial, aos homens e mulheres depois da Queda26. Em outra realidade na sociedade romana, temos Agostinho, bispo de Hipona, que após o ano 400 até o fim de sua vida, escreveu constantemente sobre Adão e Eva como pessoas físicas, dotados dos mesmos corpos e características sexuais análogas aos outros seres humanos27. O bispo Agostinho refletiu sobre a natureza humana e aquilo que se definiu como questões carnais. Dentro da sua obra Cidade de Deus, ao contrapor não apenas os politeístas, também apresentou sua visão de natureza humana em meio a controvérsia com o monge Pelágio, ou seja, o Pelagianismo. Assim, ao escrever sobre o pecado de Adão e Eva, a natureza humana, considerou a Queda como fonte da vida carnal. O bispo de Hipona, fundamentado nas Escrituras, apresentou a natureza humana dividida: [...] Tão grave foi o pecado cometido que a natureza humana ficou deteriorada e transmitiu cada vez mais a sua posteridade a escravidão do pecado e a necessidade da morte. Tal foi o senhorio que o reino da morte alcançou sobre os homens, que a pena devida foi transmitida a todos numa segunda morte, uma morte sem fim, sem a graça de Deus [...]. Temos aqui o lugar desse fato: existindo tantas e poderosas nações espalhadas por todo globo terrestre com seus diversos ritos e que se distinguem pela múltipla variedade de línguas; portanto, com isso, dizemos que não existe mais que duas classes de sociedades humanas no mundo e que podemos chamar justamente, segundo nossas Escrituras, de duas cidades. Uma de homens que desejam viver segundo a carne e outra de homens que pretendem viver segundo o espírito28.
RANKE-HEINEMANN, U. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1996, p. 80. 26 SALISBURY, J. E. Pais da Igreja, Virgens independentes. São Paulo: Scritta, 1995, p. 27. 27 BROWN, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 329. 28 La Ciudad de Dios, XIV, 1. 25
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Agostinho representou o mundo divido em duas categorias de pessoas, ou seja, aqueles que amavam a Deus e viviam segundo o espírito, e, por outro lado, tínhamos aqueles que amavam tanto a si mesmo e viviam uma vida carnal. Essa separação ou binarismo na obra de Agostinho é bem nítido, pois em todo esse trabalho explorou os dois amores fundadores das duas cidades – a cidade celestial e a cidade terrena. Escreveu Agostinho na obra Cidade de Deus: [...] Dois amores deram origem a duas cidades: o amor a si mesmo até o desprezo de Deus, a terrena; e o amor de Deus até o menosprezo de si, a celestial. A primeira se gloria em si mesma; a segunda se gloria no Senhor. A primeira está dominada pela ambição do domínio de seus príncipes ou as nações que a submete; a segunda utiliza mutuamente a caridade dos superiores mandando e os súditos obedecendo [...] 29.
Agostinho utilizou um tema que já era comum entre os cristãos africanos. Desde a Queda de Adão, a raça humana sempre se dividiria em duas grandes “cidades”, duas grandes pirâmides de lealdade. Uma “cidade” servia a Deus e a seus anjos fieis; a outra servia aos anjos rebeldes, ao Diabo e seus demônios. Embora as duas “cidades” pareciam mescladas, tanto na Igreja quanto no mundo, elas se separariam no Juízo Final. Nos anos subsequentes a 410, Agostinho tomou esse tema e, com deliberada habilidade dramática, “desdobrou-o” diante de sua plateia30. Desta forma, o bispo Agostinho de Hipona para pensar sobre o significado de viver segundo a carne, nos relatou que: Antes de tudo, tenho que esclarecer o que significa viver segundo a carne e segundo espírito. [...] Chama-se carne não somente o corpo do ser vivo, terreno e mortal, como quando disse: Nenhuma carne é igual as outras, mas uma é carne dos homens, outra a carne dos quadrúpedes, outras dos pássaros, outras a dos peixes. Usa essa palavra em muitos outros sentidos, entre os quais chama carne com frequência o mesmo homem; ou seja, a natureza do homem, tomando a parte por o todo, como quando disse: Nenhuma carne será justificada pelas obras da lei. Que quis entender, senão todo homem? O disse um pouco mais claro: Que ninguém é justificado pela lei perante Deus. E a mesma carta aos Gálatas: Sabendo que nenhum homem é justificado por observar a lei. Assim se entende também que: O Verbo de Deus se fez carne, isto é, homem. O qual interpretaram mal alguns e pensaram que Cristo não teve alma humana. [...] Desta maneira, o todo é tomado em parte, e, ao mencionar a carne se entende o homem, como atestaram as passagens citadas [...]31.
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Idem, XIV, 28. BROWN, P. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 391. 31 La Ciudad de Dios, XIV, 2. 29
Dentro da religião cristã o corpo era tido como um mensageiro para o espírito32. Nesse argumento do bispo de Hipona, observa-se a exteriorização de sua intenção em esclarecer ao seu público o que verdadeiramente seria a expressão carne, na ótica da religião cristã, pois existia, naquela época, uma comum associação entre o corpo humano e a carne. Desta forma, Agostinho, ao refletir sobre essa questão, nos trouxe uma discussão pautada em torno dos escritos do apóstolo Paulo, a saber: [...] Por conseguinte, a divina Escritura nomeia a de muitas maneiras, que é difícil de analisar e reunir, para poder investigar que é viver segunda a carne (o que certamente é mal, sem ser mal a carne por natureza); trataremos de penetrar com diligência a passagem da carta de São Paulo aos Gálatas, na qual diz: as ações que procedem da carne são conhecidas – luxúria, imoralidade, libertinagem, idolatria, magia, inimizade, discórdia, rivalidade, ira, egoísmos, partidos, sectarismos, invejas, bebedeiras, orgias e coisas desse estilo. Dessas coisas vós previno, como já preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus! Toda essa passagem da carta apostólica, considerando o que se refere a questão presente, poderá resolver o entendimento a respeito da vida carnal. Pois entre as obras da carne, que disse Paulo que era manifestas e mencionou repudiando-as, não encontramos somente as coisas que pertence ao prazer da carne, como as fornicações, impurezas, luxúria, bebedices, glutonarias, mas também aquelas obras alheias aos prazeres da carne [...] 33.
Mesmo ao considerar a discussão do tema complexo, Agostinho nesse discurso foi além dos pontos considerados típicos como os prazeres da carne, isto é, as obras da carne para ele transcenderia os pecados sexuais; o movimento asceta em torno do contexto social em no qual estava inserido o bispo de Hipona, pensaram a natureza humana pecadora e portadora de um corpo carnal corruptível, construindo uma visão depreciativa da sexualidade humana. Portanto, a carne humana seria passível das diversas vicissitudes existentes no século, inclusive aquelas que envolviam o desejo e o ato sexual. Outrossim, ao falar sobre o entendimento da religião cristã sobre pecado, relatou-nos o bispo de Hipona que: “[...] a corrupção do corpo, que afeta a alma, não é causa do primeiro pecado, mas do seu castigo; a carne corruptível não fez pecadora a alma, mas a alma pecadora que fez a carne corruptível [...]”34. Nesses discursos observamos como Agostinho de Hipona representou a natureza humana transformada em corruptível pela alma pecadora, por conseguinte, essa foi corrompida como punição a Queda. Com isso, a renúncia sexual era um exemplo da necessidade dos cristãos de controlarem um corpo exposto aos diversos infortúnios do mundo. Em Agostinho, a carne não era simplesmente o
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ROUSSELLE, A. Pornéia: sexualidade e amor no mundo antigo. Brasiliense: São Paulo, 1983, p. 153. La Ciudad de Dios, XIV, 2. 34 Idem., XIV, 3. 32
corpo humano, todavia tudo aquilo que levava o eu a querer sua própria vontade do que a vontade de Deus35. Numa perspectiva comparada, iremos buscar as semelhanças e dessemelhanças existentes nesses discursos de Jerônimo e Agostinho apresentados acima. Ou seja, na aplicação do método comparado temos que considerar ante do objeto estudado suas semelhanças e diferenças36. Primeiramente, temos como ponto em comum nos discursos desses dois autores o fundamento de suas reflexões ancoradas nas Escrituras, em particular, os textos paulinos. Esses Padres da Igreja pensaram a natureza humana pautadas nos escritos de Paulo, e, da mesma maneira, representaram o gênero humano, a partir da chamada Queda, cometida por Adão e Eva no paraíso; esses dois personagens bíblicos foram marcados por uma culpa e que foi transmitida para todo o gênero humano posterior. De fato, o monge Jerônimo e o bispo Agostinho construíram seus discursos respaldados pela autoridade da Igreja de seu tempo que representava Deus e pode-se caracterizar este tipo discurso religioso da seguinte forma: O discurso religioso é como aquele em que fala a voz de Deus: a voz do padre – ou do pregador, ou, em geral, qualquer representante seu – é a voz de Deus [...]. Partindo, então, da caracterização do discurso religioso como aquele em que fala a voz de Deus, no discurso religioso, há um desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte: o locutor é do plano espiritual (o Sujeito, Deus) e o ouvinte é do plano temporal (os sujeitos, os homens) [...]. Nessa desigualdade, Deus domina os homens [...]37.
Ademais, o gênero que envolveu os escritos tanto de Jerônimo quanto de Agostinho foi a retórica antiga, no qual esses discursos, por meio de elementos oratórios, argumentativos e embasado nos seus respectivos pontos de vista religioso e social, tinham como objetivo convencer e persuadir os seus leitores. Por outro lado, encontramos significativas dessemelhanças nos discursos desses dois Padres da Igreja, nos textos apresentados nesse trabalho. Provavelmente essas diferenças resultaram da particularidade da formação filosófica e religiosa de cada autor cristão e, principalmente, das realidades sociais e culturais onde eles estavam inseridos. Por conseguinte, “[...] nenhum discurso apologético ou BROWN, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 343. 36 CARDOSO, C. F. S.; BRIGNOLI, H. P. Os Métodos da História: introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 411. 37 ORLANDI, E. P. A Linguagem e o seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Pontes, 1996, p. 242-244. 35
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polêmico emprega sistematicamente argumentos sem relação com a realidade, desprovidos da capacidade de impressionar o leitor”38. Jerônimo grande parte de sua vida esteve inserido na Península Itálica romana, numa conjuntura ligada ao um forte movimento ascético e de renúncia sexual no Ocidente protagonizado pela aristocracia da sociedade daquela época. Pelo contrário, a realidade moral e religiosa da África romana, onde viveu Agostinho, era diferente dos círculos italianos e gálicos em que Jerônimo havia participado; a região africana do final do século IV, ficava um pouco à margem da percepção ascética do Mediterrâneo. De acordo com Brown39, Agostinho “apesar de seu rigor para consigo mesmo e seu clero, não era nenhum alarmista. Tampouco preocupava muito a questão do celibato. A Igreja católica na África era uma instituição sitiada que tinha de se arranjar com quaisquer padres que pudesse conseguir [...]”. Outra diferença nos discursos desses dois Padres que observamos foi em torno de como eles entenderam a natureza humana e a carne, propriamente dita. Nos discursos analisados percebemos como diferiu as suas visões a respeito sobre a ideia em torno da realidade carnal dos homens e das mulheres. Desta forma, Jerônimo associou os atos ligados àquilo que se denominou carne com a sexualidade humana e o ato sexual propriamente dito, pois o mesmo foi um grande defensor da virgindade e da continência. Por sua vez, Agostinho, nos apresentou a carne como atos que transcendiam os chamados pecados ou vícios sexuais, pois, a partir de Paulo, entendeu que existia uma gama de elementos negativos que não eram propriamente ligados ao sexo. Para Jerônimo o corpo humano era como “uma floresta ensombrecida, repleta de rugir das feras selvagens, que só podia ser controlada mediante rígidos códigos de dieta e pela rigorosa evitação das oportunidades de atração sexual [...]”40. Portanto, para esse monge estado original da natureza humana era a virgindade, pois somente com a Queda que os primeiros pais da humanidade tiveram relações sexuais e casaram-se. Jerônimo representou o Pecado original intimamente ligado ao sexo ou sexualidade. Essa autora defende a ideia que para esse Padre da Igreja, o pecado cometido por Adão e Eva foi o ato sexual, ROUSSELLE, A. Pornéia: sexualidade e amor no mundo antigo. Brasiliense: São Paulo, 1983, p. 160. P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 326. 40 BROWN, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 309. 38
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39BROWN,
esse gerou a lascívia em todos os homens e as mulheres. Deste modo, o mundo foi representado de forma dualística, ou seja, dividido entre a assimetria de espirito e carne, esse último caracterizado pela sexualidade decaída. Ademais, representam a condição masculina espiritualizada e a feminina de forma carnal, logo, excludente e misógina41. Entretanto, para o bispo Agostinho os primeiros pais da humanidade viviam no jardim do Éden como casados e somente depois da Queda, a alma corrompida pelo pecado, tornou a natureza humana corruptível, e, gerou o descontrole da sexualidade, desejos pecaminosos, as chamadas paixões carnais, isto é, a Queda transformou a natureza humana escrava do pecado. Para Agostinho, o primeiro pecado não era o sexo, mas a desobediência; foi o orgulho que levou Adão e Eva a desobedecerem e praticarem o ato sexual antes de Deus lhes conceder tal permissão. Desta feita, de acordo com Pagels42 para Agostinho o homem marcado pelo pecado não poderia se autogovernar, e, por esse motivo, a sociedade necessitaria de hierarquia, governo. Finalmente, Salisbury43 defende a ideia que Agostinho se difere dos primeiros Pais da Igreja no quesito sexualidade, pois rejeita o dualismo existente nos tratados morais desses Padres da Igreja. O bispo de Hipona muda de forma drástica a maneira cristã de representar o sexo, por conseguinte, a sexualidade não era uma imperfeição, um infortuno associado ao gênero humano pelo pecado cometido por Adão e Eva, todavia era parte do plano de Deus. Ademais, Agostinho não via a sexualidade como uma qualidade primordialmente feminina, opinião diferente dos primeiros Pais da Igreja.
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SALISBURY, J. E. Pais da Igreja, Virgens independentes. São Paulo: Scritta, 1995 p. 47-48. PAGELS, E. Adam, Eve and the Serpent: Sex and Politics in Early Christianity. New York: Vitange Books, 1989, p. 168. 43 SALISBURY, J. E. Pais da Igreja, Virgens independentes. São Paulo: Scritta, 1995, p. 67. 41
Referências Obras de Jerônimo e Agostinho AGUSTÍN, S. Obras completas de San Agustín: La Ciudad de Dios (2º). v. 17. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1988. JERÓNIMO, S. Contra Joviniano. In: Obras completas de San Jeronimo: Tratados apologéticos. v. 7. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2009, p. 117-401.
Obras de apoio
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Representação do herói e do anti-herói medieval EM Fernão Lopes Amanda Lopes Blanco* RESUMO: O artigo tem por objetivo apresentar duas possíveis representações medievais, a primeira do herói e a segunda do anti-herói. Assim, antes da análise, é necessário abordar a teoria que nós utilizamos neste artigo, que diz respeito à psicologia social. Para isto, é necessário explicar ao leitor, de forma sucinta, a vida e a obra de Fernão Lopes. Em seguida, será abordada a análise da fonte escrita por Fernão Lopes, a Crônica de D. João I, enfatizando as representações do herói e do anti-herói medieval e as respectivas contribuições feitas através da análise da fonte. As considerações finais terão o objetivo de apresentar o núcleo central dessas duas representações, assim como, o ensaio de ligação do autor da narrativa com o seu contexto social. PALAVRAS-CHAVE: Representação; Herói; Fernão Lopes.
MEDIEVAL HERO AND ANTI-HERO REPRESENTATION IN FERNÃO LOPES ABSTRACT: This article aims to present two possible medieval representations, which are the hero and the anti-hero. So, before proceeding to the analysis, it is necessary to address the theory we use in this article, which is related to Social Psychology. Due to that, it is mandatory to explain to the reader, concisely, the life and works of Fernão Lopes. Thereafter, we will approach the analysis of a written source by Fernão Lopes, emphasizing the representations of the medieval hero and anti-hero and their contributions made through the analysis of this source. In the final considerations we will to presenting the core of these two representations, as well as essaying to establish the link of the author of the narrative with his social context. KEYWORDS: Representation; Hero; Fernão Lopes. ***
em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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* Mestranda
Introdução
A
dinastia de Avis representou, para Portugal, um período de modernidade, através da ruptura com o tradicionalismo medieval português. Após a ascensão de D. João I ao trono português, a dinastia nova tentou representar o reinado através de inú-
meras narrativas positivas da nova família real, nesse momento, cronistas foram contratados para representar a modernidade e a revolução gerada pela dinastia de Avis. Assim, Fernão Lopes passa a ter um papel importante na história de Portugal, o cronista narrou trajetórias dos Reis e fidalgos portugueses. Sua narrativa foi algo inovador para a época, pois o cronista utilizava uma metodologia, conhecida como a busca da verdade, sendo assim denominado de “cronista-historiador”. A crônica analisada no artigo, narra a ascensão de D. João I de Avis, no reino de Portugal, e a prolongada batalha de Portugal e Castela. Por ser uma crônica de perfil militar, será possível abordar as representações de heróis e anti-heróis medievais e analisar os pensamentos de Fernão Lopes sobre todo o contexto social que o envolvia.
O Conceito de Representação O conceito de representação assume diferentes formas na História Cultural, Ronaldo Vainfas denomina teorias da virada cultural como “tirania do cultural”1, visto que existe um reducionismo cultural, ou seja, a questão econômica, intelectual, social e política seriam culturalmente condicionados. Ciro Flamarion Cardoso critica Roger Chartier justamente por esse reducionismo culturalista, Ciro F. Cardoso afirma que para ser um conceito é necessário ter operacionalidade, se existem diferentes formas de interpretar algo não existe operacionalidade, por essa razão, ele diz que representação não é um conceito e sim uma noção. O autor prefere utilizar a noção de representação segundo as teorias da psicologia social. Em primeiro lugar, parece-me que, dentre as diversas ciências sociais até o presente momento, a psicologia social foi aquela que soube manejar com maior precisão, bem como atenção às complexidades que envolve uma noção que, nas demais disciplinas (incluindo a história cultural), sói
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MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro Flamarion. (Orgs.). Representações: Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: SP, Papirus, 2000. 1
aparecer em formas desanimadoramente vagas e, ao mesmo tempo, como se se tratasse de algo simples. Em segundo lugar, porque é também a psicologia social a área dos estudos sociais que menos cai na tentação de querer reduzir o pensamento científico a meras representações: estas últimas são vistas como estando firmemente ancoradas na “epistemologia do sentido comum”, no conhecimento vulgar, ainda que não estejam de todos ausentes das construções científicas (que em caso algum podem esgotar, entretanto). 2 Autores da psicologia social como Denise Jodelet e Claude Flament partem do princípio de que cada representação social tem um núcleo central ou princípio organizador. As representações mentais são a “matéria-prima” das representações sociais e as representações sociais são peças que constituem estruturas maiores como crenças, mitos, ideologias… Segundo, Denise Jodelet: (…) as representações expressam aqueles (indivíduos ou grupos) que as forjam e dão uma definição específica ao objeto por elas representado. Estas definições partilhadas pelos membros de um mesmo grupo constroem uma visão consensual da realidade para esse grupo. Esta visão, que pode entrar em conflito com a de outros grupos, é um guia para as ações e trocas cotidianas – trata-se das funções e da dinâmica sociais das representações. 3
Sobre a estrutura da representação, será utilizado a teoria do núcleo central, também da psicologia social. De acordo com Claude Flament o “lugar de coerência de uma representação autônoma é o núcleo central da representação (…). Parece certo que esse núcleo é uma estrutura que organiza os elementos da representação e lhes dá sentido”. 4 A análise da crônica terá o objetivo de encontrar o núcleo central da representação do herói e do anti-herói medieval.
Fernão Lopes – vida e obra Os reis da Dinastia de Avis preocuparam-se em preservar a memória portuguesa através da produção de crônicas, assim, será destacado, um dos mais importantes cronistas dessa dinastia, Fernão Lopes, também conhecido como o “cronista da nova dinastia”. Fernão Lopes como funcionário do
MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro Flamarion. (Orgs.). Representações: Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: SP, Papirus, 2000, p. 21. 3 JODELET, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (org.). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 21. 4 Ibidem, p. 175. 2
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governo procurou justificar a ascensão da dinastia de Avis através de três pilares: “ético-político, jurídico e o providencial”5, essas características serão apresentadas no tópico de análise das fontes. Antônio José Saraiva acrescenta a importância do cronista para a nova dinastia. “Pesava, portanto um labéu de ilegitimidade sobre a nova dinastia e a missão principal de Fernão Lopes, como cronista da corte, era justificá-la.”6 Fernão Lopes era de família humilde7, por essa razão, torna-se possível afirmar que o autor enfatizou a participação e personagens populares em suas crônicas, ao lado dos feitos dos “grandes heróis”. Conhecido também como “cronista-historiador”, pois suas crônicas possuíam uma metodologia, onde o autor tinha o objetivo de pesquisar até chegar, segundo ele, na “verdade nua”. O cronista foi tabelião do reino e tornou-se guarda-mor da torre do Tombo em 1418, Fernão Lopes recebeu a designação, do infante D. Duarte, de escrever as crônicas dos reis, até o rei D. Fernando. As crônicas de sua autoria são; a Crónica de Portugal de 1419, Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. Fernando, as duas primeiras partes da Crónica de D. João I foi atribuída a Fernão Lopes e a Crónica de D. Duarte que foi redigida novamente, em outro momento, pelo cronista Ruy de Pina. A versão da Crónica de D. João I utilizada no artigo está disponível para download na Biblioteca Nacional de Portugal, na subdivisão, biblioteca nacional digital, na categoria, Bibliotheca de Classícos Portugueses8. A primeira edição da crônica ocorreu em 16449, em seguida novas edições ocorreram com algumas omissões. E a versão que foi publicada em 1915 por Anselmo Baraamcamp, extraída do códice n. 352 do arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Análise da crônica de D. João I Foram observadas duas possíveis representações na crônica escrita por Fernão Lopes, são elas: representação do herói e representação do anti-herói. A crônica chama atenção pela quantidade de
REBELO, Luís de Sousa. A concepção de poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983, p. 22. SARAIVA, Antônio José. O crepúsculo da idade média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1998, p. 166. 7 MARQUES, A. H. de Oliveira. Fernão Lopes. In: SERRÃO, Joel (Dir.). Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1976, p. 56. 8 A Cronica de D. João I. Clássicos Portugueses, director litterario – conselheiro Luciano Cordeiro, proprietário e fundador – Mello D'Azevedo. ESCRIPTORIO. 147 – rua dos Retrozeiros – 147. Lisboa. 1897 9 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I – 2 vol. Introdução: Humberto Baquero Moreno. Lisboa: Livraria Civilização, 1994. 5 6
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detalhes descritos em diversas batalhas entre Portugal e Castela, os possíveis diálogos entre os inimigos, a narração das atitudes da aristocracia de Castela feita pelo cronista, os inúmeros protagonistas da narração e a presença da arraia-miúda sendo suas ações narradas, de forma bem detalhista. Basicamente, a crônica está toda voltada para a guerra entre Portugal e Castela, somente nos momentos de trégua entre os dois reinos é que Fernão Lopes narrava sobre a vida pessoal do Rei, como por exemplo, o nascimento de seus filhos legítimos e ilegítimos, casamentos e outros. Fernão Lopes escreve duas partes da crônica, a segunda parte termina, no momento, em que Castela e Portugal assinam um tratado de paz.
Representação do herói O primeiro herói de uma nação é o Rei ou o Regente, pois segundo a lógica, é aquele que se preocupa com o povo, agrada a nobreza e o clero para obter benefícios durante o seu reinado ou regência. De acordo os cronistas, os Reis portugueses são sempre associados às figuras dos Reis de Israel, são agraciados por Deus. O período do reinado é considerado como uma benção divina, no caso de D. João I, Fernão Lopes o constrói, a partir da cronologia bíblica, através de analogias com personagens da bíblia dessa forma, o Rei passa a inaugurar a sétima idade em Portugal. Devisado o dia a que o logar fosse tomado, fallou el-rei isto com alguns fidalgos, dizendo que levassem os cavallos mais pouco rinchadores que tivessem, e levou comsigo até trezentos de cavallo, e mui poucos homens de pé, e ouviu missa e jantou cedo, e partiram aforrados sem outras azemulas nem corregimentos que levassem, e chegaram já muito noite á Veiga de São Affonso Lourenço estava aguardando, e d'ahi os levou derredor, até o valle da deveza, que chamam Santa Maria, que é muito espessa d'arvores, que seria da villa, uns tres tiros de besta, e alli fazia cada um quanto podia que sua besta não rnchasse, e porque um cavallo rinchou, mandou el-rei logo que o matassem. (…)
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El-rei foi sempre com os dianteiros, e quando chegou á porta da villa, o primeiro que por ella entrou em cima do seu cavallo, foi aquelle ardido e famoso fidalgo de quem em cima é feito menção, que chamam João Rodrigues de Sá, o qual houve logo uma ferida pelo rosto d'alguns que já acudiam ao arruido, porém os da villa não tomaram armas, mas folgaram muito de assim ser feito, e Affonso Lourenço ia deante bradando altas vozes Portugal, Portugal, e nenhuns castellãos nem dos de Ayres Gomes haviam accordo senão de se porem em salvo, e João Rodrigues que bem sabia as ruas da villa e como o logar tinha outra cerca, encaminhou logo em cima do cavallo com sua lança na mão, chamando Portugal e S Jorge, e esto por tomar a porta da segunda cerca, que se não acolhessem a ella os de Ayres Gomes que pouzavam pela villa, e ante que chegasse achou já ante si Alvaro de Tor de Fumos, aquelle bom homem d'aemas que dissemos, com uns vinte escudeiros, entre homens d'armas
e de pé, os quaes acaudelava e recolhia, e João Rodrigues vendo que lhe não cumpria metterse só a cavallo entre elles, desceu-se logo a pé, e com a lança d'armas na mão os levava todos ante si, em guisa que se não ouzavam a ter com elle, e por se acolherem á villa iam-se retrahindo atraz, e nenhum portuguez acompanhava João Rodrigues, mas andavam pela villa roubando das cousas dos castellãos que achavam em casa dos hospedes, e quando João Rodrigues viu como se todos acolhiam pela porta e lhe não podia empeder como elle queria, com merencoria lançou a lança das mãos e arrebatou um castelão pelas pernas e assim o tomou e o trouxe preso perante el-rei, da quaes cousas foi muito louvado aquelle dia.10
Essa passagem apresenta o Rei como um herói militar e narra a tomada da Vila de Guimarães. É interessante notar que a citação demonstra um lado mais racional de D. João I, embora, muitas vezes, o cronista insista em representar o lado misericordioso do governante. Essas atitudes racionais oferecem uma face de cavaleiro e estrategista militar ao Rei. O segundo na hierarquia de representação do herói, é sempre um nobre aliado do Rei, que no caso, da crônica analisada, é Nuno Álvares. Esse é um herói militar, estrategista de guerra, obediente ao governante, cheio de virtudes, por essa razão, Deus sempre o ajuda a vencer nas batalhas, Nuno Álvares foi primordial nos anos de luta entre Portugal e Castela. Elegido o Mestre e alçado por rei, falou-se logo que fizessem Condestabre pera a guerra em que eram, posto segundo novamente fizera el-rei D. Fernando, quando em seu tempo os inglezes vieram, e ordenou que o fosse o seu mui leal e fiel servidor Nuno Álvares Pereira, havendo áquelle tempo vinte e quatro annos e nove mezes e doze dias, conhecendo d'elle que era de honestos costumes e mui avizado de cavallaria. Assim que, vista sua prudente e notável discrissão (que bem se podia dizer d'elle que posto que cega a fortuna em esta presente vida leixe alguns nus de galardão que o bem merecessem) contra este, não sendo ingrata o proveu entonce em alteza de grande e honroso offício nas guerras e hostes do reino, do qual elle uzou de tal guisa, crescendo cada dia em cavalleirosos feitos e muitos, como depois ouvireis, espertou invejosa grandeza porque se esfortaleçam em esforçado desejo de percalçar grandes cousas em suportamento de proveitoso trabalho. Este não esperando noites nem esquivos dias não temia de se poer a quaesquer aventuras por haver victoria dos inimigos, não por desprezar com soberba afouteza a multidão d'elles, mas porque nenhum avizamento antigo podia entonce ser egual ás suas sagaçarias, de que este novo guerreiro, sendo sempre muito em ufania e levantamento em esses bemaventurados vencimentos, assim sagazmente ordenava seus feitos, que nenhum outro podia entender o proposito de sua intenção, salvo com aquelles de que costumava fallar. Da ardideza e bom regimento em que está a principal cousa de guerra, era elle assim comedido, que quem fosse similhante a elle assim lhe seria de trabalho.11
Esse capítulo narra a ascensão de Nuno Álvares ao cargo de Condestável. Fernão Lopes
11
A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. XI, volume VI, pp. 43, 45 e 46. A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. CLXXXIII, volume III, pp. 216 e 217.
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utilizou de vários predicativos para qualificá-lo como um herói, o primeiro deles e o mais importante para o cronista, é a lealdade ao Rei, o segundo, a obediência a Deus, visto que era um bom cristão e o terceiro, a preocupação com o povo. Como toda representação de um herói, ele está sempre associado à preocupação com as mazelas sofridas pela arraia-miúda e sempre busca amenizar o sofrimento de todos, demonstrando-se misericordioso com a sua população e justiceiro com os povos de outras sociedades, como foi o caso com Castela. O herói também é sempre aclamado por todos da sociedade, os grandes e os pequenos compreendem que a única solução para os problemas vigentes de uma região, é a figura do bem feitor. Os da cidade fizeram prestes pera ir receber o Mestre, e a clerezia em procissão, e os leigos com seus jogos e tribilhos. E des-ahi os fidalgos e conselhos que ahi eram todos, juntamente de bestas, como melhor podiam, e em se corregendo uns e outros, começaram muito apoz de sahir fora da cidade per o caminho per onde vinham o Mestre, com cavallitos de cannas, que cada um fazia nos canaviaes com pendões correndo todos, e bradando: - Portugal, Portugal, por el-rei D. João, boa hora venha o nosso rei. E assim foram por mui grande espaço, acerca de uma legua. O Mestre e Nuno Álvares, e muitos dos que hi vinham, maravilhavam-se d'esto muito, havendo por cousa estranha, e assim como milagre, dizendo que Deus os movera a fazer aquello e fallava por aquelles moços, como boccas de prophetas, e assim vieram ante elle até á cidade, onde foi grande honra recebido. Quando o Mestre chegou acaerca d'ella, viu estar a porcissão, desceu-se elle e todos os outros das bestas, e humildosamente fincou os giolhos em terra e beijou a cruz, e veiu-se de pé com a porcissão, e entrou pela cidade com gran festa e prazer que com ella vinham, e levaram-n'o aos paços da Alcaçova onde havia de pousar.12
A representação de um herói é baseada também na perplexidade e surpresa de sua aclamação por todos, este sempre fica admirado e honrado com a atitude da sociedade, assim, a pessoa que foi aclamada, associa sempre que essa ação foi uma benção instituída por Deus, devido a sua obediência. O terceiro herói que se encontra na crônica, também é um nobre aliado do governante, sendo conhecido como doutor João das Regras. A sua virtude se encontra na habilidade com as palavras e com a dialética, assim o Rei sempre pedia conselhos a ele e ambos se ajudavam na política do reino.
12
Ibidem, cap. CLXXXI, pp. 169 e 170.
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E elles todos em um Paço postos em assecego, em boa ordenança, era ahi um notavel barão, homem de perfeita auctoridade e cumprido de boa sciencia, mui grande lettrado em leis, chamado doutor João das Regras, cuja sotilidade e clareza de bem fallar entre os lettrados e
teudo em conta. Este propooz n'aquellas cortes, tendo cuidado de mostrar por sciencia, razão e verdade, o proveito de tão grão negócio, como este aos povos ficar depois encarrego de escolher qual determinação quisessem. Mas quem poderia reter, segundo alguns escrevem, a abundança de seu bom follar, e como se houve tão sabedormente á cerca de tão alto feito, das quaes cousas alguns leigos leixando as migalhas, do que percalçar podiam, em escripto dizem que começou d'esta guisa: (…) (…) - Ora, senhores, disse aquelle doutor, porque já vistes claramente aquello sobre que tanto duvidaveis, e a que Deus prouve de serdes em conhecimento de como estes reinos são de todo vagos e postos em nossa disposição pera elegermos quem os defenda e governe, não curemos mais de histórias antigas que a nosso proposito possamos trazer. Mas porque sempre foram defesos e manteudos por rei e nos isto como cumpre por nos fazer, não podemos, segundo a necessidade em que somos postos requer e a nós convem em tal caso por força elegermos, segundo a necessidade em que somos postos requer e a nós convem em tal caso por força elegermos que rei faça todo aquello que cumpre pera cahirmos em sugeição de nossos inimigos seismaticos, que se d'ello trabalham quanto mais podem, não somente por nosso damno e perda, mas ainda da Santa Egreja e de nosso Senhor, cujos inimigos capitaes são. “E pois não é menos de consirar a pessoa que hade ser elegida, que o proveito que se d'ella segue ao reino, vejamos primeiro as condições que se requerem em ella, e se as taes acharmos a aquelle que houvermos de eleger, nossa eleição será discreta e sem reprensão nenhuma. E digo brevemente, segundo os sábios recontam, que entre as outras cousas que em elle ha de haver, deve ser de boa linhagem e de gran coração pera defender a terra, des-ahi que haja amor aos subditos, e com isto bondade e devoção. Ora que estas condições sejam achadas no Mestre nosso senhor, que temos em vontade pera eleger, assaz é visto claramente como todos bem sabeis. De ser de boa linhagem vêdes-lhe bem ser filho de rei, e de ser de gran coração assaz se mostrou e mostra, que com tão pouca parte do reino como comsigo tinham, com maravilhosa ousação sofreu taes perigos como has passados, e dispoz-se a muito maiores segundo o tempo em que somos postos. De haver amor aos subditos vede que podia mais fazer, que com quantas avenças e promettimentos de el-rei de Castella mandou fazer com grandes accrescentamentos de sua honra e estado, tal necessidade, qual foi a fome e cerco de Lisboa, que nunca em ello quis consentir por não leixar os povos em sugeição de seus inimigos. De haver em ello bondade bem se mostrou no roubar dos judeus que os de Lisboa quizeram fazer, e no remir dos captivos as ajudas que pera ello dava, segundo que cada um era. E d'elle ser devoto e encaminhar que os de Lisboa fossem providos e os seus bons feitos, segundo Deus, esguardae as esmolas que fez e o fallar com frei João da Barroca; e achamos que todos seus feitos são em grande pezo em a dureza de siso. Além d'esto ordenar tão discretamente todas as cousas que á defensão d'estes reinos pertencem, nenhum outro melhor poderia. 13
Essa é uma pequena parte do discurso de João das Regras, onde este discorreu sobre os quatro candidatos ao trono em Portugal, dentre eles o Mestre de Avis também estava nessa disputa. Assim,
13
Ibidem, cap. CLXXXIII, p. 173 e cap. CLXXXI, pp. 210 e 211.
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João das Regras, em seu discurso, colocou adjetivos que negativavam os outros três concorrentes de
D. João I, e engrandeceu o Mestre, com palavras que expressavam qualidades, além disso, ele utilizou uma boa dialética de convencimento, dessa forma, convenceu aos nobres a aceitarem João de Avis como Rei de Portugal. Assim, Fernão Lopes apresentou o doutor João das Regras, homem capaz de convencer a todos com as suas palavras, o herói das letras. Muitos fidalgos que lutaram com o Rei contra Castela também são citados, de forma nominal, na crônica. Estes são sempre apresentados de forma louvável, visto que são fiéis ao governante de Portugal. Na ala direita que nascia da ponta d'esta az, ia Mem Rodrigues e Ruy Mendes de Vasconcellos, e d'outros bons fidalgos uma leda companhia, que por suas honras e defensão do reino entendiam defender o logar onde eram postos, e chamavam-lhe a ala dos namorados, e seriam por todos dozentas lanças, e haviam uma grande bandeira ordenada á vontade de todos. Na outra parte, na ala esquerda, eram de mistura com AntãoVasques e com outros portuguezes, alguns estrangeiros, assim como Micer João de Monferrara, e Martim Paulo, e Bernardom Sola, e d'outros inglezes frécheiros e outros homens d'armas, que eram por todos outros dozentos, assim que minguavam a estas alas da sua direita ordenança dozentos homens d'armas, porque tanto havia d'haver em ambas as alas, como na direita az de vanguarda, e estes tinham uma alta bandeira de S. Jorge, e outros balsões de mistura, assim que a az de vanguarda com suas alas era semeada de bandeiras e pendões, como a cada um prazia de ter, ca ahi não havia entonce rei d'armas nem outro arauto que a ninguém desdicesse, des-ahi trombetas em alguns logares, segundo se requeria; detrás os homens d'armas que eram em ambas as alas, havia bestaria e homens de pé postos em tal ordenança, que lhe podessem fazer ajuda e empecer a seus inimigos; em a az dianteira, não havia nenhuns, ca não cumpriam em tal logar, alli não havia cotas d'armas, porque o conde nem outros fidalgos fossem conhecidos, ca ainda entonce não era em uzo, mas o conde trazia uma jaqueta de lã verde toda bordada de rozeiros, des-ahi cota, peito e braçaes, e arnez de pernas e guantes, segundo de cote costumava, e sempre espada cinta e adaga, salvo quando ouvia missa.14
Após essa descrição, o autor narra a batalha de Aljubarrota, com riquezas de detalhes da luta e da participação dos fidalgos, com seus diálogos descritos minuciosamente por Fernão Lopes, futuramente, esses nobres foram nomeados cavaleiros pelo Rei. Interessante observar a ênfase dada pelo autor da crônica, ao narrar acontecimentos de fidalgos não tão conhecidos para a história. O herói era sempre recompensado por Deus e pelo Rei, no caso de Nuno Álvares a sua bravura serviu como moeda de troca no jogo de interesses políticos.
14
A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. XXXVIII, volume IV, pp. 145 e 146.
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(…), e entre todos aquelles que el-rei tinha em vontade de accrescentar, assim era Nuno Álvares Pereira, seu honrado condestabre e muito fiel servidor, e faltando um dia com elle a de parte, disse que sua vontade e tenção era, esguardando os muitos e notaveis serviços que lhe feito tinha e esperava d'elle receber, de o acresentar em nome e rendas e dignidade de honroso estado, e pois elle era seu condestabre, officio na guerra do reino, que d'ahi em deante lhe prazia que fosse mais conde de certo condado, o qual lhe logo queria dar, segundo já com elle fallara.
Nuno Álvares respondeu a esto como grande mesura e assecego, dizendo que lh'o tinha em grande mercê, mas que sua vontade não era acceitar tal honra e dignidade, salvo se lhe elle primeiro prometesse de em sua vida não fazer outro nenhum conde, mas d'outra guisa que o não queria ser. E el-rei disse que lhe prazia muito, e assim lh'o prometeu e authorgou. Entonce o fez conde d'Ourem, como costumava de fazer, com todas as rendas e terras e villas que João Fernandes Andeiro, cujo fora aquelle condado, havia ao tempo de sua morte. E mais lhe deu Borba, e Villa Viçosa, e Estremoz, e Evora-Monte, e Portel, e Monte-Móro-Novo, a Almada, e Sacavem, com seus Reguengos, e o serviço real das judeus de Lisboa, e Porto de Mós, e o Rabaçal, Bouças, e Alvaiazere, e terra de Pena, e terra de Basto, e o Arco da Baulhe, e terra de Barroso, e mais em aprestimo todas as rendas e direitos que el-rei havia na cidade de Silves e Villa de Loulé, e no reino do Algarve, e diziam os que esto viam que esta fôra a mais formosa e rica doação que nenhum rei que na Hespanha fosse fizesse a algum seu vassalo com que devido não houvesse, e estimavam as villas e cercadas e terras chãs, que sua renda passava de dezesseis mil dobras.15
Essa passagem narra o presente oferecido a Nuno Álvares por D. João I, vindo este a receber o condado d'Ourem. No início, os ditos heróis que recebiam recompensas, não se achavam dignos para aceitar os agrados, porém, sempre concordavam com os regalos, no final. O herói também pode ser aquele que se une com o governante, através do jogo político do casamento, como é o caso do Duque de Lencastre16, após o casamento de sua filha, D. Filipa, como D. João I, o mesmo passou a ser visto como herói, acompanhando o Rei em diversas lutas contra Castela. Cobrado Roales d'esta maneira, partiu el-rei caminho de Valdeiras, com o duque e suas gentes. Em este logar estava por guarda Sancho de Valasco, filho bastardo de Pero Fernades de Valasco, com oitenta de cavallo comsigo; estava hi mais Gonçalo Fernandes de Aguilar e Gomes Eanes Maldorme e Gonçalo de Paredes, grande besteiro e muita certo da nomina d'el-rei, e mr. Roby Bracamonte com francezes e outros estrangeiros que por guarda d'aquella comarca eram postos, assim que a villa estava bem percebida de quanto cumpria á sua defensão. El-rei levava uma escala pequena e um engenho, se mister fizesse, pera algum logar, e porque o muro era estroso feito de taipa e a logares fraco, tiveram conselho el-rei e o duque de o combater e tomar por força, por ser escarmento a outros logares, e armada a escala e engenho, e repartidos os combates a cada uns e todos armados, antes que dessem ás trombetas, tomaram tal medo d'aquella guerra que não haviam em uso de ver, especialmente o Sancho de Valasco que tinha carrego do logar, que bem entendeu que não havia n'elles cobro, salvo serem entrados por força, e fez sahir um cavalleiro armado da villa bradando se estava ahi Pedro Affonso de Ancora, cavalleiro portuguez, que lh'o chamassem pera lhe dar o galgo que lhe promettera.17
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Ibidem, cap. LII, pp. 213 e 214. A trajetória do Duque e os interesses políticos envolvidos na crônica, foram apresentados no tópico Representação do casamento. 17 A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. CVI, volume V, pp. 146 e 147. 15
O sogro do Rei passou a ser aliado de D. João I, na luta histórica entre Portugal e Castela. O grande mérito do Duque foi entregar a sua filha em casamento, formando assim uma aliança política com Portugal e depois, enviando pessoas para o combate na península Ibérica. Todavia, também existiam heróis que tinham a função de apaziguar a guerra entre os reinos, esse era o ofício dos Procuradores. Cada Procurador defendia a sua sociedade, através de um acordo político, assim, estes procuravam a concórdia entre Portugal e Castela. Gastando-se o tempo em disputações que os procuradores dos reis a justificar suas causas formavam, era já esto no mez de março, e aquelle Micer Ambrosio, que dissemos, veiu alli a Olivença, e disse: - “Que por quanto d'ambas as partes eram allegadas muitas razões, a cada um mostrar sua querella ser boa, e uma parte dizia que movera justa guerra, e a outra também que direitamente a fazia, e uns diziam que as treguas foram quebradas por a parte adversa, outros que as quebrantara seu adversário, que por estas duvidas e todas outras virem a boa egualdade, que leixassem as disputações que tarde ou nunca haveriam fim, e tomassem outro modo de razoar chão, sem mistura de mais direitos, posto que algumas cousas já por elles allegadas replicassem em seu fallamento; (…). 18
Esses Procuradores eram representados como homens de apaziguamento, que negociavam o fim das guerras, através de acordos como: libertação de prisioneiros, deliberação de terras conquistadas por tropas inimigas e pagamento dos custos da guerra em dinheiro. Tais negociações eram feitas mediante um papel escrito por cada representado. Acima dos procuradores, estavam os Embaixadores, que possuíam basicamente a mesma função dos Procuradores. Os feitos da guerra estando em estes termos, foi movido que se tratasse entre os reis tregua e paz por sempre, e foram enviados a Castella por embaixadores os honrados D. João, arcebispo que depois foi cardeal, e João Vasques d'Almada, cidadão de Lisboa, mui honrado cavalleiro, e Martim Docem, doutor em leis. Estes mandou el sei bem corregidos como cumpria, e sessenta em cavalgaduras com elles, os quaes chegaram a Segovia uma quarta-feira, primeiro de junho, e depois de comer forma vêr el-rei e lhe fallar, propoendo a razão de sua ida como era por se tratar de tregua ou paz entre elle e el-rei seu senhor.19
Os Embaixadores eram os heróis das missões diplomáticas de seus reinos, utilizavam dos mesmos acordos que os Procuradores para conseguirem o fim, ou a trégua de uma batalha. Dessa forma,
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A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. CLXXI, volume VII, p. 49. Ibidem, cap. CLXXVI, p. 63.
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os heróis eram representados na crônica, para ser um herói só era necessário está do lado de seu reino, assim todas as qualidades seriam adquiridas por estes. A escolha política de um determinado lado, garantiria a virtude de um herói ou o vício de um anti-herói.
Representação do anti-herói As pessoas que foram denominadas de anti-heróis nesse artigo, correspondem a indivíduos que possuíam um certo ideal, mesmo que sendo contra ordem vigente da sociedade, geralmente, eram os traidores que serviam ao reino durante um tempo e depois se rebelavam. Partindo desse pressuposto, foram priorizados, em primeiro lugar, quatro anti-heróis, Fernão Lopes enfatizou os seguintes personagens: Conde D. Pedro, D. Pedro de Castro, João Affonso e Beça e Garcia Gonçalves Baldes. Tais pessoas eram fidalgos que procuravam vingança e dessa forma, se aliaram com Castela. De certa maneira, o Mestre de Avis havia realizado ações contra os mesmos, insuflando a ira desses homens, assim, o cronista narrou como os quatro homens tentaram matar D. João I, nos detalhes da descrição da fonte, os quatro homens estão cheios de ódio e com vontade de punição. Na narrativa, o Mestre venceu os inimigos com a ajuda e misericórdia de Deus, no primeiro momento, D. João se mostrou uma pessoa tolerante com os seus traidores, porém depois, segundo a leitura da crônica, a justiça foi feita pelo Rei. Mas a esto não minguava que responder muitas razões, culpando-o no perdão que fizera a D. Pedro, dizendo que a muito se aventurava quem punha a vida e honra em quem a elle em algum tempo começou de errar. Des-ahi diziam que fiar de nenhum castellão era a elle cousa mui empecida, maiormente em tal como o conde D. Pedro, que era primo co-irmão d'el-rei de Castella, do que elle bem devera entender que seu serviço não era fiel. E o Mestre respondia a todo, e em fim veiu a dizer: - “Eu não sou o primeiro que fui enganado por falsos vassalos, nem hei de ser o derradeiro, mas eu dava gran fé a todo seu conselho, por serem homens de auctoridade, des-ahi por mostrarem grão desejo que amavam muito meu serviço, em tanto que por vezes me fizeram dizer asperas palavras a alguns que me lealmente desejavam servir, assim como fiz ao mestre dos engenhos, que d'aqui fugiu com medo que de mim houve, e alguns outros, muito sem porque”.
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Em todo esto vendo João Duque como queimavam Garcia Gonçalves, com grande menencoria que d'ello houve, mandou tomar uns seis ou sete portuguezes, homens trabalhadores, que tinha presos, e mandou-os todos decepar das mãos e fanar dos narizes, e poer todos as mãos ao collo d'um d'elles, e mandou-os assim ao Mestre, o qual vendo sua desmesurada crueldade, mandou lançar no fundo do engenho, dentro da villa, os prisioneiros
que tinha castellãos. Des-ahi uzando mais de piedade que de rigor de vingança, houve d'um d'elles compaixão, e mandou que se não fizesse.20
Geralmente, a morte de um anti-herói é sempre marcante, visto que existe a necessidade de provar para a sociedade que a punição foi realizada, porém tais mortes podem ser amenizadas, quando um governante tem por objetivo demonstrar misericórdia, ou como no caso, de D. João, com os cronistas querendo afirmar um novo tempo em Portugal, através da nova dinastia. O anti-herói também pode ser o herói de outra região, como é o caso do exemplo do Rei de Castela, visto que para Portugal, o governante era uma ameaça, mas para Castela, o seu Rei era o herói que lutava pelos interesses da região. Segundo alguns que d'estes feitos fallaram, escrevem, el-rei de Castella a esta sezão era em Cordova como dissemos, e havia já enviada sua frota cercar Lisboa, e mandava a grão pressa por todos os escudeiros e fidalgos e homens d'armas que se viessem para elle pera entrar em Portugal pela parte de Badalhuce, segundo tinha ordenado, e escreveu a D. Pedro Tenorio, arcebispo de Toledo, e a certos cavalleiros seus vassallos, que os ajuntassem todos em Cidad Rodrigo, e que d'alli entrassem no reino de Portugal a talhar as vinhas e pães, e fazer todo o mal e damno que podessem, e elles vendo o tempo azado pera esto, foram déllo mui ledos, ca era no mez de Maio, em que o bem fazer podiam. 21
O cronista português descreveu as atitudes do Rei de Castela, como sendo más, porém se a narrativa fosse escrita por um cronista de Castela, provavelmente o seu governante agiria conforme a vontade de Deus e lutando pela cidade. Fernão Lopes tinha consciência dessa reflexão feita acima, e sempre narrava também o lado de Castela. Estas gentes que se ajuntavam de uma parte e d'outra pera haverem d'haver batalha, razoadamente é cuidar que cada uns teriam quem por elles fizesse preces e orações que fosse Deus da parte, e ajudasse os do seu bando, e quem por os muitos tivesse cuidado de rogar, bem entenderia que sua oração seria mais totemente ouvida, e a Deus mais ligeira de cumprir, e assim era de feito que a rainha D. Beatriz, mulher d'el-rei de Castella, depois que seu marido partiu do reino pera entrar em Portugal, sabendo ella que lhe tinham prestes a batalha, que se não escusava de haver, da qual lhe muito prazia, entendendo que havia de vencer e que por alli cobraria o reino todo, e era sua demanda acabada, estando em um logar que chamam Avila, e o arcebispo de Toledo em sua guarda, ordenou com certas donas e donzellas, quaes ella quis escolher, que tivessem cuidado de rezar continuadamente, assignado espaço, de guisa que de dia e de noite nunca cessassem de orar, e como alguma era achada menos, logo lhe mandava tolher a ração e se queixava muito contra ella, e ella as visitava muito a meude,
21
A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. CLXXVIII, volume III, p. 158 A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. XIX, volume IV, pp. 70 e 71.
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que não desfallecessem d'esto que lhe encommendado tinha. 22
Mesmo o autor escrevendo a versão de Castela, a ênfase da batalha entre as duas regiões era sempre positiva para o lado de Portugal e justificada com argumentos religiosos. O anti-herói também pode ser representado por um religioso, que nesse caso, perdia todo o respeito para o cronista, mesmo que seu cargo tenha sido instituído por Deus, como é o caso do Bispo Clemente, este foi intitulado por Fernão Lopes de antipapa. Esse clérigo apoiava o Rei de Castela, na luta contra Portugal, por essa razão foi considerado pelo cronista como um antipapa. O autor da crônica apresenta uma carta do Bispo Clemente ao Rei de Castela, após mais uma derrota para Portugal. Clemente, Bispo servo dos servos de Deus, ao muito amado em Christo filho D. João rei de Castella e de Leão, saude e espirito de fortaleza em as cousas a ti contrarias. Ouvi novas, de que toda minha vontade foi contorvada, e os beiços de minha boca de todo estremeceram, porque aquelle dia foi de grande ira, e espantavel sanha contra a tua real majestade, quando aquella resplandente Alteza, que d'onde o sol nasce até onde se põe de todos era temida, por um ligeiro aquecimento que adur se começava, cahiu assim trigosamente, que espanto é d'ouvir. Mas porem, Príncipe mui alto, não te espantes tanto d'esto, nem tomes grande pezar, ca muitas vezes se leu o vencedor ser vencido d'ouro mais baixo que si, e lemos que a arca do testamento dos que em Deus não criam, foi filhada e teuda em seu poder, e que Saul e Jonatas seu filho foram pelos phylisteus ambos vencidos e mortos. Escripto é que a grande cidade de Roma, senhora de todo o mundo, vencida foi por vezes de seus inimigos e contrarios, e não duvidamos, mas sabemos de certo como el-rei Rodrigo, senhor da Hespanha, vencido foi dos Alarves e perseguido d'elles. Sabemos que pouco tempo ha que a nobre prol de liz dos Inglezes foi abaixada; e bem sabeis que aquelle esclarecido principe entre os cavalleros do mundo, el-rei Dom Anrique, teu padre, que nas móres perdas e perigos mostrava seu grande esforço, e vencido depois vencia. Assim que aquelle a que Deus ama, esse castiga e correge, e se agora feriu e chagou o teu pé, elle é aquelle que sarará tuas chagas; e se o forte açoute de seu castigo soffreres com paciencia, a tua dor se tornara em prazer, e o teu nojo em alegria, e segundo a grandeza da dor do coração tens, assim será a consolação pera a tua alma, e prova Deus em ti a sua misericordia, e porém te castiga e apreme em este mundo em os bens temporaes, porque depois não hajas de passar o ardor da mora perdurável, que escripto é, que na edificação do templo todas as pedras primeiro eram lavradas com fortes martellos de ferro por se poerem mansamente na obra que havia de durar; e assim aquelles que d'este mundo hão de ser enviados pera poer na parede d'aquelle celestial templo, que é dito Hierusalem, primeiro são atormentados aqui, a paz mansamente sejam ali treladados e postos, e pois assim é, tu varão de bem, no qual nunca houve nenhum engano, porque te atromentas com tas grande dor? Ca posto que justa razão tenhas de a haver, a discrição requer encobri-la, e não a publicar, ca a publicação da dor ao commum povo faz aos amigos, acresentar pezar e nojo, e nos inimigos gera mui gram prazer e ledice, e porende filho muito amado, rogo-te quando posso, que em tal caso como este, não seja tua maneira de dor tão grande que te ponha fora de teu bom sizo, mas veste-se de vestiduras de saude e fortaleza, e põe teus feitos em esperança d'aquelle Senhor que acorre e ajuda aquelles que em elle esperam. Dante & c. 23
23
Ibidem, cap. XLI, pp. 157 e 158. A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. LXVIII, volume V, pp. 48 a 50.
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A justificativa utilizada para a derrota também está ligada ao povo de Israel, assim Castela por ser uma região muito amada por Deus, foi castigada, pois o Pai repreende quem ama, além do mais, o anti-herói religioso fez um discurso baseado no cristianismo que foi, normalmente, aceito por Castela, porém criticado pelo cronista de Portugal. E assim como os heróis portugueses aliaram-se com heróis ingleses, como por exemplo, o caso do Duque de Lencastre, da mesma forma, os anti-heróis de Castela também se aliaram com os anti-heróis franceses na luta pela península Ibérica. El-Rei e o duque em Portugal postos ante que mais ouçaes d'esto que fallamos, convém que se diga das duas mil lanças que el-rei de Castella aguardava em ajuda, não por termos que contar e fazer daquesto historia, mas porque a França levamos recado e trouvemos à resposta que vistes, a rasão requer que desejeis saber que o cumprimento houve tal promessa, onde assim foi que el-rei e o do que partidos da conquista e tornados a Portugal, houve el-rei de Castella novas como o duque de Bourbon, tio d'el-rei de França, irmão de sua madre, vinha em sua ajuda por capitão de duas mil lanças, por que el-rei esperava, que eram já nos termos de Logronho, andando quanto podiam por chegar a seu serviço. Em esto chegou o duque primeiro, e el-rei o recebeu mui bem, e havendo com elle conselho que maneira se teria de fazerem todos guerra, alguns capitães francezes e muitos castellãos diziam que era bem que el-rei entrasse em Portugal e fosse pelejar com o duque e com o Mestre que se chamava rei.24
Esse apoio francês tem ligação com a rivalidade histórica entre Inglaterra e França, nesse caso, a participação francesa e inglesa ampliou, de forma acentuada, a polarização entre Portugal e Castela dentro da Ibéria. Interessante observar a mudança de representação do personagem, Conde Nuno Álvares, que durante cinco volumes, ele foi um dos heróis da crônica, porém no sexto volume, o herói da crônica torna-se um anti-herói. No decorrer da narrativa, o Rei D. João foi questionado sobre a fidelidade do Condestável, dessa forma, muitos fidalgos diziam que o Conde só era fiel ao Rei, pois herdara muitas terras deste, assim, D. João decidiu retirar muitas terras de Nuno Álvares. Após esse episódio, o Conde decidiu sair do reino, porém foi impedido pelo Rei, todavia, D. João I não mudou de ideia sobre a decisão de recuperar as terras doadas a Nuno Álvares.
24
Ibidem, cap. CXIV, pp. 169 e 170.
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Entonce partiram todos pera suas casas, por concertar sua ida, e o Conde pera Portel por encaminhar como partisse; e estando n'aquelle logar, sabendo el-rei parte como se partir queria do reino, não teve menos sentido que o Conde quando foi chamado por lhe tirarem as terras, e mandou a elle Ruy Lourenço, deão de Coimbra, pelo torvar de sua ida; e ditas por elle, como lettrado que era, todas as razões boas, assim que lhe el-rei disse, como as que elle soube dizer, nenhuma cousa o mudar poude do proposito que começado tinha, e com tal
recado se tornou. El-rei vendo esto mandou a elle D. Fernão Rodrigues, mestre d'Aviz, e pero fosse notavel pessoa e avondoso de muita razão, o Conde sempre respondeu com grande humildade que sua partida não podia escusar; de que a el-rei seu senhor não devia desprazer, mormente pois por longo tempo era já d'accordo com seus inimigos. E com esta resposta se despediu sem mais arrecadar com elle. Entonce mandou el-rei D. João bispo de Evora, um prelado de boa auctoridade, que fosse a elle, e em fim de todas suas razões, sentindo o Conde o desejo d'el-rei, disse ao bispo que elle lhe mandaria notificar sua vontade, e partido d'elle enviou a el-rei Martim Gonçalves seu tio, e Lopo Gonçalves de Extremoz, por fallarem com elle largamente o que d'esto sentia, prazendo a el-rei do que lhe o Conde mandou dizer, e foi sua ida torvada de todo e paniu-se pera o Porto, onde el-rei já estava de assocego, e alli foi ordenado que el-rei tomasse pera si todos os vassallos que o Conde e outros fidalgos tinham, e que outro não tivesse vassallos senão elle; e que o Conde tomasse pera si as terras que já dissemos que dera, que elle fez contra sua vontade, mas não podia hi al fazer; e como as terras foram tiradas, el-rei poz a todos suas contias, e assim ficou o Condestabre assocegadon'aquellas que tinha de juro e de herdade, mas as que eram de prestimo lhe foi forçado leixar. 25
Como apresentado anteriormente, a mudança de um personagem com características positivas para negativas, dava-se de forma rápida, na Idade Média, geralmente, o governante mudava a sua perspectiva em relação ao herói, passando a persegui-lo. No caso de Nuno Álvares, o Rei quis verificar a sua fidelidade, passando a tratá-lo de forma rude, porém o Rei precisou novamente da ajuda do Conde e o mandou chamar para guerrear na fronteira entre Tejo e Odiana. El-rei que d'esto soube parte em Santarem, onde entonces estava, houve d'ello gran nojo e sentimento, e mandou chamar suas gentes pera ir a elles, entre os quaes mandou chamar o Condestabre, e nenhum d'aquelles a que el-rei escreveu se vinham pera elle, posto que muitos recados lhe mandasse; o Conde acintamente, como alguns escrevem, respondeu a quem lhe levou tal recado que el-rei não se devia tanto d'anojar da entrada d'aquellas companhas, pois em sua terra havia senhores e fidalgos a que encomendar podia que fossem a ellas, posto que elle a lá não fosse, e outras taes razões d'escusa, de que a el-rei muito desprouve quando as ouviu. Porém o Conde não cessava juntar suas gentes, e mandou el-rei outra vez a elle, contandolhe o mensageiro o nojo que tomava, especialmente por as gentes que lhe não vinham; e o Conde respondeu outra resposta similhante da primeira; com tal se espediu d'elle, e estando el-rei com este nojo, e tendo já o Conde juntos mil e dozentas lanças, encaminhou por ir vêr el-rei, não levando comsigo mais de vinte mulas, ficando todos os outros em Evora; e quando chegou a Santarem, porque vinha de suspeita, soube-o el-rei tarde, a que muito prouve de sua vinda; e sahindo-o a receber a pressa, achou o entre Santa Maria de Palhaes e Santa Iria; e quando o el-rei abraçou, porque o achou armado de cota e braçaes, disse alto em sabor, que ouviram muitos: - “Quanto agora posso eu dizer que este é o primeiro homem d'armas, que eu em esta terra
A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. CLIV, volume VI, pp. 108 e 109.
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vi”. 26
As amizades e as inimizades oscilavam bastante, um dia, o homem pode ser exaltado perante todos e, no dia seguinte, humilhado, tal situação dependerá da engrenagem política e econômica da sociedade, assim, a linha de relações entre as pessoas é bastante frágil. No caso citado anteriormente, Nuno Álvares deixa de ser o anti-herói e passa a ser novamente o herói e fiel companheiro do Rei. Conforme apresentado, os anti-heróis da crônica possuem as mesmas características dos heróis, o fator primordial que diferencia um do outro, é a obediência ou a desobediência, à ordem que está em vigor em uma determinada sociedade.
Considerações finais Sobre a teoria do núcleo central apresentado no tópico de teoria que segundo Claude Flament, o lugar de coerência significa o núcleo central, partindo disso, o consenso para o herói medieval e o anti-herói são antônimos e estes se referem a ideia de lealdade e traição, ou seja, para ser leal a alguém, é necessário trair outra pessoa, por isso, o conceito de herói e anti-herói estão diretamente ligados, assim o traidor pode ser o herói de alguém e o anti-herói de outro e vice-versa. Essas duas representações retiradas da análise da crônica de Fernão Lopes, formam dois grupos que constroem um consenso no centro de cada grupo, assim, um grupo pode entrar em conflito com um outro grupo, porém entre esses dois grupos existem algo em comum, que diz respeito a representação da mentalidade de Fernão Lopes, assim, através da escrita do cronista, é possível tentar compreender a forma de pensar do autor. Como tarefa, Fernão Lopes tinha que cumprir e escrever a representação de uma nova dinastia, essa nova família, de Avis, que ascendeu em Portugal, provocou a ruptura do sistema tradicional português. Assim, na crônica de D. João I, além das virtudes cristãs do Rei, Fernão Lopes enfatizou o perfil militar com situações de combate em Portugal e em Castela, indo além do regionalismo português, permitindo uma possível representação de heróis e anti-heróis.
A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. 1897, cap. CLXI, volume VI, pp. 126 e 127.
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Referências Fontes A Cronica de D. João I de Fernão Lopes. Clássicos Portugueses, director litterario – conselheiro Luciano Cordeiro, proprietário e fundador – Mello D'Azevedo. ESCRIPTORIO. 147 – Rua dos Retrozeiros – 147. Lisboa. 1897.
Bibliografia BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009. JODELET, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (org.), As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. LOPES, Fernão. Crónica de D. João I – 2 vol. Introdução: Humberto Baquero Moreno. Lisboa: Livraria Civilização, 1994. MALERBA, Jurandir; CARDOSO, Ciro Flamarion. (Orgs.). Representações: Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: SP, Papirus, 2000. Artigo recebido em: 29/03/2016 Artigo aprovado em: 12/05/2016
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O TRIBUNAL DE SEGURANÇA NACIONAL E O PROCESSO DE NESTOR CONTREIRAS RODRIGUES: O Integralismo sob a repressão judicial no Estado Novo
David Rodrigues Silva Neves* RESUMO: O presente artigo analisa o papel do Tribunal de Segurança Nacional (1936-1945), e em específico o processo do Integralista Nestor Contreiras Rodrigues, acusado de manter armamentos de guerra em sua fazenda em Resende, no RJ. Criado para reprimir os insurgentes da revolta de 1935, essa corte de exceção (TSN) também julgou integralistas e outros mais contrários a doutrina de Segurança Nacional, sustentáculo principal para as práticas repressivas tidas durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). PALAVRAS-CHAVE: Tribunal de Segurança Nacional; Integralismo; Repressão.
THE COURT NATIONAL SECURITY AND THE PROCESS OF NESTOR CONTREIRAS RODRIGUES: THE INTEGRALISM UNDER JUDICIAL REPRESSION IN NEW STATE’S DICTATORSHIP. ABSTRACT: This article analyzes the Court of National Security (1936-145), focusing on the process of the 'Integralista' Nestor Contreiras Rodrigues, accused of keeping weapons of war on his farm in Resende, in the State of Rio de Janeiro. The aforementioned Court was created in order to curb the insurgents of the 1935 revolt. Nevertheless,this court of exception also tried 'Integralistas' and other groups opposed to the doctrine of National Security, which was the main support for repressive actions taken during the Estado Novo dictatorship (1937-1945). KEYWORDS: Court of National Security; Integralism; Repression. ***
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Doutorando em História Cultural pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo. E-mail: davirodrigues761@hotmail.com. *
O Tribunal de Segurança Nacional
A
no de 1936, após a contenção do movimento revolucionário, em novembro do ano anterior, começado no norte e finalizado no Rio de Janeiro, juntamente com a prisão de muitos indivíduos, dentre eles alguns líderes, como Harry Berger, Miranda
e mesmo Luís Carlos prestes, em março de 1936, o Tribunal de Segurança Nacional saiu do papel no dia onze de setembro de 19361. Nascido como parte integrante da Justiça militar, o TSN, como ficou popularizado, julgaria os envolvidos nesse movimento de subversão, primeiramente2, cabendo ao Supremo Tribunal Militar o papel de julgar os réus que apelassem, em segunda instância3. Pela lei 244, de 11 de setembro de 1936, conforme mensagem presidencial dá-se a criação do Tribunal de Segurança Nacional. A justificativa, anticonstitucional (já que a constituição vedava expressamente a criação de tribunais e foros especiais) é dada como em decorrência da revolução de 1935 e a necessidade, inusitada, de defesa nacional. Aproveitando-se do estado de exceção, que na pratica, suspendia a vigência constitucional, o Estado criava uma instituição permanente a partir de uma condição jurídica provisória 4.
As leis utilizadas para a averiguação do crime seriam baseadas tanto na Lei de Segurança Nacional, de abril de 1935, como também na Lei nº 136, de 14 de Dezembro de 1935, que modificava vários dispositivos da Lei anterior, além de ampliar o leque dessa legislação contra a ordem política e social5. Detalhe importante: o Tribunal de Segurança Nacional seria um dispositivo usado apenas em momentos em que o estado de guerra fosse decretado ou até que terminasse qualquer processo oriundo desses crimes de sua competência6. No entanto, com as diversas manobras políticas, em atrelar BRASIL. Lei nº 244, de 11 de Setembro de 1936 que cria o Tribunal de Segurança Nacional. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-244-11-setembro-1936-503407-norma-pl.html. Acesso em: 30/01/2013. 2 Art. 3º Compete no Tribunal processar o julgar em primeira instancia os militares, as pessoas que lhes são assemelhadas e os civis. BRASIL. Lei nº 244, de 11 de Setembro de 1936. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-244-11-setembro-1936-503407-norma-pl.html. Acesso em: 30/01/2013. 3 Os réus poderiam apelar, em segunda instância no Supremo Tribunal Militar, sendo que muitos deles tiveram suas sentenças atenuadas, senão foram absolvidos. Cf. CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. Repressão Judicial no Estado Novo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982. 4 SILVA, Giselda; GONÇALVES, Leandro pereira; PARADA, Mauricio B. Alvarez. História da Política Autoritária: Integralismo, Nacional-sindicalismo, Nazismo e Fascismo. Recife: Editora da UFRPE, 2007. 5 BRASIL. Lei nº 136, de 14 de Dezembro de 1935. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/19301939/lei-136-14-dezembro-1935-398009- publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em 30/01/2013. 6 Art. 1º Fica instituido, como orgão da Justiça Militar, o Tribunal de Segurança Nacional, que funccionará no Districto Federal, sempre que fôr decretado o estado de guerra e até que ultime o processo dos crimes de sua competencia.(sic.) 1
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ao TSN a competência de julgar os crimes ligados à economia popular7 e com a instituição da ditadura em 1937, o Tribunal de Exceção ganhou não só autonomia, como também longevidade.
Decreto-Lei nº 88, de 20 de Dezembro de 1937. Modifica a Lei n.º 244, de 11 de setembro de 1936, que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, DECRETA: Art. 1º Até a organização da justiça de defesa do Estado, a que se refere a Constituição, continuará a funcionar o Tribunal de Segurança Nacional, instituído pela lei n. 244, de 11 de setembro de 1936, suprimida a limitação constante do art. 1º8.
Ao suprimir o artigo primeiro da lei 244 de onze de setembro, e alargar a área de atuação do TSN aos crimes contra a economia popular9, o Tribunal teria agora condições de se estender por um período indeterminável. Num momento em que a ditadura do Estado Novo se solidificava enquanto modelo político, é plausível entendermos que o próprio Tribunal de Exceção ganhou mais legitimidade política ideológica. Com relação aos juízes10 do Tribunal de Segurança Nacional, escolhidos a dedo pelo presidente, os mesmos deveriam analisar os autos, após a formulação da acusação, feita pelo promotor de justiça, e depois proferir, sem muitos rodeios, a sentença. Instalado o Tribunal e com seu itinerário a ser cumprido, os julgamentos começaram.
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BRASIL Lei nº 244, de 11 de Setembro de 1936. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/19301939/lei-244-11-setembro-1936-503407-norma-pl.html. Acesso em: 30/01/2013. 7 Art. 4º Compete privativamente ao tribunal processar e julgar os crimes: a) contra a existência, a segurança e a integridade do Estado; b) contra a estrutura das instituições; c) contra a economia popular, a sua guarda e o seu emprego. BRASIL Lei nº 244, de 11 de Setembro de 1936. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei244-11-setembro-1936-503407-norma-pl.html. Acesso em: 30/01/2013. 8 BRASIL, Lei 88. 9 Os crimes contra a economia popular variavam, desde o abuso excessivo de valor de produtos, até abandono de plantações e mesmo suspender a atividade de fábricas. Para mais informações ver: BRASIL. Decreto-Lei nº 869, de 18 de Novembro de 1938 que define os crimes contra a economia popular sua guarda e seu emprego. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-869-18-novembro-1938-350746-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 01/02/2013. 10 Art. 2º O Tribunal compor-se-á de cinco juizes, sem parentesco entre si até o segundo gráo, nomeados livremente pelo Presidente da República. § 1º Dois dos juízes serão officiaes do Exercito ou da Armada, generais ou superiores da activa ou da reserva, dois serão civis, de reconhecida competência jurídica, e o quinto Juiz um magistrado civil, ou militar, todos de reputação ilibada.§ 2º Durante o tempo que funccionar o Tribunal de Segurança Nacional os juizes que o compõem não poderão ser demittidos, nem os seus vencimentos poderão ser reduzidos.§ 3º O Presidente será o magistrado, civil ou militar. BRASIL. Lei nº 244, de 11 de Setembro de 1936. (sic.) Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-244-11-setembro-1936-503407-norma-pl.html. Acesso em 30/01/2013.
Os comunistas, apesar de já estarem presos desde 1935, em sua grande maioria, alguns estavam até mortos devido as torturas e outros, foram os primeiros a ser julgados. Eles eram divididos em duas categorias: os pegaram em armas e os que não pegaram. O desfecho dos processos não demorava muito e a própria sentença correspondia ao que os governantes desejavam: a punição. Nessa teia de servilismo os próprios juízes deviam esclarecimentos ao presidente. Com relação aos réus, podemos dizer que muitos deles não aceitavam a integridade do Tribunal e, por isso, muitos não se defendiam perante as acusações. A ideia era desmerecer os desmandos de um tribunal que, segundo eles, era totalmente ilegal. Apesar de o TSN não ser constitucional, antes de 1936, o mesmo detinha poder para julgar e, principalmente, condenar. Nesse caso, quando o réu não se defendia, a própria Ordem dos Advogados do Brasil11 (OAB) designava os advogados de defesa. Todavia, nesse cenário de culpabilidade dirigida, os julgamentos, e consequentemente as defesas dos réus por parte de seus advogados, na maioria escolhidos pela OAB, detinham bom desempenho, a ponto de que muitos eram absolvidos em segunda instância pelo Supremo Tribunal Militar. Isso se devia ao fato de que os juízes julgavam, na maioria das vezes, pelo indício da livre convicção. Parecenos que os mesmos, quando não podiam condenar pelos autos apresentados, utilizavam os mecanismos dados pela legislação. No entanto, a culpabilidade encontrava seus limites. Precisamos frisar que tais limites se mostravam latentes até a concretização da ditadura do Estado Novo, quando a segunda instância era julgada pelo Supremo Tribunal Militar. Após o 10 de novembro de 1937 a defesa tornavase quase que impossível. Se considerarmos que nos recursos que julgou, o Supremo Tribunal Militar além de reformar várias sentenças, diminuindo as penas, absolveu inúmeros condenados, chegamos a obvia conclusão de que a maioria dos juízes do TSN interpretou o julgamento por livre convicção, com a prerrogativa de poder condenar ou absolver por mera atitude mental 12.
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Para saber mais sobre a Ordem dos Advogados do Brasil, ver: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal e BESSONE, Tânia. História da Ordem dos Advogados do Brasil: criação, primeiros percursos e desafios (1930-1945). Brasília, OAB - Ed, 2003 (vol. 4 da coleção História da Ordem dos Advogados do Brasil) 12 CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. Repressão Judicial no Estado Novo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982. 11
Outro motivo, ligado à absolvição, que, na verdade, precede a condenação por livre convicção, se dava pelo fato de que muitos processos eram feitos às pressas e, por isso, com imperfeições gritantes. Segundo Evandro Lins, outro advogado de defesa, em alguns casos, a absolvição se concretizava pelas falhas e contradições dentro do processo. Os processos eram via de regra, malfeitos, porque eram realizados nos quartéis – os famosos IPMs, inquéritos policiais militares - por gente sem experiências. Eram falhos e o advogado invocava muito dessas falhas. As falhas muitas vezes eram insuficientes. De raro em raro, quando o tempo o tempo foi passando, e portanto, foi-se esmaecendo a impressão contrária e hostil ao movimento de 1935, o advogado podia ter sucesso. Havia certas infrações que não tinham a mesma tendência a reprimir com severidade. O caso daqueles que pegaram em armas, dos cabeças de 1935, era uma coisa. Mas havia alguns outros que eram acusados de divulgar panfletos subversivos. Já ai era uma sanção menor que a lei estabelecia. Ao mesmo tempo, nesses casos, as provas se contradiziam, e, vez por outra, se obtinha a absolvição. De toda forma isso não era frequente, porque os juízes quase sempre já vinham com a sentença escrita de casa13.
E assim, ficava evidenciada uma grande falha dentro da coerção judicial. O Tribunal de Segurança Nacional, por si mesmo, não conseguiu levar a frente toda a repressão que tanto desejavam os governantes e os militares. Apesar de ter se constituído em meio a uma pressão que condenara essa corte como institucional, o TSN ainda necessitaria de autonomia para fechar o cerco em relação aos comunistas, inicialmente. Todavia, esse “respaldo” só viria em novembro de 1937, quando o sistema se fechara na ditadura. Só assim o Tribunal de Segurança conseguiu se desatrelar do Supremo Tribunal Militar e endossar a proposta inicial: reprimir os dissidentes. Assim, em seu pleno funcionamento coercitivo o TSN ainda teve sua autonomia ampliada perante os crimes contra a economia popular, propaganda extremista, espionagem e sabotagem e outros, sendo esses últimos já no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O Tribunal só encontraria seus limites estruturais no final do Estado Novo em novembro de 1945. Até lá, mais de quatro mil processos foram julgados e mais de dez mil pessoas foram condenadas. Apesar das muitas pesquisas sobre a repressão na Era Vargas, poucos são os trabalhos específicos sobre o Tribunal de Segurança Nacional. Somente a partir da década de 1980 é que mais pesquisadores se detiveram a analisar o volumoso número de processos bem como o funcionamento jurídico do TSN. Todavia, há ainda muito a se descobrir sobre o tema.
LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
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O putsch integralista de 1938 O descontentamento dos integralistas14 perante a política Estado novista, em arregimentar aliados, se mostrava evidente durante todo o final de 1937 e, principalmente, no início do ano de 1938. A lei de suspensão dos partidos de dois de dezembro de 193715 tanto ditava, em nível acentuado, qual seria a reação dos membros integralistas como também unia, dentro de uma esfera de contestações, uma reação contra o Governo Vargas e sua carta constitucional inaugurada em dez de novembro. Na madrugada do dia dez para o dia onze de maio de 1938, os integralistas e outros demais colaboradores, com posições políticas ideológicas diferentes aos primeiros, deram início ao golpe, que ficou conhecido como o Putsch de 1938. Na ocasião, alguns grupos armados atacariam, simultaneamente, o palácio Guanabara, os correios e os telégrafos, o departamento da Policia Civil do Distrito Federal e outros demais locais, além dos sequestros de algumas lideranças do Estado Novo, como por exemplo, o general Góes Monteiro, Francisco Campos, o general Dutra e, principalmente, o Presidente em exercício, Getúlio Vargas.
Neste momento os radicais integralistas não têm mais ilusão e partem para um confronto armado: o líder é o medido Belmiro Valverde. Este se aproxima de liberais como Otávio Mangabeira e o tenente Severo Fournier; obtêm a aprovação de oficiais da marinha e oficiais de diversas forças públicas16.
O Putsch vinha sendo preparado desde o começo do ano, tendo um movimento percursor em março do mesmo ano, que por sinal foi desbaratado pela polícia. Apesar de seu desfecho trágico, o desencadeamento do movimento em maio, como pretendiam os revoltosos, liderados em sua maioria por integralistas, apesar de haver outros elementos, participantes não filiados a Ação Integralista
O integralismo surgindo como movimento organizado nos anos de 1930 detinha um ideal autoritário, nacionalista, antissemita, além de criticar o sistema liberal e o capitalismo internacional. Pregava a revolução Integral como salvação da pátria assentado nos moldes da terra família e propriedade. Plínio Salgado, presidente nacional, detinha de certa forma o "poder" da transmissão ideológica do movimento, mas é de se destacar que Miguel Reale e Gustavo Barroso tivessem papéis importantes dentro da tessitura ideológica da organização. Ver mais em: TRINDADE, Helgio. Integralismo: Teoria e práxis política nos anos 30 in: FAUSTO, Boris (org.) História geral da civilização Brasileira. Tomo III. O Brasil Republicano. 3º volume –Sociedade e Política (1930 -1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 15 BRASIL. Decreto Lei nº 37, de 2 de dezembro de 1937. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-37-2-dezembro-1937-354175-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 30/01/2013. 16 CARONE, Edgard. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1977. 14
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Brasileira, encontrou sérios problemas ligados à organização, comprometimento pela ação e principalmente a logística. Podemos entender que esse movimento foi tramado e constituído por alguns camisas verdes convictos, mas que contou com a participação de membros não integralistas. Alguns autores chegam a citar que até as lideranças do integralismo, como Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso, tanto sabiam de tais atos, como também participaram direta e indiretamente do Putsch. O golpe integralista motiva outras medidas de consolidação do regime, só que agora trata-se de medidas repressivas e coercitivas contra as novas oposições. Neste momento todas as formas de resistências ao Estado Novo, desaparecem, mas a extensão das leis mostra a sua intenção drástica: pela primeira vez, em tempo de paz, a pena de morte se legaliza e os civis podem ser julgados por tribunais militares 17.
Liderados pelo médico Belmiro Valverde e tendo como chefe militar, que liderou o ataque ao Palácio Guanabara, o Tenente Severo Fournier18, personagem emblemático, a revolta parecia, aos olhos dos atacantes, uma ação viável e com grandes chances de sucesso. Mesmo tendo as melhores promessas de homens, foram confirmados mais de dois mil, além de materiais, principalmente armas e meios de transportes, o desfecho, no decorrer do combate, e até mesmo horas antes, foi trágico, senão desolador19. O plano consistia nessas determinadas ações:
Militar, filho do Capitão Luís Mariano de Barros Fournier, nasceu em 17 de janeiro de 1908. Fournier deveria invadir o palácio Guanabara, na madrugada do dia 11 de maio de 1938 e prender Vargas. Apesar da realidade precária, os integralistas pretendiam tomar o poder, em todo país, nas primeiras 24 horas. No entanto, todas as iniciativas se mostraram limitadas, apresentando grande medo de atuação por parte dos integralistas e adeptos ao putsch. O próprio ataque ao palácio Guanabara, Segundo Severo, não contou com mais de 30 homens irregulares, ou seja, que não faziam parte das forças armadas. Apesar da ajuda do chefe da guarda no palácio, naquele dia, O tenente Júlio Barbosa do Nascimento, Fournier e seus homens não obtiveram qualquer vitória. Já no começo da manhã, Severo e o tenente Manuel Pereira Lima conseguiram escapar, deixando para trás sete mortos. Após tais eventos trágicos Fournier fica foragido até o dia 25 de junho de 1938, quando tentara pedir asilo político na embaixada italiana. Apesar de uma manobra típica de filme, quando Severo se escondeu dentro de uma mala, seus amigos e o próprio embaixador italiano Vincenzo Lojacomo, convenceram Fournier a se entregar. Mesmo que sua saída já havia sido negociada entre o Governo Brasileiro e Mussolini, em virtude da liberação de quantias congeladas no Brasil, a situação de continuava embaraçosa. Somente a pedido de seu pai e outros amigos e que Severo se entrega em 7 de julho de 1938. Na ocasião, optou por seu cárcere na prisão militar, no forte Duque de Caxias. Logo após, a pedido do ministro da guerra Eurico Gaspar Dutra, Fournier foi transferido para a Fortaleza de Laje. Lá sofreu diversos tipos de torturas, que consequentemente agravaram sua tuberculose pulmonar. Permanecendo na casa de correção, sob as ordens de Filinto Müller, sua situação piorara a cada dia. Apesar de ter sido liberado pela anistia em 19 de abril de 1945, Fournier faleceu um ano depois, em virtude do agravamento da tuberculose. Dicionário histórico Biográfico brasileiro pós-1930. Coordenação: Alzira Alves de Abreu. Ed. Ver. E atual. – Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. 19 Fournier destaca em seu diário que a covardia, somada a falta de recursos, humanos e bélicos, determinaram o fracasso do movimento. Ainda, em sua opinião, frisa a covardia por parte dos integralistas. Cf. NASSER, David. A revolução dos covardes. Rio de janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966. 18
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1) Prisão das autoridades e tomada e posse dos órgãos de direção do país. Estabelecimento – montagem da máquina governamental; 2) prisão das autoridades governamentais (civis e militares); 3) ocupação imediata dos órgãos de direção do país; 4) desarticulação e neutralização dos meios de defesa do governo; 5) desarticulação dos meios de ligação e comunicação do governo 20.
Todavia, apenas o Coronel Canrobert foi preso. A maioria dos atos programados para aquele dia não se concretizaram, seja por abandono dos atacantes em relação ao que se propuseram a fazer ou mesmo pela mínima organização. O ataque ao Palácio da Guanabara sofreu um significante atraso, sem contar com o transporte precário dos revoltosos e os poucos elementos destacados para a missão. Esses mesmos, que segundo Severo Fournier, se compunham forças irregulares. Mesmo em tal situação desfavorável, em que o insucesso os brindava a cada minuto, o ataque foi posto em prática. O próprio transporte, que os levaria a residência do presidente, se constituiu de uma eterna peregrinação. Nas palavras de Severo Fournier: Mas, inacreditável era o fato de que à 1 hora da madrugada, quando deveríamos já ter entrado em ação no Guanabara, ainda permanecíamos na Avenida Niemeyer, sem esperanças de sair de lá [...] a situação era angustiante e de grande nervosismo. Foi quando, inesperadamente, respondendo a um apelo que providencialmente tínhamos feitos a todos proprietários de caminhões para que nos enviassem os seus- pois já prevíamos um possível desastre com os responsáveis pelos transportes – apareceu-nos um caminhão que tinha vindo de um sítio em campo grande todo sujo de barro e de aspecto o mais desagradável possível. Saltou do caminhão salvador o motorista, dando-nos a nova: Não tenho gasolina e os pneus não sei se aguentarão o peso de tanta gente 21.
Contudo a primeira resistência do palácio foi quebrada. Esse fato se deu em virtude que um dos próprios membros da Guarda do Presidente, de serviço naquele dia, facilitou a entrada a ponto de criar uma desinformação e confusão entre os que defendiam a residência do presidente22. Mesmo assim, vários acontecimentos graves se mostraram presentes no ataque. Apesar da pouca segurança estabelecida no Palácio, muitos desses revoltosos, vestidos com os uniformes dos fuzileiros navais e com um lenço branco no pescoço, que os destacava como putschistas, não sabiam manusear o armamento capturado dos guardas, em específicos as metralhadoras.
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Relato de Severo Fournier in. NASSER, David. A revolução dos covardes. Rio de janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966, p. 57. Idem. 22 Trata-se do Tenente Júlio Nascimento. in, NASSER, David. A revolução dos covardes. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966, pág. 57. 20
Nessa ocasião, parte do próprio material bélico foi esquecido pelos revoltosos no caminhão que os levara até o Palácio, fato esse que deixou Severo Fournier totalmente desesperado. Nessa ocasião, ao dar início à segunda fase do ataque, num ligeiro exame, verifiquei que duas metralhadoras, machadinhas, bombas especiais, tinham sido esquecidas pelos nossos elementos. Fui informado por eles que haviam esquecido tudo no caminhão. Era incrível, mas era a dura realidade, e se tornava mais cruel ainda quando sabia que o caminhão fora embora, contrariando as ordens23.
Somado a tudo isso, Getúlio Vargas enfrentou os dissidentes com arma em punho. No decorrer do movimento até aproximadamente duas horas da madrugada, por incrível que pareça, ainda não haviam chegados os reforços, que a própria filha de Getúlio havia solicitado de Filinto Müller. O então delegado da Polícia do Distrito Federal ficara pasmado com a demora, pois já havia enviado homens para conter o ataque. Numa outra iniciativa, Müller despachara ainda mais reforços. Tais evidências mostram duas realidades diversas, mas que reputam a uma mesma condicionante dos fatos. Primeiramente, o plano dos invasores previra cortar qualquer tipo de comunicação entre o palácio Guanabara com o mundo exterior. Assim, isolando qualquer tipo de interferência rápida por parte das forças legalistas. Esse evento não se constituiu e a manutenção dos contatos entre a residência presidencial, mesmo que limitados, para com o chefe da Polícia do Distrito Federal, favoreceu a uma resposta repressiva, por mais demorada e problemática, como de fato se mostrou. Sem entrar na querela sobre as razões que impedem uns e outros de prestar socorro a Vargas, é importante constatar que algumas dezenas de pessoas mal preparadas, que não sabem nem usar armas, e pouco decididas, possam durante horas, manter o chefe do Estado prisioneiro em seu palácio e que a solidariedade, de que dão provas seus principais ministros, não seja, é o mínimo que se pode dizer, transbordante de entusiasmo 24.
No outro extremo, citamos a fraca e pequena força de segurança estabelecida no Palácio, isso se levarmos em conta que os integrantes do Governo tinham informações de que uma revolta integralista poderia acontecer naqueles dias. Tal fragilidade possibilitou aos assaltantes tomarem com facilidade os postos de ataques, previstos por eles dentro do Palácio Guanabara. Contudo, mesmo com homens armados e com o quesito surpresa, as limitações já destacadas: tropas irregulares, medo, falta
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NASSER, David. A revolução dos covardes. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966. SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil de Getúlio e a formação dos Blocos (1930-1942). São Paulo: Nacional Editora, 1985. 23
de treinamento militar, ligado ao manuseio de armas e outros, impossibilitou os revoltosos. Eles não conseguiram prosperar e cumprir o plano orquestrado: Sequestrar o Presidente Vargas. Com o decorrer do tempo, o irmão do presidente, Benjamim Vargas, veio em seu auxilio. Transpôs o cerco e ajudou na resistência, até que as forças legalistas chegassem e tomasse o controle da situação, isso, aproximadamente, às cinco horas da manhã. Severo Fournier e Pereira Lima fugiram e oito indivíduos foram fuzilados nas redondezas do palácio. Diante de tal tragédia, Belmiro Valverde comenta: O golpe de 11 de maio de 1938 é antecedido por diversos movimentos pequenos, alguns deles tendo eclodido parcialmente entre janeiro e março e janeiro de 1938, outros goraram antes de sua realização. A polícia e o governo estão prevenidos, mas parece que apesar dos fatos concretos e denúncias, há interessados em ignorar a preparação do golpe. Quando este se realiza finalmente em 11 de maio de 1938, Getúlio Vargas quase é morto e as ações imediatas para o contra-ataque tardam propositalmente; só depois é que os integralistas são cercados no palácio Guanabara e no arsenal da marinha e muitos deles são fuzilados friamente pela polícia25.
Após esse ataque frustrado, a situação se estabilizou. No dia 16 de maio, poucos dias após o levante, Getúlio Vargas decretara mais medidas de caráter repressivo para com os possíveis dissidentes que, posteriormente, tentassem outra iniciativa contra o governo estabelecido. Apesar da lei não ser retroativa, ou seja, não sendo possível a sua aplicabilidade antes de sua publicação, é exatamente nesses novos decretos que vemos, pela primeira vez na legislação brasileira republicana, crimes que poderiam constar como represália maior, a pena de morte26. Acaba assim a trágica aventura de tomada do poder pelos integralistas. A reação legalista será implacável, principalmente com os líderes. O Tribunal de Segurança Nacional também destacará seu papel contra esses novos inimigos. Apesar de serem julgados em um contexto não muito longe das revoltas comunistas, foi dispensado aos camisas verdes e outros envolvidos nesse putsch, uma atenção especial no aspecto repressivo. Eliminando definitivamente os incômodos integralistas, que são presos ou exilados, o fracasso de 11 de maio concede ao EN uma certa legitimidade, doravante, não se poderá mais
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CARONE, Edgard. A Terceira República (1937-1945). São Paulo: Dífel, 1976. BRASIL. Decreto Lei nº 431 de 18 de maio de 1938. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-431-18-maio-1938-350768-norma-pe.html. Acesso e 30/01/2013. 25
fazer o paralelo entre integralismo e EN; Vargas dessa vez provou, sem recorrer a falsificação de documentos, como no plano Cohen, que o extremismo espreita o país 27.
Quem foi Nestor Contreiras Rodrigues?
Fig. 1 Essa foto de Nestor Contreiras Rodrigues se encontra dentro do processo analisado junto com outras. O dossiê revela ainda outros documentos pertinentes ao réu. Aqui podemos visualizar a patente do mesmo, pela descrição, e sua posição dentro dos quadros da AIB. BRASIL, Processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Arquivo Nacional, CX. 08, apelação 198, 05/10/1938.
Nestor Contreiras Rodrigues era cirurgião dentista, formado pela Universidade de Quebec, técnico Agrícola pela Faculdade de Paris, além de membro importante da Ação Integralista Brasileira, ocupando a posição de primeiro inspetor da Região do Estado do Rio de Janeiro. Detinha grande
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SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil de Getúlio e a formação dos Blocos (1930-1942). São Paulo: Nacional Editora, 1985. 27
influência perante o quadro Integralista, chegando a fundar a coluna Contreiras28. Em algumas passagens, quando da análise de seu processo, é possível visualizar fotos, em que aparece ao lado de Plínio Salgado e outros membros do alto escalão da AIB. Nestor Contreiras residia em Rezende, Estado do Rio de Janeiro, na Fazenda Santa Therezinha de Monte Alegre. Sua ligação com o Tribunal de Segurança Nacional se dá em virtude da apreensão de armas de guerra em sua fazenda, dias depois do frustrado putsch. O material bélico apreendido se encontrava num porão nas dependências da fazenda.
O processo
Como já foi destacado acima, Nestor fora condenado a dois anos e meio de prisão. Pesava sobre o réu, além dos armamentos apreendidos, alguns depoimentos de seus funcionários, da fazenda. Os mesmos disseram que Nestor sabia dos levantes de 11 de maio. Com isso, dois indícios se juntavam: o porte de armas ilegal e a possível participação no putsch de maio do mesmo ano. Interessante é que o réu só será julgado pelo crime de porte. Abaixo, no quadro I estão algumas informações pertinentes o processo em si:
Dados sobre o processo de Nestor Contreiras Rodrigues29 Tipo: Processo criminal Tribunal: Tribunal de Segurança Nacional – Justiça Especial Nome do Réu: Nestor Contreiras Rodrigues Idade: 49 anos Uma coluna liderada por Nestor Contreiras Rodrigues durante a Revolução de 1930. Tendo saído do Sul e rumado para Minas Gerais, onde o conflito se desencadeava. Sua maioria era formada por gaúchos empregados de Nestor. Há um grande sentimento ufanista na descrição desses fatos, por meio de um site em que conta tanto fatos sobre a coluna Contreiras como também a genealogia de sua família. Foi possível cruzar alguns dados pessoais, pois na formulação do processo de Nestor aparecem algumas informações pertinentes à análise aqui desempenhada. Durante o cruzamento das informações nenhuma contradição entre nomes e fatos, quando requeridos. Existe um site que destaca Nestor Contreiras como um homem importante no movimento de 1930 e que teria organizado uma marcha intitulada como coluna Contreiras. Disponível em: http://www.genealogiafreire.com.br/bopp/coluna_contreiras.htm. Acesso em 22/10/2011. 29 Quadro I: analise do processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Arquivo Nacional, CX 08, apelação 198, 05/10/1938. 28
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Profissão: Cirurgião dentista Qualidade: Inspetor da 1º região integralista do Estado do Rio Nº do processo: 551/1 Data / Autuação: 12/05/1938 Registro: 159 Livro I fls: 33 Recebimento ao TSN: 31/05/1938 Apresentação ao Juiz: 02/06/1938 Denúncia: 09/06/1938 Julgamento: 07/10/1938 Penalidade: Decreto lei n° 428 de 16 /05/1938 e o Artigo 13 da lei nº38 de 04/04/1935 – Lei de Segurança Nacional Lei nº 38 de 04/04/1935 Art. 13 – Fabricar, ter sob sua guarda, possuir importar, ou exportar, comprar, vender, trocar, ceder, ou emprestar por conta própria ou de outrem, transportar, sem licença da autoridade competente, substâncias ou engenhos explosivos, ou armas utilizáveis como de guerra ou como instrumento de destruição. Parágrafo único. Não depende de licença da autoridade policial, mas se lhe deve comunicar, sob pena de apreensão, a posse de arma necessária à defesa do domicílio do morador de rural, bem como a de explosivos necessários ao exercício de profissão, ou a exploração da propriedade.
Pena De 1 a 4 anos de prisão celular.
Condenação 07/10/1938: Considerado culpado e sentenciado a 2 anos e 6 meses: Advogados: Valdemar Medrado Dias Heráclito Fontoura Sobral Pinto Jamil Ferez Apelação: Nº 200 08/11/1938 reduz a pena, grau mínimo, um ano de prisão. Delegado: José Picorelli Crime: manter armas e munições de guerra na fazenda Santa Therezinha de Monte Alegre, localizada em Rezende – R.J. Armas 13 metros de estopim Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.82-103, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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7 fuzis ; 3 mosquetões de calibre 7mm
3 sabres baionetas 1 espada para oficial 3 caixas contendo 3.199 cartuchos de fuzis mauser Maioria material de guerra Levado ao Tribunal de Segurança Nacional em 06/06/1938 07/10/1938 abre a audiência Juiz Alberto Lemos Bastos Condenação: 2 anos e 6 meses de prisão (Grau médio)
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Fig. 2 Nestor Contreiras Rodrigues aparece rodeado por integrantes da AIB e pelo líder máximo dos integralistas, Plínio Salgado. A foto foi marcada a fim de identificar as demais pessoas presentes. BRASIL, Processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Arquivo Nacional, CX 08, apelação 198, 05/10/1938 .
Apelação 8/11/1938 Juiz Pedro Borges Redução da pena pela apelação: um ano de Prisão (Grau mínimo) Cumprimento da pena: Penitenciária do estado do Rio de janeiro, Niterói. Somado a apreensão, um depoimento chama a atenção pelas particularidades ligadas aos armamentos e a organização do putsch. Olivia Chagas, criada da fazenda trouxe novos fatos ao rol das investigações. Mesmo sabendo que não se trata de uma fonte segura, segue abaixo o conteúdo de seus esclarecimentos. Segundo a depoente, alguns dias antes do dia onze de maio: [...] cerca de quinze horas; que após o almoço do mesmo dia, o doutor Contreiras, já no seu gabinete e biblioteca, informava com grande alegria a sua esposa que e a dona Sophia, esposa do integralista Bernardo Pinheiro, sobre a revolução integralista que estourara na manhã desse dia no Rio de Janeiro; que a declarante nessa ocasião numa saleta próxima ao aludido gabinete, ouviu o doutor Contreiras dizer que já estava a par da revolução, antes de estourada e que havia de ter o prazer de matar o Getúlio; que perguntara depois onde se achava Bernardo Pinheiro Júnior, ao que sua esposa Dona Alba Rodrigues respondera achar-se em Minas Gerais; que o doutor Contreiras era quem chefiava o integralismo na fazenda e o orientador do movimento em Rezende; que viu o Doutor Contreiras fugir apressadamente antes da polícia chegar a fazenda (sic.)30.
Ainda nas palavras de Olívia, Nestor Contreiras havia se encontrado com dois estrangeiros, Carlos Pomi e Lehmann, ambos da Suíça. Apesar de serem apenas relatos dentro de um depoimento e, por isso, questionáveis, dois fatos devem ser colocados em questão. Primeiro; se o Tribunal de Segurança Nacional foi um órgão de exceção, que muitas vezes forjava provas pela livre convicção dos juízes, como tais descrições não foram aproveitadas para o recrudescimento das acusações contra Nestor Contreiras? Afinal, matar Getúlio Vargas aparece grifado no depoimento. Segundo fato: Por quais motivos a acusação de participação direta no putsch, não foi levada a cabo ou mesmo tida como um indício de investigação? E assim, após todos os caminhos trilhados, perícia e depoimentos, o termo de audiência ratificou a seguinte condenação:
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Termo de declarações de Olivia Chagas. Processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Arquivo Nacional, CX 08, apelação 198, 05/10/1938, p. 15. 30
Considerando que a alegação da defesa de que o acusado não estava comprometido em atividades subversivas em maio de 1938, não invalida o fato incriminado, como tão pouco o fez a possibilidade de que o acusado quizesse ou intentasse combater o comunismo, função que não lhe competia; Considerando em suma que o acusado cometeu o crime em que foi classificado. Condeno o mesmo, na ausência de circunstancias atenuantes e agravantes, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão celular, grau médio do art. 13 da lei nº 38 de 1935. Expeça-se o componente mandado de prisão P.R Rio de Janeiro, D. F. 7 de outubro de 1938. Alberto de Lemos Basto Capitão de Mar e Guerra. Juiz do Tribunal de Segurança Nacional (sic.)31.
Condenado, apenas por manter o porte de armas e não pelo possível envolvimento no putsch, Nestor Contreiras, por meio de uma apelação interposta por seu advogado, conseguiu atenuar sua pena. Recorrendo dos dois anos e meio de prisão, o mesmo consegue um abrandamento, reduzindo sua pena para apenas um ano. Detalhe: o réu havia fugido e se encontrava, segundo fontes 32 de um espião brasileiro, Sergio Corrêa da Costa, na Argentina. Abaixo, destaca-se o resultado, em segunda instância, que reduz a pena do réu para o grau mínimo. Outro fator importante nesse julgamento é a rapidez do processo, tanto em primeira como em segunda instância. Devemos lembrar que o Tribunal de Segurança, nesse período compreendido, encontrava-se com maior autonomia e que, por não estar mais atrelado à Justiça Militar, detinha maior operacionalidade, sem qualquer restrição. Considerando que a favor do apelante milita a atenuação do art. 18 parágrafo único do Decreto-lei n. 88, de 20 de dezembro de 1937; Acórdão os juízes do Tribunal de Segurança nacional, por maioria dos votos, dar provimento, em parte, à apelação, para reduzir a pena a que me foi condenado Nestor Contreiras Rodrigues a 1 ano de prisão celular, grau mínimo do art. 13 da lei n. 38 de 1935. P.R Sala das sessões, 8 de novembro de 1938. Desembargador Frederico de Barros Barreto Juiz relator: Pedro Borges Juiz Cel. Luiz Carlos da Costa Neto Juiz Raul Machado33.
Termo de audiência: Processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Arquivo Nacional, CX 08, apelação 198, 05/10/1938. Segundo o espião brasileiro, Sergio Corrêa da Costa, Nestor Contreiras estava envolvido com integrantes do Partido Nazista na Argentina. Consta que Nestor participara de uma reunião com outros simpatizantes do Nazismo, em que, na eventualidade, preparavam uma revolta para depor o Governo Vargas. COSTA, Sergio Corrêa da. Crônicas de uma Guerra Secreta. O nazismo na América: a conexão Argentina. Rio de Janeiro: Record, 2004. 33 Termo de audiência: Processo de Nestor Contreiras Rodrigues. Arquivo Nacional, CX 08, apelação 198, 05/10/1938. 31 32
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Tal fato demonstra e, de certa forma, afirmam duas ideias: Primeiramente, a destreza do advogado de defesa, Sobral Pinto perante os fatos. Tendo um cenário agravado com as declarações, o mesmo recorre a pressupostos ligados ao passado político do Brasil e, principalmente, ao fato da mudança de leis e a não retroatividade penal, uma vez que, na época, tais ações, como manter armamento de guerra, não estavam prescritas como tratava a Lei de Segurança Nacional. Sobral Pinto conhecia muito bem a forma como se dava o funcionamento do Tribunal, em virtude dos vários casos que defendeu e também pela forma de julgar dos juízes que, de certa forma, detinham um laço “cordialidade”. Por fim, destacamos o abrandamento da pena. Ora, o mesmo não estaria ligado diretamente ao levante de 1938? Como alguém que detém armas de guerra e é adepto a uma ideologia contrária, e combatida pelo governo, naquele determinado período, mesmo que tais princípios encontrassem certa legitimidade por pessoas dos diversos estamentos sociais, principalmente nas forças armadas, pôde passar quase que impunemente? Possivelmente, a partir dos autos e das provas, mas principalmente pelos eventos relacionados ao Putsch de 1938, haveria certa distinção, ao nível de coerção judicial, entre comunistas e integralistas? Acreditamos que sim, mas de forma pontual e específica. No entanto, Nestor Contreiras, apesar de todos seus agravantes, sai quase que inocentado perante o crime que respondeu. Aos cabeças, ou líderes de movimentos, a condenação, tortura e outros, era quase uma norma padrão. Como havia fugido, desde a apreensão de armas em sua fazenda, Nestor Contreiras ficou foragido até o dia dezenove de outubro de 1942, quase quatro anos após sua condenação, quando, enfim, é capturado e recolhido a Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro. O réu ainda tentou um efeito suspensivo que é negado em 7 dezembro de 1942. Com o novo advogado, Jamil Ferez, Nestor ainda solicita que a prescrição da sentença. Fato esse que sempre foi negado pelo TSN. Ao que todas fontes indicam, Nestor cumpriu sua pena.
Conexão integralismo e nazismo? Para finalizarmos, outro indício surge durante o período em que o réu foi julgado. Estaria Nestor Contreiras Rodrigues ligado a atos de espionagem, numa colaboração entre o Partido Nazista Correa da Costa, infiltrado na Argentina no período da Segunda Guerra Mundial, é possível ligar um
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na Argentina com o movimento integralista? Pelos relatos do já mencionando espião brasileiro, Sérgio
evento ao outro. Na ocasião, meados de 1942, Nestor ainda estava foragido e, possivelmente, mantendo contato com simpatizantes do Partido Nazista na Argentina. Um dos interesses dessa ligação era elaboração de uma revolta que destituísse o governo do Estado Novo, em específico, Getúlio Vargas. Nesse momento, consta que: Passo seguinte, o Coronel Brinkmann recebe dois integralistas em sua residência, e deles ouve plena ratificação do propósito de promover no Brasil um levante “Cívico Militar” que derrubasse o governo Vargas e implantasse uma política totalmente similar a da revolução argentina de 4 de junho. Como penhor de suas palavras, dispunham-se a promover a visita à argentina de um dos chefes do movimento. Em segunda reunião no domicílio Brinkmann, este informou haver transmitido ao “Ministério da Guerra” a essência do que fora conversado. Em princípios de dezembro, com a chegada do “qualificado chefe integralista Rodrigues Contreiras” (Nestor Contreiras Rodrigues), houve reunião plenária em casa de Brinkman, já assessorado por dois oficiais do serviço de informação do Exército, tenentes Ávila e Jorge Osinde, que tomaram parte ativa nas conversações [...] Contreiras Rodrigues – um dos chefes provinciais do Rio Grande do Sul – julgava favoráveis as perspectivas de mudança em seu país com a conquista do poder integralistas. Mostrou-se preocupado com as manobras ianques, que buscavam criar incidentes na fronteira argentina e, mesmo razões de conflito com o Brasil34
A partir de todas essas informações, e com a análise do processo, é possível tecer que Nestor Contreiras Rodrigues não era uma figura neutra, ou com pouca importância, dentro da movimentação política da AIB. Sua atuação, sua figura chave e também suas participações, já no contexto da Segunda Guerra, evidenciam duas realidades: a ligação de alguns membros do integralismo com simpatizantes Nazi e também certa atenuação por parte da polícia Varguista, além do Tribunal de Segurança Nacional, perante alguns integralistas, se comparados aos comunistas. Desde o início, principalmente após a Lei de Segurança Nacional e a Revolta Comunista, a razia policial e mesmo a atuação do TSN demonstraram que os simpáticos à Aliança Nacional Libertadora pagariam caro por suas iniciativas. Nestor Contreiras Rodrigues teve papel (in)direto nos levantes de maio de 1938 e também, segundo os diários secretos do espião brasileiro infiltrado na Argentina, esteve à serviço de uma revolta que destituísse o governo Vargas com a colaboração do Partido Nazista argentino na época da Segunda Guerra (1939-1945).
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COSTA, Sergio Corrêa da. Crônicas de uma Guerra Secreta. O nazismo na América: a conexão Argentina. Rio de Janeiro: Editora Record,2004. 34
Se houve, por parte dos juízes do Tribunal de Segurança Nacional, algum favorecimento para com Nestor esse não ficou totalmente evidente. Todavia, o relaxamento de sua pena, nas entrelinhas e no desfecho do processo, traz a tona uma possível diferenciação entre os comunistas e integralistas quando submetidos à coerção judicial, isso não resta dúvida. Afinal, seria impossível ser diferente, uma vez que o próprio Tribunal de Segurança havia se constituído para condenar os revoltosos de 1935 sob certa polpa de “justiça”, quando, na prática, foram torturados, presos e até mortos. Não que outros grupos, como os próprios integralistas, não sofressem com tal política coercitiva, só que, no peso e nas medidas, os envolvidos em atentados comunistas, sentiram o peso repressor tantos das polícias como dos Tribunais. E assim mais um cenário de repressão tramitou por aproximadamente dez anos. O Tribunal de Segurança Nacional seria extinto em dezessete de novembro de 1945. Seu histórico de coerção, no entanto, ficaria quase que desconhecido por décadas. Atualmente novas pesquisas estão clareando melhor o que foi aquele momento marcado por um contexto que envolveu: uma guerra mundial e um período de cerceamento das liberdades individuais.
Processos utilizados BRASIL, Nestor Contreiras Rodrigues. AN 046 2004. Porte ilegal de armas de Guerra. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1938.
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SOBRE A AUTONOMIA MUNICIPAL NAS CONSTITUIÇÕES DE 1891, 1934, 1937 E 1946:
Reflexos em Taboão da Serra – SP Adalberto de Carvalho Graciano*
RESUMO: As constituições republicanas de 1891, 1934, 1937 e a de 1946 foram significativas para os municípios brasileiros, os quais passaram a ser considerados como entes federativos. Porém, dentro desta perspectiva, isso não garantiu juridicamente uma autonomia financeira e política, situação esta que ocorreu plenamente em 1946, abrindo caminho para a emancipação de vários municípios pelo Brasil, entre eles a cidade de Taboão da Serra, localizado na Grande São Paulo. Este artigo discute a trajetória desta autonomia municipal nas quatro primeiras constituições republicanas, no qual enfatizamos a análise das discussões em torno da autonomia municipal nestas Cartas Magnas, sendo que a Constituição de 1946 foi um “marco” neste caminho constitucional. Por isso, esta Carta é conhecida também como “constituição municipalista” e seus dispositivos constitucionais que viabilizaram a emancipação de novas cidades, num novo contexto político e democrático. PALAVRAS-CHAVE: Autonomia Municipal; Constituições Brasileiras de 1891, 1934, 1937 e 1946.
NOTES ON MUNICIPAL AUTONOMY IN THE CONSTITUTIONS OF 1891, 1934, 1937 AND 1946: REFLECTIONS IN TABOÃO DA SERRA – SP ABSTRACT: The republican constitutions of 1891, 1934, 1937 and 1946 were significant for the municipalities, which were henceforth considered as federal entities. However, within this perspective, it did not guarantee legal financial and political autonomy, a situation that took place fully in 1946, paving the way for the emancipation of several municipalities in Brazil, including Taboão da Serra, located in the State of São Paulo. This article discusses the history of this municipal autonomy in the first four republican constitutions, in which we emphasize the analysis of the discussions around the municipal autonomy in these Magnae Cartae, and the 1946 Constitution was a “milestone” in this constitutional way. Therefore, this Carta is also known as “municipalist constitution” and the constitutional provisions it provided have made possible the emancipation of new cities, in a new political and democratic context. KEYWORDS: Municipal Autonomy, Brazilian Constitutions of 1891, 1934, 1937 and 1946. ***
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Mestrando em História Econômica pela Universidade de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Raquel Glezer. Atualmente é funcionário público concursado em Taboão da Serra-SP, e exerce a Direção da Escola Legislativa da Câmara Municipal taboanense. E-mail para contato: adalbertograciano@yahoo.com.br. *
Introdução
A
questão da autonomia municipal nas primeiras constituições republicanas suscitou discussões entre os juristas sobre a sua efetividade. O modelo federativo estruturado no regime republicano oferecia às comunas poucas alternativas para
conquistar os recursos financeiros necessários para sua independência. Além disso, os municípios representam de forma significativa o poder local, e este poder ficou marcado pela força de pequenos grupos políticos ou famílias que tinham seu domínio político.1 No chamado período Vargas, o município tem sua autonomia garantida pela Constituição de 1934 e retirada pela Carta Magna de 1937. A Carta de 1934 garantiu a eleição de prefeitos e vereadores, além de ser assegurados tributos de sua competência; porém, a Carta de 1937 tirou a eletividade dos prefeitos. No período posterior à queda de Vargas, a Constituição de 1946 coroa um novo momento político, com uma base democrática que garantiu a autonomia dos municípios, nessa Constituição que foi denominada “municipalista”, a qual possibilitava a criação de novos municípios, e posterior aumento da autonomia financeira deles. Esta Constituição oferece subsídios para compreendermos a posterior emancipação de municípios na Grande São Paulo.2 Não existem trabalhos historiográficos, realizados em nível de pós-graduação, sobre a emancipação dos municípios da região denominada Grande São Paulo e, especialmente, de Taboão da Serra. Este debate sobre a autonomia municipal encontra um amplo espaço dentro do campo do direito, além de trabalhos na área da administração pública e sociologia. Este debate na historiografia leva-nos a analisar o papel do poder local, representado pelo município, na organização de arranjos institucionais dentro de uma ordem legal (Constituição) para legitimar o sistema político. Veremos, a partir de agora, elementos de Constituições brasileiras que versaram sobre a questão municipalista.
O sociólogo Vidal Dias da Mota Júnior escreveu a Tese de Doutoramento “Atores, estratégias e motivações na criação de municípios paulistas nos períodos democráticos pós-1946: Um estudo na Região Administrativa de Sorocaba”, analisando os sujeitos envolvidos e os caminhos que levaram à emancipação político-administrativa dos distritos da região de Sorocaba. 2 Nossa pesquisa sobre a emancipação municipal está em andamento, a qual será enfeixada em uma Dissertação de Mestrado (FFLCH-USP), sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Raquel Glezer. 1
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Constituição de 1891 O regime federativo foi institucionalizado pelo Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889. A posterior promulgação da Constituição de 1891 representou seu suporte institucional. Este federalismo influenciou a elaboração de nossa primeira Constituição. Tal fato se deve à influência exercida por Rui Barbosa sobre o Presidente Deodoro da Fonseca, pois Barbosa incluiu princípios da Constituição de Filadélfia 3 no conteúdo da Carta Magna. Porém, contrariamente aos ditames constitucionais norte-americanos, nosso federalismo tinha seus alicerces no governo federal que indicava líderes regionais para governar os Estados. Nossa primeira Constituição republicana era concisa, contendo noventa e um artigos e oito Disposições Transitórias. O presidente tinha mandato de quatro anos sem direito à reeleição imediata, não podia dissolver a Câmara dos Deputados e havia a possibilidade do mandatário sofrer impeachment. A vacância da presidência poderia ser por qualquer causa, devidamente circunstanciada, e se não houvesse decorrido dois anos do mandato presidencial, para a realização de novas eleições. O poder legislativo era bicameral (Câmara e Senado) sendo os senadores representantes paritários dos Estados, com a sanção do Presidente da República; o Poder Judiciário era composto pelo Supremo Tribunal Federal, a Justiça Federal e Justiça Estadual.
Autonomia no papel A Constituição de 1891, em seu artigo 68, previa que “Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”.4 [itálico nosso]. Na prática, esta autonomia não foi cumprida, pois estas unidades autônomas não eram independentes. Os Estados exerceram uma grande influência sobre as comunas de forma a viabilizar seu domínio político pelas oligarquias estaduais. Conforme análise de Rosa Godoy Silveira,
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Refere-se à Constituição dos Estados Unidos de 1787 que foi resultado da Convenção de Filadélfia. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituições Brasileiras, 2001, p. 95.
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(...) a organização municipal de que a Constituição Federal tratou laconicamente, mereceu amplas considerações nos textos constitucionais dos estados. Foi consignada a autonomia municipal, mas a elaboração das cartas municipais era competência das Assembleias e Congresso estaduais, assim como aquela de anular os atos e resoluções dos municípios,
quando contrários às leis e constituição do estado e da União. Somente o Amazonas e o Rio Grande do Sul deram ao município a prerrogativa de constituir-se elaborando sua lei orgânica. O governo municipal foi instituído de formas muito variadas (...) Bahia, São Paulo, Santa Catarina e Paraíba do Norte não incluíram nenhuma norma relativa à matéria municipal em suas constituições. Na esfera das atribuições, a maioria dos Estados se omitiu. 5
Na mesma direção, Nunes Leal constata a omissão estadual em relação a autonomia dos municípios: As constituições estaduais não tardaram a ser reformadas; reduzindo-se o princípio da autonomia das comunas ao mínimo compatível com as exigências da Constituição Federal que eram por demais imprecisas, deixando os Estados praticamente livres, no regular o assunto.6
Francisco Villa avalia esta situação da seguinte maneira: (...) não seria demasiado observar que, em certa medida, essas ideias referentes à organização municipal em nosso sistema federativo tiveram existência na Constituinte de 1891, mas não lograram prevalecer, graças à oposição contra elas levantadas pelos que se batiam pela autonomia irrestrita dos Estados.7
Estas oligarquias estaduais tornaram a disputa pelo poder um conflito que marcou os primeiros anos da República no Brasil, havendo casos em que o governo federal interviu nos Estados derrubando os governadores. O poder político dos Estados seria controlado pelos detentores dos meios de produção rurais em cada Estado. A arena política seria mais um espaço para que cada elite regional protegesse os interesses econômicos de sua localidade do que necessariamente os interesses nacionais e as demandas sociais. Além disso, esta elite controlava o processo eleitoral fraudando as eleições. O termo “peculiar interesse” utilizado pela Constituição de 1891 abriu brecha para diversas interpretações jurídicas contribuindo, ainda mais, para o poder discricionário dos Estados. Para Sampaio Dória, “neste enunciado, deixou-se margem a intermináveis debates sobre a peculiaridade dos interesses e sobre os elementos da autonomia”.8 [itálico nosso]
SILVEIRA, Rosa Godoy. Republicanismo e Federalismo 1889-1902 – um estudo da implantação da República no Brasil, 1978, p. 75. 6 LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil, 1993, pp. 90-91. 7 VILLA, Francisco Machado. O município no regime constitucional vigente, 1952, p.24. 8 SAMPAIO DORIA, Antonio de. Comentários à Constituição de 1946, 1960, p. 158. Transcrição realizada conforme o original. 5
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Nesta questão, Rui Barbosa assevera que não existe a legislação específica sobre o tema da autonomia por omissão do poder legislativo: Logo, se há quem esteja a gracejar, são os que nos perguntam onde está a autonomia. Se ella não está nas leis, está na Constituição. E, se estando na Constituição, não está nas leis, é porque os legisladores violaram a lei suprema, de cuja observância depende a validade dos actos legislativos.9
O jurista Hely Lopes Meirelles assinala que durante a vigência da Constituição de 1891 o município era como um feudo político, sem recurso e liberdade para tributar, sem progresso e autonomia. Desta forma, o município apresentava problemas que dificultavam sua sobrevivência, contrariando os princípios federalistas. Esta situação permite-nos inferir que o município não estava adequado ao modelo federalista vigente, porque representava este forte poder local e, por isso, não lhe foi dado poderes na Carta Magna e nem por outras leis. Porém, Tristão Martelli em sua obra “A Administração Tributária dos Municípios Brasileiros”, verifica que apesar da falta de tributos, os municípios tinham suas receitas oriundas de taxas cobradas sobre o exercício de diversas atividades:
BARBOSA, Ruy. Commentarios á Constituição Federal Brasileira, 1934, pp. 141-142. Martelli utilizou a moeda “cruzeiro” em seu texto, atualizando, dessa forma, o que ficou acordado em relação às receitas municipais de acordo com a lei brasileira. 9
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1. da alienação, aforamento e locação de móveis e imóveis do domínio privado das suas municipalidades; 2. do imposto na razão máxima de dois cruzeiros10 sobre cada milhar de cafeeiros em tratamento e produção; 3. das taxas com especial consignação aos serviços de canalização de água potável, esgotos de prédios e abertura de estradas que facilitem o transporte dos produtos do município; 4. das taxas sobre a localização de negociantes nos mercados, ruas, praças e outros sítios de domínio público municipal, bem como sobre os negociantes ambulantes e sobre veículos; 5. das licenças para inumação e das vendas de terrenos para sepulturas nos cemitérios municipais; 6. das tarifas para matadouros, para alinhamentos e aferições e para os depósitos de inflamáveis; 7. das concessões de licença para jogos, espetáculos e divertimentos públicos, para edificações, para a construção de andaimes, coretos para depósitos de madeira nas ruas e praças, para a extração de areia ou barro; 8. das multas impostas e cobradas no município por infração de regulamentos municipais; 9. das rendas de quaisquer estabelecimentos ou serviços municipais;
10. das taxas de publicidade que recaem sobre afixação de letreiros, emblemas, anúncios e reclamos; 11. das taxas de viação, compreendendo calçadas, terrenos em aberto, cercas, guias e falta de encanamento nos prédios urbanos para águas pluviais; e 12. dos emolumentos sobre alvarás de licença, certidões, nomeações e aposentadorias.11
Tendo em vista os aspectos observados, o município, na prática, dependeu dos Estados para sobreviver. O peculiar interesse não foi definido e as receitas municipais dependiam da cobrança de taxas e emolumentos ou da vontade do governador do Estado. Na verdade, o município não teve espaço dentro de um contexto de disputas entre os Estados que almejavam e disputavam o poder central. A construção do país como uma nação era um projeto que vinha desde o Império. Assim, era necessário para a emergente República fortalecer seu poder central contra qualquer ameaça ou revolta, como acontecera no Período Regencial.
Constituição de 1934 A Carta Magna de 1934 seguiu o modelo alemão da Constituição de Weimar (1919) em sua estrutura formal. Definiu uma estrutura federativa cooperativa para o país, em uma atuação cooperada entre Estados e União. Ela foi promulgada após um período de grandes transformações no quadro político brasileiro. Após Getúlio Vargas assumir o poder, um texto constitucional foi necessário para legitimar o novo governo, embora a primeira parte de sua presidência tenha sido caracterizada pelo chamado “governo provisório” (1930-1934). Além disso, havia a preocupação com o “fantasma” do comunismo e a integridade nacional que fez com que os constituintes elaborassem uma Carta que centralizava os poderes junto à União, restringindo, por exemplo, a autonomia dos municípios.
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TRISTÃO, José Américo Martelli. A Administração Tributária dos Municípios Brasileiros: uma avaliação do desempenho da arrecadação, 2003, p. 29. O autor apresenta o modelo de São Paulo, estabelecido pelo artigo 19 da Lei n° 1.038, de 19 de setembro de 1906. 11
Bases da autonomia municipal A autonomia dos municípios foi assegurada na Carta de 1934, através do Artigo 7.º: “Compete privativamente aos Estados: I - decretar a Constituição e as leis por que se devam reger, respeitados os seguintes princípios: (...) d) autonomia dos Municípios”.12 [itálico nosso] Nesta Constituição, a questão da autonomia é especificada com um artigo mais abrangente, ou seja, a Carta detalha o peculiar interesse dos municípios: Art. 13 - Os Municípios serão organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse; e especialmente: I - a eletividade do Prefeito e dos Vereadores da Câmara Municipal, podendo aquele ser eleito por esta; II - a decretação dos seus impostos e taxas, a arrecadação e aplicação das suas rendas; III - A organização dos serviços de sua competência. § 1º - O Prefeito poderá ser de nomeação do Governo do Estado no Município da Capital e nas estâncias hidrominerais. § 2º - Além daqueles de que participam, ex vi dos arts. 8º, § 2º, e 10, parágrafo único, e dos que lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios: I - o imposto de licenças; II - os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a forma de décima ou de cédula de renda; III - o imposto sobre diversões públicas; IV - o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais; V - as taxas sobre serviços municipais.13
Desta maneira, observamos que o município adquire pela Constituição uma relevância como ente federativo, com a garantia à eletividade do prefeito e vereadores, exceto nas Capitais e nos municípios que eram estâncias hidrominerais,14 quando o prefeito era nomeado pelo Governador, inclusive à decretação de impostos e taxas de arrecadação. Porém, esta autonomia durou pouco, pois em 1937 Vargas encetou um golpe de Estado. Nesse sentido, faltou tempo para avaliar os resultados das inovações garantidas pelo texto constitucional. Mesmo assim, destacamos que nesta Carta Magna foi garantida a legitimidade da administração municipal, aumentaram-se as receitas dos municípios e instituiu-se o controle da administração do município.
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1934. In: Constituições Brasileiras, p. 119. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1934. In: Constituições Brasileiras, p. 122-123. 14 Sobre a questão das cidades hidrominerais perderem a sua autonomia municipal, conferir o caso de São José dos Campos, uma “estância hidromineral natural” no período de 1935 a 1977. Cf. PEREIRA, Cristiano José. A cidade, a fábrica e a juventude: a mão-de-obra na Fábrica de Louças “Santo Eugênio” e o contexto industrial de São José dos Campos-SP (1921-1973), pp. 44-48;61;76. 12
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Como podemos observar, esta Carta teve significativas mudanças em relação à anterior. A primeira delas é que o município passou a ter o poder de tributar: imposto de licenças; imposto predial e territorial urbano, cobrado o primeiro sob a forma de décima ou de cédula de renda; imposto sobre diversões públicas; imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais. Foi um alento econômico à municipalidade, permitindo autonomia que se expressava também pela eletividade de prefeitos e vereadores.
Constituição de 1937: autonomia restringida Esta Constituição foi decorrente do golpe de Estado, justificado pelo Plano Cohen, suposto plano de ataque comunista, que existiu apenas textualmente e serviu de motivo para recrudescer a centralização do poder varguista. No Estado Novo (1937-1945), o presidente tinha poder absoluto. A Constituição limitou a autonomia dos municípios, cassando a eletividade dos seus prefeitos, “Art 27 - O Prefeito será de livre nomeação do Governador do Estado”.15 O Artigo 26 trata da autonomia dos municípios e o Artigo 28 das rendas atribuídas aos municípios: Art. 26 - Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e, especialmente: a) à escolha dos Vereadores pelo sufrágio direto dos munícipes alistados eleitores na forma da lei; b) a decretação dos impostos e taxas atribuídos à sua competência por esta Constituição e pelas Constituições e leis dos Estados; c) à organização dos serviços públicos de caráter local. (...) Art. 28 - Além dos atribuídos a eles pelo art. 23, § 2, desta Constituição e dos que lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios: I - o imposto de licença; II - o imposto predial e o territorial urbano; III - os impostos sobre diversões públicas; IV - as taxas sobre serviços municipais.16
Sampaio Dória, referindo-se a esta Constituição, afirma: “A Constituição de 1937 deu, com a mão direita, autonomia aos Municípios, mas, com a esquerda, tirou-a. Deu-se no artigo 26 quase nos mesmos termos que a Constituição de 1934. Mas retirou-a no artigo 27...”17
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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1937. In: Constituições Brasileiras, p. 119. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1937. In: Constituições Brasileiras, pp. 77-78. 17 SAMPAIO DORIA, Antonio de. Comentários à Constituição de 1946, p. 159. Transcrição realizada conforme o original. 15
Nesta Constituição, desaparece o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais. Pelo exposto anteriormente, verificamos que a vida dos municípios foi marcada por avanços e recuos. A autonomia seguiu por caminhos incertos. Hely Lopes Meirelles, analisando o assunto, faz o seguinte balanço: (...) na Primeira República não a desfrutou, porque o coronelismo sufocou toda a liberdade municipal, e falseou o sistema eleitoral vigente, dominando inteiramente o governo local; no período revolucionário (1930-34), não a teve, por incompatível com o discricionarismo político que se instaurou no país; na constituição de 1934 não a usufruiu, porque a transitoriedade de sua vigência obstou a consolidação do regime; na Carta outorgada de 1937, não a teve, porque as Câmaras permaneceram dissolvidas e os Prefeitos subordinados à interventoria dos Estados.18
Na análise das Constituições de 1934 e 1937, identificamos semelhanças e diferenças em alguns aspectos entre elas no tocante ao município. A Carta Magna de 1934 fortaleceu a autonomia municipal com a eleição de prefeitos e vereadores, exceto nas capitais e estâncias hidrominerais; a de 1937 retirou a eleição do prefeito. A Constituição do Estado Novo não faz menção, como a Constituição anterior, de um órgão de assistência técnica à administração municipal e fiscalização de suas finanças. A Carta de 34 permitia a intervenção nos municípios em caso de necessidade de regularizar suas finanças; a de 1937 tornou este dispositivo desnecessário já que os prefeitos eram nomeados pelos governadores. Porém, a Constituição de 1937 permitiu o agrupamento de municípios para a instalação e exploração de serviços públicos comuns, tal como a construção de estradas de rodagem. Desta maneira, verificamos que desde a instauração do regime republicano até a Constituição de 1934 o município, na prática, não representava necessariamente um ente federativo. Era o núcleo do poder local e suas práticas patrimonialistas. O federalismo foi uma acomodação de interesses entre as elites locais. A partir da Carta de 1934, o município garante legalmente o status de autônomo, podendo tributar e eleger seus representantes. Entretanto, isso ocorreu durante o período do governo turbulento e autoritário de Getúlio Vargas que, com a Constituição de 1937, retirou a autonomia de eletividade dos prefeitos. Mesmo assim, com a Constituição de 34 ergueram-se os alicerces para a autonomia municipal que teve seu espaço na Constituição de 1946.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, p. 13.
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Constituição de 1946: o “municipalismo” em contexto Em 1946, o Brasil tinha acabado de passar por um regime autoritário e uma Constituição organizada para um poder centralizador de um Estado autoritário, que caracterizou a última fase do governo de Getúlio Vargas (1937-1945). O período compreendido entre 1946 a 1964 é denominado de Quarta República,19 dentro do qual foram possíveis diversas mudanças em nossa sociedade. Neste período, tivemos eleições para Presidente da República, Governadores de Estado e Prefeitos, cargos do poder legislativo na esfera federal, estadual e municipal. Os partidos políticos se fortaleceram com programas ideológicos definidos e identificados com o eleitorado com vários segmentos da sociedade participando do processo político.20 Apesar da mudança, não houve ruptura neste processo político. Nesse sentido, Maria Campello enfatiza a continuidade política do período e os acontecimentos externos influenciando na nova ordem democrática brasileira: A restauração democrática em 1945, causada muito mais por eventos internacionais que por dissensões econômicas internas graves que estabelecessem sério conflito de classes, não produziu uma substituição radical dos grupos no poder, embora exigisse uma reformulação político-institucional. Desse modo, se em 1945 foi deposto o Presidente Vargas, na liderança do processo de redemocratização do país manteve-se a mesma elite política que comandava o regime deposto e sob sua direção promoveram-se as primeiras eleições nacionais e a formulação da Carta Constitucional de 1946 que deixou praticamente intacto, em pontos cruciais, o arcabouço institucional do Estado Novo.21
Simon Schwartzman avalia da seguinte maneira esta onda democrática: El régimen de Vargas cayó em 1945 em la ola de democratizaciones que barrió America Latina después de la Segunda Guerra Mundial. Pero em este momento todo ya estaba listo para uma resurrección política, la que en verdad ocurrió tan pronto como el juego político se declaro abierto.22
Getúlio Vargas volta ao poder em 1950 criando um antagonismo entre “getulistas” e “antigetulistas”. Setores da sociedade brasileira participaram ativamente dos debates sobre os rumos
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Cf. CARONE, Edgard. A Quarta República (1945-1964). Cf. BENEVIDES, Maria Victoria. A UDN e o udenismo (ambiguidades do liberalismo brasileiro). 21 SOUZA, Maria do Carmo Carvalho Campello de. Estado e partidos políticos no Brasil – 1930 a 1964, p. 64. 22 SCHWARTZMAN, Simon. “Veinte años de democracia representativa em Brasil, 1945-1962”, In: Revista Latinoamericana de Ciencia Politica, p. 9. 19
do país, especialmente nos projetos de desenvolvimento e da questão democrática. Esta época é conhecida, também como o período do nacional-desenvolvimentismo com a criação e o fortalecimento da Petrobrás (1954). Posteriormente, sob a presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1961), temos a expansão da siderurgia, a implantação da indústria automobilística, a construção de grandes usinas hidrelétricas, a mudança da Capital para o Planalto Central, construção de extensa rede rodoviária interligando, através de Brasília, as várias regiões do país. Com a industrialização, cidades como São Paulo adquirem o status de metrópole, impulsionando a economia nacional.
Constituição municipalista Com a promulgação da Constituição Federal de 1946, o município assume uma posição de destaque no cenário nacional. A “Constituição municipalista”, como também passou a ser conhecida,23 destacou de forma singular o município com um dos entes da Federação, ou seja, a autonomia municipal passou a ser efetiva, garantindo às cidades autonomia política, administrativa e financeira. Nesse sentido, sob a chancela da nova Constituição foi assegurada a autonomia de municípios pelo país:
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Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. O município brasileiro. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1946. In: Constituições Brasileiras, pp. 70-71.
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Art. 28 - A autonomia dos Municípios será assegurada: I - pela eleição do Prefeito e dos Vereadores; II - pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente, a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação das suas rendas; b) à organização dos serviços públicos locais. § 1º - Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde houver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União. § 2º - Serão nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos dos Municípios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de Segurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional importância para a defesa externa do País. Art. 29 - Além da renda que lhes é atribuída por força dos §§ 2.º e 4º do art. 15, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios os impostos: I - predial e territorial, urbano; II - de licença; III - de indústrias e profissões; IV - sobre diversões públicas; V - sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência.24
De acordo com Eurico de Andrade Azevedo, na Carta Magna de 1946: (...) pela primeira vez em nossa história constitucional, a autonomia municipal foi assegurada em bases sólidas, de maneira que não pudesse ser postergada pelos Estados federados. A Constituição de 1946, verificando a importância das comunidades locais para o progresso do País, garantiu ao Município a autonomia política, pela eleição do prefeito e dos vereadores; a autonomia administrativa, pela organização dos serviços públicos locais; a autonomia financeira, pela decretação e arrecadação dos seus tributos e pela aplicação de sua receita. 25
Nesta direção, Sampaio Doria destaca a relevância do município na nova Carta, enfatizandoo como ente federativo: (...) se houve com mais sabedoria política, consagrando para os Municípios a verdadeira doutrina da Federação e a verdadeira doutrina da democracia. Da Federação, mercê da autonomia real, que instituiu; da democracia, mercê da eleição dos prefeitos”.26
Cabe salientar que o pensamento da Constituinte de 1946 já previa, segundo José Duarte, “a fixação da política municipalista, capaz de dar ao município o que lhe era indispensável, essencial, à vida, à autonomia”.27 [itálico nosso] Esta Constituição foi o suporte jurídico mais importante que permitiu a criação de uma grande quantidade de municípios no Brasil, assegurando-lhes autonomia política e administrativa: Mantendo a autonomia municipal entre os princípios constitucionais da União (art. 7º, VII, e), a Constituição de 1946 deu-lhe a defesa coercitiva da intervenção federal (art. 7º) e igualmente a defesa judiciária do Supremo Tribunal Federal, por iniciativa do Procurador Geral da República, quando convocada a Suprema Corte para apreciar as representações fundadas na arguição de inconstitucionalidade do ato estadual lesivo da autonomia municipal (art. 8º, parágrafo único). A defesa judiciária da autonomia municipal proporcionou ao Supremo Tribunal o exercício de fecunda atividade protetora, sob a Constituição Federal de 1946, depurando o ordenamento estadual de regras constitucionais violadoras da concepção da Lei fundamental do País, em matéria de autonomia municipal.28
Sobre o papel do Supremo Tribunal Federal, Lídia Cunha analisa que:
AZEVEDO, Eurico de Andrade. “O município – sua natureza e formação”, p. 1. SAMPAIO DORIA, Antonio de. Comentários à Constituição de 1946, p. 159. Transcrição realizada conforme o original. 27 DUARTE, José. A Constituição Brasileira de 1946, p. 106. 28 HORTA, Raul Machado. “A posição do município no direito constitucional federal brasileiro”. In: Revista de Informação Legislativa, p. 113. Texto na íntegra: Art. 7º O Governo Federal não intervirá nos Estados, salvo para: VII – assegurar a observância dos seguintes princípios: e) autonomia municipal; Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos números VI e VII do artigo anterior. [itálico nosso] 25 26
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O Supremo Tribunal Federal emitiu numerosíssimos acórdãos com interpretação favorável aos Municípios, em questões de autonomia política, administrativa e financeira, e isto porque os Estados ainda insistiam em invadir a esfera municipal, autônoma, questionando matéria tributária, a ver se tiravam do município o tributo que era devido a este e não mais ao Estado.29
O destaque desta Constituição em relação às anteriores decorre, primeiramente, da possibilidade de invocar o Supremo Tribunal Federal no caso de riscos à autonomia municipal ameaçada pelos Estados. Além disso, ao município foi dada a primazia na participação dos impostos federais e estaduais a ele atribuídos. Mesmo com as novas possibilidades para o município, uma questão continuou a ser objeto de polêmica na nova Carta: a questão das rendas municipais. A Constituição Federal, com seu foco “municipalista”, suscitou questionamentos em relação à falta de tributos suficientes para a sobrevivência dos municípios. Segundo Dalmo Dallari, (...) com o advento da Constituição de 1946, a mais municipalista das constituições brasileiras, esperava-se que, definitivamente, fossem concedidos aos municípios meios suficientes para suportar os encargos de sua responsabilidade. O que ocorreu, porém, foi uma ligeira melhoria em relação ao que estabelecera a Carta Magna de 1934. Pretendiam, os municipalistas, que fossem destinados aos Municípios alguns tributos fortes, diretamente relacionados com a produção ou consumo de bens.30
Nesse contexto no qual a esperança de obter maiores recursos financeiros para a criação de municípios era justificada pelo texto constitucional, muitos deles lutaram com sucesso para obter a sua autonomia pelo país inteiro. Contudo, estes impostos não eram suficientes para a manutenção dos gastos que uma Prefeitura deveria ter. Foram criados, portanto, municípios com um poder arrecadatório precário, os quais viviam em inúmeras dificuldades financeiras: (...) com a falsa visão de que poderiam arrecadar mais recursos federais, por conta das cotas do imposto de renda que a União restitui aos municípios onde ele é arrecadado, brotaram municípios em todos os Estados, em proporções evidentemente alarmantes, evidenciando a falta de critério e, como era de se esperar, o inverso dos benefícios esperados.31
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CUNHA, Lídia Maria de Oliveira Jordão Rocha da. “A evolução da autonomia municipal no constitucionalismo brasileiro”. In: Revista Jurídica do Uniaraxá, p. 21. 30 DALLARI, Dalmo de Abreu. O município brasileiro, p. 42. 31 Op. cit. “A evolução da autonomia municipal no constitucionalismo brasileiro”. In: Revista Jurídica do Uniaraxá, pp. 2021. 29
Nesta direção, o deputado estadual paulista Sebastião Carneiro alerta para a atenção aos critérios na criação de novas comunas: (...) criação de novas unidades municipais, deve ser encarado com muito critério, com muita atenção para evitar inconveniências defluentes da criação precipitada de novos municípios que não poderão satisfazer as condições essenciais à sua vitalidade, quero dizer, condições precípuas [e] condições fundamentais para que os novos municípios possam fazer face às despesas decorrentes de seus serviços administrativos, dos seus serviços de ordem econômica, da sua administração, no que tange ao seu peculiar interesse de forma que seriam unidades que, não podem viver “de per se” ficariam arrimadas necessariamente ao Estado e o Estado não está em condições muito satisfatórias para atender aos núcleos municipais.32
Nesse sentido, verificamos que esta falta de critérios para a criação de novos municípios redundava em novas cidades que passariam a contar com poucos recursos, tornando penosa a vida de seus habitantes devido à falta de uma infraestrutura adequada que muitas incipientes prefeituras enfrentaram para atender seus cidadãos. No município analisado, esta situação não é diferente. Os problemas com infraestrutura são um tormento ao governo municipal de Taboão da Serra: [Taboão] ... era um “mar de problemas” sofrendo as consequências de uma cidade que acabara de ser criada. Assim, a cidade sofria com a falta de estação de tratamento de água e de rede de esgoto. E, a falta de água fazia com que moradores tivessem que perfurar poços artesianos, mas que devido às condições adversas do solo era uma operação de alto custo. Além disso, estes poços poderiam ser contaminados pelas fossas negras que eram utilizadas como esgoto pela população. Era uma dificuldade que o governo municipal levou ao conhecimento governo do Estado como sendo prioridade, pois, chegava a prejudicar o desenvolvimento da cidade.33
Este problema é relatado e debatido na leitura dos discursos pronunciados por alguns deputados estaduais na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.34 É assim o critério político (político no sentido alto) e preponderante, a criação fácil e abusiva de novas unidades municipais, anêmicas, mirradas e depauperadas sem condições próprias de vitalidade ao invés de fortalecer o salutar princípio descentralizador concorreria para a feição dessa norma peculiar ao regime, através da dependência do Estado em que ficaria a
Discurso proferido pelo Deputado Sebastião Carneiro, 40ª Sessão Ordinária da 1ª Sessão Legislativa da 1ª legislatura em 12/05/1948, 46, caixa 6, fls, 22-4. Arquivo ALESP. 33 Graciano, Adalberto C. “Taboão da Serra de outros tempos: 55 anos”, In: Portal O Taboanense, 17/02/2014. O artigo comenta uma matéria pública no Jornal A Folha de S. Paulo sobre a situação dos municípios da Grande São Paulo. 34 Nossa pesquisa sobre os discursos parlamentares referentes à autonomia de municípios paulistas está em andamento, a qual será enfeixada em uma Dissertação de Mestrado (FFLCH-USP), sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Raquel Glezer. 32
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nova unidade autárquica através de auxílios, subvenções, amparo oficial imprescindíveis para a sua mantência.35
Desta forma, podemos inferir que as novas cidades se transformariam em novos “currais” eleitorais, pois, dependeriam do auxílio e disponibilidade de recursos do Estado para garantir sua manutenção como município autônomo. Os deputados estaduais foram sujeitos decisivos nas ações emancipatórias após a promulgação da Constituição de 1946, pois na Assembleia Legislativa controlavam o processo legislativo que resultava na autonomia dos municípios, ou seja, eles eram atores importantes na promoção destas autonomias, visando, principalmente, aumentar seu eleitorado e, por consequência, garantir as suas respectivas reeleições. Para isso, contavam com vereadores ou outras personalidades da elite local na execução das emancipações. Deste modo, os deputados estaduais iniciavam o processo legislativo que estabeleciam as posteriores autonomias dos municípios, com a possibilidade palpável de interromper formalmente o andamento deste processo. Isso significava que tinham um grande poder, através do controle deste trâmite processual, além de interagirem com os interessados na autonomia. Para Langebuch, “há sempre elementos locais politicamente interessados na emancipação, e que – com apoio de deputados – promovem campanhas visando a realização do plebiscito, e induzem a população a votar favoravelmente”.36 De acordo com Delorenzo Neto, (...) realmente o paternalismo estadual representa tantas vezes um óbice do progresso municipal, mas esse argumento por si só não basta. Importa considerar na constituição dos municípios a existência de fatores da civilização e condições de sobrevivência, e além de elementos materiais imprescindíveis, outros tantos fatores mínimos de instrução e qualidades de liderança entre os seus homens. São várias circunstâncias de ordem psico-sociológica que devem ser atendidas.37
Assim, a falta de serviços públicos como escolas, saneamento, abastecimento, energia elétrica, entre outros, transformou-se em um problema para os novos prefeitos. Mas, em princípio, os
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Discurso proferido pelo Deputado Sebastião Carneiro, 99ª Sessão Ordinária da 1ª Sessão Legislativa da 1ª legislatura em 30/07/1948, 110, caixa 15, fl. 08. Arquivo ALESP. 36 LANGENBUCH, Jurgen Richard. A estruturação da Grande São Paulo – estudo de geografia urbana, p. G+67. 37 DELORENZO NETO, A., Estudos Municipais (1948-1968), p. 224. 35
legisladores constituintes de 1946 pensavam em solucionar estas dificuldades com a “Revolução Municipalista”: (...) consciente de que a maior parte do país se empregava na faixa agrícola no interior, sem as oportunidades de tratamento médico, saúde, instrução, transportes e oportunidade de ganho das populações urbanas, insinuava uma política de recuperação das áreas atrasadas. Daí a “Revolução Municipalista” (...) em matéria financeira da parte das receitas das zonas urbanas industrializadas e prósperas deveria ser canalizada para os municípios do interior, mediante redistribuição de 10% da arrecadação total do imposto sobre a renda por todas as prefeituras, exceto as das capitais.38
Ataliba Nogueira analisa o município e sua importância com mais profundidade e relevância: À vida municipal interessam todas as relações dos convizinhos compreendendo os aspectos vários da vida de família, da vida econômica, da vida cultural e espiritual. Restaurando-se o município, já foi dito que se tornará ele, simultaneamente, o suporte e o descongestionador do Estado e há de contribuir para atenuar a crise mortal que este atravessa, vítima do centralismo excessivo, que o depaupera e abastarda.39
Desta maneira, acreditava-se que a emancipação seria o caminho para sanar dificuldades financeiras dos municípios brasileiros, principalmente se atentarmos ao fato de que neste período temos uma progressiva urbanização das cidades brasileiras – embora em ritmos diversos em suas diferentes regiões – sendo que o crescimento populacional, o qual era oriundo principalmente de migrações, demandavam novas necessidades emancipatórias: Com o aumento da população e sua concentração em núcleos urbanos, novas necessidades surgem. Muitas destas, via de regra, não podem ser satisfeitas com os próprios recursos comunais: há de se recorrer a instâncias estaduais e federais: no Brasil atual, a melhor forma de reivindicar bens e serviços para uma comunidade é esta, emancipar-se.40
No entanto, Meirelles levanta a problemática do despreparo técnico das novas prefeituras, no tocante à parte burocrático-administrativa: Na maioria dos casos, as administrações locais não estão politicamente educadas e tecnicamente preparadas para dirigir o município com a autonomia que a Constituição Federal lhe assegura. Dessa disparidade entre a liberdade político-administrativa de que gozam as municipalidades brasileiras – sem símile em todo o mundo – e o despreparo dos
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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1946. In: Constituições Brasileiras, p. 19. ATALIBA NOGUEIRA, José Carlos de. O município e os munícipes da Constituição Federal de 1946, p. 20. 40 HESSEL, José Ribeiro. Criação de municípios no Rio Grande do Sul, p. 8. 38
administradores locais, para a complexa tarefa governamental, resulta a desorganização administrativa e financeira que tanto embaraça o progresso de nossos municípios.41
De outra forma, o deputado Sebastião Carneiro levanta a questão da consequência política de criação de um novo “território”, sendo o critério político o único a prevalecer neste processo: (...) porque pode acontecer que alguns bairros, ou “territórios”, para usar das expressões da Lei Orgânica dos Municípios cuja parte de sua população ou dirigentes não estejam muito satisfeitos com os rumos políticos da região, proporem através da desincorporação um meio de conseguir os seus intentos político-partidários. Desta maneira, atendendo não a interesses da própria população mas a intentos nem sempre louváveis trabalham alguns em detrimentos de muitos, pela incorporação ao município vizinho.42
Sendo assim, mesmo a Constituição de 1946 sendo um suporte jurídico importante para autonomia municipal, estas autonomias foram uma unanimidade. Assegurava tributos aos municípios e segurança do Supremo Tribunal Federal em relação à possíveis ingerências dos Estados contrários a qualquer emancipação. Porém, as novas cidades tiveram de enfrentar problemas econômicofinanceiros para sobreviverem.
Considerações finais Entendemos que vários motivos levaram à emancipação de cidades no Brasil e, que os territórios a serem emancipados podiam ser alvos de disputas políticas, ou seja, a emancipação, algumas vezes, não era um desejo unânime da população ou era um acaso.43 Assim, mesmo diante de futuras dificuldades financeiras, novos municípios brasileiros, tais como Taboão da Serra-SP, surgiram com o apoio de autoridades políticas e lideranças locais, amparados legalmente pela Constituição de 1946. Desta forma, as emancipações municipais no período em questão podem ser entendidas de algumas maneiras: contribuição para o progresso do
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, pp. 15-16. Discurso proferido pelo Deputado Sebastião Carneiro, 99ª Sessão Ordinária da 1ª Sessão Legislativa da 1ª legislatura em 30/07/1948, 110, caixa 15, fl. 35. Arquivo ALESP. 43 “Taboão da Serra foi emancipado ao acaso, pois a sua emancipação nunca foi defendida nem pelos dois vereadores eleitos quando distrito: Oswaldo Cesário de Oliveira e José Martins”, opinião esta publicada no livro “Taboão da Serra – sua história e sua gente”, que conta de forma “oficiosa” a História do município de Taboão da Serra, do escritor Waldemar Gonçalves. 41 42
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país, ampliação do número de distritos eleitorais e multiplicação do número de cidades que se manteriam, entre outros recursos, com verbas dos Estados e do Governo Federal. Assim, percebemos que toda esta trajetória do município desde o início da República até o período que estudamos no presente Artigo é marcada pela forte concentração em torno do poder central, face ao poder local representado pelo município. As motivações para as emancipações de novos “territórios” apresentam diversas justificativas e refletem um novo contexto histórico de um país em crescimento e em processo acelerado de urbanização. Sendo assim, mesmo levando em conta as dificuldades financeiras de algumas comunas, as autonomias aconteceram de forma ampla, justificadas como um anseio das populações dos territórios envolvidos, mas com o premente interesse de políticos interessados nestes novos e autênticos “currais” eleitorais.
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A UNIÃO DA GUANABARA AO RIO DE JANEIRO E A DIVISÃO DO MATO GROSSO:
O (des)aparecimento das unidades federativas durante o governo militar Daniel Almeida de Macedo*
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo retratar em um plano paralelo e comparativo o desmembramento de Mato Grosso e a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, eventos que ocorreram em meados da década de setenta, no contexto do regime autoritário. A divisão do estado de Mato Grosso foi efetivada em meio ao programa de ocupação de “espaços vazios”, e justificada pelos argumentos da “segurança nacional” e “desenvolvimento”, visando o fortalecimento do poder nacional. A agenda política dos militares, não obstante, aliava o seu projeto de “Brasil Potência” aos interesses da elite agrária sul-mato-grossense, favorável à divisão de Mato Grosso. Quanto à Guanabara, os relatórios do SNI projetavam a necessidade do governo militar de diminuir o peso político da Guanabara, reduto oposicionista e “domesticar” o MDB naquele estado. O que se extrai da avaliação conjunta sobre o desmembramento de Mato Grosso e a fusão entre os estados da Guanabara e o Rio de Janeiro é que em ambos os casos permearam vultosos interesses econômicos e políticos. A fusão dos estados litorâneos, outrossim, representou um importante precedente político que alterou a configuração federativa do país e abriu caminho para a posterior decisão de se criar o estado de Mato Grosso do Sul. PALAVRAS-CHAVE: Divisão de Mato Grosso; fusão da Guanabara e Rio de Janeiro; governo militar.
THE UNION OF GUANABARA WITHIN RIO DE JANEIRO AND THE DIVISION OF THE MATO GROSSO STATE: THE (DIS)APPEARANCE OF THE FEDERAL UNITS DURING THE MILITARY GOVERNMENT
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Doutor em História Social – USP. E-mail para contato: danielmacedo@usp.br.
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ABSTRACT: This article aims to portray in a parallel and comparative plan the dismemberment of Mato Grosso and the merger of the states of Guanabara and Rio de Janeiro, events that occurred in the mid-seventies, in the context of the authoritarian regime. The division of the state of Mato Grosso was carried out amid the occupation program "empty spaces", and justified by the arguments of "national security" and "development", aimed at strengthening of national power. The political agenda of the military, however, allying its project "Brazil power" to the interests of Southern Mato Grosso agrarian elite, favored the decision of dismember Mato Grosso state. As for Guanabara, SNI reports projected the need for the military government to reduce the political weight of Guanabara, a stronghold opposition and also tame the MDB in that state. What is extracted from the joint evaluation of the dismemberment of Mato Grosso and the merger between the states of Guanabara and Rio de Janeiro is that, in both cases, it permeated significant economic and political interests. The merger of
the coastal states, moreover, represented a political precedent which changed the federal setup of the country and paved the way for the subsequent decision to create the state of Mato Grosso do Sul. KEYWORDS: Mato Grosso Division; merger of Guanabara and Rio de Janeiro; the military government. ***
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Imperativos políticos e econômicos na fusão dos estados litorâneos
E
m 1975 o presidente Ernesto Geisel faz a fusão entre o estado da Guanabara com o antigo estado do Rio de Janeiro. O mapeamento eleitoral produzido pelo Serviço Nacional de Informações, o SNI, exigia reduzir a proporção avassaladora de votos
que o MDB tinha na Guanabara. Geisel dá a versão de que ele queria ter grandes estados, mas o que ele desejava, na verdade, era juntar os legislativos.1 Esta interpretação dos fatos e das razões para a fusão dos dois estados é compartilhada por Hélio de Araújo Evangelista que observa que “(...) existia uma visão política, para a qual a cidade do Rio de Janeiro era um foco de oposição do regime militar”. Como o estado da Guanabara era o único estado na ocasião governado pelo MDB, partido da oposição, esperava-se com a fusão debelar este foco ao juntar o “conservadorismo” fluminense com a “vanguarda” carioca”.2 Há, todavia, avaliações divergentes quanto às razões político-partidárias para a fusão do estado da Guanabara com o Rio de Janeiro. Primeiramente, há que se pontuar que Chagas Freitas foi eleito governador da Guanabara em 1970, no auge do endurecimento do regime, sob os auspícios do governo militar. Embora pertencesse ao MDB, Chagas Freitas não apenas se abstinha de se envolver em enfrentamentos com a ditadura, como ostentava um excelente relacionamento com os círculos militares, ou seja, pelo menos em tese, não representaria uma ameaça ao governo. Para Marly Silva da Motta, Chagas Freitas tinha um estilo ambíguo, mostrava-se mais à vontade na estruturação do poder local do que na ocupação de espaços no panorama nacional, o qual, aliás, naquele momento se encontrava em grande medida vedado aos políticos.3
A documentação do Arquivo Geisel que permite desenhar um quadro mais cristalino dos desafios políticos enfrentados no encaminhamento da fusão é a proveniente do SNI, que informa sobre as posições da Arena fluminense e da Guanabara. “Uma das preocupações apresentadas pelos relatórios do SNI diz respeito à composição da Assembleia Legislativa que resultaria da fusão entre Guanabara e estado do Rio, pois se apontava que dificilmente os arenistas obteriam a maioria”. Para Marieta de Moraes é importante destacar neste episódio que tanto os relatórios do SNI como os despachos do ministro Armando Falcão mostram que o governo tinha clareza dos problemas que a fusão traria para as eleições de 1974. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. A fusão do Rio de Janeiro, a ditadura militar e a transição política. (IFCS/UFRJ – CPDOC/FGV). ANPUH - XXIII Simpósio Nacional de História, Londrina, 2005. 2 Ibid., p. 03. 3 MOTTA, Marly Silva da. O Rio de Janeiro Continua sendo: de cidade-capital a estado da Guanabara. Tese de doutorado. Niterói: ICHF-UFF, 1997. 1
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O ponto crítico da integração político-partidária dos dois estados residia, justamente, na disputa entre o ex-governador carioca Chagas Freitas e o senador fluminense Amaral Peixoto pelo controle do MDB do novo estado. Apesar do MDB ser o partido majoritário na representação parlamentar eleita em 1974 em ambos os estados, esse predomínio era acentuado na Guanabara e suave no estado do Rio, onde a Arena controlava a maioria das câmaras municipais e das prefeituras eleitas em 1972.4 Os militares miraram na representatividade das Assembleias Legislativas dos estados envolvidos na fusão, isto é, objetivavam alterá-las e colher os benefícios políticos desta ousada manobra. A perspectiva era de que com a fusão seria possível alterar a representatividade da população numa Assembleia Legislativa Estadual unificada, através de uma nova correlação de forças entre os partidos MDB e a Arena.5 O intento dos militares, todavia, não foi alcançado, e o resultado foi justamente o oposto do pretendido. “(...) Contrariamente ao que se costuma afirmar, ou seja, que a fusão foi feita para derrotar o MDB, a fusão acabou por derrotar a Arena e fortalecer o MDB, que a partir de então passaria a controlar não só a cidade do Rio, mas também o novo estado do Rio de Janeiro”.6 Motta (1997), neste sentido, reforça a análise conjuntural em que se efetivou a fusão do estado da Guanabara e o estado do Rio de Janeiro, destacando a força que as circunstâncias socioeconômicas do momento exerceram para a fusão dos estados. Narra a autora que para os empresários havia um desequilíbrio entre o estado da Guanabara e o do Rio de Janeiro, em que o primeiro apresentava uma receita orçamentária três vezes superior ao segundo, logo, a fusão facilitaria a melhor alocação dos recursos públicos, exatamente o mesmo argumento utilizado pelos divisionistas da região Sul de Mato Grosso.7 Na política, argumenta a autora, o foco oposicionista existente na Guanabara de certo modo a afastava da rota de novos investimentos promovidos pelo governo federal. Assim, a conjuntura
MOTTA, Marly Silva da. A fusão da Guanabara com o Estado do Rio: desafios e desencantos. In: Um Estado em questão: os 25 anos do Rio de Janeiro. (Orgs): Américo Freire, Carlos Eduardo Sarmento, Marly Silva da Motta. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 2001. 5 EVANGELISTA, Helio de Araújo. A fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Rio de Janeiro, 1998. Disponível em: <www.feth.ggf.br> Acesso em: 09.04. 2016. 6 FERREIRA, op. cit., p. 03. 7 O principal argumento levantado pelos sulistas divisionistas era o fato de a região Sul de Mato Grosso arrecadar mais de dois terços dos tributos estaduais e não receber estes recursos na mesma proporção pela administração de “Cuiabá”, isto é, a região Sul, cujo epicentro era Campo Grande, arrecadava mais do que o Norte, mas ficava com uma fatia menor dos recursos na posterior distribuição dos tributos. In: MURTINHO, Max Nunes. Análise Econômica da Divisão de Mato Grosso (1970 – 2000). Dissertação (Mestrado em Economia). Cuiabá: UFMT, 2009. 4
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político-econômica, naquele momento, era de fato francamente favorável à fusão e foi um elemento decisivo para a sua efetivação.8 Havia uma visão técnica para se defender a fusão como uma forma de otimizar o desenvolvimento regional. A ideia era que havia um polo rico (a cidade do Rio de Janeiro), com grande arrecadação, e uma periferia pobre (a Baixada Fluminense) com muita carência de infraestrutura. Assim, como um estado não poderia investir no outro, a fusão faria desaparecer o impedimento políticoadministrativo da transferência de recursos entre as duas áreas. Os empresários cariocas se empenharam na defesa técnica da fusão através de argumentos econômicos. No entanto, essa fase aconteceu em 1969, logo após a edição do Ato Institucional n° 5 e não próximo ao período que ocorreu a fusão (1973/1974).9 Carlos Amarilha (2006), por sua vez, enfatiza o contexto de ditadura militar como elemento categórico para a efetivação da fusão do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, sem a qual não teria ocorrido. “(...) Em 1967 e 1969 este regime de governo realizou profundas mudanças na ordem constitucional de modo que viabilizou mudanças na federação, como a fusão, sem a necessidade de um plebiscito”.10 Por certo, os mecanismos autoritários à disposição do regime militar facilitavam a composição política necessária à aprovação de matéria tão “delicada”, e aqui se tem mais uma forte semelhança com a conjuntura da divisão de Mato Grosso, que também ocorreu sem qualquer consulta ou participação popular. Finalmente, observa Motta, o projeto de transformar a Guanabara em uma unidade madura respondia às expectativas de gregos e troianos: do regime militar, interessado em retirar da “Belacap” (Bela Capital) os atributos de capital e em transferi-los para a “Novacap” (Nova Capital), e do governador Chagas Freitas, voltado para a tarefa de estadualizar a Guanabara.11 Convertida em uma cidadeestado sem municípios, a Guanabara manteve grande parte das funções de principal centro político do país, transformando-se no que se pode chamar de estado-capital. Assim, se do ponto de vista legal MOTTA, op. cit., 1997, p. 23. EVANGELISTA, op. cit., 1998. 10 AMARILHA, Carlos Magno Mieres. Os Intelectuais e o Poder: História, Divisionismo e Identidade em Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em História). Dourados: UFGD, 2006, p. 142. 11 Existem variadas interpretações sobre a relevância estratégica da fusão para o projeto do governo Geisel. Marly Silva da Motta discorre sobre o tema afirmando que [...] há razões de caráter geopolítico e econômico, valendo-nos, mais uma vez, do depoimento do ex-presidente, em que revelou sua preocupação em atuar sobre a ‘divisão administrativa do país’, registrando, por um lado, a necessidade de ‘fracionamentos’ no caso de estados grandes, como Mato Grosso, Amazonas, Pará, Bahia e Minas Gerais. Em direção oposta, se situava o estado da Guanabara, avaliado por ele como uma ‘aberração’, já que, embora sendo ‘apenas uma grande cidade’, desfrutava da ‘mesma posição política dos outros estados (MOTTA, op. cit., 2001, p.19-56). 8 9
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a transferência da capital se deu em 1960, o processo de esvaziamento de alguns símbolos de “capitalidade” da cidade do Rio de Janeiro só ocorreriam após dez anos, o que foi acompanhado de um efetivo investimento em dotar Brasília, capital de direito, dos atributos e dos valores de uma capital de fato. Não foi ocasional que durante o governo do general Médici (1969-1974), ocorreu a transferência dos principais órgãos decisórios do estado para o novo Distrito Federal. Foi a partir desse momento que Brasília passou a exibir alguns marcos simbólicos representativos do Poder Central. Chagas, personagem chave da fusão dos estados litorâneos, é de forma recorrente identificado com os aspectos negativos da prática política; sobre o seu legado incidem todo um conjunto de avaliações negativas. Carlos Eduardo Sarmento pontua que Chagas, no final de seu governo, personificava tudo aquilo que os discursos políticos desejavam expurgar da política fluminense: as práticas clientelistas, a dócil submissão aos ditames do regime militar, a relação patrimonial com a coisa pública e a promiscuidade estabelecida entre o estado e organizações políticas informais:
As ambigüidades da trajetória de Chagas Freitas serviriam por explicitar este aparente paradoxo da cultura política do Rio de Janeiro. Identificada ao longo de quase dois séculos como o eixo central do exercício político e administrativo de perspectiva nacional, a antiga sede da Corte Luso-brasileira balizou os referenciais de sua cultura política na direção de um espaço ideal, representativo da nacionalidade e cujo destino histórico não poderia ser outro que não a ambição ordenadora de todo o conjunto do país, constituindo, portanto, a verdadeira expressão política do Brasil. “Cabeça da nação”, “coração do Brasil”, o Rio de Janeiro formulou as bases de sua cultura política na negação de todo o projeto que se restringisse ao local, ao singular, norteando-se por uma postura que prezava o cosmopolitismo como verdadeira expressão do caráter nacional da cidade. 12
A exposição de motivos que precedeu o encaminhamento da Lei Complementar nº 20, determinando a fusão da Guanabara com o estado do Rio, indicava que esta seria a primeira ação governamental destinada a interferir no equilíbrio federativo. Entre as consequências, reforça a proposta das regiões metropolitanas - criadas um ano antes da fusão pela Lei Complementar nº 14, de 8 de junho de 1973 - como principal elemento dinâmico da federação, uma vez que buscava a integração intermunicipal por meio da eliminação dos obstáculos político-institucionais que distanciavam o núcleo da cidade do Rio de Janeiro dos 13 municípios, denominados de Grande Rio, situados no estado do Rio. De outra parte, consolidou uma poderosa região de desenvolvimento no Rio de Janeiro ao instituir
SARMENTO, Carlos Eduardo. A morte e a morte de Chagas Freitas. A (des)construção de uma imagem pública: trajetória individual e reelaboração memorialística. Rio de Janeiro: CPDOC, 1999. 12
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um estado que poderia se tornar rival e disputar com São Paulo a liderança federativa nacional.
A integração política entre as duas unidades era, assim, vista como a fórmula institucional para se realizar, também, a integração econômica, que teria como consequência a consolidação do polo econômico do Rio de Janeiro, com efeitos positivos para a economia nacional. Para viabilizar o desenvolvimento industrial regional, principal eixo do “Brasil Grande”, o II PND defendia a tese dos complexos industriais.
O conceito “Brasil Potência” A concepção de Brasil potência que se estrutura a partir do plano econômico é bem elaborada por Boarati (2005, p.20) ao afirmar que: “A ideia básica que norteia a política econômica durante toda a década de 70 é a do “Brasil Potência’”. Esse destaque conferido à potência econômica também é uma consequência da repressão sistemática exercida pelo regime militar aos seus opositores, o que supostamente teria garantido a segurança necessária para a execução de um projeto nacional com objetivos definidos. Era necessário neutralizar as possibilidades de sucesso dos projetos considerados “subversivos” pelo regime, e, assim, assegurar um ambiente de maior “tranquilidade”.13 Industrialização e desenvolvimento eram conceitos que estavam na base da argumentação técnica dos empresários cariocas que compunham a Fiega (Federação das Indústrias do Estado da Guanabara), em favor da fusão14, sendo que a construção do complexo industrial fluminense era considerada essencial para que a região pudesse se desenvolver e competir com São Paulo.15
BOARATI, Vanessa. A Discussão entre os Economistas na Década de 1970 sobre a Estratégia de Desenvolvimento Econômico II PND: Motivações, Custos e Resultados. Tese (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Economia, Faculdade de Economia e Administração. FEA/USP. Universidade de São Paulo, São Paulo: 2003. 14 Na percepção das elites empresariais cariocas a fusão era um caminho desejável. “A ideia de um Rio de Janeiro unificado, capaz de abrigar um desenvolvimento industrial que, a partir da Guanabara, se derramaria para todo o estado, sempre teve o apoio do empresariado que várias vezes se pronunciou favoravelmente à fusão” (FERREIRA, op. cit. 2005, p. 2). 15 Sobre o desempenho da economia carioca e sua influência no processo de decisão da fusão, Marly Motta esclarece que “há duas grandes linhas interpretativas: de um lado, existe a tese (...) de que o desenvolvimento da Guanabara teria batido no teto em função dos limites impostos pela divisão territorial. Sua ‘mancha industrial’ seria ‘fraca’ em função das barreiras territoriais que impediam o avanço pelo espaço fluminense. Com a fusão, a ‘mancha’ poderia se espalhar sem empecilhos. Há, ainda, a ideia, muito difundida, de que a economia da Guanabara encontrava-se ‘esvaziada’, e que essa seria uma das razões pelas quais o pequeno estado passara a ser ‘inviável’, tornando, pois, ‘inevitável’ o processo da fusão. A questão do esvaziamento econômico e, portanto, da ‘inviabilidade’ da Guanabara se transformou no principal mote da discussão entre defensores e detratores da fusão. Uma simples consulta aos dados estatísticos não é suficiente, no entanto, para dirimir a dúvida se a Guanabara estava ou não ‘esvaziada’. É certo que os dados de longo prazo (...), registravam um declínio relativo da economia carioca no quadro nacional, em especial frente a São Paulo”. (MOTTA, 2001, op. cit. p. 24). 13
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Na gestão do presidente Ernesto Geisel (1974-1977), portanto, foi realizada a união do estado da Guanabara ao Rio de Janeiro e o desmembrado do estado de Mato Grosso: um estado fora suprimido na região Sudeste e outro estado fora criado na região Centro Oeste. Fortalecer a Arena estava entre as motivações que impulsionaram os dois processos de alteração da configuração federativa nacional. Para Carlos Amarilha, no caso de Mato Grosso, os militares usam como estratégia a “segurança nacional” para a ocupação dos vazios das áreas desintegradas como projetos de “vias de penetração”, mas este projeto também estava em sintonia com as aspirações da elite sul-mato-grossense. Pondera Amarilha que o fato do país estar submetido a uma ditadura facilitou os intentos estratégicos de Geisel, já que poderia prescindir de consultas populares sobre aceitação ou não da medida, o que teria sido impossível na época anterior, isto é, no populismo (1946-1964). “(...) O presidente Ernesto Geisel determinou criar um novo estado na federação (Mato Grosso do Sul), não precisando dar satisfação, já que as elites mandantes da região Sul de Mato Grosso apoiavam o governo militar”16. Marisa Bittar reforça a forte percepção de que o viés autoritário foi decisivo no processo de desmembramento do estado de Mato Grosso, ao concluir que “(...) a resolução de dividir Mato Grosso e a geopolítica (militar), de modo geral, concretizou-se sem consulta às populações interessadas”.17 De acordo com Marisa Bittar: [...] a divisão foi um ato traumático para o norte e ilustra melhor o fato de ela ter sido fruto de um ato autoritário do que a sua recepção no sul. Isto porque, obviamente, quem mais perdeu foi o norte. Mas a sua elite política, tal como a do sul, não estava preocupada com o fato de a população ser excluída do processo [...] a começar pelo próprio governador [à época Garcia Neto].18
É interessante notar a correlação e similitudes entre o papel representado pela classe empresarial carioca que compunha a Fiega (Federação das Indústrias do Estado da Guanabara) em relação à fusão, e o papel da classe ruralista campo-grandense na efetivação do desmembramento de Mato Grosso em 1977.19 Ambos são “atores de primeira ordem” nos processos de transformação dos estados da Guanabara e Mato Grosso durante a década de setenta.
AMARILHA, op. cit., 2006, p. 144. BITTAR, Marisa. Geopolítica e separatismo na elevação de Campo Grande a capital. Campo Grande: Ed. UFMS, 1999, p. 130. 18 BITTAR, M. Mato Grosso do Sul, a construção de um estado: regionalismo e divisionismo no sul de Mato Grosso. Campo Grande: EdUFMS, 2009, vol. 1, p. 319. 19 Para Carlos Amarilha “(...) a criação de Mato Grosso do Sul, concretizou-se em parte devido aos pecuaristas campograndenses, uma classe que dominou politicamente o estado de Mato Grosso (a partir dos anos quarenta do século vinte). 16
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Com relação à fusão dos estados litorâneos, as justificações enfatizavam o caráter estritamente técnico da medida, que iria beneficiar o desenvolvimento de toda a região. A proposta partiu do Poder Executivo, chefiado por um presidente militar, que certamente não recusou apoios, mas tampouco se preocupou em ouvir outras opiniões. Na versão oficial do governo, a medida foi fundamentada com argumentos geoeconômicos, como um meio de criar um estado forte, tanto do ponto de vista político quanto econômico, para dar maior equilíbrio à Federação, no que era apoiado pela classe empresarial. Murilo Alves da Cunha, citado por Stanley Plácido da Rosa Silva, não obstante, corrobora a premissa do caráter técnico da fusão. Cunha, em texto contemporâneo à fusão, insere esse processo no bojo do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), enxergando a medida como um ato necessário, tendo em vista a necessidade de integração nacional e, em especial, da região Sudeste. Isto é, o autor faz questionamentos sobre a viabilidade técnico-econômica dos estados autônomos do Rio de Janeiro e da Guanabara e conclui que “as soluções ocorreriam apenas com a fusão dos dois estados”.20 A afirmação de que a fusão ocasionou resultados econômicos importantes para o novo estado encontra eco em diversas pesquisas sobre o tema. São numerosos os indicadores que demonstram que o Rio de Janeiro se tornou, de fato, um estado forte economicamente, assumindo lugar de destaque na indústria nacional. Segundo esta versão, a fusão não tinha qualquer vínculo com a política partidária, e a reconstituição da antiga província fluminense transcendia os interesses das populações locais para atender aos interesses nacionais de desenvolvimento e equilíbrio federativo. Não se pode afirmar, contudo, que tenha inexistido um fator político no projeto de fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, e reduzir a fusão apenas a um ato do governo federal, desprezando a atuação dos atores locais seria um engano. A literatura especializada aborda o assunto, em sua maioria, enfatizando o caráter autoritário da medida.21
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A classe reivindicou a separação do estado de MT bem como a cidade de Campo Grande a sua capital. É importante ressaltar que a fundação do estado do MS deu-se no contexto de uma ditadura militar, a quem interessava aumentar seus votos no colégio eleitoral entre deputados e senadores da ARENA” (AMARILHA, op. cit. p. 154). 20 ROSA SILVA, Stanley Plácido da. O Rio de Janeiro e a Guanabara nos anos 1970: a fusão, o chaguismo, o amaralismo. Em: MNEME – Revista de Humanidades, 11(28), 2010 – Ago / Dez, p. 18. Disponível em: <http://www.periodicos.ufrn.br/ojs/index.php/mneme> Acesso em: 09.04. 2016. 21 Para Mário Grynszpan a visão de uma fusão desproblematizada, fruto da exclusiva ação federal, ao invés de clarear, obscurece e limita a compreensão de aspectos centrais do próprio regime militar, dos processos de tomada de decisão, dos espaços efetivos de manobra então existentes, das relações e das lutas entre os agentes políticos, das visões mesmo da política, e assim por diante. Ela incorpora, além disso, a representação tradicional das áreas em questão como exclusiva da política nacional, desconsiderando a atuação de suas forças numa perspectiva mais especificamente local. GRYNSZPAN,
Semelhantemente, os argumentos dos divisionistas sul-mato-grossenses representados pela classe ruralista campo-grandense, também destacavam aspectos econômico-financeiros para sustentar as aspirações de separação do estado de Mato Grosso. Anteriormente à divisão, havia uma grande diferença na condição econômica das regiões Norte e Sul do estado de Mato Grosso uno. Na primeira metade do século XX a região Sul, em relação ao Norte do estado, possuía uma população mais numerosa e alcançava um desempenho fiscal superior, isto é, arrecadava mais recursos tributários em razão de ter uma economia mais dinâmica, caracterizada por um volume maior de trocas comerciais. Supostamente, grande parte dos recursos arrecadados, no entanto, era destinado à região Norte do estado em detrimento da região Sul. Na visão da classe dirigente sul-mato-grossense, a parte meridional de Mato Grosso é que sustentava economicamente todo o enorme estado. Por isso, a reivindicação de um estado autônomo, por parte de uma elite sulista mandante.22 Os divisionistas, concentrados na região Sul, propunham o desmembramento da unidade federativa, dentre outros aspectos, para corrigir esta distorção, além do que sustentavam que um estado menor iria se desenvolver mais, este era um dos seus principais argumentos. No processo de desmembramento de Mato Grosso, no Centro Oeste brasileiro, tal qual na fusão dos estados litorâneos na região Sudeste do país, ainda que sejam aduzidas justificações técnicas, também seria forçoso afirmar que não existiram aspectos políticos envolvidos no processo. Segundo Marisa Bittar: (...) o presidente Ernesto Geisel também levou em conta fatores políticos. Sabia ele que, ao criar uma unidade federativa ali (Mato Grosso do Sul), contaria com um governo e com toda a estrutura política regional, a favor do regime, que já se encontrava em seus momentos de exaustão procurando uma auto reforma para manter-se.23
Há que se destacar, também, a forte tradição e cultura militarista do estado de Mato Grosso antes da divisão, e que dura até hoje, especialmente da região Sul do estado. Em razão de ser uma unidade federativa com ampla fronteira internacional (que reforça o papel das Forças Armadas) e também por abrigar a sede do Comando Militar do Oeste (CMO), a região que iria se emancipar do
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Mário. A volta do filho pródigo ao lar paterno? A fusão do Rio de Janeiro. In: FERREIRA, Marieta de Morais (coord.). In: Rio de Janeiro: uma cidade na história. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 22 AMARILHA, op. cit., 2006, p. 146. 23 BITTAR, 1999, op. cit., p. 126.
estado de Mato Grosso, era, por assim dizer, “simpática” aos valores e aos ideais que identificavam as forças armadas, o que tornava o processo de divisão menos dificultoso. No caso da fusão dos estados litorâneos, a situação era semelhante. Os ativos estratégicos e militares que existiam no Rio de Janeiro também foram importantes para impulsionar a união dos estados. Para o governo Geisel, a concentração, no Rio de Janeiro, de grandes projetos, de importantes centros de pesquisa e de comandos militares estratégicos tornou o projeto de fusão uma manobra tática do governo, um movimento no sentido de se constituir um complexo industrial-militar no novo estado. Iniciado com a assinatura do acordo nuclear com a Alemanha em 1975, o projeto nuclear brasileiro tinha nesse estado o principal centro de sua implantação, uma vez que, além do já existente Conselho Nacional de Energia Nuclear (CNEN), abrigaria ainda a Nuclebrás e as três primeiras usinas nucleares a serem instaladas no país (em Angra dos Reis). Também aqui se combinava a existência de comandos militares de grande importância - como o Comando Militar do Leste e áreas estratégicas da Marinha - com grandes centros de pesquisa e ensino, civis e militares: além do CNEN, o Cenpes (Petrobras), o Cepel (Eletrobrás), a COPPE, a Aman, a Escola Naval, entre outros. 24 Para Golbery do Couto e Silva, um dos principais teóricos da doutrina de segurança nacional, as regiões de fronteira do Centro-Oeste representavam “zonas de vulnerabilidade máxima”, desta forma, a integração desses “desertos” ao “núcleo central ecumênico” era vital para reforçar a estrutura econômica nacional, mitigando as ameaças de “ataques solertes”, das “táticas sutis de infiltração do terrorismo”. Outro objetivo seria “buscar enfraquecer o sistema econômico dos antagonistas” e ocupar o território, interiorizando o país na tentativa de evitar as “fronteiras ocas”, isto é, seria um “avançar sem consolidação, de modo que atrás ressurge, mais ou menos vitorioso, o deserto”.25 Outro aspecto interessante de se notar é o longo percurso histórico percorrido em ambos processos de fusão e desmembramento. O anseio de unir a cidade e o estado do Rio de Janeiro não era novo. A ideia de transferir a capital federal e de transformar a cidade em estado povoava havia muito os debates políticos no país. “No final da década de 1950, quando a transferência da capital federal se tornou iminente, a proposta de incorporação ganhou novo fôlego”.26 Conforme discurso da Professora e Historiadora, Marieta de Moraes Ferreira, Diretora do CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio
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EVANGELISTA, 1998, op. cit. SILVA, G. C. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p.126. 26 FERREIRA, 2005, op. cit. p. 04. 24
Vargas, no Seminário “A fusão em debate” realizado em 2001 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a recuperação histórica permite ver que, de fato, a fusão não era um projeto original do regime militar; ao contrário, era um projeto extremamente antigo. Desde o começo da República, da Constituinte de 1891, a fusão já era uma questão colocada em pauta como decorrência dos debates em torno da perspectiva de transferência da capital para outra região. Em 1934 e em 1946, geralmente em conjunturas políticas onde estava em discussão o formato constitucional do país, quando havia debates sobre a transferência da capital, o tema da fusão era retomado, com a possibilidade de reintegração da cidade do Rio de Janeiro na antiga província fluminense. Mesmo na década de 30 começa-se a discutir a ideia de se criar o Estado da Guanabara, enquanto outras correntes defendiam que não seria eficaz a criação de uma cidade-estado, sendo a fusão a alternativa mais viável.27
Embora o regime militar tenha veiculado essa proposta inserindo-a na agenda das discussões políticas daquele período, cumpre notar que a ideia surgiu originariamente muito antes, e contou com o engajamento de vários setores, em diferentes momentos, na defesa do projeto de fusão. O debate ganhou mais densidade no início dos anos 60, quando a transferência da capital começa a se tornar uma realidade, exigindo uma resolução. Já em 1959 foi feita a opção pela criação do estado da Guanabara, atendendo à antiga demanda dos cariocas que visava à constituição de uma unidade da federação com representação e com autonomia política. Ao fim do governo Lacerda, com o governo Negrão de Lima, novamente a questão da fusão volta à baila em razão de dificuldades de ordem política e econômica, como alternativa ao esvaziamento da cidade do Rio de Janeiro. A partir de 1966, com um projeto do Deputado Paulo Duque, a proposta de fusão é reapresentada, ressurgindo com grande intensidade no governo Geisel em 1974. Mário Grynszpan recua ainda mais no tempo histórico e registra vestígios remotos desta conturbada vinculação. Grynszpan observa que as arestas na relação entre a cidade e o estado do Rio de Janeiro datam do período imperial brasileiro, e acrescenta que: O primeiro ato que viria a iniciar a conturbada relação político administrativa entre as duas localidades ocorreu em 1834, quando a cidade do Rio de Janeiro foi declarada município neutro. A cidade permaneceria com essa condição jurídica por mais de 50 anos. No entanto, em 1889, ano da proclamação da República, o Rio de Janeiro foi alçado à condição de distrito federal. No governo de Juscelino Kubitschek, a cidade mudaria novamente seu estatuto jurídico, perdendo a condição de capital do país. Em meio a debates sobre o seu destino, ou seja, se voltaria a ser incorporada ao Estado do Rio de Janeiro ou se viria a ser um estado
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Comissão de Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados. Projeto de decreto Legislativo n° 295 de 2003 - 0A83E60624. Dispõe sobre a realização de plebiscito para a divisão do estado do Rio de Janeiro. Autores: Deputado José Divino e André Luiz Relator: Deputado Natan Donadon. 27
autônomo, venceu a última opção e, em 1960, a cidade do Rio de Janeiro se torna um estado federativo com o nome de Guanabara. Após quinze anos desfrutando do status privilegiado de ser a única cidade-estado do país, é decretada, pelo governo federal, a fusão dos dois estados dando origem ao novo Estado do Rio de Janeiro. Niterói, então capital do Rio de Janeiro, perdeu seu status jurídico-administrativo e a nova capital passa a ser a cidade do Rio de Janeiro.28
Identidades ressignificadas Analisando comparativamente o caso do desmembramento do estado de Mato Grosso, que originou o estado de Mato Grosso do Sul, e a fusão da cidade-estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, formando o novo estado do Rio de Janeiro, observa-se que foi a partir do início da década dos anos 30, especialmente entre 1934 e 1946 - um momento de conjunturas políticas em que se discutia o formato constitucional do país e havia debates sobre a transferência da capital -, é que os dois temas foram retomados com semelhante intensidade. Marisa Bittar observa que a classe latifundiária vinha tentando, particularmente após 1930, despojar do aparelho de estado os grupos que monopolizavam “o governo de Cuiabá”. O que passou a ocorrer foi uma inadequação entre a condição de superioridade econômica dessa classe situada geograficamente no Sul, e o fato de ela não dispor de um aparelho de estado próprio, isto é, naquela porção de Mato Grosso.29 Nos dois casos é possível observar a preocupação das lideranças militares e empresariais locais com a construção de uma nova identidade política para os “novos estados”. Conforme enfatiza Paulo Roberto Cimó Queiroz, tendo a divisão ocorrida “de cima para baixo”, num momento em que parte efetivamente significativa das elites sulistas (de Mato Grosso) não mais estava mobilizada em torno dessa ideia, abriu-se um espaço para a construção, às pressas, de um discurso histórico simplesmente capaz de dar conta do fato, já consumado, da criação do novo estado.30 No Rio de Janeiro, este processo envolveu vários aspectos de ordem simbólica. Nas preocupações do governo militar e, especialmente, nos rascunhos de preparação da lei da fusão guardados no Arquivo Geisel, podem-se detectar os investimentos políticos que
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GRYNSZPAN, 2000, op. cit., p. 117-118. BITTAR, 1997, op. cit. p. 232-233. 30 QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Divisionismo e “identidade” mato-grossense e sul-mato-grossense: um breve ensaio. In: Simpósio Nacional de História, 2005, Londrina. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: guerra e paz. Londrina: ANPUH, 2005, p. 22. 28
foram feitos para reconstruir a genealogia da cidade e do Estado do Rio de maneira a forjar uma nova identidade para o estado que resultaria da fusão. 31
Setores empresariais cariocas também tomaram parte nesse projeto de reconstrução da identidade regional, que não era uma tarefa simples. Um dos maiores desafios para o êxito da fusão seriam as diferenças entre a cultura política do município do Rio de Janeiro e a do resto do estado. Capital do Império e capital da República, o Rio de Janeiro tinha edificado sua identidade como espaço-síntese da nação e da nacionalidade. Mesmo com a transferência da capital federal, a Guanabara manteve a maior parte das funções de principal centro político do país: “A perda desses atributos só iria ocorrer no início da década de 1970, acompanhada, como não podia deixar de ser, de um efetivo investimento em dotar Brasília, capital de direito, das atribuições de uma capital de fato”.32 Em relação ao Mato Grosso, Marisa Bittar observa que o interesse de se possuir um estado independente de Cuiabá, inicialmente implícito, começou a ser aliado à representação que a elite sulista (classe ruralista) criou e difundiu sobre o Centro-Norte, chamado simplesmente Norte. Nesta representação, o cuiabano: É (...) a imagem-chave, se assim se pode dizer, da animosidade que as elites elaboram (...) Assim, às condições objetivas (superioridade econômica, maior “progresso” do Sul, etc.), aliaram-se as subjetivas, ou seja, o sentimento difundido pelas elites sulistas de que “o povo do Sul” não pertencia ao mesmo universo cultural do “cuiabano”. Disso resultou, historicamente, uma espécie de sentimento de “não pertença” em relação ao norte. Especialmente após 1932 essa noção de não pertencer a Cuiabá, de já constituir o Sul, de fato, um estado distinto, aparece em todos os manifestos, discursos e obras que se redigiu sobre o separatismo.33
Com a divisão do Estado de Mato Grosso e o desmembramento da parte sul do seu território em 1979, explica Natália da Costa Amedí, Cuiabá se viu diante de um grande desafio: encontrar a sua vocação34. O objetivo, naquele momento, era livrar-se da “estagnação”, do “atraso” e do “isolamento” associados à Mato Grosso e Cuiabá, sua capital. Havia chegado o momento da criação de uma nova cidade e da renovação da identidade de seu povo, para fazer frente a Campo Grande, capital do recém-
FERREIRA, 2005, op. cit. p. 5. Ibid, p. 04. 33 BITTAR, 1997, op. cit. p. 233. 34 AMEDÍ, Nathália da Costa. A invenção da capital eterna: discursos sensíveis sobre a modernização de Cuiabá no período pós-divisão do estado de Mato Grosso (1977-1985). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá: 2014. 31
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criado estado do Mato Grosso do Sul, uma cidade que se intitulava como “moderna”, “limpa”, “industrializada”, “nova” e que se apresentava como o contraponto de Cuiabá: rotulada de “suja”, “velha”, “atrasada”, uma cidade com fortes marcas coloniais. Transcorridos trinta e sete anos após a divisão do estado de Mato Grosso ainda são formuladas perguntas sobre o contexto político em que se efetivou esta alteração na configuração territorial da unidade federativa. Diversos autores, no entanto, concordam em situar o episódio como resultado de um ato da ditadura militar “combinado” com as aspirações de uma causa separatista secular. Assim, sintetiza a historiadora Marisa Bittar, a divisão obedeceu a dois fatores conjugados: “a geopolítica do regime militar e os interesses da classe latifundiária do Sul do estado, que rivalizava com os grupos dirigentes do Norte”. Arrematando a análise, acrescenta Bittar que (...) “Norte e Sul com o tempo, passaram a ser sinônimos de Cuiabá e Campo Grande”.35 Quando o general Ernesto Geisel assinou a lei que dividiu Mato Grosso e criou o Mato Grosso do Sul, finalizou com este ato, uma trajetória secular de regionalismos e de um pleito vinculado aos grandes proprietários de terra. Esta demanda com o tempo se tornou uma ideologia divisionista, um traço cultural que se incorporou ao senso comum. Mesmo que esse desejo fosse um imperativo que precisasse ser satisfeito, a decisão pela divisão foi autoritária porque não se baseou em consulta às populações interessadas. Para efetivar a divisão o ato foi então ancorado na geopolítica militar, amplamente lastreada nos manuais da Escola Superior de Guerra e na Doutrina de Segurança Nacional, e cumpriu o propósito de aumentar as bases de sustentação do regime. Desta forma, a causa divisionista que se arrastava secularmente e que não era propriamente considerada pelos governos anteriores, foi, enfim, concluída. O governo ditatorial de Vargas, por exemplo, que emergiu após a conturbada “fase do divisionismo” foi indiferente à petição encaminhada pelos sulistas à Constituinte de 1934, e, contrário a regionalismos, criou o Território Federal de Ponta Porã, mas neste não inseriu a cidade de Campo Grande, grande interessada na divisão de Mato Grosso. O governo militar abordou a questão de forma diferente: aos interesses da elite dirigente sul-mato-grossense aliou o seu projeto de “Brasil Potência”. Este projeto previa a “ocupação de vazios” que representavam ameaças na Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Desta forma, a conjugação do interesse geopolítico e o interesse em aumentar as bases políticas transformou o Sul de
35
Ibid, 1997.
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Mato Grosso em Mato Grosso do Sul.
Mato Grosso do Sul é hoje uma realidade definida, no entanto, fruto de uma decisão que ocorreu mediante expedientes autoritários. No presente, as disputas entre as duas capitais parecem ter sido congeladas. O gelo derreteu-se com a recente decisão do governo federal de escolher Cuiabá como sede da Copa do Mundo FIFA 2014. A disputa entre Campo Grande e Cuiabá pela sede da Copa do Mundo ressuscitou 100 anos de rivalidades entre as duas capitais. O jornalista Onofre Ribeiro registra de forma muito “ilustrativa” o contexto da disputa entre as capitais Campo Grande e Cuiabá pela sede da Copa do Mundo. O artigo foi publicado na revista de circulação regional denominada “Revista de Mato Grosso (RDM News)”, sob o título: “Copa do Mundo de 2014: Atrás do ‘morro tem morro’”. Segue extrato do artigo: Entre 2007 e 2009, quando se disputou a sede da Copa do Mundo de 2014 entre Cuiabá e Campo Grande, na verdade se disputava um pouco da própria história do Estado. Em Cuiabá sempre se disse “atrás de morro tem morro”, uma alusão às possibilidades que podem surgir em qualquer situação. Na disputa por uma das sedes da Copa, Cuiabá e Campo Grande exorcizaram fantasmas da História. Vale lembrá-los porque, parece que, pela primeira vez, depois de 1979, as duas cidades começaram a chutar publicamente as canelas por debaixo da mesa e, quem sabe, encerrarão o seu passado de rusgas. (...). RDM, 2014, p. 01. 36
Com o passar do tempo passamos a ter uma visão menos distorcida dos acontecimentos históricos e compreendemos melhor a dimensão dos fatos à medida que tempo age sobre eles. A perspectiva vai sendo transformada com o decorrer dos anos. Em entrevista ao jornal Diário de Cuiabá em 2006 o ex-governador de Mato Grosso José Fragelli, que assumiu o governo em 31 de janeiro de 1975, afirmou, aos 95 anos que “teria feito a divisão, pois considerava que o Estado era grande demais”. No entanto, seu posicionamento sobre a divisão foi outro em 1995, quando então afirmou estar “parcialmente arrependido da divisão”.
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Disponível em: http://www.rdmonline.com.br/TNX/imprime.php?cid=577&sid=70 Acesso em: 17.10.2014.
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Diário - O senhor foi uma das primeiras pessoas que ficaram sabendo da decisão de dividir o Estado; se o senhor fosse governador à época, como o senhor agiria? Fragelli - Eu fazia a divisão. Diário – Por que? Fragelli - Eu achava que o Estado era grande demais e vi que isso era difícil demais. Eu uma vez... fizemos umas 40 obras no Sul do Estado, eu fui inaugurar essas obras, peguei uns dois ou três aviões que o Estado tinha, passei 10 dias no Sul do Estado para poder inaugurar as obras no Sul. Diário - O senhor falou que se fosse governador na época admitiria a divisão de Mato Grosso. E os prejuízos que estes estados tiveram? Fragelli - Tiveram porque a máquina política do Brasil é uma máquina cara, nos temos presidente da República, governador, Senado, Câmara, Tribunal de Justiça, Superior Tribunal de
Justiça, entre outros, e vamos dizer: quando se cria um Estado, cria-se tudo isso, quer dizer, cria o governador, uma nova Assembléia, com o mesmo número de deputados do estado dividido, cria-se um novo Tribunal de Justiça e Tribunal de Contas, e tudo isso cria uma despesa muito grande, sacrifica a administração do estado. A criação de um estado é custosa, é cara, como foi a divisão de Mato Grosso, mas eu acho que o Norte se recuperou melhor um pouco do que o Sul. (Por Norte, ele se refere a Mato Grosso e por Sul, ao Mato Grosso do Sul). (Diario de Cuiabá, Edição n° 11488 em 08/04/2006). 37
Para Marisa Bittar, um dos fatos históricos mais intrigantes em todo o processo da divisão do estado de Mato Grosso refere-se ao arranjo político institucional instaurado tão logo ocorreu a separação. A elite sulista que defendia o desmembramento com base na ineficiência do “Governo de Cuiabá”, cuja máquina de governança o cuiabano geria mal, tão logo se apartou dos seus congêneres do Sul reeditou aquilo que era objeto de suas críticas: a reincidência dos mesmos grupos no poder. Em acurada análise comparativa sobre o processo político das duas unidades federativas que surgem com a divisão, Bittar observa que, em Mato Grosso, a renovação política tem ocorrido “mais rapidamente” em relação a Mato Grosso do Sul, uma vez que lá os mesmos grupos rivais seguem se alternado no poder, e a origem desta dinâmica remontava Mato Grosso uno.38
Considerações finais Há sempre o ímpeto de se avaliar, com toda a carga de subjetividade, a pertinência da passagem da fase do estado de Mato Grosso uno para o momento histórico de Mato Grosso desmembrado. Da mesma forma, emerge com grande força o desejo de se mensurar as utilidades resultantes da fusão de Guanabara e o Rio de Janeiro. É sedutora a ideia de se apreciar e classificar a passagem de uma época para outra. Mas esta abordagem contém algumas armadilhas conceituais, uma vez que a História não é meramente uma sucessão encadeada de eventos pré-ordenados. O historiador materialista, para W. Benjamin, deve estar atento às vozes do passado, não para recuperá-lo exatamente como ele foi, mas para fixá-lo numa imagem - rápida e inconclusiva, que dialetiza com o presente, construindo novas possibilidades de leituras tanto do passado quanto do presente. “Articular historicamente o passado não é conhecê-lo como de fato foi, significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1985, p. 224). de Cuiabá, Edição n° 11488 08 de abril de 2006. Disponível em: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=250385 Acesso em: 17.10.2014. 38 BITTAR, 1997, op. cit.
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Ao aceitar que a história humana é estruturada em épocas, e que uma época está separada de outra justamente por uma descontinuidade, concentrada em um fato desencadeador que separa definitivamente um “antes” e um “depois”, subentende-se que uma época é um período finito e delimitado da história humana. Segundo este raciocínio, a divisão do estado de Mato Grosso e a fusão dos estados litorâneos - signos de um novo tempo - representariam uma fronteira de época, um evento histórico que nos ajuda a pensar que nestes estados antes acontecia dessa ou daquela maneira e passa a não mais sê-lo, uma vez que foi superada ou ultrapassada essa fronteira. No entanto, ao se “historicizar” os fatos e acontecimentos que resultaram em alterações na configuração federativa do Brasil na década de setenta, é possível afirmar que, tal como a própria época, a “divisão e a fusão surgiram”, eclodiram no tempo por meio de uma transição, de uma ruptura. H. Arendt (2003)39, emprega o termo “nascimento” para falar desse surgimento, que em Mato Grosso foi seguido de uma renovação, também, dos desafios e das disputas que sempre caracterizaram a relação Norte e Sul pré-divisão. As épocas da história possuem períodos finitos e circunscritos no tempo, normalmente estruturados a partir de um fato desencadeador. Esta concepção envolve o pensamento de que a “História” é uma sucessão de episódios, porém suscetível à descontinuidade. Com efeito, os eventos divisão e fusão são acontecimentos distintos; no primeiro o que se tem é uma ruptura, enquanto o segundo caso se refere ao processo de anexação de novos elementos a uma matriz exordial, mas há formidáveis similitudes em ambas situações. Tanto a fusão da Guanabara e o Rio de Janeiro, como a divisão de Mato Grosso, representaram rompimentos de natureza não apenas burocrática, mas uma “desunião” que impôs um vazio desconcertante à defluência de acontecimentos na história das sociedades envolvidas nestes processos de reconfiguração política do país. Mato Grosso e seu povo, que até então eram uma realidade única, sofrem uma cisão, se bifurcam e passam a trilhar caminhos distintos. Uma descontinuidade, enfim. Mas qual caminho seguir após esta quebra de continuidade? Como efetuar a inexorável trajetória histórica na ausência de uma parte tão importante de si? Qual seria a identidade deste novel estado, desta sociedade cindida? Em relação aos estados litorâneos as inquietações são igualmente profundas. A angústia em relação às consequências da união dos estados, recai, inevitavelmente, sobre a instigante questão das identidades. A ansiedade que concerne à vida dos habitantes dos estados “oficialmente unificados”
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ARENDT, H. Que é Liberdade? In: Entre o Passado e o Futuro. Tradução M. W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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pode ser pensada como parte de uma época de transição e do próprio esvaimento dessa época. Essa
especulação remete à discussão do declínio de um longo período histórico, caracterizado pela forte polarização política e social, e a fusão surge como uma “sentença” a selar este declínio, e põe fim ao processo pela perda de seu objeto. Com a divisão e a fusão, as sociedades aglutinadas e cididas, especialmente, nas cidades de Cuiabá, Campo Grande, Rio de Janeiro e na cidade-estado da Guanabara, tiveram que percorrer o nebuloso caminho da reconstrução de suas identidades, uma tarefa particularmente árdua. As sociedades tiveram que criar, ou ao menos reformular, suas respectivas identidades culturais caracterizandoas por uma certa diferença e distanciamento uma em relação a outra, para marcar a alteridade que assinala a individualidade, um valioso componente do espírito. A divisão de Mato Grosso e a fusão da Guanabara e o Rio de Janeiro são signo, por excelência, de uma nova época. Em razão da descontinuidade que assinalam, após décadas, entendemos que foram eventos abruptos e demarcadores de época, que alteraram a percepção sobre os elementos constitutivos do Estado. Povo, território e governo se transformaram para albergar uma nova realidade política, administrativa e social.
Referências
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DE LOS LIBROS A PUNTO DE VISTA:
Algumas observações sobre revistas da Nova Esquerda Argentina
Raphael Nunes Nicoletti Sebrian* RESUMO: Surgida na Argentina em 1978, em circunstâncias sociais, econômicas e políticas de aprofundamento do terrorismo de Estado, a revista Punto de Vista, definida por seus criadores como uma “revista de cultura”, preocupou-se em continuar a desenvolver uma maneira de ler a sociedade e, nesse processo, pormenorizou um olhar elaborado desde fins dos anos 1960 em espaços variados pelos intelectuais que criaram o periódico. Um desses espaços fundamentais foi a revista Los Libros, publicada entre 1969 e 1976 e dirigida, em um dos seus momentos-chave, por Beatriz Sarlo, Carlos Altamirano e Ricardo Piglia. Pretende-se demonstrar como o modo de ler a sociedade e as elaborações culturais desenvolvido por Punto de Vista, assim como a atuação política do periódico, tinham a sua história. Para tanto, intenta-se, neste estudo, caracterizar o projeto intelectual e crítico de Los Libros, centrado, nos anos 1960, principalmente nas referências do estruturalismo, que gradativamente se politizou sob a égide dos debates acerca do comunismo até que, desde o início dos anos 1970, afastouse do cânone estruturalista francês e incorporou matrizes críticas a um pensamento desatento à possibilidade da revolução política, econômica, social e cultural, até ser retomado e continuado, sob outras bases mais próximas de uma crítica política da cultura, desde fins dos anos setenta, em Punto de Vista. PALAVRAS-CHAVE: Los Libros, 1969-1976; Punto de Vista, 1978-2008; revistas culturais.
FROM LOS LIBROS TO PUNTO DE VISTA: SOME OBSERVATIONS ABOUT ARGENTINA’S NEW LEFT MAGAZINES
Professor Adjunto de História da América na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: rsebrian@gmail.com *
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ABSTRACT: Created in Argentina in 1978 amidst social, economic and political circumstances of deepening state terrorism, the journal Punto de Vista, which was defined by its creators as a “cultural magazine” and was concerned to continue to develop a way of reading society. In this process, it has particularized a critical perspective developed since the late 1960s in variegated spaces by the intellectuals who have created the magazine. One of these spaces was the journal Los Libros, published between 1969 and 1976 and directed, in one of its key moments, by Beatriz Sarlo, Carlos Altamirano and Ricardo Piglia. We intend to demonstrate how tje reading of society and cultural elaborations developed by Punto de Vista, as well as the journal's political activity, had their story. Therefore, we intend, in this study, to characterize the intellectual and critical project of Los Libros, centered, in the 1960s, especially in references from structuralism, which gradually became politicized under the aegis of the debates about communism until that, in the early 1970's, it moved away from the French structuralist canon and incorporated critical matrices to an inattentive thought to the possibility of political,
economic, social and cultural revolution. Later, it was resumed and continued, under other nearby bases of a political critique of culture, from the late seventies, in Punto de Vista. KEYWORDS: Los Libros, 1969-1976; Punto de Vista, 1978-2008; cultural magazines. ***
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m março de 1978, em circunstâncias sociais, econômicas e políticas de aprofundamento do terrorismo de Estado, surgiu em Buenos Aires a revista Punto de Vista. Definida por seus criadores como uma “revista de cultura”, a publicação
se preocupou em continuar a desenvolver uma maneira de ler a sociedade (o seu “ponto de vista”), pormenorizando um olhar elaborado desde fins dos anos 1960 em espaços variados pelos intelectuais que publicaram o novo periódico em 1978. Esse modo de ler a sociedade e as suas elaborações culturais, assim como a atuação política, tinha a sua história: centrado, nos anos 1960, principalmente nas referências do estruturalismo, gradativamente se politizou sob a égide dos debates acerca do comunismo até que, desde o início dos anos 1970, afastou-se do cânone estruturalista francês e incorporou matrizes críticas a um pensamento desatento à possibilidade da revolução política, econômica, social e cultural. Pode-se dizer que um dos projetos intelectuais dos anos 1960 que continuou em Punto de Vista foi aquele desenvolvido na revista Los Libros. Tal periódico começou a circular na Argentina em 1969, fundado e dirigido por Héctor Schmucler, recém-chegado da França, onde tinha estudado com Roland Barthes. Em Los Libros, três intelectuais que posteriormente foram decisivos para a história de Punto de Vista trabalharam juntos. Por conta da publicação, Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano se aproximaram ainda mais de alguém que conheciam, Ricardo Piglia. Na segunda metade da década de 1960, Piglia havia começado a publicar seus textos literários, sobretudo contos, e contribuía em periódicos diversos, atuando em editoras e tendo participado, junto com Schmucler, da criação e do desenvolvimento da revista Los Libros conforme explicou em entrevista a Jorge Wolff. (PIGLIA, 2001) Los Libros tornou-se, entre 1969 e 1976 (enquanto circulou), um espaço de estabelecimento, conforme síntese precisa de José Luis de Diego, de uma série de novidades que tiveram impacto nos anos posteriores entre os intelectuais argentinos, a saber:
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[...] a) a origem e o desenvolvimento de uma nova crítica, alguns dos seus representantes ocuparão um lugar central nos oitentas e nos noventas; b) a presença privilegiada – enquanto objeto dessa nova crítica – de textos literários de recente aparição, o que produz uma crescente contaminação entre um discurso crítico cada vez mais preocupado com a elaboração formal de sua escritura e uma produção literária cada vez mais inclinada a incorporar em suas ficções o que aparece como uma demanda da nova crítica: a crise de um modo de conceber a literatura como representação do mundo social – muitas vezes considerada “ingenuamente realista” – pode ser lida como o resultado dessa contaminação; c) a atualização teórica – aberta a saberes diversos: marxismo, psicanálise, estruturalismo, semiologia, etc. – e a sofisticação discursiva geram a ilusão de cientificidade da prática crítica sustentada na segurança no manejo
de seus instrumentos; a partir daí, é possível revisitar aos clássicos da geração que os antecede e assim marcar as diferenças: Sábato, Marechal, Viñas, Cortázar, Bioy Casares, etc.; d) a quarta novidade é a presença na revista de uma espécie de crítica de controle para manter os instrumentos de análise devidamente aceitos; é frequente ler uma prática de “crítica da crítica” na qual os livros de crítica publicados pelos colaboradores de Los Libros são criticados por seus colegas, de modo que os colaboradores são alternativamente sujeito e objeto do discurso crítico. [...]. (DE DIEGO, 2000, p. 73, tradução nossa, itálicos no original)
Para a consecução do projeto de Los Libros, principalmente em seus anos finais, Altamirano, Piglia e Sarlo foram fundamentais. Além deles, outros intelectuais que depois se vincularão a Punto de Vista mais estritamente, como José Aricó e Juan Carlos Portantiero, também colaboraram em Los Libros, sem contar outros que escreverão em Punto de Vista ou estarão envolvidos em debates com a revista nos anos 1970, 1980 e 1990, entre os quais se destaca, certamente, Héctor Schmucler, importante figura outrossim na revista Controversia. Altamirano, Piglia e Sarlo, ao lado de Schmucler e outros, esforçaram-se para a definição dos princípios dessa “nova crítica”, praticada por indivíduos que participavam daquilo que seria chamado, anos depois, de “nova esquerda intelectual”. Reivindicaram, como aponta De Diego (2000, p. 74-75), a revista como criadora de um “novo espaço”, como se disse na publicação em tom marcadamente estruturalista. Essa autorreivindicação apareceu no número 01, em um texto-editorial:
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Os comentários que cercavam o aparecimento da primeira edição de Los Libros coincidiram em afirmar um lugar comum: “a revista preencherá um vazio”. A aventura de construí-la – embora repleta de incertezas – tinha sido imaginada, de fato, em virtude do estímulo de ausências perturbadoras; mas o sentido real que a justificava apenas se tornou visível na prática da sua elaboração. As hesitações iniciais foram de ordem semântica: como definir aquilo que enuncia sua inexistência? O vazio, se requer, apesar de tudo, uma formulação lógica, aparece como a área onde se estabeleceu um limite. Começa onde termina algo determinado, no momento em que esse algo indica seu silêncio; o vazio como tal não indica nenhuma diferença. Na prática modeladora da revista se conheceram os dados da realidade que comporta um vazio e que, simultaneamente, formula requerimentos para o cobrir. Trata-se, pois, de criar um espaço que, no caso de Los Libros, tem um terreno preciso: a crítica. Dar-lhe um objeto – defini-la – e estabelecer os instrumentos de sua realização permitiram desenhar a materialidade com a qual se pretende preencher o “vazio” da recordada expressão de circunstância. Los Libros não é uma revista literária. Entre outras coisas porque condena a literatura no papel de ilusionista que tantas vezes lhe foi atribuído. A revista fala do livro, e a crítica que se propõe está destinada a dessacralizá-lo, a destruir sua imagem de verdade revelada, de perfeição a-histórica. Na medida em que toda linguagem está carregada de ideologia, a crítica aos livros sublinha uma interrogação sobre as ideias que eles contêm. O campo de tal crítica abarca a totalidade do pensamento. Porque os livros, concebidos mais além do simples volume que agrupa um número determinado de páginas, constituem o texto onde o mundo se escreve a si mesmo. (“La creación de un espacio”, Los Libros, año 1, n. 1, jul. 1969, p. 3, tradução nossa)
A repetição da missão de Los Libros ao longo do texto – “preencher o vazio”, com a palavra “vazio” como algo que reverbera – explicita como o grupo que a criou, liderado por Schmucler (Piglia não aparecia efetivamente, apesar de colaborar desde o início, enquanto Sarlo e Altamirano só viriam depois), acreditava em uma missão para a revista e se propunha um desafio marcante para a crítica a realizar, afinal, essa abarcaria, como objeto, “a totalidade do pensamento”. Tal posicionamento pode ser melhor compreendido se aproximado dos esforços críticos em voga naquela conjuntura, especialmente do estruturalismo. De qualquer maneira, nem tudo cabia na totalidade a ser analisada na revista, como indicou Schmucler em entrevista a Jorge Wolff: Havia uma opção coletiva, digamos, pensada, que era a oposição às modas, às modas no sentido de uma coisa fabricada. Mas também havia muitas opções determinadas pelos colaboradores da revista, e as opções eram mais especificamente de quem era convidado a colaborar e não tanto um pensamento coletivo sobre literatura. Mas havia sim um grupo mais próximo da revista... uma valorização de uma literatura que fosse coerente com esta ideia da cultura em geral que tínhamos como valorização daquela cultura que era revulsiva, que era crítica, crítica em um sentido amplo [...]. (SCHMUCLER, ROSA, 2001, p. 16, tradução nossa)
Nos anos iniciais da publicação, aqueles que se convencionou chamar de fase inicial ou de primeira fase (aproximadamente até 1971-72), Los Libros desenvolveu de maneira significativa esse projeto crítico, com alcance mesmo entre aqueles que preferiam discursos mais voltados à discussão das possibilidades da revolução em uma conjuntura perturbada. Tratando desses anos iniciais, disse Beatriz Sarlo, em entrevista a Jorge Wolff:
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– Você disse em uma entrevista que considera mais significativa a primeira etapa de Los Libros do que o que veio depois. Como você leria esta primeira etapa? – Essa é minha opinião, creio hoje que é mais significativa porque acredito que tinha um projeto mais amplo e mais firmemente estabelecido no campo intelectual. Creio que foi uma revista da modernização, uma das ondas, possivelmente a última onda antes da ditadura militar, da modernização teórica na Argentina. [...] Quando sai em 1969 ainda nos parecia relativamente aceitável uma revista de atualização bibliográfica, que claramente girou sobre alguns polos teóricos: o marxismo, a psicanálise, a linguística, o estruturalismo antropológico, a antropologia estrutural, as teorias da comunicação. Diria que a revista pensou em intervir muito fortemente nesses polos teóricos. A universidade estava fechada para quase todas as pessoas que estavam na revista e portanto a revista de alguma maneira se ocupava de um material que em momentos mais normais de uma sociedade está nas instituições acadêmicas. [...] [as notas e artigos eram] novidades para um público um pouco mais amplo, não novidades para o público mais restrito, para os atores mais restritos: batalhas ideológico-teóricas para um público mais amplo. Parece-me que esses primeiros dez números [...] cumprem efetivamente essa tarefa de modernização teórica e de desafio teórico. (SARLO, 2001, p. 34, tradução nossa)
De Diego (2000, p. 76-83), a esse respeito, assevera que princípios marcantes do discurso crítico dos anos 1970 encontraram lugar para seu desenvolvimento particular em Los Libros: “a relação crítica-política”, que se resolve apenas no discurso crítico, quando se estabelece “como ler o político onde não está presente a política”, e que será fundamental para delimitar uma forma de ler o político na cultura depois recuperada no projeto de crítica de Punto de Vista; um esforço de “latinoamericanização” da revista, que aproxima substancialmente a Argentina e os demais países da América Latina e que também será perceptível em Punto de Vista; uma discussão sobre cultura popular e suas relações com os projetos nacionalistas, retomada e aprofundada na revista criada em 1978; um debate sobre o “pensamento nacional”, recuperado e desenvolvido em Punto de Vista; uma crítica dos meios de comunicação, desenvolvida apenas parcialmente por Sarlo e outros em Los Libros e levada a uma dimensão de maior complexidade em Punto de Vista; e por fim uma postura de reflexão crítica a respeito da dependência cultural provocada pela realização de uma “crítica política da cultura” a partir de modelos importados, estimulando-se o debate sobre a libertação ou os problemas advindos dessas operações interpretativas e conclamando a necessidade de adaptação e filtragem dos modelos e instrumentos à realidade de países subdesenvolvidos e dependentes – essa preocupação se manteve em Punto de Vista, que dialogou efetivamente com modelos latino-americanos de crítica, como os de Ángel Rama, Antonio Candido, entre outros, sem perder o interesse pelos autores europeus e afins. O trabalho em Los Libros teve, ademais, importante dimensão de intervenção política a partir de 1973-1974, graças à aproximação de Altamirano, Sarlo e Piglia dos grupos maoístas – a importância dessa aproximação na definição de temas e questões a serem debatidas é inegável, além de ela ter sido decisiva para a própria história interna dos intelectuais no periódico. Debateu-se na revista, por exemplo, como alcançar o objetivo de realização da revolução, bem como se discutiu a relação entre os intelectuais e os trabalhadores e a emergência de uma classe operária. Houve um esforço de “articular as práticas específicas dos intelectuais com as diversas organizações revolucionárias”, mesmo que Los Libros “estabeleça uma autonomia relativa do trabalho intelectual.” (CELENTANO, 2014a, p. 3; p. 16, tradução nossa) Trata-se, pois, de uma revista fundamental para a formação da “nova esquerda” e mais especificamente da “nova esquerda intelectual”, cujo projeto continuou, com rupturas, em Punto de Vista. declaração de princípios, sem um manifesto ou um editorial que explicasse seus objetivos, o periódico
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No que diz respeito a Punto de Vista, revista que começou a ser publicada sem uma
circulou, em março de 1978, em uma edição muito parecida, em termos gerais, com as últimas publicações de Los Libros, inclusive no que se refere aos aspectos gráficos/visuais. Veja-se, por exemplo, a capa e as páginas iniciais do número 44 de Los Libros, de janeiro-fevereiro de 1976 (o último dessa revista), e a capa e as páginas iniciais do número 01 de Punto de Vista, de março de 1978.
Fig. 1 Capa e sumário, Los Libros, n. 44, janeiro-fevereiro de 1976.
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Fig. 2 Páginas 3 e 4, fragmento do artigo “Saer – Tizón – Conti. Tres novelas argentinas”, de Beatriz Sarlo, Los Libros, n. 44, janeiro-fevereiro de 1976.
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Fig. 3 Capa e sumário, Punto de Vista, ano I, número 01, março de 1978.
Fig. 4 Páginas 3 e 4, fragmento do artigo “La parodia, lo grotesco y lo carnavalesco. Conceptos del personaje en la novela latinoamericana”, de Jean Franco, Punto de Vista, ano I, número 01, março de 1978.
Para além das semelhanças na identidade visual dos dois periódicos1, decidiu-se mostrar as capas e as páginas iniciais para destacar como as revistas imbricam-se em outros aspectos. Ambas
A diagramação de Los Libros, que começou deliberadamente estruturalista e de inspiração francesa, de acordo com Schmucler na entrevista a Wolff (SCHMUCLER; ROSA, 2001, p. 3), levou em consideração outras referências nos anos de maior politização da revista, com Sarlo, Altamirano e Piglia assumindo protagonismo, principalmente entre o número 23 (novembro de 1971) e o número derradeiro, 44, de janeiro-fevereiro de 1976. Desde o número 23, a revista deixou de ter capas coloridas e passou a ser publicada apenas em preto e branco e praticamente sem editoriais, o que seria, de acordo com Nicolás Rosa, indicativo de um acirramento das tensões políticas internas ao periódico e das tensões externas, na sociedade argentina. Como explicou Sarlo em entrevista a Jorge Wolff (SARLO, 2001, p. 49), ela e Piglia se interessavam bastante pelos artistas gráficos soviéticos dos anos 1920 e começaram a pensar a estética do periódico como uma estética revolucionária, em um projeto que, como na URSS da década de 1920, fosse elaborado com poucos recursos materiais. Los Libros, explicam seus elaboradores nas entrevistas, em seu processo de politização e de afastamento de seu propósito de divulgação bibliográfica, perdeu gradativamente seus patrocinadores – especialmente as editoras, as quais não financiariam uma revista que não falava mais dos livros publicados – e seu vínculo com o Editorial Galerna, mas continuou até o final a vender milhares de exemplares e a se pagar. Mesmo assim, imprimir a revista em preto e branco tornava menores os custos de impressão da publicação e isso não era desconsiderado. Punto de Vista começou dessa mesma maneira – com subsídios escassos, advindos da Vanguardia Comunista – e somente começou a se alterar, com a impressão, inicialmente, em cores das capas, no número 20, de maio de 1984. De qualquer forma, só começou a haver alguma alteração de design internamente a partir do número 26, de abril de 1986. Se o interior, até o fim da publicação em 2008, nunca se tornou colorido, as capas e as ilustrações utilizaram as cores amplamente e mesmo certos detalhes na diagramação das páginas junto aos textos foram muito usados entre o mencionado número 26, de 1986, e o número 42, de 1992, denotando 1
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tinham em seus subtítulos a indicação de seu vínculo com a interpretação da cultura: em Los Libros, “Una politica en la cultura” (subtítulo que se alterou ao longo de sua circulação); em Punto de Vista, “Revista de cultura”. De mais a mais, discutiram romances latino-americanos, no caso de Los Libros, um dos autores analisados no artigo de Sarlo é Juan José Saer, do qual a mesma intérprete se ocupou inúmeras vezes em Punto de Vista. Pode-se dizer que a revista iniciada em 1978 se esforçava, em sua materialidade e em seu conteúdo, para indicar aos seus novos leitores a sua percepção do presente (na capa do número 01 há as expressões “o fim do mundo” e “o lugar da loucura”, que anunciavam textos publicados mas, obviamente, permitiam leituras conjunturais naquele momento) e a sua vinculação àquela publicação encerrada pela ditadura em 1976. Afinal, se em Los Libros, antes do fechamento, temas políticos eram discutidos com um pouco mais de liberdade – mesmo que os tempos derradeiros do governo de Isabel Perón tenham sido de crescente repressão, com o uso da força escapando ao controle estatal e/ou à regulação legal (NOVARO, 2011, p. 133) – e os autores assinavam os artigos sem maiores problemas, o cenário havia mudado em 1978. Após análise dos vínculos entre os dois periódicos em investigação recente (SEBRIAN, 2016), parece cabível considerar uma série de continuidades entre Los Libros e Punto de Vista, a despeito das diferenças e das rupturas, como indicou José Luis de Diego (2000, p. 127). Protagonizando “um segundo momento da modernização crítica”, os intelectuais se viam em Punto de Vista, conforme disse Sarlo a Wolff, livres de “um tipo de teoria muito sólida que os mantinha aprisionados [em Los Libros].” Libertos, de acordo com Sarlo, desde o início dessa forma específica de relação com a teoria (o Estruturalismo e suas variações), os criadores de Punto de Vista deixaram de manter na nova revista, com qualquer teoria, “uma relação religiosa.” (SARLO, 2001, p. 44, tradução nossa) Inclusive por isso avaliar as continuidades e as rupturas entre as duas publicações garante uma percepção acerca
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certamente a busca pela renovação visual enquanto elemento do “vanguardismo intelectual” almejado explicitamente, ao menos, por Sarlo. A partir do número 42, Punto de Vista manteve-se trabalhando suas capas em cores diversas, mas seu interior adquiriu uma identidade (com o mesmo tipo de papel usado para a impressão e com a impressão dos textos em três colunas, por exemplo) que se manteve inalterada até o número final, 90, de abril de 2008. É importante destacar que, a despeito de todas as variações gráficas de Punto de Vista em seus 30 anos de existência, a revista foi impressa basicamente pela mesma gráfica durante toda a sua história. Nunca é demais indicar, outrossim, que o artista gráfico que diagramou Punto de Vista, Carlos Boccardo, militante de esquerda, constou como o diagramador de Los Libros, oficialmente (no expediente), nos números 07, de janeiro de 1970, e 08, de maio de 1970. Mesmo não tendo sido mais citado no expediente nos números seguintes, a participação de Boccardo certamente contribuiu para a proximidade gráfica entre as duas publicações, inclusive no que se refere às fontes utilizadas no título das revistas. Los Libros e Punto de Vista tinham semelhanças e também se pareciam em termos visuais e no que diz respeito à sua estruturação (seções, conteúdos publicados, temáticas etc.) com outras revistas que circularam nos anos 1960 e 1970, a exemplo de Crisis, que divulgava textos literários, resenhas, artigos e contava com uma diagramação com elementos comuns a diversos periódicos da época.
das vinculações entre os “sessenta” e os “setenta” e desses com as décadas seguintes sem uma leitura causal simplificadora.2 Vale a pena, então, recuperar e detalhar alguns argumentos. Como se disse antes, a revista Los Libros começou a circular na Argentina em 1969 e foi fundada e dirigida até o início dos anos 1970 por Héctor Schmucler, que depois participará, no exílio mexicano, da criação da revista Controversia. Retornando à Argentina, após um período na França desenvolvendo seu doutorado, Schmucler intentou criar uma revista que, de acordo com seu primeiro editorial, produziria “crítica da ideologia”. A publicação foi inspirada por revistas francesas, especialmente por aquelas produzidas pelo grupo próximo a Barthes, como Tel Quel e a revista bibliográfica La Quinzaine Littéraire. Em entrevista conferida em conjunto com Nicolás Rosa a Jorge Wolff, em agosto de 1998 (incluída na tese de doutorado do entrevistador, de 2001), Schmucler explica suas relações com a expressiva produção estruturalista francesa desde meados dos anos 1960 e diz que, ao retornar à Argentina um pouco antes do Cordobazo – segundo ele, o primeiro número de Los Libros estava em preparação quando ocorreu o Cordobazo, em maio de 1969 –, juntou-se ao editor Guillermo Schavelzon, do Editorial Galerna, para começar a publicação. Para Schmucler, o momento em que Los Libros começou na Argentina conferiu à revista sua “cidadania argentina” e o processo acelerado de politização da sociedade argentina após maio de 1969 marcou indelevelmente a publicação. Ou seja, apesar de inicialmente concentrada na divulgação bibliográfica, o que garantia à revista sua sobrevivência material – as editoras não apenas enviavam os livros para avaliação, mas também anunciavam no periódico –, Los Libros logo assumiu um projeto de crítica política da cultura e de produção de política cultural o qual, por fim, tornou-se estritamente político, implicando, inclusive, a saída de seu fundador. (SCHMUCLER; ROSA, 2001, p. 3) Se era no começo um periódico representante dos “telquelismos latino-americanos”, interpretados por Wolff (2001; 2009), Los Libros, além de ser um âmbito de renovação da crítica literária argentina e de combate à crítica impressionista e comercial de então – assim disse Piglia em entrevista Jorge Wolff (PIGLIA, 2001, p. 20) –, aos poucos pormenorizou seu “telquelismo” e se Há certa reticência dos intérpretes e mesmo dos intelectuais que produziram as duas revistas – os quais, é claro, não são os mais corretos atribuidores de sentido apenas por terem participado da elaboração dos periódicos – em considerar Punto de Vista como um projeto intelectual que continua o de Los Libros. Obviamente, as revistas são diferentes, foram produzidas em circunstâncias sociais, políticas e culturais bastante diversas, mas é inegável que em muitos aspectos a revista criada em 1978 levou adiante o legado daquela fechada em 1976. Tais vínculos – também perceptíveis, para dar outro exemplo, entre Pasado y Presente, Controversia e La Ciudad Futura, revistas produzidas pelos chamados “gramscianos argentinos” e alguns outros intelectuais, respectivamente, nos anos 1960, 1970-80 e 1990 – foram explorados mais detalhadamente em investigação recente (SEBRIAN, 2016) como parte da interpretação de Punto de Vista que parece mais adequada para a compreensão das origens e do desenvolvimento de certas preocupações dos intelectuais da revista. 2
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converteu em um espaço de incorporação e de debates sobre questões políticas e culturais propriamente argentinas e latino-americanas, inclusive no que diz respeito à sua vinculação estreita à militância maoísta, por conta da presença oficial, desde 1971-1972, de Carlos Altamirano, Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia no conselho editorial. (CELENTANO, 2012a; 2012b; 2014a; 2014b) Tendo em vista a participação de Altamirano, de Sarlo e de Piglia em Los Libros e a evidente semelhança, em termos gerais, dos projetos dos dois periódicos, acredita-se ser produtivo, para a interpretação de Punto de Vista, identificar as continuidades entre essa revista e Los Libros, sobretudo no que concerne aos debates, nos dois periódicos, sobre a literatura, sobre a tradição crítica argentina e latino-americana e sobre o pensamento acerca da Argentina e da América Latina, de forma mais ampla. Entretanto, para que seja possível explicitar em mais detalhes algumas das continuidades e também certas rupturas, é preciso apresentar melhor quais foram as principais características e realizações de Los Libros. Como indicaram Patricia Somoza e Elena Vinelli: Em julho de 1969 começa a ser editada a revista Los Libros. [...] O primeiro subtítulo de Los Libros, “Un mes de publicaciones en Argentina y el mundo”, dá conta do propósito da publicação e da relação com seu modelo: como La Quinzaine..., pretendia intervir no mercado resenhando livros de literatura, antropologia, linguística, comunicação, psicanálise, teoria marxista, filosofia, e sustentava um critério rigoroso no momento da escolha de seus colaboradores, escritores, críticos, investigadores, que posteriormente seriam reconhecidos como destacadas figuras do campo intelectual argentino. A publicação tinha o propósito de fundar um espaço inexistente e “preencher um vazio”, especialmente no âmbito da crítica, que se propunha a modernizar a partir da incorporação de um conjunto de novos saberes que articularam os desenvolvimentos teóricos do pensamento europeu com a teoria da dependência. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 9, tradução nossa)
Pode-se notar na síntese acima o protagonismo que a revista pretendia alcançar desde os primeiros números, nos quais enfatizava seu caráter de ruptura e de novidade (“preencher um vazio”, como se afirmou antes). De qualquer maneira, trata-se de um exagero: sabe-se que havia outras instâncias de modernização crítica na Argentina naquele momento, inclusive outras revistas culturais. Publicada precariamente e irregularmente em termos de periodicidade nos primeiros tempos, Los Libros alterou-se bastante ao longo dos seus 44 números e sete anos de vida no que diz respeito ao formato, à diagramação, à proposta, à direção, aos colaboradores e aos financiadores. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 9) Sobre esses aspectos, dizem Somoza e Vinelli, é perceptível como:
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A revisão das propostas iniciais, as mudanças e sucessivas reacomodações se vinculam a dois fundamentos que estiveram em constante tensão: um, vinculado à nova crítica, a difusão de novas correntes teóricas e sua relação com a política; e o outro, relacionado ao rol de
intelectuais em uma situação política que se desenvolvia em uma velocidade inusitada. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 9, tradução nossa)
A ênfase na renovação teórica e crítica por meio do diálogo com novos autores e da atualização dos parâmetros analíticos foi, desde o início, parte importante do projeto de Los Libros – como também foi em Punto de Vista – e a revista conseguiu estabelecer redes intelectuais para além da Argentina, atingindo, por exemplo, Estados Unidos e Canadá. Apesar do seu desenvolvimento e crescente importância, nacional e internacional, as tensões internas do periódico se agravaram e, em 1971, culminaram no afastamento de Guillermo Schavelzon da função de editor responsável. Diante de novas circunstâncias, inclusive de precariedade material (com o afastamento de Schavelzon rompese o vínculo entre ele e sua editora e a revista), o propósito inicial de publicar uma revista que fosse marcadamente um boletim de atualização e de renovação bibliográfica – de crítica de livros em formato de tabloide (DE DIEGO, 2010, p. 410) – começa a se converter em um novo projeto, explicitado na reformulação do subtítulo a partir do número 22: de “Un mes de publicaciones en América Latina” para “Para una crítica política da cultura”. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 9) Tal reorientação resultou aos poucos em diminuição do interesse da revista no projeto inicial de divulgação bibliográfica e, em contrapartida, diminuiu o interesse das editoras em anunciar no periódico, provocando queda de receita. Desde o número 23, de novembro de 1971, gradativamente oficializou-se a nova direção, com Schmucler ainda no centro, mas com um Conselho do qual participavam, além dele, Ricardo Piglia e Carlos Altamirano e depois, desde o número 25 (de março de 1972), Beatriz Sarlo, Germán Garcia e Miriam Chorne. Piglia colaborou com a revista desde o início sem aparecer efetivamente (ver a entrevista dele a Jorge Wolff, mencionada em nota de rodapé a seguir), publicando artigos sob pseudônimo, e Altamirano e Sarlo conviviam proximamente com o núcleo de intelectuais, chegando a frequentar reuniões do periódico. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 10-11) O momento foi, então, de redução da concentração inicial na renovação da crítica literária e das ciências sociais e de radicalização e politização dos intelectuais frente à fragmentação da esquerda e à ascensão da violência e da repressão. De modo geral: “A tensão entre literatura e política, e literatura e sociedade, produtiva no início, vai se resolvendo em uma nova e tensa relação entre política e sociedade, na qual a literatura e Nessa circunstância de transição na revista, desde o início dos anos 1970, entre um momento de maior concentração na divulgação bibliográfica para outro em que crescia a atenção aos Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.144-161, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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a crítica parecem perder lugar.” (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 14, tradução nossa)
movimentos de operários e de estudantes e às questões concernentes aos problemas estruturais da sociedade argentina, avolumou-se, como indicou o historiador argentino Adrián Celentano (2014a, p. 2), a publicação de informes, de documentos e de artigos e diminuíram as notas estritamente bibliográficas. As relações de Altamirano e de Sarlo com o Partido Comunista Revolucionário (PCR) e de Piglia com a Vanguardia Comunista (VC), agremiações maoístas da nova esquerda resultantes de cisões com o Partido Comunista e o Partido Socialista na Argentina, estreitaram os laços da publicação com as preocupações maoístas sem que isso significasse a perda de autonomia do periódico, que manteve “um espaço de reflexão relativamente autônomo em relação à linha difundida pelos grupos maoístas.” (CELENTANO, 2014a, p. 2, tradução nossa) Ou seja, a “nova esquerda”, especialmente a “nova esquerda intelectual”, buscava, desde o início dos “sessenta”, consolidar as revistas político-culturais como novos canais de discussão do maoísmo junto aos primeiros partidos e agrupamentos maoístas e às editoras. Los Libros e Pasado y Presente se integraram a esse esforço, do qual participaram, entre outras revistas, inclusive algumas publicações não maoístas, como Crisis (de grande tiragem e ressonância social, mais próxima do peronismo), Cristianismo y Revolución (mais próxima da discussão católica sobre a revolução) e Nuevos Aires, revista fundamental para o debate sobre o dilema “intelectuais e revolução” (DE DIEGO, 2000). Como indicou Celentano (2012b, p. 71), até 1976, as revistas maoístas e as edições promovidas por selos editoriais como “Cuadernos de Pasado y Presente” e “La Rosa Blindada” renovaram a discussão acerca do marxismo e da experiência comunista. Sarlo, Altamirano e Piglia protagonizaram essa transformação da revista Los Libros, principalmente a partir de 1973, quando dialogavam com o Partido Comunista Revolucionário, no caso dos dois primeiros, e com a Vanguardia Comunista, no caso de Piglia. Esses diálogos políticos ressoaram na revista a tal ponto que Schmucler, em 1974, deixou o grupo junto com Garcia e Chorne. A mudança não foi de forma alguma pacífica – Piglia se referiu à saída do fundador do periódico como “um golpe de estado” dele, de Sarlo e de Altamirano, e a própria Sarlo, em entrevista a Jorge Wolff, destacou sua leitura da situação de tensão que levou à saída de Schmucler. Se as posturas e ideias dos novos três diretores conquistaram simpatias e motivaram adesões, também resultaram em afastamentos e recusas, na dinâmica própria às redes e aos coletivos intelectuais. Em certos aspectos, De qualquer maneira, “a ‘crítica política da cultura’ argentina e latino-americana que combina as teses de Mao com o legado gramsciano e a tendência estruturalista francesa” (CELENTANO, Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.144-161, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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a defesa de posições beirava o sectarismo. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 14)
2012b, p. 72, tradução nossa) empreendida por Los Libros se tornou relevante e o periódico chegou a publicar, em 1974, um texto inédito de Mao, além de veicular o mencionado número especial dedicado à China e traduzir artigos de revistas maoístas da nova esquerda da Itália e da França. Como observou Celentano (2012b, p. 72), em Los Libros, as referências ao maoísmo “alcançam os números dedicados à análise da escola argentina e dos movimentos sindicais docentes da época.” (tradução nossa) Ainda no que diz respeito à aproximação de Sarlo, de Altamirano e de Piglia com o maoísmo e com os grupos de orientação maoísta, principalmente com a Vanguardia Comunista – cuja formação foi estudada por Celentano (2012a; 2014b) –, é preciso lembrar que foi a VC a viabilizadora material de Punto de Vista em seus primeiros números e, nesse sentido, percebe-se que a proximidade se manteve após o fim de Los Libros, em 1976. Em sua investigação sobre a formação da Vanguardia Comunista na Argentina, Adrián Celentano (2012a) asseverou que a VC, fundada em 1965 a partir da ruptura com o Partido Socialista de Vanguardia, havia assumido em sua criação a tarefa de construção de um partido marxista-leninista. Liderada por Elias Semán, Roberto Cristina e Rubén Kristkausky, fundamentais no início de Punto de Vista, a nova organização acatava a postura geral maoísta naquela conjuntura de se apresentar como alternativa à “velha esquerda”, ao Partido Socialista e ao Partido Comunista, e debatia na Argentina as propostas de inspiração soviética e cubana e o peronismo de esquerda, que desembocavam nas táticas e ações de guerrilha. Para os maoístas – e isso foi fundamental tanto em Los Libros quanto em Punto de Vista –, as proposições advindas da Revolução Cultural Chinesa permitiam aos intelectuais unir as preocupações e experiências políticas às preocupações e experiências estéticas, artísticas e culturais e ao mesmo tempo se distanciar do nacionalismo peronista e do “guerrilheirismo”. (CELENTANO, 2012a; 2014b) Ocorreu em Los Libros, assim, depois de seu início mais próximo das referências do estruturalismo francês, inflexão expressivamente maoísta, e os textos veiculados entre 1974 e 1976, ano do fechamento do periódico, voltaram-se à discussão prioritária das diferenças entre os projetos da URSS e da China, ao debate da Revolução Cultural Chinesa, com a diminuição das discussões acerca da América Latina, a não ser por meio das publicações e referências ao PCR e à VC. A prova de que as tensões não haviam arrefecido foi a saída de Piglia, em 1975, motivada pelo apoio de Sarlo qualquer defesa do governo repressivo e autoritário da última esposa de Perón. Piglia partiu então para os EUA e no ano seguinte a revista publicou, em fevereiro de 1976, o seu último número. Com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.144-161, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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e de Altamirano à defesa de Isabel Perón pelo PCR contra o golpe, enquanto a VC não aceitava
o golpe militar, em março do mesmo ano, a redação foi fechada e se perdeu o que seria o número 45. (SOMOZA; VINELLI, 2011, p. 18) Em síntese, em Los Libros, como evidenciaram os estudos de José Luis de Diego a respeito (2000, 2010): desenvolveu-se, em um momento de poucas perspectivas na universidade argentina, uma nova crítica capaz de projetar intelectuais que se tornaram, nas décadas de 1980 e 1990, referências centrais do campo intelectual argentino; elaborou-se uma crítica literária de forte conteúdo político, vinculada ao presente e às obras recentes e atenta, conforme as matrizes francesas e europeias com as quais dialogou, à forma da escritura; atualizou-se teoricamente a prática crítica, a ponto – como foi costumeiro, na época, em leitores de Althusser e de Barthes – de se fomentar certa ilusão de cientificidade que seria garantida pelo correto emprego das técnicas e dos instrumentos. Esse projeto, que se foi configurando na revista e que não esteve, em momento nenhum, antecipado ou projetado, aprioristicamente, foi, nesse sentido, histórico e caracterizou-se pelo dinamismo, pelas tensões e pela ênfase na transformação e em uma “crítica política da cultura” estruturada desde a adaptação e a apropriação de referenciais estrangeiros para refletir a respeito de problemas internacionais e propriamente argentinos. (DE DIEGO, 2010, p. 410-412) Punto de Vista continuou o projeto de Los Libros em alguns sentidos, expressivamente nos debates culturais e no fomento a certas políticas da cultura, mais especificamente no que diz respeito à necessidade de construção de uma perspectiva crítica atualizada que permitisse a releitura da tradição literária e teórico-crítica na Argentina. Contudo, a tradição que se quis ler criticamente a partir de 1978 incorporava o próprio trabalho de Los Libros e, nesse sentido, é preciso pormenorizar em Punto de Vista esse esforço de “filiação crítica” – de filiação e de desfiliação, caso se prefira – à trajetória daquela revista publicada entre 1969 e 1976 e a outras revistas argentinas. Conforme se interpretou em investigação concluída recentemente (SEBRIAN, 2016), a revista criada em 1978, combinando matrizes teórico-críticas e políticas pouco conhecidas nos círculos intelectuais argentinos e até mesmo algumas tidas como irreconciliáveis ou antagônicas, prosseguiu, com particularizações e transformações, no esforço de modernização cultural que se havia experimentado na revista Los Libros, na qual alguns dos fundadores e condutores de Punto de Vista foram figuras fundamentais. Nesse sentido, Punto de Vista construiu um projeto capaz de reler a tradição crítica e literária da interpretação sócio-histórica e estética das obras. E Punto de Vista, ao longo dos seus trinta anos (1978-2008), ofereceu um tipo de crítica política da cultura diversa daquela que haviam feito em Los Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.144-161, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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argentina, inclusive a de Los Libros, desenvolvendo um ponto de vista assentado sobre a valorização
Libros: se na revista encerrada em 1976 tratava-se de encontrar, de valorizar e de interpretar as obras que ofereciam problematizações políticas das sociedades, em Punto de Vista o objetivo foi desenvolver uma crítica na qual a cultura não deveria estar a serviço da política, uma crítica que desvelasse as imbricações entre cultura e política em todas os objetos de cultura.
Fontes Entrevistas e diálogos citados PIGLIA, Ricardo. Entrevista a Jorge Wolff, Buenos Aires, 29 de outubro de 1998. In: WOLFF, Jorge Hoffmann. Telquelismos latino-americanos. A teoria crítica francesa no entrelugar dos trópicos. Tese (Doutorado em Literatura) – UFSC, Florianópolis, 2001. p. 20-29. (Anexo 1 da tese, Entrevistas) SARLO, Beatriz. Entrevista a Jorge Wolff, Buenos Aires, 15 de junho de 1999. In: WOLFF, Jorge Hoffmann. Telquelismos latino-americanos. A teoria crítica francesa no entrelugar dos trópicos. Tese (Doutorado em Literatura) – UFSC, Florianópolis, 2001. p. 30-51. (Anexo 1 da tese, Entrevistas) SCHMUCLER, Héctor; ROSA, Nicolás. Entrevista a Jorge Wolff, Florianópolis, 20 de agosto de 1998. In: WOLFF, Jorge Hoffmann. Telquelismos latino-americanos. A teoria crítica francesa no entrelugar dos trópicos. Tese (Doutorado em Literatura) – UFSC, Florianópolis, 2001. p. 1-19. (Anexo 1 da tese, Entrevistas) SOMOZA, Patricia; VINELLI, Elena. Para una historia de Los Libros. [diálogo com Ricardo Piglia, Carlos Altamirano, Germán García, Guillermo Schavelzon, Héctor Schmucler] In: SCHMUCLER, Héctor et al. Los Libros: edición facsimilar. Volume 1. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2011. p. 9-19.
Revistas LOS LIBROS. Edición facsimilar. Prólogo de Patricia Somoza y Elena Elvira Vinelli. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2011. 4v. PUNTO DE VISTA. REVISTA DE CULTURA. Colección completa (Números 1 a 90, 1978-2008). CD-Rom. Buenos Aires, 2009.
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O DESPREZO (JEAN-LUC GODARD, 1963):
O cinema como um mundo conformado a nossos desejos
Carolinne Mendes da Silva* RESUMO: O presente artigo propõe uma análise do filme O desprezo de acordo com alguns princípios que orientam a análise marxista da cultura.1 Realizo uma investigação dos procedimentos específicos do filme enquanto obra de arte e documento histórico. Nesse sentido, procuro articular as características formais da obra com uma interpretação sobre as relações sociais nela sedimentadas. Dois temas abordados no filme me interessam mais especificamente: a reflexão sobre o próprio fazer cinematográfico e a representação de gênero construída na obra, principalmente através da personagem Camille (Brigitte Bardot). PALAVRAS-CHAVE: cinema; Jean-Luc Godard; gênero.
CONTEMPT (JEAN-LUC GODARD, 1963): THE CINEMA AS A WORLD CONFORMED TO OUR DESIRES
ABSTRACT: This article proposes an analysis of the film Contempt according to some principles that guided the Marxist analysis of culture. I investigate the specific procedures of the film as a work of art and as a historical document. In this sense, I try to articulate the formal characteristics of the film with an interpretation of social relations. Two themes of the movie interested me more specifically: a reflection about the process of movie making and the gender representation, especially through the character Camille (Brigitte Bardot). KEYWORDS: cinema; Jean-Luc Godard; gender. ***
Doutoranda em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestre em História Social. Mestre em História Social, Bacharel e Licenciada em História pela FFLCH/USP. Endereço eletrônico: carolinne.silva@usp.br 1 A principal referência metodológica deste artigo é o trabalho de Ismail Xavier. Baseado na proposição de Antonio Candido para a crítica literária, Ismail Xavier propôs uma análise da forma cinematográfica que nos leva ao contexto da produção dos filmes e à relação destes com a sociedade. Analisando a obra de Glauber Rocha, o autor verifica como as características audiovisuais se colocam como respostas às questões político-sociais e se combinam a elementos de outras esferas. Meu ponto de partida leva em consideração o filme como obra autônoma, a partir da qual, portanto, a análise deve ser iniciada. A compreensão da obra, no entanto, impõe o passo seguinte, onde cotejamos a análise fílmica com as determinações históricas. CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 14. XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo, Cosac Naify, 2014 (2ª ed). ______________. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense; Rio de janeiro, Embrafilme, 1983. *
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“Le cinéma, disait André Bazin, substitue à notre regard un monde qui s'accorde à nos désirs. Le Mépris est l'histoire de ce monde.”2
O
desprezo apresenta a história de Paul (Michel Piccoli), um jovem escritor, que é convidado por um produtor de cinema americano a escrever cenas para um roteiro de adaptação da Odisseia. O produtor Jeremy Prokosch (Jack Palance) já tinha
engajado um cineasta conhecido, Fritz Lang (que interpreta ele mesmo), porém estava descontente com seu trabalho. Camille, a esposa de Paul, é cotejada pelo produtor e seu marido fica na dúvida entre aceitar ou não o trabalho. Desde sua abertura O desprezo é apresentado como um filme, ou seja, como uma obra de ficção construída através de um aparato tecnológico tendo em vista um público. Seu primeiro plano já é um plano sequência de aproximadamente dois minutos, nos quais observamos o cenário da Cinecitt,,3 onde ocorre uma gravação. A profundidade de campo nos permite ver ao fundo uma câmera sendo operada por Raoul Coutard (o responsável de fato pela fotografia do filme, citado nos créditos), acompanhado de dois assistentes, um encarregado do microfone e outro do carrinho da câmera, e uma moça que faz anotações (Giorgia Moll no papel de Francesca Vanini, que tem função de assistente do produtor no enredo do filme). Há um trilho que aponta em nossa direção e pelo qual a câmera segue se aproximando do espectador. Durante esse movimento, a voz de Godard apresenta os créditos do filme e a frase atribuída a André Bazin. Por fim, a câmera nos encara diretamente, ocupando toda a tela. Essa abertura, portanto, já nega o cinema clássico. Enquanto este é construído pela montagem de um sistema de representação que procura anular a sua presença, a abertura de O desprezo nos evidencia a montagem desse mundo artificial. A profundidade de campo nos permite ver muitas coisas ao redor da câmera que não são captadas por ela. A voz over dos créditos nos anuncia os envolvidos na criação desse mundo de representações. A frase, atribuída a André Bazin, nos diz que o mundo visto no cinema não é o mesmo visto pelo nosso olhar normal, mas um outro que vem atender aos
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Em minha tradução: “O cinema, dizia André Bazin, substitui a nosso olhar um mundo que cabe em nossos desejos. O desprezo é a história desse mundo” – frase dita em voz over na abertura de O desprezo. 3 A Cinecittà é um complexo de teatros e estúdios situados na periferia oriental de Roma, idealizado e criado pelo regime fascista e, desde então, responsável pela maior parte da produção cinematográfica italiana. 2
nossos desejos.4 E, completa a voz over do próprio diretor, O desprezo é a história deste outro mundo, ou seja, de um mundo produzido tendo em vista o olhar do espectador.
A mulher como objeto de desejo Segundo Laura Mulvey, no cinema hollywoodiano clássico, a mulher seria sempre um objeto dos desejos e angústias do masculino. Enquanto este seria, portanto, o ser ativo, dominante e condutor da história, o feminino seria o ser passivo, dependente e contemplativo. Mulvey afirma que esse cinema de Hollywood “sempre se restringirá a uma mise-en-scène formal que reflete uma concepção ideológica dominante do cinema” e acrescenta que um cinema de vanguarda estética e política deve ser contraponto a este também no que se refere à representação da mulher, questionando, portanto, a ordem patriarcal dominante.5 Vimos que, por um lado, o filme de Godard desde seu início nega uma representação ilusionista, o que o aproximaria mais de um cinema de vanguarda do que de um cinema clássico. Por outro lado, O desprezo se anuncia como a história de um mundo que se adéqua aos nossos desejos. A partir daí perguntamos, qual seria o papel da mulher neste mundo que o filme apresenta? O segundo plano sequência do filme oferece uma das possíveis respostas. Camille está nua na cama em um momento de intimidade com seu marido. O enquadramento não permite uma visão completa do seu corpo. Ela pergunta se Paul vê seus pés no espelho e no mesmo instante estes surgem em quadro para o espectador, como se a tela fizesse para nós papel equivalente ao mencionado espelho (que também não aparece em quadro) para Paul. Camille segue questionando se o marido acha bonitos seus tornozelos, joelhos, coxas, glúteos. A imagem que vemos é tingida de vermelho, cor que sugere erotismo, mas que tem o efeito de obscurecer parcialmente o corpo da atriz Brigitte Bardot. Em um dado momento, a tonalidade vermelha desaparece, e vemos seu corpo na luz natural. A câmera faz por ele uma panorâmica, se concentrando em seus glúteos, e depois a luz muda novamente, desta vez para uma tonalidade azul. Segundo Mário Alves Coutinho, vários comentadores procuraram essa frase na obra de Bazin, sem nunca encontrar. Encontraram algo parecido em Michel Mourlet: “le cinéma est un regard qui se substitue au nôtre pour nous donner un monde accordé à nos désirs” (o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo conformado aos nossos desejos). MOURLET, Michel. “Sur un art ignoré”. Cahiers du cinéma 98, Aout 1959, p. 34. Citado in: COUTINHO, Mário Alvez. Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard. Belo Horizonte: Crisálida, 2010, p. 250. 5 MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal, 1983, p. 439. 4
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Dessa forma, a narração do filme nos coloca em primeiro plano o traseiro nu de Bardot como objeto de desejo, mas também constitui esse objeto como impossível. Pode-se vê-lo apenas indireta ou parcialmente, através de uma lente matizada ou através de uma câmera panorâmica. A utilização de cores e o enquadramento destacam o fracasso da imagem para capturar o objeto.6
“Cinema comercial” x “cinema de arte” No bloco seguinte, com a apresentação dos personagens de Jeremy Prokosch e Fritz Lang, dois projetos cinematográficos são colocados em evidência.7 Prokosch é um produtor de cinema americano que escolheu Lang para dirigir uma adaptação da Odisseia pois, segundo ele, a obra necessitava de um diretor alemão, já que essa era a nacionalidade do “descobridor” da cidade de Troia. Ou seja, a justificativa que o produtor dá para a escolha de Lang não convence, Prokosch não admite contratar Lang por suas qualidades já reconhecidas enquanto diretor. Lang começa a dirigir a Odisseia, mas Prokosch se mostra insatisfeito e tenta contratar Paul para escrever novas cenas. Prokosch é o “dono” da Cinecittà, a representação do poder do capital americano na indústria cinematográfica. Em sua primeira aparição, em seus estúdios, ele atua como se estivesse num palco onde Francesca e Paul são a plateia. Ele afirma que vendeu tudo aquilo, que se transformará em um supermercado. Sua posição é associada a um “cinema comercial”, interessado apenas no lucro do filme, ele demonstra preocupação em saber se o público entenderá o que foi filmado por Lang. Aparentemente, o produtor não possui muito conhecimento sobre a cultura grega, tema do filme que produz. Ele sugere que Paul leia um livro de pintura romana para ajudar no roteiro, quando Paul diz que a Odisseia foi escrita em grego, Prokosch responde que já sabia, mas fica em uma situação
Brigitte Bardot já era conhecida do público da época. A atriz não foi a primeira opção de Godard para o filme, o diretor queria convidar Kim Novak, portanto uma estrela do cinema americano. Esta sequência inicial de O desprezo também não estaria prevista, Godard teve que introduzí-la porque, após verem o filme pronto, os produtores não teriam concordado com a falta de cenas de Brigitte Bardot nua. Nesse sentido, o próprio Godard, diretor de O desprezo, sofreria uma pressão paralela à que Lang sofre em seu filme: a intervenção do produtor em sua obra. Na verdade, como veremos adiante, há outras cenas do filme em que a atriz expõe o corpo (estas não sabemos se foram feitas por vontade de Godard ou dos produtores). Além disso, destacamos a importância desta sequência inicial para a narrativa, pois trata-se do único momento de Paul e Camille antes que o conflito se instaure entre o casal. Adiante, Paul diz que ainda esta manhã Camille o amava, e temos referência a esta sequência da cama. 7 Jack Palance, que interpreta Prokosch, havia atuado no cinema americano, principalmente no papel de vilão em filmes de western, o que seria fundamental para sua escolha para o papel do produtor. Fritz Lang era um diretor bastante elogiado por Godard e seus companheiros da Cahiers du Cinéma. 6
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indesejada. Prokosch é arrogante, está sempre dando ordens e demonstra seu poder através de seu potente Alfa Romeo e de seu talão de cheque.8 Lang é o personagem que domina a cultura clássica europeia, assim como também domina todas línguas faladas no filme - inglês, francês, italiano e alemão. Ele é o intelectual sofisticado, que cita Hölderlin, Dante, Corneille e Brecht. Há a sugestão de que Lang deseja fazer um “cinema de arte”, ou mesmo a tentativa de um “cinema de autor”, dificultada pelas intervenções do produtor.9 Paul diz a Prokosch que acredita que o diretor não aceitará essa intervenção em seu filme, argumentando com um dado da própria biografia de Lang: em 1933, Goebbels (ministro da propaganda do Reich na Alemanha nazista) convidou Lang para dirigir o cinema alemão e ele se recusou, preferiu o exílio. Prokosch responde incisivamente: “Não estamos em 33, mas sim em 63 e ele vai dirigir o que for escrito, desde que eu saiba que você vai escrever”. A sugestão, portanto, é de que os tempos são outros, e agora Lang terá que se render ao poder da indústria. O produtor afirma também que sabe que Paul fará o trabalho, pois ele tem uma mulher muito bonita e precisa de dinheiro. Se Prokosch afirma seu poder através do dinheiro, Lang e Paul não chegam a negá-lo. Ainda que Lang não seja nada amigável com o produtor, em momento algum ele abandona o trabalho ou se nega a realizá-lo com a intervenção de um novo roteirista. Paul revela, no final do filme, que realmente só faria o roteiro pelo aspecto financeiro, já que seu interesse artístico estaria no teatro, e, corroborando a afirmação de Prokosch, o roteirista diz a Camille que só faria o trabalho por ela, para pagar o apartamento em que eles vivem. Se Prokosch e Lang apresentam duas propostas cinematográficas diferentes, entre as quais Paul hesita, a julgar pelas imagens que vemos da adaptação da Odisseia que está sendo feita, poderíamos dizer que os três personagens concordam em um aspecto: a exposição e exploração do corpo feminino Quando dirige, o produtor parece fazer questão de acelerar o carro para demonstrar sua potência. Na sequência na sala de projeção, Jerry se irrita, Lang diz que finalmente ele entendeu o sentimento da cultura grega e ele responde “quando eu ouço a palavra cultura, eu pego meu talão de cheques”. Assim ele dá um cheque para que Paul aceite o trabalho. Lang, sempre se opondo ainda que poeticamente ao produtor, diz que os nazistas costumavam usar a palavra “revolver” para se referir a “talão de cheques”. Enquanto assistia o copião, Prokosch diz saber exatamente “como os deuses se sentem”. De fato, no cinema americano da época, o produtor responsável pela escolha do roteirista, do diretor, dos atores e da equipe técnica podia se comparar a um deus, já que investia na criação de um mundo que só passava a existir por sua vontade. 9 A política dos autores foi um termo criado pelos jovens críticos cinematográficos da revista Cahiers du Cinéma nos anos 50. Para eles, o filme se assemelharia com quem o produzia, sendo uma obra de arte única e de expressão pessoal, assim como a literatura e a pintura. Em 1948, Alexandre Astruc escreveu o artigo “Naissance d’une nouvelle avant-garde: La câmera stylo”, (Nascimento de uma nova vanguarda: A câmera caneta) onde pela primeira vez o termo é cunhado e segundo Marie muito do que foi falado por ele seria retomado por François Truffaut em seu artigo “Uma certa tendência do cinema francês”. MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Tradução: Eloísa Araújo Ribeiro e Juliana Araújo. Campinas: Papirus, 2011. 8
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pelo cinema. Quando os três assistem ao copião de cenas da Odisseia há a imagem de uma mulher nadando nua, como representação de uma sereia, a qual agrada muito o produtor. Quando os três vão ao cinema assistir a apresentação de uma atriz que pode ser convidada para atuar na Odisseia, o único comentário que Prokosch faz sobre a mesma é que “ela concorda em tirar a roupa terça-feira, às 8 horas da manhã, na praia”. Nas filmagens em Capri, dirigidas por Lang, vemos mulheres de roupão, Paul pergunta se elas vão se despir e Francesca responde, “evidentemente”, ao que Paul comenta: “O cinema é maravilhoso, nós vemos as mulheres de vestido e na tomada seguinte elas estão nuas!”.10 Nesse sentido, o tratamento dado ao feminino não seria diferente no “cinema comercial” ou no “cinema de arte”. Questionamos então como o próprio filme se posiciona em relação a isso.
A posição do narrador O narrador de O desprezo também parece concordar com Prokosch, Paul e Lang. Já comentamos sobre a exposição do corpo de Camille na sequência inicial. Ainda que aquela cena tenha sido introduzida após o filme pronto, para agradar os produtores, há outros momentos em que a nudez da personagem é focalizada. Em Capri, Camille toma sol nua, com um pequeno livro colocado sobre o seu bumbum, que Paul faz questão de retirar. Na longa sequência que se passa no apartamento do casal, Camille caminha segurando uma toalha vermelha, deixando o espectador na expectativa da possível nudez. Expectativa esta que aumenta quando a personagem sai da banheira expondo partes do corpo que não consegue cobrir imediatamente com a toalha. Quando Paul questiona porque ela não quer mais fazer amor, ela se deita no sofá, e descobre-se, oferecendo-se a contragosto. Nesse momento, há uma digressão que, de certa forma, rompe o fluxo narrativo. Trata-se de uma sequência de planos que não se relacionam diretamente com o que estava sendo contado, acompanhados da narração em off dos dois personagens fazendo uma reflexão sobre a relação, sobre a história que seguimos. Nesses planos, insiste-se na imagem de Camille nua, mesmo sem uma função diretamente diegética. A digressão é acompanhada da música de Georges Delerue, presente em diferentes momentos do filme para marcar o drama de distanciamento e separação do casal. O registro, portanto, não se diferencia do restante da obra. Todavia, como a narração em primeira pessoa não se
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Destaca-se também nas filmagens de Capri uma assistente que segura a claquete e está sempre de biquíni, ao mesmo tempo que os outros assistentes (entre eles o próprio Godard) estão sempre vestidos completamente. Talvez fosse evidente no mundo do cinema que não somente à frente das câmeras a mulher deveria se expor através de seus atributos físicos. 10
mantém, há um descolamento dessa sequência do todo diegético, como se fosse um breve momento de confissão (em voz e imagens) de cada uma das partes sobre a relação. Em sua fala, Paul diz que já havia pensado que Camille pudesse deixá-lo e que seria como uma catástrofe. Camille diz que antes tudo se passava como uma “nuvem de inconsciência”, de repente, envolta numa “afobação mágica”, ela teria acabado nos braços do marido. Paul comenta que “agora essa afobação estava ausente” e que mesmo sob seus “sentidos excitados” ele agora a observava friamente. Não há interação direta entre as vozes, mas a fala de Paul faz referência à de Camille. Em seguida, Paul comenta que a esposa estava tentada a mentir para resolver a situação (mentir sobre o seu amor, deduzimos), mas que depois decidiu não mentir. Camille diz que Paul a magoara muito e que agora ela se vingava sem ser clara (desprezando-o, deduzimos). Por fim, Paul afirma que estava errado, Camille não tinha sido infiel, sua infidelidade talvez fosse aparente e a verdade precisava ser comprovada. De onde falam essas vozes? São as vozes dos atores que acompanhamos, mas em qual local e tempo elas estão colocadas? Em um primeiro momento, poderíamos dizer que as vozes são o pensamento de Paul e Camille no momento em que o vemos no apartamento. Essa hipótese, contudo, não se sustenta, pois seria improvável uma interação entre seus pensamentos e, principalmente, porque essas vozes não só comentam o que já se passou, mas também o que está por vir. E, nesse sentido, imagens e vozes off se complementam. As imagens que compõem esse momento digressivo das vozes offs nos mostram alguns planos de flashback, outros de flashforward, e outros que apresentam conteúdos novos, não vistos no restante do filme. Acreditamos assim que as imagens e vozes dessa sequência revelam uma intervenção direta do narrador. Este narrador, cuja presença tende a ser escondida no cinema clássico - no qual a intenção é a sensação de que estamos diante de um mundo de funcionamento autônomo - aqui se revela. Ainda que escutemos a voz de Paul e Camille, o que é colocado só o poderia ser por uma instância superior, pois o sentido produzido é o de uma consciência total do filme, que os personagens não poderiam ter. A primeira dessas imagens é a de Camille nua deitada de bruços sobre o tapete branco do apartamento (mas agora sem móveis, ou seja, em um outro contexto ainda não visto no filme). A personagem olha pra câmera, levantado-se um pouco, quase chega a expor os seios, para deitar-se o pensamos na composição com os planos seguintes, acreditamos que essa hipótese não se sustenta.
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novamente. Embora esse plano pudesse fazer parte da imaginação de algum dos personagens, quando
Além disso, o próprio olhar da atriz para câmera traduz uma quebra da “quarta parede”, ou seja, um momento de revelação do filme enquanto tal. Em seguida, Camille aparece em um cenário campestre, correndo através das árvores em direção a um rio, nesse momento a voz off da personagem nos conta sobre a “afobação mágica” presente num momento anterior do relacionamento. Ainda assim, imagem e voz não se combinam de uma maneira simples e complementar já que seria mais óbvio que para ilustrar essa fala tivéssemos uma imagem do casal unido, em um momento feliz. O plano seguinte é um close de Camille sentada no sofá pensativa, a personagem usa uma blusa rosa listrada e uma peruca preta, ambos utilizados em outras cenas do filme, mas não concomitantemente (a blusa rosa é usada em Capri, não no apartamento do casal, onde ela aparece aqui no sofá). Em seguida, temos mais um plano de Camille nua e de costas, balançando a perna sensualmente, como a personagem faz costumeiramente quando aparece nessa posição, mas aqui seu rosto está fora de quadro e o fundo é azul, um tapete ou cobertor não visto em qualquer outra parte do filme.11 Depois temos o plano de um flashback do momento em que Camille fala ao telefone com sua mãe, Paul entra no quarto e ela o chuta. Em seguida, novamente Camille sentada no sofá, agora com um figurino não utilizado em outra cena. Segue-se um plano fechado do bumbum e das pernas de Camille deitada no sofá. Depois, um flashforward de Camille e Paul na cobertura da mansão em Capri, seguido por um flashback do momento em que Paul apresenta Camille a Prokosch na Cinecittà. Por fim, novamente Camille no tapete branco, como no início da sequência, também com a repetição da primeira frase digressiva de cada um dos personagens. Acabada a digressão, temos a continuação da diegese, Camille deitada no sofá, se expondo a Paul, ele a cobre e pede para ela não fazer aquilo. A música de fundo continua, portanto não há uma marca de diferença de registro entre o momento digressivo e a continuação da narrativa. O narrador que revelou atuar ali, continua marcando sua presença. Acreditamos que a música de Delerue, o movimento de câmera dentro dos planos sequências, a decupagem, a inserção de flashbacks, flashfowards e imagens não diegéticas revelam a consciência desse narrador externo não apenas nesse momento, mas no filme como um todo, no sentido de marcar sempre a separação do casal.
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Destacamos esses elementos dos cenários ou dos acessórios usados no filme para mostrar como nessa sequência eles aparecem fora de contexto, ou seja, de forma não diegética, não sendo possível encaixar esses planos em nenhum momento do fluxo narrativo (diferente dos flashbacks e flashforwards que podem ser localizados em uma marcação de tempo específica da narração). 11
A estrutura da separação Essa separação, de certa forma, já estaria naquela primeira sequênca na cama, onde a música também está presente e, apesar de estarem lado a lado, os personagens não chegam exatamente a se beijar (quando Paul se aproxima, Camille pede para ele ir mais devagar) e ela sugere que o marido observe as partes de seu corpo através do espelho e não em um possível contato direto. Na sequência seguinte, na Cinecittà, a separação começa a se concretizar através da figura de Prokosch. Camille corre em direção ao marido, mas o carro de Prokosch quase a atropela, passando entre eles. O produtor a convida para um drink em sua casa e abre a porta de seu carro, impedindo-a fisicamente de seguir em direção ao marido. O próprio Paul acaba pedindo para que ela siga com Prokosch, o que deixa Camille indignada, seguindo-o com o olhar como se não acreditasse no que o marido faz. Camille ainda grita por ele, mas é tarde, estão em planos e lugares separados, ela no carro com Prokosch, ele correndo pela Cinecittà. Nesse momento temos a introdução de um plano da estátua de Netuno, inimigo mortal de Ulisses de acordo com o que nos foi apresentado no copião da Odisseia de Lang. O narrador constrói, portanto, um paralelo entre as histórias de O desprezo e da Odisseia, ou entre o enredo do filme e o enredo do filme dentro do filme. A presença de Prokosch- inimigo de Paul, assim como Netuno-inimigo de Ulisses, indica que o herói de O desprezo corre riscos. Quando Paul chega na casa de Prokosch em Roma, Camille questiona sua demora, ele conta que seu taxi sofreu um acidente, mas ela não está interessada, começa a olhar o livro sobre a pintura romana. No jardim, Camille diz que vai dar uma volta e cruza com Francesca que vem chegando à casa de Prokosch de bicicleta. Camille talvez pensasse que o marido a traísse com a assistente do produtor. A personagem nunca deixa totalmente claro o motivo de seu desprezo e há a sugestão de que possa ser a crença de que Paul a “empurrou” para Prokosch (como um objeto de sua negociação com o produtor), porém outra possibilidade é a de que Camille esteja enciumada pelo que se passa entre seu marido e Francesca (mais tarde no interior da casa de Prokosch, Paul da um tapa no glúteo de Francesca e Camille talvez tenha visto). O filme trabalha mais com sugestões do que com explicações psicológicas advindas de uma possível penetração no interior dos personagens. Nesse momento, há uma sequência similar à que chamamos de digressão no apartamento, mas Vemos Camille ao lado de Paul (no único plano do personagem sem o chapéu, que depois ele não tira
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aqui com planos mais rápidos, como flashs, e sem nenhuma voz off, apenas com a música de fundo.
nem para tomar banho); Camille se arruma experimentando um chapéu (que ela não usa agora, mas na sequência final quando vai embora com Prokosch); flashback de Camille ao lado do carro de Prokosck, no primeiro encontro dos dois; Camille se arrumando, olhando no espelho; flashback de Paul fazendo Camille entrar no carro de Prokosch; por fim, Camille de chapéu olhando para câmera. Há uma sugestão de que essa sequência é uma produção da consciência de Camille, pois antes de iniciá-la a câmera vai se aproximando da personagem e logo após os flashs desses planos que surgem rapidamente temos um close da personagem. Alguns minutos depois, Paul pergunta para a esposa o que fizeram antes de ele chegar, se o produtor a abordou, ela responde vagamente, a música recomeça. Paul diz que vai lavar as mãos, se retira, e há uma nova sequência de flashs não diegéticos: Camille anda só pelo jardim de Prokosch; flashback de Camille ao lado do carro do produtor; flashback de Paul e Prokosch no jardim; flashback de Camille e Prokosch que andavam pelo jardim quando Paul chegou; flashback de Paul chegando na Cinecittà e encontrando Francesca - essa última cena não presenciada por Camille. Dessa vez, ao fim da sequência não voltamos para Camille no jardim, temos, ao contrário, uma cena interna onde Paul e Francesca conversam na casa do produtor. Acreditamos, portanto, que trata-se de uma exposição do narrador, e não da consciência de Camille, marcada pela presença da música, de uma cena que não poderiam ter sido vista pela personagem e pela produção do sentido da separação do casal através do personagem Prokosch. A temática da separação conduzindo a narração se torna ainda mais evidente na sequência do apartamento. Quando Paul e Camille saem da casa de Prokosch, em direção à casa deles, há uma imagem da estátua que nos foi apresentada no copião da Odisseia de Lang como Minerva, a protetora de Ulisses. Ou seja, assim como Netuno-inimigo de Ulisses, tinha conduzindo o casal à casa de Prokosch, agora Minerva-protetora de Ulisses e, portanto, de Paul no paralelo entre as histórias, conduziria o casal de volta a seu lar. Porém, a união dos personagens não é mais possível e isso fica evidente não só nos diálogos que ocorrem no apartamento, mas principalmente através da mise-en-scène, enquadramentos e movimentos de câmera. Paul e Camille passam aproximadamente meia hora de O desprezo circulando em seu apartamento, ou seja, quase um terço do filme todo. Os longos planos sequência que registram casal mesmo em seu espaço íntimo.
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sua movimentação se constroem através de recursos cinematográficos que reforçam a separação do
Vejamos mais detalhadamente como isso ocorre. Paul e Camille entram no apartamento, a parede que divide o espaço interno do externo traça uma divisão da tela ao meio. Camille vai para a metade direita, comenta sobre as cortinas, enquanto Paul fica na metade esquerda da tela. Camille entra na cozinha, só então Paul passa para onde estava sua esposa. Há um movimento de câmera e uma nova divisão da tela agora pela parede que separa a cozinha da sala e que mantém a separação do casal quando Camille sai da cozinha. Em seguida, Paul passa pela esposa e a câmera o acompanha pelo corredor, onde ficamos quando ele entra no escritório. Observamos que o apartamento do casal encontra-se em reforma, assim como a Cinecittà. Há buracos na parede, latas de tinta, molduras de portas não colocadas. A porta que leva ao escritório é praticamente apenas uma dessas molduras, é possível adentrar o ambiente abrindo a porta, ou simplesmente pulando-a. Essa reforma do apartamento o torna similar a um estúdio de cinema, em mais uma revelação do filme como artifício. Quando Paul sai do escritório, volta a cruzar com a esposa na sala, mas logo em seguida eles também voltam a se separar na imagem pela parede da cozinha. Camille pega o livro, que marca a presença de Prokosch no apartamento do casal, e que traz imagens que sugerem cenas sexuais. Ela passa pela sala de estar onde Paul está sentado no sofá, deixa o livro sobre a mesa e segue para o corredor. Agora é a parede deste corredor que divide a tela e separa o casal. Quando Paul vai até o corredor, a esposa sai de quadro em direção ao quarto. Temos um corte, a vemos no quarto experimentando uma peruca. Paul entra, Camille se esconde atrás da porta, novo objeto responsável pela divisão da tela e separação do casal. Paul vai para o banheiro e pergunta se a esposa quer ir a Capri. A menção que faz referência a Prokosch é acompanhada da música tema do filme. Mais tarde, Camille parece momentaneamente fazer as pazes com o marido, diz que ainda o ama, mas tudo se transforma após a ligação de Prokosch, quando Paul confirma a ida a Capri. Percebendo uma nova mudança na esposa, Paul tenta uma nova conversa, incitando-a a confessar sua mentira, ela não o ama mais e ele quer saber o motivo. No diálogo os dois estão sentados um de frente para o outro, mas um grande abajur sobre a mesa de centro os separa. A câmera deixa clara a separação pois faz um lento vai e vem entre um e outro, passando sempre pelo “longo” abajur.
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O desprezo e a Odisseia Vimos como a construção dos planos sequência do filme produz a própria separação do casal. Isso ocorre através da combinação de imagem e som, mas também através da reflexividade entre a história de O desprezo e a história da Odisseia - como esta aparece na discussão sobre a adaptação. O paralelo com a Odisseia se torna definitivo na terça parte do filme, em Capri. A sequência do apartamento termina com Camille declarando seu desprezo por Paul e, portanto, assumindo definitivamente a existência de um problema entre o casal. Ela sai de casa e ele vai atrás levando um revolver. Paul, Camille, Lang, Prokosch e Francesca, vão a uma apresentação teatral, durante a qual conversam sobre a Odisseia. Paul expõe uma teoria: Ulisses teria partido para a guerra de Troia por estar cansado de Penélope e também por isso demoraria pra voltar, mesmo acabada a guerra. Lang pergunta pra Camille se ela acha que essa ideia é de Paul mesmo ou de Prokosch, ela se mostra indiferente. Em Capri, fica claro que Paul está adotando uma hipótese que na verdade é do produtor. Na primeira sequência na ilha, Paul declara para Camille que concorda com o produtor: “a Odisseia é a história de um homem que ama sua esposa, mas ela não o ama”. Camille discorda. Os dois são interrompidos pelo próprio Godard, no papel de um assistente de filmagem, que avisa que eles precisam sair, pois estão na tomada que está sendo gravada. Logo depois, Prokosch chama Camille para ir à vila com ele enquanto Paul ficaria conversando com Lang. Repete-se algo parecido quando Paul falou para Camille ir no carro do produtor, agora ele insiste para que ela vá no barco com ele. Camille segue olhando fixamente para o marido. Mais uma vez, a música e um plano da estátua de Netuno marcam a separação do casal. Na conversa com Paul, Lang diz que Prokosch é um ditador e que ele considera uma estupidez transformar o personagem de Ulisses em um homem moderno e neurótico. Paul diz concordar com a ideia do produtor, Ulisses não teria voltado logo para Ítaca por já estar infeliz com Penélope antes da guerra. Na versão de Paul, no começo Ulisses teria dito à Penélope para aceitar os presentes dos pretendentes, pois não os via como grandes rivais, e não queria provocar um escândalo expulsandoos; sabendo que Penélope seria fiel, teria dito para ela ser gentil com os pretendentes. Mas então, foi matar os pretendentes.
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Penélope teria começado a desprezá-lo e a única forma que Ulisses encontrou pra recuperar seu amor
Lang responde a Paul que a morte não é solução. Essa afirmação já tinha sido pronunciada no momento em que Camille está na banheira lendo um livro que traz Lang na capa. Assumindo que Paul vê um paralelo entre o seu dilema e o de Ulisses, podemos dizer que ele acaba seguindo as palavras de Lang, já que, apesar de levar o revolver a Capri, não chega a matar o pretendente. Após confirmar-se a infidelidade de Camille (Paul é testemunha do beijo dela e Prokosch), o roteirista decide não aceitar o trabalho oferecido pelo produtor. Por um lado, isso poderia nos indicar que ele assume que Camille não o ama mais, portanto não precisa mais do dinheiro para pagar o apartamento - argumento pronunciado por Paul em diversos momentos para responder o motivo pelo qual aceitaria o trabalho. Por outro lado, a decisão de Paul pode ser uma última tentativa de reconquistar sua mulher, opondose ao pretendente americano. Depois da discussão entre Paul e Prokosch, Camille vai tomar sol na cobertura da mansão. Paul vai atrás dela, após subir as escadas, há um muro que o separa da mulher. Ela está nua, exposta, não mais em um ambiente confinado como na primeira sequência do filme. O clima entre o casal também é completamente diferente, não há mais aquela atmosfera de doçura e cumplicidade, mas sim um sentimento de indiferença (da parte de Camille) e ruptura. Paul diz que parece que ele a observa como se fosse a primeira vez, o que gera um duplo sentido: primeira vez porque o sentimento permanece o mesmo ou porque é como se ele já não a conhecesse mais? Como tantos outros diálogos do filme, ficamos com a dúvida. Paul senta-se ao lado da mulher, mas o diálogo entre eles ocorre agora através do plano e contra-plano. Embora seja um recurso muito utilizado no cinema clássico, o plano e contra-plano quase não é utilizado em O desprezo. Dessa forma, quando ele aparece aqui, no final do filme, acreditamos que há um sentido, o distanciamento entre o casal foi se produzindo de forma que já não há mais uma barreira separando-os no mesmo plano, agora eles já não podem ocupar um plano único. Paul diz que Camille deve decidir se ele faz ou não o roteiro. Ela responde que assim ele poderia culpála em caso de arrependimento, mas acaba dando a opinião de que, já que assinou o contrato, ele deveria fazer o trabalho. Camille levanta e sai andando, Paul vai atrás questionando-a, mais uma vez, sobre o motivo de seu desprezo, chegando até a ser violento ao tentar segurá-la enquanto descem as escadas. Camille diz que quer manter o apartamento e não voltar para o emprego de datilógrafa. Eles sentam, parece que não há mais para onde ir. Camille acaba confessando que continuaria a desprezar o marido mesmo que ele desistisse do trabalho, pois ele “não é um homem”, “é tarde demais” e ela Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.162-177, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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continuam descendo até uma longa escadaria mais estreita que a da mansão. Ao final desta, eles se
mudou sua visão sobre ele. Paul diz que sabe que ela o despreza porque ele falou para ela seguir com Prokosch no carro e depois no barco. Camille diz apenas que nunca o perdoará, que amava-o muito, mas agora o detesta. Ela levanta-se e a câmera a acompanha, mostrando que ainda havia mais um lance de escadas, ao final do qual há apenas uma pequena plataforma e o mar. Camille sai de quadro, joga o roupão, e pula nua no mar, único jeito de livrar-se do marido. Paul acaba dormindo e não sabemos quanto tempo se passou quando ele acorda. A imagem de seu despertar é acompanha da voz off de Camille na carta que deixou para ele, dizendo que pegou uma carona com Prokosch até Roma, onde viveria sozinha no hotel e voltaria a ser datilógrafa. Apesar de Camille partir no carro de Prokosch, portanto, como vemos na cena seguinte, a declaração é a de que ela escolhe a liberdade de viver sozinha. Ainda que tenha expressado o filme todo que não queria voltar a trabalhar com a datilografia é isso que ela deixa escrito na carta e que afirma que fará no diálogo com Prokosch. Sua decisão não se concretiza já que os dois acabam morrendo num acidente de carro. O desfecho trás a derradeira separação do casal, prenunciada durante toda a narrativa. Ainda que o filme seja, formalmente, considerado um dos menos ousados de Godard, já que há uma linearidade na narrativa, predomina a câmera fixa e os planos médios, quase como um teatro filmado, essa estrutura permite ao realizador dar uma densidade a um conteúdo já carregado de toda uma problemática. O trabalho com a mise-en-scène, os movimentos de câmera dentro dos planos sequência e a trilha sonora pontuam a todo tempo o drama da separação. Esse conflito pessoal está imbricado com uma outra questão, a do próprio fazer cinematográfico.
Conclusão O tratamento dado à questão pessoal de Paul favorece a reflexão sobre o próprio cinema. O espectador não é levado ao envolvimento ou à identificação com os personagens, pelo contrário, mantém-se distante. Em relação ao problema do casal, não há qualquer tentativa de explicação psicológica ou de penetração no interior desses sujeitos. O que temos são diálogos vagos, desejos não expressos diretamente, oscilações de discursos, acompanhados mais por um vai e vem da câmera do flashforwards e na explicitação da separação como destino trágico do casal.
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que por planos e contra-planos ou closes. O narrador do filme revela sua presença nos flashbacks,
Em relação à discussão cinematográfica, fica clara a divisão de duas forças, representadas pelo produtor Prokosch e pelo diretor Lang, entre as quais Paul não consegue se posicionar incisivamente. No tratamento dessa questão há sempre a revelação do filme enquanto tal na exposição das cenas de Odisseia que estariam “por trás das câmeras” e também no paralelo entre o enredo desta obra e o de O desprezo. Na Odisseia, Ulisses e Penélope ficam geograficamente separados por um longo tempo. Em O desprezo, Paul e Camille podem estar no mesmo local, mas os recursos fílmicos os mantém distantes. Na história de separação do casal é Camille quem começa a se afastar e também quem toma a decisão final. Paul é passivo, neurótico, incapaz de chegar a uma resolução. Em sua vida profissional, o roteirista aceita o cheque e as ideias do produtor, só se posiciona no final do filme, mas ainda de maneira hesitante. Em sua vida pessoal, Paul também não consegue resolver seus problemas, tem dificuldades até em chegar ao ponto crucial do conflito entre ele e a mulher. Nesse sentido, os personagens se distanciam do que Mulvey afirma sobre a representação de gênero do cinema clássico, onde o homem é o ser ativo e dominante, em oposição à mulher como ser passivo e contemplativo. Por outro lado, como afirmamos, Camille é apresentada como objeto de contemplação não só aos personagens masculinos do filme, mas também ao espectador, principalmente através da exposição de seu corpo. Como o filme não nos fornece certeza das motivações psicológicas dos personagens, ficamos na dúvida: Paul usaria a mulher como objeto na negociação com Prokosch? Se é o produtor quem o convida e quem insiste para que ele realize o trabalho por que Paul precisaria “oferecer” sua mulher em troca para fechar o negócio? Além disso, se Paul aceita o trabalho só por amor à mulher (para pagar o apartamento) seria contraditório que ele a cedesse ao produtor na negociação. E se Paul não visse a mulher como um objeto, mas sim como um ser livre para tomar suas decisões e confiasse que ela passasse momentos a sós com o produtor sem que o traísse? Nesse caso, Camille que estaria presa à estrutura do patriarcado, esperando que seu marido a protegesse privando-a do contato mais direto com outros homens. Seria essa a atitude de homem que ela esperava de Paul? Por que, afinal, ela o despreza e por que ela não declara os seus motivos? O filme é uma obra aberta passível de diferentes interpretações e que também expõe algumas contradições referentes a uma época que começava a repensar o papel da mulher na sociedade. As diretamente à questão de gênero. A mulher adquire maior liberdade sobre seu próprio corpo, mas não deixa de ser socialmente imaginada como objeto de desejo. A própria possibilidade da separação de Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.162-177, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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décadas de 1950 e 1960 são marcadas por mudanças econômicas, políticas e jurídicas que concernem
um casal, e por decisão da esposa, é um tema de discussão daquela sociedade levado para a estrutura do filme.
Ficha técnica do filme Título: O desprezo (Le mépris) Direção: Jean-Luc Godard Produtores: Georges de Beauregard, Joseph E. Levine, Carlo Ponti Co produção Rome-Paris Films (França), Les Films Concordia (França), Compagnia Cinematografica Champion (Itália) Local de Produção: França e Itália. Data: 1963
Bibliografia COUTINHO, Mário Alvez. Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. GOLDMANN, Annie. Cinéma et société moderne: le cinéma de 1958 à 1968: Godard, Antonioni, Resnais, Robbe-Grille. Paris: Anthropos, 1971. MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Tradução: Eloísa Araújo Ribeiro e Juliana Araújo. Campinas: Papirus, 2011. MARY, Philippe. La Nouvelle Vague et le cinéma d’auteur: socio-analyse d’une révolution artistique. Paris: Les Éditions du Seuil, 2006. MOURLET, Michel. “Sur un art ignoré”. Cahiers du cinéma 98, Aout 1959, p. 34. Citado in: COUTINHO, Mário Alvez. Escrever com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard. Belo Horizonte: Crisálida, 2010, p. 250. MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal, 1983. STAM, Robert. Reflexivity in film and literature: from Don Quixote to Jean-Luc Godard. New York: Columbia University Press, 1992. XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo, Cosac Naify, 2014 (2ª ed). ______________. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e terra, 1984, 2ª ed. Artigo recebido em: 29/04/2016
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Artigo aprovado em: 12/05/2016
EM DEFESA DO NACIONAL-POPULAR:
O papel da voz over no documentário Partido Alto (1976/1982), de Leon Hirszman Mariana Rosell* RESUMO: O presente artigo pretende analisar o curta documentário Partido Alto, dirigido por Leon Hirszman e realizado com a colaboração do cantor e compositor Paulinho da Viola e financiamento do MEC e da Embrafilme entre os anos de 1976 e 1982. Enfocamos nossa análise nas estratégias formais utilizadas pelos realizadores, especialmente a voz over, e identificamos que tais recursos contribuíram para que o discurso fílmico estivesse em consonância com o projeto político do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do qual o cineasta sempre esteve bastante próximo. PALAVRAS-CHAVE: Voz over; Nacional-popular; Leon Hirszman.
IN DEFENSE OF THE NATIONAL-POPULAR: THE ROLE OF VOICE OVER IN THE DOCUMENTARY PARTIDO ALTO (1976/1982), BY LEON HIRSZMAN ABSTRACT: This article aims to analyse the short documentary Partido Alto, directed by Leon Hirszman and made with the collaboration of the composer and singer Paulinho da Viola, MEC and Embrafilme funding between the years of 1976 and 1982. We focus our analysis on the formal strategies used by the filmmakers, especially voice-over, and identify that these resources contributed so that the film discourse was in line with the political project of the Brazilian Communist Party (PCB), which the filmmaker has always been quite close. KEYWORDS: Voice-over; National-popular; Leon Hirszman. ***
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Mestranda em História Social (PPG-FFLCH-USP), sob orientação do Professor Marcos Napolitano e com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: mariana.rosell@usp.br. *
A resistência ao regime militar e o frentismo cultural
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urante todo o regime militar as artes tiveram um papel de grande importância na resistência ao governo autoritário, configurando-se já nos primeiros momentos após o golpe, o conceito de resistência cultural, pautado especialmente pelo papel
central da atuação dos intelectuais e pela capacidade de unir em torno de si agentes de diferentes ideologias em nome da luta contra o regime e da defesa da democracia. Em sua tese de livre-docência, Marcos Napolitano dedicou um capítulo para o estudo do conceito da resistência cultural enquanto categoria histórica. Nele, o autor destaca a noção frentista própria da natureza do conceito, forjado, especialmente, pelos liberais Carlos Heitor Cony e Alceu Amoroso Lima em suas colunas em jornais de grande circulação, mas endossado também pelos comunistas, e afirma que esses dois pensadores cristalizaram a imagem que resistir ao regime militar e seus atos arbitrários era um imperativo ético e um exercício de livre pensamento crítico, para além de qualquer partidarismo ou imposição ideológica. Essa definição do espaço cultural e seu papel histórico se plasmaram na própria natureza de ‘resistência cultural’ como categoria histórica.1
Mas, para além disso, a ideia de resistência cultural no Brasil também está imbricada com o projeto nacional-popular e a crise pela qual ele passou ao ser combatido pelos militares e questionado pela oposição ao regime. Sendo assim, além da defesa da união de diferentes setores ideológicos, parte da resistência cultural2 – leia-se a ala liberal e os comunistas ligados ao PCB – defendia também a união entre as classes populares e a classe média progressista, a fim de derrubar o regime militar, restabelecer a democracia e, sobretudo para os comunistas, recuperar projetos que favorecessem os “de baixo”3. Mesmo com as duras críticas sofridas pelo nacional-popular e seus principais fiadores, os comunistas, Napolitano aponta que Se nos dois anos que se seguiram ao golpe a perspectiva nacional-popular era hegemônica como lastro criativo da arte de esquerda, o debate, entre 1967 e 1968, acabou por conduzir NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar. Tese de Livre Docência em História do Brasil Independente, Universidade de São Paulo, 2011, p. 53. 2 Sobre os diferentes grupos que constituíram na resistência cultural, cf. Idem, ibidem, pp. 11-15. 3 Esse projeto político não surgiu após o golpe de 1964, mas forjou-se no final da década de 1950, mais especificamente em 1958, quando o PCB abandonou a política de enfrentamento em nome de maior inserção no campo político e da defesa da chamada “questão democrática”. Assim, no campo da resistência cultural ao regime militar, esse projeto foi defendido sobretudo por artistas e intelectuais ligados ao Partido Comunista Brasileiro e seria tão importante quanto criticado ao longo dos 21 anos de vigência do governo autoritário. 1
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à sua revisão crítica. Ainda assim, o nacional-popular estaria presente ao longo dos anos 1970, como um mote para o frentismo cultural de amplos setores da esquerda.4
Assim, nos anos 1970, período em que o documentário de Hirszman foi produzido, o nacionalpopular ainda tinha importância dentro do campo da resistência cultural e disputava espaço com outros projetos artístico-culturais. E, especialmente em 1973 e 1979, período que abrange a derrota definitiva da luta armada e o esvaziamento político do projeto frentista, ganhou novo fôlego e forneceu as bases político-ideológicas para muitas das obras artísticas paradigmáticas do período, especialmente aquelas produzidas dentro do campo das três artes de espetáculo: o cinema, o teatro e a música popular. Dentre as principais questões que nortearam não só os críticos do nacional-popular como também a reavaliação que os artistas fiadores desse projeto buscaram fazer ao longo dos anos 1970, podemos apontar aquelas relacionadas ao público ideal da arte engajada e qual a linguagem mais adequada para estabelecer uma comunicação com esse público. Ao longo deste artigo, veremos como Leon Hirszman buscou dialogar com essas questões a partir da análise de Partido Alto.
A trajetória política e artística de Leon Hirszman Leon Hirszman esteve desde muito jovem filiado ao Partido Comunista Brasileiro e pode-se afirmar uma recíproca importância de um para a trajetória do outro. Da mesma forma que as discussões do partido foram fundamentais para a formação da consciência sócio-política do cineasta, também a obra deste foi importante para o projeto político do partido, posto em debate e em circulação através dos filmes de Hirszman. Rodrigo Patto Sá Motta aponta essa relação de dupla troca característica da adesão de artistas ao comunismo no mundo como um todo, afirmando que a categoria social dos artistas e intelectuais tinha importância especial para as organizações partidárias, pois ajudava a produzir imagens, discursos, ideias e a disseminá-las entre a população, inclusive graças ao seu prestígio social. [...] [Em contrapartida, alguns desses artistas] aproveitaram a máquina cultural dos partidos (editoras, jornais, prêmios) para divulgar melhor a sua obra.5
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NAPOLITANO, op. cit., pp. 42-43. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A cultura política comunista. Alguns apontamentos. In: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 29. 4
Além disso, não é difícil perceber que os filmes de Hirszman expressam componentes da agenda política pecebista ao longo das décadas em que ele esteve atuante, colocando em pauta, inclusive, as continuidades e rupturas que marcaram a atuação comunista no período do regime militar6. No caso de Partido Alto, como veremos mais detalhadamente no decorrer deste artigo, aparecem temas como a valorização do popular enquanto sujeito e de sua cultura como expressão do nacional, além de uma proposta de diálogo entre as classes sociais, entre outros. Ademais, até o final da década de 1970, no caso específico do Brasil, o esvaziamento político do PCB seria compensado pela forte presença de intelectuais e artistas em seus quadros. Segundo Napolitano, Em certo sentido, os artistas comunistas e seus compagnons de route foram bem sucedidos na defesa dos valores do nacional-popular, a aliança de classes pela democracia, na denúncia do autoritarismo e das mazelas do regime, sem falar na política de ocupação de espaços, mesmo enfrentando um duro debate na área cultural.7
Ou seja, os artistas ligados ao partido, por filiação ou afinidade, foram fundamentais para que o projeto pecebista se mantivesse em debate a despeito de sua perda de espaço no jogo político estrito. Nessa conjuntura, como apontou Reinaldo Cardenuto, Hirszman e outros artistas comunistas de sua geração entendiam que sua arte deveria ser uma ferramenta de transformação social e adotaram “como ponto de partida um nacionalismo combativo, em boa parte oriundo da esquerda pecebista, a partir do qual poderia se originar uma recusa do processo de colonização cultural, acusado de nos alienar das tradições e dos problemas brasileiros”8. Daí, por exemplo, a “busca por revelar o povo” que o pesquisador Arthur Autran identifica no filme aqui analisado.9 Além da própria relação com o partido, a ligação de Hirszman com o Teatro de Arena de São Paulo em seu período de virada politizadora, tendo participado dos Seminários de Dramaturgia e das peças Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, e Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, também foi fundamental para sua formação enquanto artista. No Seminário de Dramaturgia foram discutidos vários temas fundamentais para a conformação da resistência cultural ao regime militar e para
Para uma análise da obra de Leon Hirszman, cf. CARDENUTO, Reinaldo. O cinema político de Leon Hirszman (1976-1981): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro. Tese de doutorado, ECA/USP. São Paulo, 2014 7 NAPOLITANO, p. cit., p. 30. 8 Idem, p. 42. 9 AUTRAN, Arthur. Leon Hirszman: em busca de diálogo. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org.). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004, p. 214. 6
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a linha dramatúrgica que Hirszman empregaria em sua obra. Além disso, os longos e amplos debates entre os integrantes do Seminário foram importantes para lançar as bases de um teatro nacional que buscou articular a emoção e a conscientização. Essa equação, importante para o teatro, também esteve muito presente nos filmes de Hirszman, denotando mais uma herança desse período na filmografia do cineasta. Entre outras inovações o Seminário promoveria também uma nova maneira de escrita dramatúrgica, a coletiva, da qual importantes peças surgiriam nos anos seguintes. Como apontou Autran, “A grande novidade estava na forma compartilhada com que o dramaturgo concebia seu texto, em meio a debates políticos, estéticos e artísticos.”10 Esse é outro ponto do Seminário relevante pra a obra de Hirszman e especialmente para o filme aqui analisado: o trabalho coletivo. Como veremos, Partido Alto foi desenvolvido a partir de uma realização colaborativa, muito similar ao que se propunha no Seminário do Arena. A vivência no Seminário de Dramaturgia e a relação com dramaturgos com os quais Hirszman dialogaria durante toda a carreira se aprofundaria ainda mais no período em que o cineasta carioca integrou o Centro Popular de Cultura (CPC), onde iniciaria sua atuação como cineasta ao rodar o curta Pedreira de São Diogo, integrante do longa Cinco Vezes Favela, produzido pelo CPC, e cuja afinidade com o projeto nacional-popular é bastante nítida.
Paulinho da Viola e o resgate do samba tradicional O diálogo de Paulinho da Viola com os sambistas da Portela é marcante em sua trajetória artística, bem como o convívio intenso do cantor e compositor com a Velha Guarda da escola de samba alvianil carioca, iniciado ainda no ano de 1964. Outro ponto importante de sua carreira é a preocupação com o registro dos sambas de roda feitos por esses compositores, que corriam o risco de se perderem no tempo por não terem sido gravados. Em função disso, é muito importante destacar que Paulinho será responsável por trazer para outro suporte artístico, o disco, esse universo do samba autêntico. Pouco tempo após seu primeiro contato com a Portela, ele começará a tomar parte de projetos de registro dos sambas da velha guarda, não só da Portela, mas também de outras escolas de samba tradicionais, dos artistas esquecidos e/ou ignorados pelo incipiente mercado fonográfico brasileiro. Em
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AUTRAN, Paula. Teoria e prática do seminário de dramaturgia do teatro de Arena. São Paulo: Portal Editora, 2015, p. 11. 10
discos como o registro do musical teatral Rosa de Ouro Volume 1, de 1965, e Rosa de Ouro Volume 2, de 1967, além de Roda de samba – Conjunto A Voz do Morro, Roda de samba 2 e Os sambistas – Conjunto A Voz do Morro de 1965, 1966 e 1968, respectivamente, buscava-se registrar em disco as canções de sambistas já consagrados no mundo das rodas de samba e das escolas, mas ainda desconhecidos do grande público. Nos anos 1970 ele seguiria com esse projeto, e, em 1976, ano do início da realização do filme de Hirszman, Paulinho da Viola lançaria um álbum duplo bastante significativo no tocante à relação de seu cantor com o samba considerado tradicional. Como aponta texto sobre o disco constante do site do artista, No [disco] Cantando, Paulinho vai busca nas lembranças musicais da infância, nas reuniões em cada de seu pai ou nas de amigos, todos ligados à música muito mais carioca que brasileira de modo geral, a matéria-prima para a produção de um disco sensível, onde a influência de velhos compositores fica patente na sua formação artística, quer na maneira de criar como na de escolher o que regrava, o que representar [sic] as gerações provadas de informação de sua própria cultura musical.11
Entre as canções dos discos, constavam parcerias de Paulinho com sambistas tradicionais bem como composições desses sambistas, sendo que algumas delas eram sambas de partido alto. Mais recentemente, em 2008, participou do documentário de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor, produzido por Marisa Monte, O Mistério do Samba, que retrata e, novamente, registra o cotidiano, a convivência e o trabalho musical dos integrantes e sambistas da Portela, reeditando a preocupação de garantir que seus sambas não se percam no futuro. Tais marcos da trajetória artística de Paulinho da Viola nos mostram como a relação do cantor e compositor com os sambistas da velha guarda da Portela é orgânica, constatação fundamental para o argumento que se desenvolverá ao longo deste artigo.
Partido Alto: estratégias do realizador Em Partido Alto, temos como mote principal do filme a defesa do samba considerado tradicional em oposição ao samba que cada vez mais era padronizado de acordo com os parâmetros do mercado e da indústria fonográfica, que se desenvolvia no Brasil desde o início dos anos 1960. Isso demonstra a
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Comentário sobre o disco duplo Memórias (1976). Disponível em: <http://www.paulinhodaviola.com.br/portugues/discografia/disco.asp?cod=15&tipo=2> [Acesso em 19.abr.2016] 11
preocupação de Hirszman em reiterar o valor que esse nicho da cultura popular tinha no âmbito cultural brasileiro mais amplo bem como defende-la e salvaguarda-la – pelo menos na memória – em um contexto de ameaça de extinção. Para atingir seus objetivos, Leon Hirszman fez escolhas específicas que, como veremos, foram eficazes em promover o projeto do cineasta. Tais escolhas são de ordem de conteúdo, como o tema do samba que, para ele, “era uma expressão que continha em sua essência um sentimento de comunidade”12, mas também de ordem formal, como se pode observar com nitidez em vários momentos do filme. A seguir discorreremos sobre essas escolhas estratégicas e apontaremos como elas foram fundamentais para que o documentário se realizasse de acordo com a visão de mundo que norteava a atuação do cineasta. A escolha específica do partido alto como tema e título é fundamental, uma vez que esta variação do samba é tida pelos artistas entrevistados como sua “expressão [mais] autêntica”13, como nos dirá Mestre Candeia logo no princípio do documentário. Assim, além de registrar um gênero musical já considerado popular, Hirszman ainda optou por filmar sua variação mais “de raiz”, mais intocada pelas transformações exigidas pelo mercado fonográfico. Além disso, as cenas são todas gravadas em rodas de samba, que nos sugerem a comunhão e a espontaneidade desses eventos, que não estariam, portanto, inseridos na lógica do mercado e reforçam ainda mais a noção de que o samba tem o coletivo latente em sua natureza. Segundo Walter Benjamin, a autenticidade da obra de arte consiste na “sua existência única, no lugar em que ela se encontra. [...] O aqui e o agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade...”14. Parece, portanto, que a autenticidade do samba de partido alto também está ligada ao improviso que o caracteriza e faz de cada canção uma obra única, fruto do ambiente e do momento em que ela foi “composta”, quase sempre de maneira coletiva e comunitária. Ainda segundo o pensador alemão, essa autenticidade é perdida através da reprodutibilidade técnica, especialmente, mas não só, das obras de arte. Ou seja, a inserção do samba de partido alto, no caso, na lógica da indústria cultural, seu registro em discos ou sua adaptação aos grandes espetáculos lhe
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AUTRAN, op. cit., p. 124. Cf. 1’39”-1’45”. 14 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Idem. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume 1. Tradução de Sergio Paulo Rouante. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 167. 12
tiram a aura15 e “abalam a tradição” ao liquidar “o valor tradicional do patrimônio da cultura.”16 De certa forma então, o filme se propõe a defender a tradição popular do samba de partido alto, que se perde ao ser absorvida e alterada pelo mercado fonográfico. Durante a apresentação dos créditos iniciais, são mostradas fotos antigas de sambistas, de uma velha guarda e rodas de samba. O uso de documentos, recurso comum a documentários, é o primeiro elemento fílmico que buscará legitimar o samba como tradição nacional e, mais especificamente, o partido alto, feito em roda, com uma perspectiva de coletivo, como expressão “pura” e legítima do povo brasileiro. Segundo Marcos Napolitano, “A partir dos anos 1930, o samba deixou de ser apenas um evento da cultura popular afro-brasileira ou um gênero musical entre outros e passou a ‘significar’ a própria ideia de brasilidade.”17. Tal metáfora ainda estava vigente no período em que se realizou o documentário e havia tomado uma dimensão ainda mais significativa durante o regime militar. Sendo assim, ao defender a expressão autêntica do samba, Leon Hirszman e Paulinho da Viola defendiam também a expressão autêntica da própria brasilidade. Para além disso, o clima de comunidade trazido para o filme a partir da escolha do samba e do uso específico da câmera remete o espectador à noção de unidade e comunidade, o que reitera a proposta frentista do Partido Comunista Brasileiro e, por extensão e militância, de Leon Hirszman também. Ismail Xavier aponta que a relação entre o Cinema Novo – movimento do qual Leon Hirszman fez parte – e as tradições populares foi ambígua, sendo marcada tanto pela ideia de que aspectos culturais como religião e futebol se constituíam em formas de alienação, quanto pela concepção de que era preciso “zelar” por elas, sobretudo em face de um processo de modernização conservadora18. Ainda que esse filme não possa ser considerado como parte do movimento, uma vez que começou a ser feito apenas em 1976, não se pode ignorar as referências e preocupações que o cineasta trouxe consigo ao longo de
Neste texto utilizamos o conceito de aura também de Walter Benjamin, segundo o qual a aura é “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.” Tratase de uma figura única que não perdura no tempo e no espaço, ao contrário, se modifica com eles. É aquilo que se perde nas reproduções das obras de arte, as marcas específicas da passagem do tempo e das modificações do espaço. Cf. Idem, ibidem, p. 170. 16 Idem, ibidem, p. 169. 17 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias. A questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 23. 15
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 21-22.
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sua atuação artística e, de certa forma, se manifestam em suas produções posteriores ao auge do movimento. Portanto, há uma preocupação do realizador em proteger o partido alto. E a defesa dessa tradição popular é feita no documentário através das vozes dos próprios sambistas, garantindo a expressão do popular por eles mesmos, dando-lhes voz. Com uma construção fílmica didática, as falas são montadas para ensinar ao espectador o que é o partido alto, o “samba de verdade” que estava se perdendo naquele momento. Da mesma forma que essa variação do samba é tida como autêntica, também os sambistas filmados são assim considerados e serão como professores para o espectador, investidos de legitimidade pela própria vivência no ambiente das rodas de samba, sendo, então, as pessoas mais indicadas para tratarem do assunto. É esse aspecto que também legitimará a locução e a intervenção de Paulinho da Viola na estrutura fílmica e fará de sua voz over elemento potencializador do discurso do filme. Mais adiante esmiuçaremos esse ponto. São esses sambistas autênticos que nos dirão sobre o samba, suas características e a ameaça que a indústria representa para essa tradição, da qual eles fazem parte. Assim, o filme assume também o papel de fazer um registro histórico dessa cultura e desses artistas populares, ambos ameaçados de esquecimento e abandono pela modernização e pela industrialização da cultura, evitando que essa tradição se perdesse com o passar do tempo. Estavam, portanto, ainda atuando em consonância com a perspectiva de registro histórico identificada por Ismail Xavier no movimento cinemanovista. Segundo Reinaldo Cardenuto, Devido à preocupação em se comunicar com um público amplo, pressuposto de seu engajamento no campo cultural, Hirszman procurou pesquisar em seus documentários uma experiência estética que se situasse no encontro entre técnicas didáticas de exposição e artifícios provenientes do “cinema direto”.19
Tal pesquisa se realiza de maneira bastante concreta em Partido Alto. Como já apontou Arthur Autran, a forma fílmica desse documentário busca traduzir o tema representado através do “esforço de improvisação”, uma vez que o próprio samba de partido alto é marcado pelo improviso20. Tal relação não requer prévio conhecimento dos espectadores, pois seremos informados dessa característica por CARDENUTO, Reinaldo, op. cit, p. 46. Arthur, op. cit., p. 214.
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Mestre Candeia, que apontará as relações e semelhanças entre o improviso do partido alto e o repente nordestino, que também se realizava de acordo com o ambiente e a situação do momento, sendo os dois marcados por uma espécie de composição coletiva. As técnicas do cinema direto favorecem essa perspectiva, na medida em que “as imagens são aí gravadas sem ‘ensaios’, segundo o princípio da improvisação”21. A ideia das rodas de samba é reforçada pelo uso da câmera, que muitas vezes está no interior da roda e desenvolve movimentos circulares para filmar seus membros. Estes, teoricamente, não estão hierarquizados, uma vez que uma roda é uma disposição espacial que prevê a igualdade entre todos aqueles que a compõem. Contudo, na primeira parte, Mestre Candeia, a quem o filme foi posteriormente dedicado22, estará em destaque, em uma posição que denota maior conhecimento; é o único que fala e está sempre focalizado no centro de um plano conjunto ou em primeiro plano. A maioria das sequências se inicia com Mestre Candeia em primeiro plano e depois o foco da câmera se abre, mostrando a roda de samba na qual ele está inserido e da qual ele é apresentado como o centro não só espacial como também em termos de valor e importância, na qual ele ocupa um espaço de comando. Há um plano-sequência bastante exemplar do papel que o sambista exerce no documentário, no qual ele explica os passos de dança que caracterizavam as rodas de partido alto. A câmera se alterna entre Mestre Candeia, as mulheres e homens que ilustram a explicação desses passos e os movimentos em meia-lua, que lembram o espectador de que ainda se trata de uma roda de samba, apesar dos planos fechados com função didática e a nítida hierarquização de seus membros. Nesse plano-sequência sobre os passos do partido alto, Mestre Candeia chega, inclusive, a dizer quando os homens e mulheres devem parar de dançar. É ele quem decide quando já está suficiente, não os realizadores que estão por trás da câmera. Não só neste momento, fica bastante evidente para quem assiste que quem coordena essas rodas de samba é Mestre Candeia. Com isso, na primeira metade do filme é possível afirmar que há uma elaboração colaborativa entre o sambista homenageado e os realizadores, já que a construção da narrativa se dá tanto pelos comandos e explicações de Mestre Candeia quanto pelo uso da câmera.
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AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p. 81. Mestre Candeia faleceu em 1978. Quando o filme foi lançado, quatro anos depois, Hirszman fez uma homenagem póstuma ao sambista Cf. CARDENUTO, 2009. 21
A voz-over de Paulinho da Viola Na segunda parte, apesar da divisão da fala entre vários sambistas, o papel central é ocupado por Paulinho da Viola através de sua locução em voz over, da inserção de sua imagem no campo e do registro audiovisual das perguntas que ele faz aos demais sambistas. Estas, por sua vez, têm um tom mais de conversa do que de entrevista propriamente dita, já que acontecem num clima que nos sugere horizontalidade entre todos os sambistas presentes, incluindo Paulinho da Viola. A hierarquia, aparentemente inexistente entre eles, é desmontada, contudo, pelo uso da voz over tal como se dá. A relação entre a voz over de Paulinho da Viola e o filme se constrói de maneira bastante sofisticada. Isso porque o pertencimento do sambista ao ambiente representado é marcado por sua trajetória artística, se fazendo presente no filme não só pela naturalidade com que ele se relaciona com os demais sambistas, mas também pelo relato feito na segunda entrada de sua locução: “Quando menino eu via no partido alto uma forma de comunhão entre a gente do samba...”23, que reitera ao espectador que a relação do cantor com esse mundo filmado não é artificial ou construída apenas para a realização do documentário, mas sim, antiga e até mesmo orgânica. Em Cineastas e imagens do povo, Jean-Claude Bernardet opõe a voz do saber “de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico”24 à voz da experiência, que é aquela daqueles que “falam só de suas vivências, nunca generalizam, nunca tiram conclusões.”25. A voz over tradicional é a voz do saber, geralmente de um locutor desconhecido do espectador, ausente da imagem e de fala impessoal. No período em que o documentário foi realizado, já havia uma importante discussão que problematizava o uso (excessivo) da voz over, uma vez que ela poderia servir como forma de silenciar aqueles sobre os quais se falava nos filmes. Especialmente num contexto em que cineastas de classe média pretendiam representar o popular, essa discussão se fazia importante, na medida em que não deixá-los falar por si mesmos representava uma forma concreta de silenciamento. Segundo Luis Alberto Rocha Melo, também por conta disso, há no documentário brasileiro contemporâneo uma recusa em utilizar tal recurso como “base de sua narrativa”26. De fato, no documentário de Hirszman, esse recurso é pouquíssimo utilizado, tendo duração de apenas cerca de um
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Cf. 19’17” – 19’20”. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 17. 25 Idem, ibidem, p. 16. 26 MELO, Luís Alberto Rocha. A voz do filme. Contracampo. Rio de Janeiro, n. 85, 2006, p. 1. 23
décimo do filme27. Não é possível afirmar com certeza que Hirszman tenha se preocupado com essa discussão quando da realização de Partido Alto, ainda que seja provável, já que parte da crítica sofrida pelos projetos nacionais-populares, especialmente no final dos anos 1970 e 198028, estivesse relacionada a um possível autoritarismo por parte dos artistas em relação ao “povo” representado em suas obras de arte e, além disso, o filme tenha sido feito num período em que os artistas comunistas repensavam sua forma de atuação. O fato de conjugar a voz over às conversas-entrevistas com os sambistas e ao destaque de Mestre Candeia na primeira parte do documentário demonstra uma iniciativa no sentido de articular dois recursos característicos do gênero documental – a narração e a entrevista – a fim de compor uma apreensão do real capaz de expressar melhor sua complexidade. Reinaldo Cardenuto afirma que Sem se render em demasia ao uso expositivo do narrador, por vezes limitando a voz over a uma breve aparição no tecido fílmico, como é o caso de Partido alto, o documentarismo de Hirszman também encontrou em técnicas do cinema direto uma forma estética de inscrição e de apreensão do real. Sem abrir mão da entrevista como estratégia para dar voz ao popular em suas manifestações políticas e culturais, o cineasta acionou na maioria de seus filmes uma câmera disposta a observar o tempo presente de modo mais espontâneo...29
Sendo assim, destacam-se nos documentários de Hirszman, de maneira geral, os recursos que permitem ao popular falar por si mesmo e um uso de câmera que valorize a espontaneidade. Ambos estão presentes em Partido Alto. Entretanto, apesar de sua brevidade, a voz over de Paulinho da Viola tem papel fundamental para a consolidação da mensagem do filme e, graças ao seu refinamento, é capaz de realizar sua função de maneira bastante potente. Isso porque, na realidade, a voz over de Partido Alto é uma mescla entre as vozes do saber e da experiência, na medida em que, além do público conhecer e ver quem fala, também sabe que Paulinho da Viola pertence àquele mundo e, portanto, não fala do outro, fala de si e de seus companheiros. Como já vimos, mesmo que não se soubesse que Paulinho da Viola tem uma ligação forte com o samba, a Portela e os sambistas de Partido Alto, tal relação é elucidada pelo próprio filme. Por exemplo, no planosequência em que se dão as três entradas da voz over temos uma roda de samba noturna em que Paulinho da Viola toca cavaquinho e canta com os demais sambistas em pé de igualdade. Em dado momento, a
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As três entradas da voz over juntas somam apenas 58 segundos e a sequência entre o início da primeira entrada e o final da terceira tem duração de apenas 3 minutos. (18’17” – 21’18”). 28 Cf. CHAUÍ, Marilena. O nacional e o popular na cultura brasileira. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1983. 29 CARDENUTO, op. cit., p. 47. 27
câmera o filma no canto do plano conjunto e segue para um sambista que improvisará os seguintes versos: “Eu pertenço à velha guarda/Nem que seja de rabiola/Nosso padrinho é o Paulinho da Viola”30. Apesar disso, sua narração não deixa de exercer uma função característica da voz over que é a de amarrar o discurso fílmico. Ainda que não tenha um tom de autoridade, próximo do texto científico, a locução fala sobre o partido alto e o contexto que o ameaça, criticando o “compromisso” que o samba do período tinha com “o grande espetáculo”, a indústria cultural, e sugerindo que as exigências do mercado fonográfico acabavam por limitar a criatividade dos compositores. Sobre isso, Arthur Autran entende que O texto [da voz over], na primeira pessoa do singular no segundo trecho, tem um caráter bem pessoal e pelo próprio estilo parece mais uma opinião, certamente muito qualificada, do que uma “verdade científica” revelada. Acrescente-se o fato, não enunciado pelo filme mas de conhecimento geral, de Paulinho da Viola ter forte ligação com os sambistas antigos. Ou seja, não é alguém de fora emitindo “verdades” sobre a música popular, mas um artista formado naquele meio.31
Nesse ponto discordamos sutilmente da análise, pois não acreditamos que a locução over feita por Paulinho da Viola seja somente de uma “opinião qualificada”, mas sim uma afirmação resultante de análise mais elaborada, apresentada de maneira informal não por ter menos legitimidade ou relevância, mas sim pela própria relação de vivência de quem faz o diagnóstico – Paulinho da Viola – com a situação analisada – as ameaças ao samba de partido alto –, relação essa apontada por Autran. Como já foi dito, também não coincidimos com a interpretação de que a antiga relação entre Paulinho da Viola e os sambistas que aparecem no filme não esteja enunciada na narrativa, mas sim, está sugerida pelo clima das “entrevistas” e pela voz dos próprios sambistas. Ainda sobre o texto da voz over, apesar de curto, ele consegue dar conta de articular a experiência pessoal de Paulinho da Viola e uma análise crítica da sociedade, como se pode observar pelos exemplos aqui apresentados. Daí que seja possível afirmar que a voz over de Partido Alto seja uma mescla entre a “voz do saber” e a “voz da experiência” conceituadas por Bernardet e que ela foi um dos principais elementos formais da estrutura fílmica que serviu ao projeto nacional-popular.
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Cf. 20’09’’-20’19’’. AUTRAN, Arthur, op. cit., p. 216.
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Considerações finais Por tudo que foi apontado neste artigo, fica nítido que o uso da voz over tal como foi feito nesse filme potencializou sobremaneira a legitimidade de seu discurso, já que sua fala é dotada tanto de conhecimento analítico quanto de experiência pessoal. Como observou Arthur Autran, Através de Paulinho da Viola, cujo trabalho artístico sempre dialogou intensamente com a música produzida nos morros do Rio de Janeiro, a locução funciona como uma forma de ligação bastante coerente entre o objeto do filme – a música popular e seus representantes – e o público alvo – a classe média urbana pouco acostumada com aquela forma de samba.32
Ou seja, a figura de Paulinho da Viola e o texto de sua loução realizam a conexão entre as classes populares e a classe média, que tem nas suas manifestações culturais o elo de ligação entre o popular e o intelectual progressista. Com isso, o filme sugere a possibilidade da aliança de classes a partir do samba, aqui, especificamente, o samba de partido alto. Além disso, reforçava a ideia de comunhão trazida pelas rodas de samba, valorizadas pelo uso da câmera, como já foi apontado. Em consonância com a perspectiva didática que o filme assume, as relações pré-estabelecidas são elucidadas aos espectadores pela própria narrativa. Assim, mesmo que o público não conheça o samba de partido alto, passa a conhece-lo – e, por que não, aprendê-lo? – com o próprio filme. Da mesma forma, mesmo quem não saiba da íntima relação entre Paulinho da Viola e os sambistas que compõe as rodas de samba filmadas, consegue entender que ele faz parte daquele mundo. A ideia de autenticidade do que é retratado dialoga com parte do texto da locução, fazendo uma crítica à indústria cultural e a sua intervenção nas manifestações culturais do “povo”, limitando a sua criatividade, como já vimos, especialmente por necessitar de versos decorados e de certa padronização, retirando do samba de partido alto uma de suas principais características: o improviso. Elemento esse também reforçado pelo uso da câmera e pela “precariedade” das filmagens, pautadas pelas técnicas do cinema direto. Para além do uso peculiar da voz-over, Hirszman também potencializa a legitimidade do discurso fílmico ao dar voz aos outros sambistas, autênticos conhecedores do samba de partido alto porque conhecedores e herdeiros de sua tradição e, portanto, os mais capacitados para falarem sobre o assunto.
32
Idem, ibidem.
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Isso não só pelo recurso às entrevistas, mas, especialmente, pela centralidade que Mestre Candeia ocupa
na primeira parte do filme. Como já vimos, nos primeiros doze minutos e trinta segundos do documentário, os artistas de classe média realizam o filme em conjunto com o sambista, conferindo a ele certo “comando” da situação filmada, ainda que sua atuação dialogue com os propósitos do diretor de promover um didatismo com a película. O desmonte da horizontalidade aparentemente existente nas rodas de samba também se dá de forma sofisticada, seja pelos planos destacados que a câmera usa com Mestre Candeia, seja pela sutileza contundente da locução over de Paulinho da Viola. Se na primeira parte o recurso técnico é, majoritariamente, visual, ou seja, os movimentos da câmera; na segunda, trata-se de um recurso sonoro, a narração, já que Paulinho da Viola não é enquadrado em planos que o destaquem, sejam closes, sejam planos conjuntos em que ele esteja no centro. Muitas vezes, inclusive, ele está no canto ou mesmo fora do quadro. A força de seu discurso se impõe pela fala e por sua história de vida. Tudo o que caracteriza o samba de partido alto, portanto, se mostra inadequado aos moldes da indústria cultural: o improviso, a incapacidade de ser reproduzido, a composição coletiva, o ambiente de comunhão. O samba de partido alto só existe se conservar sua autenticidade e sua aura, e é daí que provém sua ameaça de condenação ao esquecimento e perda com o passar dos anos: a impossibilidade de existir dentro de um contexto tomado pelo mercado fonográfico. Já que o uso primeiro das obras pelo mercado fazem com que elas se afastem seu uso ritual, sua tradição, configurando, portanto, a destruição de sua aura e a quebra de sua autenticidade.33 E diante disso, coube ao cineasta e a Paulinho da Viola exercerem a sua função enquanto intelectuais de registrar e documentar essa manifestação cultural e leva-la ao espaço público de modo a evitar que ela se perdesse no contexto cada vez mais regido pelo mercado fonográfico e seus produtos culturais. Com isso, é possível observar a afinidade entre a atuação artística de Leon Hirszman e o projeto político do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao qual o cineasta foi filiado até o final de sua vida, na medida em que o documentário está pautado não só pela defesa e resguardo da arte do nacional-popular, como também por reafirmar a possibilidade e a necessidade de uma atuação frentista. O filme de Hirszman demonstra a importância da união entre os artistas de classe média e os artistas do “povo” a fim de resistir contra os pressupostos da indústria cultural, cujo desenvolvimento teve grande apoio do regime militar, na medida em que favorecia o projeto de modernização conservadora levado a cabo pelos
33
Cf. BENJAMIN, op. cit., pp. 172-174.
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governos militares.
Além disso, como já vimos, através da adoção de um “nacionalismo combativo”, Partido Alto promove uma defesa efetiva do samba mais autêntico, da brasilidade mais autêntica, do Brasil mais autêntico. Ou seja, um samba livre das intervenções autoritárias do mercado fonográfico e um país livre das intervenções autoritárias dos militares e de estrangeiros, pensamento esse bem característico da mentalidade comunista.
Ficha técnica do filme PARTIDO alto. Direção: Leon Hirszman. Produção: Leon Hirszman. Roteiro: Leon Hirszman, Paulinho da Viola. Som: Ubirajara Castro. Fotografia: Lucio Kodato. Montagem: Alain Fresnot, Luiz Carlos Saldanha. Brasil, 1976/1982. (22 min).
Referências bibliográficas
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NÃO PERGUNTE. NÃO FALE.
Mutismo e homossexualidade em um filme de guerra americano* Flávio Vilas-Bôas Trovão** RESUMO: Em janeiro de 2014 o presidente americano Barack Obama assinou a lei que pôs fim à política de banimento dos homossexuais nas Forças Armadas americanas, sob o codinome Don't Ask, don't tell1, implementada há vinte anos (1994), durante os primeiros anos do governo Bill Clinton. Tal fato representa mais um episódio de conflitos nas relações envolvendo homossexuais e forças militares naquele país. Nessa esteira de reflexão, as imagens sobre a homossexualidade em “O Exército Inútil” (Streamers), filme de Robert Altman lançado em 1983, nos permitem problematizar as situações vividas por homossexuais dentro do exército americano, sobretudo a partir dos anos 1980. Debruçando-nos, também, sobre documentos históricos escritos, como relatos de homossexuais combatentes e documentos oficiais do governo americano, procuramos apontar alguns fatos históricos que possam explicar o significado do banimento da lei em questão. PALAVRAS-CHAVE: homossexualidade; forças armadas; Estados Unidos da América.
DON’T ASK, DON’T TELL. MUTISM AND HOMOSEXUALITY IN AN AMERICAN WAR MOVIE. ABSTRACT: In January 2014, the American president Barack Obama passed a law which put an end to the homosexual banishment policy in the armed forces. Under the code name "Don't Ask, don't tell" this policy was implemented twenty years ago, during the first years of the Clinton government. It represented another conflicting episode in the relationship between homosexuals and the armed forces in that country. Following this reflection, the images about homosexuality in the movie "Streamers" released in 1984 by Robert Altman, allow us to analyze what homosexuals faced in the armed forces, specially from 1980 on. Moreover, with the analysis of historical documents such as reports by homosexual combatants and official American government files, we aim to point out fats that will manage to explain the banishment of the before mentioned law. KEYWORDS: homosexuality; U. S. Armed Forces; USA. ***
Uma primeira versão desse artigo foi apresentada e publicada nos Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC (Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas) em julho de 2014, na Universidade Federal Fluminense, Campus Gragoatá. ** Professor Adjunto do Departamento de História da UFMT. Doutor em História Social (USP). E-mail para contato: flaviotrovao@hotmail.com. 1 “Não pergunte, não fale.” *
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Homossexuais nas tropas americanas: imagens políticas.
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té o ano de 2014 os homossexuais que integrassem as Forças Armadas Americanas estavam sob a ameaça do banimento das tropas. Se fosse comunicada às instâncias superiores alguma ação que demonstrasse a conduta homossexual de um dos mem-
bros de alguma das forças militares norte-americanas, os sujeitos (sejam homens ou mulheres) "acusados" sofreriam um processo disciplinar interno e poderiam ser desligados do efetivo, com a denominação de “Baixa Honrosa”, o que acabaria por contornar possíveis situações de constrangimento. Mas nem sempre foi assim. Nos anos 1950 os homossexuais identificados, processados e expulsos, recebiam a "baixa desonrosa", fazendo com que muitos homens e mulheres, ex-combatentes de guerra não voltassem para suas cidades natal, evitando explicar os motivos da "desonra". Dessa forma, ao longo dos anos 1950 e 1960, muitos ex-combatentes homossexuais acabavam por se estabelecer nas cidades e regiões próximas das grandes bases militares americanas, como o caso de São Francisco, Califórnia. Nasciam, assim, grupos de identidade homossexual, a partir de repúblicas e bares frequentados por ex-combatentes "desonrosos". Gabriel Rotello ressalta que a proximidade desses primeiros grupos de identidade homossexual (ou comunidades) com o universo militar pode ser percebido no próprio movimento que se formou ao longo dos anos 1970 nos Estados Unidos, na adoção de palavras e comportamentos típicos do cotidiano da caserna, como a ideia de campanha, a organização hierárquica, além do uso de indumentárias e acessórios militares.2 Mas a relação entre homossexuais e o universo militar não é uma característica exclusiva das tropas americanas ou tampouco contemporânea. Segundo Michel Foucault, desde a antiguidade essa presença era marcante entre os guerreiros como também entre aqueles que se dedicavam às artes e ciências na Grécia do século V. Comentando como o amor era percebido entre os rapazes na Era Clássica, o autor exemplifica "as condutas pelas quais eles se manifestam: um cuida do amado, acompanha-o ao ginásio, à caça, ao combate: segue-o na morte; (...)". 3
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Ver: ROTELLO, G. "Comportamento sexual e AIDS: a cultura gay em transformação." São Paulo: Summus, 1998. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 190.
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Era no convívio cotidiano, inclusive nos treinamentos e batalhas, que se provava o companheirismo e, dessa forma, o amor entre os guerreiros na Grécia Clássica. Portanto, a presença homossexual naqueles exércitos, assim como na sociedade, não era vista como uma excepcionalidade, mas sim, como parte da sociedade. Muito diferente era a situação do homossexual nas Forças Armadas Americanas, em especial, nos últimos 30 anos. Na coletânea Military Trade, organizada por Steven Zeeland, vários homossexuais ex-combatentes e homens "adoradores" de militares relatam suas experiências e aventuras sexuais. A unidade dos relatos é dada pelo desejo (sexual) por imagens relativas ao universo militar. Trade tradicionalmente refere-se aos homens que aceitam os avanços sexuais de outros homens em virtude de necessidade financeira, miséria sexual, estupor alcoólico, ou outras razões "situacionais", e não por causa de alguns desejos gay inatos. 4
Os militares trades seriam, portanto, aqueles homens das forças armadas que permitem uma série de jogos e aventuras homoeróticas em função de "situações específicas" (necessidade financeira, efeito de álcool, etc.) visto que a homossexualidade, nesse sentido, feriria os princípios militares, inclusive. O autor esclarece que para muitos dos seus depoentes simplesmente o fato de se tratar de militares já dava a esses sujeitos um estatuto masculino superior, como sendo "homens de verdade", o que subentende que o homossexual não o seja. É claro que se tais imagens de masculinidade são vivenciadas dentro das casernas, o discurso político não será descolado dessa realidade e, ao contrário, nelas encontram terreno para sua edificação enquanto norma disciplinar.5
Livre tradução de: Trade traditionally refers to men who accept the sexual advances of other men owing to financial need, sexual deprivation, alcoholic stupor, or other "situational" reasons, and not because of some "innate" gay desire. Em: ZEELAND, Steven. Military Trade. New York; London: Harrington Pak Press, 1999. p. 1 5 Uma interessante discussão sobre a questão da masculinidade nos Estados Unidos pode ser vista na obra de Gail Bederman, Manliness and civilization: a cultural history of gender and race in the United States, 1880-1917. O autor observa como os termos manhood e manliness não são sinônimos históricos, embora ambos carreguem semanticamente a ideia de um comportamento tipicamente masculino, como também, o significado para bravura, coragem. Para Bederman, ao pensarmos a relação entre "masculinidade" e civilização, nos Estados Unidos, não se pode desconsiderar as relações de gênero (obviamente) implícitas na questão, e principalmente, deve-se atentar para as questões raciais também presentes. Existe uma relação direta entre o poder do homem branco sobre os homens e mulheres negros ao longo da constituição da história dos Estados Unidos, que estabelece uma diferenciação política e econômica na sociedade. "Durante anos ao longo do século, os americanos foram obcecados pela conexão entre masculinidade (manhood) e dominação racial." (livre tradução de: During the decades around the turn of the century, Americans were obsessed with the connection beteween manhood and racial dominance.). BEDERMAN, Manliness and civilization: a cultural history of gender and race in the United States, 1880-1917. USA: University of Chicago Press, 1996. p.4 4
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Entre os depoentes de Military Trade encontra-se Tom, um jovem de 25 anos, nascido no Alabama, que serviu como Marine (patente equivalente ao fuzileiro naval brasileiro) desde os 19 anos de idade: Eu cresci no Alabama e era totalmente um "lixo branco" [tratamento pejorativo dado aos brancos pobres da região sul dos Estados Unidos]. Meus pais trabalhavam em uma fábrica. Nós éramos bastante pobres. Crescer nessa área [significa] que ou você vai para o serviço militar ou trabalhar na fábrica. É realmente, realmente, uma área desolada. Minha turma de ensino médio* tinha doze pessoas. Eu nunca conheci nenhuma pessoa gay. (...) A única razão pela qual eu tive condições de servir na unidade de infantaria Marine [fuzileiros navais] por seis anos era porque eu cresci reprimido no Alabama. Porque eu estava acostumado a esconder meus sentimentos [desejos] sexuais. Mas eu não acredito que a maioria dos gays consigam."6
O relato de Tom revela, de certa forma, uma imagem bastante negativa da presença homossexual no exército, pois pode ser vista como um perigo ou ameaça tanto ao sujeito homossexual quanto à ordem militar na qual se encontra inserido. Em "O Exército Inútil" (Streamers), filme dirigido por Robert Altman em 1983, conhecemos a história de quatro soldados que estão sendo treinados para ir ao Vietnã em guerra, nos anos do governo Johnson. O mote do filme gira em torno da (homo) sexualidade de Richie, questionada ao longo de toda a trama e nunca afirmada claramente. Richie tenta seduzir Billy, seu colega de quarto. Esse prefere não acreditar nas "tendências" homossexuais do companheiro de caserna. 7 Carlyle e Roger são dois personagens negros que se aproximam um do outro muito mais pela identidade racial, visto que estão em setores diferentes no exército. Carlyle faz parte da Companhia P, encarregado da limpeza, enquanto Roger é um soldado N.D, (no duty), ou seja, sem obrigações, atuando na área técnica, por ter estudado. Ao perceber o jogo de sedução entre Richie e Billy, Carlyle pensa que entre tantos privilégios que estes soldados gozavam, as aventuras sexuais com o colega seria mais
ZEELAND, op. cit., p. 240; 253. livre tradução de: "Growin up in Alabama I was total white trash. Both of my parents worked in a factory. We were flat-out poor. Growing uo in that area you're either going to go to into the military, or you're going to work in factory. It1s just a really, really desolate area. My senior class had twelve people. I never knew any gay people. (...) The only reason that I was able to survive in a Marine infantry unit for six years was because I grew up so repressed in Alabama. Because I was accustomed to shutting down my sexual feelings, I was able to do it. But I don't think that the average out gay man can." 7 O EXÉRCITO Inútil (Streamers). Direção: Robert Altman. Produção: Robert Altman e Nick J. Mileti. Roteiro: David Rabe. Intérpretes: Matthew Modine, Michael Wrigth, Mitchell Lichstein, David Alan Grier, Guy Boyd, George Dzundza. Los Angeles: Fox Filmes, 1983. 1 DVD (118 min), mono. Color. English (com legendas). O filme é a adaptação cinematográfica do texto dramatúrgico homônimo, escrito por David Rabe em 1976. 6
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um deles. Assim, ele inverte a situação de ignorar os possíveis desejos homossexuais de Richie e aceita "transar"8 ali mesmo no alojamento, diante dos demais. Nesse momento da narrativa, todas as personagens estão muito alteradas e a carga dramática se amplifica com os conflitos que passam a se suceder no alojamento. Esse serve de cenário principal para, praticamente, todas as ações no filme, num estilo hius clos.9 Irritado e bastante atormentado, Carlyle ataca e mata Billy, por recusar que ocorresse diante de si o ato sexual entre os dois soldados. Desesperado, Carlyle é surpreendido pela entrada do sargento Roonie no alojamento que, ao perceber o que havia ocorrido, deu voz de prisão ao soldado. No momento de maior tensão da trama, Carlyle só vê uma saída: matar o sargento e fugir, contando com a lealdade de Roger e o medo de Richie. Quando a polícia militar finalmente chega no alojamento, Carlyle é identificado, capturado e arrastado para a prisão.10 O alojamento é isolado para investigação e na sequência final, Roger pergunta a Richie, em tom acusatório, porque ele simplesmente não disse que era homossexual, como se essa fosse a causa da sequência trágica que ambos acabaram de viver. Ao que a personagem, finalmente, fala: "eu estava dizendo, mas vocês não ouviam". O filme foi lançado em 1983, momento em que o gabinete do presidente Ronald Reagan se via envolvido, externamente, em conflitos militares na América Central, além da região entre o Irã e o Iraque.11 Portanto, a temática militar estava em voga naquele momento histórico, seja do ponto de vista das ações do governo federal no exterior, como também nas produções cinematográficas da
No idioma original Carlyle diz querer um blowjob, expressão chula, em inglês, para designar o sexo oral no homem. Expressão francesa e título de obra dramatúrgica de Sartre que significa “entre quatro paredes”. Essa estratégia cênica de O Exército Inútil "confina os personagens entre quatro paredes, numa situação de espera, gerando as tensões que, agravadas pelo comportamento transgressivo de Richie, caminham para o desfecho sangrento. David Rabe e Robert Altman transcendem a crítica ideológica da caserna – não se trata mais de um filme sobre o Vietnã – e atingem uma dimensão metafísica, expondo o inferno de toda existência autêntica." Em: NAZARIO, Luiz. O Exército Inútil: Robert Altman. Cadernos Apontamentos, São Paulo, v. 104, p. 9-20, 1992. p. 15. 10 Em nossa tese de doutorado exploramos também as questões referentes às relações raciais nos Estados Unidos nos anos 1980, a partir das análises fílmicas de "O Exército Inútil". Ver: TROVÃO, Flávio. O Exército Inútil de Robert Altman: cinema e política, 1983. São Paulo: Anadarco, 2010. Ver também o importante estudo de Loïc Wacquant publicado pelo Instituto Carioca de Criminologia que analisa a chamada "onda punitiva" nos Estados Unidos, onde as relações entre raça e criminalidade são pensadas a partir dos processos históricos do período, a saber, a privatização dos serviços sociais, entre os quais, o sistema prisional americano. WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2010. 11 Para uma melhor contextualização do período ver: GADDIS, John Lewis. A Guerra Fria. Lisboa: Edições 70, 2005; e HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Do ponto de vista da política interna, o governo Reagan estava empenhado na implantação de um programa neoliberal de diminuição das ações sociais do estado. Ver: PIVEN, Frances F.; CLOWARD, Richard A. The new class war: Reagan´s attack on the wellfare state and its consequences. New York: Pantheon Books, 1982. 8 9
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época. Nessa indústria, os anos 1980 foram marcados por uma "retomada do tema do Vietnã" onde vários filmes passaram a abordar a Guerra do Vietnã não mais sob o olhar crítico de produções que marcaram os anos 1970, mas sim, sob uma apologia à guerra e ao individualismo. Personagens como Rambo, Bradock (e filmes sequências sobre o tema), constituem um subgênero em plena expansão naquele momento na indústria cinematográfica hollywoodiana: os filmes da "Nova Guerra Fria". Os filmes de guerra, bem como seus filhotes eletrônicos, os games de temática militar (jogos eletrônicos) tendem a nos apresentar imagens que, ainda divergindo em alguns aspectos, são bastante homogêneas quando retratando o soldado em batalha: homens fortes, valentes, corpos definidos e com determinação para vencer. O cotidiano nas casernas que o cinema nos auxilia a retratar e que por vezes imaginamos é permeado por sentimentos de camaradagem, brincadeiras e disciplina, adrenalina nas batalhas e que podem, de acordo com o momento histórico em questão, estabelecer conexões com o campo do político. Não é à toa que praticantes de fisiculturismo acabaram se convertendo em astros de Hollywood com filmes desse gênero e depois, inclusive, políticos.12 Portanto, nesse contexto de expansão de uma determinada imagem sobre o soldado que lutou no Vietnã, aquela representada por Rambo, por exemplo, é diametralmente divergente da imagem que "O Exército Inútil" retrata: soldados em crise e ainda uma possível aventura homossexual pública, dentro da caserna. Os significados dados à relação homossexual dentro das Forças Armadas, tanto nas imagens do filme de Altman quanto naquelas constantes nos relatos de Military Trade, ainda que separados historicamente por quase três décadas, convergem em um ponto, a necessidade de combater sua presença no espaço militar. Não bastava reprimir e perseguir um ou outro sujeito indesejável, como já vinha se fazendo desde os anos 1950. Restaurar a ordem militar nas tropas americanas passava, também, pelo desejo (fantasioso) de exterminar, definitivamente, daquele espaço, relações e desejos homossexuais. A estratégia, como veremos, tinha de ser política. Uma política que os impedisse de dizer que estavam ali.
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Arnold Schwarzenegger fez sucesso em filmes do subgênero "Nova Guerra Fria" e hoje é um importante político do partido Republicano, seguindo os passos de R. Reagan, que também se notabilizou publicamente como ator de cinema. Ver: TROVÃO, F. Novos soldados para novos conflitos: cinema e guerra no governo Reagan (1980-1983). em: IPIRANGA, P., GARRAFFONI, R. e BURMESTER, A. Do amor e da guerra: um itinerário de narrativas. São Paulo: AnnaBlume, Brasília: Capes, 2014. p.257-270. 12
O mutismo em cena: não pergunte e não fale! Com a ascensão de Bill Clinton à Presidência da República (1993-2000), um grupo de estudos foi elaborado para pensar a questão dos homossexuais dentro das Forças Armadas americanas. Em pauta estava a necessidade de criar uma política onde os homossexuais não fossem tão expostos (reivindicação política dos movimentos homossexuais organizados) e que, ao mesmo tempo, não deslegitimasse a hierarquia e a “seriedade” das instituições militares (exigência política de seus comandantes).13 Durante a campanha presidencial de 1992, Clinton havia se comprometido durante a criar uma política para que os homossexuais pudessem atuar como militares com liberdade. Porém, o alto comando das Forças Armadas, durante seu governo, manteve sob liderança das tropas os mesmos nomes do antigo gabinete de Bush Pai (1989-1992), governo que pode ser considerado uma extensão daquele que teve Ronald Reagan como presidente. Em outras palavras, Clinton tinha diante de si um dilema: atender aos movimentos homossexuais, parte de sua base de apoio política, visto a maior identidade do movimento com as políticas defendidas pelos Democratas (partido de Clinton) e, ao mesmo tempo, não desagradar aos senhores da guerra americanos, geralmente alinhados às teses republicanas, ou seja, a oposição.14 Nesse conturbado contexto criou-se um programa que foi apelidado com o codinome Don’t ask, don’t tell15. Em tese, o conjunto de leis aprovadas poderia ser resumido na seguinte questão: os questionamentos sobre a orientação sexual dos candidatos a ingressar nas forças armadas seriam retirados dos formulários e, ao mesmo tempo, os homossexuais não deveriam tornariam pública sua “orientação” sexual. Sob esta abordagem, o Departamento de Defesa não fará a pergunta sobre a orientação sexual dos futuros membros das forças armadas, e as pessoas seriam obrigadas a manter ou
Cf. BURELLI, D. e DALE, C. Homossexuals and U.S. Military policy: current issues. Washington: The Library of Congress, may 2005. 14 Entendemos que o governo Clinton, nesse sentido, pode ser lido como uma grande continuidade da chamada "Era Reagan". Cf. WILENTZ, Sean. The age of Reagan. A history (1974-2008). New York: Harper Collins, 2008. 15 Ainda que o termo seja aplicado a um programa formado por uma série de leis que regulamentam a questão homossexual e o serviço militar nos Estados Unidos, para maior fluidez da leitura, ao nos referirmos ao Don't ask don't tell, usaremos a palavra "lei", como ficou conhecido pelo grande público. 13
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a sua orientação homossexual para si, ou, se não, seriam desligados já no serviço de alistamento ou negada nomeação se pretende aderir ao serviço.16 (grifos nossos).
Nesse sentido, a política aprovada pelo governo Clinton buscava acalmar as reivindicações dos movimentos homossexuais, ao mesmo tempo, conciliar as posturas conservadoras presentes no alto comando das forças armadas estadunidenses. O que a Don’t Ask, don’t tell criou foi um dispositivo para que os homossexuais fossem atendidos, porém, sua orientação sexual deveria permanecer em segredo. No mesmo relatório, existe uma declaração de um superior das Forças Armadas dizendo que caso algum homossexual fosse delatado apenas por tornar pública a sua orientação sexual, esse provavelmente não seria desligado ou rechaçado em sua carreira. A orientação sexual é considerado um assunto privado e pessoal, e a orientação homossexual não é uma barreira para a entrada no serviço (militar) ou sua continuidade, a menos que se manifeste por uma conduta homossexual. 17
Um amplo debate se estendeu entre as comissões envolvidas no Projeto de Lei que estabeleceu a Don't Ask Don't Tell, envolvendo desde ativistas dos movimentos homossexuais, como membros das forças armadas, para estabelecer o que seria "orientação" e "conduta" homossexual. Finalmente a questão fechava em torno do seguinte acordo: o indivíduo pode ser homossexual e integrar as forças armadas, desde que não se manifeste como tal. Funcionários do governo insistiram que o presidente estava apenas tentando buscar um acordo que levasse em conta as preocupações do Congresso e dos militares, mas também minimizar a discriminação contra homossexuais. 18
A repressão da homossexualidade nos espaços militares não é garantia para que os sujeitos homossexuais estejam apartados da instituição. Torna aquele mais um espaço onde, muitas vezes,
Livre tradução de: “Under this approach, the Department of Defense would not ask question concerning the sexual orientation of prospective members of the military, and individuals would be required to either keep their homosexual orientation to themselves, or, if they did not, they would be discharged if already in the service or denied enlistment/appointment if seeking to join the service.” Cf. BURELLI, D. e DALE, C., op. cit. p. 15. 17 Ib. idem. p. 4. livre tradução de: "sexual orientation is considered a personal and private matter, an homosexual orientation is not a bar to service unless manifested by homosexual conduct." 18 Ib. idem. p.3. livre tradução de: "Administration officials insisted that the President was merely trying to pursue a compromise that would take into account the concerns of the Congress and the military, but would also minimize discrimination against homosexuals." 16
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esses sujeitos vivem a condição de repressão que já os acompanha em tantas outras instituições em que se encontram inseridos. Michel Foucault afirma que a sociedade moderna impôs uma lógica da censura sobre a questão sexual que se dá por meio de três interdições: afirmar que não é permitido, impedir que se diga e negar que exista. Segundo o autor, a conciliação dessas interdições acabou por criar mecanismos de censura cuja “a lógica do poder sobre o sexo seria a lógica paradoxal de uma lei que poderia ser enunciada como injunção de inexistência, de não manifestação e de mutismo”. Em suas palavras: liga o inexistente, o ilícito e o informulável de tal maneira que cada um seja, ao mesmo tempo, princípio e efeito do outro: do que é interdito não se deve falar até ser anulado no real; o que é inexistente não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra que enuncia sua inexistência; e o que deve ser calado encontra-se banido do real como o interdito por excelência.19
Dessa forma, a repressão da homossexualidade acaba por se tornar menos um impeditivo e mais uma condição para se estar em um ambiente onde o masculino é exacerbado, como nas forças armadas. Essa imagem de masculinidade exacerbada, ao mesmo tempo em que pode se tornar altamente atraente, do ponto de vista homoerótico, é, também, altamente violenta, por se voltar contra o próprio sujeito e seu desejo. Em "O Exército Inútil" a homossexualidade de Richie é enunciada sob outros registros, como na linguagem cinematográfica, ou seja, nos campos do enquadramento, iluminação, som, figurino e, cujas análises nos mostram que a questão principal da trama não era saber se Richie é ou não homossexual, mas sim, se ele tem a coragem de falar que é. Um exemplo se dá na sequência onde os sargentos Cokes e Roonie, completamente embriagados, decidem ensinar aos três soldados como se pula de paraquedas. Dentro do alojamento, eles passam a simular, em um momento de meta-narratividade, como se estivessem suspensos no ar. No início da sequência, são enquadrados ao menos dois personagens por plano: ou os dois sargentos, ou dois soldados. Por sua vez, Richie é apresentado em primeiro plano, sozinho, ocupando toda a cena, com uma iluminação direta sobre si, o que faz com que no contraste do figurino que veste (camiseta branca e calça militar) a personagem se destaque em relação aos demais. Do ponto de vista da ação
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade do saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 82
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dramática, nessa mesma sequência, todas as personagens bebem whisky no mesmo copo do sargento,
como uma espécie de confraternização e sinal de igualdade. Porém, a Richie não é oferecida a bebida e quando o mesmo reivindica sua vez para beber, os sargentos questionam sua postura. O que tais análises podem revelar? A personagem estava sendo diferenciada em relação às demais em vários campos da narrativa fílmica, além dos diálogos e da trama que lhes são próprias. As representações fílmicas sobre o universo militar são associadas a uma ideia bastante idealizada da masculinidade. A presença homossexual nesse universo imagético pode provocar uma instabilidade tanto nos valores que tais imagens apregoam quanto nos sentimentos envolvidos no convívio militar. Em outras palavras, representar um homossexual em um filme de guerra pode, em determinados momentos históricos, pôr em xeque a própria instituição militar bem como as guerras que empreendem. Ainda que politicamente a lei Don't Ask don't Tell tenha sido tratada pelo governo Clinton como uma forma de "inclusão" dos homossexuais dentro das forças armadas, o que se percebe no enunciado da lei em questão é que a mesma acabava por causar uma presença meramente formal, visto que a subjetividade dos homossexuais na caserna deveria, literalmente, ser silenciada. Em seu codinome, a lei já revela o caráter conservador que possui: os homossexuais podem integrar as tropas, mas não se manifestarão como tal. Em 1993, estimava-se que as Forças Armadas americanas contavam com aproximadamente 22.400 homossexuais, de um total de 1 milhão e 400 mil militares em serviço.20 Os grupos homossexuais argumentam que, durante o estado de guerra (o que no caso americano subentende a maior parte da segunda metade do século XX) a política de desligamento dos homossexuais que manifestassem algum comportamento que evidenciasse suas orientações eram mais toleradas criando, assim, tratamentos distintos sobre o grupo: tolerância menor em tempos de paz, tolerância maior em tempos de guerra. Podemos entender, então, que a Don't ask don't tell insere os homossexuais naquilo que Michel Foucault caracterizou como "prática do mutismo". Portanto, a política instituída no governo Clinton, aclamada pela Casa Branca como um avanço nos direitos de igualdade entre homossexuais dentro das Forças Armadas, revelou-se ineficaz e não garantia sua segurança dentro das tropas.
Cf. BURELLI, D. e DALE, C. op. cit. p. 11.
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Os grupos homossexuais denunciavam que a Don’t ask, don’t tell fomentava a homofobia e expunha à violência os homossexuais nas Forças Armadas, por criar uma legislação separada das punições aos heterossexuais. Em outras palavras existia uma discriminação tolerada e legitimada por uma lei claramente retrógrada. Ao impedir que os homossexuais se manifestassem, a política celebrada pelo gabinete presidencial buscava ocultar tal presença entre as tropas ao negar àqueles sujeitos a condição de sua fala. O que se combateu, portanto, mais do que uma ação ou um sujeito específico, foi a possibilidade de emergir naquele espaço um discurso (e práticas) assumidamente homossexual.
O que não se pode falar, afinal? Como podemos compreender a desastrosa ação política do gabinete Clinton, que acabou por desagradar ao mesmo tempo, militantes homossexuais e militares? Dois fatos históricos podem nos ajudar a elucidar a questão. Logo que foi eleito, Bill Clinton não contou com a maioria e a presidência tanto da Câmara de Deputados como do Senado, fato que não ocorria desde 1952 (e que Barack Obama está tendo de administrar com a nova legislatura de 2014). Nas eleições legislativas de 1992, os democratas não obtiveram sucesso no parlamento e esse passou a fazer oposição direta às ações do Executivo. Com o parlamento sob o comando dos Republicanos, a Casa Branca não encontrou espaço para implementar parte de seus projetos, em especial os mais polêmicos, como os planos de assistência à saúde, ou a questão dos homossexuais nas Forças Armadas. A Don't ask don't tell pode ser entendida como uma derrota do governo, que teve de se contentar com uma alteração mínima no processo de ingresso às Forças Armadas: seria retirada dos formulários de inscrição a pergunta sobre a (possível) homossexualidade dos candidatos. Os homossexuais, por sua vez, deveriam manter suas relações homoafetivas no campo do privado. O segundo fato deve-se aos episódios políticos que se sucederam ao fim da Guerra Fria. Desde a queda definitiva da URSS em 1991, os Estados Unidos tinham diante de si outro dilema a resolver, qual seja, as razões para existência da OTAN, agora sem seu inimigo clássico, o comunista. 21
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"Organização do Tratado do Atlântico Norte", a OTAN (NATO em inglês) é uma aliança estratégico-militar criado no início da Guerra Fria, liderada por Estados Unidos, Inglaterra e outras potências Ocidentais, com o objetivo de combater 21
Segundo Eric Hobsbawm, o envolvimento dos Estados Unidos nos conflitos na região dos Balcãs, empreendido pelo governo de Bill Clinton tinham, entre outras intenções, garantir a liderança dos Estados Unidos como superpotência global e, portanto, como líder também da OTAN. não podemos esquecer que quando Clinton enumerou as razões para iniciar o bombardeio da Sérvia, em primeiro lugar vinha a defesa da credibilidade da OTAN e, portanto, dos próprios Estados Unidos.22
Desde esse período, o que se viu foram envolvimentos das Forças militares da OTAN, que são majoritariamente definidas conforme os interesses americanos, atuarem em função de uma suposta "defesa da democracia e dos direitos humanos". Sob o risco de ter de dissolver a Aliança ou não encontrar uma razão para sua existência, qualquer mudança nas Forças Armadas americanas, em especial, uma liberalização para o ingresso de homossexuais nas tropas, poderia expor a crise institucional que se buscava ocultar: a falta de funcionalidade para a Aliança.23 Nossas análises sobre três fontes de tipologias muito específicas (filme de guerra, depoimentos de militares e leis militares) apontam para algumas possibilidades de compreensão da Don't ask don't tell como resultado da disputa de forças entre o governo Clinton, o Congresso Nacional (configurado, naquele momento, por uma maioria republicana) e as Forças Armadas Americanas, comandadas por conservadores em diferentes matizes. Por traz do interdito "não fale" que a lei asseverava, o que estava oculto, na verdade, mais do que essa ou aquela prática sexual, era a derrota do governo Democrata em suas primeiras incursões pelo Congresso Americano e com o comando das Forças Militares Ocidentais.
As situações cri-
adas com a política de estado que Clinton tentava empreender como progressista podem ser entendidas, nesse contexto, como representativas daquele período da História dos Estados Unidos: contraditória, belicista e emudecida. Ao se analisar as tensões políticas em um determinado processo histórico, não se pode ausentar os sujeitos de suas ações de integração, negociação e rejeição das normas e leis, como o depoimento
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o "Pacto de Varsóvia", grupo de países comunistas liderados pela União Soviética. Com a queda do regime comunista soviético, a Organização perdeu sua função primeira. 22 HOBSBAWM, Eric. O novo século. Entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 25. 23 Sobre essa tese ver o artigo de BARROSO, Juliana L. V. Segurança e uso da força no contexto da Otan pós-Guerra Fria. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, UFPR, Número 27, novembro 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n27/05.pdf
de Tom permite considerar. Ao tentar calar definitivamente os homossexuais dentro das forças armadas, a lei não poderia ser mais clara e audível. O que não deveria ser dito, no fundo, era a fragilidade do governo democrata, que se verifica em políticas equivocadas como a Don't Ask don't tell.
Referências BARROSO, Juliana L. V. Segurança e uso da força no contexto da Otan pós-Guerra Fria. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, UFPR, Número 27, novembro 2006. BEDERMAN, Gail. Manliness and civilization: a cultural history of gender and race in the United States, 1880-1917. USA: University of Chicago Press, 1996. p.4 BURELLI, D. e DALE, C. Homossexuals and U.S. Military policy: current issues. Washington: The Library of Congress, may 2005. O EXÉRCITO Inútil (Streamers). Direção: Robert Altman. Produção: Robert Altman e Nick J. Mileti. Roteiro: David Rabe. Intérpretes: Matthew Modine, Michael Wrigth, Mitchell Lichstein, David Alan Grier, Guy Boyd, George Dzundza. Los Angeles: Fox Filmes, 1983. 1 DVD (118 min), mono. Color. English (com legendas). FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 190. _____. História da sexualidade 1: a vontade do saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 82 HOBSBAWM, Eric. O novo século. Entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 25. NAZARIO, Luiz. O Exército Inútil: Robert Altman. Cadernos Apontamentos, São Paulo, v. 104, p. 920, 1992. p. 15. ROTELLO, G. Comportamento sexual e AIDS: a cultura gay em transformação. São Paulo: Summus, 1998. TROVÃO, Flávio. O Exército Inútil de Robert Altman: cinema e política, 1983. São Paulo: Anadarco, 2010. _____. Novos soldados para novos conflitos: cinema e guerra no governo Reagan (1980-1983). Em: IPIRANGA, P., GARRAFFONI, R. e BURMESTER, A. Do amor e da guerra: um itinerário de narrativas. São Paulo: AnnaBlume, Brasília: Capes, 2014. p.257-270. ZEELAND, Steven. Military Trade. New York; London: Harrington Pak Press, 1999. Artigo recebido em: 09/04/2016 Artigo aprovado em: 09/05/2016
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OS INFILTRADOS E A MORALIDADE PÓS-ONZE DE SETEMBRO*
Tiago Gomes da Silva** RESUMO: Os Infiltrados, longa-metragem dirigido por Martin Scorsese, foi lançado em 2006, momento em que a administração de George W. Bush e a Guerra ao Terror perdiam cada vez mais apoio e popularidade na sociedade norte-americana. O filme apresentou uma crítica à realidade do país desse período, transferindo para o ambiente em que a história se passa e também para o relacionamento entre as personagens, características do contexto dos Estados Unidos daquela época, trabalhando questões como paranoia, mentira e desconfiança. Buscamos nesse trabalho estudar exatamente essa relação entre o contexto dos Estados Unidos nos primeiros anos do século XXI e a obra cinematográfica de Martin Scorsese. PALAVRAS-CHAVE: Os Infiltrados; Martin Scorsese; Estados Unidos.
THE DEPARTED AND THE MORALITY AFTER SEPTEMBER ELEVEN
ABSTRACT: The Departed, movie directed by Martin Scorsese, was released in 2006, during a moment in which the George W. Bush administration and the War on Terror were losing support and popularity within the american society. The movie presented a critique about the reality of the country during that specific moment, transferring to the atmosphere in which the story takes place and also to the relationships of the characters, characteristics of the american context of that particular time, dealing with issues such as paranoia, lies and distrust. This work aims to study the relationship between the context of the United States in the early years of the twenty-first century and the film directed by Martin Scorsese. KEYWORDS: The Departed; Martin Scorsese; United States. ***
O presente artigo apresenta alguns dos resultados da dissertação de mestrado de minha autoria: SILVA, Tiago Gomes da. Dirigido por Martin Scorsese: um estudo comparativo de Taxi Driver, Os Infiltrados e seus contextos de produção. Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado em História Comparada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Orientação: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, 2015. ** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. E-mail: gomes638@gmail.com. *
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Introdução
O
presente artigo busca realizar um estudo do filme Os Infiltrados (The Departed, dir.
Martin Scorsese, 2006), procurando perceber como o longa-metragem relacionase com o contexto dos Estados Unidos após os ataques de onze de setembro de
2001. Analisaremos como, na obra em questão, elementos da realidade norte-americana do período foram incorporados ao ambiente em que a trama ocorre e como influenciaram a construção do relacionamento entre as personagens. O enredo de Os Infiltrados (2006) trata da história de Billy (Leonardo DiCaprio) e Colin Sullivan (Matt Damon), dois policiais em lados opostos no combate ao crime organizado na cidade de Boston. Billy é um agente disfarçado que trabalha na gangue de Frank Costello (Jack Nicholson), chefe da máfia irlandesa, enquanto que Colin atua como um infiltrado na polícia para Costello. Ao mesmo tempo em que Billy começa a conquistar a confiança de Costello, Colin é promovido no Departamento de Polícia, sendo ele próprio encarregado de encontrar o delator dentro da corporação. Ambas as personagens possuem uma vida dupla, correndo sempre o risco de serem descobertos a qualquer instante. A ameaça deles terem sua verdadeira identidade revelada, e serem presos ou mortos a qualquer momento, contribui para criar um clima de suspense que está sempre presente. A edição e trilha sonora ajudam a estabelecer um ritmo rápido e também tenso. Os Infiltrados foi a primeira obra de Scorsese desde Vivendo no Limite (Bringing Out the Deads, dir. Martin Scorsese, 1999) cuja trama foi contemporânea, os outros longas-metragens do cineasta nesse intervalo retrataram períodos históricos anteriores. Lançado em 2006, a obra em questão foi a 16º película mais vista do ano, com um faturamento aproximado de U$ 126,3 milhões nos Estados Unidos1. O filme venceu o Oscar nas categorias de melhor filme, melhor roteiro original (William Monahan), melhor edição (Thelma Schoonmaker) e também garantiu o prêmio de melhor diretor a Martin Scorsese pela primeira vez em sua carreira. Trabalhar como fontes cinematográficas apresenta desafios e possibilidades ao historiador. Embora o debate dentro do campo da história e cinema seja muito amplo e vá além dos objetivos
MPAA, U.S Entertainment Industry: 2006 MPA Market Statistics, p. 11.
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desse artigo 2 , uma questão importante de se destacar sobre a análise fílmica diz respeito a sua capacidade de contextualização, principalmente referente ao contexto da sociedade em que foi produzida essa obra, como destaca o historiador José D’Assunção Barros: Vale dizer, o cinema é “produto da história” – e, como todo produto, um excelente meio para observação do “lugar que o produz”, isto é, a Sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto, qualquer que seja a obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção- é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da Sociedade que a produziu3.
O filme analisado foi lançado durante o segundo mandato da presidência de George W. Busg (2001-2008)4. Os anos da administração Bush foram fortemente marcados pelos ataques de Onze de Setembro e a Guerra ao Terror5. Após os atentados de 2001, o governo Bush iniciou uma nova fase da luta contra o terrorismo. Meses depois dos ataques a Nova York e Washington, uma coligação de aliados, liderados pelos Estados Unidos, invadiu o Afeganistão com o objetivo de capturar os responsáveis pelos sequestros dos aviões que atingiram as Torres Gêmeas e o Pentágono6. Durante os anos seguintes, medidas controversas foram tomadas em nome da luta contra a ameaça terrorista, ações essas que diziam respeito tanto à atuação do país no cenário geopolítico internacional7, como também a forma como o governo e as agências de segurança poderiam atuar dentro do país. Em 2003, sob o pretexto que o governo de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, os Estados Unidos invadiram o Iraque iniciando uma guerra que duraria ainda anos, mesmo após o presidente George W. Bush decretar “missão cumprida”. Sobre as possibilidades de estudos e os debates dentro do campo da história e cinema, conferir: SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. Cinema e historiografia: trajetória de um objeto historiográfico (1971-2010). História da Historiografia, v. 8, p. 151-177, 2012; VALIM, Alexandre Busko. História e Cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (Orgs.), Novos domínios da história. Rio de Janeiro, Elsevier: 2012, p. 283-300. 3 BARROS, José D´Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In: Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. NÓVOA, Jorge & BARROS, José D´Assunção. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p.52-53. 4 Sobre os anos da presidência de George W. Bush, cf.: ZELIZER, Julian E. (ed.). The Presidency of George W. Bush: A First Historical Assessment. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2010. 5 Sobre o contexto dos Estados Unidos após os ataques terroristas de onze de setembro de 2001, conferir: RESENDE, Erica Simone A. Americanidade, Puritanismo e Política Externa. A (re)produção da ideologia puritana e construção da identidade nacional nas práticas discursivas da política externa norte-americana. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012. 6 Não buscamos afirmar que as guerras do Afeganistão e do Iraque foram resultado exclusivamente dos atentados de 2001 e as ameaças à segurança nacional. Os motivos desses conflitos, assim como a atuação dos Estados Unidos no Oriente Médio, possuem implicâncias maiores, inclusive, os próprios interesses norte-americanos na região. Cf. LAFEBER, Walter. America, Russia, and the Cold War, 1945-2002.New York: Mc Graw Hill, 2004. 7 Cf.: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos- Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 2
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Em 2006, ano de lançamento de Os Infiltrados, a administração Bush enfrentava uma série de dificuldades. As guerras no Afeganistão e no Iraque continuavam com um grande custo financeiro e com um aumento no número de soldados norte-americano mortos nesses conflitos. Somado a isso, foram reveladas imagens de cenas de tortura em prisões da CIA espalhadas pelo Oriente Médio e vieram a público as violências praticadas por agentes do governo norte-americano em prisões como Abu Ghraib e Guantánamo. Outro motivo de críticas ao presidente Bush e sua administração foi a corrupção. A Guerra ao Terror, como dito anteriormente, serviu também aos interesses econômicos, principalmente, das indústrias de energia e bélica. As guerras do Afeganistão e do Iraque foram importantes não só para garantir o acesso a matrizes energéticas, como também pelos contratos de segurança para o uso de mercenários e material bélico de companhias privadas8. Nesse sentido, diversas questões como paranoia, mentira, violência e outras eram temas que faziam parte da realidade da sociedade norte-americana do período e que foram desenvolvidas na trama de Os Infiltrados, principalmente, na forma como o enredo se desenvolve e o relacionamento entre as personagens.
Os Infiltrados: trama e personagens Os Infiltrados inicia-se com imagens de protestos e confrontos da população de Boston com as forças policiais nos anos 1980. Concomitantemente, a voz de Costello começa uma narração: “Eu não quero ser um produto do meu ambiente. Eu quero que o meu ambiente seja um produto de mim”9. Logo nas primeiras cenas do filme, estabelece-se que Costello é quem comanda não só a região de Boston, onde se passa a trama, mas também que ele é responsável pelas vidas de outras personagens ao seu redor, principalmente, de Billy e Colin, pois ambos os policiais têm seus futuros definidos pelo contato com a personagem de Jack Nicholson.
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BRIGHTMAN, Carol. Insegurança total: o mito da onipotência americana. Tradução: Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2006. 9 Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:00min:40seg. 8
Fig. 1 Cartaz de Os Infiltrados.
Costello é uma personagem central na história, como podemos ver no cartaz do filme acima. Ele aparece no meio da imagem, observando Matt Damon e Leonardo DiCaprio. Poderoso, violento e psicótico, é o principal nome do crime organizado de Boston. A personagem de Jack Nicholson constantemente demonstra racismo e estereótipos de uma forma tão natural que beira o cômico, sua descrença em relação à Igreja e aos seus valores também é repetidamente apresentada. Logo em uma das primeiras cenas do filme, diz: “Anos atrás nós tínhamos a Igreja. Isso era só uma forma de dizer que tínhamos uns aos outros. Os Cavaleiros de Colombo eram italianos violentos. Eles tomaram o seu pedaço da cidade. Depois de vinte anos de um irlandês não conseguir um emprego, nós tínhamos a presidência. Que ele descanse em paz. É isso que os negros não percebem. Se eu tenho algo contra os negros é isso. Ninguém te dá nada. É preciso tomar”10. As primeiras cenas do filme, quando ele se encontra com Colin ainda criança, passam-se nos anos 1980. Em suas falas, Costello exibe muito da ideia do self-made man, de um homem que faz o seu
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Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:00min:50seg. 10
destino. Como o criminoso afirma: “ninguém te dá nada. É preciso tomar”. Pode ser percebido claramente, desde o início do longa-metragem, que Costello acredita que o ambiente não define a vida de uma pessoa, e, sim, o próprio indivíduo. As cenas iniciais, não por coincidência, são ambientadas nos anos de presidência de Ronald Reagan11. Depois de conhecer Colin em uma mercearia onde foi para receber seu pagamento, Costello convida o garoto para ir trabalhar com ele. Logo em seguida, em uma garagem, Frank expõe para Colin e outros rapazes seus pontos de vista sobre o que alguém pode ser na vida: “A Igreja quer você no seu lugar. Ajoelhe, levante, ajoelhe, levante (...) Um homem traça o seu próprio caminho. Ninguém lhe dá um caminho. Você tem de tomá-lo. Non serviam (...) Quando decide ser alguém, você consegue. Isso não dizem na Igreja. Na sua idade, diziam que podíamos ser policiais ou criminosos. Hoje eu lhe digo o seguinte. Com uma arma apontada para você, qual a diferença?”12. Costello defende a ideia do individualismo e que o homem faz o próprio destino, sendo seu futuro definido por ele mesmo e mais ninguém. De acordo com a personagem de Jack Nicholson, não há nada que seja capaz de evitar alguém de ser o que quiser. No entanto, a fala dele não somente serve para ensinar o jovem Colin que não há nada que o possa impedir de alcançar seus objetivos, como também que não há nada que o deva parar. Ou seja, a lei e a moral são obstáculos que podem e devem ser superados, a sobrevivência possuí prioridade sobre os valores morais. Colin Sullivan alcança uma ascensão social e profissional impressionante. De um jovem de um bairro pobre, ele, com o constante auxílio de Costello, torna-se um detetive da polícia do estado de Massachusetts. Ele consegue comprar um bom apartamento e tem um excelente trabalho em uma unidade de elite da corporação. No entanto, para alcançar esses objetivos, Colin descumpre a lei a todo o momento, para ser o homem que ele deseja ser, precisa ter uma vida de mentiras e constantemente se reportando a Costello. Um ponto relevante sobre Costello, antes de começarmos a trabalhar com as personagens de Colin e Billy, é que essa liberdade e individualismo defendidos por ele são em relação às leis e às instituições que afirmam o contrário do que o criminoso defende, mas não em relação a ele. Colin
Presidente dos Estados Unidos entre os anos de 1981 e1989, Ronald Reagan foi um defensor da desregulamentação do Estado, diminuindo seu papel na sociedade norte-americana, favorecendo, assim, as iniciativas por parte do indivíduo. O político foi um dos principais expoentes da direita nos Estados Unidos no final do século XX. Cf.: WILENTZ, Sean. The Age of Reagan: a history, 1974-2008. New York: Harper Colins, 2008. 12 Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:04min. 11
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pode se tornar o homem que quiser, no entanto, sempre terá que obedecê-lo. As pessoas são livres para prosperar, mas, como ele afirma logo no início do filme, o ambiente é um produto dele, não do individualismo de cada um, exclusivamente dele. As regras podem ser desobedecidas quando não são as dele, e a única moralidade que existe é a estabelecida por ele. Podemos perceber um exemplo de como esse ponto aparece ao longo do filme, analisando uma cena específica e representativa dessa questão. Billy, já trabalhando para Costello, acompanha seu braço direito Mr. French (Ray Winstone) enquanto ele surra um dos subordinados de Costello que está com os pagamentos atrasados. Mr. French: Cadê a licença? Bookie: Que licença? Mr. French: É claro que não há algo como uma licença. Mas você precisa de uma licença. Se você não está sendo administrado por nós, você está sendo administrado por outra pessoa. O que quer dizer que você está trazendo gente indesejada para a área do Sr. Costello. (...) Bookie: Não há lucro, pago US$ 2 mil por semana. Mr. French: Então ganhe mais dinheiro. É a América. Se não ganha dinheiro você é um otário. O que você vai fazer? Bookie: Ganhar mais dinheiro. Mr. French: Esse é o espírito.13
Mr. French agride o homem por conta de uma licença que não existe, mas que significa que ele não está pagando o que deve para Costello enquanto paga para outro. Além de fazer dívidas, ele deixa outras pessoas trabalharem no território que é controlado por Costello. O ponto interessante da cena é como o espírito empreendedor e de “correr atrás” das oportunidades da América é, de certa forma, desconstruído. A personagem é livre para fazer o que quiser, ela está nos Estados Unidos, a “terra das oportunidades” onde não há nada que possa impedir um homem de lucrar a não ser sua própria vontade, se ele não está ganhando o que deseja é porque ele não está esforçando-se o suficiente. No entanto, o lucro oriundo do esforço não é necessário para crescer e ascender na vida, mas, sim, para cobrir seus pagamentos com Costello. Um homem pode fazer seu próprio destino, não tem que obedecer a lei e ter licença, ele está nos Estados Unidos e “esse é o espírito”, lucrar mais. Entretanto,
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Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:40min. 13
ele deve pagar pela “administração” de Costello. Ao mesmo tempo em que o homem é livre para ganhar muito dinheiro, ele está preso às suas obrigações com a personagem de Jack Nicholson. A influência de Frank Costello vai além do poder que ele consegue manter através da violência, uma vez que ele se torna uma figura de referência tanto para Colin como para Billy. Na verdade, os dois policiais se parecem muito e isso pode ser percebido na maneira como Costello trata os dois. No início do filme, Frank encontra com Colin ainda criança e conversa com ele: Frank: É o filho de Johnny Sullivan? Colin concorda com a cabeça. Frank: Mora com a sua avó? Colin: Moro. (...) Frank: Vai bem na escola? Colin: Sim. Frank: Isso é bom. Eu também fui. Eles chamam isso de paradoxo.14
Mais à frente no filme, logo após Billy começar a trabalhar para Costello, eles têm um diálogo similar. Frank: Você sabe, se o seu pai estivesse vivo e visse você aqui conversando comigo, vamos dizer que ele viria trocar umas palavras comigo sobre isso, na verdade, ele mataria sete caras só para cortar a minha garganta. E ele conseguiria, isso talvez seja algo que você não saiba sobre William Costigan. Billy: Ele nunca, nunca? Costello: Ele tinha princípios. Nunca quis dinheiro. Você não pode fazer nada com um homem desses. Seu tio Jack, ele também mataria metade da minha família se visse eu aqui com você. E eu penso nisso. Billy: Então, sobre o que estamos falando? Costello: Você já pensou em voltar para a escola? Billy: Com todo o respeito, Sr. Costello. A escola não é uma opção. Costello (irritado): Esse é o seu problema. Talvez um dia você acorde.15
Em ambos os diálogos, Frank faz referência à família e à escola. Ele mostra-se irritado com Billy quando ele nega a opção sem ao menos considerar.
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Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:02min 15 Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:45min. 14
Fig. 2 Colin (Matt Damon) e Billy (Leonardo DiCaprio) na Academia da Polícia.
As histórias de Billy e Colin se desenvolvem de forma paralela ao avançar da trama. As cenas alternam entre cada uma das personagens. Apesar das diferenças entre eles, os dois policiais possuem muitas semelhanças, desde a influência de Costello sobre ambos, mas também a forma como eles são reféns do conflito entre gangues e polícia sem ao menos terem a dimensão do que isso significa realmente. Os dois são soldados em uma guerra na qual eles não possuem a verdadeira compreensão da realidade e das mentiras que os cercam. Um ponto interessante da obra estudada é que, embora seja um enredo de policiais, o filme não se trata de uma história usual de detetive e bandido, do bem contra o mal. Em diversos momentos, Colin desfruta de uma boa vida, enquanto que Billy vive à beira de ataques de pânico. A moral do filme é invertida, nem Billy se assemelha a um herói, nem Colin a um criminoso. Na verdade, os dois possuem um pouco de cada um desses perfis, sendo difícil definir a diferença entre os dois lados da lei em muitos casos. Colin Sullivan, apesar de ser um infiltrado de Costello, é aquele que ao longo do filme consegue alcançar maior sucesso. No início do longa-metragem, ele é um garoto começando a trabalhar para Costello. Quando cresce, se torna um agente da polícia de Massachusetts. Em uma cena, ele está em um parque com o seu colega, o também policial Barrigan. Colin observa o teto da Massachusetts State House, sede do governo local. Barrigan percebe os olhares do colega e fala, “O que você está olhando? Esqueça isso. Seu pai era um zelador, e seu filho somente um policial”16. No entanto, Colin cresce na vida e se torna mais que somente um policial.
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Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:06min. 16
A personagem de Matt Damon, com a ajuda de Costello, ascende socialmente e na sua profissão. Ele é aprovado na prova de detetive e começa a fazer parte de uma equipe de elite da polícia responsável por desarticular o crime organizado em Boston. O principal alvo do grupo é exatamente Costello. Colin também compra um bonito, grande e novo apartamento com vista para a Massachusetts State House. Assim que se forma na Academia de Polícia, Colin é parabenizado por Costello, que o ajuda em sua carreira passando informações que o auxiliam a fazer prisões que ele não conseguiria sozinho e que impressiona os seus superiores. Quando se torna detetive, ele é recebido pelo Capitão Queenan (Martin Sheen) e pelo Sargento Dignam (Mark Wahlberg). Apesar de ganhar as ofensas usuais de Dignam, ele é elogiado por Queenan. No instante que ele sai da sala, Billy aguarda para ser recebido. A história de Billy é bem diferente de Colin. Ele é filho de um casal divorciado, ambos falecidos. Sua mãe, com quem ele morava enquanto era jovem, vivia em um bairro rico, o que lhe possibilitou ter uma infância luxuosa. Seu pai, ao contrário, morava em uma região pobre onde Costello controlava o território. A personagem de Leonardo DiCaprio precisava viver entre essas duas realidades, tendo que se adaptar a ambas. Logo no início do filme, assim como Colin, Billy decide entrar na polícia, apesar de os protestos de membros da família da sua mãe que acham que a profissão não é para ele. Com o falecimento da mãe, a personagem rompe com o mundo em que foi criado e com a sua família por parte materna. Decide seguir carreira na corporação, no entanto, antes de iniciar o seu trabalho, ele é convocado por Queenan e Dignam. Enquanto que Colin é bem recebido por Queenan e assume seu posto em uma unidade de elite, Billy é atacado por Dignam e tem seus planos na polícia desconstruídos.
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Dignam: Aposto que teve uma vida dupla. Uma com a sua mãe e outra com seu pai. Vida rica durante a semana com a sua mãe e, no fim de semana, a zona pobre do sul com o pai, burro de carga. Acertei? Tinha sotaques diferentes? Tinha, não é seu trapaceiro? Você era duas pessoas diferentes. Billy: Você é um psiquiatra? Dignam: Se eu fosse eu perguntaria por que você se tornou um policial estadual ganhando trinta mil por ano. E mesmo se eu fosse a porcaria do próprio Sigmund Freud eu não conseguiria uma resposta. Então me fale uma coisa, o que um riquinho como você faz na polícia? Billy: Famílias estão sempre subindo e caindo na América, não é? Queenan: Quem disse isso? Billy: Hawthorne. (...) Billy: Senhor, com todo o respeito. O que você quer de mim?
Dignam: (...) Eu vou te ajudar a entender algo. Você não é a porcaria de um policial. Queenan: Ele está certo. Nós lidamos com ilusão aqui. Mas nós não nos auto-iludimos. Em cinco anos, você pode ser qualquer coisa no mundo. Mas você não será um policial de Massachusetts.17
Os detetives questionam as origens de Billy. Sobre sua família por parte de pai, ele é indagado da relação dela com o crime local, enquanto que o lado materno é destacado como argumento para mostrar que ele não havia nascido para ser policial. Queenan e Dignam convencem Billy a trabalhar como infiltrado para eles. Através do seu primo por parte de pai, ele começa a traficar no antigo bairro até chamar a atenção de Costello e passar a trabalhar para ele. De imediato se estabelece um contraste entre os dois policiais. Enquanto Colin cresce na vida com o emprego e uma namorada, Billy convive diariamente com medo e violência enquanto trabalha para Costello, ajudando Mr. French em suas coletas de pagamento e acertos de contas. A edição do filme ajuda a construir o contraste entre ambas as personagens, Billy que está servindo à polícia, sofre constantemente, e Colin, ligado ao crime organizado, ascende. Isso pode ser visto com muita clareza em uma montagem no início do filme: enquanto Colin desfruta o luxo de seu novo apartamento, Billy está preso para construir seu disfarce e tentar enganar Costello. Outra questão importante presente no filme consiste no fato de tanto a polícia como Costello possuem uma equipe de trabalho hierarquizada e, principalmente, os líderes de cada um desses lados contam um homem de confiança, havendo uma clara semelhança entre a forma como dos dois lados da lei operam. Queenan, capitão da polícia, conta com a ajuda do sargento Dignam. Somente os dois sabem a verdadeira identidade de Billy como infiltrado, eles que sabem que ele não é um criminoso, mas, sim, um agente da lei. O Capitão Queenan também estabelece uma relação próxima com Billy. Ao solicitar que a personagem de Leonardo DiCaprio se torne um infiltrado, ele pede que Billy faça aquilo por ele. Costello também trabalha como seu braço direito, Mr. French, igualmente violento e o único que aparece possuir uma relação de amizade e confiança com a personagem de Jack Nicholson.
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Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:13min. 17
Fig. 3 Costello e Queenan com seus homens de confiança.
Billy e Colin se assemelham em muitos pontos. Ambos trabalham na Polícia Estadual, buscam ascender dentro da corporação, têm um relacionamento com uma mesma mulher (Madolyn, personagem de Vera Farmiga), são infiltrados e possuem uma figura paterna – Queenan e Costello, respectivamente. O principal elemento em comum entre Billy e Colin é a maneira como a vida dupla que levam aos poucos vai consumindo os dois homens ao ponto de eles não conseguirem conviver não só com o risco de serem descobertos e punidos, mas com o peso das próprias mentiras. Billy não só vive a ameaça de trabalhar com um “assassino em massa”, como ele define Mr. French, mas o medo de ser descoberto a qualquer momento e também de não ser levado a sério por Queenan e Dignam. Billy reclama com seus superiores que já forneceu material mais que suficiente para a prisão de Costello e sua gangue, que ele pode ser assassinado a qualquer instante e que seus superiores pouco se importam com o futuro dele. Apesar de toda a simpatia de Queenan por Billy, o capitão faz o policial continuar infiltrado argumentando que casos como esses demoram para serem bem fundamentados. ninguém em quem ele possa confiar, a não ser a sua psicóloga, com quem ele tem um caso, Madolyn,
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Além do medo, Billy tem que conviver com a recente perda da mãe e seu isolamento. Não há
namorada de Colin. As duas personagens, em suas conversas, tratam de uma questão central na vida de Billy e da trama do filme, a mentira. Billy: Você mente? Madolyn: Por quê? Você mente? Billy: Não, eu estou perguntando se você mente. Madolyn: Honestidade não é sinônimo de verdade. Billy: É, você mente. Você mente. É para fazer algum bem, levar vantagem ou só pelo prazer? Madolyn: Imagino que algumas pessoas mintam para manter certo equilíbrio. (...) Madolyn: O que você quer? Billy: Quer a verdade? Vallium. Madolyn: Se você mentisse, você conseguiria o que quer mais facilmente. Billy: O que isso diz sobre o que você faz para viver? Madolyn: Eu acho que deveríamos ter mais algumas sessões antes de começarmos a discutir remédios para você. Billy: Olhe, eu estou tendo ataques de pânico. Outra noite pensei que fosse ter um infarto. Eu vomitei em uma lixeira a caminho daqui. Não durmo há semanas. Madolyn: Isso é verdade? Billy: Sim! Eu disse a verdade. Eu quero alguns remédios e você faz o quê (...) Eu achei que eu devia dizer a verdade aqui, ao menos aqui.18
Billy vive com a ameaça de ter sua identidade verdadeira revelada e ser morto. Com o tempo, ele percebe que a missão para a qual foi recrutado é uma mentira. Não só seus superiores aparentam estar mais preocupados com o caso do que com sua vida, mas o próprio FBI protegia Costello. A personagem de Jack Nicholson era um informante para a agência, dessa maneira, assegurava que as investigações contra ele não fossem adiante e pudesse continuar comandando o crime organizado. Ao final do filme, a única pessoa em que Billy confia é Madolyn. No entanto, a psicóloga, de certa forma, também mentia. Ela tem um caso com Billy e não conta para Colin, seu namorado. Em diferentes momentos do filme, ela admite ser uma mentirosa. Não há personagem no filme, seja na polícia ou no crime organizado, que não minta. Na trama do longa-metragem, faltar com a verdade não parece ser só uma opção, mas, sim, a condição para conseguir sobreviver, um comportamento imposto pelo ambiente em que vivem. Colin tem de lidar também com essa vida de mentiras. É escolhido como o responsável para encontrar o infiltrado na sua própria unidade. No entanto, usa de suas prerrogativas para espionar os membros de seu departamento para encontrar o infiltrado na gangue de Costello. Manda seguir o
Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:51min. 18
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Capitão Queenan quando ele tem um encontro com Billy e avisa Costello. Em decorrência da ação de
Colin, Queenan acaba sendo assassinado. Quando confrontado por Dignam, ele responde que ele “não tem que explicar nada a ninguém. Eu (Colin) posso investigar quem eu quiser”19. Costello, quando indagado por Colin da razão dele ter ordenado a morte do capitão da polícia, responde: “Um de nós tinha que morrer. Comigo tende a ser o outro cara”20. Colin encontra nos pertences do capitão recém-falecido sua agenda de anotações em que há uma nota dizendo que Costello era um informante do FBI junto com fotos que provam o fato. Nesse momento, ele descobre que havia sido enganado pelo criminoso e que podia ser denunciado a qualquer momento caso ele necessite evitar ser preso. Colin também vive outro tipo de mentira, a de que ele tem alguma alternativa, que ele pode não ser um infiltrado e, sim, alguém honesto. A personagem tenta se convencer de que pode controlar Costello, que não é apenas um empregado do criminoso. Em uma conversa em um cinema, Colin procura persuadir Costello a ir mais devagar e não chamar tanta atenção para seus negócios, mas seus conselhos são recusados pelo criminoso e o policial é ameaçado por Costello. Costello: Mas Colin, eu espero que eu não tenha que te lembrar: se você não encontrar esse rato no seu departamento, para que nós possamos dar um olá para ele, provavelmente não serei eu quem vai pagar por isso. Colin: Por que você precisaria me lembrar disso? Se eu não soubesse disso, eu não seria bom no que eu faço. Confie em mim, eu sei como fazer isso. Envolve mentir, eu sou muito bom nisso, não é?21
O policial tenta acreditar que pode controlar Costello, que até tem a opção de sair da polícia. Em uma conversa com a sua namorada, cogita largar a corporação para poder se dedicar à faculdade de Direito e começar uma vida nova em outra cidade. No final do filme, Colin trai Costello e o mata com medo de ser denunciado para o FBI, no entanto, a personagem de Jack Nicholson já havia entregado ao seu advogado provas de seu envolvimento com Colin, evidências essas que Costello ironicamente confiou a Billy. Ao final da história, após a morte de Costello, Billy descobre que Colin é o informante dentro da polícia. Logo em seguida, Colin e Billy se encontram pela primeira vez no mesmo lugar em que Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 1h:49min. 20 Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 1h:52min. 21 Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:56min. 19
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Queenan foi morto. Billy tenta prender Colin, mas é assassinado por Barrigan, antigo colega da polícia de Colin e também um infiltrado de Costello. Após ser salvo por seu colega, Colin mata Barrigan para eliminar de uma vez por todas as provas de seu passado com o criminoso. Martin Scorsese: Essa é a natureza do mundo em que eles estão. O que eu adorava no personagem de Matt é que ele tentava fingir que estava num mundo diferente, um apartamento que tem um nível um pouco mais alto e ele compra croissants, e morre. Por isso é que eu adoro o que Bill Monahan fez com o roteiro final, quando Mark Wahlberg está lá com uma arma apontada para Matt Damon e Matt olha para ele e diz “Ok”. E leva um tiro. Ok, ele diz, eu estou tão cansado. Cheguei até aqui. Agora simplesmente me tire da jogada. Não quero mais isto aqui. Nunca quis. Só acabe comigo. Ele até tenta fingir o contrário. Na cena do cinema, ele tenta dizer. “Frank, o que está fazendo? Está maluco?”. E está realmente tentando falar com ele, tentando adquirir a aparência de um cidadão responsável, “É, eu trabalho para você. Mas ainda sou um policial e ainda tenho algum poder.”22.
Na cena final, embora Colin parecesse ter conseguido mentir para fugir de todos os seus crimes, ele é assassinado pelo capitão Dignam em sua própria casa. Após todos os delitos cometidos pela personagem de Matt Damon, ele não é preso ou condenado por forças da lei, ele é assassinado por um policial agindo fora da legalidade. O filme se encerra com uma imagem da varanda do apartamento de Colin para a sede do governo, no parapeito da varanda, um rato23 cruza a linha do horizonte.
Fig. 4 Cena final de Os Infiltrados. Um rato cruza o horizonte da vista do apartamento de Colin (2h:24min).
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SCHICKEL, Richard. Conversas com Scorsese. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.350. A expressão “rato” é usado constantemente ao longo do filme para referir-se a alguém infiltrado tanto na gangue de Costello, como também na polícia. 22
O marco zero moral Apesar da história do filme ser ambientada no início dos anos 2000, as alusões ao contexto do pós-Onze de Setembro ao longo da trama são poucas. Em uma cena, enquanto que a equipe da polícia monta todos os aparelhos de escuta e câmaras de vigilância para prender Costello em uma operação conjunta com o FBI, o Capitão Ellerby (Alec Baldwin) comemora os equipamentos conseguidos, dizendo: “Ato Patriota, Ato Patriota. Eu adoro, eu adoro”.24 Como então podemos relacionar o longa-metragem com o contexto do pós-Onze de Setembro? Para isso, devemos considerar o que o cineasta Martin Scorsese denominou como o marco zero moral. Esse é um termo utilizado por Scorsese em entrevistas para articular o contexto dos Estados Unidos pós-Onze de Setembro à trama de seu filme. O marco zero moral não é só uma referência ao local das Torres Gêmeas em Nova York, mas uma espécie de estado da sociedade norte-americana em que a própria moral não existe, um lugar em que ela foi destruída e ainda não reconstruída. Gerri Hirshey: Quando você vê a situação atual, com o Bush no Iraque, o que você pensa? Martin Scorsese: É uma outra abordagem agora. Quando a situação vietnamita começou, no início dos anos 60, houve resistência a ela de imediato, houve questionamento. Agora, não. O homem foi eleito pela segunda vez. A coisa vai além da sátira. Outro dia estava passando o filme Bananas, do Woody Allen. E a mulher que interpreta a Miss Estados Unidos diz: "Sou contra o sr. Mellish [personagem de Allen], porque ele discordou do presidente, e é aceitável discordar nos Estados Unidos, mas se você discorda demais, não é bom para o país". Isso numa comédia de 1971. Hoje, os congressistas falam isso sério. É obsceno. G.H: Como você reage a essa obscenidade? M.S: Veja em Os Infiltrados, essa é minha reação. O personagem Billy, Leo DiCaprio, toma os remédios da mãe e bebe o tempo todo, está numa situação horrível, se disfarçando de gângster. Ele é um condenado desde o princípio, aceita essa situação impossível, como se fosse um garoto se alistando no exército e indo pra guerra, e, duas semanas mais tarde, levando um tiro. "O que eu fiz? Como eu saio dessa?" Não sai. Nem se trata de uma guerra declarada, é uma guerra eterna, o bem e o mal. Em termos de sociedade, você tem a polícia, os gângsteres, os juízes — corruptos, todos corruptos. O fim de Os Infiltrados é um "marco zero" moral. É como a devastação do 11 de setembro: alguma coisa foi completamente eliminada, e a única coisa que podemos fazer é erguer tudo de novo, com uma nova geração. G.H: Você vê alguma figura em quem podemos confiar para nos tirar desta sensação de desconsolo? M. S: É difícil acreditar em uma pessoa. Tanta coisa é escondida da gente, o que acontece em Bagdá, em Basra. Os políticos sempre têm medo de dizer as coisas, o jeito que a mídia está.
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Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 1h:02min. 24
Imagine se os presidentes anteriores que consideramos ótimos fossem examinados desse jeito. Não sobraria ninguém25.
Em Os Infiltrados, a trama da história está diretamente relacionada à realidade norte-americana após os atentados terroristas de 2001. No filme de Scorsese, o ambiente em que as personagens vivem é construído a partir dos caminhos seguidos pelos Estados Unidos após 2001, a invasão do Afeganistão, o Ato Patriota, a Guerra do Iraque, entre outras questões. O longa-metragem apresenta um forte tom de crítica às ações tomadas pelo governo federal em sua luta contra o terrorismo, marcada pelas mentiras, ausência de uma moral e a dificuldade de uma distinção entre o certo, o errado, o bem e o mal. Nesse sentido, é importante destacar que na época de lançamento do filme de Scorsese, outras obras também apresentavam essa abordagem crítica à realidade do país no período. A partir de 2006, momento em que a popularidade do presidente Bush começa a cair fortemente, outros longasmetragens foram realizados tratando do contexto dos Estados Unidos, obras que discutiam, a partir de um tom contestador, temas como os pretextos para a Guerra no Iraque e os dilemas envolvidos no conflito, retratados em Jogo de Poder (Fair Game, dir. Doug Liman, 2010), Zona Verde (Green Zone, dir. Paul Greengrass, 2010) e Guerra ao Terror (The Hurt Locker, dir. Kathryn Bigelow, 2008), a própria figura do presidente George W. Bush em W. (dir. Oliver Stone, 2008), a corrupção de corporações como em Intrigas de Estado (State of Play, dir. Kevin Mcdonald, 2009), filmes sobre o terrorismo e conflitos no Oriente Médio em O Suspeito (Rendition, dir. Gavin Hood, 2007), O Reino (The Kingdom, dir. Peter Berg, 2008) e Rede de Mentiras (Body of Lies, dir. Ridley Scott, 2008). Outra películas apresentaram uma reflexão sobre o impacto nos indivíduos e nas famílias que esse contexto teve na sociedade norteamericana, como em No Vale das Sombras (In the Valley of Elah, dir. Paul Haggis, 2007) e O Visitante (The Visitor, dir. Thomas McCarthy, 2007)26. Como destacamos anteriormente, a personagem de Frank Costello apresenta uma defesa do individualismo e da vontade do homem para conseguir definir o seu futuro. Para ele, lei, ordem e
HIRSHEY, Gerri. “Entrevista com Martin Scorsese”. Rolling Stone: Edição 09, Junho de 2007. Disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/9/entrevista-com-martin-scorsese#imagem. Acessado em 22 de fevereiro e 2016. 26 Sobre a forma de organização de Hollywood nos anos 2000 e os filmes produzidos nesse período, conferir: BALIO, Tino. Hollywood in the New Millennium. London: Palgrave Macmillan, 2013; CORRIGAN, Timothy (ed.). American Cinema of the 2000s: themes and variations. New Brunswick/ New York/ London: Rutgers University Press, 2012; MCDONAL, Paul & WASKO, Janet. Malden (ed.). The Contemporary Hollywood Film Industry, MA: Blackwell Publishing, 2008; EPSTEIN, Edward Jay. O grande filme: dinheiro e poder em Hollywood. São Paulo: Sumus, 2008; LANGFORD, Barry. Post-Classical Hollywood: Film Industry, Style and Ideology Since 1945. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2010. 25
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moral não deveriam ser capazes de impedir alguém de alcançar esses objetivos. Todavia, essa ausência de moralidade diz respeito às instituições, não a ele. A personagem de Jack Nicholson constrói na região que ele domina um lugar onde o que é certo e errado é definido por ele, o ambiente é um produto dele mesmo. Martin Scorsese: Nesse filme, Jack (Nicholson) controla tudo. Ele tem o poder de vida e morte sobre todo mundo à sua volta, Leo, Matt, Queenan [o chefe da polícia que tenta prender Nicholson, interpretado por Martin Sheen] (...) Eu senti que não era só um filme sobre Frank Costello. É a obscenidade e a violência que ele representa que permeiam o filme, permeia aquele mundo27.
Costello, apesar de não ser a personagem principal, é quem define o ambiente à sua volta. Como um presidente ou chefe de estado, ele determina a condução de seu território. Ainda enquanto Billy está traficando para chamar a atenção do chefe do crime, ele é advertido pelo seu primo de que não deviam vender droga naquela região porque “ele” disse, quando Billy indaga quem seria esse “ele”, seu primo responde: “Ele disse. Costello disse. Deus disse no que te diz respeito”28. Mais tarde no filme, quando Costello encontra dois padres, ele fala: “Eu tenho que lembrar vocês que não é Deus que comanda o bingo nesta arquidiocese?” 29. A centralidade da personagem de Frank Costello não é a de somente conduzir os seus negócios e sua gangue. O criminoso afeta diretamente as pessoas ao seu redor, cria um ambiente à sua volta que funciona a partir de uma moral definida por ele. Essa influência repercute em todas as personagens. Não só nos homens que trabalham para ele, mas também nos policiais que o querem prender. O Capitão Queenan e o Sargento Dignam usam Billy para conseguir prender Costello, e o próprio policial cada vez mais se parece menos com um agente da lei. Quando um dos indivíduos que Billy deveria fazer pagar a sua dívida menciona que Costello é um informante do FBI, Billy faz de tudo, inclusive apontar uma arma na cara dele e atirar em sua perna, para ele que ele conte o que sabe. De acordo com Scorsese: Na medida em que estávamos filmando, eu percebi que estávamos em uma espécie de Marco Zero moral. Quase todos os personagens são assim, talvez Billy (DiCaprio), talvez a doutora
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SCHICKEL, op. cit., p.334-335. Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:15min. 29 Os Infiltrados (The Departed). Direção: Martin Scorsese. Produtor: Graham King. Estados Unidos da América, 2006. DVD. Cena: 0h:47min. 27
(Vera Farmiga), ela se sente de uma certa maneira sobre a moralidade, mas ela comete erros, ela aprende sobre si mesma, ela, de certa maneira, também tem dois lados, é um mundo onde a moralidade não mais existe. Costello (Nicholson) sabe disso. Eu penso que ele está quase acima disso, ele sabe que Deus não existe mais no mundo que em que eles estão hoje e é a velha história, para saber que você tem um problema, você tem que saber que tem um problema primeiro. Você realmente tem que saber e essa é a minha abordagem. Tenho certeza de que o Bill (roteirista) tinha a sua própria abordagem, mas eu senti que uma espécie de desespero que reflete na história, nas personagens e como eles interagem entre eles e como no final é resolvido. Eu penso que para mim há uma tristeza e um senso de desespero desde o Onze de Setembro e de alguma forma isso tudo se juntou e o que me fez continuar a descrever esse mundo como uma espécie de Marco Zero moral30
Na história, a personagem de Leonardo DiCaprio, como a de Matt Damon,vive em um ambiente onde a ideia de ética é deturpada, todas as personagens mentem umas para as outras. Ambos são soldados em um conflito entre polícia e gangues e, na verdade, os dois lados se importam muito pouco ou quase nada com eles. Tanto na policia como no crime organizado há conflitos e corrupção, não há a opção de se ter um lado bom e outro ruim, visto que até na polícia, além de informantes, há confronto entre detetives, desconfiança e mentiras. Scorsese transfere o clima da política e sociedade norte-americanas para o relacionamento pessoal e profissional entre as personagens, assim como há mentiras por partes de políticos, todas as personagens vivem em um ambiente em que a ausência de honestidade é algo comum. O medo perpassa todas as relações pessoais, tanto o de ser descoberto, como também o de ser traído ou de ser apenas uma peça sem importância em um jogo de tabuleiro. O longa-metragem constrói um ambiente em que as relações pessoais ficam em segundo plano, a paranoia e o instinto de sobrevivência guiam a maioria das ações. Logo que se inicia o filme, fica claro que Billy e Colin são vítimas de um conflito cuja dimensão eles não têm ideia, de certa forma, os dois já estão condenados desde o início. Quando o filme se encerra, restou muito pouco nos dois lados, ambos destruíram o inimigo e se autodestruíram. Ao final do filme, Billy e Colin descobrem que, durante todo o tempo, Costello trabalhou como um informante para o FBI, revelando que ambos foram usados tanto pelo criminoso como pelas forças da lei. Quando se encerra o longa-metragem, quase nenhuma das personagens principais sobreviveu. Costello, Billy e Colin foram assassinados. Quem ainda vive é Madolyn, namorada de Colin, que teve um caso com Billy. Ela esta grávida de uma criança que talvez, ao contrário de Billy e
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TOPEL, Fred. “Interview: Martin Scorsese”. CinemaBlend. 02 de outubro de 2006. Disponível em: http://www.cinemablend.com/new/Interview-Martin-Scorsese-3542.html. Acessado em 22 de fevereiro de 2016. 30
Colin, possa viver em um ambiente diferente onde haja moral e o certo e o errado possam ser identificados. O Marco Zero moral funciona em um lugar em que já existiu determinada moralidade e ela foi destruída, no entanto, poderia ser reconstruída por uma nova geração representada pelo filho da mulher que teve um relacionamento com Billy e Colin. Como destaca Scorsese em uma entrevista: “O bem e o mal se tornaram desfocados”, diz Scorsese. “Isso era algo que eu sabia que estava atraído. É um mundo onde moralidade não existe, bem não existe, então você não pode nem mais pecar porque não há nada para se pecar contra. Não há nenhuma espécie de redenção” (...) (Pilkington, entrevistador)Você pode ver Os Infiltrados como um comentário sobre a América nos dias de hoje, na qual bem e mal se tornaram tão inseparáveis e mutuamente auto-perpetuadores: um presidente dos Estados Unidos comete atos de violência em um país estrangeiro em nome do bem contra o mal, desencadeando forças obscuras que só podem ser controladas através de mais atos de violência. Quando eu sugeri isso para ele (Scorsese), ele se entusiasmou com a ideia. Ele disse que esse sentimento era fundamental para ele tomar a decisão de fazer o filme inicialmente e a sustentou mesmo quando ele teve (...) dificuldades para fazer o filme (...) Ele (Scorsese) diz “Porque eu acho que há uma raiva, por falta de uma palavra melhor, com o estado das coisas. Uma raiva que eu espero que não te consuma, mas um desejo de expressar o que eu sentia após o desespero do Onze de Setembro. Minha resposta emocional é esse filme. Isso se tornou cada vez mais claro à medida que o fazíamos, mais assustador. Veio de um forte estado de convicção sobre o estado emocional e psicológico que eu estou agora sobre o mundo e sobre como nossos líderes estão se comportando”.31
Conclusão Em Os Infiltrados, a ausência de moral reflete como a política norte-americana foi conduzida e as mentiras contadas são transformadas na trama do próprio filme. A incapacidade de diferenciar o bem do mal, o certo do errado perpassa as ações de todas as personagens. Assim como o ambiente sem moral é um produto de Costello, o criminoso é um produto da ausência de moralidade dos Estados Unidos pós-Onze de Setembro. No filme, não só a violência tem um efeito destruidor, mas a mentira igualmente. Ela também afeta todas as personagens, são todas, de certa forma, mentirosas. As ações que levam à morte da maioria das personagens não é somente um processo de eliminação do inimigo, mas também de autodestruição, de negação de valores e princípios que deveriam conduzir as pessoas e um país.
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RITMOS PLÁSTICOS:
Os bailados de Eros Volúsia e os desenhos de Rugendas e Debret Andréa Casa Nova Maia* Ana Paula Brito Santiago** RESUMO: Em artigo publicado no Suplemento em rotogravura do Jornal Estado de São Paulo de setembro de 1939, Mário de Andrade faz uma crítica ao trabalho de Eros Volúsia, então considerada a criadora do “bailado nacional”. No texto, ele compara os movimentos coreográficos da bailarina com os desenhos de Rugendas e Debret. A partir deste diálogo proposto por Mário de Andrade, vamos friccionar as obras, analisar os possíveis cruzamentos entre planos artísticos e temporais distintos. Através de algumas aquarelas de Debret e Rugendas e de Fotografias de Eros Volúsia no palco, mapearemos seus respectivos trajetos de apropriação das manifestações populares dentro do território brasileiro; seus respectivos ethos artístico. Perceber como se constitui este “olhar de fora”, olhar estrangeiro, que ressignifica as culturas populares brasileiras em suas linguagens –performance do corpo em movimento e em linhas, traços e cores. PALAVRAS-CHAVE: Cultura brasileira; ethos artístico; dança; Eros Volúsia.
PLASTICH RHYTHMS: THE BALLETS OF EROS VOLÚSIA AND THE PAINTINGS OF RUGENDAS AND DEBRET ABSTRACT: In a article published in Suplemento in a 'retrogravura' of Estado de Sao Paulo newspaper of September 1930, Mario de andrade criticises Eros Volusia's work, then considered the creator of "the national bailado". In the texts he compares the ballet dancer's movements with those of Rugendas and Debret. After this initial dialogue proposed by Mario de Andrade we intend to friction the pieces, analysing possible interactions between both artistic and temporal plains. Through the analysis of some of Debret and Rugendas paintings and instage photographs of Eros Volúsia, we will map their own appropriations of popular manifestations within Brazilian territory; their own artistic ethos. Realizing how this "look from outside", foreign look, which reinterprets brazilian popular cuktures in their own linguages - the body in motion and in lines, traces and colors. KEYWORDS: Brazilian culture; artistic ethos; dancing; Eros Volúsia. ***
de História do Brasil Republicano e História da Arte do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/PPGHIS-UFRJ). ** Bolsista de Treinamento e Capacitação Técnica 4 da FAPERJ do Projeto Memória, Trabalho e Paisagens urbanas: Representações da cidade e de seus trabalhadores na cultura visual brasileira da primeira metade do século XX – coordenado pela Dra. Andréa Casa Nova Maia.
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* Professora
Introdução O caso da bailarina Eros Volúsia é de enorme interesse (...) é uma bailarina verdadeira, que tem sua dança naquela mesma necessidade mística do gesto imitativo pela qual, no dizer de alguns etnógrafos, o baile foi a primeira expressão estética dos homens sobre a terra. (...) Ora a vemos evocando o antigo Lundu, numa graça mestiça que lembra delicadamente os desenhos de Rugendas e Debret.1
P
ensamento mestiço. Por que Mário de Andrade compara a dança de Eros aos desenhos de Rugendas e Debret? Um tupi tangendo um alaúde e uma dançarina de elite dançando Lundu no palco do Teatro Municipal... Circularidade e/ou hibridismo cul-
tural? Atravessamentos e impregnações múltiplas que provocam ruptura com antigas separações e dicotomias entre cultura popular, cultura erudita e cultura de massa enfatizadas por velhos postulados teóricos que não reconheciam a permeabilidade entre diferentes modos de ser, ver e agir dos grupos sociais e seus sujeitos históricos. Afinal, em que sentido os gestos de Eros Volúsia e os traços de Debret e Rugendas recolhem fragmentos de diferentes cenas urbanas, sobretudo de um Rio de Janeiro mestiço que derramava festas, danças rituais e muito mais em cada esquina, em cada paralelepípedo? Ao incorporarem a cultura popular das ruas para a tela, para o palco, que (re)criação emerge, transforma e tece novos imaginários sobre o que é o Brasil e o que fica plasmado como sendo constituinte de nossa identidade nacional, questão muito presente na época de Eros e que já começava a ser questionada já nos tempos em que Rugendas e Debret por aqui passaram? Esses artistas produziram representações do Brasil. Sabemos que representações são matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade2. São também portadoras do simbólico. Ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos que, construídos social e historicamente, acabamos por internalizar. Nas palavras de Sandra Pesavento:
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ANDRADE, Mário de. Eros Volúsia. Suplemento em rotogravura do jornal “O Estado de São Paulo”, n. 142, set./1939. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: DIFEL, 1990.
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A força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não veracidade. (...) As representações apresentam
múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social.3
É através da apropriação que se dá a operação de "produção de sentido”. Em seu artigo Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico4, Roger Chartier, propõe uma análise partindo não de uma identificação da cultura popular através da distribuição supostamente específica de certo objetos ou modelos culturais entre setores da sociedade. Para ele, o que importa é perceber as formas de apropriação da cultura por indivíduos ou grupos5. Em O queijo e os vermes6, Ginzburg, traz o conceito de circularidade cultural, que é o seu ponto de partida para se pensar a história. Para ele, a cultura não é algo estanque e estático, ao contrário, a cultura teria o caráter dinâmico e possuiria a faculdade de "circular" entre os setores da sociedade. Circularidade, para Ginzburg, designa o movimento de infiltração dos produtos culturais entre os setores hierárquicos da sociedade. Deste modo, o conceito permite verificar que os discursos dos setores representativos da cultura erudita e letrada podem permear e moldar as práticas de outros grupos sociais iletrados e que, da mesma forma e em sentido inverso, os setores subalternos atravessam a cultura hegemônica com as praticas discursivas que elaboram, e também exercem influência nos setores chamados de “portadores da cultura erudita”. O conceito de circularidade, em suma, diz respeito à constante permeabilidade cultural dentro da sociedade hierarquizada. Nas bases conceituais de Chartier, Ginzburg e Gruzinski é que o diálogo, feito primeiramente por Mário de Andrade, entre os pintores do século XIX, Debret e Rugendas, e Eros Volúsia, dançarina de meados do século XX, se faz possível. Pois, em suas obras estão contidas as representações, leituras e apropriações que ela faz da cultura popular, a partir das suas próprias identificações e qualificações enquanto elite intelectual, que têm poder de classificar e nomear o que seria a “verdadeira cultura popular brasileira”. Seja na pintura, seja na criação de bailados coreográficos, é possível perceber nas trajetórias desses artistas, através do estudo de seu ethos artístico, suas histórias de vida e concepções de mundo, em que medida as noções do que é o popular circulam numa sociedade. Afinal, dissertar PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. (Coleções História &... Refleções), p. 42. 4 CHARTIER, Roger. "Cultura popular": Revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, pp.179-192. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.pdf. 5 Idem, ibidem, p. 185. 6 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. Das Letras, 1987. 3
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sobre as formas de apropriação significa tratar das formas de recepção e de compreensão de uma determinada realidade vigente. Por isso, primeiro vamos contar um pouco a trajetória de Eros Volusia no Rio de Janeiro, para depois comparar sua performance com os trabalhos dos artistas viajantes que apresentaram para os quatro suas idéias do que era a cultura na terra brasilis.
Eros Volúsia na cosmopolita capital federal (Rio de Janeiro, 1920-40) A investigação humana ainda não poude precisar o nascimento da dança, porém afirma que foi ela a arte primeira. Na dança encontrou o homem a expressão inicial, a palavra do seu deslumbramento, o meio de agradecer a Deus a alegria da vida. O primeiro baile foi a oração.7
Dia 22 de Setembro de 1941, é publicada na capa da revista Life uma fotografia de uma jovem com volumosos cabelos negros presos por um grande laço de fita, além de um par de brincos de grandes argolas compostos por contas e trajando uma vestimenta ousada – um “top” feito de contas, no qual é possível ver a pele por entre as fileiras de contas, e uma saia na altura da cintura – que deixava aparente o seu esbelto corpo e, ainda muitas pulseiras e braceletes feitos também de contas. Na capa, ao lado da foto, um enunciado chama atenção: “Brazil’s top dancer”. A jovem que aparece na revista norte-americana é Eros Volúsia, bailarina brasileira que nos anos de 1930 e 1940 conquistou não apenas os palcos brasileiros como também acabou por alcançar um público internacional. Eros Volúsia era mais do que uma bailarina que se apresentava em cassinos. Como descrito na própria revista, também era professora do Serviço Nacional de Teatro, além de arriscar-se como atriz e cantora em alguns teatros de revista e filmes nacionais e um internacional 8. Participou do filme hollywoodiano Rio Rita (1942), uma comédia da Metro-Goldwyn-Mayer, dirigida por S. Sylvan Simon. Eros Volúsia se apresentava como uma pesquisadora, a “criadora do bailado brasileiro” 9 e como ela mesma costumava dizer, suas coreografias eram fruto de uma pesquisa das “danças populares brasileiras” em “suas origens”. Foi como pesquisadora das raízes da dança tipicamente brasileira
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VOLÚSIA, Eros. A creação do bailado brasileiro: coferencia realizada em 20 de julho de 1939 no Teatro Ginastico, p. 11. 8 Favela dos Meus Amores (1935), Samba da Vida (1937), Caminho do Céu (1943), Romance Proibido (1944) e Pra Lá de Boa (1949). 9 Tal título foi muitas vezes evocado pela imprensa da época. Pode-se ver como exemplo dessa titulação como algo corrente na época apresenta-se na seguinte crítica de Grock, no Jornal O Cruzeiro (22/05/1943), sobre a participação de Eros 7
que seu sucesso foi legitimado. Tanto que o Ministro Capanema, durante o governo Vargas, convidoua a assumir a cadeira de professora de dança do Serviço Nacional do Teatro, dentro do espírito nacionalista que permeava o ambiente político e intelectual – lembremos de quantos foram os artistas envolvidos com a Semana de Arte Moderna de 1922 e como o modernismo em suas diferentes vertentes, que também participaram do projeto varguista. Eros Volúsia é uma personagem cuja trajetória artística traz em si uma complexidade de questões possíveis sobre o campo artístico brasileiro, os diálogos entre seus integrantes e o projeto político do período, além da própria construção de identidade(s) brasileira(s) tanto dentro quanto fora do país. Porém, cabe aqui expor um pouco do que era o Rio de Janeiro no qual Eros Volúsia cresce pessoal e profissionalmente para que possamos chegar a uma melhor caracterização do seu ethos artístico e a teia de sensibilidades que envolve as relações entre cultura e política.
O cenário Com o fim do Império e com o nascimento da República novas imagens passariam a plasmar a idéia de nação brasileira. Novo regime, nova genealogia histórica, nova mitologia de heróis nacionais. As primeiras décadas do século XX no Brasil foram períodos de construção de uma identidade nacional. Nesse sentido, sobre o campo do pensamento político-social, Lúcia Lippi Oliveira, em seu livro A questão nacional na Primeira República10, traz como enfoque o nacionalismo, uma representação preocupada em definir os traços específicos de um povo e suas diferenças entre os demais. Para a autora, a década de 1920 traz em si um período de grande efervescência cultural e política, além de profundas transformações no Brasil. Evidenciando um aumento nos próprios questionamentos sobre o tradicional regime político existente no país. Apesar de já haverem ocorrido cisões nas oligarquias em outros momentos, a partir de 1920 o sistema começava a se mostrar incapaz de controlar movimentos dissidentes. E, utilizando a expressão de Marieta M. Ferreira e Surama C. Sá Pinto, durante esses anos o país se viu “mergulhado numa crise cujos sintomas se manifestaram nos mais variados planos (...)”11.
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Volúsia na Temporada Oficial de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1943: “(...), e por Eros Volúsia, que o programa e os anúncios denominam como sendo a ‘criadora do bailado brasileiro’.” 10 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1990. 11 FERREIRA, Marieta Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. “A crise dos anos 20 e a revolução de 1930”. In: FERREIRA, Jorge. Delgado, Lucilia de Almeida Neves. Org. e outros. O Brasil Republicano. O Tempo do Liberalismo excludente – da proclamação da República à Revolução de 1930. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
A temática sobre o clima do primeiro pós-guerra e suas alterações fundamentais na forma de se pensar o Brasil, também é tratado por Mônica Pimenta Velloso em seu artigo sobre o idéario de nacionalismo no modernismo12. Para ela, a crise de valores que agitou o cenário europeu teve seus reflexos imediatos no pensamento social brasileiro. A autora expõe a questão dos intelectuais brasileiros se auto-elegerem executores de uma missão: encontrar a identidade nacional, rompendo com um passado de dependência cultural. Ela também destaca o fato da problemática da organização nacional ser o tema corrente no debate intelectual. Nesse caso, a política adquire papel fundamental. Velloso mostra que apesar de não ser um todo consensual, a percepção do nacional que defende a eliminação das partes em favor do conjunto torna-se uma das idéias-guias do modernismo. Todos os modernistas estão convencidos de que só a partir do conhecimento de nossas tradições é possível encontrar um caminho próprio, uma cultura de bases nacionais.
A personagem Para a realização artística da dança brasileira eu tinha comigo dois coeficientes poderosos: o sangue e a convivência com os miseráveis. Não fosse o meio humilde em que nasci e me desenvolvi, entre as capoeiragens quotidianas do “Morro da mangueira” e os batucagés nostálgicos de Cascadura, jamais poderiam meus membros fixar em seus movimentos o múltiplo, o sucessivo e o imprevito da coreografia do nosso povo.13
Em meio a este cenário de turbulência e profusão de novas propostas de interpretação do Brasil, é que entra em cena a personagem Eros Volúsia, a “criadora do bailado nacional”. Heros Volúsia Machado, nascida em São Cristóvão, bairro do Rio de Janeiro no dia primeiro de junho no ano de 191614, vivencia todo este momento cujas idéias de vanguarda fluíam no Brasil. É possível perceber as suas escolhas artísticas tendo em vista, também, a própria história familiar. Afinal, Eros Volúsia era filha do poeta Rodolfo Machado e da poetisa Gilka Machado e, desde seus bisavós, que eram músicos até sua avó Thereza Cristina, que era atriz de radionovela, cresceu
VELLOSO, Mônica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89-112. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/oz/FCRB_MonicaVeloso_Brasilidade_verde_amarela.pdf 13 VOLÚSIA, Eros. A creação do bailado brasileiro: coferencia realizada em 20 de julho de 1939 no Teatro Ginastico, p. 19. 14 Porém há controvésias sobre o ano, podendo aparecer também como ano de nascimento da bailarina como sendo 1914. 12
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cercada por artistas. Sua mãe, poetisa simbolista do início do século XX, chegou a ser eleita "a maior poetisa do Brasil" – em 1933 – por concurso da revista O Malho e exerceu forte influência sobre Eros. Vale destacar que Gilka Machado, viúva em 1923, abriu uma pensão – na Rua São José número 132 – no centro do Rio de Janeiro para ajudar a sustentar a família. A pensão era muito freqüentada por intelectuais e artistas do início do século XX, o que propiciou a Eros uma convivência, desde a infância, com figuras renomadas da política e da intelectualidade brasileira. Apresentou-se, na pensão, por exemplo, para a então primeira-dama Darcy Vargas... Conheceu escritores tais como o jovem Nelson Rodrigues; poetas, músicos e outros expoentes da arte nacional15.
A cena A arte não se pode deter deante da vida que se modifica todos os dias, na adoração do belo realisado, reproduzindo-o. A escola clássica dá-nos chave de belos movimentos e atitudes: sirvam-nos dela para abrir as portas à imaginação creadora, não permitindo que a mesma nos encarcere dentro de seus preceitos. O que hoje é considerado plebeísmo ou modernismo revolucionário, amanhã estará academizado, pois o classicismo coreográfico inspirou-se nas criações anônimas dos povos, é um amalgama de movimentos característicos da dança universal.16
Quanto à história da dança no país naqueles tempos, cabe ressaltar que a consolidação do balé já vinha ocorrendo desde o início do século, a partir da inauguração do Theatro Municipal, em 1919. Ali diversas companhias estrangeiras passaram a se apresentar como os Ballets Russos de Diaghilev, em 191317. Alguns anos depois, Anna Pavlova – famosa bailarina que integrava antes a companhia de Diaghilev – apresentou-se com sua companhia. Uma de suas bailarinas, Maria Olenewa (1896- 1965), acabou se estabelecendo por aqui e foi responsável pela criação da primeira escola oficial de balé do país: a Escola de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 192718; e pelo surgimento do corpo de baile desse teatro, em 1936. Foi em meio ao efervescente ambiente artístico da capital federal que Eros Volúsia iniciou sua formação clássica em dança. Aos 14 anos de idade, Eros começou a freqüentar a recém criada Escola Vide PEREIRA, Roberto. Eros Volúsia: a criadora do bailado nacional. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2004. (Perfis do Rio; v. 42). 16 VOLÚSIA, Eros. A creação do bailado brasileiro: coferencia realizada em 20 de julho de 1939 no Teatro Ginastico, p. 15. 17 Serge Diaghilev (1872-1929) foi um dos maiores diretores e produtores de balé do mundo, responsável pela revelação de grandes nomes da dança no Ocidente, como Vaslav Nijinski (1890-1950) e Anna Pavlova (1881-1931). 18Atual Escola Estadual de Dança Maria Olenewa. 15
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de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Sua primeira apresentação pública foi no palco do teatro onde estudou, em 1929, participando de uma homenagem ao então presidente Washington Luiz. A bailarina apareceu dançando descalça, acompanhada por violão e batucadas. Uma ousadia para a sociedade da época, tendo em vista o conservadorismo e o preconceito inerente às elites. Afinal, tratava-se do espaço da erudição, onde a alta sociedade transitava com seus trajes finos: fraques para os cavalheiros e vestidos, jóias e sapatos de cetim para as damas. Porém, mesmo de pés descalços, a jovem bailarina encantou ao público e acabou sendo elogiada pelo próprio presidente na ocasião. Passaram ainda outras companhias pelos palcos do Theatro Municipal durante este período19, provocando um crescente interesse pela arte do balé no Rio de Janeiro. No entanto, o regime estadonovista de Getulio Vargas, instaurado em 1937, investia fortemente na valorização de temas nacionais, política que atingia também as linguagens artísticas. Neste caminho, cabia à arte identificada como “erudita”, o balé, representar as danças e figuras “populares” de maneira a delineá-la na linguagem própria para que se pudesse apresentadá-las ao refinado gosto do público do Theatro Municipal. Nas palavras da própria bailarina Eros Volúsia sobre a cena da dança no Brasil: Artisticamente, a dança brasileira resumia-se no maxixe, executado a dois, em espetáculos de variedades, de “music-hall”, não passara ainda de numero popular á classificação elevada de expressão artístico-racial. Atualmente, porém, ela já se encontra um tanto vulgarizada, já foi apresentada oficialmente pelo Ministério da Educação, já figura no Municipal em festas de gala e nas temporadas oficiais de bailados clássicos, já constitue espetáculo isoladamente, tão rica é ela de modalidades; e seu êxito artístico assumiu tais proporções que todos os bailarinos estrangeiros que aqui aportam incluem-na ás pressas em seus repertórios, para a conquista do publico.20
Segundo Roberto Pereira, é a partir do balé que no governo de Getúlio Vargas nasce o romantismo ufanista, com os conceitos básicos do romantismo (nacionalismo, cultura, folclore, etnia e raça). Em seu trabalho sobre a formação do balé brasilieiro, Pereira percebe que a necessidade de fortalecer a identidade nacional fez com que o Estado Novo investisse na valorização da cultura e da educação, o que resulta numa identificação entre a nação e o Estado. Assim, as iniciativas de “abrasileirar” o balé viveram um período de grande efervescência. Criavam-se espetáculos com temáticas, cenários, figurinos, músicas e, claro, bailarinos brasileiros. Porém, sob o comando de estrangeiros, como Eugenia Feodorova (1925-2007), Tatiana Leskova (1922), Vaslav Veltchek (1896-1967) e Yuco Lindberg
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Nas décadas seguintes, grupos como os Ballets Russes de Monte Carlo, o American Ballet e o Original Ballet Russe fizeram temporadas no Rio (1942, 1944 e 1946). 20 VOLÚSIA, Eros, op. cit., p. 12. 19
(1906-1948), entre outros21. Típico movimento de nosso modernismo nacional-estrangeiro, onde Tarsila do Amaral visita Léger, e Eros recebe ensinamentos de Maria Olenewa, mas suas criações não são mera repetição pois, como boas antropófagas, deglutem as vanguardas com o estômago brasileiro.
Nos palcos Introduzir a plástica da musica como num “maillot” tenuissimo; transmutar em expressão e movimento os ritmos sonoros que penetram os sentidos, desenvolvendo-os ao infinito na rapidez do milagre da arte; encarecerar vôos nos gestos, dando asas aos rastejos; empreender, ás melodias uma fuga do eu; traçar com o corpo, no espaço, as palavras profundas do silêncio; conter na elasticidade frágil da forma a alma de toda a natureza e a natureza de todas as almas: dançar!22
Eros Volúsia, em sua conferência sobre a criação do bailado brasileiro no Teatro Ginástico, pontua o início de suas pesquisas e apresentações de “folk-danse” brasileira – termo utilizado por ela na referida conferência – em 1930, quando “(...) nada havia sido realizado. Mesmo os mais notáveis folk-loristas nacionais não haviam ido além de referências lacônicas, de anotações ligeiras e confusas sobre o assunto”. 23 [itálico nosso] A bailarina ainda como aluna da Escola de Bailados já apresentava os seus interesses pela temática brasileira, sendo que a sua primeira grande apresentação foi realizada no dia 28 de setembro de 1929, no Teatro Municipal, já aqui comentado anteriormente. Na Festa da Primavera, organizada pela Mocidade Feminina Carioca, em homenagem ao então presidente Washington Luiz, Eros Volúsia dançou “um samba típico baiano”, de autoria de Aníbal Duarte de Oliveira.24 Destacam-se também as pequenas apresentações que Eros promovia em sua casa na rua São José. Ela teria ainda outras apresentações importantes no ano de 1931: um recital inteiramente seu no Teatro João Caetano, e uma apresentação a convite do historiador Luís Edmundo a ilustrar sua conferência sobre as danças do Brasil colonial, na Escola de Belas Artes.25 Passados quatro anos na Vide CERBINO, Beatriz. Tico-tico sem fubá: Nos anos 1940, o balé tentou incorporar elementos tipicamente nacionais à erudita arte russa. Artigo da Revista História da Biblioteca Nacional, publicada em 01 de maio de 2009. Deisponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2378 e PEREIRA, Roberto. A formação do balé brasileiro: nacionalismo e estilização. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 22 VOLÚSIA, Eros, op. cit., p. 15. 23 Idem, p. 12. 24 Cf. PEREIRA, Roberto. Eros Volúsia: a criadora do bailado nacional, p. 27. 25 Além dessas apresentações, a bailarina também participou de algumas outras no Teatro Cassino, onde foram exibidas outras de suas obras: Jongo, Yara e Última folha de outono. Vide PEREIRA, Roberto. Eros Volúsia: a criadora do bailado nacional. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 2004 (Perfis do Rio; v. 42), p. 28-30. 21
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Escola de Bailados do Theatro Municipal, Eros interrompe a sua formação clássica para se envolver inteiramente nas danças brasileiras, quando suas performances se tornariam mais frequentes. Porém foi no dia três de julho de 1937 a sua grande estreia. Eros levou ao palco do Theatro Municipal, no espetáculo intitulado Eros Volúsia – Bailados brasileiros, suas danças provindas de fontes populares. Esta noite, de espetáculo inteiramente dela, foi uma inciativa do Ministério da Educação e Saúde e contaria com a presença do presidente Getúlio Vargas e membros de seu corpo diplomático. Nesse ano, Eros passou pela Bahia, onde fez apresentações e deu continuidade às suas pesquisas de danças afro-brasileiras. Depois foi para Recife, apresentando-se no importante Teatro Santa Isabel, a convite do governador Lima Cavalcanti. Lá também aprofundou suas pesquisas sobre as danças locais. De suas inúmeras viagens pelo país retirou os gestos do povo, suas festas e danças de rua, seus costumes e crenças. Ou seja, viajava sob os caminhos do mapa de nosso “maior tesouro”, como ela mesma anos depois afirmou em conferência no Teatro Ginástico em 1939: Podemos afirmar, sem receio de contestação que, em variedade de passos, excenctricidade de gestos e projecção de sentimentalismo, a dança brasileira é um tesouro que deslumbrará os olhos do mundo quando transpuser fronteiras. (...) Sendo eu a primeira bailarina que se interessou por crear o bailado nacional, tinha que começar do principio: reproduzindo, apurando, estilizando, creando. O que realizei, porém, nada representa deante do que é possível realizar, do que poderia já ter realizado, si para tanto não me faltassem em absoluto materiais.26
O corpo de Eros procurava o movimento do que ela considerava ser o genuíno gestual do povo brasileiro. Aqui seu corpo, que passaremos a olhar através de ilustrações, fricciona outros corpos, daqueles inscritos no traço dos estrangeiros.
O olhar do viajante: Debret e Rugendas (1815-30) em fricção com a dança de Eros Volusia
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VOLÚSIA, Eros, op. cit., p. xx.
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Uê, uê... uê, uá..Uê, uê... uê, uá... A lua vai saí e eu vô girá. A lua vai saí e eu vô girá. Vou caçá meu tatu, meu tamanduá. Vou caçá meu tatu, meu tamanduá. Uê, uê... uê, uá...Uê, uê... uê, uá... Umbigada de papudo é papudo que dá.
Eu também sô papudo eu também quero dá. Uê, uê... uê, uá...Uê, uê... uê, uá... O jacu tá no pau, atira, Antonio. O jacu tá no pau, eu vô atirá. Umbigada de papudo é papudo que dá. Eu também sô papudo eu também quero dá. Uê, uê... uê, uá...Uê, uê... uê, uá... Urubu desceu na terra com fama de dançadô. Gavião pegô a dama gavião foi quem dançô. Ora dança, urubu! Não senhor! Ora dança, urubu! Não senhor! 27
Mário de Andrade foi um precursor, junto com Mallarmé em seu poema “Un coup de dês jamais n´abolira le hasard” quando propôs uma aproximação entre diferentes linguagens artísticas. Projeto das vanguardas europeias desde o cubismo, o dada, o surrealismo, o construtivismo e outros movimentos da virada do século XIX para o XX. O poeta francês e o modernista brasileiro souberam, antes que as novas mídias e tecnologias se apoderassem da cena artística contemporânea, propor uma verdadeira ruptura de limites entre o texto, a música, a dança, as artes plásticas, teatro, fotografia etc. E, como um lance de dados não abole o acaso, foi por acaso que nos deparamos com a aproximação entre dança e desenho, entre o “lundu” de Rugendas e o “lundu” de Eros Volúsia:
Fig. 1 Lundu, de Rugendas.
Umbigada – Lundu de Roda, autor desconhecido.
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Fig. 2 Lundu, com Eros Volúsia. Fonte: Dança Brasileira: conferência de Eros Volúsia realizada em 20 de julho de 1939 no Teatro Ginastico, p. 29.
Eros captura e é capturada pela cena mágica de uma dança que remonta às origens africanas de nosso povo afro-descendente em fusão com a cultura ibérica, com nossas tradições portuguesas. O lundu ou lundum é um gênero musical contemporâneo e uma dança brasileira de natureza híbrida, criada a partir dos batuques dos escravos bantos trazidos ao Brasil de Angola e de ritmos portugueses. Da África, o lundu herdou a base rítmica, uma certa malemolência e seu aspecto lascivo, evidenciado pela umbigada, os rebolados e outros gestos que imitam o ato sexual. Da Europa, o lundu, que é considerado por muitos o primeiro ritmo afro-brasileiro, aproveitou características de danças ibéricas, como o estalar dos dedos, e a melodia e a harmonia, além do acompanhamento instrumental do bandolim. Rugendas lê a cena com olhos estrangeiros. Mas o olhar de Eros também é estrangeiro. É um olhar de pesquisadora, de cientista da dança. Conforme já foi dito, a artista foi convidada pelo historiador Luís Edmundo a ilustrar sua conferência sobre as danças do Brasil colonial, na Escola de Belas Artes. Neste evento se incluíam algumas danças indígenas e outras africanas, chegando até o lundu. Para esta performance, a bailarina afirmou ter feito uma consistente pesquisa, com o auxílio do próprio palestrante – que forneceu-lhe uma farta documentação sobre as danças, incluindo obras de Debret e Rugendas. Afinal, ela cria uma coreografia pautada pela sua formação enquanto bailarina clássica, mesmo que o
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Sua dança também é uma idealização, uma criação de um novo gestual para a cultura das ruas.
tempo inteiro esteja propondo uma ruptura com o clássico, pois estava em constante busca por uma “naturalidade” e liberdade de movimentos que a disciplina do gesto clássico não comportaria. Ela estilizou os movimentos “originais” para criar movimentos de palco, porém, diferente do balé clássico, procurou dissolver a dicotomia entre palco e rua, entre os movimentos da dançarina profissional e os movimentos dos festeiros, dançarinos das tradicionais festas religiosas e folclóricas. Também Rugendas e Debret estilizaram no sentido de idealização mesmo dos corpos e gestos dos homens e mulheres que pintaram. São índios e negros com corpos de deuses Greco-romanos...
Fig. 3 Batuque, de Rugendas.
Ou seja, são pinturas e desenhos que trazem a marca da formação de matriz clássica, de equilíbrio, harmonia e busca pela conquista da forma e do movimento perfeito. Uma arte pautada pelo conhecimento, pela técnica que deveria levar a mimeses daquela paisagem brasileira. Ou seja, também não correspondem exatamente ao que era e ao que foi. Embora, às vezes, tenhamos a sensação, ao olhar para essas telas, de que os retratados estão em movimento. Aqui ainda estamos sob a égide da mimese da realidade. Ainda não haviam ocorrido as mudanças que irão marcar, por volta de 1910, o campo quando o artista moderno rompe com a representação e a arte se torna cada vez mais livre dos tentáculos do “real”: “Ce ci nes pas une pipe”, do francês Magritte. Aqui o batuque de Rugendas ainda das, uma pintura da dança e não a dança em si.
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era o batuque do Brasil colonial. Depois das vanguardas o batuque passaria a ser o batuque de Rugen-
A semelhança entre a dança de Eros e os desenhos de Rugendas também aparece quando vemos os pés descalços em ambas as imagens. Da tela Capoeira, onde os negros e as negras com tabuleiros nas cabeças são representados descalços por Rugendas, a fotografia a seguir também registra tal fato:
Fig. 4 “Bate nos Tambores” Fonte: Jornal O Globo. Segundo Caderno, 03 dev. 2004, p. x.
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Fig. 5 Capoeira, de Rugendas.
Além disso, percebe-se nas duas imagens a interação existente entre os integrantes das respectivas cenas, em meio a batucadas e movimentos corporais que formam um conjunto de diálogos em gestos. Também é possível perceber tais traços de similaridades na representação da capoeira de Rugendas e o tocador de Urucungo de Debret:
Fig. 6 Tocador de Urucungo, de Rugendas.
Fig. 7 Carnaval, de Debret (ca. 1820-30).
os espaços entre aqueles que transitam. São mulheres com cestas na cabeças e mãos nos quadris que constituem a cena em que se delineiam um misto de linguagens corporais típicas entre os que dançam, Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.230-248, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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Nas ilustrações acima, em meio do cenário de um cotidiano de trabalhos, os sujeitos permeiam
lutam, ou tocam seus instrumentos musicais, além daqueles que passeiam e vislumbram o cenário composto por estas atividades. É perceptível também, em sua composição coreográfica retida na imagem fotográfica essas linguagens corporais em Eros. Um corpo que se movimenta a partir dos quadris para que se possa equilibrar a bacia na cabeça:
Fig. 8 “Peneirando Fubá”, com Eros Volúsia. Fonte: Dança Brasileira: conferência de Eros Volúsia realizada em 20 de julho de 1939 no Teatro Ginastico, p. 13.
Por isso, a (re)presentação circunda as criações feitas a partir do ethos de cada um. Tecer relações entre a obra de tais artistas significa promover uma espécie de arqueologia de suas poéticas, escavando debaixo da superfície de suas linguagens, as quais presumimos espelharem suas visões de mundo. Também é preciso levar em conta que:
MELLO, Celina Maria Moreira de. A literatura francesa e a pintura – ensaios críticos. Rio de Janeiro, 7Letras; Faculdade de Letras/UFRJ, 2004, p.149-150. 28
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A situação de enunciação dos textos literários e pictórios não foi vista como mero reflexo da realidade social em que se escreve a obra, mas em um processo circular em que a busca de uma legitimidade enunciativa e da constituição de suas condições de produção resultaram em obras marcadas por um contexto que contribuíram para modificar. 28
As imagens são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho. Nesse sentido, Peter Burke aborda sobre alguns perigos da utilização das imagens como evidências, tratando de questões importantes nas análises das fontes com um olhar crítico de questionamentos e não de apreensão de todas as suas informações pictórias como auto-explicativas, pois “tanto literalmente quanto metaforicamente, esses esboços e pinturas registram ‘um ponto de vista’.”29 [itálico nosso] Afinal, a arte tem suas próprias convenções, segue uma curva de desenvolvimento interno bem como de reação ao mundo exterior. Por outro lado, as imagens podem testemunhar o que não pode ser colocado em palavras. As próprias distorções encontradas em antigas representações são evidências de pontos de vista passados ou “olhares”. As imagens são testemunhas dos estereótipos, mas também das mudanças graduais, pelas quais indivíduos ou grupos veem o mundo social, incluindo o mundo de sua imaginação. A inserção de tipos nacionais na paisagem imaginada por viajantes pesquisadores são um documento vivo do relato das experiências dos artistas em meio ao ambiente “exótico” dos trópicos. Eros, por outro lado, construiu uma representação de dinâmicas populares brasileiras para o “bailado nacional”. Enquanto nos quadros de Debret e Rugendas existe uma ênfase nos tipos brasileiros inseridos em dinâmicas próprias ao seu universo, Eros se apropria dos mesmos tipos nacionais reinserindoos em uma dinâmica teatral, a qual deveria proporcionar uma maior compreensão da “cultura popular” no Brasil da primeira metade do século XX.
Considerações finais A “folk-dance” brasileira está claro que sempre exisitiu, mas sem cultivo e sem divulgação, ignorada por muitos e repudiada por quase todos. O próprio povo não tinha consciência da riqueza que possuía e o mundo artístico-social menosprezava essa propriedade.30
Entende-se dança como uma prática plural, um modo de expressão e tradução da realidade a qual se faz por meio de movimentos que lhe conferem forma e sentido; uma construção simbólica intrinsecamente ligada às representações e apropriações de realidade de um determinado grupo de
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BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 18. VOLÚSIA, Eros. A creação do bailado brasileiro: coferencia realizada em 20 de julho de 1939 no Teatro Ginastico, p. 19. 29
indivíduos. A Dança acontece a partir de um corpo social e historicamente construído, imbuído de valores em relação ao espaço e o tempo em que se apresenta. Tanto a dança como projeto e trajetória artística quanto a dança feita nas ruas como projeto de legitimação de identidades, são movimentos dançados que se correlacionam com a maneira de perceber-se como indivíduo, bailarino/coreógrafo ou um “dançador”31/festeiro, no contexto de uma coletividade em relação com a sua; a visão do real, do individual e/ou coletivo são, dessa forma, solidificados. Eros Volúsia em seus bailados cria uma ideia de Brasil. A partir de determinado evento popular, cria uma visão idealizada e a transforma em arte, adaptando as danças populares para o palco e gosto erudito. Debret e Rugendas criam uma ideia de Brasil, pois em suas pinturas e aquarelas há uma representação poética da paisagem. Não se trata do que foi, ou do que era o corpo em movimento. Mas de como, através de seus olhares subjetivos – cultura europeia, elite pensante do “mundo civilizado” – construíram imagens das culturas mestiças presentes cá nos trópicos ao sul do Equador.
Bibliografia e fontes
Denominação retirada de Mário de Andrade, maneira pela qual ele se refere ao congolês ao descrever a parte coreográfica da dança. In: ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. Vol. 2. Belo Horizonte: Itatiaia; 1982. 31
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“IN MARKETING WE TRUST”:
Trabalho e mercado religioso na Bola de Neve Church Manuela Lowenthal Ferreira* Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho** RESUMO: Esse artigo busca identificar como o discurso religioso neopentecostal da Bola de Neve Church opera e se apresenta a partir de diversas manifestações e representações associadas à sua adequação ao mercado de bens de salvação religioso. Reflete também acerca do trabalho religioso executado no interior dos templos desta igreja, realizado através de ferramentas de trabalho e especialistas, e implicando em relações de trabalho de pastores e de protagonistas da fé. Cabe ressaltar que a Bola de Neve Church, referência entre as igrejas neopentecostalizadas mais contemporâneas, caracterizase por um perfil marcado por discurso (aparentemente) flexível e adaptado à modernidade fluida, e intensa atuação no mercado da fé. PALAVRAS-CHAVE: Mercado; trabalho religioso; neopentecostalismo; Bola de Neve Church.
“IN MARKETING WE TRUST”: LABOR AND RELIGIOUS MARKET IN THE SNOWBALL CHURCH ABSTRACT: This article attempts to identify how the discourse of Neo-Pentecostal religion works and presents itself in regards to its diverse manifestations and representations in its relation to the market of religious goods, as well as how the Bola de Neve Church acts in relation to the religious work executed within the institution itself, incorporating various operative methods, specialists and work relations between pastors and protagonists of faith. The Church of Bola de Neve is used as a reference of (neo) Pentecostal expression, exemplifying an extremely diverse profile, flexible discourse, adaptable to the changeable modernity and its relevant activity in the so-called faith-market. KEYWORDS: Market; religious work; neopentecostalism; Bola de Neve Church. ***
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Campus Araraquara. Estuda a nova formação de mercados, no que envolve o mercado religioso, a nova configuração do trabalho, trabalho imaterial, religião como serviço, as concepções de sagrado e profano na sociedade contemporânea e a sua relação com a Economia. E-mail: manu_lowe@hotmail.com. ** Presidente da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Pós-Doutor em Ciências Humanas pelo Programa Interdisciplinar da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Autor de A grande onda vai te pegar: marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church (2013). Bolsista CAPES e PROMOP/UDESC à época da pesquisa. E-mail: edumeinberg@gmail.com. *
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Introdução
O
presente artigo busca compreender de que forma, na Bola de Neve Church, a racionalidade desenvolvida dentro da religião possui uma lógica interna particular que tem as condições econômicas como elementos norteadores. Este trabalho se
divide da seguinte forma: inicialmente, apresentamos algumas relações entre esfera econômica e esfera religiosa, bem como um contexto bastante sintético sobre a Bola de Neve Church; e em seguida, tecemos alguns comentários sobre as relações entre mercado religioso e mercado econômico na mesma, bem como acerca de como o trabalho religioso se constitui nesta. Por fim, trazemos algumas considerações sobre o que foi exposto anteriormente.
Algumas relações entre esfera econômica e esfera religiosa A esfera religiosa se apresenta, muitas vezes, como um âmbito isolado e independente das outras esferas da sociedade, porém, a compreensão de suas práticas e discursos está intimamente vinculada ao desenvolvimento de outros âmbitos do complexo social, como a economia e a política, em especial. A religião como esfera simbólica passa a acompanhar as regras de desenvolvimento do trabalho industrial, e embora não apresente uma dependência total, há a necessidade de percebermos a correspondência entre o âmbito material e o imaterial do organismo social, no sentido de que a construção do mundo envolve instrumentos materiais ou tangíveis (como as ferramentas de trabalho, utensílios, objetos) e não materiais ou intangíveis (como a religião e a linguagem). Ambas funcionam como ferramentas de produção e reprodução da realidade, assim como de compreensão e comunicação com o mundo. Cabe aqui, portanto, identificarmos sinteticamente algumas das possíveis relações entre mercado religioso e mercado econômico, considerando a esfera religiosa um novo campo de competitividade que se complexifica constantemente, apresentando elaboradas estratégias de atração de fieis e formando um mercado com regras próprias, atravessado por uma dinâmica que acompanha as leis da livre concorrência de mercado. a desenvolver meios de aprimorar a eficácia simbólica, a fim de se destacar em meio à diversidade de
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A esfera religiosa, ao se relacionar com a esfera econômica, e consequentemente política, passa
agências religiosas. Oferecem propostas e produtos inovadoras/es e diferenciadas/os, que muitas vezes ainda não foram ofertadas/os no mercado da fé.1 A formação de um mercado voltado para os bens de salvação se aprimora e se apropria de diferentes formas de mídias para atrair e envolver fieis, elemento que até então era visto como profano por muitas doutrinas tradicionais da vertente protestante. É o que podemos chamar de mercantilização do sagrado. Esse processo pode se constituir através de diversos meios, como a espetacularização e midiatização dos cultos, a formulação de um discurso caracterizado por uma linguagem contemporaneizada, a adoção de aproximações com o dito “mundo secular” (por exemplo através da “permissão” do uso de peças de vestuário e de piercings e tatuagens), a (ao menos aparente) proximidade do/a pastor/a em relação aos/às fieis. Ao mesmo tempo, vale lembrar a possibilidade de resistência à modernização do sagrado, como aponta Peter Berger: “A rejeição e a adaptação são duas estratégias possíveis para as comunidades religiosas em um mundo visto como secularizado”,2 e esta relação entre aceitação e repúdio a elementos “seculares” se dá de formas diferentes nas distintas agências religiosas (inclusive as neopentecostais) que constituem o mercado religioso brasileiro do tempo presente. Compreender a religião na modernidade é algo muito complexo e delicado, pois, se por um lado entende-se que o desenvolvimento da ciência reverberaria no declínio da religião, por outro, contrariamente, a modernidade também teria produzido movimentos fortes de contra-secularização,3 que resultariam em crises de ausência de sentido e em lacunas existenciais não preenchidas pelas respostas científicas – angústias que fariam com que as pessoas procurem comunidades de fé e grupos de apoio.4 A religião, como âmbito simbólico da sociedade, não deixa de acompanhar tais transformações, modificando seu papel / função no organismo social e as formas de manifestação do sagrado, e adequando-se ao mercado e sistema econômico.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999. BERGER, Peter. A Dessecularização do Mundo: uma visão global. In: Religião e Sociedade, vol. 21, nº 1, CER/ISER, Rio de Janeiro, 2001. 3 BERGER, idem. 4 O conceito de modernidade é muito amplamente discutido. Autores como Anthony Giddens (Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003); Anthony Giddens, Ulrich Bech, Scott Lasch (Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1995); Zygmunt Bauman (Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008); e Frederic Jameson (Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática: 1997) têm se debruçado nas últimas duas décadas sobre a caracterização social, histórica e teórica da modernidade nas sociedades ocidentais avançadas. 1 2
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Em meio a todos os processos sociais, sejam eles políticos, econômicos ou culturais, a religião costuma estar envolvida, pois ela é provavelmente o principal sistema de símbolos e linguagem, tendo assim papel fundamental na manutenção da esfera material e imaterial, atuando como ferramenta estruturante da percepção do pensamento de mundo e em especial do mundo social. Nesse sentido, há uma correspondência entre as estruturas sociais e as estruturas mentais, que se estabelece através de sistemas de estrutura simbólica.5 E, se tratando da religião na sociedade contemporânea, as relações se estabelecem a partir de símbolos também econômicos, configurados em relações de consumo. A religião passa a se intercalar com as demais esferas, incluindo em sua organização o uso de elementos racionais e políticos. A isso se conecta, ainda, as relações estabelecidas entre os indivíduos e o mundo em que vivem. Para Zygmunt Bauman, por exemplo, o consumismo é o efeito mais sintomático da sociedade, característica esta que é diretamente ligada ao individualismo. As relações se convertem em relações mercadológicas onde o consumo é o principal condutor das ações. O consumo é caracterizado por um ato imediatista, fugaz, rápido, superficial, que não atinge diretamente a essência do objeto e sim sua imagem. As identidades, então, se transformam de acordo com as necessidades e intenções do sujeito, sujeitos estes que buscam de forma incessante se integrarem a determinados grupos. Nesse sentido, Bauman desenvolve o conceito de modernidade líquida, que pode ser entendido nos seguintes termos: a primeira seria o “colapso gradual e rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um estado de perfeição a ser atingido amanhã (...) um firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de nossas necessidades; da ordem perfeita (...) do domínio sobre o futuro (...) e a ideia de aperfeiçoamento se trasladou para a auto-afirmação do indivíduo.6
A religião pode se encaixar nesta necessidade, sendo a igreja provavelmente uma experiência mais individual do que coletiva. O movimento de absorção do mundo pelo indivíduo forma a consciência individual de tal maneira que essa absorção não é passiva, mas sim apropriada ativamente, sendo a religião um ponto proeminente da relação entre o indivíduo produzindo o mundo e sendo produzido BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Acerca das relações entre igrejas pentecostais / neopentecostais e modernidade líquida, bem como com discursos autoritários, leia, por exemplo: MARANHÃO Fo, Eduardo Meinberg de Albuquerque, PAEGLE, Eduardo Guilherme de Moura. Mercado e discurso religioso na modernidade líquida. Estudos de Religião (IMS), pp. 205-216, 2009; MARANHÃO Fo, Eduardo Meinberg de Albuquerque, O discurso religioso na modernidade líquida: polissemia e autoritarismo no neopentecostalismo brasileiro contemporâneo. Protestantismo em Revista, vol. 19, pp. 69-76, 2009. 5 6
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por ele. Tal produção abrange toda uma construção de visão de sociedade que abarca a subjetividade formulada pelos papéis instituídos pelas instituições formativas das estruturas individuais da consciência. A mudança no papel e função da igreja na esfera estrutural comunitária pode influenciar a vida cultural das pessoas, e o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura se subtraem à dominação das instituições e símbolos religiosos tem relação direta com uma determinada secularização da consciência. A partir de 1891, com a publicação da primeira constituição que separa o Estado da igreja, o Brasil passa por uma mudança na qual a religião perde seu monopólio de instituição suprema, sendo transportada da esfera pública para a esfera privada,7 e isso afeta diretamente a vida e a consciência das pessoas religiosas. Tal dissociação se fez no âmbito institucional, porém, a esfera religiosa embora aparente ser uma esfera isolada e independente do organismo social não o é, pois a compreensão de suas práticas e discursos está diretamente relacionada a interesses particulares, criando-se um espaço de disputas entre agências religiosas que ofertam bens de salvação. A realidade segunda, propriamente simbólica, que chamaremos aqui de cultura8, não está de forma alguma separada da política. Embora haja muitas controvérsias e questionamentos na Sociologia da Religião sobre o processo de secularização9, não há como negar que houve em algum nível um determinado distanciamento de alguns setores em relação à influência dos símbolos e estrutura dos significados religiosos, e consequentemente, de um enfraquecimento da dominação destas instituições na vida pública, pois, como aponta Antônio Flávio Pierucci10, o weberiano conceito de secularização evoca principalmente a questão da legitimidade da autoridade da igreja, ou seja, há uma grande diferença entre a secularização
BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985. O uso do conceito “cultura” que será utilizado aqui acompanha a concepção da antropologia cultural americana: cultura como sendo a construção de um mundo humano dotado de sentido, esfera simbólica/ sistema de significados (ferramentas materiais e não materiais de interpretação do mundo), na qual é produzido pelo homem e ao mesmo tempo produz o homem em uma relação dialética. Embora em alguns pontos seja abordada a questão da cultura enquanto instrumento de poder e legitimação, no sentido de uma estrutura estruturante, assim como aponta Marx (A Sagrada Família. São Paulo: Hucitec, 1980) e Weber (Sociologia das Religiões e Consideração Intermediária. Coleção ANTROPOS. Lisboa: Relógio D’água, 2006). 9 Como por exemplo, quando Berger (A Dessecularização do Mundo: uma visão global. In: Religião e Sociedade, vol. 21, nº 1, CER/ISER, Rio de Janeiro, 2001), se retrata do que disse anteriormente em “O dossel sagrado” (1985) sobre o processo de secularização, afirmando que o mundo após a secularização, houve um processo de dessecularização, pois a religião não só permanece atual, como está cada vez mais forte, pois não houve uma secularização individual e somente institucional. Ou quando Pierucci aborda que não houve secularização nos países do terceiro mundo. 10 PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 13 n. 37, 1998. 7 8
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institucional e a secularização individual. E, o que ocorreu de forma inusitada para alguns/mas autores/as ansiosos/as pelo fim da religião, foi uma “revanche do sagrado”.11 Pierucci aponta que é necessária uma sociologia pós weberiana, pois, embora a “pós modernidade” (ou crise globalizada da modernidade) tenha “racionalizado e desencantado”12 o mundo, a religião permanece extremamente presente na vida cotidiana dos indivíduos, porém, se mantém hoje em outro patamar de funcionalidade, agindo mais como uma terapia subjetiva e não mais como monopólio que justifica todas as coisas existentes no mundo. O que ocorreu, principalmente nos países do terceiro mundo, foi uma mudança em relação à concepção do que é religioso e sagrado, e principalmente a forma como se experiencia a religião e a religiosidade na sociedade contemporânea.13 A Igreja Católica, diante de um monopólio, era vista como sinônimo da ideia de religião no Ocidente, porém, essa noção mudou e hoje podemos acessar um amplo leque de possibilidades de religiões que diversificam sua manifestação do sagrado. De toda forma, há sempre a necessidade de se debruçar em um caso específico para obter uma compreensão com rigor científico mais adequado ou próximo disto. O Brasil exige uma análise extremamente particular e minuciosa de suas manifestações religiosas, pois sua constituição ocorreu diferentemente de qualquer outro país, embora se assemelhe em alguns pontos ao restante da América do Sul. Para analisar o fenômeno religioso brasileiro, é necessário principalmente considerar o contexto da formação de seu campo. Isso implica em considerar o processo que entre os períodos colonial e imperial resultou na formação de um sistema de crenças, práticas e símbolos que constitui um repertório básico do campo. Em relação à vida pública em contraposição a uma religiosidade da vida privada, formou-se um sistema cultural de crenças extremamente individualizadas. Como demonstra Arnaldo Huff Júnior, no que tange às relações entre religião e política no Brasil, uma primeira consideração a ser feita é a de que no curso da separação formal entre Igreja e Estado, na entrada do período republicano, a religião não foi simplesmente relegada à esfera privada como aconteceu em processos de modernização na Europa. Como bem sublinhou Paula Montero (2006) a partir de Habermas, essa separação não é feita entre esfera estatal e Igreja, mas sim entre uma esfera pública do Estado, uma esfera privada da sociedade e uma esfera burguesa ou sociedade civil”.14
KEPEL, Gilles. A Revanche de Deus. São Paulo: Ed. Siciliano, 1991. WEBER, Max. Sociologia das Religiões e Consideração Intermediária. Coleção ANTROPOS. Lisboa: Relógio D’água, 2006. 13 NEGRÃO, Lísias Nogueira. Intervenção. In: MOREIRA, Alberto; ZICMAN, Renée (orgs.), Misticismo e novas religiões, Petrópolis, Vozes/USF/FAN, pp. 130-135, 1994. 14 HUFF JUNIOR, Arnaldo. Campo religioso brasileiro e história do tempo presente. Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. 11
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Isto, associado ao fato de que a identidade brasileira se desenvolveu em meio a negligência de órgãos públicos, crises constantes de representatividade políticas e governamentais e o enfraquecimento de ações coletivas, fez a religião crescer e ganhar um determinado caráter de acolhimento social, aparecendo como lugar da sociedade que oferece alguma forma de amparo e conforto, e espaço que proporciona ao indivíduo deslocado de seu coletivo um sentimento de pertencimento, cujos laços são estabelecidos em meio à turbulenta dinâmica social individualista, fragmentada e fragmentária. A isso se relaciona o fato de que quem condiciona a oferta de produtos e bens simbólicos religiosos – ou bens de salvação – é o próprio público, seguindo a máxima do marketing empresarial “sem demanda não há oferta”. Porém, se é quem busca o produto que condiciona sua oferta, há também uma relação por vezes dialética, na qual sua importância fundamental é a própria razão de ser da relação estabelecida. Cresce assim de forma constante um campo de disputa entre essas organizações religiosas, assim como a oferta de novos serviços para atrair grupos sociais ainda não contemplados pelos empreendimentos religiosos, excluídos das igrejas tradicionais ou não adequados a elas, gerando um pluralismo religioso. Tal pluralismo foi propiciado pelo processo de secularização, que causou o enfraquecimento do monopólio da Igreja Católica, que gerou a possibilidade de que novos setores e pessoas pudessem atuar na esfera religiosa, atraindo leigos que passam a organizar igrejas diversificadas, assim criando um espaço de disputa. Sobre pluralismo religioso há o debate entre alguns posicionamentos teóricos: por um lado autores do chamado “antigo paradigma da religião”, do qual Berger é o principal porta-voz, e que afirma que o pluralismo leva à não credibilidade e ao descompromisso dos indivíduos com a religião, pois na situação de pluralismo religioso é cada vez mais difícil construir e manter novas maneiras de plausibilidade viáveis para a religião. É o que Sahlins (2000) chama de “porosidade de identidade”. Em contraposição, os autores do novo paradigma afirmam o contrário: uma religião monopolista apoiada pelo Estado tende a ser ineficiente, ou seja, em uma situação que não haja a concorrência, os agentes religiosos teriam pouca motivação para oferecer sua fé com vigor e eficientemente. Quando há situação de mercado (concorrência), as agências religiosas se dedicam de forma mais intensa para se diferenciarem entre si, delimitando suas características de acordo com o perfil que desejam atrair. ger: perspectiva que considera a religião como uma ferramenta de integração moral da sociedade, cuja função primordial se perdeu e se degenerou. As principais críticas que essa teoria recebe é a de que Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.249-267, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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O novo paradigma rompe também com a visão durkheimiana da religião, sustentada por Ber-
essa análise do comportamento dos indivíduos é insuficiente, pois não considera os valores dos indivíduos15 adquiridos a partir de um contexto social16 e tampouco considera o status, a mobilidade social e as normas grupais.17 O que ocorre é que, de fato, há um pluralismo religioso que possibilita uma maior diversidade de religiões que passa a competir entre si, competição que acarreta uma dinâmica de mercado que abrange uma complexa rede de relações e que oferta e possibilita diferentes formas de se relacionar com o sagrado na sociedade contemporânea. Mas como a Bola de Neve Church se situa neste mercado?
A Bola de Neve Church e o mercado religioso A Bola de Neve Church pode ser descrita como uma igreja evangélica de características majoritariamente neopentecostais, se caracterizando por uma proposta aparentemente inovadora,18 com um discurso que se situa entre o congelamento e o derretimento. Maranhão Fo explica que o discurso derretido da BDN é percebido de algumas formas: se comparada a outras agências evangélicas, ela é mais flexível em relação ao uso de vestimentas, tatuagens e adornos. O discurso não verbal da agência, relacionado à decoração interna e externa do ambiente, agencia a ideia de informalidade. É comum o uso de uma linguagem coloquial/informal observada em pregações, conversas com crentes da igreja e material de divulgação da mesma. Para se adequarem à sociedade fluida do tempo presente, ou da modernidade líquida, agências religiosas de supergeração19 como a BDN têm primado em falar a linguagem do seu público, estimulando a aquisição de discursos e mercadorias, aumentando seu capital simbólico 20 e conquistando maiores fatias do mercado.21
HECHTER, Michael. Religion and rational choice theor. In: YOUNG, Lawrence. Rational choice theory and religion. Nova York, Routledge, 1997. 16 SHERKAT, 1997. 17 SHERKAT, WILSON, 1995. 18 Maranhão Fo teceu comentários acerca do discurso da igreja em, por exemplo, 2009c e 2011a, além do livro escrito sobre a igreja (2013a). Este livro (resenhado por Lowenthal em 2014), sofreu tentativas de censura por parte da Bola de Neve Church (o que foi descrito pelas revistas Istoé, Caros Amigos, Revista de História da Biblioteca Nacional, Fronteiras, Revista da ESPM; além da Folha de São Paulo, e diversas rádios, sites e blogs, além de comentado em audiência do Supremo Tribunal Federal). 19 Para o autor, neopentecostalismo de supergeração relaciona-se ao fenômeno do uso das mais contemporanizadas formas de midiatização (especialmente da internet) pelas “igrejas neopentecostais” (MARANHÃO F o, Neopentecostalismo de supergeração: o ciberespaço como chave para o sucesso neopentecostal. História Agora. São Paulo, v. 10, n. 2, pp. 342-362, 2010). 20 Termo aqui entendido no sentido de Bourdieu de “prestígio, carisma e sedução”, relacionado às “relações de troca através das quais esse capital se acumula” como “troca de serviços, dádivas, atenções, cuidados, afeição” (BOURDIEU, op. cit.). 21 MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar: Marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p. 102. 15
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Entretanto, em movimento (aparentemente) contrário ao da fluidez, as práticas eróticas e afetivas dos/as fiéis recebem intenso policiamento – um discurso congelado. Tal regulação, que reforça a autocensura e a culpa em relação ao pecado, é entendida por boa parte dos/as frequentadores/as da BDN como algo positivo e desejável: o discurso da agência, por mais rígido que seja, só continua existindo porque há uma demanda para isto. A solidificação do discurso também caracteriza-se pelo uso enrijecido de doutrinas como do domínio, cura/libertação, saúde perfeita, prosperidade e batalha espiritual.22
A igreja se diferencia no amplo mercado da fé ao oferecer serviços e bens de salvação direcionados principalmente à juventude, e tendo como principais nichos mercadológicos as pessoas esportistas, e em algumas cidades, também o público universitário23 (mas não se resumindo somente a estes). Narrando o interesse da igreja no segmento universitário, por exemplo, e exemplificando a partir da Bola de Neve Floripa, Maranhão Fo diz que, Com a mudança da sede, em 2010, do Rio Tavares para a Trindade, onde está a UFSC, os esforços para a conquista das/os universitárias/os se intensificaram, tendo como consequência a substituição/renovação de grande parte dos/as fiéis. Inicia-se um processo de negociação entre a manutenção e o “resgate” de um público (surfistas, skatistas e afins) e a adesão de outro (universitários/as), demonstrando um trânsito entre-mercados e entre- segmentos (...) A conquista de estudantes da universidade, através da mudança da sede e da oferta de um novo produto (serviço) religioso, a Célula UFSC, demonstra um marketing de guerra santa que se liquefaz em direção a nichos de mercado.24
Parte importante deste marketing de guerra santa25 da Bola de Neve está no discurso da mesma. A linguagem usada nos cultos da igreja procura atrair e manter fiéis-consumidores/as, marcando-se por um discurso descontraído e pela informalidade na relação entre líder e frequentador/a.
MARANHÃO Fo, idem, p. 102. Maranhão Fo comentou anteriormente a respeito do corpo e do esporte como estratégias de marketing da Bola de Neve Church (2010b), bem como sobre um ministério específico da igreja, o Bola Running, relacionado à concepções de cura e religiosidade (em co-autoria com SENE, SENE, Talita. Correndo com Jesus à beira-mar. Esporte, religiosidade e cura na Bola de Neve Church. In: MARANHÃO Fo, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Re)conhecendo o sagrado: reflexões teóricometodológicas dos estudos de religiões e religiosidades. São Paulo: Fonte Editorial, 2013). Comentou ainda sobre a atração de públicos universitários, além de esportistas: MARANHÃO Fo, A Bola de Neve avança, o Diabo retrocede: preparando davis para a batalha e o domínio através de um Marketing de Guerra Santa em trânsito. REVER-PUC/SP, v. 12, n. 2, pp. 123-143, 2012. 24 MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar: Marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, pp. 98-99. 25 MARANHÃO Fo, “Marketing de Guerra Santa”: da oferta e atendimento de demandas religiosas à conquista de fiéisconsumidores. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 25, pp. 201-232, 2012. 22 23
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A imagem de uma igreja neopentecostal moderna e flexível em relação a seus valores atrai um público jovem, porém, não se desvincula de ideias tradicionais e ligadas ainda ao pentecostalismo clássico e ao neopentecostalismo. Os discursos com linguagem informal26 ocultam posicionamentos tradicionais, como a valorização da estrutura familiar patriarcal, repressão sexual, discursos contra o divórcio27, a homossexualidade, o aborto, o uso de bebidas, drogas e encontros em lugares ditos “profanos”. Uma igreja supostamente “jovem” se apresenta no “mercado da fé” como algo inusitado e inovador, correspondendo, deste modo, a uma demanda do campo religioso que não era tão contemplada por outras igrejas ou mesmo religiões. A igreja oferece serviços religiosos que vão desde conforto espiritual, aceitação e acolhimento até produtos materiais, que envolvem uma grife que acompanha o estilo surfista e descontraído, e que faz sucesso entre as pessoas que frequentam a igreja. Os produtos são vendidos dentro da igreja e recebem a marca Bola de Neve Church. A aparência dos/as fiéis é um recurso muito explorado, embora a igreja se considere desvinculada de estereótipos estéticos. As táticas para difundir e ampliar os preceitos da igreja são muito bem arquitetadas, de forma que a igreja cresce pelo mundo como uma verdadeira bola de neve28. O produto a ser vendido é a ideologia e sua doutrina. A promoção se faz pela imagem jovem na qual a igreja pretende transmitir. Pontos de vendas são os locais que são divulgados cartazes, propagandas de eventos, encontros e divulgação das bandas gospel. O público é muito bem definido, de forma que todos os produtos se voltam a este perfil, o caráter jovem e radical. E, por fim, as pessoas são o que constituem qualquer religião, com sua crença e fé.29 A Bola de Neve Church mobiliza ideologias próprias da sociedade de consumo, contribuindo para a adequação e permanência de fiéis (e da própria igreja) no mundo contemporâneo. Para se ajustar Maranhão Fo exemplifica: “Na casa de Deus não tem leite derramado, não tem feijão queimado, não tem arroz ‘unidos venceremos’ amém?” Desta forma o Apê explica as diferenças entre mundo e igreja – demonstrando a coloquialidade/informalidade como componente do discurso derretido da BDN” (MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar: Marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p. 104). “Apê”, ou “Apê Rina”, é como muitas vezes é chamado o Apóstolo Rina, fundador da Bola de Neve Church. 27 Em relação ao divórcio, costuma-se citar os versos de 1 Coríntios 7:10-11, que diz: “Todavia, aos casados, mando, não eu mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido; se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher”. 28 LOWENTHAL, A fé do trabalho e o trabalho da fé: Um estudo sobre a organização do trabalho na igreja Bola de Neve Church. Trabalho de Conclusão de Curso. Marília: Universidade Estadual “Júlio Mesquita Filho”, 2012. 29 Acerca de como a Bola de Neve Church se utiliza de um determinado marketing de guerra santa, e como isto se relaciona com os “5 Pês do marketing”, recorra a MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar…, 2013. 26
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às transformações – algo típico de igrejas neopentecostais – são utilizados mecanismos virtuais para transmitir mensagens tradicionais.30 Em uma sociedade caracterizada pela contemplação da imagem e pela dominação dos meios de comunicação em massa, é imprescindível que as organizações religiosas adotem instrumentos mercadológicos e táticas publicitárias para conquistar novos mercados e atrair consumidores. Todos estes elementos constituem o sistema simbólico dos novos “empreendimentos” religiosos. As propostas da Bola de Neve de se pregar a fé são fruto do contexto de pluralismo religioso que vem se formando e se intensificando ao longo das últimas duas décadas. Seguindo as análises de Pierre Sanchis (1988), podemos apontar duas tendências gerais na dinâmica do campo religioso brasileiro: uma de heterogeneização e outra de homogeneização. A heterogeneização reflete forças de pluralização oriundas de um fenômeno de modernização em que a sociedade brasileira está inserida. Parte desse movimento implicou na institucionalização dos grupos religiosos concorrentes no campo, que estabeleceu as identidades e o perfil por vezes fundamentalista de alguns segmentos do protestantismo histórico, pentecostalismo e neopentecostalismo. A tendência de homogeneização refere-se às características comuns entre as religiões, que transcendem o âmbito institucional: um universo de espíritos que transitam e influenciam a vida dos/as brasileiros/as religiosos/as. O que possibilita essa comunicação dos sistemas simbólicos é a sua constituição histórica, na qual todas as religiões dialogam em alguns pontos. Essa abertura no campo religioso proporciona um leque de ressignificações e trocas simbólicas, gerando um contexto de trânsito e mercado religiosos.31 Autores que sustentam a teoria do novo paradigma, como Rodney Stark (1993), Laurence Iannaccone (1997) e Roger Finke (1997) argumentam sobre a aplicação de teorias econômicas e da escolha racional.32 São utilizados conceitos econômicos para analisar o pluralismo religioso (econômica religiosa, firmas / empresas religiosas, monopólio, desregulação do mercado, consumidores), além de focar de forma mais enfática na oferta do
Maranhão Fo comenta sobre o uso do ciberespaço como a mais proeminente das formas de midiatização da Bola de Neve Church (Neopentecostalismo de supergeração: o ciberespaço como chave para o sucesso neopentecostal. História Agora. São Paulo, v. 10, n. 2, pp. 342-362, 2010, Religiosidades no (do) ciberespaço. São Paulo: Fonte Editorial, 2013). 31 STARK, Rodney & IANNACCONE, Laurence. Rational choice propositions about religious movements. Religion and Social Order, 1993. 32 Alguns autores problematizaram com precisão as assertivas dos estudiosos do paradigma estadunidense do mercado religioso, como, por exemplo, Airton Jungblut (JUNGBLUT, Airton Luiz. O Mercado Religioso. Considerações sobre as possibilidades analíticas da teoria da economia religiosa. In: MARANHÃO F o, Eduardo Meinberg de Albuquerque, USARSKI, Frank (orgs.). Marketing Religioso. REVER-PUC-SP, v. 12, n. 2, pp. 11-22, 2012). 30
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que na demanda religiosa. Stark, por exemplo, considera todas as atividades religiosas como “economias religiosas”: As economias religiosas são como as economias comerciais na medida em que consistem em um mercado constituído por um conjunto de clientes atuais e potenciais e por uma variedade de firmas (religiosas) que tentam satisfazer este mercado. Como com as economias comerciais, a principal variável de interesse é seu grau de regulação. Algumas economias religiosas se encontram restringidas por monopólios impostos pelo Estado, outras estão virtualmente não – reguladas.33
Esses autores acreditam que o pluralismo religioso seria uma situação “natural” de uma economia religiosa, uma vez que na sociedade contemporânea há uma segmentação das preferências dos consumidores. Segundo a Teoria da Escolha Racional, na sociedade contemporânea os indivíduos se deparam com a necessidade de escolher entre as opções mais vantajosas em relação à praticidade da vida moderna, e diante disto, avaliam os ganhos e as perdas na qual estarão expostos. A religião passa a fazer parte desta dinâmica, sendo mais um elemento que pode oferecer benefícios ou prejuízos. A escolha é racionalizada a fim de maximizar os ganhos e diminuir ao máximo os custos. Para tais teóricos, a escolha é feita a partir de uma análise que se diversifica em um contexto de pluralismo religioso. Nesse caso, a igreja Bola de Neve estaria ofertando no mercado da fé um produto (ao menos aparentemente) novo que até então não existia, visando um público que não era contemplado o bastante por outras instituições: jovens rockeiros/as, surfistas, tatuados/as e com piercings, e que sentiam a necessidade de se conectarem a uma religião. Um trecho retirado de um cartão de apresentação da igreja distribuído nas ruas de algumas cidades ilustra adequadamente a ideia de uma proposta jovem e moderna: Ser Cristão é andar na contramão do mundo. Porém, o mundo vicia. Cristo Liberta. O mundo contamina, Cristo cura. O mundo é guerra, Jesus é Paz. O mundo é corrupto, Cristo purifica. O mundo acusa, Jesus perdoa. O mundo é ódio, Deus é amor. O mundo é depressão, Deus é alegria. O mundo é frágil, Deus é poder. O caminho do mundo é largo e leva pro abismo. O caminho de Deus é estreito, mas leva a vida eterna. Se ser cristão é ser louco, quero ser o mais aloprado de todos. (Trecho retirado de um cartão da igreja).
STARK, Mc CANN, op. cit. 1993.
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O cartão contém este convite e frases que transmitem a ideia de que a igreja é um local onde não há repressões em relação ao uso de vestimentas, adornos, acessórios, tatuagens ou estilos determinados (há fotos de pessoas com dreadlocks e piercings), sendo um local onde, de acordo com o discurso da igreja, Deus aceita a todos como são – ainda que, em muitos casos, o discurso se desdobre no clássico jargão “venha como tu és, mas não permaneça como estás”: é o caso das pessoas que necessitariam de “cura e libertação” em relação a alguns costumes, como o “homossexualismo”, a “promiscuidade”, o “contato com ideologias da nova era”, dentre uma série de coisas.34 A igreja também promove eventos dinâmicos, extrovertidos e geralmente relacionados à música (especialmente ao reggae) e/ou a esportes, com o intuito de “louvar a Jesus Cristo”. 35 A proposta é a de que se pode seguir Jesus sem precisar se converter a um estilo de vida repressor, porém, as normas de conduta são extremamente rigorosas em relação às drogas, bebidas alcóolicas, casamento, divórcio e principalmente relações sexuais. A Bola de Neve apresenta um discurso que flexibiliza o uso dos costumes do/a fiel em relação à sua aparência, usando a promoção de eventos esportivos para a divulgação da igreja. A Bola de Neve mobiliza um consistente marketing que envolve análise de mercado e estratégias que visam a adesão de fiéis e a satisfação de demandas. Por isso, a igreja “recruta” 36 pessoas que, embora necessitem de uma religião para se apoiarem, buscam não se submeter às religiões “repressoras” (expressão utilizada no website da igreja Bola de Neve), quebrando deste modo, com o estilo religioso convencional. O apóstolo Rinaldo Pereira, fundador da instituição, diz que a igreja Bola de Neve “é um local em que todos se sentem à vontade e têm contato com a palavra do Senhor. Não há ofensa.
Acerca do tema sensualidade/sexualidade e interdição do desejo na Bola de Neve Church, leia: MARANHÃO Fo, Sensualidade e interdição do desejo na Bola de Neve Church. Via Teológica, Curitiba, v. 18, 2009; e sobre relações de gênero e menor protagonismo das mulheres nesta igreja, MARANHÃO Fo, “Nós somos a dobradiça da porta”: notas preliminares acerca das ambiguidades do discurso sobre as mulheres na Bola de Neve Church. Mandrágora, v.18, n.18, pp. 81-106, 2012. 35 Acerca do reggae como um dos gêneros poético-musicais recorrentes nesta igreja, leia: MARANHÃO F o, Caia Babilônia: análise de uma canção religiosa a partir do contexto, poética, música, performance e silêncio. Revista Brasileira de História das Religiões - ANPUH, ano V, n. 13, pp. 234-272, 2012. O autor comenta que “uma forma de flanquear concorrentes está em oferecer produtos (ou serviços) próprios, como os shows de gospel pop & reggae performatizados pelo conjunto de evangelismo da BDNF em alguns de seus eventos (MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar..., 2013, p. 100). 36 Termo utilizado entre os/as frequentadores da igreja, quando se referem ao “exército de Deus”. Acerca do uso de termos beligerantes pela Bola de Neve, bem como o largo uso da teologia da batalha espiritual (correlacionada a outras, como a teologia da prosperidade, teologia do domínio e teologia da cura e libertação), acesse: MARANHÃO Fo, A Bola de Neve avança, o Diabo retrocede: preparando davis para a batalha e o domínio através de um Marketing de Guerra Santa em trânsito. REVER-PUC/SP, v. 12, n. 2, pp. 123-143, 2012a (além de A grande onda vai te pegar..., 2013). 34
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E se existem críticas (dos pastores tradicionais), elas nunca foram feitas diretamente a alguém da nossa igreja”37. As pessoas que frequentam aparentam ter, em maioria, idade entre 15 e 35 anos, apresentam estilos variados, e em geral expressam um ar despojado e alternativo. Líderes e fiéis se esforçam na construção e manutenção de uma identidade estética contemporanizada que se oporia à imagem instituída do/a “crente evangélico tradicional”, cujo estereótipo corresponderia a trajes mais formais. De algum modo, embora “louvar ao Senhor”, se recusam a negar sua juventude.38 Além disso, muitos/as dos/as fieis da igreja atuam intensamente na mesma, inclusive como voluntários/as e membros de ministérios específicos.
O trabalho religioso na Bola de Neve Church A Bola de Neve apresenta uma complexa divisão de funções e setores que existem para um melhor desempenho das atividades. São os chamados “ministérios”, 39 em que os/as frequentadores/as se disponibilizam como voluntários/as de acordo com suas afinidades profissionais ou experiência no ramo que pretendem atuar. Há exigências para a participação, como tempo mínimo de batismo, cadastro, solicitação para serem aceitos/as, e algumas vezes indicação de pastores/as. Os ministérios são propulsores que dinamizam o funcionamento da igreja, sendo organizados de forma a que não haja a necessidade de contratações terceirizadas para desempenho de atividades na instituição. Porém, como nem sempre todas as necessidades são contempladas, eventualmente pessoas terceirizadas são contratadas para determinadas funções. Todos os ministérios se compõem de pessoas que frequentam a igreja por um determinado tempo específico, por isso são fiéis que se dedicam voluntariamente àquela atividade, desempenhando um trabalho “voluntário”, reunidos/as a partir de sentimentos em comum: vontade de difundir a doutrina, ampliar a igreja e organizá-la da melhor forma para que sua manutenção seja sempre garantida. Porém, ainda há um intuito que parte do princípio que quanto mais se doar, mais se receberá de Declaração extraída do website da Bola de Neve Church: <www.boladeneve.com.br> em 20/01/2016. DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Sexualidade e neopentecostalismo: representações de jovens da igreja evangélica Bola de Neve. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. 39 Maranhão Fo nota que “o termo ministério, aplicado às igrejas evangélicas, assume diferentes sentidos. Pode representar um grupo formado por pessoas que se voluntariam em torno de objetivos e funções em comum, pode ser aplicado como sinônimo de organização eclesiástica e pode designar um dom ou atributo próprio do cristão. No contexto analisado ministério se refere ao primeiro sentido” (A grande onda vai te pegar..., 2013, p. 86). 37 38
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Deus (ou da própria igreja, mesmo que em termos de comunhão, por exemplo), o que, plausivelmente, demonstraria que para além de uma ação (ao menos aparentemente) solidária, há uma concepção individualista. Como comenta Maranhão Fo, o site da igreja estimula a participação “lembrando que muitos dos líderes atuais da Igreja já passaram por esse Ministério”, seduzindo aqueles/as que têm como objetivo um futuro status de líder. Os ministérios funcionam como agenciadores da consolidação da BDN, estimulando a coesão identitária através da inserção sócio-religiosa do/a fiel e sua adequação aos discursos promovidos pela agência. Isto também ocorre com outro agrupamento da igreja, as células.40
Além dos ministérios e das contratações terceirizadas (que não exigem necessariamente a condição de frequentador/a da igreja), há outros tipos de formas de trabalho no interior da igreja, como atividades voluntárias e os ofícios de ordenação divina, como o do/a pastor/a,41 considerado pela jurisprudência brasileira como um caso excepcional, em se tratando de questões trabalhistas. 42 Como toda organização complexa do trabalho, a organização religiosa implica um processo de trabalho constituído por um contingente de ministros de confissão religiosa (pastores/as) e serviçais dos rituais religiosos, trabalhadores da fé que prestam serviço à igreja; ela implica também meios de trabalho, composto pelos templos religiosos ou locais de culto da organização religiosa; além do conjunto de utensílios que compõe os ambientes de devoção; os objetos de trabalho, a matéria-prima da fé que são os frequentadores da igreja, cujos carecimentos os/as levam a participar dos cultos evangélicos. Esta organização do trabalho religioso implica ainda relações de trabalho dos/as pastores e serviçais da fé com um tipo específico de contrato de trabalho, considerado “trabalho voluntário” (o que não configura, segundo a jurisprudência vigente, vínculo empregatício); e um modo de remuneração salarial e jornada de trabalho com métodos de gestão específicos utilizados na organização do trabalho da fé. Sobre o trabalho no interior da igreja, há uma reprodução da divisão social. É possível observar isto na organização que passa a justificar o diferenciamento de acesso a bens e recursos. Um reflexo
MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar..., 2013, p. 87. Maranhão Fo explica que “tanto as células quanto os ministérios linkam-se diretamente à estrutura identitária da agência, marcada pela hierarquia. No sistema administrativo da BDN, como da maioria das agências que identificam-se como cristãs, as funções mais importantes são ocupadas por homens. Como em geral os líderes da BDN são casados, suas esposas costumam ter alguma visibilidade ou protagonismo na igreja, mas costumeiramente como a esposa do líder” (A grande onda vai te pegar..., 2013, p. 94). Acerca deste tema, assim como da hierarquia da (na) igreja: MARANHÃO Fo, A grande onda vai te pegar..., 2013. 42 LOWENTHAL, op. cit., 2012. 40 41
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da organização e estratificação social ocorre a partir do momento que um indivíduo com mais conhecimento técnico ou formação mais adequada exerce atividades ministeriais de maior valor dentro da igreja, geralmente com caráter mais intelectual e menos “braçal”, como, por exemplo, na atuação na área de marketing e propaganda. Bourdieu aponta que o trabalho religioso contribui, em algum nível, para a manipulação simbólica das apropriações que tendem a promover a manutenção das estruturas das relações que ocorrem na sociedade. Ou seja, a divisão do trabalho religioso reproduz a divisão social a partir da monopolização da gestão dos bens de salvação por especialistas. O sistema de produção e circulação de bens simbólicos pode-se definir como sendo um sistema de relações objetivas entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divisão do trabalho de produção, reprodução e de difusão de bens simbólicos. 43
Há todo um trabalho atuante por parte dos “trabalhadores da fé” para a elaboração e a realização dos cultos e para proporcionar aos que lá estão determinadas sensações, assim como a eficácia simbólica de suas práticas, representações e justificações. Os cultos propõem uma nova forma de experienciar o sagrado em uma sociedade contemplada pela imagem, por estímulos e pela imediaticidade. Como um verdadeiro espetáculo, há a iluminação, a dimensão musical, estética elaborada que direcionam as emoções. Por meio de múltiplos meios sensoriais como a audição, gestos corporais e gritos é acionada uma dimensão emocional talvez nunca acessada pelo inconsciente do fiel. O culto conduz para um momento de isolamento emocional que é realizado pela presença coletiva de Deus no evento. Ou seja, a igreja trabalha para proporcionar ao fiel através do clima psicosensorial adaptado e desenvolvido uma experiência diferente de emoções e sensações. Por meio de uma experiência estética em conjunto com a ideia do espaço sagrado, na qual está apoiada em suportes materiais há um serviço oferecido em troca do dízimo, é a excitação da alma e do corpo, um acionamento de determinados estímulos que geram prazer, alívio e comoção, de forma que garantem o retorno dos frequentadores naquele local.
BOURDIEU, op. cit., 1996, p. 105.
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Considerações finais Com base na literatura acerca da nova organização do campo religioso, em específico no contexto brasileiro, juntamente com pesquisas de campo realizadas na Bola de Neve Church, foi observada uma estreita relação entre mercado religioso e mercado econômico, a qual inclui competição, regras próprias e organização complexa. Há um discurso econômico/religioso que se relaciona com clareza ao que Bourdieu chama de mercado de bens de salvação, em que identificamos a relação estabelecida entre oferta e demanda do mercado. Certamente, muito ainda poderia ser dito a respeito das relações entre mercado econômico e mercado religioso na Bola de Neve Church, e estimulamos novos/as pesquisadores/as a aprofundarem este tema.
Referências
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EXCOGITANDO A PROPOSTA DE LINHA DO TEMPO INTERATIVA NO ENSINO DE HISTÓRIA:
O caso da Ilha d’Água e seus diálogos com as Histórias Ambiental, Patrimonial e Local Marcella Albaine Farias da Costa* Marcus Leonardo Bonfim Martins** Fabiano Cabral de Lima, Juliana Bacelar de Matos, Luana Souza da Silva, Thais Sachie T. Fernandes e Thayenne Roberta Nascimento Paiva*** RESUMO: Atualmente, vigoram vultosos debates acerca da possibilidade de uma nova modalidade historiográfica, chamada de história digital. Com o intuito de esquadrinharmos suas implicações, teóricas e metodológicas, na área de História, o presente artigo tem por objetivo, ao discutir as noções de tempo e suas variantes (tempo histórico, tempo cronológico, tempo natural, tempo social, temporalidade) e de História Ambiental e, História Patrimonial e Local apresentar, na possibilidade de uso de plataformas digitais interativas, uma potencial ferramenta e suporte pedagógico. O recorte temático preterido incidirá sobre a antiga e atual situação da Ilha d'Água, localizada na baía de Guanabara, na cidade do Rio de Janeiro. A seguir, trataremos de expor, empiricamente, a possiblidade de mobilização de uma linha do tempo interativa criada pelos alunos da disciplina Didática Especial em História, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. PALAVRAS-CHAVE: linha do tempo digital; História Ambiental; História Patrimonial; História Local; Ilha d’Água.
EXCOGITATING A PROPOSAL OF INTERACTIVE TIMELINE IN HISTORY TEACHING: THE CASE OF ILHA D’ÁGUA AND ITS DIALOGUES WITH THE ENVIRONMENTAL, HERITAGE AND LOCAL HISTORIES ABSTRACT: Nowadays there are ample debates about the possibility of a new historiographical modality, named digital history. With the intention of investigating its implications, theorical and methodological, in the History field, this article aims to, through discussions about conceptions of time and its variants (historical time, chronological time, natural time, social time, temporality) and Environmental History and Patrimonial and Local History, introduce, with the prospect of usage of Doutoranda em História pela UNIRIO. Mestre em Educação pela UFRJ. Especialista em Tecnologia Educacional pela UFRJ. Professora da educação básica. E-mail: marcellaalbaine@gmail.com. ** Doutorando em Educação (PPGE/UFRJ). Mestre em Educação (PPGE/UFRJ). Especialista em Ensino de História (CESPEB/UFRJ). Professor de História da rede estadual fluminense. *** Graduandos e graduados de Bacharelado e Licenciatura, respectivamente pelo Instituto de História e Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail (por ordem alfabética): fabianokbral@gmail.com; juliana.matos@ifrj.edu.br; luana_souzas@yahoo.com.br; thaissachie@yahoo.com.br; thayenne-intelectus@hotmail.com. *
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interactive digital plataforms, a potential tool and pedagogical support. The selected topic falls upon the former and the current situation of d’água Island, located in the Guanabara Bay, in the city of Rio de Janeiro. Subsequentely, we will expose, empirically, the possibility of mobilization of a interactive timeline, created by students of the Special Didatics in History discipline, from the Federal University of Rio de Janeiro. KEYWORDS: Digital Timeline; Environmental History; Patrimonial History; Local History; d’Água Island. ***
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Introdução
N
a década de 1980, o historiador Ciro Flamarion (1988) já tecia críticas quanto ao pouco debate sobre as formas de mobilização do tempo nas pesquisas históricas, isto é, a importância metodológica que reside sobre o uso desta importante ferra-
menta e tão cara aos historiadores: O desleixo é grave, pois pode-se constatar que as múltiplas possibilidades a respeito têm sido insuficientemente exploradas; ou seja, que a maioria dos historiadores utiliza, ao trabalhar, poucas das variadas dimensões temporais disponíveis e pertinentes para a pesquisa em História1.
Sendo o tempo “a permanência da realidade social, e a história como processo criador do humano”2, muitos historiadores reduziam seus trabalhos à problemática de diferenciação entre tempo histórico e tempo físico, sem, contudo, se atentarem para outras explanações advindas de cientistas sociais3 das outras áreas do saber humano acerca de outras possibilidades de pensar a questão do tempo e da temporalidade. Problema este, aliás, que se estende, inclusive, ao ensino de História. Podemos afirmar que a situação sofreu alguma mudança, desde a insatisfação apresentada pelo historiador Ciro Flamarion? Possivelmente, não, a julgarmos a presença do mesmo dissabor presente em um artigo de 2003 e escrito pelo especialista em historiografia antiga e moderna, o francês François Hartog. Neste seu artigo, adverte a mera instrumentalização do tempo pelo profissional em História, que não se preocupa em teorizar a respeito da ferramenta mobilizada: O historiador vive quotidianamente o tempo, mas mesmo que ele não mais se interesse, no dizer de Benjamin, pelo tempo linear “homogêneo” e “vazio”, ele corre o risco de simplesmente instrumentalizar o tempo. Constitui também tarefa do historiador tentar pensar sobre o tempo, não sozinho, é óbvio. Diante de nós, houve vários momentos em que o tempo foi objeto de uma intensa reflexão4.
FLAMARION, Ciro Cardoso. Ensaios racionalistas: filosofia, ciências naturais e história. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 25. BAGÚ, Sergio. Tiempo, realidade social y conocimiento. México, Siglo XXI, 1970, p. 104. 3 Os diálogos sobre as noções de tempo e de temporalidade podem ser múltiplos e interdisciplinares. Podemos pensar estas noções pela Sociologia, pela Filosofia, pela Antropologia, pela Teoria Literária, pelos mitos e até pela tentativa da negação do tempo, como fizeram os indianos, a fim de impedir quaisquer percepções de mudanças temporais, porque implicava em negatividade e queda. Sobre esta particularidade, por exemplo, ver: PAZ, Octavio. A tradição da ruptura. In: _______. Os filhos do barro. Do romantismo à vanguarda. Tradução Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 2930. 4 HARTOG, François. Tempo, história e a escrita da história: a ordem do tempo. Revista de História 148, 1º, 2003, p. 10. 1 2
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Todavia, a problemática não se circunscreve apenas aos meios acadêmicos e de pesquisa histórica. Igualmente é observado a ausência de um tratamento especial à temática do tempo no ensino escolar de História, sendo reduzido ao papel de cronologia, periodização ou ideologia. Ou, ainda, reduzida a noção de tempo enquanto vinculada a periodizações eurocêntricas ou etapistas, ou aos marcos festivos ou separando vencedores e vencidos5. Destarte, é justamente recuperando essas críticas, que conduziremos nossas explanações sobre o tempo e a forma como ele pode ser usado, em sua forma prática, por meio de uma linha do tempo interativa com professores de história, historiadores, pesquisadores afins e diletantes sobre o assunto. Para tanto, o recorte escolhido será promovido em diálogo com outras modalidades historiográficas, a saber: História Ambiental e, a História Local e Patrimonial. O objetivo é pensarmos estas modalidades historiográficas e a produção da linha do tempo digital circunscritas a uma temática especial: a degradação ambiental da Ilha d’Água, situada a leste da Ilha do Governador e localizada na região da Baía de Guanabara conforme a figura 1 demonstra. Mostraremos as imagens dentro da plataforma Prezi, para direcionar o trabalho com a linha do tempo interativa criada pelos autores do artigo.
5
GLEZER, Raquel. A noção do tempo e o ensino de história. LPH - Revista de História, v. 2, nº 1, 1991, p. 1-4.
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Fig. 1 Prezi. <https://prezi.com/iay-ohkqvtbt/untitled-prezi/?utm_campaign=share&utm_medium=copy>. Acessos em 12 de março de 2016.
Entre a História Ambiental e, a História da Educação Patrimonial e Local: pensado o caso da Ilha d’Água Antes de problematizarmos os conceitos, faz-se necessária a apresentação e a recuperação histórica do objeto da presente análise, remontando às mudanças políticas e geográficas do Rio de Janeiro desde o século XVI, uma vez que o seu meio ambiente e as formas da sua ocupação serão aqui consideradas no seu aspecto material e imaterial. Como será demonstrado adiante, a aparente divisão dos conceitos não retrata a realidade da sua interdisciplinaridade. Em outras palavras, defende-se que as transformações na geografia local alteraram não somente o patrimônio histórico-cultural material, mas também o imaterial. A Ilha d'Água, localizada na baía de Guanabara, na cidade do Rio de Janeiro, era ocupada com a finalidade principal de lazer e pesca até meados do século XX, sofrendo grande alteração na sua vegetação e usufruto após a instalação, a partir de 1961, da Refinaria Duque de Caxias (REDUC). As fontes dessas alterações na paisagem da Ilha d’Água estão expressas em fotos que estão em domínio público em site da internet6. Segundo o sítio eletrônico da Petrobras (2016)7, são realizadas, atualmente, no terminal, operações de cabotagem, importação e de exportação de derivados de petróleo, assim como o escoamento de diversos produtos. Retrocedendo no tempo, a baía, em seu status atual, converge e apresenta influências da história do Rio de Janeiro em seus diversos períodos. Sedrez (2004) comenta que até mesmo o nome da cidade teve sua origem na baía: exploradores portugueses acreditavam ter encontrado um rio quando desembarcaram, em 1502. O capitão da frota, André Gonçalves, acreditando ter encontrado um rio, o batizou de “Rio de Janeiro”. O nome Guanabara já tinha sido dado pela população nativa que ali residia8. Mem de Sá fundou a cidade do Rio com o objetivo de proteger a baía de Guanabara, com sua posição geográfica privilegiada, das invasões que pudessem prejudicar o status do Brasil como colônia portuguesa9. Ana Maria Monteiro de Carvalho comenta que, sendo o principal porto de entrada do Brasil, os projetos e plantas que retratavam a baía de Guanabara envolviam fortificações destinadas à Site referência: TERRA: <http://fotolog.terra.com.br/ilhadogovernador>. Acesso em: 15 de fevereiro de 2016. Site referência: PETROBRÁS: <http://www.petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/principais-operacoes/terminais-eoleodutos/terminal-ilha-d-agua.htm>. Acesso em: 15 de fevereiro de 2016. 8 SEDREZ, Lise. The Bay of All Beauties: State and Environment in Guanabara Bay, Rio de Janeiro, Brazil, 1875-1975. Tese de doutorado. Universidade de Stanford, 2004, p. 30. 9 Id., 2004, p. 36. 6
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defesa da cidade10. O início da colonização também marcou o começo da utilização dos recursos naturais da baía e de suas ilhas e mangues. Maria Angélica Maciel Costa (2015) aponta que, com o ciclo da cana de açúcar começam a surgir as características que marcam a questão dos corpos hídricos locais: com a necessidade de acomodação da cidade entre montanhas e o mar, dá-se início à chamada “luta” do homem contra as áreas úmidas, com o processo de aterramento11. Com a chegada da família real em 1808, o Rio de Janeiro e a baía de Guanabara se tornaram ainda mais intrínsecos: para visitar a capital, visitantes deveriam chegar pela baía, com o Pão de Açúcar como paisagem. Sedrez (2004) salienta que a baía de Guanabara era, provavelmente, a paisagem mais celebrada da América Latina no século XIX12. São desse período as primeiras pinturas de paisagem da baía, com as principais construções e representação da vida cotidiana da cidade13. Com a instalação da malha ferroviária para o vale do rio Paraíba no ciclo do café, o sistema fluvial cairia em desuso, e a paisagem da baía se redefiniria em duas zonas: a natureza bucólica e idílica (Paquetá, Ilha do Governador, Charitas) e a cenário urbano do mundo moderno (Gamboa, Saúde), com seus prédios, estaleiros e indústrias14. Apesar do processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, iniciado no governo Pereira Passos, o saneamento básico continuava a ser uma questão de preocupação e transtorno, que desencadearia, na década de 1950, no aumento da degradação e poluição na baía de Guanabara. A abertura da Avenida Brasil, em 1940, durante o período da Era Vargas, foi possível graças a aterros sanitários, que acompanharam a instalação de indústrias químicas, farmacêuticas e de refinaria junto com o crescimento populacional e a crescente demanda por moradias15. No caso da Ilha d’Água, a degradação ambiental sob a qual a região foi submetida alterou a memória, as práticas e as representações do local. Contribuíram para tal fato, além dos aterramentos, que alteraram o fluxo das águas e aceleraram a sedimentação de resíduos, desastres ambientais. Podemos exemplificar com dois acidentes que ocorreram: em 1998 houve um vazamento de Petróleo de
CARVALHO, A. M. F. M. A Baía de Guanabara: os itinerários da memória. Revista USP. São Paulo, nº. 30, 1996, p. 162. 11 MACIEL COSTA, Maria Angélica. Da lama ao caos: um estuário chamado Baía de Guanabara. Cadernos Metropóle, vol.17 no.33.São Paulo, maio 2015. 12 SEDREZ, Lise. The Bay of All Beauties: State and Environment in Guanabara Bay, Rio de Janeiro, Brazil, 1875-1975. Tese de doutorado. Universidade de Stanford, 2004, p. 37. 13 CARVALHO, A. M. F. M. A Baía de Guanabara: os itinerários da memória. Revista USP. São Paulo, n. 30, 1996, p. 162. 14 Id., 1996, p. 164. 15 MACIEL COSTA, Maria Angélica. Da lama ao caos: um estuário chamado Baía de Guanabara. Cadernos Metropóle, vol.17 nº 33, São Paulo, maio 2015. 10
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dutos que ligam a Ilha d’Água e a REDUC, aonde vazaram cerca de 15 mil litros de petróleo16; e, em 18 de janeiro de 2000, um duto que ligava a Refinaria Duque de Caxias (Reduc) ao terminal Ilha d'Água, rompeu-se, provocando um vazamento de 1,3 milhão de litros de óleo combustível nas águas da baía17. As comunidades da região foram as mais afetadas pelo vazamento, e os danos ambientais foram gigantescos, com os gastos decorrentes para controle do vazamento estimados em R$ 103,7 milhões, e ainda multas e indenizações que somariam R$ 37 milhões18. O problema se agrava se recuperamos a instalação das refinarias de Manguinhos e de Duque de Caxias que sinaliza o início da relação existente entre a Baía de Guanabara e o petróleo. Apesar do Rio de Janeiro ter passado por um significativo processo de industrialização, o processo de urbanização ficou praticamente limitado às regiões mais ricas do Estado da Guanabara, enquanto no Estado do Rio de Janeiro, que era mais pobre, o processo de urbanização se deu de forma limitada. Com a fusão dos dois estados a desigualdade no desenvolvimento dos dois espaços ficou ainda mais visível, e teria efeitos duradouros sobre as políticas pensadas para a baía de Guanabara. As fraturas espaciais19 se acentuam ainda mais nesse momento. A região metropolitana do Rio de Janeiro abriga a Refinaria de Duque de Caxias (REDUC), da Petrobrás, e a Refinaria de Manguinhos, que é privada. As ilhas da baía de Guanabara – Ilha Redonda, Ilha d’Água e Ilha do Governador − são utilizadas como terminais de transporte de produtos petrolíferos20. Existe ainda o plano de construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ), que está previsto para ser instalado em Itaboraí. Com a finalização desse projeto, o impacto industrial e demográfico na região da baía de Guanabara irá aumentar de forma exponencial (ibid.). Para Carvalho (1996), a baía passou no século XX por uma profunda transformação na sua unidade. Seus principais lugares de circulação agora servem com o propósito de ligação direta, não de integração entre os locais. A Ponte Rio-Niterói, a Linha Vermelha e a Avenida Beira Mar são locais em que se chega ao outro lado, e sua finalidade serve para acentuar ainda mais as fraturas espaciais21.
O GLOBO, 1998: < http://oglobo.globo.com/economia/petroleo-e-energia/petrobras-tera-de-indenizar-pescadoresem-50-milhoes-por-vazamento-na-baia-de-guanabara-12561414>. Acessos em: 1 de março de 2016. 17 O GLOBO, 2000: < http://oglobo.globo.com/economia/petroleo-e-energia/petrobras-tera-de-indenizar-pescadoresem-50-milhoes-por-vazamento-na-baia-de-guanabara-12561414>. Acessos em: 1 de março de 2016. 18 BERTOLI, Ana Lucia. RIBEIRO, Maisa de Souza. Passivo ambiental: estudo de caso da Petróleo Brasileiro S.A-Petrobrás. A repercusão ambiental nas demonstrações contábeis, em consequência dos acidentes ocorridos. Rev. adm. contemp. v.10 n.2 Curitiba abr./jun. 2006. 19 CARVALHO, A. M. F. M. A Baía de Guanabara: os itinerários da memória. Revista USP. São Paulo, n. 30, 1996, p. 166. 20 MACIEL COSTA, op. Cit., 2015. 21 CARVALHO, op. Cit., 1996, p. 168. 16
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Desse modo, se houve intensa modificação na geografia da área − e na da Ilha d’Água, particularmente − e se as práticas locais foram drasticamente alteradas, não só na Ilha d’água, mas como aponta Sedrez (2004), o processo de modificação do território da baía de Guanabara é resultado de um processo de urbanização, alterando a geografia não só da baía, mas também das ilhas vizinhas que compõem a mesma. Podemos afirmar, considerando o conceito anteriormente citado, que tanto a formação de uma identidade como a sua perpetuação foram prejudicadas em se tratando da Ilha d’Água. A memória do indivíduo que possuía livre acesso à região e interagia com a sua topografia, antes da sua ocupação pela petrolífera, parecerá distante e até mesmo irreal às gerações para as quais a mesma experiência não mais permite reprodução. Segundo definição, constante na convenção da UNESCO, sob o título Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage, o patrimônio cultural imaterial é transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Coelho (2007) descreve a Ilha d’Água, ressaltando esse “elo” perdido, tendo sido, outrora, uma das visões paisagísticas mais interessantes (...) em um dos cantos da praia, havia um cais que permitia a entrada e a saída do mar e servia de cativeiro para peixes previamente apanhados. O relato, como observado, difere de forma distinta da imagem associada, nos dias de hoje, à ilha; infelizmente, não sendo raras, as notícias denunciando os altos níveis poluição no local22.
Castro et al. (2010) e Silva (1995), chamam a atenção para a prevalência, no início do Estado Novo, do aspecto material do patrimônio histórico. Segundo os autores, era comum associar o conceito aos sítios arquitetônicos, edificações, obras de arte e monumentos consagrados pela crítica. Não existia ainda uma abordagem do caráter imaterial, menos elitista, tão pouco uma preocupação do seu ensino nas escolas. Os dois autores apontam para o caráter ativo do ensino. Segundo eles, o conhecimento não deve ser passado de forma passiva ao aluno, mas esse deve criar, problematizar, construir, a partir da relação com o objeto ou o meio ambiente, a sua identidade em relação à realidade apresentada23.
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COELHO, Victor. Baía de Guanabara: Uma História de Agressão. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007, p. 195. SILVA, Marcos A. da. Patrimônios históricos. In.: História o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo, Brasiliense, 1995.
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Magali de Castro (2010) e Oriá (1999) discutem que a norma jurídica − lei de diretrizes e bases da educação, assim como a própria constituição − no seu caráter positivo, torna a percepção individual do meio ambiente problemática, por desconsiderar as especificidades de cada contexto abordado, acabando por produzir programas omissos acerca das dimensões socioeconômica e cultural. Oriá (1999) ainda destaca a importância de entendermos a educação como agente promovedor da cidadania − não somente um conjunto de direitos, mas de deveres24. A partir da leitura dos autores supracitados apreendemos que somente é preservado aquilo que se valoriza. Contudo, sem a contextualização adequada, sem a proteção necessária e sem serem consideradas as formas de fazer, na edificação do patrimônio individual, a saber, a coletividade a fomentar o subjetivo, relatos, como os do livro “Baía de Guanabara: Uma história de agressão ambiental”, serão perdidos. Desse modo, para a manutenção da memória, é fundamental a atuação do profissional de história na sala de aula. Sem o seu auxílio na recuperação dos elementos históricos pertencentes a um relato não será possível às novas gerações criarem uma relação pessoal com a Ilha, muito menos construírem uma identidade local. Cabe ao professor, a partir do conhecimento prévio dos alunos, desvendar através da exploração do ambiente, o que elementos reminiscentes contam a respeito de um determinado sítio, para além das referências meramente didáticas. Ao contrário do pensamento positivista de que o ensino de história deveria se ocupar tão somente dos grandes eventos e ser embasada nas fontes escritas, entendemos e defendemos, neste trabalho, que sem a compreensão da história local, daquilo que lhe toca de forma mais próxima, o aluno terá maior dificuldade na contextualização de eventos mais longínquos, ainda que o afetem se considerados na sua temporalidade. Como bem destaca Silva (2009), o trabalho com a história local deve ser entendido como uma estratégia de ensino, a fim de introduzir conteúdos, além dos manuais didáticos, articulando assuntos nacionais e mundiais, levando o aluno a desenvolver uma consciência histórica25.
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ORIÁ, Ricardo. Educação patrimonial: conhecer para preservar. Disponível online em: <http://www.aprendebrasil.com.br>. Acesso em: 20 de fevereiro de 2016. 25 SILVA, Giane De Sousa. Programa de Desenvolvimento Educacional: História Local: uma experiência em educação histórica. Londrina, 2009. 24
Admitimos neste contexto, devido a sua pertinência, a introdução do conceito das experiências metacognitivas uma vez que as mesmas designam, segundo Flavell (1976)26: “os processos pelos quais se é capaz de exercer controle e auto-regulação durante a tarefa de resolução de um problema, permitindo ao sujeito tomar consciência do desenrolar da sua própria atividade”. Portanto, por meio da metacognição o aluno é capaz de tomar consciência do processo de aprendizagem e da consciência histórica. Silva (2009), embora não desenvolva em seu artigo o conceito de metacognição, salienta a importância da percepção do conhecimento prévio trazido pelos alunos, do conhecimento cultural permeado pelas suas vivências e pela percepção do desconhecimento sobre os assuntos problematizados para a materialização das experiências metacognitivas. Inferimos, assim, que através da consciência do processo de aprendizado, é possível aos alunos terem uma relação com a matéria não meramente conteudista − na qual o conhecimento é transmitido de forma passiva −, mas construtivista − na qual o aluno é também agente do próprio saber. Observamos, pela experiência de ensino apresentada, como a forma de relacionar-se com uma matéria muda drasticamente o modo como ela é vista pelo aluno. Retomando a distinção entre patrimônio histórico-cultural material e imaterial, conseguimos constatar que o corpo discente possui a ideia de que a história se encontra restrita ao passado distante, a algo imobilizado no tempo, sem nenhum espaço para descoberta, sendo o professor mero mediador entre tais informações. A sua percepção está fundamentada no material, no ensino tradicional e restrito aos espaços consagrados para este fim. Para que haja mudança na mentalidade, é necessária uma transformação na abordagem do ensino. A imaterialidade do patrimônio histórico cultural só pode ser ensinada de forma participativa, na descoberta, na recriação do fato. Somente assim haverá uma real mudança no paradigma ensinoaprendizagem. A título de destaque, com as Olimpíadas de 2016 do Rio de Janeiro, as atenções do Comitê Olímpico Internacional (COI) se voltaram para a Baía de Guanabara, com a preocupação pela qualidade da água para a realização das provas de competição. A partir daí o Estado retoma alguns projetos de despoluição da Baía da Guanabara, unindo esforços políticos e financeiros. Maciel da Costa (2015)
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FLAVELL apud RIBEIRO, Célia. Metacognição: um apoio ao processo de aprendizagem. Psicol. Reflex. Crit. [online]. 2003, vol.16, n.1, pp. 109-116. 26
aponta contradição nos esforços governamentais: ao mesmo tempo em que dá continuação a processos de despoluição da Baía de Guanabara para honrar o compromisso com o COI, também existe o plano de consolidar a região como polo da indústria do petróleo. A ambivalência despoluir/ industrializar é apenas umas das contradições presentes na relação do homem e da administração pública com a Baía de Guanabara. O prazo para o programa de despoluição da Baía de Guanabara é 2016, ao custo estimado de 1,14 bilhão de reais. Dentro desse projeto, existe o objetivo de criar novas possibilidades de turismo na região e despoluição das praias da Ilha do Governador27.
E o tempo, o que tem que ver com isso? A palavra tempo possui, em si, sentido polissêmico. Podemos nos referir a ele como sendo o tempo do relógio, do calendário, ou do individual e do coletivo28. Sobre estes dois últimos aspectos, podemos dizer que “(...) a percepção do tempo é um aspecto essencial da consciência do homem comum”29. Em outras palavras, a própria variedade do sentido de tempo está relacionada com a forma como a sociedade o define e o encara. O próprio sentido conferido ao tempo pode variar no tempo e ser diversificado a sua mobilização entre os historiadores30. Com o seu uso pela história, como ferramenta e base central, dotou-o de certa contingência de ser representado nas narrativas históricas31. Possibilita-nos, ainda, ressaltar outro aspecto dessa categoria histórica, que é a diferenciação entre o tempo histórico, enquanto produto das ações, relações e formas de pensar do homem no tempo; e, tempo cronológico, relacionado com o quantitativo temporal, a sucessão linear de acontecimentos e datas32. Assim, com a tecnologia realizamos a capacidade de medi-lo e o tempo histórico
SOUZA, Leonardo. A lição que vem do Rio. Revista Época. Editora Globo. Edição Especial. Rio de Janeiro, 9/03/2013. Ver SCALDAFERRI, Dilma Célia Mallard. Concepções de tempo e ensino de história. História e Ensino, Londrina, v. 14, agosto de 2008, p. 53; SIMAN, Lana Mara de Castro. A temporalidade histórica como categoria central no pensamento histórico: Desafios para o ensino e aprendizagem. In; De ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta. (Org.). In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 7, p. 109. 29 PINO, Angel. Tempo real, tempo vivido, representações do tempo. In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 3, p. 51. 30 Não corresponde aos objetivos do presente artigo resgatar a historiografia do tempo, isto é, apresenta-lo em suas diversas nuances e como foi considerado pelas numerosas correntes históricas. Remeter-nos-emos a tais aspectos em poucos momentos, quando necessário. 31 BARROS, José D'Assunção. Os tempos da história: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX. Revista Crítica Histórica, ano I, nº 2, dezembro de 2010, p. 180. 32 TURAZZI, M. Inez e GABRIEL, Carmen Teresa. O fio e a trama: os tempos da História. In: TURAZZI, M. Inez e GABRIEL, Carmen Teresa. O tempo e a História. São Paulo: Ed. Moderna, 2000, p. 36. 27 28
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se vale desta medição para marcar, temporalmente, as ações do homem dentro de um “continnum” histórico33. Não obstante, partimos de três premissas teóricas sobre o tempo. A primeira, é a de que não existe um tempo histórico único, homogêneo e linear34, mas sim, plural e heterogêneo e caótico35. A segunda é a de que o tempo, na história, já não mais se reduz à descrição dos acontecimentos passados linearmente, mas sim, ao expor as singularidades existentes em cada época − e dentro de uma mesma época existem diversas outras temporalidades, inclusive em uma mesma época −, permite-nos entrever como este tempo da experiência está distribuído em diferentes temporalidades, ou melhor, em multitemporalidades36. Pensar o tempo como multiplicidade implica pensar sua constante transformação. Contudo, anteriormente, esse novo tipo de visão não vigorava. Embora a tamanha evolução na maneira de a história inserir a questão do tempo em suas inquirições não impediu que a mesma se perpetuasse, de forma engessada, em uma visão dos acontecimentos históricos sequenciados em uma linha temporal contínua, que começa na pré-história e culmina em nossos dias37. Esta visão, atualmente, passa por severas críticas quanto ao seu uso. Ou seja, “A cronologia, embora essencial, só adquire valor quando relacionada a uma cadeia de relações que lhe imprime sentido”38. Terceiro, Siman ressalta em Furet que houve uma substituição da narração cronológica pela SIMAN, Lana Mara de Castro. A temporalidade histórica como categoria central no pensamento histórico: Desafios para o ensino e aprendizagem. In; De ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta. (Org.). In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005, cap. 7, p. 112. 34 A circularidade do tempo está relacionada à narrativa do mito, que acontecia de maneira circular, homogênea, cuja estrutura serve de ponte ao começo, a origem, não abarcando a ideia de cronologia. Sobre a introdução da ideia de linearidade temporal, o historiador José D’Assunção Barros nos esclarece sua origem nos hebreus, que foram os primeiros a defender uma linearidade temporal, teleológica sobre as narrativas bíblicas em direção ao Juízo Final (ao futuro), emergiram com uma ideia de tempo associada ao surgimento da História. Vale destacar que entre os gregos antigos já aparecia a ideia de tempo linear, com Epicuro e Lucrécio. O mesmo podemos dizer a respeito dos romanos antigos, cuja ênfase foi dada por Políbio a ideia de uma linearidade temporal, visando organizar os fatos que compõem a expansão do Império Romano. O mesmo podemos perceber em Santo Agostinho, só que não concentrado sobre a narrativa espaço-temporal de um povo eleito, mas antes, de toda a humanidade. Ver BARROS, José D'Assunção. Os tempos da história: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX. Revista Crítica Histórica, ano I, nº 2, dezembro de 2010, p. 181-184. 35 SIMAN, Lana Mara de Castro. A temporalidade histórica como categoria central no pensamento histórico: Desafios para o ensino e aprendizagem. In: De ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta. (Org.). In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005, cap. 7, p. 110-111. 36 RAGO, Margareth. O Historiador e o Tempo. In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 2, p. 28. 37 RAGO, op. Cit., 2005. cap. 2, p. 27. 38 Sobre este aspecto e suas observações impressas pela escola dos Annales, ver SIMAN, Lana Mara de Castro. A temporalidade histórica como categoria central no pensamento histórico: Desafios para o ensino e aprendizagem. In; De ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta. (Org.). In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 7, p. 112. 33
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história-problema, promovendo um esquadrinhamento de um problema no presente e que se apresenta em diferentes períodos do passado39. Ou seja, o passado não é mais estudado em si, mas de maneira relacional com o presente, apresentando continuidades e rupturas. Captar a historicidade do acontecimento implica em uma sensibilidade do historiador de emergir com a singularidade de um dado evento. Nesse sentido, o contexto histórico não seria visto à margem, mas vinculado ao fato e problematizado com este. Em vista disso, a percepção histórica se alarga, sendo possível “historicizar as práticas culturais, sociais ou sexuais que herdamos” 40, possibilitando, assim, que novas lições e óticas relativizadas e desnaturalizadas sobre os diferentes modos de vida sejam vistos. Assim, tínhamos um tempo artificial, marcado pela “imobilidade da natureza humana e a verdade do sujeito fundador”41. As práticas sociais e as experiências ficavam homogeneizadas, desconsiderando o acaso e as diferenças e exclusões. A linha temporal contínua revelava apenas permanências e não as mudanças, diferenças e subjetividades − passado idealizado. Isso desconsiderava, inclusive, que o trabalho do historiador se dá sobre a análise, também, das práticas discursivas, o que implica dizer que as diferentes linguagens eram desconsideradas. Dito de outro modo, a continuidade temporal legitimava e distanciava o passado do presente. Permitia-se, desse modo, moldar a história recortando-a, com vista de validação de verdades pela noção de progresso da sociedade, sem, contudo, perceber situações outras que igualmente mereciam atenção, como os objetos de estudos destacados pela Nova História. Essa prática ocorria pela necessidade porque “Dar continuidade aos costumes, aos valores, à tradição era uma tarefa fundamental”42. Contudo, a captação dessas subjetividades possui suas implicações. Uma delas, como destaca Pino, é “Falar em tempo é falar da relação, por vezes complicada, entre o tempo como objeto da razão (mental ou lógico) e o tempo como experiência subjetiva”43. Se a o sentido temporal é buscado no vivido, no cotidiano, os acontecimentos oficiais deixam de ter destaque para se relacionarem com
SIMAN, Lana Mara de Castro. A temporalidade histórica como categoria central no pensamento histórico: Desafios para o ensino e aprendizagem. In; De ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta. (Org.). In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 7, p. 113-114. 40 RAGO, Margareth. O Historiador e o Tempo. In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 2, p. 29. 41 RAGO, op. Cit., 2005. cap. 2, p. 33. 42 RAGO, op. Cit., 2005. cap. 2, p. 32. 43 PINO, Angel. Tempo real, tempo vivido, representações do tempo. In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 3, p. 58. 39
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outras instâncias de eventos. É pela memória que podemos captar essas diferentes instâncias do acontecido, e, portanto, das múltiplas experiências44. A problemática pode ser inserida em novas interpelações, se levarmos em consideração que a memória é igualmente possuidora de instâncias, quer individual, quer social e que se diferencia da memória histórica, que se inscreve em um passado geral, coletivo. Falar em memória implica lembrar e esquecer vivências que pertencem a um indivíduo ou a um grupo e está em constante transformação pela emergência de novas memórias sobre esse vivido45. Mas como falar de memória em um tempo em que os eventos, na atualidade, ocorrem de maneira abrupta e passageira? O fato de atualmente estarmos vivendo em uma época em que as mudanças se dão de maneira acelerada e constante46 − nomeada por Hartog como presente contínuo ou presentismo − nos impede de compreendermos as dimensões temporais e de entender as problematizações referente a tríade temporal − passado, presente e futuro. A filosofia contemporânea nos apresenta que, no lugar da temporalidade cíclica, que marcou os povos pautados pela oralidade, ou, a sequência linear oriunda das práticas escritas, atualmente vigorado por este presentismo, constantemente renovado em tempo real e apresentando multiplicidades, estaríamos vivendo uma nova forma de temporalidade: a da rede de informática47. Rago (2005) destaca em Beatriz Sarlo a vulnerabilidade que a história atualmente se encontra, marcada pelo presentismo vigoroso nos dias de hoje48. Implica dizer que a história se torna, ela mesma, carregada de dizeres, de ofertar os mínimos detalhes sobre tudo, a fim de poder ser creditada. Contudo, é justamente por esse excesso de informação que a história parece perder o seu lugar para a verossimilhança do detalhe. Outros fatores contribuíram para a valorização crescente do presentismo, destaca o historiador François Hartog, que são as crescentes demandas do mercado econômico e de consumo, as novas revoluções científicas e técnicas, as novas revoluções midiáticas49. Dessa maneira, se o passado funciona como inibidor da ação transformadora do presente, ele deve ser esquecido. SIMAN, Lana Mara de Castro. A temporalidade histórica como categoria central no pensamento histórico: Desafios para o ensino e aprendizagem. In; De ROSSI, Vera Lúcia Sabongi; ZAMBONI, Ernesta. (Org.). In: ROSSI, V. L. S. de; ZAMBONI, E. (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2ª ed. Campinas, SP: Alínea, 2005. cap. 7, p. 114. 45 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, 5 (10). Rio de Janeiro, 1992, p. 200-201. 46 LUCCHESI, Anita. A História sem fio: questões para o historiador da Era Google. In: XV Encontro Regional de História - Ofício do Historiador: Ensino e Pesquisa, 2012, São Gonçalo. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH-RIO, 2012, p. 2. 47 A isto voltaremos a tratar no último subtítulo deste artigo. 48 RAGO, op. Cit., 2005, p. 29-30 apud SARLO. 49 HARTOG, François. Tempo, história e a escrita da história: a ordem do tempo. Revista de História 148, 1º, 2003, p. 2728. 44
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Será a melhor saída? Hartog defende que não, ao propor uma reconciliação entre passado, presente e futuro, a partir do que nomeou por regimes de historicidade. Não nos interessa, no presente momento, discorrer sobre os momentos pelos quais, o historiador adverte, deram-se os diferentes momentos desse regime. Todavia, o regime de historicidade não se assemelha a noção de época, visto por Hartog como corte temporal linear. A mobilização da noção de historicidade implica organizar o passado mediante a organização de estruturas empíricas no tempo, por meio de um “enquadramento acadêmico” e que permite pensar a nossa forma de viver atual50. Desse modo, esse instrumento forneceria ao historiador a capacidade de se distanciar, desprendendo-se do presente e, assim, adquirindo um distanciamento sobre os fatos ou acontecimentos sobre os quais estivesse analisando51. Ao destacar as falhas em que estão inseridas o presentismo, Hartog ressalta o seu caráter hipertrofiado, necessitando imperativamente de sua transformação como passado, ou seja, os eventos históricos atuais desejam ser vistos, imediatamente, como passado. Ademais, e diametralmente oposto, impera a vontade de reflexo sobre o futuro, a partir de excessivas pesquisas. Outra brecha percebida sobre o presentismo foi a necessidade de uma busca identitária, calcada em um resgate de memória, no que tange a “atormentada pela conservação de monumentos, de lugares antigos ou não tanto, a preservação da natureza. Ansiosa com a recuperação do que fora perdido, ou estava para ser perdido ou inquieta com o que fora “esquecido””52. Destarte, a “Rememoração, conservação ampla, ou renovação e reabilitação nas políticas urbanas têm valido contra a simples modernização, desafiando a sua até então inquestionada evidência”53. Esse novo movimento permite a observação da reintrodução do futuro, por meio da preocupação com a conservação e a preservação. Contudo, como destacado por Hartog, é um futuro pessimista, apenas promovendo tais conservações com o propósito de “evitar ou corrigir os maus efeitos da modernização, retardar, antes de mais nada, o desastre ecológico próximo. Tomar em consideração o futuro implica subscrever uma apólice de seguro pelo futuro: contra o futuro”54. Assim, resultaria para o entendimento do historiador francês, um movimento muito maior que o da reconstituição da memória: a reconstrução da história55. Dessa maneira, o regime de historicidade HARTOG, François. Prefácio – presentismo pleno ou padrão? In: Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 51 HARTOG, op. cit., 2003, p. 28-29. 52 HARTOG, op. cit., 2003, p. 27-28. 53 HARTOG, op. cit., 2003, p. 29. 54 HARTOG, op. cit., 2003, p. 30. 55 HARTOG, op. cit., 2003, p. 31. 50
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“não é uma realidade dada. Nem diretamente observável nem registrado nos almanaques dos contemporâneos; é constituído pelo historiador”, ou seja, possibilita ao historiador a secção de experiências do passado, a fim de emergir com questões e confrontamentos que o possibilitem recuperar, analiticamente, uma parte importante da história, tornando-se essa esclarecedora aos demais eventos simultâneos e correlatos
Um relato empírico: a construção da linha do tempo digital sobre a Ilha d’Água56 Embora a tecnologia digital e a internet tenham possibilitado às pessoas um contato instantâneo e não presencial57, a proposta de uma linha do tempo interativa implica justamente o seu oposto: a interação, a troca de saberes que não exclui a sala de aula, mas sim, que a amplia para o meio digital. O nosso objetivo, oposto ao que Lucchesi ressaltou em Lévy (1996), sobre a desterritorialização provocada pela intenet58, é a de que a tecnologia e a rede digital sejam mais um território de exploração de saber, e não sua concentração dominante, desconsiderando os espaços de trocas presenciais de saberes. Existem debates se as fontes digitais devem ser pensadas como reformuladoras da metodologia da história ou precisam ser apenas adaptadas ao uso 59. Mas, por hora, este não é o nosso debate central, e sim, a possibilidade de melhor aproveitamento da questão temporal como ferramenta pelo historiador e o professor de história, gerando novas formas de pesquisa inserida em uma exploração temática, como advertimos na introdução deste artigo. Aliás, sobre esta particularidade, convém recuperar outro ponto destacado anteriormente, a de que com a Era Digital o passado se desfez, pois a aceleração de informação é tal, que torna frágil, e até desnecessário, a tríplice diferenciação temporal, como ressaltamos anteriormente. Marcella da Costa (2015) destaca que os registros históricos, muitos dos quais inseridos em plataformas e sites digitais, emergem com uma modalidade em voga na História e que ainda necessita de debates: a His-
A linha do tempo interativa, produzida pelos autores deste artigo, pode ser consultada em: <https://prezi.com/iayohkqvtbt/untitled-prezi/?utm_campaign=share&utm_medium=copy>. Acesso em: 12 de março de 2016. 57 LUCCHESI, Anita. A História sem fio: questões para o historiador da Era Google. In: XV Encontro Regional de História - Ofício do Historiador: Ensino e Pesquisa, 2012, São Gonçalo. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH-RIO, 2012, p. 3. 58 Id., 2012, p. 3. 59 Id., 2012, p. 5. 56
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tória Digital. Mas como expor aos interessados em história − profissionais e diletantes − essas informações e/ou registros históricos digitalizados? A História Digital deve ser observada não apenas como uma nova ferramenta metodológicas, mas também como capacidade de conferir à história um novo campo de pesquisa60. As propostas curriculares de ensino de História e as Secretarias de Educação61 ressaltam a importância de articular a concepção de história e a noção de tempo, apresentando às sociedades sob suas rupturas e continuidades62. Uma possibilidade de articulação é a de discorrer com alunos acerca da noção de tempo, o que implicaria em uma reflexão sobre a cronologia, cuja consequência não estaria muito afastada do reducionismo, uniformidade e regularidade dos acontecimentos históricos, por ser comumente praticada. Mas, veremos adiante, que determinadas modalidades historiográficas, por vezes, ficam parcialmente circunscritas a essa linearidade, o que não impede o debate. Outro ponto que merece destaque e reformulação é a afirmativa que vigora acerca da compreensão dos eventos do presente pelo estudo dos acontecimentos passados, resumindo o passado ao papel de “comunicar um conhecimento factual”63. Sim, mas como fazer? Para apresentarmos uma possibilidade de uma linha do tempo interativa sobre a Ilha d’Água e que não exclui a ampliação de uma conferência que o tema produz, resgataremos as teorizações acerca de História da Educação Patrimonial e História Local e seu vínculo com a questão da memória, da preservação ambiental, e com isso, a recuperação dos debates de História Ambiental, todos inseridos no regime de historicidade de um presentismo em voga. A escolha da plataforma de apresentação Prezi atendia a alguns objetivos mais práticos, como o de abranger o maior número possível de profissionais e estudantes na mobilização da ferramenta, visto que todas as plataformas de linha digital interativa disponíveis na internet estão em inglês. Assim, primeiramente, devemos ter o cuidado de pensar sobre os professores de História e os discentes que não dominam uma língua estrangeira.
COSTA, Marcella Albaine Farias da. Tecnologia, temporalidade e História Digital: interpelações ao historiador e ao professor de História. Revista Mosaico, v. 8, n. 2, p. 173-182, jul./dez. de 2015. 61 Consultar: <ftp://ftp.fnde.gov.br/web/livro_didatico/guia_pnld_2010/historia.pdf>. Acesso em: 27 de fevereiro de 2016 e MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Disponível online: <ftp://ftp.fnde.gov.br/web/livro_didatico/guia_pnld_2010/historia.pdf>. Acesso em 15 de fevereiro de 2016. 62 BITTENCOURT, Circe; NADAI, Elza. Repensando a noção de tempo histórico no ensino. In: PINSKY, Jaime (Org.). O ensino de História e a criação do fato. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1991, p. 73. 63 BITTENCOURT, op. Cit., 1991, p. 76. 60
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Mesmo sendo uma plataforma que também utiliza apenas o inglês, sua utilização é fácil e o programa é auto-explicativo, tornando-o simples de ser manuseado. Outro ponto destacado é que ela é bastante dinâmica em si, e toda a movimentação é própria do programa, não sendo necessária a interferencia do autor - como é o caso do Power Point, por exemplo, em que a pessoa precisa acresentar as animações –, o que atrai a atenção daqueles que a veem. Lembrando que o fator cor, tanto nas legendas quanto nos textos e imagens não devem saturar ou impedir a sua leitura/visualização. Além disso, é uma plataforma cuja versão básica é completamente gratuita, além de permitir um fácil acesso de todos, pois pode ser visualisada tanto através do uso da internet (online) quanto offline, podendo fazer o download do arquivo pronto. Na figura 2 abaixo, observamos a apresentação em Prezi completa, para a análise do resultado do desenho da linha do tempo interativa dentro dos círculos:
Fig. 2 Prezi. <https://prezi.com/iay-ohkqvtbt/untitled-prezi/?utm_campaign=share&utm_medium=copy>. Acessos em 12 de março de 2016.
Como estamos trabalhando com a noção de patrimônio sobre um espaço físico, um lugar, é imprescindível a todos os professores e estudantes de história a recorrência a um ou vários mapas, com a indicação, por meio de um símbolo sobre a região, que em nosso caso foram mobilizadas bandeirinhas vermelhas sinalizando a Ilha d'Água. Não é uma exclusividade da Geografia, ou sobre o
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uso de mapas. Lembremos aqui que a nossa proposta implica em um diálogo interdisciplinar.
O uso variado de mapas permite acompanhar as transformações degradantes pelas quais o lugar passou. Fotos64, postais e jornais antigos igualmente foram mobilizados e suas fontes indicadas, conforme observamos na figura 3, para apresentar como a paisagem dessa “ilha paradisíaca” era no início do século XX e como ela foi sendo alterada ao longo do tempo. Até um trecho, ou a possiblidade de ser assistido por completo, do filme “O descobrimento do Brasil”, do diretor Humberto Mauro e produzido na época em que a Ilha ainda não tinha sofrido a transformação, durante os anos 1930, foi acrescentado.
Fig. 3 Prezi. <https://prezi.com/iay-ohkqvtbt/untitled-prezi/?utm_campaign=share&utm_medium=copy>. Acessos em 12 de março de 2016.
Mas a pergunta ainda persiste: Por que a escolha pela linearidade temporal sobre a Ilha d’Água? Sendo a onipresença do presentismo marcado pela dualidade “entre a amnésia e a vontade de nada esquecer”65, dois movimentos podem ser percebidos nesta dualidade antagônica do regime de historicidade: o tratamento conferido ao passado por uma dada sociedade; e, como a sociedade ou um grupo social pensa a si mesmo. Percebe-se, logo de início, que assim como o tempo possui as suas
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Agradecimento ao professor Jaime Moraes por ceder gentilmente as fotos de seu blogue para a pesquisa, e pelo contato por email. Jaime Moraes. <ilhajaime.nafoto.net >. Acesso em: 15 de fevereiro de 2016. 65 HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, nº 36: p.261-273, Jul/Dez 2006, p. 261. 64
múltiplas temporalidades, o regime de historicidade igualmente percebe o tempo e a sociedade de diferentes modos, ou como Hartog (2006) concebe, enquanto “Maneiras de ser no tempo”66. Mas, pensar em si mesma e no seu passado requer resgatar uma memória, que pode ser material ou imaterial. No caso de sua materialidade, o patrimônio físico produzido, seja de um objeto ou de um lugar, relaciona-se com o tempo e a memória que produz. Destaque para o fato de o patrimônio igualmente ser múltiplo, se pensarmos que ao ser “categoria dominante, englobante, senão devorante, em todo caso, evidente, da vida cultural e das políticas públicas”67, seu uso sofre, por vezes, modificações, inclusive o de ser substituído. E aqui convém uma reflexão: terá sido a Ilha d’Água mais que substituída, isto é, aniquilada? Veremos mais adiante. Vale destacar, aliás, que isso gera discussões, inclusive no âmbito dos usos e abusos sobre o patrimônio. Essas implicações passam sobre a necessidade de memória, emergindo com o processo de patrimonialização ou museulização68, cujas obras arquitetônicas inseridas nesse processo devem somente pertencer a arquitetos falecidos. Para Hartog, “Isso é um indício muito claro deste presente que se historiciza69. Esse processo pode ser observado nos programas politicos de revitalização dos centros urbanos. Ao promover a revitalização, museulização e circulação social dialogam em um mesmo espaço. Hartog destaca, então, o caso da França, aonde houve a substituição de uma história-memória para uma história-patrimônio, ou seja, enquanto o patrimônio ainda não está inserido na memória, o objeto/lugar não é ainda fonte de memória; logo, de identidade. No caso da Ilha d'Água, sua brutal modificação resultante da instalação do terminal marítimo da Petrobrás na região (figura 4) aniquilou a possibilidade de memória, identidade ou patrimônio. Ela não foi substituída ou modernizada, e sim, utilizada para fins econômicos, daí sustentarmos que esse modelo de substituição francesa não se enquandraria no caso de nossa Ilha e que se apresenta em nossa linha do tempo, por meio de reportagens mais atuais70. Assim, a situação se mostra bem pior.
Id., 2006, p. 261. Id., 2006, p. 265. 68 Id., 2006, p. 268. 69 Id., 2006, p. 268. 70 HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. Disponível online: < http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 15 de fevereiro de 2016. 66
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Fig. 4 Prezi. <https://prezi.com/iay-ohkqvtbt/untitled-prezi/?utm_campaign=share&utm_medium=copy>. Acessos em 12 de março de 2016.
Como um patrimônio também define o território, o aniquilamento patrimonial de um objeto/lugar torna a identidade sobre o território instável, incorrendo na possibilidade de esquecimento, que outrossim provoca a mesma consequência sobre a memória. Destarte, “O patrimônio se apresenta como um convite à amnésia coletiva”71. Portanto, o compromisso que a nossa proposta evoca, acerca da memória, inserida em uma “ardente obrigação”72 de recuperar e reavivar um patrimônio, e assim, sua identidade. Terá sido tudo? Não. Um resgate identitário e patrimonialístico se faz somente quando se concilia progresso e preservação. Mas que tipo de preservação? Segundo Hartog, ela deve incidir sobre “Este mundo, o nosso, as gerações futuras, nós mesmos”73. Ao nos defirmos na preservação do patrimônio, uma aura da memória se torna crucial, permitindo nossa relação com o passado e o presente.
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Id., 2006, p. 266. Id., 2006, p. 266. 73 Id., 2006, p. 271. 71
Considerações finais No decorrer do artigo, observamos a partir da memória fotográfica processo de transformação da Ilha d'Água com a implantação da Petrobrás em seu território nos anos 50. A Ilha foi utilizada nos anos 30 para filmagens do longa “O Descobrimento do Brasil”, e também houve uma tentativa de locação de um depósito de explosivos de acordo com reportagem de época do Jornal Diário da Noite (1934), além de ser utilizada até os anos 50 como moradia de famílias e também como área de lazer de moradores do entorno74. A Ilha teve a sua paisagem transformada, e os seus moradores retirados para que nos anos 60 começassem as obras do terminal marítimo, em que é chamado de “Terminal Torguá” oficialmente pela Petrobrás S.A.. Houveram vazamentos de Petróleo do Terminal Torguá, na Ilha d'Água depois da sua instalação e início de operação, e é notável que ainda há esses mesmos riscos observados em manchetes do Jornal O Globo75. O vazamento de detritos químicos, provenientes da Petrobrás no mar da baía de Guanabara causou mortandade de animais durante os anos, e inclusive contaminação da água, que misturada a detritos orgânicos de esgoto doméstico, causam na não apropriação de algumas praias da região para o uso de banhistas resultados de mudanças urbanísticas que de acordo com Sedrez (2004) agravaram o processo de poluição da baía de Guanabara. A transformação da Ilha também é um processo de urbanização, já que no lugar do meio natural foi implantado um meio artificial para o usufruto da economia humana. A Ilha d’Água é uma referência escolhida pela nossa pesquisa para o debate sobre a educação em história local, conforme Silva (2009) ilustra. Discutimos então com a tecnologia a uma forma de medir o tempo e observar um tempo histórico, mostrando as ações do homem dentro de um “continnum” histórico76 que a Ilha proporcionou a partir das fontes secundárias, entre fotografias, pinturas e documentos sob o domínio público na internet.
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É apresentado no presente artigo e na linha do tempo sobre a Ilha d’Água a importância sobre a preservação e valorização de um patrimônio77 que sofreu transformações urbanas e econômicas, e utilizando meios tecnológicos78 como o Prezi, possibilitou uma análise em formato de linha do tempo de forma cronológica, relacionando com o quantitativo temporal e a sucessão linear de acontecimentos e datas79. Este trabalho é voltado para o uso paradidático com alunos do ensino fundamental e médio, de forma interdisciplinar. Compreendemos a necessidade dos dois tipos de público-alvo, exigindo do professor o sutil cuidado de nivelar de acordo com o ano, seja no fundamental, seja no médio.
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PARA UMA HISTÓRIA INTELECTUAL DA AMÉRICA LATINA For an Intellectual History of Latin America Antonio Mitre* O historiador boliviano Antonio Mitre é Doutor em História pela Columbia University (1977). De 1978 a 2013, foi professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 2013 exerceu a Coordenação do Centro de Estudos Latino-Americanos (CELA). Sua produção acadêmica tem se dado nas áreas de História Social e Econômica da Bolívia, com vários livros publicados sobre a trajetória da indústria da mineração desse país nos séculos XIX e XX, entre outros: Los patriarcas de la plata: estructura socioeconómica de la minería boliviana en el siglo XIX, (Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1981); Bajo un cielo de estaño: fulgor y ocaso del metal en Bolivia, (La Paz: Asociación de Mineros Medianos & ILDIS, 1993); El monedero de los Andes: región económica y moneda boliviana en el siglo XIX, (Instituto Mora, 2004); Los Hilos de la Memoria. Ascensión y crisis de las casas comerciales alemanas en Bolivia (La Paz: Anthropos, 1996); além de um ensaio que analisa o regime atual à luz do processo de modernização que experimentou a Bolívia nos últimos cinquenta anos, especialmente nas cidades de El Alto e Santa Cruz de la Sierra: Nosotros que nos queremos tanto. Estado, modernización y separatismo: una interpretación del proceso boliviano, (Editorial El País, 2008, LOM, Santiago de Chile, 2010). O professor Mitre tem incursionado também no campo do Pensamento Social e Político Latino-americano, e alguns de seus trabalhos foram reunidos no livro El dilema del Centauro: ensayos de teoria de la historia y pensamiento latinomericano, (LOM, Santiago de Chile, 2002, UFMG, 2003). Fui aluna de Mitre e, desde então, tenho uma grande admiração por seu trabalho, tanto como historiador quanto como professor. A entrevista que segue, concedida à distância durante sua mudança para São Paulo, assumiu necessariamente a forma, não de um diálogo, mas de um relato, no qual, a partir de perguntas abertas, o Professor foi rememorando livremente sua trajetória intelectual contra o pano de fundo das mudanças ocorridas no plano da política e das instituições que fizeram parte de sua biografia. O longo intercâmbio epistolar que deu origem a esta publicação foi motivado pelo entendimento de que a trajetória intelectual do Professor Mitre suscita importantes reflexões sobre os caminhos da construção do conhecimento acadêmico, e suas relações com o mundo mais amplo da política, sobretudo no contexto da América Latina. ***
imensamente ao Professor Mitre por esta entrevista, realizada nos meses de março e abril de 2016. Apresentação, edição e revisão final de Priscila Dorella, Professora de História das Américas da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
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* Agradeço
PRISCILA DORELLA: A sua trajetória acadêmica na área de História foi constituída a partir de experiências em países tão diferentes como Bolívia, Estados Unidos e Brasil. Como isto aconteceu? Como avalia os avanços e os dilemas do seu processo de formação intelectual? ANTONIO MITRE: A palavra “entrevista” sugere a ideia de entrever, através das fendas abertas por uma sequência de perguntas, o desenrolar de um pensamento ou de uma vida que, se presume, concitam algum interesse. Portanto, acho que falar sobre minha trajetória intelectual, seguindo o roteiro de suas indagações, só tem sentido na medida em que ela possa exprimir traços de uma experiência comum, reconhecível, em algum grau, por outros que atravessaram o mesmo arco temporal, embora o relato deva ser irremediavelmente autobiográfico. Admitida a índole seletiva da memória, começarei me situando em Cochabamba (Bolívia) no ano de 1964, quando ingressei no Curso de História na Normal Nacional Católica, instituição dedicada à formação de professores para o ensino elementar e médio. A escolha da área de estudo não foi com certeza o cumprimento de uma “vocação”, palavra forte que sugere a ideia de uma inclinação inata, um chamado, quase um sacerdócio. No meu caso, a motivação teve uma origem bem mais banal, e o que seguramente acabou pesando, no reduzido quadro de opções profissionais da época, foi, por um lado, obra dos docentes que, no colégio, me fizeram temer as matemáticas e aborrecer as ciências naturais e, por outro, as aulas do professor de história cujo talento histriônico nada tinha a invejar aos melhores atores do cinema. Esse dom, alicerçado numa rica imaginação poética, fazia de suas aulas um lugar de encantamento, onde grandes personagens, dilúvios e revoluções ressuscitavam diante de nossos olhos, sem qualquer esforço de crítica historiográfica. Pensando bem, o que então me atraía não era tanto o conhecimento do passado, mas a ideia de ensinar, coisa que já tinha feito esporadicamente nos últimos anos do colégio, como voluntário em escolas públicas noturnas e, em alguns domingos, no campo, sob a sombra das árvores. Essa dedicação precoce ao ensino, presente em vários adolescentes de minha geração, pode ter sido fruto da consciência moral ou, quem sabe, do sentimento de culpa forjado por uma educação católica que já tinha incorporado a questão social no raio de suas preocupações, e que, mais tarde, aproximaria alguns segmentos da igreja ao discurso da esquerda política. Seja como for, a opção pela carreira de professor de escola, com “salários de fome” (até hoje), ia na contramão das expectativas de meus pais, vogados, materializando, assim, o sonho do título universitário que se esfumara de seu horizonte quando, ainda crianças, ingressaram ao mundo do trabalho. Como era previsível, meus pais receberam Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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imigrantes palestinos, que esperavam que os filhos fossem médicos, engenheiros ou, no mínimo ad-
a notícia de que o caçula seria professor de escola e, de quebra, lecionaria história, com o mesmo espanto e sensação de perda de quem, na época, tomava conhecimento que um membro da família se tornara seminarista ou guerrilheiro –duas trilhas que, de tanto se entrecruzar, terminaram por convergir na travessia de muitos jovens de classe média nos anos sessenta, quando a expressão “ciências sociais” insinuava, para alguns, a ideia de uma ocupação sem fins lucrativos, algo assim como uma forma elegante de perder o tempo e, para outros, um modo de canalizar o sentimento de rebeldia e o desejo de transformar o mundo ou, ao menos, de aparar suas arestas mais perversas. No Departamento de História da Normal Nacional Católica, o ensino era bastante precário, tanto pela falta de recursos bibliográficos e de pesquisa, como pela abordagem marcadamente ideográfica e memorialista que campeava entre os professores da área. As disciplinas do programa contemplavam basicamente dois campos: Civilização Europeia nos períodos antigo, medieval, moderno e contemporâneo, e a História da Bolívia desde os tempos pré-colombianos até a atualidade. Em ambos os casos, a pesquisa limitava-se ao levantamento de fontes secundárias, e à elaboração de pequenos comentários de livros. De tudo isso restou, ao menos, um conhecimento razoável da configuração geral das épocas e de seus principais acontecimentos, além de um aguçado senso de orientação para situá-los e relacioná-los na linha do tempo, um fundamento de grande utilidade no trabalho historiográfico. Questões de método e debates clássicos a respeito de problemas epistemológicos que concernem às ciências sociais raramente eram considerados. Assim, uma parte substantiva de nossa formação ficava por conta das leituras dispersas que cada qual conseguia fazer, guiado por alguma resenha de revista ou, mais comumente, pelo faro do livreiro, personagem importante na vida intelectual daquela época. Outro aspecto que então enriqueceu minha formação extracurricular foi o convívio intenso com estudantes de outros departamentos (Filosofia, Matemática, Psicologia e Letras), que acabou gerando um grupo unido pela vontade de aprender e compartilhar os (pobres) saberes de cada um. Entre as primeiras leituras estimuladas por esse escambo de ideias, lembro as lições de ¿Qué es Filosofía?, de José Ortega y Gasset, livro em que comecei a vislumbrar o conhecimento como aventura infindável e prazerosa, e a tomar consciência de que, mesmo na explicação de temas árduos ou de questões hipertécnicas, é possível ser simples, sem menoscabo do rigor científico. Além de propiciar encontros informais para comentar e debater textos, essa roda de amigos acabou se constituindo também em um grupo de teatro, sob a grande impacto intelectual, político e emocional em nossas vidas. A escolha de duas peças montadas em 1965 e 1966, Os Justos, de Albert Camus, e J.B., de Archibald MacLeish, respectivamente, cujos Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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inspiração e direção de Walter Redmond (na época, padre Kiran), professor de filosofia que teve um
argumentos discorriam sobre os aspectos morais da violência humana e divina, expressava bem o cariz de nossas aflições, assim como o espírito de rebeldia daquela época. A modo de corolário, cabe registrar que, com a segunda peça, ganhamos o prêmio à melhor obra no concurso nacional de teatro. Em 1967, ano em que conclui o curso de História, a tensão política no meu país havia subido de tom, assim como a tutela do governo por parte das Forças Armadas, em razão da descoberta de um foco guerrilheiro na região oriental e, na sequência, a captura e execução do Che Guevara em La Higuera. O futuro era sombrio, e o passado imediato o fardo da travessia. Enquanto realizava os trâmites na “Federação Departamental de Professores” para obter um cargo em alguma escola de província, requisito obrigatório no início da carreira de magistério, recebi da direção da Normal Católica a notícia de que meu nome, junto com os de outros três companheiros do grupo, tinha sido proposto para que nos candidatássemos a uma bolsa do Latin American Scholarship Program of American Universities (LASPAU) –agência criada em parceria com universidades estadunidenses. A finalidade declarada do Programa, apoiado e financiado por agências do governo norte-americano e por instituições públicas e privadas da região, era contribuir para o desenvolvimento de pessoal acadêmico, através da alocação de bolsas a estudantes latino-americanos para cursar a pós-graduação nos Estados Unidos. No clima de Guerra Fria, recrudescido pelo desenrolar da Revolução Cubana, e na estela da “Aliança para o Progresso”, do “Peace Corps” e de outras iniciativas lançadas pela administração Kennedy, a proposta do LASPAU dificilmente deixaria de levantar suspeitas, por parte de setores da intelectualidade de esquerda, de que se tratava de mais uma sutileza do imperialismo ianque. O fato é que o programa, sediado no campus da Universidade de Harvard, continua em atividade até hoje e ao longo do tempo seguramente teve algum impacto, mesmo que indireto, no processo de “americanização” dos sistemas de pós-graduação na América Latina. Em todo caso, os quatro alunos da “Normal” passamos as provas de rigor e, depois de termos feito juntos um curso intensivo de inglês na Universidade do Texas em Austin, cada qual se deslocou para a instituição que lhe fora indicada. A despedida, que achamos seria mais um até breve, se tornou a derradeira para o grupo. Na véspera da minha viagem para o Boston College, fui informado de que meu histórico escolar, comparativamente à estrutura curricular da graduação norte-americana, de inspiração bem mais humanista, era deficitário nas áreas de Ciências Naturais, Literatura Inglesa e Filode créditos adicionais. Não obstante a mágoa inicial, os dois anos que passei em Boston resultaram ser dos mais ricos de minha formação acadêmica e pessoal. Instalei-me no campus em setembro de Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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sofia, e que, portanto, antes de ingressar ao programa do mestrado, teria que fazer um bom número
1968, quando os protestos contra o envolvimento crescente dos Estados Unidos na guerra do Vietnam e as revoltas contra a desigualdade racial, o sexismo e toda forma de autoritarismo estavam na ordem do dia, sobretudo entre os jovens. As mobilizações nas universidades eram intensas, e traduziam-se em passeatas, ocupações e greves que, por momentos, me davam a impressão de ter voltado para a Bolívia. Já no primeiro dia, presenciei e acabei envolvido num episódio que evidenciava a polarização existente nos campi diante do quadro de mudanças que experimentava a sociedade como um todo. Por volta das oito horas da noite, membros da organização estudantil de esquerda “Students for a Democratic Society” (SDS) passaram pelo dormitório convocando para as reuniões que aconteceriam nos distintos andares do prédio. Em poucos minutos, o corredor a que dava meu quarto ficou lotado de estudantes. Sentados no piso, e alguns de pijama, escutamos todos as expressões de boas-vindas, e logo o discurso de abertura proferido por um militante contra a guerra e o imperialismo norte-americano. Na sequência, uma garota de boina verde e estrela de cinco pontas prestou uma eloquente homenagem às mulheres cubanas que, segundo dizia, tinham defenestrado o contumaz machismo latino. Até aí as falas fluíram sem maior atrito, mas quando o terceiro orador se dispunha a começar sua arenga no mesmo diapasão revolucionário, a turma mais recalcitrante, que até então permanecera em silêncio, reagiu com uma rajada de xingamentos raivosos contra os “vermelhos”, os “barbudos”, as “feministas” e os “afeminados”. Iniciou-se, então, um bate-boca entre os dois bandos que foi crescendo em intensidade e desaforo, enquanto a maioria se divertia, ora apoiando um grupo, ora o contrário e, quase sempre, mofando-se de ambos. A reunião já tinha virado um pandemônio no momento em que uma voz se elevou do mais recôndito do corredor à altura do teto, e de lá atirou um dardo inusitado que rasgou meus ouvidos como as gotas de azeite fervendo que minha avó costumava pingar para derreter a cera endurecida no fundo: “Praise the Bolivians that killed the bastard” (referência ao Che Guevara). Ainda não tinha me recuperado da surpresa de escutar o nome de meu país nesse lugar improvável, quando meu companheiro de quarto achou que era o momento oportuno para me jogar às feras: “Hey, hey, there is a Bolivian here, let him talk”. Chamava-se Charlie Bloom, e levei um tempo para pronunciar seu nome sem embaralhá-lo com o de Charlie Brown, personagem desenhado pelo cartunista Charles Schulz com os mesmos traços de inocência e sabedoria do meu amigo. O silêncio instalado pela notícia de que havia um boliviano de carne e osso entre os assistentes foi recorApavorado, demorei a balbuciar algumas frases sobre a situação social e política de meu país, que pareceram agradar aos ativistas do SDS, e revoltar, ainda mais, o grupo contrário, o qual continuou Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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tando as sombras do corredor até me deixar estampado na parede feito uma figura de tiro ao alvo.
exalando impropérios, não obstante o carácter anódino de minha fala. A causa de tudo aquilo só podia ser minha barba, já que o mesmo rapaz que tinha aludido à execução do Che, apareceu de pronto na minha frente, e, após me perscrutar dos pés à cabeça, bradou com afetado assombro: “Holly shit! You can’t be a Bolivian! You don’t look like a full-blooded Indian at all!” Então não duvidei mais que tinha voltado à Bolívia, onde minha identidade nacional também costumava ser impugnada em situações de conflito, quando, vez por outra, era chamado equivocamente de “turco”, isto é, filho de árabe que, mesmo tendo nascido no país andino, não seria um boliviano autêntico, ou seja: “índio”, “criollo” ou “cholo”. A mesma mania aflorava agora no comentário de um indivíduo da sociedade ultramoderna, revoltado porque minha figura não encaixava no seu estereótipo. Sem embargo, contratempos dessa natureza não ofuscaram em nada a rica experiência acadêmica e existencial que foi estudar e morar no Boston College. Para começar, a excelência dos professores que lecionavam história europeia, com destaque para a área de economia e pensamento renascentista. Com eles consegui vislumbrar, para além da crítica das fontes, o subsolo do relato historiográfico, isto é, os pressupostos teleológicos e epistemológicos em que se apoiam as interpretações do passado. As aulas de filosofia antiga, medieval e moderna me forneceram uma base adequada na matéria, graças à qual pude, mais tarde, redirecionar minha atividade didática para a filosofia política, lecionando várias disciplinas dessa área no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Do mesmo modo, as matérias de astronomia e geologia, que no início eu reputava serem apenas estorvos curriculares, passaram-me não só conteúdos de interesse intrínseco, mas também algo do método que essas ciências utilizam para alcançar e formular suas descobertas. Esse aprendizado me levaria posteriormente a desconfiar das perspectivas que estabelecem separações rígidas entre as ciências físicas ou naturais e as ciências sociais. Mas a contribuição mais importante da travessia bostoniana foi consequência do objetivo maior que parece guiar o sistema pedagógico dos bons centros de ensino superior, qual seja, o de estimular o estudante a pensar por conta própria, a formar seu próprio juízo sobre questões e argumentos com os quais se depara, em síntese: a ter autonomia. O alcance dessa meta pressupõe ter consolidado, antes, o conhecimento dos conteúdos empíricos e conceituais expostos nas disciplinas introdutórias, o que, por sua vez, exige dos professores que as lecionam, além de domínio da matéria, humildade suficiente para começar pelo básico –muito diferente do que se observa na graduação brasileira onde, com excos sofisticados por parte de alguns docentes que, além do mais, demandam dos alunos leituras e trabalhos sobre temas complexos, sem reparar que a maioria deles mal consegue redigir corretamente Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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cessiva frequência, disciplinas introdutórias servem de palco para a exibição de conhecimentos teóri-
um texto, e muito menos entender a natureza dos problemas tratados. Aliás a natureza dos problemas fica escondida no envoltório de referências bibliográficas intermináveis que só ajudam a sentar o princípio de autoridade. Foi precisamente numa disciplina introdutória à língua inglesa, obrigatória para estudantes nacionais e estrangeiros, onde aprendi, não só algo de literatura anglo-saxã, mas, sobretudo, a fazer a leitura crítica de textos, e a procurar um estilo próprio na escrita. A professora Doherty, que lecionava a matéria, ciente de minha “queda” pela poesia, me estimulou a escrever alguns poemas diretamente em inglês –e dois deles foram publicados em 1969 na “Stylus”, revista quadrimestral da universidade. Em julho desse ano, a nave Apolo 11 pousou no Mar da Tranquilidade. Assisti o prodígio na televisão, em casa de uma senhora idosa onde se hospedava um colega panamenho. Eram cerca de onze horas da noite quando os três vimos Neil Armstrong descendo a curta escada do módulo estelar até assentar o pé esquerdo na superfície da lua, enquanto recitava a histórica frase “That’s one small step for (a) man, a huge step for humaniy”. A atmosfera solene que foi envolvendo a sala a cada palavra pronunciada pelo cosmonauta se desfez de pronto quando a velhinha da casa se levantou sem qualquer cerimônia e disse: “I leave you guys, I am so tired. I better go to bed”, e foi sumindo a passos ligeiros na poeira lunar de seus pensamentos. Menciono esse episódio por sua força premonitória. De fato, o feitiço daquela proeza espacial, que nós, jovens, acreditávamos mudaria de algum modo a humanidade, foi-se dissipando com o verão, e a canseira terrestre voltou a tomar conta de nossas vidas, já no dia seguinte, aqui no planeta, onde a política prevalecia com sua inalterável dose de espertezas e violência. Meu último semestre em Boston College ficou marcado pelas discussões acaloradas entre dois companheiros chilenos que, sem perder a compostura nem a amizade, se digladiavam todos os dias à hora do almoço, formulando prognósticos do que poderia acontecer após as eleições de setembro de 1970 em que Salvador Allende disputaria, pela quarta vez, o cargo de presidente. Nicolini, filho de imigrantes italianos, era socialista de coração e divisava um futuro promissor com Allende, ao passo que Felipe, descendente de família palestina abastada, era conservador por tradição de classe, e desejava com veemência que o candidato do Partido Nacional ou, no pior dos casos, o da Democracia Cristã, ganhasse o pleito. Embora os sinais de uma conflagração em grande escala estivessem presentes a cada refeição, seja no elevado grau de politização dos contendores, seja na frequência das trombadas corolário trágico que teria essa fase da história chilena. O fato é que, quando Allende assumiu o poder,
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verbais e no caráter inarredável das posições que cada qual sustentava, ninguém podia suspeitar o
exatamente na semana em que os bosques de New England ostentavam o prodígio das cores incandescentes com que, a cada outono, saturam de maravilha os olhos e marcam a memória a ferro e fogo, fazia pouco mais de um mês que eu tinha ingressado ao programa de pós-graduação em História Latino-Americana da Universidade do Texas em Austin. PRISCILA DORELLA: E como se deu essa passagem, não só para o curso de pós-graduação na Universidade de Austin, mas para a área de concentração em História da América Latina? Poderia fazer um relato de sua experiência nessa universidade, tanto sob um ponto de vista pessoal como acadêmico? ANTONIO MITRE: Ao tentar responder sua indagação inicial sobre a escolha da América Latina como área de concentração, eu mesmo me pergunto por que não cogitei na época outras possibilidades –história europeia, por exemplo, que tinha estudado bem mais do que qualquer outra até então. Ou, aproveitando a circunstância de estar nos Estados Unidos, por que não me atrevi a mergulhar no conhecimento de sua trajetória institucional, política e socioeconômica de tanto impacto global. Seguramente foram vários os motivos que conspiraram contra essas opções. Por um lado, o crescente interesse que, desde a Revolução Cubana, concitava a América Latina em vários círculos intelectuais e políticos dos Estados Unidos e, claro, nas suas universidades, algumas das quais expandiram seus programas na área, e outras os estabeleceram por essa época. Todos precisavam de clientela, e as chances de ser aceito nessa área de concentração dos Departamentos de História eram provavelmente maiores. A essa circunstância somava-se a expectativa de que o estudante de ciências sociais “naturalmente” procurasse na trajetória de seu próprio país o referencial empírico para a elaboração dos trabalhos de fim de curso, independentemente do tema a ser tratado. Assim, as dissertações ou teses dos brasileiros tendiam a ser quase invariavelmente sobre o Brasil, e as dos bolivianos sobre a Bolívia – com todas as vantagens e desvantagens que essa orientação implica. Seja como for, a “descoberta intelectual” da América Latina aconteceu para mim na Universidade do Texas, e não na Bolívia onde, fora algumas referências às repúblicas vizinhas, quase sempre sobre acontecimentos bélicos e revoluções fragorosas, nada se ensinava das outras histórias nacionais, nem da trajetória estrutural da região. A vivência latino-americana que então se tinha era fruto da literatura, do cinema e das revistas que no rádio ou nas películas. Na Universidade do Texas, ao contrário, a oferta de disciplinas sobre América Latina nos cursos de História, Antropologia, Política, Letras e Economia era considerável, tanto Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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chegavam ao país –principalmente do México e da Argentina –, assim como da música que se ouvia
assim que até pude dar-me o luxo de fazer uma disciplina introdutória à gramática e fonética da língua quéchua que eu tinha escutado ao longo de minha vida em Cochabamba, sem nunca ter aprendido a falá-la. Mas as incursões mais constantes se deram naturalmente no campo da História, particularmente da História Mexicana, a principal área de concentração do Departamento, em virtude da existência de coleções importantíssimas de documentos desse país que a Universidade recebeu como doação, ou foi comprando e organizando ao longo do tempo. Tais repositórios eram o motivo da incessante peregrinação de historiadores mexicanos ou mexicanistas, muitos de primeira linha, que, além de fazer pesquisa, dedicavam parte de seu tempo a lecionar e debater temas de sua especialidade. Assim, tive o privilégio de assistir à série de conferências sobre o sistema político mexicano proferidas por um dos maiores intelectuais mexicanos, Daniel Cosío Villegas, que então acabava de publicar o primeiro volume de El Porfiriato. La vida política interior, e, na esteira do massacre de Tlatelolco (1968), já tinha assumido uma posição francamente crítica ao regime de seu país. Outro professor visitante, cujas aulas me impressionaram pela capacidade de alicerçar a análise histórica numa sólida base sociológica, foi o sueco Magnus Möerner, autor de obra clássica sobre um tema cativante que voltou com força nos dias de hoje: a questão racial e a mestiçagem na trajetória dos países latino-americanos (Race mixture in the history of Latin America). Do lado texano, a arquiteta da conexão intelectual Austin-México era a diretora da Biblioteca Latino-americana, Nettie Lee Benson, ela mesma estudiosa da história e da historiografia mexicanas, e autora de um estudo de ampla ressonância: La diputación provincial y el federalismo en México. A doutora Benson inspirava entre os estudantes da pós uma espécie de temor bíblico, talvez porque tinha reputação de ser pessoa irritadiça e inaccessível, mas eu posso afirmar, com algum grau de conhecimento, que essa era uma fama injusta, quase uma infâmia. Desde meu primeiro semestre em Austin, fui seu assistente de pesquisa, cursei uma de suas disciplinas e, mais tarde, ela orientou minha dissertação de mestrado. Desse convívio prolongado, guardo a lembrança de uma intelectual de extraordinária erudição, apaixonada pelo seu trabalho, comprometida com as questões sociais de seu tempo, de trato jovial e espírito generoso em sumo grau. Devo a ela a sugestão de pesquisar a “Colección Nicolás Acosta” –um acervo de documentos bolivianos do século XIX– que a Universidade acabara de adquirir. Dali saiu o tema de minha dissertação, a qual foi, de fato, o primeiro trabalho original que realizei sobre a história da Bolívia (Esquemas de Colonización y Proyectos de deixando saudades em todos os que a conhecemos; seu nome ficou inscrito na biblioteca que ela ajudou a crescer e cuidou com paixão e inteligência: “The Nettie Lee Benson Latin American Collection”, um Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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Navegación durante la Administración de José Ballivián, 1841-1847). A professora Benson faleceu em 1993,
dos maiores e melhores repositórios de livros e manuscritos sobre a América Latina, com destaque para o México. Sem embargo, nem todos os meus professores encontravam-se na redoma de “ícones sagrados”, havia também uma turma jovem que começava a despontar com publicações de grande impacto. Um deles era o brasilianista Richard Graham (Landowners and the Overthrow of the Empire, 1971). Mas lembro-me particularmente de James Lockhart, cujo estudo, publicado pouco antes, sobre o Peru nos primórdios da colônia (Spanish Peru, 1532-1560) –uma análise da origem social dos conquistadores e das primeiras gerações de colonizadores– já era, então, leitura obrigatória. No semestre que cursei sua disciplina, ele sugeriu que, como trabalho final, lesse e colocasse num ensaio livre minhas impressões sobre o manuscrito, de mais de mil páginas, intitulado El Primer Nueva Corónica i Buen Gobierno, cuja versão fac-símile a Universidade havia adquirido recentemente do Instituto Etnográfico de Paris. O autor, Felipe Guaman Poma de Ayala, buscava através desse monumental trabalho chamar a atenção do poder real espanhol para a violência desencadeada por conquistadores e colonizadores nesse “mundo de ponta-cabeça” que fora levantado sobre os antigos domínios do império incaico. Redigida por um índio em franco processo de aculturação, recheada de “quechuismos” e fartamente ilustrada com desenhos de admirável composição, a obra revela, in nuce, a sociedade colonial que foi se configurando ao longo da segunda metade do século XVI em razão dos conflitos e coincidências entre as instituições e tecnologias introduzidas pelos espanhóis e os valores da weltanschauung indígena. A leitura da versão fotostática do manuscrito foi, para mim, uma experiência inesquecível e, no trabalho de curso, arrisquei mostrar, com mais imaginação que método, as características da escrita num autor cuja cultura de origem era ágrafa, e explicar os motivos pelos quais ele tentava esgotar, dentro dos limites de uma lauda, tudo o que tinha a dizer a respeito do tema tratado ali, utilizando, quando necessário, estratégias inusitadas como diminuir o tamanho da letra até o limite da visão, ou escrever em espiral e pelas bordas para ocupar todos os espaços da página. Na Universidade do Texas, cosmopolita por excelência, a presença de estudantes hispânicos era considerável. No último ano do programa de mestrado, ocorreu-me a ideia de organizar e dirigir um grupo de teatro com a tribo multinacional (panamenhos, argentinos, salvadorenhos, mexicanos e venezuelanos), e multidisciplinar (belas artes, sociologia, história, filosofia, administração, letras e matemáticas) que convergia todos os dias no bandejão à hora do almoço. A proposta era congregar as atividades sociais. Ninguém daquele grupo tinha posto, antes os pés no palco, seja como atriz, ator, figurinista, técnico de som, ponto ou contrarregra. Encenamos duas peças: Saverio el cruel, do argentino Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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pessoas para conversar e fazer algo juntos, coisa que o teatro consegue propiciar melhor que outras
Roberto Arlt, e La pasión según Antígona Pérez, do porto-riquenho Luís Rafael Sánchez –ambas sobre o tema político da época: a ditadura militar, e suas sequelas de violência e tortura. Não obstante o amadorismo da empreitada, a experiência de fazer teatro nos enriqueceu a todos e, de quebra, a mim ensinou, melhor do que qualquer manual de didática, a arte de comunicar. Algum tempo depois, aprenderia também que a bela aula, fugaz como a representação teatral, uma vez dada, se desvanece. Em maio de 1972 terminei o mestrado. Estava implícito no programa LASPAU que o candidato, concluída essa etapa, voltaria a seu país de origem para trabalhar no ensino, coisa que eu fiz, mas não sem antes solicitar, just in case, ingresso a um par de programas de doutorado nos Estados Unidos. PRISCILA DORELLA: Mas, então, você já cogitava continuar os estudos na direção do doutorado. Por que você não ficou na Bolívia e acabou voltando para os Estados Unidos? Gostaria que você falasse sobre sua formação nessa fase e, particularmente, sobre o redirecionamento de suas pesquisas para a área de história econômica, explicitando os caminhos que o levaram a definir o tema de sua tese. ANTONIO MITRE: Na verdade, eu voltei para Bolívia sem uma determinação clara, seja no sentido de ficar por lá ou de voltar para os Estados Unidos. Durante três meses lecionei na Normal Nacional Católica em Cochabamba, paradoxalmente na condição de professor visitante e, para piorar as coisas, como horista, sem qualquer benefício social ou segurança no emprego. De todos modos, as aulas de história e pensamento latino-americanos que lecionei nessa época foram gratificantes, sobretudo pelos alunos cujo interesse e dedicação exigiram que mantivesse um ritmo de leituras intenso na preparação dos temas. Em agosto recebi comunicação da Universidade de Columbia em New York, informando que fora aceito no Departamento de História, com uma bolsa (fellowship) que cobriria todos os gastos. Não foi fácil tomar a decisão de fazer as malas novamente. Acho que o conselho de meu pai foi o empurrão que me lançou a fazer aquela viagem. De todas as etapas de minha formação acadêmica, essa foi a mais longa e, certamente, a mais marcante, tanto pelas oportunidades de lazer e cultura que a cidade oferecia, como pelos espaços de convívio intelectual e social que a Universidade de Columbia propiciava a estudantes e professores. A cada semana, a possibilidade de assistir, nos “brown bag lunchs”, a conversas com personalidades do mundo inteiro nos âmbitos acadêmico e cultural (cientiscada semestre, nova oferta de seminários conduzidos por professores visitantes de alto gabarito. Foi precisamente em 1973 que tive o privilégio de participar em um laboratório de escrita com Mario Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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tas sociais, escritores, artistas) e político (líderes sindicais, ex-presidentes, primeiros ministros); e, a
Vargas Llosa que, na época, já acalentava a ideia de relatar a saga de Canudos, tema de seu extraordinário romance A guerra do fim do mundo. Os encontros semanais, lembro bem, se iniciavam no final da tarde, quando ele fazia uma exposição curta sobre algum aspecto da criação literária, ilustrando seus argumentos com exemplos tirados de obras famosas ou pouco conhecidas. Na sequência, nós, alunos, apresentávamos nossos escritos, prosa ou poesia, que ele criticava, apontando, as vezes de maneira dura, mas nunca ofensiva, as falhas de forma ou conteúdo, assim como alguma virtude ou virtualidade implícita no texto. Depois era só relaxar e escutar as sedutoras elucubrações do romancista, espiando, vez por outra, a bela e enigmática Patrícia, sua mulher, que o acompanhava nessas soirées literárias. Assim, ao longo de minha vida intelectual e até hoje fiquei do lado da literatura. Ela não conseguiu fazer de mim um romancista ou poeta, mas certamente me deu os instrumentos para entender como a estrutura narrativa compromete, de fato, a explicação historiográfica. Dos professores que lecionavam no Departamento de História nesses anos, guardo gratas lembranças de quatro deles: Herbert Klein, Marcello Carmagnani, Karen Spalding e Philip Silver. Este último, profundo conhecedor da obra de Ortega y Gasset, me abriu as portas para incursionar na fascinante trajetória do pensamento latino-americano. A passagem de Carmagnani por Columbia foi um vendaval de ideias e ensinamentos para todos os que assistimos as suas aulas, tanto pelas teses desafiadoras que nelas desenvolvia, como pela agudeza de suas análises sobre a dinâmica socioeconômica do século XIX latino-americano. A professora Spalding, ao contrário, cultivava um low profile na aula, escutava mais do que falava, mas, quando o fazia, suas observações iluminadoras eram capazes de revelar, num detalhe, o universo. Devo a ela ter me mostrado quão importante é a fase colonial da história andina para entender a configuração atual dessas repúblicas. O professor Klein, o maior especialista em história boliviana dentro dos Estados Unidos, me direcionou para o campo da história socioeconômica de meu país, na expectativa de que minha tese, que ele acabou orientado, fosse nessa área. Todos, de uma forma ou outra, eram intelectuais de esquerda, numa época em que as teorias da dependência estavam na moda, e a metodologia quantitativa ia ocupando espaços cada vez maiores nas ciências sociais, graças a gigantescos computadores que uma elite de professores se aventurava a alimentar com os cartões perfurados por uma legião de operários das “keypunch machines”: os assistentes de pesquisa. Concluído o primeiro ano de créditos, havia que pensar no assunto da tese. O ponto de partida épocas, era o grande vazio da historiografia boliviana e, portanto, valeria a pena incursionar nesse arco temporal. No verão de 1973 viajei a Sucre para conhecer o Arquivo Nacional da Bolívia e verificar os Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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foi o reconhecimento de que a história social e econômica do século XIX, comparativamente às outras
documentos que poderiam servir de base para a elaboração de um estudo dentro desses parâmetros gerais. Começava mal, sem um problema definido, esperando que a sorte me abrisse um caminho. O máximo que alcancei vislumbrar, nas poucas semanas que fiquei tomando notas e folheando documentos, foi uma rica coleção de jornais do século XIX. Entre eles, havia um editado no mineral de Caracoles, a “flor do deserto” cuja ocupação, maiormente por trabalhadores e capitais chilenos, se deu pari passu à descoberta e exploração dos riquíssimos depósitos de prata rosicler na área. O povoado teve uma existência fugaz, e sua vida foi registrada pelo diário El Caracolino durante oito anos consecutivos, cobrindo o período anterior e imediatamente posterior ao controle militar e político do Chile. As notícias davam conta da chegada de catadores, empresários e empresas de ações, companhias de teatro e de circo, militares, burocratas, operários, e nigromantes de toda laia que fizeram a fama do mineral e testemunharam sua desintegração. A história de Caracoles parecia perfeita para tentar a reconstituição do conjunto da vida social de um pequeno universo, com princípio, meio e fim. Ressuscitar essa epopeia, como fazia meu professor de colégio com os personagens da Revolução Francesa, tornou-se uma obsessão. Sem embargo, circunstâncias não previstas me fariam mudar de rumo na direção de uma história estrutural, bem menos dramática e empolgante, mas seguramente de maior significado e impacto. A reviravolta foi obra das circunstâncias. O projeto de Caracoles exigia não só os recursos da hemeroteca de Sucre: havia que pesquisar também os repositórios notariais chilenos e outras fontes documentais existentes naquele país. Graças ao longo recesso de verão das universidades americanas, ainda dava tempo de passar um par de meses gélidos em Santiago, assim que enveredei para lá, diretamente desde a Bolívia. Cheguei à capital chilena justamente na madrugada seguinte ao “Tancazo”, primeira tentativa de golpe contra o governo de Salvador Allende, encenada por forças militares em 29 de junho de 1973. O clima político já era extremamente tenso quando solicitei no “Archivo Nacional” orientação para localizar a documentação sobre Caracoles. O fato de eu ser um boliviano à procura de documentos que se referiam a território anexado pelo Chile na Guerra do Pacífico tornava as coisas mais difíceis. A cada indagação feita, os encarregados dos repositórios respondiam de maneira evasiva e dilatória, apesar das cartas de recomendação e de ter esclarecido os fins de minha pesquisa. Esse jogo de empurra-empurra continuou durante um tempo, até que um dia me deparei na entrada com uma enorme faixa que comunicava o fechamento do “Archivo” em razão da quais eu não fazia outra coisa que assistir, na parte da manhã, a chegada a pé do “compañero presidente” à Casa de la Moneda e, de tarde, as palestras e debates que se levavam a cabo no “Centro Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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greve deflagrada pelos trabalhadores dessa repartição pública. Passaram-se três semanas durante as
Cultural Gabriela Mistral”, onde todos os dias se reuniam intelectuais da esquerda latino-americana, entre eles alguns brasileiros, como Theotonio dos Santos e Rui Mauro Marini, para debater os próximos passos da revolução socialista –e, pelo calor das palavras, parecia que ali se decidia a sorte do continente. Enquanto a direita conspirava na calada da noite, as ocupações de fábricas e prédios públicos, em plena luz do dia, iam parando rapidamente o país. A essa altura, os conflitos já refluíam da rua para dentro das famílias, onde não era raro ver irmãos, ou pais e filhos, levantando-se da mesa para brigar aos tapas por suas posições políticas. Em duas ocasiões em que fui convidado à casa de amigos, a ceia foi suspensa bem antes da sobremesa. A imagem de Nicolini e Felipe se digladiando no bandejão de Boston College assumira as feições de uma guerra declarada em Santiago, e o ar elétrico da capital fazia lembrar os toques de recolher na Bolívia. Tive medo. Decidi deixar o país bem antes do previsto, convencido de que pesquisar no “Archivo Nacional” era mais uma batalha perdida. Na saída do hotel, tentei pagar a conta com pesos chilenos, mas o gerente, com um olhar de frustação infinita, me disse que podia guardar essas notas no bolso ou, se preferisse, jogá-las fora e, a seguir, rasgou a conta, acrescentando que aceitaria qualquer quantia que eu tivesse em dólares. No caminho de volta aos Estados Unidos, fiquei umas semanas na Cidade do México, e ali me alcançou a notícia do golpe brutal de 11 de setembro. Já em Nova Iorque, retomei o curso, concluí os créditos e demais requisitos e obtive uma nova bolsa que me permitiu viajar a Bolívia no último trimestre de 1974, com o fim de recomeçar a pesquisa para minha tese de doutorado. Descartado o projeto Caracoles, e perdido num emaranhado de sugestões e conselhos, a luz se fez novamente ao “tropeçar”, na “Biblioteca Gabriel René Moreno”, com as “Memorias” de várias empresas mineradoras da Bolívia e, sobretudo, com a série completa da Companhia Huanchaca, a mais importante do país e a segunda do mundo na produção de prata entre 1873 e 1900. As fontes, além de fartas, continham series quantitativas valiosas sobre vários aspectos relativos à indústria argentífera, bem ao gosto do que então se apetecia nas ciências sociais. Com base nessa documentação, escrevi minha tese de doutorado: The Economic and Social Structure of Silver Mining in XIX Century Bolivia (1977). O manuscrito, traduzido para o espanhol, foi publicado em 1981 pelo Instituto de Estudios Peruanos sob o título: Los Patriarcas de la Plata. Estructura Socioeconómica de la Minería Boliviana en el Siglo XIX, e rapidamente se constituiu em referência sobre o tema. Talvez porque era o primeiro trabalho que mapeava a trajetória secular e os ciclos da mineração força de trabalho e política fiscal. O livro foi incluído recentemente na lista das 200 obras que comporão a “Biblioteca do Bicentenário de Bolívia”. Quando ainda não tinha feito a defesa da tese, a Universidade Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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boliviana a partir do comportamento de varáveis tais como: preços internacionais, produção, tecnologia,
do Texas em San Antonio me contratou como professor visitante para lecionar história latino-americana nos cursos de graduação e de pós-graduação. Embora eu já tivesse uma certa vivência do sul estadunidense, San Antonio me impressionou pela forma como a cultura texano-americana e a de ascendência mexicana conviviam ali, prodigando-se espaços de reconhecimento e desfrute mútuos, sem menoscabo das farpas lançadas por um e outro lado, guardadas as devidas distâncias. Ali trabalhei também como professor voluntário na “Universidad Jacinto Treviño”, dando aulas noturnas sobre a História do México basicamente para estudantes “chicanos” –uma experiência enriquecedora intelectual e culturalmente. O contrato com a Universidade do Texas estava marcado para concluir impreterivelmente em maio de 1977, quando, pelos meus planos, voltaria definitivamente à Bolívia. Em dezembro de 1976 decidi dar um pulo a Nova Iorque para me despedir dos amigos e da cidade. Na festa do fim do ano, conheci casualmente o Professor José Murilo de Carvalho que se encontrava de passagem. A conversa discorreu naturalmente sobre as incertezas de meu futuro e, ao saber que voltaria para o Sul, o professor me perguntou se tinha cogitado a possibilidade de trabalhar no Brasil, mesmo que provisoriamente e, just in case, deixou comigo o endereço do Coordenador do Curso de Mestrado em Ciência Política na UFMG, Professor Fábio Wanderley Reis. Durante muitos anos me assombrou o pensamento de que um episódio tão fortuito –o fugaz intercâmbio de palavras com uma pessoa da qual eu nada sabia, e que, como eu, estava de passagem pela cidade– pudesse traçar o destino de uma vida. Afinal, nunca até então o Brasil tinha entrado no meu campo de visão, apesar dos vários amigos brasileiros que fiz em Nova Iorque. E se, por um motivo qualquer, eu não tivesse ido àquela festa, igualmente casual e passageira? ...não parava de martelar, pensando em tudo o que veio depois. Pura ingenuidade minha. Hoje estou convencido que nada mudaria, que o acaso é tão implacável na sua lógica como a vida mesma, e que não adianta indagar ao destino sobre aquilo que ele não enxerga. Assim sendo, o Professor, e hoje amigo, José Murilo de Carvalho fica desde já desresponsabilizado dos rumos que tomou o meu enredo. Finalmente, sai dos Estados Unidos no segundo semestre de 1977. Foi em boa hora, porque então os governos e a política externa desse país, sobretudo no Oriente Médio, já me provocavam uma sensação de náusea irreprimível. PRISCILA DORELLA: Apesar de sua formação e produção como historiador, e profundo interesse na área literária, você se tornou professor no Departamento de Ciência Política da UFMG. Gostaria que você fizesse um balanço onal e social, e sobre a forma como você concebe as diferenças entre Ciência Política e História, uma vez que, na prática, observamos tantos pontos de contato entre elas. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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de sua carreira profissional nessas circunstâncias, falando um pouco sobre sua chegada ao Brasil, sua inserção instituci-
ANTONIO MITRE: Em março de 1978 ingressei ao Brasil com pé direito, já que logo na primeira semana no Rio tive a sorte de conhecer pessoalmente dois ícones da cultura deste país: Cartola e Darcy Ribeiro, graças a Alison Raphael, amiga e colega da Universidade de Columbia que, na época, terminava sua tese sobre o carnaval carioca, e transitava com familiaridade nas rodas de samba e nos círculos intelectuais. Poucos dias depois, me vi desembarcando na rodoviária de Belo Horizonte. Pedi ao taxista que me levasse a um alojamento de preço moderado, e, depois de rodar mais de meia hora pela cidade, me deixou num hotel cujo nome não consigo me lembrar. Só descobri que o hotel ficava a dois quarteirões da rodoviária quando o Professor, hoje amigo, Fábio Wanderley Reis veio no dia seguinte para me levar à sua casa onde haveria uma recepção de boas-vindas com a presença de alguns colegas do Departamento de Ciência Política. O golpe do taxista, lembrei agora, era o mesmo que minha mãe contava ter sofrido quando desembarcou em Marseille antes de seguir viagem a Bolívia, em 1922. Para quem viveu em Cochabamba e chegava a Belo Horizonte era inevitável encontrar semelhanças entre as duas cidades, não apenas pelo clima moderado ou por estarem distantes do mar e cercadas de montanhas, mas também pelo ritmo pacato de seus habitantes, sem menoscabo de suas espertezas respectivas. Na Universidade, vivia-se uma fase parecida àquela caracterizada por Weber quando as ciências sociais alemãs ainda não tinham se americanizado, nem o intelectual havia sido desapropriado de seus meios de produção (particularmente sua biblioteca), e os grandes institutos e universidades não eram ainda empresas de “capitalismo de Estado”. Tampouco havia internet, seja em casa ou no trabalho. Ingressei ao DCP na condição de professor visitante, contratado para reforçar o Programa de Estudos Comparativos Latino-americanos (PECLA) que funcionava sob a coordenação de Bernardo Sorj e do qual faziam parte vários professores do DCP: Vera Alice Cardoso Silva, Fábio Wanderley Reis, Malori Pompermayer, Celson José da Silva, René Dreifuss e William Smith. Enquanto a maioria dos colegas o PECLA era do quadro permanente do Departamento, os três últimos e eu fizemos concurso público em 1980. Então, eu já tinha deitado raízes em Belo Horizonte, onde, parafraseando Mariátegui, que disse que, na Itália, desposou uma mulher e algumas ideias, me casei com uma carioca cheia de ideias e paixão fecunda. Na época, o Curso de Mestrado do DCP era o único na área de sociais na UFMG e, por isso, tendia a acolher alunos que, em outras circunstâncias, seguiriam a carreira de sociologia, história ou região com um olhar interdisciplinar. Tamanha diversidade acarretava alguns ganhos de interlocução, e graves problemas de identidade com relação à natureza do Curso de Ciência Política e de suas linhas Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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antropologia. O próprio PECLA incorporava professores de outras áreas num esforço de estudar a
de pesquisa. Na época, grande parte da produção de dissertações constituía-se, na verdade, de trabalhos de história política, social ou econômica, de qualidade variável. Eu mesmo orientei, nos primeiros anos, alguns estudos desse tipo. Por tudo isso, e não obstante minha condição de historiador num Departamento de Ciência Política, não me considerava um peixe fora da água, embora sentisse às vezes falta de ar. No plano político, escutavam-se os últimos estardalhaços da Guerra Fria, sobretudo na América Central e no Caribe, enquanto no Brasil se ensaiavam alguns passos para transitar à democracia. Em consonância, o foco das ciências sociais se deslocava da análise do autoritarismo para o tema das transições, em mais uma tentativa frustrada de acompanhar a conjuntura. Mas, apesar dessas mudanças, o temor ao regime autoritário continuava “positivo e operante”, como dizia, então, o pessoal do “Casseta e Planeta”. Lembro a esse respeito que, tão logo assumi a Coordenação do PECLA, preparamos uma publicação artesanal (mimeografada) com artigos sobre agricultura e movimentos sociais no campo em países da América Latina. Escrevi o prefácio desse número, e nele mencionei de passagem os riscos que comportava a expansão das multinacionais brasileiras nas regiões de fronteira ao longo dos anos 70. Alguns colegas que leram previamente o texto me aconselharam, com a melhor das intenções, tirar esse parágrafo, lembrando que o regime militar, como o dinossauro no conto de Augusto Monterroso, ainda estava ali. Dado que a edição toda já tinha sido impressa, foi necessário arrancar a “Introdução” inteira de cada um dos cinquenta exemplares –a dimensão de nossos sonhos. Apesar de tudo, era uma época criativa e interessante, de intenso debate de ideias, embora o conflito ideológico levasse muitos a manter um certo arianismo intelectual, no esforço de conservar quimicamente pura a herança de uma linhagem teórica. E aqui, como em outras latitudes, a boa teoria, para a grande maioria dos cientistas sociais, era o marxismo e seus derivados, o resto era funcionalismo – uma palavra que então tinha uma plasticidade verdadeiramente funcional. A bem da verdade, a simplificação acontecia em ambos os polos do espectro ideológico, bem ao gosto do espírito maniqueísta daquela época, e que tem voltado à tona nos dias de hoje. No final dos anos oitenta e na década de noventa, ocorreram mudanças notáveis no país e nas universidades –sem que nos déssemos conta, fechava-se uma época. No Departamento de Ciência Política da UFMG, por motivos vários, houve uma debandada de professores de minha geração e da posição docente, embora lenta, acabou acontecendo, sobretudo nas duas últimas décadas, fazendo com que o professorado jovem –praticamente todos doutores– predominasse nos vários níveis da Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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geração anterior, criando um hiato de consequências problemáticas na dinâmica da instituição. A re-
atividade acadêmica e administrativa. No início desse percurso, o PECLA desapareceu, pouco mais tarde o Departamento de Ciência Política redefiniu suas áreas de concentração, e logo depois de ter participado na criação do Curso de Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política, que não deu certo, decidiu estabelecer um doutorado exclusivamente em Ciência Política, enquanto os Departamentos de Sociologia e História instituíam seus próprios programas de pós-graduação. Os cursos de especialização, cogitados como serviço à comunidade e, ao mesmo tempo, vias de complementação salarial, pipocaram por toda parte. A avaliação de professores e programas virou rotina, e a frequência, às vezes excessiva, dessa prática chegou a atrapalhar a dinâmica acadêmica pelo tempo que exigia, e pela obsessão dos cursos em ganhar uma boa nota, ajustando-se burocraticamente a determinações de órgãos superiores, pouco dispostos a ponderar a qualidade do que se produz nas universidades, e muito menos o sentido do que se faz. Em razão desse processo, as agências do Estado foram sugando a autonomia das Coordenações dos Cursos de Pós-graduação até torná-las em caixas de ressonância e de implementação de políticas acadêmicas emanadas do Centro. O discurso da “produtividade”, que despontara timidamente na fase anterior, cobrou força e tomou conta do pedaço, embora não chegasse ao “publish or perish” das instituições norte-americanas, em virtude das regras de contratação em vigor nas universidades públicas brasileiras. De toda forma, os curricula e relatórios anuais, que raras vezes ultrapassavam a marca de vinte folhas, chegaram à centena e, em certos casos, houve necessidade de dividi-los em volumes para tornar menos pesada sua leitura –sem exagero. Relatar ininterruptamente o que se fazia tornou-se tão importante ou mais do que o próprio fazer. A confrontação de ideias se tornou menos franca; ela foi substituída, em boa parte, por diálogos pacíficos que ocorriam dentro de grupos homogêneos, constituídos por pessoas unidas por um sistema de reciprocidade e de promoção endógena que se foi configurando através de citações mútuas em publicações, palestras e outras atividades acadêmicas. Em compensação, os cursos ganharam foco, e os programas, identidade definida. A metodologia e o aprendizado de técnicas quantitativas, que brilhavam por sua ausência, passaram a ser parte intrínseca da formação de professores e alunos, apesar de que a sofisticação nesse campo não veio acompanhada de um avanço correspondente na formação teórica. De toda forma, à medida que o processo de “americanização à brasileira” avançava nos cursos de ciências sociais, mais eu tinha a impressão de estar voltando no tempo, uma vez que o novo era, com frequência, parecido panorama atual das ciências sociais no Brasil é bem mais heterogêneo e complexo do que na década de setenta, quando ainda era possível identificar os grandes temas e debates da produção do país Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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ao que eu tinha experimentado um par de décadas antes nas universidades dos Estados Unidos. O
analisando a obra de um punhado de intelectuais em cada área. Hoje, resulta descabido e inútil buscar príncipes, papas ou ícones em qualquer uma delas. Do mesmo modo, as grandes interpretações sobre a realidade nacional, característica dos clássicos do pensamento social brasileiro, sumiram, ao mesmo tempo que o número de especializações e de especialistas foi aumentando de tal modo que atualmente, tão complicado quanto fazer um diagnóstico das áreas, é saber o que está acontecendo dentro de cada uma delas. Até que ponto essa situação reflete a própria complexidade social, que não se deixa capturar por perspectivas monolíticas, ou decorre de barreiras cognitivas, é algo difícil de ser determinado. Seja como for, o certo é que, após a extinção do PECLA, e diante dos caminhos novos que o DCP explorava, eu tive que me reciclar. Uma das estratégias foi lecionar disciplinas de filosofia política e de pensamento político e social latino-americano, além de seguir publicando artigos nessa área de interesse constante na minha carreira. Aliás foi essa a ponte que me permitiu estabelecer vínculos com o Curso de Especialização em Culturas Políticas, criado pelo Departamento de História, e no qual dei aulas noturnas e orientei trabalhos durante vários semestres. Penso ser este o momento para me referir a sua pergunta sobre como enxergo eu as relações entre a Ciência Política e a História como disciplinas. Aquilo que de específico tem cada uma delas talvez possa ser esclarecido a partir da resposta que historiadores e cientistas políticos fornecem desprevenidamente quando indagados sobre o que fazem dentro de suas respectivas especialidades. O primeiro dirá, por exemplo, que seu campo de interesse é a história da França, ou da Bolívia, e acrescentará que, dentro dele, se concentra num determinado período (moderno ou colonial) ou evento (a Revolução Francesa, ou a Boliviana, se for o caso), destacando, assim, as dimensões geográfica e temporal como intrínsecas a seu objeto de estudo. Já o cientista político tenderá a dispensar os constrangimentos de tempo e lugar e a colocar em primeiro plano o tema que concentra suas atenções: a revolução, a democracia, as eleições, o Estado, como fenômenos em si, impendentemente de casos concretos. Assim, enquanto o trabalho do historiador, por definição, é ideográfico, isto é, concentra-se no fato singular, a aspiração do cientista político, ou do sociólogo, é a descoberta de regularidades e a formulação de leis com as quais seria possível não só explicar as ações humanas no passado, senão também antecipá-las no futuro. Mas, uma vez dito isso, na prática, nem o historiador dispensa o idioma dos conceitos, uma vez que o acontecimento só se faz inteligível quando é situado, como diria Paul Veyne, dentro de sua espécie, no marco de sua generalidade, históricos específicos, mesmo que não os mencione explicitamente. E não é raro ambos se elevarem
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nem o cientista social interpreta e formula suas teorias sem levar em conta experiências e contextos
à altura das elucubrações filosóficas quando consideram os fundamentos ontológicos e epistemológicos subjacentes ao trabalho que desenvolvem, ou quando indagam sobre o sentido dos processos que estudam. Por isso, a História e a Ciência Política, sem confundir-se, podem muito bem se beneficiar do conhecimento mútuo e do diálogo interdisciplinar. Ao longo de minha carreira tenho realizado intermitentemente pausas destinadas a considerar questões dessa natureza, (Reflexiones y proyecciones historiográficas: un inventario personal, 1989), embora minhas pesquisas e publicações sobre a história econômica e social da Bolívia tenham ocupado a maior parte de meu tempo, paradoxalmente como uma atividade quase à margem da vida intelectual do Departamento de Ciência Política. No decorrer dessas reviravoltas, houve, como em tudo, ganhos e perdas. Entre as últimas, cabe contabilizar a redução da sociabilidade, que já era pobre e se tornou franciscana, sobretudo para os que, como eu, não eram mineiros, não tinham amigos de infância, ou de colégio, nem família estendida em Belo Horizonte, e constatavam perplexos como a cidade crescia desmesuradamente sem alterar em nada sua índole de fazenda iluminada. PRISCILA DORELLA: O seu trabalho abarca pesquisas importantes sobre História Econômica Boliviana. Como pesquisador boliviano, é possível afirmar que a imagem da Bolívia mudou com a chegada de Evo Morales ao poder? De que forma analisa o cenário político contemporâneo na América Latina, levando em consideração os notáveis desgastes dos governos de esquerda? ANTONIO MITRE: Em 2007 escrevi um longo ensaio, que acabou resultando em um livro (Nosotros que nos queremos tanto. Estado, modernización y separatismo: una interpretación del proceso boliviano, 2008), onde analiso o processo que levou Evo Morales ao poder e a configuração do regime sustentado pelo “Movimiento al Socialismo” (MAS). O ensaio foi escrito no âmago dos conflitos e tensões existentes entre os departamentos andinos e os da chamada “media luna”, quando se falava insistentemente na possibilidade de fragmentação estatal. O primeiro argumento desenvolvido nesse ensaio era, precisamente, que a ascensão dos novos movimentos étnicos e regionalistas na Bolívia não provocaria fraturas territoriais. O segundo objetivo visava a mostrar que o “fenômeno” Evo Morales era, de certa forma, a culminação de um longo processo, cujas raízes remontam, pelo menos, às transformações em 1953, uma reforma agrária, de alcance geográfico parcial, mas radical, na região andina e nos vales
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provocadas pela Revolução de 1952, quando o regime do MNR instituiu o voto universal e decretou,
centrais. Durante a vigência do regime revolucionário, e em decorrência dessas medidas e dos programas nas áreas de educação e saúde, a estrutura social e as bases do poder político foram sendo modificadas. Por um lado, intensificou-se a migração campo/cidade, por outro, as fronteiras étnicas tradicionais foram redefinidas, embora a cultura autoritária continuasse incólume, robustecida pelo uso de novas tecnologias de repressão e controle. Paradoxalmente, o mesmo partido (MNR) e o mesmo presidente (Victor Paz Estenssoro) que comandaram a revolução de 1952 e auspiciaram a ideologia nacional desenvolvimentista, voltaram ao poder no período 1985-1989, mas desta vez para encerrar, através do decreto 21060, as bases jurídicas do Estado nacionalista e, na sequência, organizar um novo sistema econômico de cunho neoliberal. Nessa linha, a reforma constitucional de 1994, instituída durante o primeiro mandato de Sánchez de Lozada (1993-1997), sustentado politicamente pela aliança MNR-MRTKL, ampliou o processo de privatização de empresas estatais já em pleno auge neoliberal, mas, ao mesmo tempo, reconheceu oficialmente o caráter multiétnico e pluricultural da Bolívia, outorgando personalidade jurídica às comunidades indígenas e legitimando suas formas tradicionais de representação coletiva, assim como o exercício de práticas de justiça comunal. O novo ideário reformista contemplou, além de distintas modalidades de democracia participativa (Lei de Participação Popular), a descentralização da estrutura estatal (municipalização e governações), possibilitando a acomodação de velhas demandas por maior autonomia. Essa agenda, hoje intensificada, tem incrementado a adesão da população indígena ao Estado, uma vez que o mesmo passou a ser enxergado como fiador de um pacto ancestral no que diz respeito à legitimação de “usos e costumes”. O caráter híbrido dessas reformas é crucial para se entender a índole do regime boliviano na atualidade. Por um lado, ele propicia a continuidade da economia capitalista, conservando os fundamentos das reformas neoliberais, tais como: autonomia do banco central, sanção constitucional da propriedade privada e da livre empresa, liberalização do comércio e abertura ao capital estrangeiro. Por outro lado, o regime de Morales reforçou, ampliou e aprofundou a inserção do campesinato e dos setores indígenas à cidadania plena, fazendo com que, pela primeira na história do país, esses setores alcançassem o controle efetivo do poder. Comparativamente a outros governos de esquerda, o caso boliviano é, talvez, o único em que a diminuição da pobreza e a mobilidade social ascendente de amplas camadas populares conotou, ao mesmo tempo, uma revolução na estrutura de poder. A ocupação, por parte dos setores municipais, ministérios até chegar à chefia do executivo nacional– foi o corolário de um longo processo de transformação socioeconômica e política. A liderança carismática de Evo Morales, dentro Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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indígenas, de espaços antes exclusivos das classes média e alta –parlamento, universidades, governos
desse processo, foi decisiva, porquanto conseguiu evitar que o conflito étnico derivasse em enfrentamento racial e racista de imprevisíveis consequências, ao mesmo tempo que, uma vez na presidência, distribuiu renda através de um leque de programas sociais de ampla cobertura. Os níveis de pobreza regrediram, e a equidade social aumentou, não apenas pela melhor distribuição da renda nacional, mas pela derrubada das barreiras legais e institucionais que impediam o acesso de amplas camadas da população aos recursos do Estado. Tudo isso foi possível porque o governo implementou uma política econômica que propiciou a estabilidade e taxas de crescimento constantes, e pelo fato de os preços das commodities terem se mantido altos durante vários anos, contribuindo para assegurar o dinheiro suficiente para manter e ampliar os programas sociais por parte do Executivo que, como se sabe, detêm o controle discricionário desses recursos. Não há dúvida de que crises econômicas decorrentes de gerenciamento ineficiente, corrupção ou mudanças no cenário externo comprometem a continuidade dessas políticas e a popularidade do regime. Sem embargo, na medida em que as camadas majoritárias no governo de Evo têm interiorizado a ideia de que existe uma conexão umbilical entre a continuidade dos programas sociais e a permanência do líder no poder resulta difícil para a oposição neutralizar a força desse capital político. No entanto, há um aspecto singular no caso boliviano quando comparado com outros regimes de esquerda na região. Contrariamente ao Brasil, por exemplo, onde o avanço da direita atualmente pode, de fato, debilitar ou mesmo extinguir as políticas sobre cujas bases se promoveu maior equidade e justiça social, na Bolívia, para além das vicissitudes dos programas sociais no futuro, julgo serem mais profundas e irreversíveis as conquistas consolidadas pelo regime de Evo Morales –a transformação das estruturas de poder e, concomitantemente, da configuração do Estado. A projeção internacional da Bolívia após a chegada de Evo Morales à presidência tem sido considerável, o que se explica não só pelas características intrínsecas do novo regime, mas pelo fato de ele preencher expectativas e interesses dos receptores de sua imagem no exterior, que a reelaboram a seu bel prazer (sobretudo agências e governos europeus). Por fim, cabe dizer que no governo atual, como em outros da esquerda latino-americana, com exceção de alguns poucos países onde a institucionalidade democrática acusa antigas raízes, a legitimidade democrática pende mais do princípio majoritário do que do resguardo dos direitos civis, e o princípio igualitário se sobrepõe ao de liberdade política, com os riscos que isso implica.
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PRISCILA DORELLA: Há um enorme avanço no Brasil em termos de pesquisas acadêmicas sobre a América Latina. É possível afirmar que esse interesse é recíproco e orienta políticas públicas efetivas em relação a unidade latinoamericana? ANTONIO MITRE: Para quem acompanhou a trajetória da região desde os anos 70, chama a atenção, hoje, um fenômeno que pode ser qualificado, em certa medida, como “latino-americanização do Brasil” – latino-americanização entendida não apenas como o estabelecimento de nexos econômicos com os Estados da região, mas, sobretudo, como o surgimento de um discurso político que decididamente insere a identidade do Brasil na matriz latino-americana. Esta não é uma questão banal, haja vista a histórica separação do Brasil com relação à América Hispânica, – um fato que tem sido salientado insistentemente tanto pela trajetória historiográfica como pelo discurso da intelligentsia política. Mas é mister lembrar que a incorporação do Brasil ao horizonte das repúblicas hispano-americanas é também uma tendência recente. A latino-americanização do Brasil é particularmente visível no ambiente universitário, onde é cada vez maior o número de programas de concentração na área, e de professores que desenvolvem parcerias com pesquisadores da região ou que incorporam, na sua matriz empírica e comparativa, a experiência dos países hispano-americanos. Nas últimas décadas, o espanhol difundiu-se bastante nas instituições de ensino superior, ocupando um espaço relevante nas bibliografias de curso e nas atividades acadêmicas. Houve também uma notável aproximação dos estudantes à língua e à cultura dos países vizinhos via convênios de intercâmbio, ou através de viagens que eles fazem por conta própria, como recomendava Rousseau no Emilio, para coroar os estudos, seja pela estrada dos incas, escalando as alturas do Machu Picchu, ou numa peregrinação a Cuba em busca de algum sonho perdido de seus pais e avós. Essas mudanças são fruto de um longo processo que contempla variáveis de natureza socioeconômica, política, cultural e tecnológica, tanto no âmbito doméstico como internacional, que apontaremos brevemente. Primeiro, o papel que tiveram instituiçõeschave como a CEPAL que, nas décadas de 40 e 50, congregou hispano-americanos e brasileiros da estatura intelectual e moral de um Celso Furtado e de outros que, na elucidação das causas do subdesenvolvimento, consideraram a América Latina não só como uma unidade analítica, mas como um projeto de união a ser construído politicamente pelos Estados da região. Em segundo lugar, a revolulecimento de vínculos entre intelectuais brasileiros e hispano-americanos em torno da Casa das Américas e da revista Pensamiento Crítico. Cabe lembrar também o chamado boom da literatura latino-americana Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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ção cubana que, nos anos 60, na esteira do pensamento de José Martí, suscitou o encontro e o estabe-
que, na mesma década, levou Guimarães Rosa aos países hispânicos e trouxe para os leitores brasileiros uma safra de brilhantes escritores do nível de um García Márquez, ou de um Julio Cortázar, sem esquecer o trabalho silencioso e perseverante de intelectuais como Ángel Rama e Emir Rodriguez Monegal, dois nomes contrapostos ideologicamente que, junto com Antônio Candido e Haroldo de Campos, respectivamente, construíram parcerias que redundaram na abertura de vias de comunicação e conhecimento mútuo entre hispano-americanos e brasileiros no contexto da cultura universitária. Já no âmbito das políticas de governo e da diplomacia, cabe destacar a mudança dramática das posições do Brasil e da Argentina no cenário hemisférico –dois Estados que, por razões distintas, transitaram durante séculos de costas para o Extremo Ocidente, e que, nas últimas décadas, passaram a constituirse em focos importantes de articulação e difusão do discurso latino-americanista, tanto no nível governamental, como no das organizações sociais, ocupando o espaço deixado pelo México, após sua inserção no NAFTA. A reviravolta da política externa dos dois países sul-americanos, enfrentados entre si durante muito tempo, remonta à fase do regime militar dos anos setenta, quando se deu, em ambos os casos, um relativo distanciamento com relação aos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, o início de uma parceria entre eles, e uma aproximação com os países da região que se estendeu ao longo do processo de democratização. Por último, há que se mencionar o papel paradoxal do exílio, fenômeno crônico na política latino-americana, e que foi reativado pelos regimes militares nas décadas de sessenta e setenta. Nessa época, a violência política levou parte de uma geração de intelectuais brasileiros e de outros estados da região a viver e conviver em países hispano-americanos ou europeus, e a desenvolverem, ali, um senso de identidade e vínculos de solidariedade continental que logo seriam reforçados politicamente por eles próprios quando passaram a se constituir em governo ao longo da terceira onda democrática. Aconteceu no caso dos governos que chegaram ao poder nas últimas décadas, no Brasil, Uruguai, Argentina, Equador, Chile e Bolívia. E foi assim que o interesse pela América Latina acabou sedimentando, primeiro, na cultura letrada, logo na economia e, finalmente, na política. A lição a ser tirada desse longo percurso da ideia de América Latina é que ela é salutar e enriquecedora sempre que se evite, por um lado, o provincianismo que nos aprisiona no território das essências inefáveis, e o universalismo pedante que copia e venera sem critério o que vem de fora, e desmerece o que é feito dentro. Como bem nos lembra Martí, haveremos de suar nossa própria febre, blicas. E esse veio comum –nossa estirpe– pertence ao que tem sido chamado de Extremo Ocidente e que, portanto, é também um certo Oriente. Enfim, uma tradição inclusiva que, se por um lado, nos Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 3, Nº 5, pp.296-320, Jan.-Jun.2016| www.poderecultura.com
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incorporando, isso sim, o mundo nas nossas repúblicas, mas o tronco terá que ser o de nossas repú-
leva a aderir à concepção eleática que pulsa, por exemplo, na famosa disjuntiva shakespeariana de ser ou não o ser, por outro, nos permite suavizar o drama hamletiano com uma forma de ver o mundo que, embora seja menos assertiva, resulta mais incorporadora. Ela se expressa, por exemplo, nos versos de outro grande literato, Neruda, aliás tradutor do Romeu e Julieta, do primeiro, e tão apaixonado quanto sua personagem veronense, quando escreve, em um dos “Cien sonetos de amor”, que: tal vez no ser es ser sin que tú seas. Eis a questão que nos une, e enriquece. Entrevista recebida em: 27/04/2016 Entrevista aprovada em: 10/05/2016
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Exemplificação das citações para livros, dissertações, teses, artigos e similares: SOBRENOME, Nome. Título da obra ou livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome (ed.; org.; coord.; etc.); ou Idem. Título em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fasc., ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do artigo ou matéria. Jornal em itálico, Cidade, dd/mm/aaaa, caderno, p. SOBRENOME, Nome. Título do trabalho apresentado. In: NOME DO EVENTO, número, ano, local. Resumos, Anais, Atas, Proceedings em itálico. Cidade: editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título da tese/dissertação em itálico. Tese de doutorado/dissertação de mestrado, área, departamento/instituto, universidade, ano. NOME DO EVENTO, número, ano, local. Observação: o nome do autor nunca deve ser abreviado. No caso de documentos e fontes: Autor. Tipo de Documento. Data. Informações descritivas seguidas de vírgula. Informações de localização seguidas de vírgula. Cartografia: Autor. Título em itálico. Local: editora, ano. Designação específica (1 atlas, mapa, fotografia aérea). Escala. Demais informações seguidas de vírgula. Materiais sonoros:
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Compositor ou intérprete. Título em itálico. Local: gravadora (ou equivalente), data. Suporte, demais
Material Cinematográfico: Exemplo: Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs). Direção: Hamilton Luske. Produtor: Walt Disney. Estados Unidos da América, Walt Disney, 1937. 1Blu-Ray/DVD. Iconografia: Autor. Título em itálico. Data. Suporte (pintura, gravura, fotografia, etc), demais informações seguidas por vírgula.
III. AVALIAÇÃO Atendendo as especificidades de formatação dentro das normas da ABNT, as propostas de textos submetidas serão avaliadas inicialmente pela Comissão Editorial. Após a primeira avaliação os textos serão enviados para dois pareceristas ad hoc, designados pela Comissão Editorial, para que emitam sua avaliação. Será mantido sigilo quanto à identidade tanto destes quanto dos autores. Havendo desacordo entre as avaliações dos pareceres, ou conflito de interesses, a Comissão Editorial enviará o texto para um terceiro parecerista. Os pareceres poderão recomendar: a) a aceitação integral do texto; b) a recusa integral; c) a aceitação com pequenas modificações; d) a aceitação com modificações significativas, sendo o texto, nestes dois últimos casos, reenviado ao autor para realizar as alterações recomendadas dentro do prazo máximo de 1 mês, a contar da data do envio do pedido por parte da Comissão Editorial. A decisão final sobre a publicação ou não do texto caberá sempre a Comissão Editorial, que se reserva o direito de solicitar, igualmente, alterações nos manuscritos originais. As alterações referentes à padronização e redação, introduzidas pelos próprios Editores, visarão sempre a manter a
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homogeneidade e a qualidade do periódico, respeitando, porém, o estilo e as opiniões dos autores.
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