Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ4, Jul.-Dez./2015 |www.poderecultura.com
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REVISTA PODER & CULTURA ISSN: 2359-1072 Volume 2, Número 4, julho – dezembro / 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Prof. D. Roberto Leher Vice-Reitora: Profa. Dra. Denise Fernandes Lopez Nascimento INSTITUTO DE HISTÓRIA Diretor: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa Vice-Diretor: Prof. Dr. Murilo Sebe Bon Meihy LABORATÓRIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E MIDIÁTICOS DAS AMÉRICAS E DA EUROPA (LEHMAE) Coordenador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Editor Chefe) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Mestranda Quezia Brandão (Editora Executiva) — Universidade de São Paulo (USP), Departamento de História, São Paulo (SP), Brasil. Graduanda Beatriz Moreira da Costa (Editora Técnica e Web designer) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Danilo de Lima Nunes (Editor Técnico) — LEHMAE-IH-UFRJ, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Leandro Couto Carreira Ricon (Editor Administrativo) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Dr. Christiano Britto Monteiro dos Santos (Editor Assistente) — Universidade Federal Fluminense (UFF) – Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Dr. Cristiano José Pereira (Editor Assistente) — Universidade de Taubaté (UNITAU), São Paulo (SP), Brasil. Prof. Ms. Leonardo Montanholi dos Santos (Editor Assistente) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
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CONSELHO EDITORIAL NACIONAL Prof. Dr. Alexander Martins Vianna — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. Alexandre Busko Valim — Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Prof.ª Dr.ª Ana Paula Torres Megiani —Universidade de São Paulo (USP) Profa. Dra. Angélica Müller — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Antonio Carlos Amador Gil — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Prof. Dr. Antônio Pedro Tota — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Prof. Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Profa. Dra. Carolina Amaral — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Cláudia Wasserman — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Prof. Dr. Cristiano José Pereira — Universidade de Taubaté (UNITAU), São Paulo (SP), Brasil. Prof. Dr. Eduardo Natalino dos Santos —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin—Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Elton Oliveira Souza de Medeiros — Faculdade Sumaré Prof.ª Dr.ª Elizabeth Cancelli—Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Flávio Vilas-Boas Trovão — Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert Júnior —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho—Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos T. da Silva— Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Frederico Alexandre Hecker — Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Gabriel Passeti — Universidade Federal Fluminense (UFF) Prof.ª Dr.ª Gabriela Pellegrino Soares —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Gerson Damiani — Centro Ibero-Americano — Universidade de São Paulo(USP) Prof.ª Ms.ª Helena Wakim Moreno — Faculdade Sumaré Prof. Dr. Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Ignácio Del Valle D’ávila — Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Prof.ª Dr.ª Ivana Barreto — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. José D’Assunção Barros— Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Julio Cesar Pimentel Filho — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Kátia Gerab Baggio — Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Prof. Dr. Leandro Karnal —Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Marcus Dezemone — Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Prof.ª Dr.ª Maria Antonia Dias Martins — Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) Prof.ª Dr.ª Maria Helena Rolim Capelato — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Mariana Joffily — Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Prof.ª Dr.ª Mariana Martins Villaça — Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Prof.ª Dr.ª Mary Lucy Murray Del Priore — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO)
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Prof. Dr. Maurício Cardoso —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Osvaldo Luis Angel Coggiola —Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Patrícia Valim — Universidade Federal da Bahia (UFBA) Prof.ª Dr.ª Priscila Ribeiro Dorella —Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG) Prof. Ms. Raphael Nunes Nicoletti Sebrian— Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) Prof. Dr. Ricardo Antônio Souza Mendes — Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Prof. Dr. Robert Sean Purdy —Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Rodrigo Farias — Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Rodrigo Ricupero — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Tânia Regina de Luca — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) Prof. Dr. Thaddeus Gregory Blanchette — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/Macaé) Prof.ª Dr.ª Vanessa dos Santos Bodstein Bivar —Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) Prof. Dr. Vinicius Cesar Dreger de Araujo — Universidade Estadual de Monte Carlos (UNIMONTES) Prof.ª Dr.ª Yone de Carvalho —Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC-SP) CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL Prof. Dr. Alex Houen — University of Cambridge Prof.ª Dr.ª Archana Ojha — University of Delhi Prof. Dr. Diogo Ramada Curto — Universidade Nova de Lisboa Prof. Dr. Fernando Rosas — Universidade Nova de Lisboa Prof.ª Dr.ª Marie-Christine Pauwels — Université de Paris X Prof. Dr. Lorenzo Delgado GómezEscalonilla — Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Madrid Prof.ª Dr.ª Patrícia Funes — Universidad de Buenos Aires Prof. Dr. Pere Gallardo Torrano — Universitat Rovira i Virgili / Universitat de Lleida Prof. Dr. Philip M. Hosay —New York University Prof. Dr. Wolfgang Benz — Technische Universität Berlin PRODUÇÃO EDITORIAL Secretária-Geral: Beatriz Moreira da Costa Diagramação: Beatriz Moreira da Costa e Danilo de Lima Nunes Editoração: Danilo de Lima Nunes e Quezia Brandão Revisão: Danilo de Lima Nunes IMAGEM DA CAPA BALLIESTER, Carlos [1874 – 1926]; Título: Praia com Barcos; Descrição: óleo s/ madeira, ass. inf. esq. 18 x 24 cm. Obra de Arte (Pintura) pertencente ao acervo particular de Leonardo Montanholi dos Santos.
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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA REVISTA PODER & CULTURA LABORATÓRIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E MIDIÁTICOS DAS AMÉRICAS E DA EUROPA (LEHMAE) INSTITUTO DE HISTÓRIA — UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Largo de São Francisco, 01 - 3º Andar / Sala 320-G - Centro CEP:20051-070 – Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel. 5521 2221-0341 - Ramal 307 E-mail: poderecultura@gmail.com Site: www.poderecultura.com
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APRESENTAÇÃO
A
Revista Poder & Cultura é uma iniciativa que nasceu dos cursos, produções historiográficas e debates realizados pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da
Europa (LEHMAE), coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/UFRJ), desde o ano de 2011. Demarcando seu campo de investigação na pluralidade de experiências históricas travadas pela relação entre Poder e Cultura, a Revista pretende ser um canal de expansão da temática e de divulgação de artigos, resenhas, entrevistas e ensaios de crítica histórica, estando aberta a abordagem de questões e conceitos acerca de todos os campos disciplinares, especialidades, períodos e temas históricos que tangenciem, de alguma forma, as noções de poder e/ou cultura. Nosso propósito é abrir um espaço de ampla circulação às pesquisas acadêmicasda área das Humanidades, contribuindo para educação pública e socializando o espaço acadêmico. Nossos esforços caminham no sentido de produzir uma integração entre os círculos intelectuais e seculares, promovendo conhecimento e cidadania através do acesso ao resultado de pesquisas de ponta que versam sobre os mais variados aspectos da sociedade e sua cultura através dos tempos.
“Do ponto de vista do poder político, a cultura é absolutamente vital. Tão vital, de fato, que o poder não pode funcionar sem ela. É na cultura, no sentido de hábitos diários e crenças de um povo, onde o poder repousa, fazendo-o parecer natural e inevitável, transformando-o em reflexo e resposta espontâneos” . (Terry Eagleton)
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SUMÁRIO / table of contents
EDITORIAL / EDITORIAL..............................................................................
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ARTIGOS / ARTICLES APONTAMENTOS SOBRE A PESQUISA HISTÓRICA NA SOCIEDADE PÓS-AUDIOVISUAL NOTES ON THE HISTORICAL RESEARCH IN POST- AUDIOVISUAL SOCIETY Por Diogo Carvalho...................................................................................................
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DE SER-AÍ A ANJO CAÍDO: a imagem do monstro em “Frankenstein, ou o Prometeu moderno” que o cinema não exibiu FROM DASEIN TO FALLEN ANGEL: the monster image in “Frankenstein, or the Modern Prometheus” not exhibit in cinema Por Thayenne Roberta Nascimento Paiva ........................................................................
30
A GUERRA DO PARAGUAI (1864-1870) NO CINEMA BRASILEIRO: “Alma do Brasil” (1932) e a memória patriótica de um país em “novos tempos” THE PARAGUAYAN WAR (1864-1870) IN THE BRAZILIAN CINEMA: “Brazil’s Soul” (1932) and the patriotic memory of a country in “new times” Por Fábio Ribeiro de Souza .........................................................................................
50
FUTEBOL NA VISÃO DE MAZZAROPI: o filme “O Corintiano” como documento de compromisso a um happy-end possível SOCCER ON MAZZAROPI’S VISION: “The corintiano” movie as compromise document to a possible happy-end Por Cristiano José Pereira ............................................................................................
77
A QUESTÃO AGRÁRIA NO DEBATE DOS 50 ANOS DE GOLPE DE 1964: entre contribuições e estereótipos THE LAND ISSUE IN DEBATE OF 50 YEARS OF 1964’S COUP: between contributions and stereotypes Por Pedro Henrique Barbosa Balthazar ..........................................................................
93
A LÓGICA DO TESTEMUNHO E O JOGO NARRATIVO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES THE LOGIC OF TESTIMONY AND THE NARRATIVE IN ANTÓNIO LOBO ANTUNES Por Pedro Beja Aguiar ............................................................................................... 114
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NÓS SOMOS CONSCIÊNCIAS, CONSCIÊNCIAS E CONSCIÊNCIAS: o romance-ensaio ficcional de José Saramago WE ARE CONSCIOUSNESS, CONSCIOUSNESS AND CONSCIENCES: the novel-essay in the José Saramago’s fictional writing Por Rafael da Cunha Duarte Francisco .......................................................................... 130 GIAMBATTISTA VICO E A HISTÓRIA DA HISTÓRIA GIAMBATTISTA VICO’S HISTORY OF HISTORY Por Ivan Leski.........................................................................................................
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NORMAS DE PUBLICAÇÃO / PUBLISHING NOTES ................................. 159
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EDITORIAL
A
presente edição da Revista Poder & Cultura, Vol.2, Nº4, Jul. Dez./2015, tem a satisfação de apresentar oito artigos, frutos dos resultados das pesquisas acadêmicas realizadas por jovens historiadores
brasileiros, que possibilitam compartilhar com o público leitor um pouco da diversidade temática e do diálogo interdisciplinar que tem caracterizado as abordagens dos trabalhos historiográficos mais recentes. O primeiro conjunto de textos é dedicado aos estudos da relação entre História e Audiovisual: O artigo “Apontamentos sobre a pesquisa histórica na sociedade pós-audiovisual”, de autoria de Diogo Carvalho, Doutorando em História Social - PPGH/UFBA, proporciona um ponto de partida para a reflexão teórico-metodológica sobre o impacto das mídias audiovisuais na História e na historiografia durante o século XX. Preocupado também em debater quais são os novos objetos digitais que podem ser utilizados como fontes na pesquisa histórica, o autor traça um breve panorama da formulação do conceito de audiovisualidades, em lugar de audiovisual, para dar conta da presença das novas mídias e do impacto delas nos novos comportamentos e práticas socioculturais, assim como de suas possibilidades de análise para a pesquisa histórica na contemporaneidade. O segundo artigo, “De Ser-Aí a Anjo Caído – A Imagem do Monstro em ‘Frankenstein, ou o Prometeu Moderno’ que o cinema não exibiu”, da graduanda do Instituto de História – UFRJ, Thayenne Roberta Nascimento Paiva, combina filosofia e crítica literária com uma história clássica aorealizar uma análise da figura do famoso monstro literário e de sua transposição para as telas de cinema, através das várias adaptações cinematográficas do livro de Mary Shelley. O terceiro artigo, “A Guerra do Paraguai (1864-1870) no cinema brasileiro: ‘Alma do Brasil’ (1932) e a memória patriótica de um país em ‘novos tempos’”, de autoria de Fábio Ribeiro de Souza, Mestre em História Comparada da UFRJ, recupera um dos filmes que foi objeto de análise de sua pesquisa de mestrado, para investigar as representações da Guerra do Paraguai no cinema brasileiro e o seu papel na construção de uma memória sobre o mais sangrento conflito bélico da América Latina no século XIX.
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O quarto e último artigo sobre Cinema e História é “Futebol na Visão de Mazzaropi: o filme ‘O Corintiano’ como documento de compromisso a um happy-end possível”, de Cristiano José Pereira, doutor em História Econômica – USP e Professor da Universidade de Taubaté, que discute as relações entre cinema e esporte ao analisar as representações da clássica rivalidade entre os torcedores do Corinthians e do Palmeiras procurando identificar como o enredo do filme de Mazzaropi culmina numa solução típica de “happy end”, gerando a paz entre os dantes irreconciliáveis torcedores. Já o artigo “A Questão agrária no debate dos 50 anos de Golpe de 1964: entre contribuições e estereótipos”, de Pedro Henrique Barbosa Balthasar, Mestrando em História da UFF, procura sinalizar para a necessidade dos historiadores recuperarem a multiplicidade de propostas e movimentos sociais rurais que não foi ainda propriamente percebida em decorrência das construções discursivas realizadas pelos periódicos da década de 1960 e pelos estudos que transformaram o trabalhador rural e o camponês em um bloco politicamente homogêneo a partir da atuação das ligas camponesas. A partir disso, o autor procura revisitar e problematizar as visões consagradas na historiográfica brasileira sobre os movimentos sociais rurais da década de 1960. Os artigos seguintes discutem as relações entre Literatura e História, analisando obras literárias e o papel de literatos e intelectuais em questões político-sociais de suas épocas. Em “A lógica do testemunho e o jogo narrativo em António Lobo Antunes”, de Pedro Beja Aguiar, Mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, é trabalhado, sobretudo, a construção de memórias do período colonial e seus sentidos no contemporâneo em Os cus de Judas e O Manual dos Inquisidores, obras do escritor português António Lobo Antunes. A análise das duas obras literárias ressalta os recursos narrativos do escritor para criar relatos de memórias como recursos de linguagem, organização e divisão interna do conteúdo, bem como a construção dos próprios personagens de ambas as tramas. O artigo “Nós somos consciências, consciências e consciências: o romance-ensaio na obra ficcional de José Saramago”, de Rafael da Cunha Duarte Francisco, doutorando em História Social – PPGHIS-UFRJ, investiga a construção do projeto estético-literário do escritor português José Saramago, levantando a hipótese de que o romance-ensaio de Saramago apresenta um diagnóstico sobre a sociedade ocidental que pode ser desenvolvido não apenas como uma
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reação, mas também como uma tentativa de transformação da realidade social e das múltiplas consciências por ele tematizadas a partir do fingimento ficcional. Por fim, o último artigo desta edição, “Giambattista Vico e a História da História”, de autoria de Ivan Leski, doutorando em História Social – USP, pretende apontar as origens da concepção de “história ideal eterna” – o conceito espinal da historiografia viquiana – para investigar como as obras de alguns autores da Antiguidade, embasaram a peculiar teoria da história de Giambattista Vico.
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APONTAMENTOS SOBRE A PESQUISA HISTÓRICA NA SOCIEDADE PÓS-AUDIOVISUAL Diogo Carvalho* RESUMO: Com este artigo temos o objetivo de debater o impacto na historiografia da transição do conceito de audiovisual em direção ao conceito de audiovisualidades formulado por alguns autores. Para isso vamos traçar um breve relato dos impactos das mídias audiovisuais na historiografia durante o século XX e analisar como o conceito de audiovisualidade está relacionado com as novas mídias, novas práticas culturais e as suas possibilidades de análise para a pesquisa histórica na contemporaneidade. Ou seja, quais são os novos objetos digitais que podem ser utilizados como fontes? De que forma estes objetos se articulam com as transformações sociais e culturais das últimas décadas e como estas mudanças comportamentais afetam a noção de tempo, de espaço e dos dados, conceitos imprescindíveis para a historiografia. PALAVRAS-CHAVE: historiografia; mídias; audiovisual; audiovisualidade. NOTES ON THE HISTORICAL RESEARCH IN POST-AUDIOVISUAL SOCIETY ABSTRACT: This paper aims to discuss the impact on the historiography of audiovisual concept towards the concept of audiovisuality that was developed by some authors. For that we will outline a brief account of the impact of the audiovisual media in history during the twentieth century and examine how the concept of audiovisuality is related to new media, new cultural practices and their analysis possibilities for historical research in contemporary times. In other words, what are the new digital objects that can be used as sources? How these objects are articulated with the social and cultural transformations of the last decades and how these behavioral changes affect sense of time, space and data, which are essential concepts for historiography. KEYWORDS: historiography; medias; audiovisual; audiovisuality. ***
Doutorando em História Social – PPGH/UFBA. Bolsista da CAPES. E-mail: diogocarvalho_71@hotmail.com
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*
Introdução
A
s tecnologias sociais influenciam as tecnologias de ordem prática e vice versa. Não é nosso objetivo apontar detalhes e exemplos destas convergências entre as tecnologias práticas e sociais, mas é importante que a interpretação deste
fenômeno, relacionado ao impacto das tecnologias na história, seja feita a partir destas distinções, que ajudam a ilustrar as diferentes formas de produção tecnológicas ao longo do tempo. Podemos distinguir momentos da história onde o processo de desenvolvimento tecnológico foi mais intenso que outros, contudo, a dialética entre homem e objeto, a transformação do meio ambiente através da ação humana, foi constante ao longo dos séculos. Deste modo cabe aos historiadores pensar esta relação em uma perspectiva mais ampla, ou seja, as tecnologias também estão na ordem do simbólico, dos sentimentos que dão sentido ao mundo e consequentemente da estética. Assim, os processos envolvendo as tecnologias sociais, a exemplo das diferentes formas de organização do Estado e outras formas de representatividade social ao longo dos anos, também devem ser vistos como processos tecnológicos e culturais, pois advêm de estruturas complexas, formuladas pela ação humana no decorrer do tempo e para o enfrentamento de adversidades sociais, assim como as tecnologias tangíveis. Nestes dois casos, a natureza destes processos tecnológicos é diferente, mas as motivações e os fins são os mesmos, por isso que ambas podem receber a alcunha de tecnologias. Contudo, é importante salientar que estas duas formas de concepção sobre as tecnologias não são dissociáveis, pelo contrário elas se entrecruzam ao longo do tempo. Na contemporaneidade, o processo de globalização e a transformação social causada pela tecnologia da informação, ressignificou nosso processo de interpretação do tempo, do espaço e do dado, como argumenta Lucchesi no artigo: Por um Debate entre História e Historiografia Digital1. Nesta conjuntura, marcada pela concorrência tecnológica entre marcas e Estados, vislumbra-se um quadro, onde as tecnologias sociais e as tecnologias de ordem prática e banal estão em convergência na sua concepção, em uma escala de simbiose sem precedentes. Essa é uma das características que definem o tempo presente: o Facebook, os jogos eletrônicos, o Google, plataformas de crowdfounding, Whatsapp e sistemas públicos de participação política via web, são Tomamos esta expressão de Lucchesi, na sua reflexão sobre os impactos das tecnologias nas categorias do tempo, do espaço e do dado. Para mais informações ver: LUCCHESI, Anita. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, São Cristovão, n.2, p.45-57, 2014. Ver em: http://www.seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/2127/1850. Acesso em: 20/10/2015 1
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produtos tecnológicos que possuem características que unem de forma sui generis essas duas perspectivas relacionadas às tecnologias, uma de ordem ferramental/utilitária e outra de ordem social. No caso dessas invenções, o seu propósito de existência é a sociabilidade humana e a forma como as pessoas se relacionam no mundo atual. Isso não é uma novidade, como já alertamos, porém, o número de pessoas que utiliza estes serviços, a perenidade temporal, a aceitação sociocultural e a capilaridade global dessas invenções, as colocam em outro patamar quando comparadas ao telegrafo, rádio e TV, cujas limitações de uso e propagação eram físicas e relacionadas com a nossa noção de tempo, espaço e dado. Ainda sobre a relação entre o processo histórico e as tecnologias, é difícil separar uma história da tecnologia de outros objetos comumente estudados pelos historiadores, a exemplo da: escravidão, guerras, arte rupestre, renascimento, gênero, modos de produção, culturas etc. Todos estes temas possuem elementos tecnológicos do seu tempo que também revelam características historiográficas relativas ao objeto de estudo, na maioria das vezes estas tecnologias associadas a diferentes épocas são naturalizadas e carecem de problematização sobre seus impactos na cultura e na sociabilidade humana dos períodos e temas estudados na historiografia moderna. Este livro propõe que, seja qual for o ponto inicial, as pessoas que trabalham com comunicação e estudos culturais — em número ainda crescente — devem levar em consideração a história; e que aos historiadores — de qualquer período ou tendência — cumpre levar em conta seriamente a teoria e a tecnologia da comunicação2.
O impacto do audiovisual na pesquisa histórica. O século XX foi um período histórico onde as tecnologias comunicacionais foram utilizadas no cotidiano de milhões de pessoas. A expansão do capitalismo, a industrialização, a padronização dos meios técnicos onde circulam informações, a propaganda, as guerras mundiais e a indústria cultural foram processos históricos e sociais que contribuíram para que o século XX fosse caracterizado como o século do audiovisual. Para Burke, o audiovisual causou imensos impactos na historiografia, nos métodos, nos objetos e nas abordagens. A oralidade do rádio contribuiu para o crescimento do interesse dos historiadores sobre as sociedades e suas práticas calcadas na comunicação oral, assim como, o surgimento da TV, na segunda metade do século XX demandou teorias multidisciplinares das abordagens midiáticas. Ou seja, artefatos comunicacionais do presente contribuíram para a manifestação de interesse acadêmico sobre hábitos do passado.
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BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma História Social da Mídia: de Gutemberg à Internet. Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Zahar. 2006, p.11-12. 2
De modo significativo, foi com a era do rádio que o mundo acadêmico começou a reconhecer a importância da comunicação oral na Grécia antiga e na Idade Média. O início da idade da televisão, na década de 1950, deu surgimento à comunicação visual e estimulou a emergência de uma teoria interdisciplinar da mídia. Realizaram-se estudos nas áreas de economia, história, literatura, arte, ciência política, psicologia, sociologia e antropologia, o que levou à criação de departamentos acadêmicos de comunicação e estudos culturais.3
Além dessa influência sobre temas, objetos e processos históricos de sociedades distantes do ponto de vista temporal, o século XX produziu tecnologias que afetaram e influenciaram a historiografia moderna. Ao argumentar sobre isso, Bloch afirmou que vivemos sob égide das máquinas e que o estudo destas ferramentas é essencial para o entendimento das sociedades contemporâneas que, sob tamanha influência, não poderiam ignorar o impacto desses artefatos tecnológicos nas dinâmicas econômicas, políticas e culturais do presente. Para compreender as sociedades atuais, será que basta mergulhar na leitura dos debates parlamentares ou dos autos de chancelaria? Não será preciso também interpretar um balanço de banco: texto, para o leigo, mais hermético do que muitos hieróglifos? O historiador de uma época em que a máquina é rainha aceitará que se ignore como são constituídas e modificadas as maquinas?4
Bloch escreveu esta afirmação antes da invenção da TV, da massificação da indústria cultural, do surgimento da tecnologia da informação e da invenção de utensílios domésticos tecnológicos que revolucionaram o cotidiano do homem ocidental. Ou seja, essa afirmação realizada na primeira metade do século XX é bastante atual, sobretudo se considerarmos as revoluções econômicas, políticas e comportamentais que se delineavam para as próximas gerações. Na realidade, a sua atualidade reside na compreensão de que o reino das máquinas é dinâmico e perene e a tendência é que essa relação entre homem e máquina seja agudizada e atualizada ao longo dos anos. No início do século passado, o rádio possibilitou uma dinamicidade na narrativa comunicacional, além de reconfigurar a noção de espaço. A junção do áudio com o visual potencializou esta dinamicidade e possibilitou recriações e registros de processos históricos, numa escala limitada apenas pela capacidade de transmitir e receber informações. Se levarmos em consideração que a recriação do real é um dos fundamentos da escrita da história, ou seja, uma das causas pelos quais os historiadores escrevem a história, o século XX foi o século das narrativas audiovisuais e da imagem, sobretudo a partir dos anos 1950. Alguns autores observam
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BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o oficio do historiador. 1ª Edição. Rio de Janeiro. ZAHAR. 2002. p.79-80. Ibid., p.81.
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que a evolução dos meios audiovisuais ocorreu em um caráter progressivo e continuado, com dois vértices de desenvolvimento a partir de uma invenção tecnológica fundamental. Angel Montón é um dos adeptos desta perspectiva, e no seu artigo o “Homem e o Mundo Midiático no Princípio de um Novo Século”5, esboçou um quadro que ajuda a ilustrar o caminho de desenvolvimento evolutivo percorrido pelas mídias audiovisuais e suas concretas e prováveis convergências, tanto no presente quanto no futuro próximo. Com relação aos impactos destas mídias na prática historiográfica, vamos ater nossa reflexão sobre a utilização do cinema como fonte histórica e na constituição do campo CinemaHistória, como área de produção no âmbito da historiografia. Escolhemos o cinema devido a sua resiliência temporal. Ou seja, o cinema transcorreu quase todo o século XX com as suas características fundamentais. Nesse sentido, tomamos como referencial temporal a invenção do cinema sonoro em 1926 e sua capacidade de aglutinar som e imagem em movimento. A introdução do som no cinema não foi uma unanimidade, nem entre cineastas proeminentes como Eisenstein. Dizia-se que o som iria eliminar com a edição e suas inovações técnicas. Não foi isso que ocorreu, o cinema sonoro possibilitou que iletrados também pudessem assistir filmes sem ter que recorrer à legenda das cenas do cinema mudo. Assim, o cinema que já era percebido pelos governos como uma excelente mídia de propaganda, ganhou uma importância ainda maior, pois o público atingido por esta mídia não estava mais restrito às pessoas alfabetizadas. O cinema, mesmo com essa importância social, demorou bastante para ser utilizado pelos historiadores como fonte. Ora, agora que o século XX é reconhecido como o século da consolidação das tecnologias audiovisuais, como analisar a demora de assimilação destas mídias pela historiografia? Quais motivos afastaram os historiadores destas perspectivas analíticas? Por que uma mídia que nasceu sendo utilizada para registrar momentos históricos foi solenemente ignorada ao longo de sete décadas do século passado pelos historiadores? Em seu clássico artigo sobre a relação entre o cinema e a história, Marc Ferro desenvolve argumentos que problematizam algumas das questões levantadas no parágrafo acima. Com relação aos motivos que afastaram os historiadores deste tipo de fonte, talvez eles possam ser discutidos a partir da hipótese relativa à constituição da história enquanto disciplina acadêmica e a escolha de seus cânones relacionados à documentação que deveria ser utilizada pelos historiadores. Essa afirmação, segundo Ferro, não explica satisfatoriamente a ignorância da
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MONTÓN, Angel. Homem e o Mundo Midiático no Princípio de um Novo Século. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni.; FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo: um olhar sobre a História. 1ª Edição. Salvador: EDUFBA, São Paulo: Ed. UNESP, 2009. 5
linguagem audiovisual pela história, mas ajuda a entender o contexto do preconceito historiográfico com o cinema e o audiovisual: “essa explicação não poderia satisfazer os que conhecem o infatigável ardor dos historiadores, instados a descobrir novos domínios, a considerar como essencial o que julgavam até esse momento desinteressante”6. Nesse caso, Ferro faz uma alusão às transformações relativas aos temas, objetos, abordagens e a função da história, questões amplamente debatidas nas universidades francesas. Tais debates passam pelo reconhecimento das diferentes reflexões realizadas entre gerações de historiadores franceses, cujo ponto de inflexão - na virada histórica - é comumente apontado a partir da primeira geração da Escola dos Annales. Suas contribuições e o seu legado para historiografia francesa e ocidental ainda são bastante significativas. Desta forma, a ignorância por este tipo de mídia foi paradoxal, se considerarmos aquele momento histórico de redefinições historiográficas quanto aos seus objetos, abordagens e fontes. Mesmo com essas microrevoluções no campo da historiografia as tradições conservadoras continuaram, principalmente pela influência da conjuntura bélica e nacionalista na Europa no início do século XX, até o fim da primeira metade deste. A argumentação de Ferro advém do fato de que nos princípios da disciplina, nas academias europeias, a história detinha a função utilitarista de legitimar um determinado status quo, e os historiadores agiam em função dessa legitimação. No alvorecer do século XX quando, sempre em função do Estado, o historiador glorifica a nação, as instruções ministeriais tornam público claramente que se o ensino da História não atingir o resultado o mestre terá perdido seu tempo. Segundo a natureza de sua missão, segundo a época, o historiador escolheu tal conjunto de fontes, adotou tal método; mudou como um combatente muda de arma e de tática quando as que usava até aquele momento perderam sua eficácia. Certamente sabia-se que ninguém escrevia a história inocentemente, porém esse julgamento parece que jamais se verificou no limiar de século XX, quando o cinematógrafo começou a aparecer. Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, o historiador encontra-se já de botas, capacete e pronto a se bater. Ernest Lavisse, historiador francês, fornece essas instruções: “Ao ensino histórico incumbe o dever glorioso de fazer amar e de fazer compreender a pátria (...) todos os nossos heróis do passado, mesmo envoltos em lenda... Se o estudante não leva consigo a viva lembrança de nossas glórias nacionais, se não sabe que nossos ancestrais combateram por mil campos de batalha por nobres causas, se não aprendeu absolutamente o que custou o sangue e o esforço para constituir a unidade da pátria (...) e retirar, em seguida do caos de nossas instituições envelhecidas, as leis sagradas que nos fizeram livres, se não se torna um cidadão compenetrado de seus deveres e um soldado que ama a sua bandeira, o instrutor perdeu seu tempo” 7
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FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade. In: LE GOFF, J.; NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos Tradução de Tereza Marinho. 4ª Edição. Rio de Janeiro, Francisco Alves. 1995, p.199. 7 Ibid., p.200. 6
Essa passagem, nos leva a dimensionar o quanto o presente exerce uma influência inexorável na produção do conhecimento histórico, o que envolve escolhas e legitimação de tipos de fontes utilizadas pela historiografia, em contextos que definem uma “missão” ao ofício de historiador. Tal fardo pressupõe a escolha de determinados artefatos do passado, que lograriam o status de fonte e que seriam úteis para determinados fins. Essa afirmação de Ferro carece de uma reflexão mais apurada, pois é um tanto fatalista e ingênua, porém, não pode ser ignorada por completo devido à influência que os regimes de historicidade8 exercem na produção da história. Neste sentido, e sem desconsiderar a generalização de Ferro, podemos perceber que se o historiador usa armas e táticas do seu tempo, e isso é um argumento que justifica a não adoção do filme como fonte durante um longo período. Também podemos refletir que a utilização do cinema enquanto fonte possui influência desta argumentação, haja vista que os manifestos e reflexões que advogavam positivamente para que o escopo de fontes trabalhadas pelo historiador incorpore e englobe as mídias audiovisuais, surgem no final da década de 1960 e início da década de 1970. No curso de uma corrida espacial com imagens do homem na Lua sendo transmitidas ao vivo via satélite. Esse contexto possibilitou que o audiovisual fosse aceito, ainda que parcialmente, como uma fonte legítima e confiável do ponto de vista da historiografia. O objetivo de Ferro ao defender o uso do audiovisual como fonte não foi traçar uma história do cinema, mas sim utilizar o filme como mais um elemento de interpretação do social, ou seja, uma história social do cinema. Após o conhecido artigo de Ferro, que repercutiu de forma consistente na historiografia, o cinema passou a ser visto como uma fonte aceitável, no universo de vestígios humanos que o historiador se debruça quando tenta analisar processos históricos. Contudo, os currículos e a tradição historiográfica construída ao longo do século XX, não permitiu que o cinema se tornasse uma fonte plenamente usual pela historiografia. O audiovisual, apesar de aceito como fonte, se tornou o primo pobre da historiografia. É claro que em alguns lugares o uso do audiovisual foi consolidado. Nos Estados Unidos, existe um número considerável de historiadores que utilizam a relação cinema-história nos processos de fenômenos sociais do século XX. Isso talvez possa ser, em parte, explicado pela influência que a indústria cultural de entretenimento audiovisual possui na cultura e na economia norte-americana. No Brasil, o campo
Para compreensão do acerca do conceito “regimes de historicidade” sugerimos a leitura de: HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andrea Souza de Menezes, Bruna Beffart, Camila Rocha de Moraes, Maria Cristina de Alencar Silva, Maria Helena Martins. 1ª Edição. Belo Horizonte. Editora Autêntica. 2013, p.267. 8
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é aceito, mas como dissemos anteriormente, o currículo não prepara os historiadores para o contato com este tipo de fonte, não existem nos cursos de história das universidades brasileiras, disciplinas obrigatórias que trabalhem técnicas e métodos de abordagens cinematográficas. O audiovisual, portanto, ainda continua marginalizado pela dupla ignorância: a ignorância acerca do objeto em si e a ignorância técnica para analisá-lo. Vale ressaltar que o Estado da Bahia foi vanguardista ao acolher e desenvolver na Universidade Federal da Bahia, o maior polo de investigação da relação cinema-história no Brasil através da Oficina de Cinema e História e da Revista Olho da História, ambos ainda em atividade. É importante ressaltar os trabalhos dos professores Jorge Nova, Cristiane Nova, Marcos Silva e Jhonny Langer9 que dedicaram esforços para o desenvolvimento de técnicas de análise do audiovisual, a partir de uma perspectiva da historiografia, mais especificamente o desenvolvimento de metodologias de análises fílmicas que poderiam ser utilizadas pela historiografia. Apesar desses esforços individuais, o desenvolvimento desse tipo de metodologia não acompanhou as transformações do audiovisual, e hoje está defasada para analisar os fenômenos midiáticos relativos ao cinema do século XXI, além de outros meios audiovisuais com forte apelo social e econômico nas últimas três décadas.
A pesquisa histórica na era das audiovisualidades. Diversos acadêmicos, das mais diferentes áreas das humanidades, apontam que as últimas três décadas foram décadas de transição entre formas de produção cultural. Tal transição pode ser caracterizada pela convergência de mídias e o aparecimento de novas formas midiáticas. Acadêmicos como Casttels10 (2013), reivindicam que vivemos em uma sociedade em Rede, outros como Gubern ainda na década de 1990, previam uma sociedade da “iconosfera”. Para Rubim, a sociedade atual está na Idade Mídia. Talvez, para os historiadores o termo mais ilustrativo do período contemporâneo tenha sido cunhado por Rubim, pois é uma clara alusão ao termo da historiografia para definir um recorte temporal, definido por Idade Média. Um dos desafios para pensar a comunicação na atualidade diz respeito à rigorosa compreensão do lugar ocupado pela comunicação, especialmente em sua versão midiática, no mundo contemporâneo. O imprescindível tema da incidência da comunicação na sociabilidade e das modalidades de sua conexão com a contemporaneidade tem mobilizado um plural e dissonante núcleo de pensadores da
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Ver em: LANGER, J. Metodologia Para Análise de Estereótipos Em Filmes Históricos. História Hoje. São Paulo: v.2, n. 5, 2004. Disponível em: http://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=16. Acesso em: 10/10/2015. 10 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: Movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar. 2013. 9
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atualidade, pertencentes ou não à área de estudos das teorias da comunicação. Não parece ser mera coincidência a recorrência a expressões como: “Aldeia Global” (McLuhan, 1974), “Era da Informação” ou “Sociedade Rede” (Castells, 1992), “Sociedade Informática” (Schaff, 1991), “Sociedade da Informação” (Lyon, 1988; Kumar, 1997, dentre outros), “Sociedade Conquistada pela Comunicação” (Miège, 1989), “Sociedade da Comunicação” ou “Sociedade dos Mass Media” (Vattimo, 1991), “Sociedade da Informação ou da Comunicação” (Soares, 1996), “Capitalismo de Informação” (Jameson, 1991) e “Planetas mídias” (Moraes, 1998). Todas estas denominações, entre muitas outras possíveis, têm sido insistentemente evocadas para dizer o contemporâneo. Para além das nomeações, o persistente trabalho de fazer e desfazer as articulações entre a atualidade, a situação presente do capitalismo, o malestar da modernidade e o ambiente comunicacional sistematicamente têm animado uma plêiade de autores, bastante díspares, sejam eles modernos, pós-modernos ou neomodernos; integrados ou críticos. 11
Como podemos ler neste fragmento do texto de Rubim, “Comunicação como Idade Mídia”, não existe um cânone semântico para definir a contemporaneidade, tão pouco temporal. O que fica evidente e parece consensual é que a comunicação e a transitoriedade são elementos cruciais do contemporâneo. Esses autores partem de observações sobre hábitos culturais que foram transformados ou modificados a partir da emergência de novas formas de sociabilidade propiciadas pelas tecnologias contemporâneas. Ou seja, o uso de determinadas tecnologias gerou um amplo debate acadêmico sobre a definição conceitual do presente. O desenvolvimento tecnológico nas últimas três décadas permitiu que a previsão de convergência midiática entre os diversos tipos de audiovisuais fosse concretizada. Isso não seria possível sem o surgimento da Web e de suas consequências, aliás, nenhum termo utilizado pelos autores acima para descrever o presente seria imaginado se a internet não tivesse impactando nosso cotidiano como nos últimos anos. Foi a internet que gerou o processo de ressignificação espacial, temporal e informacional que nos referimos no começo deste texto. Sem a internet, as distâncias continuariam relativamente iguais e a troca cultural não seria efetivada na velocidade que foi, tão pouco na escala global, comum na atualidade. Sem a diminuição das distâncias e sem processos colaborativos, relativos ao desenvolvimento tecnológico, as transformações comunicacionais inovadoras, características do presente, não teriam sido possíveis, ou demorariam um longo tempo para acontecer. Somente pensamos em Aldeias Globais porque de fato podemos nos comunicar globalmente e em tempo real. Outros termos como capitalismo de informação, economia criativa e economia da cultura, só foram possíveis de serem cunhados, pelo valor que as ideias acumularam a partir da dinâmica social estabelecida com a popularização da Web.
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RUBIM, A. A Contemporaneidade Como Idade Mídia. Interface_Comunicação, Saúde, Educação.Botucatu: V. 4, N°. 7. 2000, p.26. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v4n7/03.pdf. Acesso em: 25/10/2015. 11
Como o contemporâneo ressignificou até nossos conceitos sobre identidade12, era de se esperar que as mídias ganhassem outros contornos e outros significados. Isto possui relação com a modificação que as estruturas do capitalismo sofreram a partir da influência das novas formas de comunicação propiciadas pelas tecnologias contemporâneas comunicacionais. Na atual fase do capitalismo, como alerta Rubim, a produção capitalista somente adquire o status de mercadoria, a partir da publicidade e da comunicação. Nesta conjuntura, a concorrência intercapitalista deixa de ser realizada a partir de preços e passa a ser feita a partir da concorrência entre as marcas. Assim, segundo Rubim, a comunicação desloca-se da sua característica “supraestrutural” apontada pelo marxismo estruturalista, para uma camada infraestrutural da organização do capital. Deste modo a comunicação passa a fazer parte da engrenagem, da infraestrutura do capitalismo e deixa de ser um aparelho ideológico de Estado, como os marxistas estruturalistas apontavam na década de 1970, principalmente Althusser13. Indispensável considerar a passagem de uma concorrência capitalista baseada em preços, que realizava a transformação do produto em mercadoria pela via apenas do mercado, para um novo padrão de concorrência predominante na fase monopolista do capitalismo, detectada por Baran e Swezzy (1974), na qual as marcas governam a concorrência, subsumindo aquela baseada nos preços. Tal transmutação, fundamental para a configuração de uma “obsolescência planejada”, de uma “sociedade de consumo” e do capitalismo tardio, introduz a comunicação, especialmente em sua modalidade publicitária, no cerne da dinâmica de reprodução do próprio capitalismo. Agora, em tempos neo-liberais de endeusamento do mercado, paradoxalmente torna-se impossível a metamorfose do produto em mercadoria somente recorrendo ao mercado, em sua acepção clássica de um capitalismo concorrencial. A publicidade e a marca – com seu poder como assinala Pinho (1996) – adquirem o status essencial de viabilizadores desta metamorfose, componentes imanentes ao mercado no capitalismo tardio. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que sem publicidade e marca portanto, sem comunicação, em situações normais de vida capitalista, um produto não pode ser transformado em mercadoria. Por consequência, a realização do valor e a própria reprodução capitalista encontram-se comprometidas em um patamar comunicacional. Aceitar essas análises, mesmo parcialmente, implica uma revisão radical do lugar atribuído à comunicação em sua inserção na sociedade. Ao invés da antiga localização “supraestrutural” – recorrente inclusive em autores não marxistas –, a comunicação e sua derivada cultura midiática passam a ocupar também um estatuto, para continuar em metáforas marxistas, de componente “infraestrutural”, porque imprescindível à realização e reprodução (inclusive econômica) do capitalismo.14
Após contextualizar minimamente estas transformações tecnológicas, destacando seus impactos na macroestrutura do capitalismo, podemos abordar o surgimento de um termo que também redefine a relação de produção e consumo midiático na contemporaneidade. Se estamos Ver: Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ª Edição. Rio de janeiro: dp&a; 2005. Ver: ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Graal Edições, 1995. 14 RUBIM, A. A Contemporaneidade Como Idade Mídia. Interface_Comunicação, Saúde, Educação.Botucatu: v. 4, n°, 7. 2000. P.27. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v4n7/03.pdf. Acesso em: 25/10/2015 12 13
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na Idade Mídia, como sugere Albino Rubim, nós também não podemos pensar as mídias audiovisuais como se elas estivessem imunes às transformações tecnológicas e suas consequências, visto que a digitalização das informações, permitiu que a produção e o domínio técnico da imagem e do som fosse atribuído para outros atores excluídos durante o período analógico. A construção de imagens digitais e a digitalização de imagens analógicas possibilitaram não só a convergência midiática, mas, sobretudo, o surgimento das chamadas “novas mídias”, que não são tão mais novas assim. Ou seja, o termo audiovisual ainda é eficiente para descrever algumas mídias e processos comunicacionais? Alguns autores dizem que não, e nós concordamos com eles. Essa questão, relativa à superação do conceito de audiovisual e do surgimento das novas possibilidades midiáticas, ainda não conhecidas, estão sendo trabalhada por alguns autores que percebem a convergência midiática como um fato que libera diversas potencialidades, algumas conhecidas e outras não. Nossa reflexão sobre este tema foi influenciada a partir da leitura do ensaio “Semiótica e audiovisualidade: ensaio sobre a natureza do fenômeno audiovisual” de Alexandre Rocha da Silva. Nesse ensaio, Silva observa que a convergência midiática é uma característica nova, que potencializa devires audiovisuais, denominados por sua vez como audiovisualidades. Audiovisualidades é, portanto, uma virtualidade que se atualiza com o audiovisual (cinema, vídeo, televisão, internet), mas permanece simultaneamente em devir. Permanecer em devir significa dizer que permanece como uma reserva, cujas forças criativas apontam para a criação de novos audiovisuais ainda não conhecidos. Este é, pois, o desafio colocado às pesquisas de audiovisualidades: compreender o movimento como processo de diferenciação criadora e que tem o futuro como foco. 15
Para a compreensão do fenômeno das audiovisualidades, é importante destacar um aspecto. A convergência midiática não destruiu, ainda, as principais formas de expressão audiovisual, o surgimento de novas mídias não acabou com a TV, com o cinema e/ou com o rádio. É certo que estes meio mídias sofreram e ainda sofrem impactos e são utilizados em rede, contudo, a natureza destes objetos não foi superada, pois as pessoas continuam indo ao cinema, ouvindo rádio e assistindo TV. Contudo, o significado do conceito, aponta para a imprevisibilidade de conjecturas sobre as novas formas de comunicação, visto que a dinâmica de produção dos meios que são resultado das convergências gera imprevisibilidade. Como Silva
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SILVA, R, Alexandre. Semiótica e audiovisualidades: ensaio sobre a natureza do fenômeno audiovisual. Revista Fronteiras-estudos midiáticos. São Leopoldo. Vol. IX, n°3, 2007, p 146. 15
aborda, estas forças criativas estão em devir e em reserva, mas apontam para o futuro com novidades desconhecidas. Quando consideramos, que o surgimento de novas expressões comunicacionais é uma potência que pode emergir no futuro próximo, nós também somos obrigados a pensar em um futuro pós-midiático, pois com a emergência das audiovisualidades, há um deslocamento do lugar social do audiovisual e o uso do audiovisual como veículo subjetivo de expressão das audiovisualidades. Assim, uma comunicação pós-midiática também reconfigura as temporalidades comunicacionais, de forma que: “as temporalidades midiática e pós-midiática, portanto, diferenciam-se em natureza”16. Silva argumenta que a rapidez é o fundamento do midiático e a cada nova possibilidade, ou versão midiática, surgem novas formas de consumo, pois existe um consenso que pressupõe a compreensão das gramáticas e linguagens a partir dos meios midiáticos. Todavia, na transição para as audiovisualidades, os símbolos e as linguagens que dão sentido comunicacional, são atualizados a medida que a convergência gera novas formas comunicacionais. O objetivo da comunicação é, portanto, diferente em ambos os casos. No caso do audiovisual, como já referimos, procura-se descrever gramáticas, condições de produção e linguagens propriamente midiáticas: e no caso das audiovisualidades, ao contrário, observam-se modos como os signos crescem com o propósito de fixar crenças estabelecendo hábitos.17
Essas transformações no campo da comunicação, possuem impacto na forma como o signo e os sujeitos estão relacionados. Não é nosso objetivo aprofundar as reflexões que Souza realizou em torno da questão de signo e do objeto, mas devemos expor estas considerações para refletirmos em torno dos impactos destas transformações no ofício do historiador. Neste sentido, Silva utilizou Peirce e Deleuze para tratar das questões referentes ao signo. Para isso, Silva analisou um conceito desenvolvido por Peirce e que pode ser definido como: O objeto dinâmico é aquele a que o signo se refere ou representa como objeto imediato. É portanto exterior ao signo, mas também é simultaneamente, a sua causa e o seu expresso. O signo é determinado pelo objeto dinâmico, mas também pode criá-lo sem que se retire dele seu poder de determinação.18
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Ibid., p.148. Id. 18 Ibid., p.149. 16
De acordo com Silva, Peirce estabelece três formas de apresentação do objeto dinâmico. Concretivo: que pode ser delimitado. Objeto dinâmico abstrativo: que ainda não existe. Objeto dinâmico coletivo: que necessita de um conjunto de mediações entre o signo e o objeto, sendo que estas mediações são construídas simultaneamente as leis que regulamentam seu uso. Desta forma, há uma “regressão infinita”19 no objeto dinâmico coletivo. Isso existe, devido ao fato de que as audiovisualidades são exteriores ao audiovisual, mas seu acesso depende de mecanismos audiovisuais de comunicação. Para Silva, não é possível dissociar as audiovisualidades do signo audiovisual, tanto no campo da representação, quanto no da criação. Tal singularidade pode ser descrita como: o signo que representa e cria objetos de forma simultânea. Por fim, Silva observa que este fenômeno pode ser compreendido de uma forma mais clara, se adotarmos o conceito de semiose como ferramenta conceitual para analisar o fenômeno do objeto dinâmico na perspectiva pós-midiática. Peirce entende uma ação ou influência que consiste ou desenvolve a cooperação de três sujeitos, o signo o objeto e o interpretante, influência tri-relativa essa que não pode, de forma alguma, ser resolvida em ações entre pares.20
Neste fragmento acima, percebemos que a relação entre sujeito, signo e objeto gera várias abordagens relativas a significância do signo e de como ele adquire novos sentidos na medida em que a significância também gera novos objetos, que por sua vez são novamente interpretados gerando signos.
Considerações Finais Ao longo deste ensaio tentamos problematizar os impactos do audiovisual na pesquisa histórica e como o campo da comunicação vem sofrendo transformações a partir da convergência de artefatos comunicacionais que propicia o surgimento de novas relações entre sujeito, objeto e signo. Se as previsões quanto às naturezas das audiovisualidades, sempre em devir, são incertas, é certo, porém, que teremos novos objetos, novos artefatos culturais desenvolvidos pelo homem e, portanto, passiveis de serem objetos das pesquisas históricas. Dito isto, é importante pensarmos se os currículos dos cursos de história, as abordagens dos mestres e Ibid., p.150. SANTAELLA, Lucia. Apud. SILVA, R, Alexandre. Semiótica e audiovisualidades: ensaio sobre a natureza do fenômeno audiovisual. Revista Fronteiras-estudos midiáticos. São Leopoldo. Vol. IX, n°3. 2007, p.151. 19 20
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as leituras que são propostas aos estudantes estão de acordo com o mundo que se vislumbra no presente e no futuro. Nós achamos que os cursos de história e a historiografia brasileira ainda não abordam estes temas com a profundidade necessária para preparar os historiadores para desafios prementes do oficio historiográfico na era das audiovisualidades. Para reverter este quadro, é necessário que os cursos de história no Brasil sejam mais flexíveis, mais multidisciplinares e incorporem na sua prática didática elementos oriundos das audiovisualidades. Atualizar o currículo e a prática pedagógica não significa negar e excluir métodos consagrados de abordagens, mas permitir que estes métodos tenham relação com o presente e com o futuro. É impossível definir quais impactos as audiovisualidades vão trazer à historiografia no futuro próximo, pois as formas de audiovisualidade não são previsíveis, contudo, é possível analisar, mesmo que de forma bem resumida, os impactos que as audiovisualidades já causaram na historiografia. Um exemplo disso é a emergência de campos de estudo, ainda pouquíssimos explorados no Brasil, que possuem foco analítico nas relações entre a história e o universo digital, a exemplo da historiografia digital e da história digital. No conjunto dos objetos analisados por estas áreas da historiografia, temos as fontes históricas nascidas em meio digital, a exemplo dos videogames, de posts em redes sociais e de hipertextos. Estes objetos foram criados pelo homem e fazem parte dos hábitos culturais da contemporaneidade, contudo, continuam sendo pouco explorados pela historiografia brasileira. Além destas questões referentes ao surgimento de novos objetos, as fontes digitais devem ser problematizadas através de múltiplos paradigmas de análise, a exemplo da durabilidade e disponibilidade da informação-fonte. Estamos nos referindo à fugacidade com que estas tecnologias dominam mercados e desaparecem com a emergência de outras invenções, que ocupam seus lugares sociais. Em um artigo publicado em 2010, “O Uso de Novas Tecnologias Para Aquisição de Fontes Históricas”, nós fizemos algumas das reflexões que estão presentes nos parágrafos posteriores. Tais reflexões foram feitas em um terreno e em um período, onde não havia diálogo dentro da historiografia brasileira sobre estes temas, contudo, diversos colegas passaram a utilizálo em sala de aula e o mesmo já foi referenciado algumas vezes para se referir à importância das redes sociais como ferramentas de registro histórico e passiveis de serem analisados no futuro ou no presente. Segundo Carvalho, “a história social do futuro não se debruçará mais sobre diários de papel, e sim sobre diários virtuais, como Twitter ou Orkut ”; tal fato, “invariavelmente
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exige do historiador um domínio de manipulação de ferramentas digitais comuns à contemporaneidade.21
Um exemplo disso é o Orkut, famosa rede social, com maior parte de usuários brasileiros. Quantas informações sobre a sociedade brasileira foram perdidas quando o ORKUT deixou de ser acessível? Quantos sujeitos não terão suas opiniões levadas em consideração quando forem realizadas pesquisas sobre a história política do Brasil? Como impedir que estas informações sejam perdidas, como acessá-las? Como preparar o historiador para interpretar as novas relações entre sujeito-objeto-signo no tempo onde as audiovisualidades são rainhas? Nós não temos respostas para estas perguntas, mas pretendemos a partir destas reflexões e indagações, provocar discussões no âmbito da historiografia, na expectativa de que nossos pares absorvam um pouco das influências do mundo contemporâneo ao trabalhar com a história de uma maneira que o textual também dialogue com o hipertextual.
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DE SER-AÍ A ANJO CAÍDO:
A imagem do monstro em “Frankenstein, ou o Prometeu moderno” que o cinema não exibiu Thayenne Roberta Nascimento Paiva* RESUMO: O livro “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno” (1818), de Mary Shelley é, sem sombra de dúvida, uma das principais referências do universo da literatura. A primeira edição publicada de Frankenstein se deu de maneira anônima, em 1818. Mas, a partir da sua segunda edição, a autoria foi revelada, sob o nome de Mary Shellley, então filha da feminista Mary Wollstonecraft e do filósofo James Godwin. Diversas adaptações cinematográficas produzidas sobre o Frankenstein têm seu foco no monstro (que passa a se chamar Frankenstein), secundarizando, a importância que deveria ser central do seu criador, o cientista Victor Frankenstein1. Essa inversão de sentido, todavia, explora o monstro, do livro de Shelley, como uma aberração maléfica, aterrorizante, capaz de maldades e atrocidades. Destarte, somos impulsionados a pensar sobre quais motivos isso ocorre. Para tanto, recorreremos às ideias do filósofo Martin Heidegger acerca do ser-aí e de sua postura diante da possibilidade de finitude e sobre a noção de anjo caído, do crítico literário Harold Bloom, diante da mesma ameaça de finitude e de que forma o monstro concebido por Vitor apresenta características tão humanas, que o distanciam da imagem de simples aberração. PALAVRAS-CHAVE: Anjo caído; Ser-aí; Frankenstein. FROM DASEIN TO FALLEN ANGEL: the monster image in “Frankenstein, or the Modern Prometheus” not exhibit in cinema ABSTRACT: The book “Frankenstein, or The Modern Prometheus” (1818), by Mary Shelley is, undoubtedly, one of the main references of the literary world. The first publication of Frankenstein, in 1818, was anonymous, but, from its second publication onwards, the authorship was revealed under the name of Mary Shelley, daughter of the feminist Mary Wollstonecraft and the philosopher James Godwin. Many cinematographic adaptations of Frankenstein focus on the monster (from now on popularly know as Frankenstein), leaving aside the importance of his creator, the scientist Victor Frankenstein, that should be central. This inversion of meaning, though, explores the monster of the book of Shelley as a terrifying, malicious aberration, capable of evil and atrocities. In this presentation, we will consider the ideas of the philosopher Martin Heidegger about the Dasein and his posture as relate to the possibilities of the finitude, and the notion of fallen angel as presented by the literary critic Harold Bloom in his considerations of the same threat of the finitude as an explanation for the true human nature of the monster conceived by Victor Frankenstein, distant from the image of a simple aberration. KEYWORDS: Fallen angel; dasein; Frankenstein.
Graduanda em História pelo Instituto de História, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/UFRJ). E-mail: thayenne-intelectus@hotmail.com. 1 MISKOLCI, RICHARD. Frankenstein e o espectro do desejo. Caderno Pagu, dez. 2011, no.37, p.299-322. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332011000200013&script=sci_arttext >. Acesso em 4 de abril de 2015. *
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Introdução O sofrimento nos ameaça a partir [...] de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens2.
A
história de Frankenstein auferiu seus contornos no verão de 1816, quando Mary Shelley e seu marido, Percy Shelley, juntamente com o médico deste, John Polidori, instalam-se em uma casa na Suíça, tornando-se os vizinhos de George
Gordon Byron, o Lorde Byron. Em uma noite chuvosa, ambos se encontravam no mesmo recinto e, para passar o tempo, decidiram entre si pela leitura de diversas histórias de fantasmas. Por sugestão do Lorde Byron, todos deveriam compor uma história de terror. Daí surgiria a história do monstro mais famoso da literatura, mais tarde transportado para o cinema em diversas versões fílmicas. A publicação do livro “Frankenstein ou o Prometeu Moderno3” ocorreu somente em 18184. Sem embargo, a edição revisada de 1831 de Frankenstein é a que se lê atualmente de maneira ampla. A novela é narrada a partir das recordações das personagens, com suas dores e os horrores pelos quais passaram, do que por sequências infindáveis de ação e aventura. O romance criado por Mary Shelley, categorizado por elementos do gótico e do fantástico5, características presentes da literatura do século XIX, possui uma série de referências acerca dos avanços da ciência naquela época. Podemos destacar traços do grotesco na mistura entre o animalesco e o humano, ressaltando a monstruosidade tanto da criatura, − ao não ver seu criador realizar o seu desejo de ter uma companheira nos seus “moldes” de horror, decidindo vingar-se, matando os entes queridos daquele, − mas também da personagem principal da história, o cientista Victor Frankenstein, Freud, Sigmund. Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997, p. 56. Para efeitos de pesquisa, a versão mobilizada para esse artigo foi a edição de luxo de 2008, ilustrada por Bernie Wrightson e com introdução de Stephen King. 4 BACKER, Ron. Classic Horror Films and the Literature That Inspired Them. Ron Backer, McFarland, 2015, p. 6. 5 Convencionalmente, o gótico é associado às ideias de medo, terror e horror. São sensações ambientadas em lugares sombrios e aterrorizantes, como uma simples rua deserta e escura ou um castelo medieval, por exemplo. Assim, como afirma Aparecido Rossi, "o gótico faz parte da nossa realidade, que ele não está preso e restrito ao universo da ficção como, confortavelmente, pensávamos; que ele está à espreita, à margem da lucidez, da racionalidade, do que acreditamos em real, pronto para se manifestar da forma mais medonha e horrorosa possível." (Rossi, p. 56). Quanto as características gerais acerca do fantástico, muito similar ao gótico, estão inseridas em narrativas cujo objetivo é narrar situações que fogem ao entendimento racional (no caso da literatura de Frankenstein, refere-se à nossa falta de aceitação da criação de uma criatura a partir da fragmentação de corpos diversos. Mas, vale destacar, no caso da literatura fantástica, existem diferentes debates. Ver, por exemplo, ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2013 e TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008. 2 3
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quando se rende ao desejo de vingança contra a sua própria criação, devido aos assassinatos de familiares do cientista promovidos pela aberração. A participação ativa do monstro no romance de Shelley insere a obra no contexto do Romantismo, tendo o grotesco como uma de suas características fundamentais. Sua origem denota o final do século XV, quando foram encontradas ornamentações, em escavações realizadas em Roma, que possuíam representações de seres híbridos, que provocaram estranhamento (daí surge a associação entre o grotesco e a ideia de monstro, pertencente a um mundo fantástico, estranho, o do outro, daquilo que não conhecemos ou com que não somos/estamos familiarizados). Concebemos, deste modo, a ideia de monstro como algo repugnante, horripilante, ou perigoso, produto de aspectos sobrenaturais, míticos ou mágicos6. Também projetamos esta mesma ideia sobre criminosos inescrupulosos ou pessoas com anormalidades ou deformidades físicas. As lendas ocidentais, por exemplo, sobre vampiros, lobisomens e outros seres monstruosos, são consequências destas visões7. Estes aspectos de sobrenaturalidade obtiveram, pela autora, vivacidade com a ligação estabelecida entre ciência e criação da vida. Shelley teve contato com cientistas que estavam experimentando o uso de correntes elétricas para gerar vida, baseados nos experimentos de bioeletricidade feitos por Galvani. Vale-se, então, do medo secular a respeito do poder do conhecimento proibido em sua novela. E, mais: o homem não deve brincar de ser Deus, como foi o caso da sua personagem, Victor Frankenstein, que a partir de pedaços de variados corpos de defuntos, compõe seu monstro. Isso permite-nos uma pequena justificativa sobre a atitude deste, pautada em uma busca incessante de Frankenstein por reverter a morte humana, concebida a partir da perda que sofreu com o óbito da mãe. Por meio da vontade impetuosa e da falta de escrúpulos cria um homem, composto de partes cadavéricas roubadas de túmulos e com proporções gigantescas. Outro aspecto que podemos destacar é o crescente de tensão na narrativa, desde o momento de exibição dos procedimentos cirúrgicos até o amontoado de pele, tecidos, órgãos, enfim, da criatura, atendendo a um propósito, que é a sua criação e, depois, pela perseguição promovida, primeiramente pelo monstro, a fim de ter atendida sua vontade de ter uma companheira, e, posteriormente, pelo cientista, que perde todos os seus entes queridos, − e resolve ir atrás da criatura
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GILMORE, David D. Monsters - evil beings, mythical beasts and all manner of imaginary terrors. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003, p. 1-22. 7 ASMA, Stephen T. On monsters - an unnatural history of our worst fears. Oxford University Press, 2009, p. 151-153. 6
para vingar-se. Essas etapas e momentos de tensão se aproximam do trabalho do escritor ao elaborar um discurso e, neste caso em especial, da novela romanesca8.
Aspectos temáticos da narrativa sobre o livro “Frankenstein”. Desde a primeira publicação da novela diversos críticos literários da literatura de Frankenstein emergiram, apontando os mais diversos temas, tais como a responsabilidade parental, o homossexualismo, o incesto, o feminismo, a perda da identidade, etc. Contudo, através de menções e referências da própria autora da obra, dois parecem ser os temas centrais da novela. O primeiro, é encontrado no subtítulo da novela, "o Prometeu moderno" no qual, analogamente ao mito grego, o cientista roubou de Deus o poder de criação da vida, tendo como punição as mortes de seus entes queridos, embora na narrativa da novela estejam ausentes debates acerca dos limites éticos e/ou religiosos da pesquisa científica da geração de vida. Todavia, uma outra leitura é possível se tomarmos como aspecto central não uma punição divina para a tentativa de poder de criação pelo cientista, mas sim, os maus-tratos que este confere à sua criação ao negar-lhe uma companheira, assim mudando o seu destino. Portanto, a temática de um humano tentando ocupar o espaço de criador divino, no que a autora queria transmitir, acabou revelandose, para a ótica fílmica, um tema menor, secundário9. Outro tema central da obra e que foi muito pouco abordado pelos filmes baseados nela (detalharemos esses aspectos mais tarde), diz respeito ao desenvolvimento inicial de humanidade e fraternidade no teratismo. Após ter debandado do laboratório, foi se esconder em um casebre abandonado, pertencente a uma família de camponeses. Ao observar a fraternidade existente entre os membros da família, tal sentimento igualmente começou a se manifestar quando o monstro passou, sem se revelar, a ajudá-los, colhendo e cortando lenha. Quando descoberto, sua aparição grotesca e apavorante amedronta a família, que o trata mal e o expulsa de suas terras, gerando no monstro ódio e indignação: “Daquele momento em diante, declarei guerra eterna contra a espécie e, acima de tudo, contra aquele que me deformou e lançou-me nesta miséria insuportável”10. Na tentativa de superar os limites da morte, Frankenstein inseriu sua criação nos limites da própria espécie, pois, fruto de um experimento com partes diversas de defuntos variados conVIVOLO, Vitor da Matta. Frankenstein e Moreau: A Ciência do Século XIX Através da Literatura. In: 22o Encontro de Iniciação Científica da PUCSP, 2014, São Paulo. Disponível em: <http://www.pucsp.br/iniciacaocientifica/artigos-premiados-22ed/VITOR-DA-MATTA.pdf >. 9 BACKER, Ron. Classic Horror Films and the Literature That Inspired Them. Ron Backer, McFarland, 2015, p. 19. 10 SHELLEY, Mary. Frankenstein. Introdução: Stephen King. Ilustrações: Bernie Wrightson. São Paulo: Mythos Books, 2008, p. 152. 8
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cebe uma criatura que não possui características humanas − a começar pela estatura consideravelmente alta de seu invento, − bem como podemos considerar a sua aparência esteticamente inapropriada e inconcebível em termos de espécie humana, já que não desejamos aquilo que não é belo11. Aliás, podemos salientar os escassos informes transmitidos aos leitores acerca das aquisições materiais para o experimento de Victor, apenas somos informados de que a matéria-prima de seu invento era oriunda de peles e órgãos dissecados e cooptados de cadáveres mortos há pouco tempo. Nem as menções ao laboratório, no momento da criação, revelam mais detalhes a respeito, como se o ato em si fosse deveras carregado de mistério, e sua revelação atingisse o plano do inimaginável. Inclusive as mortes promovidas pela criatura são descritas em narrativa detalhada, em retrospecto. Portanto, o que era para ser considerado fruto da natureza humana, pelas partes pelos quais fora composto, se torna o Monstro, uma “coisa” desprezível, negada pelo cientista e por seus iguais, pois não se enquadra nos moldes daquilo que consideraríamos humano. Inclusive por seu nascimento, já que o Monstro foi concebido de maneira anti-maternal, mesmo no momento de seu “parto”. Com a aberração, o Dr. Frankenstein transgrediu as etapas comuns presentes em nossa sociedade: concebe uma criatura não pelo sexo, mas pela ciência, profanando cadáveres, e depois arquiteta sua destruição, quando decide perseguir o monstro, a fim de exterminá-lo pelas maldades que cometeu.
Os narradores em “Frankenstein”. Para compreendermos a obra literária de “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno” devemos analisar, antes de tudo, quais formas estruturam sua linguagem e narrativa. Percebemos, como aspecto central, a existência múltipla de narradores, cujas histórias se entrecruzam12. No início, ela é narrada pelo navegador Walton, a partir de cartas enviadas à irmã, que segreda a esta sua ambição de realizar um projeto jamais concebido por qualquer outro navegador: o de alcançar o Polo Norte. Depois, como segundo narrador temos o próprio cientista Frankenstein, narrando seu nascimento, sua infância na Suíça, a educação isolada que recebeu da família, levando-o à curiosidade precoce sobre os livros científicos que encontrou na biblioteca de seu pai, bem como sua
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McNALLY, David. Monsters of the Market. Zombies, Vampires and Global Capitalism. Leiden: Boston, 2011, p. 89. MISKOLCI, RICHARD. Frankenstein e o espectro do desejo. Caderno Pagu, dez 2011, no.37, p.299-322. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332011000200013&script=sci_arttext >. Acessado em: 4 de abril de 2015. 11
partida para a Universidade, em Ingolstadt. Sua solidão e a vontade de superar a morte levam-no a conceber um ser a partir de defuntos anônimos. A criatura daí advinda será marcada pela repulsa das pessoas diante da abjeção. A outra voz do romance é a do próprio monstro, que narra desde sua fuga do laboratório até a tentativa de fazer amizade, quando se apresenta para a família de camponeses, em cuja casa estivera escondido, e onde posteriormente foi maltratado e expulso. Amargurado, passa a assombrar seu criador com a esperança de que este lhe crie uma parceira, prometendo ir viver escondido para sempre nas florestas da América do Sul. Como o monstro havia ameaçado Frankenstein de que se não realizasse seu pedido ele mataria sua futura noiva, Elizabeth, o cientista resolve, antes de concretizar sua proposta de casamento para com ela, fazer uma longa viagem. Na companhia de seu amigo Clerval, cogita a possibilidade de realizar o pedido do monstro. Entretanto, temendo as possíveis consequências maléficas dessa nova criação (por exemplo, o fato de gerarem filhos, povoando o mundo com uma possível ameaça), ele a destrói, junto com o laboratório. Podemos supor certa consciência do cientista de que suas criações (o monstro e a criatura quase completamente concebida no laboratório), oriundas de pedaços de outros a partir de sepulturas violadas são profanos. Ainda assim, sua atitude permanece não correta. Podemos observar, mais ainda, certo egocentrismo em Frankenstein, pois mesmo avisado pela própria criatura que estaria presente em sua noite de núpcias, preocupa-se apenas com a sua segurança, acabando por “permitir”, o que se verá mais adiante, que sua noiva fosse morta pelo monstro. Frankenstein se torna novamente narrador da história ao contar seu estado amedrontado e inconsciente, no momento em que para em um vilarejo na costa da Irlanda. Inicialmente, é visto como um criminoso, pois descobre a morte de um jovem, que se revela, na verdade, ser o corpo de seu melhor amigo, Clerval. O cientista, então, é preso e enviado para um hospício. Passado um tempo, seu pai o resgata, retornando ambos para a Suíça. Frankenstein marca seu casamento com Elizabeth em um prazo de dez dias, entretanto, sem saber que a vítima do monstro não seria ele, como pensava, mas a sua amada prima (que, igualmente, é a sua noiva). À medida que o dia do casamento se aproximava, Frankenstein foi se precavendo da maneira como achava mais correta: “Carregava pistolas e um punhal o tempo todo, e vivia em constante vigília para evitar alguma armadilha, posturas que me garantiam um grau maior de tranquilidade”13. Ou seja, passava,
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SHELLEY, Mary. Frankenstein. Introdução: Stephen King. Ilustrações: Bernie Wrightson. São Paulo: Mythos Books, 2008, p. 218. 13
cada vez mais, a tratar o monstro como seu único e maior inimigo, longe da lembrança do momento em que o concebeu. Já na noite de núpcias, instalados em uma pousada, Frankenstein se mostra impaciente e nervoso, chamando a atenção de Elizabeth, que pergunta qual é o problema. Victor afirma querer apenas que a noite termine em paz e pede, gentilmente, que ela se dirija para o quarto. Depois de vasculhar o ambiente, Victor não observa nenhum lugar em que o monstro poderia estar. Neste instante, ouve um grito estridente vindo do quarto onde sua noiva estava. Somente aí percebe qual era o objetivo principal da ameaça do monstro. Ao chegar ao quarto, encontra-a morta, na cama. Depois, ele retorna para Genebra, onde, em alguns dias seu pai falece. Sendo dado como louco, reside durante meses em uma solitária. Assim, o que é interessante destacar no livro é que, mesmo sendo dado destaque para os possíveis avanços que a ciência teria sobre a sociedade, deveria agir de maneira cautelosa, longe dos limites da ambição. Novamente solitário, Frankenstein decide ele mesmo empreender uma viagem à procura do monstro. A dependência de Victor em exterminar aquilo que outrora concebeu, o faz perseguir a criatura até o Polo Norte, aonde foi resgatado exaurido pelo navegante Walton. Podemos reparar o inverso dessa monstruosidade no cientista, com o desejo de matar a sua criatura, no intuito de devolver-lhe a vingança e as perdas familiares sentidas14.
O duelo entre o monstro e Victor Frankenstein: entre o ser-aí heideggeriano e a luta pela sobrevivência. A narrativa presente em Frankenstein representa a vontade dos indivíduos de negar a morte, além da inquietude sobre a mesma, e o desejo de vencer a finitude da espécie. Para pensarmos sobre este tema e de que forma acomete a nós, seres carregados de historicidade, buscamos a referência de Steven Sanders para pensarmos nosso objeto em termos filosóficos, que recorre a Martin Heidegger, filósofo alemão existencialista, considerado um dos maiores pensadores do século XX, que se debruçou sobre o tema da finitude, ao examinar a natureza humana em seu livro “Ser e Tempo”15. Dentre as qualidades que o filósofo destaca dos seres humanos, aponta a capacidade de nos encaminharmos rumo à morte, já que nossa condição é finita, somos mortais. É justamente a ideia de que temos um tempo limitado de existência que nos projeta para a vontade incessante de viver, de tentar ultrapassar as “barreiras da morte”, como afirma o filósofo. Na
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MISKOLCI, RICHARD. Frankenstein e o espectro do desejo. Caderno Pagu, Dez 2011, no.37, p.299-322. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332011000200013&script=sci_arttext >. 15 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Maria Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes. 4 ed, 2009. 14
personagem Frankenstein, do livro de Mary Shelley, essa tentativa de superar a morte pela criação de uma vida a partir de pedaços de pessoas mortas ilustra que tal desejo pode nos transformar ou transformar nossa empreitada em um monstro16. Ainda para o filósofo, como destaca Sanders, somos seres essencialmente temporais que, ao longo da vida, nos modificamos e dependemos da interação social para conduzir nossas vidas. É pela iminência constante da morte que os indivíduos moldam seu comportamento e sua experiência vivida. Mesmo na interação com os outros, a preocupação central dos seres humanos é consigo mesmo, com a sua sobrevivência particular, reforçado pela ideia de que somos os únicos seres na face da Terra que nos preocupamos intensamente e temos consciência sobre a morte, já que a mesma nos ameaça constantemente com a sua “presença”. Heidegger conceitua como comportamento inautêntico aquele que nega a sua mortalidade e a existência da morte, configurando o que chama de estado negativo sobre a verdadeira condição humana, que é a de finitude17. Os seres humanos que assim se portam experimentam a inquietude ou a angústia frente à ameaça constante de morrer. Ao apontar essa característica da negativa sobre a morte, em virtude da nossa necessidade mundana de estarmos vivos e as preocupações individuais sobre nossas próprias vidas, evitamos a terrível admissão de nossa mortalidade, sempre que possível e, inclusive, fugindo de um confronto com a mesma quando mascaramos para nós mesmos nossa finitude. O desejo de Victor Frankenstein de combater a morte reflete o nosso ato diante dela: a necessidade de negá-la e o desejo de superá-la. O projeto, para o cientista, ganha forma quando perde a sua mãe, reflexo de proteção e acolhimento, ainda na juventude. Consequência disso é o lançamento do cientista à inquietude diante da finitude, bem como sua negação (ambos comportamentos observados por Heidegger, observa Sanders), ao se propor superá-la por meio do projeto de dar vida a um ser a partir de pedaços de corpos humanos finitos 18. Pelos aspectos aqui apontados podemos afirmar que Frankenstein encara a morte muito mais como um inimigo a ser combatido, não como uma consequência da própria existência, fato este a que estamos condenados. A criatura, erguida como o gesto contra a finitude, torna-se ela mesma personificação da morte, tanto por ser composta de cadáveres, como por seus assassinatos.
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SANDERS, Steven. The philosophy of science fiction film. University Press of Kentucky, 2009, p. 73-75. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Maria Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes. 4 ed, 2009. 18 SHELLEY, Mary. Frankenstein. Introdução: Stephen King. Ilustrações: Bernie Wrightson. São Paulo: Mythos Books, 2008, p. 218. 16
O monstro em Frankenstein enquanto anjo caído. Tendo roubado o segredo do fogo e revelado aos homens, Prometeu foi castigado por Zeus, sendo acorrentado a uma montanha no Cáucaso. Ali, todos os dias, uma águia vinha comer-lhe o fígado, que se regenerava no dia seguinte, quando o processo sempre recomeçava. Ainda, para castigar os homens, os deuses conceberam as mulheres. Surge, então, a figura de Pandora, cuja caixa libertou todos os males no mundo, sobrando apenas no interior da caixa a esperança. Posteriormente, Prometeu foi libertado por Hércules. Para a cultura medieval, e, em especial, para o pensamento religioso, Prometeu é visto como símbolo da força divina, embora para os renascentistas seja reflexo de poder criador nos homens. Na história de Mary Shelley, o personagem mitológico foi mobilizado como um ser castigado pela sua pretensão em ser um criador como Deus, na personagem do cientista Victor Frankenstein. A concepção mitológica leva-nos a pensar o monstro gerado por Frankenstein em termos de sujeito histórico, enquanto um indivíduo que vem ocupar seu lugar no curso da história, se o encararmos como resultado dos estudos científicos da época e que contribuíram para o desenvolvimento da história da ciência. Em termos foucaultianos, o cientista Frankenstein, por seu turno, é igualmente um sujeito histórico que, nesse caso, a partir de sua individualidade e da posse de poder sobre a criatura, determina o seu futuro quando lhe nega uma companheira ou quando tenta dar fim ao monstro, por considerá-lo, dentro da sua concepção normatizada, uma ameaça à sociedade e que, portanto, deve ser exterminada, banida do convívio social19. Contudo, levando em consideração que ambos são sujeitos históricos da vida de um e de outro, suas relações os afetam mutuamente e, inclusive, incidem sobre a sociedade em que vivem, já que a todo o momento Frankenstein se julga condenado pela sociedade, caso descoberto seu crime horrendo de ter concebido uma criatura nos moldes da criação divina, por exemplo. A novela produzida por Mary Shelley permite-nos averiguá-la, tendo como bases esses sujeitos históricos, sob um aspecto defendido pelo professor e crítico literário norte-americano Harold Bloom: há de que o monstro concebido por Frankenstein é um anjo caído20. Bloom afirma que as imagens de anjos povoam nosso imaginário a mais de três mil anos, ganhando desde a antiga Pérsia dimensões cada vez maiores para o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, mesmo em nossos dias.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987. 20 BLOOM, Harold. Mary Shelley's Frankenstein. Bloom's Modern Critical Views. Chelsea House, 2006, p. 5-20. 19
A concepção de anjo caído remonta ao Zoroastrismo, religião dominante no Império Persa, expandindo-se para o Judaísmo a partir do episódio do Cativeiro da Babilônia e no póscativeiro. No Judaísmo, os anjos foram concebidos como maus para, posteriormente, ao serem introduzidos tardiamente no Cristianismo, parcialmente com esta mesma ideia, adquirirem com o Islamismo uma conotação positiva. É no Zoroastrismo, ainda, que surgiu a invenção do Satã propriamente dito, ou Angra Mainyu, também chamado de Ahriman (Espírito do Mal), já que na Bíblia hebraica o Satã não aparece da forma como o concebemos (antes, ele era um instrumento de Deus). Originalmente, no Zoroastrismo Ahriman (ou Satã, para o Novo Testamento) 21 era irmão de Deus, fato este não incorporado pelo Cristianismo no Novo Testamento. O primeiro anjo caído da história é Satã (seu nome remete à ideia de obstáculo, acusador, esclarece Bloom). Se recuperarmos os escritos do Livro de Jó, ele é advogado de acusação de Deus e, que, sempre ao entrar no tribunal divino faz uma aposta com Este22. Apontada por Bloom, esta mesma temática já aparecia em Santo Agostinho, teólogo cristão do século IV de nossa era que afirmava, por meio de numa concepção não-judaica, que Adão e Eva tinham sido concebidos por Deus para substituírem os anjos caídos. A concepção de anjo caído, assim, propõe a reflexão da consciência sobre a existência da condição humana e da mortalidade que acomete todos os seres vivos, mas que em especial, tanto preocupa e é objeto de ponderação pelos seres humanos, como é a única espécie viva que se debruça sobre esta problemática. Ademais, segundo Bloom, anjos caídos são aqueles que não passaram por um processo de amadurecimento e, assim, perderam sua condição angelical, sendo projetados no mundo dos homens, tendo que aprender a viver como um mortal23. A mesma ideia de anjo caído podemos dizer a respeito da criatura concebida pelo cientista, defende o crítico literário. Durante toda a sua narrativa, o monstro exibe traços de que era um ser humano, e não apenas uma aberração, tanto quanto o seu criador. Desde o momento em que fugiu do laboratório de Frankenstein, o monstro vagou pela floresta, em busca de alimentos que saciassem sua fome. A criatura tentou descanso em uma cabana, cujo dono ao vê-lo saiu correndo de pavor, bem como tentou abrigo em um vilarejo no qual as pessoas, horrorizadas com a sua aparência, jogaram-lhe pedras e pedaços de pau. Fugiu, se escondendo em um casebre bem modesto, cujo interior era de terra batida e com um chiqueiro ao fundo. Deste casebre, por uma das fendas na madeira, conseguia ver o interior da sala de uma casa, onde estava um velho cego, e uma menina muito triste que fazia seus afazeres domésticos, ajudada por um rapaz. Notava que o
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BLOOM, Harold. Anjos caídos. Trad.: Antonio Nogueira Machado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 20. Ibdem, p. 64-66. 23 BLOOM, Harold. Mary Shelley's Frankenstein. Bloom's Modern Critical Views. Chelsea House, 2006, p. 145-160. 21
velho tocava sempre a mesma música e o rapaz lia em voz alta para esse velho. Ou seja, o monstro vai tendo contato com as primeiras manifestações de cotidiano humano com os quais se deparou. Assim, foi capaz de observar que as pessoas que viviam na casa se valiam de um veículo comunicativo verbal em comum, a linguagem, coisa que ele não havia, ainda, dominado, preferindo continuar observando até que tivesse domínio suficiente do suporte comunicativo mobilizado para se apresentar. Nota-se que existia sempre cautela e consciência do monstro de sua feiúra, já que em dado momento viu o seu reflexo n’água. Além disso, vendo que a família tinha para com os seus pares sentimentos de afeto e amor, isso também passou a se desenvolver no monstro, que afirmou posteriormente estar possuído por tais sentimentos, como carinho, amor, compaixão, generosidade. Tamanha foi a humanidade que o monstro desenvolveu que passou toda a noite, enquanto a família se encontrava em seus aposentos descansando, a deixar a lenha já cortada para a família de camponeses. A próxima etapa que exibe o início da consciência de anjo caído por ele é quando o mesmo descreve a estadia de uma mulher árabe, tratada como Safie. Os mais jovens desta casa procuraram ensinar o idioma para a mulher. O monstro ressalta seu brilhante aprendizado sobre diversas lições de política, história, sobre a diferença entre os sexos e a criação dos filhos. Novamente, tem consciência de que sua existência não possui esta etapa da vida, “Mas onde estavam meus amigos e parentes? Nenhum pai observara meus dias de infante, nenhuma mãe me abençoara com sorrisos e carinhos, se isso acontecera, minha vida passada era agora um borrão, um período cego do qual eu nada lembrava”24. Em uma das noites em que o monstro saiu para arrumar comida na mata, encontrou perdida uma mala com roupas e alguns livros, que estudou avidamente. O monstro relembra o que leu e como foi influenciado: (...) li sobre homens preocupados com questões públicas, governando ou massacrando a própria espécie. Senti emergir dentro de mim o mais profundo ardor pela virtude, e também desgosto pela maldade, dentro do que compreendia sobre os termos tão relativos, já que eu os empregava tão somente para prazer e dor 25.
Sobre “Paraíso Perdido”, uma das obras encontradas pelo monstro nessa mala, disse que não se identificou com Adão, pois este era oriundo de um Ser Perfeito (Deus) e que conversa
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SHELLEY, Mary. Frankenstein. Introdução: Stephen King. Ilustrações: Bernie Wrightson. São Paulo: Mythos Books, 2008, p. 133. 25 Ibdem, p. 142. 24
com outras criaturas. Achava-se mais próximo de Satã, pois "assim como ele, quando observava a alegria de meus protetores, o fel amargo da inveja despertava em meu interior" 26. Destarte, ao longo da narrativa do monstro acerca dos eventos que o acometeram, observamos o desenvolvimento de sua consciência de um ser-aí, um alguém projetado no mundo, como se fosse um anjo caído, tendo que aprender os mistérios do mundo que o cercava. Essas noções não se encontram presentes nos filmes produzidos sobre esta novela. A perspectiva representativa adotada pela linguagem fílmica sobre a literatura de Frankenstein se encarregou fortemente de dotá-la de um choque de horror, intensificando a história pela brutalidade da aberração e transformando o cientista em um herói que deveria salvar o mundo daquela ameaça. Para compreendermos essa perspectiva, analisaremos em termos teóricos e metodológicos a problemática sobre um sistema audiovisual focando, posteriormente, os aspectos mais importantes e destacados em alguns filmes sobre a narrativa de Frankenstein.
A problemática teórica e metodológica do sistema audiovisual. Quando optamos pela escolha de um mecanismo audiovisual, como nos casos de filmes, séries, vídeos, ou, particularmente aqui, a reprodução e exploração sobre a temática do monstro de Frankenstein, a primeira questão que emerge é quanto ao problema teórico-metodológico: Qual método aplicar? Como trabalhar com um filme (aqui, minha preocupação em especial)? A partir disto, começa-se a delinear um corpus teórico? Não. Muitas outras preocupações se atrelam ao sistema metodológico para que as formulações compostas por meio da apreciação de um dado objeto emerjam. Antes de qualquer coisa, a imagem, seja ela qual for, não pode ser vista como mero complemento do discurso escrito da história. Ela possui uma preleção própria que deve ser averiguada particularmente, como outra fonte viável de compreensão histórica da realidade em questão que se quer debruçar. Ademais, deve-se observar por meio da mente do criador de um aparato audiovisual qual receptor se quer atingir, qual o contexto histórico da produção de um audiovisual, que recorte espaço-temporal se limitou, qual palco de disputas ideológicas tal material contrapõe, defende ou simplesmente critica. Um filme ou vídeo, a partir da seleção e organização das cenas que irão compor a filmagem, guardam em si um tipo de ótica e uma carga de informações que pretendem ser transmitidos a partir da sequência e da justaposição das cenas.
Ibdem, p. 145.
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No artigo “História e Cinema”, de Alexandre Busko Valim27, presente no livro “Novo Domínios da História”, dos historiadores Ciro Flamarion e Ronaldo Vainfas, há a explicitação de uma preocupação quanto ao caráter construtivo de um filme, onde “... gêneros literários e fílmicos vão além das classes gerais de textos que expressam determinados tipos de significados”, ou seja, a imagem visual que compõe um filme ou um vídeo cria, em seu receptor, um grau de expectativa singular, onde percepção e entendimento andam na velocidade da visualização das cenas, indo para além da superficialidade ótica e não se atendo a um singelo jogo cênico como mera forma de entretenimento. Portanto, a representação que um filme ou uma cena ou um vídeo faz da realidade tem que possuir um caráter dinâmico tal que, não pode passar de mera cópia, repetição da realidade, mas também, deve ser capaz de atingir um objetivo, uma transmissão de mensagens a partir daquilo que foi construído. É nesse sentido que a seleção e organização das cenas, da trilha sonora, da seleção dos personagens que compõem o cenário, bem como a construção da narrativa e das falas e do espaço-tempo que se quer dar enfoque se tornam imprescindíveis.
A imagem como contra-análise da sociedade. Como mencionado anteriormente, uma fonte audiovisual se torna uma ferramenta, seja para a história, a filosofia ou a literatura, por exemplo. Contudo, pode-se ir mais além desta simples averiguação. A fonte passa a ser a testemunha de uma época que, quando exibida, suas cenas mexem com o imaginário social daquela época ou de uma época posterior, que se debruça sobre a primeira. É assim segundo Marc Ferro, em seu artigo que compõe o livro “História: Novos Objetos”, de Jacques Le Goff e Pierre Nora. Para Ferro, os gestos, os olhares, as narrativas específicas que dotadas de uma linguagem cinematográfica, respaldada em uma construção espacial e uma construção psíquica do social, revelam uma contra-análise da sociedade, por meio dos não-ditos que é essa linguagem visual, sendo ou não embasada por diálogos. Faz o caminho inverso da História ou da Filosofia: “A câmera [...] descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus lapsos”28. A realidade, então, que emerge do filme ou de um fragmento audiovisual, se faz de uma forma indireta, por meio dos sentidos, da expectativa e do jogo de sensações e, porque não dizer,
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VALIM, Alexandre Busko. História e cinema. In: Cardoso, Ciro Flamarion; Vainfas, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 289. 28 NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. Tradução de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 202. 27
de manipulações que provocam em seu receptor, necessitando mostrar-lhe o factual, pertencente ao recorte temporal utilizado: “Por um lado o filme parece suscitar ao nível da imagem, o factual; por outro, apresenta-se, em todos os sentidos do termo, como uma manipulação”29. Além disso, quanto à abordagem, dentre algumas, ela pode ser feita de cima para baixo, analisando o poder e seus integrantes e/ou de baixo para cima, por meio de atores secundários, como camponeses, operários, etc. Ou, pode representar as diferentes modalidades do mal que acometem o mundo dos seres humanos.
O monstro de Frankenstein pelo olhar fílmico. Como dissemos anteriormente, diversos foram os filmes elaborados sobre a história do monstro de Frankenstein e a ótica cinematográfica lhe conferiu prismas bem particulares. Um enfoque central que podemos apontar em comum em todos os filmes é o esquecimento do tema do Prometeu moderno, ou do anjo caído, como aqui abordamos. Na novela, o monstro desenvolve uma humanidade, que foi rejeitada pelo olhar cinematográfico, projetando-o como um ser completamente desumanizado. Suas emoções passam a ser de raiva, violência e desejo de vingança. Ademais, o cinema concebeu o monstro com traços caricatos, sendo de pele verde e com dois condutores de eletricidade presos à têmpora30. Diferem de tais fenótipos da descrição contida no romance de Shelley, a respeito dos traços físicos do monstro, quando da sua criação: Sua pele amarelada mal cobria os músculos e as artérias por debaixo; seu cabelo era liso, de um preto lustroso; os dentes brancos como pérola; mas essas exuberâncias apenas constituíam um contraste ainda mais horrível com os olhos aquosos, que pareciam quase da mesma cor das órbitas brancas nas quais estavam; sua pele era enrugada e os lábios, enegrecidos31.
A seguir, trataremos de expor, sinteticamente, quais as mudanças e enfoques centrais conferidos pelos filmes produzidos sobre a literatura de Mary Shelley. Como a produção a respeito é vultosa32, decidimos pelos comentários acerca de alguns desses filmes. A primeira adaptação de “Franskestein” para os cinemas foi em 1910, por Thomas Edison, realizada pelo estúdio cinematográfico Edison Studios. Como mencionado no início deste curto Ibdem, p. 202. BACKER, Ron. Classic Horror Films and the Literature That Inspired Them. Ron Backer, McFarland, 2015, p. 135-137. 31 SHELLEY, Mary. Frankenstein. Introdução: Stephen King. Ilustrações: Bernie Wrightson. São Paulo: Mythos Books, 2008, p. 56. 32 Para saber mais: http://knarf.english.upenn.edu/Pop/filmlist.html. Acesso em: 10 de setembro de 2015. 29 30
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filme, foi uma adaptação livre sobre a história do monstro. Destaque para o fato de que este filme não teve um grande retorno financeiro. A criatura foi representada pelo ator Charles Ogle. Contudo, o Monstro que ganhou maior notoriedade foi o interpretado por Boris Karloff, no filme realizado em 1931, pela Universal Pictures e dirigido por James Whale. Outros grandes sucessos produzidos pela Universal Pictures sobre o monstro, rendendo igual sucesso de bilheteria, foram “Bride of Frankenstein” (1935) e “The Invisible Man” (1933). Podemos ainda citar outros, como “The son of Frankenstein”, datado de 1939; “O Espírito de Frankenstein”, de 1942; “Frankenstein Meets the Wolf Man”, do ano de 1943, com Bela Lugosi interpretando o monstro; “The Curse of Frankenstein” (1957); “Abbot and Costello Meet Frankenstein”, de 1948. Em 1969, Peter Cushing estrelou no filme “Frankenstein must be destroyed! ”. Nos anos de 1980, ainda teríamos “Frankenstein” (1984) do diretor James Ormerod e “Gothic” (1986) de Ken Russell. Em 1994, surgiu “Mary Shelley’s Frankenstein”, com Robert De Niro como a criatura. A temática sobre a criatura serviu de base para o filme de Tim Burton, intitulado “Edward Mãos de Tesoura”, em 199033. Em 1931, estreou o “Frankenstein” (mesmo título que o anterior). Neste filme, Victor Frankenstein foi nomeado Henry e o monstro foi interpretado pelo grande ator de cinema Boris Karloff34. O inédito neste filme são as tentativas de informações sobre a origem do laboratório, dos corpos e dos cadáveres, incidentes esses que na história original foram omitidos. Aqui, igualmente, o monstro ganha feição mais assustadora, com covinha, face funda, testa saliente e pontos de costura e cicatrizes, além de eletrodos no pescoço. Além disso, no livro o monstro foi retratado como um ser capaz de correr com a velocidade de uma águia, mas, neste filme, o monstro assumiu uma postura vagarosa, andando como se estivesse atravancado. Diferentemente da novela, no filme o cientista não morre. A culpa pela monstruosidade da criatura foi delegada, no filme, muito mais ao erro e às torturas feitas pelo assistente do cientista, Fritz, do que pela própria criatura e sua deformidade. Isso fica claro pela cena em que o monstro encontra com a menina Maria no lago, que se passa de maneira curta e que destoa do resto do filme. A história aqui contada termina com um epílogo afirmando que Henry sobreviveu, casando-se e vivendo feliz com sua amada Elizabeth.
BACKER, Ron. Classic Horror Films and the Literature That Inspired Them. Ron Backer, McFarland, 2015, p. 326. 34 Neste filme de 1931, duas curiosidades podem ser ressaltadas: a primeira, diz respeito ao ator que interpretou o Monstro: Boris Karloff. Até a época da produção deste filme, Karloff tinha participado de diversos trabalhos, porém nada relevante. Depois da recusa do papel do Monstro por Bela Lugosi, que não concordou em participar de um filme em que seu personagem não teria falas, coube a Karloff, então com 44 anos, a interpretação deste papel, consagrando-o em uma personagem memorável. A segunda, refere-se ao fato do filme ser oriundo da compra dos direitos autorais, pela Universal, de uma adaptação teatral da história, cuja composição tinha sido feita por John L. Balderston e a produção do espetáculo por Peggy Webling, na Inglaterra. 33
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“Bride of Frankenstein”, filme de 1935, inicia com uma vinheta introdutória, assemelhandose as cartas introdutórias de Walton, que compõe a introdução do livro. O diretor James Whale cria uma situação imaginária, remetendo-se à noite quando Mary Shelley concebeu sua novela acerca da criação de um ser. Aqui, mais uma vez, Mary está na companhia de Percy Shelley e Lorde Byron, em uma noite sombria. Mary anuncia ao seu amado e ao seu amigo que a criatura não tinha morrido. Outro ponto destacado é que, originalmente, no livro, o monstro, ao se surpreender com uma menina se afogando, pula na água e a resgata. O homem que a acompanhava, vendo a imagem grotesca do monstro atira contra este. Já no filme, ocorre a mesma cena da menina se afogando, mas após ser resgatada, a moça grita e é socorrida por dois caçadores, que atiram contra a criatura35. Outro momento do filme, que se passa diferentemente da história original é que o monstro se mostra companheiro do eremita cego, aprendendo algumas palavras e frases. Nesta versão, são os caçadores que interrompem esse momento positivo de aprendizagem do monstro. Neste filme, o final surpreendente é a criatura feminina, ao término de ser criada, rejeita o monstro pelas suas características físicas horripilantes36. Quando a noiva de Frankenstein aparece vestida, a cena é cortada para a inicial, em que vemos a escritora Mary Shelley sendo assistida por seu marido e seu amigo. Assim, podemos perceber que as duas personagens são representadas pela mesma atriz (Elsa Lanchester), uma analogia metafórica de dupla condição criadora/criatura. Já em 1957, surge o filme “The Curse of Frankenstein”, em que o jovem Barão Victor Frankenstein toma conhecimento dos estudos de ciência com o seu professor Paul Krempe, que gera como consequência a vontade de Victor de conceber uma criatura. Para tanto, Frankenstein teve de matar Bernstein para tomar o seu cérebro. O professor Krempe, que tem duvidado dos métodos de Vitor durante algum tempo, entra em uma luta corporal com Victor, o que acaba por danificar o cérebro. Após ganhar vida, a criatura tenta atacar Frankenstein, mas é ferida por uma bala de espingarda mobilizada por Krempe. Depois de ser curado pelo cientista, o monstro tenta atacar Elizabeth, sendo queimado e projetado sobre um tonel com ácido pelo seu criador, que tem seu fim marcado pela prisão e a morte na guilhotina. O filme é tido como original, pois não seguiu de perto os temas propostos na novela original. “Mary Shelley’s Frankenstein” estreou no ano de 1994. Sendo considerado o filme mais fiel a obra, como narrado pela voz da própria Mary Shelley, reproduzindo quase fielmente a introdu-
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BACKER, Ron. Classic Horror Films and the Literature That Inspired Them. Ron Backer, McFarland, 2015, p. 17-19. 36 GATTI, J. Desvestindo A noiva de Frankenstein. REBECA. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 4, p. 152-172, 2013. Disponível em: <http://www.socine.org.br/rebeca/pdf/rebeca_4_07.pdf>. 35
ção que deu à sua novela, na edição de 1831. Após, o tempo de a história datar do início do século XIX, destacando o interesse cada vez maior sobre os avanços científicos e sobre o desejo incontrolável e cada vez maior sobre o conhecimento. A suposição aí poderia levar o espectador a pensar logo em Victor Frankenstein, sendo, na verdade, referência ao capitão Robert Walton, explorador obcecado em atingir o Polo Norte. Desse modo, podemos "ler" o estabelecimento de uma ligação entre o cientista e o explorador, um o espelho do outro, pela procura do desconhecido e dos perigos aí advindos para si mesmos. Posteriormente, o filme, igual à novela, lança em retrospecto o desenrolar da vida de Victor. Embora siga a obra bem de perto, não deixou de ter as suas adaptações particulares, como o fato de seu professor na Universidade, o Dr. Waldman, já ter tido experiência com a criação de um ser; o cérebro usado na concepção do monstro de Frankenstein ser o de seu mestre, falecido em decorrência do assassinato deste por um homem que não se deixou vacinar e o monstro é “gestado” durante uma epidemia de cólera, na região onde Frankenstein se instalou. Parcialmente parecido com a novela, Frankenstein passou o verão todo dedicado à sua tarefa de estudar os corpos em suas particularidades, trancando-se em uma câmara solitária, no alto de uma casa, que era separada dos demais aposentos. Sua empreitada o fez esquecer amigos e familiares. Seu objetivo tomava tanto de si, que Victor passou a ser uma pessoa assustada, nervosa. Durante dois anos, dedicou-se a tarefa de dar vida a um corpo inanimado. Ávido pelos mistérios da vida e da constituição humana, dedicou-se à fisiologia, além de pesquisar a fundo sobre anatomia, degradação e corrupção natural do corpo humano. Como desde criança seu pai não o nutriu com receios e medos sobre espíritos e mortes, Victor não se apavorava com cemitérios, por exemplo. Por isso, passava horas em criptas, estudando os corpos que ali jaziam. Decorrente disso, descobriu a origem da vida, ou melhor, dizia-se capaz de animar uma matéria sem vida. Sua tarefa foi concluída em novembro, durante uma noite de chuva. Inicialmente, achou a sua criação bela, mas, passado o frenesi, notou o quanto sua criação era horrenda. Contudo, a sequência da criação do monstro se deu de maneira confusa se comparada à narrada no livro. Victor parece bastante atordoado, indo e vindo entre um equipamento e outro. Embora a cena não seja clara, o monstro é concebido em uma noite de chuva e relâmpagos e com Victor seminu durante todo o processo, situação que não é, em nenhum momento descrita no livro. Ademais, diferentemente do livro, no filme, sem qualquer explicação, Frankenstein cede às ameaças do monstro, criando um novo monstro, do sexo feminino. Contudo, isso não impemorto de sua amada e a leva para o laboratório, decepando-lhe a cabeça e costurando-a na criatuRevista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº4, pp.30-49, Jul.-Dez./2015 | www.poderecultura.com
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diu que a criatura matasse Elizabeth na noite de núpcias. Desesperado, Victor agarra o corpo
ra ainda inanimada, recriando, assim, a sua amada morta. Ao ser despertada, é disputada entre o cientista e o monstro e ela, ao se dar conta que possui os mesmos traços de abjeção que o monstro, suicida-se atendo fogo contra o próprio corpo.
Conclusão De acordo com que nos propusemos apresentar neste artigo sobre a novela concebida por Mary Shelley, Frankenstein foi tentado a mudar o curso da humanidade ao criar uma nova espécie. Somente quando recupera a lucidez, dá-se conta de sua impulsividade, sendo consumindo pelo horror e pelo arrependimento. O monstro que surge da criação de Frankenstein pode ser entendido, a priori, como reduzido em si mesmo, pois é desumanizado, bruto, sem alma, enfim, necessitando de sentimentos bondosos que o aproximem da espécie humana. Na própria criação, o monstro afasta-se do humano e torna-se corrompido: gerado sem mãe, despertando horror por suas deformidades, inclusive sobre seu próprio progenitor. O monstro necessita de amor para ficar menos monstruoso, configurando o único caminho de salvação para ele. Analisando a história de Frankenstein e de seu monstro, ela é, antes de tudo, uma novela de cunho filosófico. Percebemos por parte do cientista a vontade de conhecimento e a ausência de implicações ético-morais que sua vontade de conceber um ser traz, além de projetá-lo em um turbilhão de sentimentos e pensamentos acerca das consequências desastrosas que a existência de um monstro e de uma companheira da mesma espécie trariam para o mundo. No caso da criatura, vemos uma crescente consciência, enquanto sujeito histórico, sobre a sua existência e finitude. Isso nos possibilitou pensá-lo em termos de limite de existência física e insegurança diante da morte, requisitando, para tal, os ensinamentos do Martin Heidegger e do crítico literário Harold Bloom, pensando a criatura pela concepção de anjo caído.
Referências Bibliográficas:
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A GUERRA DO PARAGUAI (1864-1870) NO CINEMA BRASILEIRO
“Alma do Brasil” (1932) e a memória patriótica de um país em “novos tempos”
Fábio Ribeiro de Sousa* RESUMO: O presente artigo busca analisar de que forma o maior conflito armado da América do Sul, a Guerra do Paraguai (1864-1870), foi retratada pelo cinema brasileiro. O enfoque de tal análise será o processo de exaltação patriótica proposta pelo filme “Alma do Brasil” (1932). Com o seu roteiro baseado no livro “A Retirada da Laguna”, de Visconde de Taunay, a produção cinematográfica brasileira buscou reconstruir um dos acontecimentos mais marcantes do conflito, visando exaltar os atos heroicos do exército brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Paraguai; Cinema; Alma do Brasil. THE PARAGUAYAN WAR (1864-1870) IN THE BRAZILIAN CINEMA: “Brazil’s Soul” (1932) and the patriotic memory of a country in “new times” ABSTRACT: This article analyzes how the largest armed conflict in South America, the Paraguay War (1864-1870), was portrayed by the Brazilian cinema. The focus of this analysis is the process of patriotic exaltation proposed by the movie "Alma do Brasil" (1932). Based on the book “A Retirada da Laguna” of Viscount of Taunay, the Brazilian film production sought to rebuild one of the most significant events of the conflict in order to exalt the heroic acts of the Brazilian army. KEYWORDS: Paraguayan War, Cinema, Alma do Brasil. ***
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Mestre em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IH/UFRJ). E-mail: fabio2101@bol.com.br. *
O
ano de 1889 representa um grande marco para a história brasileira. A queda da monarquia e a consequente ascensão do regime republicano, embora este fosse, principalmente em seus anos iniciais, fortemente influenciado pelos
longos anos de dominação portuguesa, deu início a uma reorganização social, política, econômica e cultural do país. A chamada “República Velha” – ou “Primeira República” – caracterizou-se pelo domínio das oligarquias rurais no país, fundamentalmente as de São Paulo. A ascensão de Getúlio Vargas (1882 – 1954) ao poder – após um momento extremamente conturbado e de grandes disputas políticas – inaugurou um novo período na história recente brasileira.1 Não cabe aqui discutir de forma profunda os aspectos que levaram à chegada de Vargas ao poder, nem mesmo destacar seus principais feitos e as características de seu governo. Entretanto, o contexto histórico brasileiro servirá como base para a análise do filme “Alma do Brasil”, filmado entre 1931 e 1932 e, portanto, inserido no período de governo varguista. O historiador José Murilo de Carvalho salienta, com extrema clareza, a mudança nos ares a partir da ascensão de Getúlio ao governo central. Segundo ele: “Com a inauguração da Segunda República, em outubro de 1930, as Forças Armadas, particularmente o Exército, se viram instaladas no centro do poder nacional de maneira muito mais decisiva do que no início da Primeira”.2 É importante perceber que, se por um lado, a Guerra do Paraguai representou um marco fundamental na profissionalização/organização do Exército brasileiro, conforme Vitor Izecksohn3 destacou com precisão, a década de 1930 foi caracterizada, entre outros aspectos, pela ascensão das Forças Armadas ao cenário político nacional. A Guerra do Paraguai continuou ganhando muito destaque após o ano de 1870, principalmente nos círculos militares. Grandes episódios e batalhas foram constantemente rememoradas, num enorme apelo patriótico. A “Batalha do Riachuelo” (11 de junho de 1865), hoje Data Magna da Marinha brasileira, assim como a “Retirada da Laguna” (1865 – 1867) são exemplos de fatos destacados pelas Forças Armadas do Brasil: A república, ao inaugurar sua galeria de patronos militares, inspirou-se inúmeras vezes nos “heróis” da Guerra do Paraguai – ícones de personificação da Pátria, figuras emblemáticas carregadas de significações simbólicas. A partir de então parece reforçada a intenção de se formar uma mentalidade voltada para reafirmar os valores militares e a
Importante ressaltar que o movimento, foi, e continua sendo, um ponto de grande discussão dentro da historiografia brasileira. Revolução ou Golpe? Ruptura ou Continuidade? 2 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 62. 3 IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997 1
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memória histórica das Forças Armadas, contribuindo para a construção da identidade nacional.4
Neste sentido, “Alma do Brasil”, filmado no então Mato Grosso (atualmente estado do Mato Grosso do Sul) se destaca por dois motivos principais; é o primeiro filme de reconstituição histórica inteiramente sonorizado5 feito no Brasil, e é o representante de uma região afastada dos grandes centros de decisões políticas e até mesmo de circulação de produções cinematográficas da época.6 O cinema chegou ao Brasil no ano seguinte à marcante exibição dos irmãos Lumière 7 em Paris, no ano de 1895. As “imagens em movimento” causaram grande repercussão, conforme destaca-se na citação: No Brasil, a primeira exibição ocorreu no dia 8 de julho de 1896 no n° 57 da Rua do Ouvidor, na então Capital Federal Rio de Janeiro. As imagens foram projetadas por um curioso aparelho estranhamente chamado de Omniógrafo. Como não poderia ser diferente, a realização deste importante evento foi noticiada e saudada pela grande maioria dos jornais impressos da época.8
“Alma do Brasil” insere-se num período bastante frutífero da história audiovisual brasileira, quando os filmes mudos já cediam espaços às produções faladas.9 Embora o governo de varguista tenha incentivado a prática cinematográfica em território brasileiro, conforme é destacado por Wagner Pinheiro Pereira: “Getúlio Vargas elaborou o decreto-lei nº 21240, em abril de 1932, que previa o atendimento da maior parte das reinvindicações feitas por cineastas e educadores, estabelecendo incentivos para a produção de filmes que fossem capazes de contribuir para o aprimoramento educacional do povo brasileiro”10, o filme “Alma do Brasil” não obteve benefícios junto ao governo, sendo, ao invés disso, censurado em alguns trechos – aqueles nos quais Bertoldo Klinger aparecia.
BIBIANI, Regina Elísia de M. L. Imagens e Símbolos da Guerra do Paraguai: uma estratégia de construção da memória e do Exercito e da memória nacional. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2003. Dissertação (Mestrado). 5 A cópia que se tem acesso hoje em dia, disposta na Cinemateca Brasileira, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e até mesmo no Youtube, não possui som. 6 GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. 115 p. 7 Auguste (1864-1948) e Louis Lumière (1862-1954), considerados os inventores do cinematógrafo. 8 NEVES, Alexandre Aldo. Luz, Câmera, Ação! Entre camalotes, jagunços e vaqueiros: a produção cinematográfica em Mato Grosso do Sul. In: FERRAZ, Claúdio Benito e NEVES, Alexandre Aldo (Orgs.). Filmando em Mato Grosso do Sul: O cinema popular e a formação da identidade regional. Dourados: Ed. UFGD, 2012. p.20. 9 Para um estudo aprofundado ver: FREIRE, Rafael de Luna. A conversão para o cinema sonoro no Brasil e o mercado exibidor na década de 1930. In: Significações – Revista de Cultura Audiovisual. Dossiê História e Audiovisual. v. 40, nº 40, 2013. Pp. 29-51. 10 PEREIRA, Wagner Pinheiro. O Poder das Imagens: Cinema e Política nos Governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. p. 22. 4
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O enredo de “Alma do Brasil” é bem direto, partindo das manobras militares que, lideradas por Klinger, partiram em direção ao túmulo do coronel Camisão, o filme “viaja no tempo”, realizando a reconstituição histórica dos últimos acontecimentos da Retirada da Laguna. Para isso, possui como uma espécie de “roteiro oficial”, o livro escrito por Alfredo Taunay, que será debatido adiante.
A “Retirada da Laguna” e o heroísmo brasileiro Ocorrida entre os anos de 1865 e 1867, a Retirada da Laguna é um dos acontecimentos mais marcantes de toda a Guerra do Paraguai. Em 1865, uma coluna partiu de São Paulo em direção ao Mato Grosso, região até então ocupada pelas tropas paraguaias: A invasão paraguaia de Mato Grosso levantou em todo o Império imensa comoção. Ordenou-se a convocação de 12.000 homens da Guarda Nacional para socorrê-la. Esse corpo de exército que deveria repelir os paraguaios do sul do Mato Grosso e invadir o Paraguai pelo norte nunca se organizou. Em vez disso enviou-se uma coluna expedicionária de São Paulo, composta basicamente de militares de infantaria e artilharia que, partindo em julho de 1865, só chegou ao teatro de operações em janeiro de 1867. E, mesmo assim, muito reduzida pelas doenças ocasionadas pela inclemência do clima e do terreno pantanoso durante uma marcha de 2.200 km.11
Os anos que se seguiram foram profundamente retratados por Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay (1843 – 1899)12, o futuro Visconde de Taunay, em seu livro homônimo. Taunay participou da jornada, integrando a Comissão de Engenheiros. Desta forma, atuando junto às tropas, faz um relato extremamente minucioso. Lançado em francês, em 1868 – com apenas 50 páginas – e um ano após o término do conflito, em 1871 – versão integral13 – o livro a “Retirada da Laguna” é hoje uma obra clássica da historiografia acerca da Guerra do Paraguai. Analisada por diversos autores, entre eles a historiadora Ana Paula Squinelo, a obra de Taunay se configura como uma narrativa fundamental para que se possa instaurar um debate acerca do dia a dia das tropas brasileiras no front.14
CARDOSO, Athos. Introdução. In: TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. p.17. 12 Nascido no Rio de Janeiro, Taunay fez Bacharelado em Ciências Físicas e Matemáticas. Engenheiro militar, deputado por Goiás em duas legislaturas, senador por Santa Catarina e presidente das províncias de Santa Catarina e do Paraná. (CARDOSO, Athos. Introdução. In: TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. 175 p.). 13 Com base em SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002. 144 p. 14 Outras obras de grande importância para a historiografia do conflito foram escritas por Dionísio Cerqueira e André Rebouças. “Reminiscências da Campanha do Paraguai” e “A Guerra do Paraguai”, respectivamente. 11
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[O livro de Taunay] Colaborou, portanto, para que as primeiras interpretações – corretas ou não – sobre o evento começassem a ser registradas e divulgadas. Fortaleceu a memória e corroborou para alimentar, nas décadas seguintes, a história.15
Tal interpretação decorre da análise de que Taunay escreveu sua obra posteriormente, não diretamente nos campos de batalha. Apesar de estar baseado em seu diário de campanha, o livro contou com uma grande dose de rememoração de personagens e acontecimentos. A característica seletiva da memória influenciou, decisivamente, em suas escolhas e relatos. Representante da historiografia tradicional, esta obra possui inúmeros elementos que contribuíram para a construção/consolidação de um viés interpretativo patriótico do confronto entre aliados e paraguaios. O livro de Taunay expõe, detalhadamente, um conjunto de falhas graves da empreitada – algo incoerente em relação à exaltação percebida nos escritos dos demais autores desta mesma corrente. Tal fato é destacado por Mário Maestri: O relato desvela cenários em contradição com a retórica patriótico-militarista habitual nessa literatura: operação arriscada e mal planejada, decidida por oficiais sedentos de consagração; o medo, o suicídio, a indisciplina e a deserção; o abandono de combatentes doentes pelos soldados e pelo comando; o hábito das tropas imperiais do saque. 16
O relato de Taunay contribui, de forma decisiva, para transformação de uma manobra arriscada e malsucedida, levada a cabo por um comandante de atitudes vacilantes, em um grande marco nacional, símbolo de orgulho para o exército brasileiro. O coronel de infantaria Athos Eichler Cardoso deixa clara a importância deste episódio: “Em janeiro de 1867 apenas 1.300 homens chegaram a Nioac, abandonada pelo inimigo, para escreverem a mais gloriosa página de nossa História Militar: a Retirada da Laguna”.17 O coronel Morais Camisão é destacado por Athos Cardoso como um comandante que precisava “provar” suas habilidades. Alguém que vivia “uma forte pressão psicológica”18, após participar do abandono à cidade de Corumbá, quando nos meses iniciais do conflito, os paraguaios avançaram pelo Mato Grosso. Embora as atitudes inconstantes de Camisão sejam descritas no livro, é grande a exaltação de sua valentia, glória e honra, tal ideal atinge seu ápice no momento em que sua morte é relatada. Nas palavras do próprio Taunay, ao destacar o estágio terminal do coronel Camisão: SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002. p. 62. 16 MAESTRI, Mário. A Guerra no Papel: História e Historiografia da Guerra no Paraguai (1864 – 1870). Passo Fundo: PPGH/UFP, 2013. p.235. 17 CARDOSO, Athos. Introdução. In: TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. p.17. 18 Ibidem. 15
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Já quase não se fazia sentir entre nós a autoridade; ela fora sempre, desde o começo, muito vacilante nas mãos do coronel Camisão, enquanto tinha de tomar a iniciativa de uma decisão ou escolher entre vários pareceres e alternativas diversas; tornara-se, é verdade, mais firme quando só tivemos reveses que suportar; e para o fim chegara até o heroísmo, quando, por uma abnegação cujo esforço certamente lhe custou a vida, o comandante abandonou os nossos doentes para salvar o corpo de exército; desde porém que o cólera lhe atacara, ia tudo à mercê do acaso: sentia-se que era indispensável outro chefe.19
Numa guerra onde o império sequer detinha um exército bem organizado, a falta de estrutura tornou comum o acontecimento de erros no teatro das operações. O episódio da Retirada da Laguna foi um exemplo de uma ação desastrosa, que culminou na morte de grande parte dos envolvidos. Ana Paula Squinelo corrobora a esta questão, expondo que: Os oficiais do alto comando militar possuíam conhecimento das carências bélicas da coluna, porém não deixaram de efetivar a longa marcha. Taunay relatou todas essas inquietações, problemas e enfrentamentos com os paraguaios. Assumiu o fracasso da expedição, mas narrou de forma romântica, épica e honrosa o desastre da Retirada. O que se constituiu em derrota para o exército brasileiro adquiriu, nas sucessivas páginas de sua obra, outra dimensão. Em nome da pátria a glória prevaleceu.20
Entre os participantes, além do coronel Camisão, outro homem da expedição ganhou destaque no relato de Taunay. José Francisco Lopes, o Guia Lopes, teve seus atos fortemente relatados. Homem simples, que sofreu diretamente com a invasão paraguaia ao território brasileiro, Lopes acompanhou a expedição, guiando os rumos da tropa. De acordo com o Visconde de Taunay, Guia Lopes: “De uma coisa só tinha orgulho: o conhecimento do terreno – ambição legítima afinal de contas, porque foi a nossa salvação”.21 A maestria com a qual Taunay desenvolveu seu texto é capaz de atrair facilmente seus leitores. A áurea patriótica que permeou o discurso presente no livro orientou a percepção de um discurso bem romântico nas linhas dadas pelo autor. “Sem dúvida, ele [Taunay] teve o mérito de não só registrar, como imortalizar a Retirada da Laguna através de uma narrativa na qual os atores históricos agem como personagens de empolgantes romances”.22 Por fim, Mário Maestri destaca a relevância que esta obra alcançou e continua alcançando: “A obra [Retirada da Laguna] prosseguiu e prossegue motivando estudos, pinturas, esculturas,
TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão Brasília: Senado Federal, 2011. p. 136. 20 SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002. p. 64. 21 TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 47. 22 SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002. p. 63. 19
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monumentos, comendas, concursos, celebrações patrióticas, jogos educativos, etc., patrocinadas sobretudo pelo Exército e pelos poderes públicos”.23
A exaltação histórica de um marco A importância que o episódio da Retirada da Laguna ganhou é evidente. Da mesma forma, a compreensão de que foi a partir do relato de Taunay que tal processo foi aprofundado, não deve ser esquecida ou deixada de lado. Ana Paula Squinelo destaca a super dimensão que este acontecimento ganhou, principalmente, na região do Mato Grosso. A historiadora sul matogrossense defende a tese de que a Retirada da Laguna foi o principal tema utilizado por intelectuais da região para construir um ideal heroico de “grandes homens”: Como exemplo dessas práticas [memorialísticas e de exaltação patriótica regional] cito a que tem sido sistematicamente utilizada pelos historiadores mato-grossenses em torno do tema A Retirada da Laguna. Na verdade, o conjunto de episódios ocorridos no espaço conhecido como província de Mato Grosso e que integrou a Guerra do Paraguai ganhou, nas mãos desses escritores comprometidos com a manutenção do status quo, narrativas que deram à história fatual, habitualmente praticada, uma conotação peculiar.24
Nesta perspectiva, os acontecimentos retratados por Taunay servem como pano de fundo para uma construção onde os aspectos regionais sejam valorizados, assim como alguns dos personagens locais. Ainda de acordo com Squinelo: Nelas [narrativas] prevaleceram atos de bravura e heroísmo: trata-se de uma escrita da história onde não há espaço para derrotas nem para homens comuns. Alguns estudiosos, como, por exemplo, José de Mesquita e Virgílio Corrêa Filho (1887-1973), devem ser lembrados como os principais construtores de heróis locais.25
É neste tom que o filme “Alma do Brasil” é construído. Visando destacar o exemplo máximo do patriotismo brasileiro, e, também, ressaltar a região onde tal fato ocorreu, a produção de Líbero Luxardo apresenta-se ao historiador como um magnifico exemplo acerca dos usos dos filmes para a construção de determinados imaginários. Além disto, o que poderia ser apenas mais uma produção de pouca importância, devido, principalmente, à falta de recursos para a sua realização, tornou-se, a partir do envolvimento direMAESTRI, Mário. A Guerra no Papel: História e Historiografia da Guerra no Paraguai (1864 – 1870). Passo Fundo: PPGH/UFP, 2013. p. 491. 24 SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002. pp.59-60. 25 Ibid. p. 60. 23
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to do general Bertoldo Klinger, num aspecto fundamental à promoção de um tom memorialístico, atrelado à propaganda dos ideais enxergados por Klinger como natos às Forças Armadas. O paulista Líbero Luxardo se destacou como o diretor de outros vários filmes. Entre eles, “Caçando Feras” (1937), “A luta contra a morte” (1938), “Aruanã” (1962), “Um dia qualquer” (1964) e “Marajó, barreira do mar” (1966). Filho de um fotógrafo, Líbero Luxardo aprendeu, desde muito jovem, técnicas fotográficas e cinematográficas. Após participar como cinegrafista de uma expedição rumo ao centro-oeste do país, Luxardo estabeleceu-se em Campo Grande, onde passou a projetar a produção de seu primeiro filme – “Alma do Brasil” (1932). Esta produção se destacaria como o primeiro e único longa metragem realizado pela Filmes Artísticos Nacionais (FAN-Filmes), empresa fundada junto com Alexandre Wulfes, o produtor de “Alma do Brasil”.26 Vale ressaltar que, além de diretor, Líbero Luxardo também atua como ator do filme, representando o papel do Coronel Morais Camisão.
Imagem 1: Abertura do filme “Alma do Brasil”.
A abertura de “Alma do Brasil” revela o tom que acompanhará toda a produção. Ao ressaltar a paisagem natural mato-grossense e destacar a bandeira brasileira, no canto superior direito, ela mostra a identificação da “alma brasileira” com a valorização dos aspectos nacionais. Vale lembrar que o nome que seria dado ao filme não remete diretamente ao episódio relatado por Taunay. Nas palavras do próprio diretor:
MIRANDA, Luiz Felipe; RAMOS, Fernão. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Senac, 2000. 667 p.
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Quando pensamos em fazer este film não tínhamos título para o argumento. Mas a região onde palmilharam os bravos da Retirada da Laguna... aquellas cruzes com os braços ressequidos erguidos numa attitude symbólica...emfim todo o passado com as suas dores e as suas glórias... e o presente com sua symphonia que é um cântico de ufania a alma brasileira e depois, as Manobras de Nioac, com os seus soldados garbosos a pisar aquelle mesmo rincão exhibindo toda a grandeza do seu preparo, num verdadeiro contraste com o passado, e aquella vibração de movimento que demonstra o garbo da mocidade brasileira, adestrada no manejo da arma e tendo o mesmo espírito de resignação dos seus irmãos do passado, tudo emfim fez sentir que era a nossa alma, sempre a mesma, ardorosa e patriótica, a palpitar por este querido Brasil; e assim, o título veio naturalmente.27
O trabalho realizado por Ana Paula Squinelo expõe os esforços empreendidos por diversos intelectuais da região do Mato Grosso no que diz respeito à construção de uma memória coletiva que preservasse os valores heroicos e patrióticos presentes nas primeiras narrativas acerca da Guerra do Paraguai. Entre seus destaques, figura a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT), fundado no ano de 1919. A autora ainda ressalta a constante presença do maior conflito platino entre os números da revista, assim como o seu ideal de “legar aos cidadãos mato-grossenses uma visão épica do conflito”.28 Esta linha de análise aponta para o fortalecimento da historiografia tradicional sobre o conflito. É importante destacar o sucesso alcançado por tal interpretação no Brasil, justamente nas primeiras décadas do século XX. A historiadora sul-mato-grossense conclui sua análise, citando que: Em inúmeros artigos publicados na Revista do IHGMT, a Guerra do Paraguai, bem como os heróis locais que dela participaram, foram, durante o século XX, relembrados e rememorados. Devo ressaltar, entretanto, que neles quase não são mencionadas as pessoas simples que estiveram combatendo nos campos de batalha. A história narrada através da trajetória de vida dos “grandes homens” parece ter sete vidas”.29
Embora o livro de Taunay não se configure como um exemplo clássico da chamada historiografia tradicional, ao não possuir uma narrativa centrada apenas em aspectos políticos ou na exaltação dos oficiais, mas, também mostrar suas falhas de comando, é indiscutível o tom patriótico de suas linhas. O fato de mostrar os erros cometidos pelo comando não diminui o perfil de seu texto, pois todos os relatos servem, para, ao final, abrir uma perspectiva de análise onde os aspectos morais dos oficiais ganhem espaço.
UMA INICIATIVA que está procesando uma boa propaganda de Matto Grosso. Folha da Serra, Campo Grande-MT, fevereiro de 1932. Apud. GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. p. 50. 28 SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002. p. 72. 29 Ibid. p. 75. 27
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É de fundamental importância evidenciar o fato de o livro “A Retirada da Laguna”, de Taunay, ser a base para a construção do enredo do filme “Alma do Brasil”. Em inúmeras passagens, inclusive, há citações diretas da obra, o que revela uma tentativa de transpor para as telas um conteúdo “mais fiel” aos acontecimentos. Conforme mostrado por Robert Rosenstone, uma análise feita acerca da qualidade de um filme histórico não deve levar em conta sua proximidade com as teses mais aceitas ou com aspectos documentados, mas sim, buscar evidenciar o porquê de tais escolhas. Em suas palavras: “É impossível julgar um filme histórico com as normas que regem um texto, já que cada meio tem seus próprios e necessários elementos de representação”.30 Ainda na abertura, os letreiros iniciais ressaltam os ideais presentes na produção cinematográfica, construída para ser exibida em diferentes partes do território brasileiro – como realmente aconteceu31 – revelando o orgulho nacional em poder realizar uma obra de grande dimensão para a época: “(...) este trabalho documentário do esforço de nossa Terra correrá todo nosso vasto Paiz sem vizar interesses pecuniários, mas sim, provar que se pode fazer films tão bons quanto os melhores que importamos com sacrifício para a riqueza Nacional”. 32
Os três minutos iniciais do filme são destinados à apresentação e destaque das belezas e riquezas naturais da região mato-grossense. Exaltando a fauna e a flora, “Alma do Brasil” abusa dos chamados planos gerais, onde a paisagem – repleta de matas fechadas e animais peçonhentos – reforça o ideal de bravura dos envolvidos na Retirada. Dividido em duas grandes partes, “Alma do Brasil” ganha um tom de documentário ao retratar as manobras da Circunscrição Militar comandada pelo General Bertoldo Klinger, em visita ao túmulo do Coronel Carlos de Morais Camisão. A partir daí o filme reconstrói os acontecimentos da Retirada da Laguna, focalizando o ano de 1867, e, desta forma, dando destaque aos momentos mais críticos da jornada.
“Es imposible juzgar una película histórica con las normas que rigen un texto, ya que cada medio tiene sus propios y necesários elementos de representación”. ROSENSTONE, Robert. El pasado en imágenes: el desafío del cine a nuestra ideia de la historia. Barcelona: Ariel, 1997. p. 37. [tradução do autor] 31 De acordo com o levantamento feito pela Cinemateca Brasileira, o Circuito Exibidor de “Alma do Brasil” contou como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Manaus e até mesmo Lisboa, em Portugal.Disponível:http://cinemateca.gov.br/cgibin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang =P&nextAction=search&exprSearch=ID=000105&format=detailed.pft Em GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. p. 20, o autor destaca a exibição do filme na cidade de Campo Grande. 32 ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FAN-Filmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 26s. 30
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Imagem 2: Manobras militares a caminho do túmulo de Camisão. (05min31s)
No que concerne à exaltação dos aspectos regionais do Mato Grosso, aparece a importante figura do Guia Lopes. Personagem de destaque no relato de Taunay, Lopes representa, em “Alma do Brasil”, o braço direito do coronel Camisão. No trecho abaixo ele aparece em seu cavalo, orientando na condução das tropas, o plano inteiro confere, junto à projeção de sua imagem elevada, imponência à sua figura. Na legenda, anterior à exibição da cena, há a citação: “O GUIA LOPES, salvação e esperança dos míseros retirantes guiava-os por atalhos que só ele poderia conhecer”.33 Ana Paula Squinelo destaca que a figura de Guia Lopes representava, de forma profunda, os ideais presentes na consolidação, anos mais tarde, do Mato Grosso do Sul como um estado desvinculado, independente. De presença firme e sem medo Guía Lopes se configurou, depois da divisão do estado, no ideal de “herói” de Mato Grosso do Sul. É o valente homem da fronteira, que conhece os bosques, as estradas, os animais e o ritmo das águas. Sua coragem e obstinação pôs sua vida e seus conhecimentos da geografía à disposição do Cel. Camisão. As características físicas e os atributos dados a ele o identificam com os ideais do Povo do Mato Grosso do Sul.34
Ibid. 07min50s. “De presencia firme y sin miedo Guía Lopes se configuró, después de la división del estado, en el ideal de “héroe” de Mato Grosso del Sur. Es el valiente hombre de la frontera, que conoce los bosques, las carreteras, los animales y el ritmo de las aguas. Su coraje y obstinación hizo poner su vida y sus conocimientos de geografía a la disposición del Cel. Camisão. Las características físicas y los atributos dados a él lo identifican con las ideas del Pueblo de Mato Grosso do Sul.” SQUINELO, Ana Paula. Alma do Brasil: la Guerra del Paraguay en la produción cinematográfica brasileña. Jornadas de Montevideu. 2014 (no prelo). 20 p. [tradução do autor]. 33 34
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Imagem 3: Guia Lopes em seu cavalo (07min56s)
De acordo com tudo o que foi apresentado até aqui, percebe-se a inserção do filme “Alma do Brasil” num contexto de exaltação da região mato-grossense, processo este, levado a cabo pela elite local. Ao promover a reconstituição histórica da Retirada da Laguna, o filme exalta um marco central, basicamente para os setores militares e, também, alinha-se à corrente historiográfica tradicional acerca da Guerra do Paraguai.
Do coronel Camisão ao general Bertoldo Klinger: um diálogo possível. É notório o destaque do coronel Camisão durante a Retirada da Laguna. Representante de um fato heroico e um dos personagens mais importantes do episódio, ele inspirou a formalização de uma exaltação às Forças Armadas brasileiras, representadas pelo Exército. É neste sentido que o filme “Alma do Brasil” contribui para uma interpretação que coloque as práticas militares – fundamentalmente as heroicas – como uma obrigação à instituição, que passava por importantes mudanças durante a década de 1930. Em “Condicionantes sociais na composição do alto oficialato militar brasileiro (18501930)”, de Ernesto Seidl destaca algumas características fundamentais da trajetória de Bertoldo Klinger na esfera militar, assim como suas origens e principais convicções políticas. O autor conclui que:
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Klinger dedicaria grandes esforços em divulgar suas posições com respeito à “identidade militar” e às “tarefas do Exército nacional”, especialmente através de artigos na revista e em jornais. Inicialmente centrado em defender as técnicas e os armamentos ale-
mães, à medida que adquiriu maior notoriedade e alcançou postos mais elevados na hierarquia passou a tomar posições mais explícitas e marcadas frente aos mecanismos de ascensão militar e ao “universo da política”. Em suma, dado o desfavorecimento imposto por suas condições sociais, cujos recursos tinham pouco valor objetivo no interior da esfera militar, Klinger tendia a adotar estratégias de maior risco, como fica claro em seu incessante questionamento das regras que regulavam a carreira de oficial. Com efeito, não há nada de fortuito no fato de ele se opor com tanta veemência a mecanismos que valorizavam recursos dos quais não dispunha, ou seja, aqueles com base em relações pessoais e materializados no “favoritismo”, “filhotismo”, “apadrinhamento” e outros equivalentes. Em contrapartida, lançava-se na “luta”, como dizia, pela valorização do “oficial de tropa” e do “serviço arregimentado”, da “instrução” e “preparação técnica” e daquilo que chamava de “religião” e “higiene” do “trabalho”. 35
De acordo com as ideias de Bertoldo Klinger, feitos como os atos heroicos de a Retirada da Laguna deveriam ganhar destaque nacional, pois seriam os representantes do verdadeiro espírito militar. Grande escritor 36, Klinger também participou de alguns dos acontecimentos mais marcantes da primeira metade do século XX. O general fazia questão de ressaltar a liderança que a o exército poderia exercer, principalmente, no que diz respeito à política no Brasil. Ao tentar definir os limites do legítimo e do ilegítimo quanto à participação dos militares na “política”, por meio de categorias como defesa e interesse nacional, politicagem e verdadeira atividade política, Klinger passava também a afirmar a “vocação” das Forças Armadas para o papel de liderança do país, identificando-as com os “mais altos valores da nação”. Entretanto, ainda que apresentasse tais concepções, seu envolvimento mais direto em movimentos de cunho político só se daria no período próximo às mudanças ocorridas em 1930, das quais foi um dos protagonistas. 37
Esta última citação deixa clara a importância da atuação do general no movimento de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder central. Apoiando o grupo varguista, Klinger chegou a assumir o comando do Estado-Maior das chamadas “forças pacificadoras” e chefiar a Polícia do Distrito Federal. Apesar de ter sido beneficiado por este apoio à Aliança Liberal, tornando-se, inclusive, general como uma espécie de “prêmio” pelo apoio ao movimento, Klinger distanciouse do novo governo justamente por perceber que tais benefícios – que inúmeros receberam – feriam as bases do Exército brasileiro38. Ao se estabelecer na região mato-grossense, Bertoldo Klinger passou a representar uma importante liderança naquele espaço. Sua importância para a realização do filme “Alma do Brasil”
SEIDL, Ernesto. Condicionantes sociais na composição do alto oficialato militar brasileiro (1850-1930) In: FLÁVIO, M. Heinz (org.) História Social de Elites. São Leopoldo: Oikos, 2011. p.21. 36 Destaque para "Narrativas autobiográficas" (1944, 1946, 1948, 1949, 1950, 1951, 1953. 7 v) e "Parada e desfile" (1958). 37 SEIDL, Ernesto. Condicionantes sociais na composição do alto oficialato militar brasileiro (1850-1930) In: FLÁVIO, M. Heinz (org.) História Social de Elites. São Leopoldo: Oikos, 2011. p.22. 38 Ibid. p. 23. 35
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foi gigantesca, desde o fornecimento de uniformes e barracas ao de cavalos da tropa. 39 A produção contou com baixíssimos recursos, sem a ajuda de Klinger é bem possível que sua configuração pudesse ser outra, ou sequer nem existisse. Os relatos – entre matérias de jornais e entrevista com personalidades que atuaram diretamente no filme – presentes no livro “Alma do Brasil: O primeiro filme de reconstituição histórica inteiramente sonorizado” de José Octávio Guizzo mostram bem os principais aspectos que envolveram a produção desta obra cinematográfica. Entre os aspectos vinculados à composição do elenco das filmagens, a entrevista de Líbero Luxardo identifica muito bem de que forma isto ocorreu. O diretor destacou a sua visita a um famoso cabaré da cidade de Campo Grande: Nós fomos à noite para esse cabaré, e lá eu mandei parar a música, porque o cabaré não fechava nunca, o nome era esse Fecha Nunca, era um Bas-Fond terrível. (...) e comecei a falar prá aquela gente e falei, falei, falei, eu não sei o que aconteceu, eu acho que eu estava atuando, porque quando eu terminei de falar, eu disse assim: o caminhão está aí fora, quem quiser servir esse Brasil, quem quiser trabalhar pela grandeza de nossa terra, revivendo a página mais brava, mais heróica deste país, embarca neste caminhão e sigam comigo.40
A interação com o público do cabaré foi perfeita, e a falta de atores e atrizes foi resolvida. As palavras de Líbero Luxardo deixam claros os princípios nos quais o filme foi realizado. Reviver um episódio de bravura e heroísmo, construindo uma visão onde o orgulho pela pátria pudesse ser disseminado, de forma direta, através de um “filme histórico”. Com um elenco formado por atores e atrizes amadores, o destaque se dava pela presença de Conceição Ferreira. Nascida em Portugal, Conceição era, de fato, uma grande atriz, e é dela um papel extremamente importante para o enredo que é desenvolvido pelo filme. Vivendo uma mãe que leva seu filho recém-nascido aos braços durante toda a jornada, a atriz representa o amor materno, numa alusão ao sentimento de pertencimento ao país, ao espírito de protegê-lo contra o perigo iminente.
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GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. 115 p 40 LUXARDO, Líbero. Depoimento do diretor In: GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. p. 91. 39
Imagem 4: Uma mãe com o filho nos braços em meio ao cenário catastrófico. (20min03s)
Ainda em entrevista concedia a Guizzo, Luxardo destacou a intenção de criar um vínculo entre os acontecimentos heroicos do passado, com o presente do Mato Grosso da década de 1930. O filme, que até então havia surgido de forma bem improvisada, foi ganhando “corpo” a partir da entrada de Bertoldo Klinger no fornecimento de materiais, no apoio logístico: (...) feito num local onde estava a sepultura do comandante, o coronel Camisão, comandante da Retirada da Laguna, chamado Jardim, eu disse assim: nós podemos levar o filme pra lá e diante daquela sepultura onde estão os generais, estava o Kilnger, estava depois o que foi Marechal Dutra, Presidente da República e uma porção de generais ilustres. (...) aí está o nome do filme ALMA DO BRASIL, quer dizer, o Brasil de ontem, o Brasil de hoje, o Brasil do passado e o Brasil do presente, o Brasil que fez a Retirada da Laguna por processos empíricos e o Brasil que fez essa retirada agora feita pelo general Bertoldo.41
Importante notar que, a princípio, Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes estavam envolvidos no projeto de outro filme, que se chamaria “Aurora do Amor”. A falta de recursos para a produção, e o contato com Bertoldo Klinger, fez com que a ideia de se produzir um filme relacionado à Retirada da Laguna ganhasse força. José Guizzo destaca que: Abandonada a ideia de filmagem de Aurora do Amor, desfeito o seu elenco, e bolado um novo projeto de filmagem, Líbero e Alexandre foram apresentados ao General Bertoldo Klinger pelo pai deste último. Klinger ouviu a ideia daqueles dois jovens entusiastas. Eles queriam o seu “nihil obstat” para filmar as manobras e a partir delas elabora-
GUIZZO. Loc. Cit.
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rem um filme sobre a Retirada da Laguna. Gostando do projeto, o General não só lhe deu sinal verde como lhes prometeu todo e qualquer apoio à iniciativa. 42
Como dito, as manobras militares na região, que culminaram com a visita das tropas ao túmulo do Coronel Camisão deram início ás filmagens. Numa cerimônia formal, numa espécie de culto à memória de Camisão, diversos generais, dentre eles o maior incentivador da produção – Bertoldo Klinger. As palavras soam: “Deante daquele mármore frio, o passado cria forma, cria asas e voa, atirando o hálito quente das cousas que ainda não foram olvidadas”.43 Complementa: “LAGUNA... O palco de tão triste reminiscências, parece um retiro de sonhos e divagações”44 A escolha por uma visita ao túmulo de Camisão indica uma grande percepção da importância de lugares como este para a manutenção da memória acerca de determinada pessoa.
Imagem 5: Oficiais em visita ao túmulo do Coronel Camisão. (06min08s)
O apoio de Klinger foi realmente enorme, entretanto, maior ainda seria a importância que o destaque de sua imagem ganharia, ou poderia ganhar. O seu envolvimento, como uma das lideranças da Revolta Constitucionalista de 1932 e desafeto do então Presidente da República, Getúlio Vargas. O lançamento nacional de “Alma do Brasil” ocorreu no Rio de Janeiro: “Estourado o movimento armado, com o filme pronto, seus realizadores aproveitaram a ocasião e lançam-no,
GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. p. 32. 43 ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FAN-Filmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 06min14s. 44 Ibid. 06min45s 42
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dez dias depois mais precisamente, a 19 de julho de 32, em sessão especial para a imprensa carioca. Era a sua estreia nacional”.45 A censura incidiu, não somente no que diz respeito à exibição das imagens de Klinger, mas também na imprensa da época. Em um longo levantamento, José Guizzo destaca a omissão do nome de Bertoldo Klinger em várias matérias, de diversos jornais lançados naquele período: Nova ou velha toda censura é burra e, principalmente, castradora. Não só sobre o filme a sua nefasta ação se fez sentir, mas, também, na imprensa nacional. De todas as matérias feitas sobre o ALMA DO BRASIL não se via ou lia o nome do General Bertoldo Klinger em nenhuma delas.46
O fato de o filme ter sofrido com a censura não o liberta de seus ideais patrióticos e de exaltação da figura de Camisão. Se a imagem de Klinger não foi tão bem disseminada, sua presença como uma espécie de financiador da produção, faz com que seja inegável o ganho de prestígio por sua parte. Durante toda a obra cinematográfica, existe a concentração de esforços em mostrar a bravura militar, perante tal acontecimento. Iniciadas em 1931, logo após a semana de comemoração pela independência brasileira, o filme possui uma linha de continuidade moderna para a época, tornando-a imune a um sentimento enfadonho por parte do espectador A direção de Libero Luxardo alinha um grande conhecimento acerca do “fazer cinema” e uma boa dose de experiência no que diz respeito ao emprego de um ritmo dinâmico para a entrada das cenas. A perseguição das tropas paraguaias, o abandono dos coléricos e a morte do coronel Camisão criam um fio condutor capaz de revelar importantes aspectos acerca dos ideais que a produção queria mostrar. Nesta linha, a seleção de tais acontecimentos guia o espectador num ambiente onde tudo possa desaguar em mares de bravura e patriotismo, até mesmo um ato extremamente polêmico e incondizente com o espírito militar, como o abandono de combatentes doentes à própria sorte. Camisão, vivido pelo próprio diretor do filme, Libero Luxardo, é o principal personagem do filme. Entretanto, ele divide espaço com Guia Lopes (Francisco Xavier), com o tenente galã (Adolpho Marconi) e a mãe com seu filho aos braços (Conceição Ferreira). Em resumo, tais ações conseguiam expor com grande força um culto aos feitos militares da Retirada. As cenas abaixo retratam o salvamento de um bebê, que dormia sob uma cabana de madeira quando os paraguaios, numa tentativa de dizimar os brasileiros, realizam a queimada da macega. O heroís-
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GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. p 68. 46Ibid. p. 68. 45
mo do tenente se inspira na legitimação de um ato de extrema bravura, onde um militar põe sua própria vida em risco para salvar a vida de outro.
Imagem 7: Militar salva um bebê das chamas. (29min10s)
Imagem 8: O militar devolve o bebê à sua mãe e ela, emocionada, agradece com ternura. (30min44s)
A composição desta cena ganha importância, tendo em vista a montagem dos planos e enquadramento. Apesar de não utilizar o primeiro plano como estratégia, Líbero Luxardo apoiou-se no enquadramento de câmera para dar maior sentido ao ato do militar. O enquadramento de câmera, de baixo pra cima, expõe a superioridade do oficial perante a situação na qual se en-
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contra, afinal, não há nada que um militar brasileiro não enfrente de “peito aberto”. A luz ao fundo é capaz de representar a salvação, surgindo como uma “nova esperança”. A mulher representada por Conceição Ferreira não é a única mostrada em “Alma do Brasil”, outras, que acompanham seus maridos durante a expedição ganham vida através do papel desempenhado por figurantes. Ao apresentar a presença feminina no episódio, o filme complementa sua noção de pertencimento; se a Retirada da Laguna representava a “alma brasileira”, esta alma também contou com a participação feminina. No caso específico abaixo, a desesperança com os rumos da missão toma conta das três mulheres, que sofreram junto com os homens todas as ações catastróficas da jornada.
Imagem 9: Mulheres acompanhando as tropas. (20min37s)
A inspiração na obra de Taunay é muito clara, há, inclusive, citações retiradas diretamente do livro sobre a Retirada da Laguna. Guizzo relata este fato, segundo ele: “Dos planos à realização, seus diretores sempre foram fieis aos acontecimentos históricos da Retirada da Laguna, haja visto que eles tinham como roteiro cinematográfico, se assim pudermos chamar, o próprio livro de Taunay”47. Tal característica torna-se evidente quando o episódio de abandono dos coléricos é exposto. O que poderia ser considerado um fato imoral perante os preceitos de companheirismo, transformou-se, num tom extremamente vinculado à obra de Taunay, num exemplo de decisão tomada por uma liderança nata. Ao retratar tal acontecimento, o livro explica que:
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GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. p 104. 47
Depois de expor em breves palavras a situação, a urgência em avançar, sem o que toda gente morreria, a impossibilidade agora bem verificada e reconhecida por todos de levarmos mais longe os docentes, declarou aos comandantes que, sob sua própria responsabilidade e segundo o rigor do que considerava um dever, os coléricos, exceção feita dos convalescentes, iam ser abandonados naquele pouso! Nem uma voz se ergueu contra esta resolução, cuja responsabilidade inteira ele assumia generosamente; longo silêncio acolheu a ordem e consagrou-a.48
Nesta parte, “Alma do Brasil” faz questão de citar Taunay. O ápice do episódio torna-se o pilar fundamental capaz de estabelecer um elo entre os sentimentos de Camisão enquanto ser humano e seus deveres – prezar pelo bem da tropa – enquanto um dos líderes da expedição: Tudo se entenebrecia a cada momento em torno de nós. Nada era mais digno de inspirar simpatia e piedade do que o aspecto do coronel. (...) Pesar, remorso, perturbação de espírito no apreciar os motivos que o tinham feito obrar e que ele ainda parecia discutir no seu íntimo.49
Num arranjo estabelecido em direta consonância com o livro escrito por Taunay, o filme destaca o pedido de clemência, por parte dos brasileiros, para com os doentes deixados para trás. “Entregávamos ao inimigo mais de 130 coléricos sob a proteção de um mero apelo à sua generosidade nestas palavras traçadas em grandes letras sobre um cartaz pregado a um tronco: ‘Compaixão para com os coléricos’”.50
Imagem 10: Pedido de clemência dos brasileiros. (38min08s)
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TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 126. 49 Ibid. p. 128. 50 Ibid. p. 128. 48
O abandono dos doentes é apresentado como uma necessidade perante os problemas enfrentados pela tropa brasileira. A aproximação dos paraguaios forçava a tomada de atitudes radicais, visando proteger o que ainda restava da expedição. Aqui cabe a reflexão acerca da forma como o exército de Solano López é retratado. Apresentado como bárbaro, ele é criticado por não poupar a vida dos soldados brasileiros afetados pela cólera, o que coloca em perspectiva a comparação entre as ações dos dois exércitos. Enquanto o brasileiro – num dilema moral – se vê obrigado a deixar os doentes para trás, os paraguaios – que poderiam agir de forma diferente – aniquilam os combalidos. A dicotomia delineada nos trechos em que o exército paraguaio ignora o pedido de clemência por parte dos brasileiros, é o auge de uma construção onde os paraguaios sejam apresentados como “brutos” e “desalmados”. Na imagem abaixo, a placa deixada pela tropa brasileira, ao aparecer jogado ao chão após o extermínio dos doentes, por parte dos paraguaios, representa a destruição de qualquer sentimento verdadeiramente “humano” nos campos de batalha. Assassinar os doentes brasileiros era tentar assassinar o espírito honroso que permeava as ações do exército imperial.
Imagem 11: “Palavras ao chão”, representando o ataque paraguaio aos doentes. (38min21s)
Após apresentar o enfrentamento entre razão e emoção, “Alma do Brasil”, para que não restem dúvidas acerca da personalidade heroica do coronel Camisão, faz um minucioso relato sobre os momentos finais de sua vida. Também doente, o coronel é apresentado, até o fim, como
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um homem de valores, comprometido com os ideais e defesa de seus comandados. “Sobre o seu
couro, o Cel. Camisão, entregue ao ferrete mortífero do cólera, vive os seus derradeiros momentos sem perder a dignidade que tanto zelava”.51
Imagem 12: Soldados paraguaios se aproximando dos brasileiros. (16min07s)
Imagem 13: Coronel Camisão, mesmo doente, simboliza o espírito heroico brasileiro. (42min44s)
Amparado pelo Dr. Gesteira, representado por Otaviano Ignácio de Souza, Camisão, como um grande líder, pede para que seus homens recebam os cuidados médicos, ao invés dele. Tal perspectiva, deixa clara a ideia de que Camisão, por sua honra e bravura, seria capaz de doar sua
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ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FAN-Filmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 51
própria vida em troca do sucesso da tropa na jornada. Segundo o letreiro do filme: “Não é a dôr da cólera que o martiriza, mas sim o sofrer atroz dos seus soldados!”.52 Com um enredo bem encaixado, é evidente a intenção de, após apresentar Camisão proferindo as ordens de abandono dos soldados doentes, fazer surgir cenas onde sua imagem não fique “manchada”. Ao mostrar o coronel dando sua própria vida por seus homens – num espaço onde os interesses coletivos devem suprimir os individuais – o impacto gerado por qualquer ação considerada imoral é diminuído. “Trate dos homens Dr, eu sou um homem morto!”53 Tal frase é outra citação direta da obra de Taunay54, reforçando a ideia de que esta obra foi a base para a realização do filme. Complementando tais ideais, “Alma do Brasil” presta mais uma homenagem ao grande líder: “Guardado pela mata, testemunha muda do seu heroísmo e da sua grande dor, repousa o Cel. Camisão”.55 Taunay ainda destaca a serenidade de Camisão, mesmo padecendo: “Sua calma não o abandonou um instante. Soltava apenas alguns gemidos surdos, sofrendo aquilo mesmo que fazia gritar e estrebuchar aos seus companheiros de dor”.56 Enquanto muitos pensariam em curar-se, ele pensa no bem de todos, enquanto muitos gritariam de dor, ele contém suas dores. Um personagem singular, homem de bravura, exaltado numa produção cinematográfica que buscou estabelecer/fortalecer um panorama onde a relação passado-presente seja configurada a partir de princípios patrióticos. Ana Paula Squinelo, ao falar sobre a importância do filme “Alma do Brasil” para a região do Mato Grosso, também destaca o papel desempenhado por Camisão para a produção. Sua morte ganha um tom monumental, alavancada pelo foco em sua importância para salvaguardar a tropa que realizava a Retirada da Laguna. A conduta e o desempenho do Cel. Carlos Camisão se corroboram no filme e se perpetuou nas cenas finais relacionadas à figura de Camisão e seu papel na Retirada. Atingido pela cólera, Camisão é cristalizado como um ser predestinado ao heroísmo. Depois de haver conduzido as tropas militares no processo da Retirada atribuiu a si a sobrevivência da mesma.57 ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FAN-Filmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 53 Ibid. 54 TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 130. 55 ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FAN-Filmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 56 TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Traduzido da 3ª edição francesa por Ramiz Galvão. Brasília: Senado Federal, 2011. p. 130. 57 “La conducta y el desempeño del Cel. Carlos Camisão se corroboran en la película y se perpetuó en las escenas finales relacionado a la figura de Camisão y su papel en la Retirada. Atingido por el cóleramorbus, Camisão se ha cristalizado como un ser predestinado al heroísmo. Después de haber conducido las tropas militares en el proceso de Retirada atribuyó a si la supervivencia de la misma.” SQUINELO, Ana Paula. Alma do Brasil: la Guerra del Paraguay en la produción cinematográfica brasileña. Jornadas de Montevideu. 2014 (no prelo). p.16. [tradução do autor]. 52
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As últimas cenas do filme voltam a mostrar as ações da Brigada Mixta, comandada por Bertoldo Klinger. Ontem e hoje, no Mato Grosso do século XIX e no da década de 1930, os valores permanecem os mesmos: dedicação total pelo país e pela região mato-grossense (sulmato-grossense): “Hoje, iluminada pelo espírito da Paz e mocidade do Brasil faz ressonar as suas passadas cadenciadas exibindo o garbo de sua força, na mais eloquente demonstração de Amor e Patriotismo!.”58
Imagem 14: Manobrar militares no Mato Grosso em 1931: Inspiração na Retirada da Laguna.
Assim como o filme paraguaio que será analisado nesta dissertação, “Alma do Brasil” permaneceu em destaque mesmo após muitos desde o seu lançamento. É o que destaca a historiadora Ana Paula Squinelo, ressaltando o filme como um “lugar de memória”: Alma de Brasil nasceu, me parece, predestinado às recordações; tal afirmação se pode corroborar nessas constantes visitas ao passado épico da Retirada da Laguna que ganha acesso através de Alma; de fato foi a exibição recente deste filme narrativo, no 7 o Festival de Cinema ocorrido em Campo Grande em 2010 e, sua projeção no ano de 2014 no 11o Festival de Cinema do Vale do Ivinhema.59
ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FAN-Filmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 59 “Alma de Brasil nació, me parece, predestinado a los recuerdos; tal afirmación se puede corroborar en esas constantes visitas al pasado épico de la Retirada da Laguna que se accede a través del Alma; de hecho fue la exhibición reciente de esta película narrativa en el 7o Festival de Cinema que tuvo lugar en Campo Grande en 2010 y, su proyección en el año de 2014 en el 11o Festival de Cinema do Vale do Ivinhema.” SQUINELO, Ana Paula. Alma do Brasil: la Guerra del Paraguay en la produción cinematográfica brasileña. Jornadas de Montevideu. 2014 (no prelo). p. 19. [tradução do autor]. 58
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A importância de “Alma do Brasil” transcende o fato deste ter sido, conforme defende José Octávio Guizzo, o primeiro filme de reconstituição histórica inteiramente sonorizado realizado no Brasil. Uma obra prima, que apesar dos baixos recursos, ganhou relevância, sendo exibida em diversos estados do país. A reconstrução da Retirada da Laguna, com a exaltação patriótica dos personagens nela envolvidos serviu aos intuitos propagandísticos de Bertoldo Klinger e, de forma geral, da elite mato-grossense. As palavras de Ana Paula Squinelo destacam que o filme “Alma do Brasil”: “(...) se converteu em uma referência no estado e foi apropriado por uma elite que tinha e tem interesses de reviver a Retirada da Laguna, em um eterno buscar no passado ‘suas raízes’ e ‘sua identidade’ com o fim de justificar suas ações no presente e manter-se no poder”.60
Fontes Cinematográficas: ALMA do Brasil. Produção de Alexandre Wulfes. Direção de Líbero Luxardo. Brasil. FANFilmes S.A. 1932. Preto e Branco. Português. 50 min.
Referências Bibliográficas: BIBIANI, Regina Elísia de M. L. Imagens e Símbolos da Guerra do Paraguai: uma estratégia de construção da memória e do Exercito e da memória nacional. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2003. Dissertação (Mestrado). 205p. CARDOSO, Athos. Introdução. In: TAUNAY, Visconde de. A Retirada da Laguna. Brasília: Senado Federal, 2011. 175 p. CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 222 p. CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980. 341 p. CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1979. DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 617 p. FRAGOSO, Augusto Tasso. História da guerra entre Tríplice Aliança e o Paraguai. Rio de Janeiro: Imprensa do Estado Maior do Exército, 1934. 264 p. FREIRE, Rafael de Luna. A conversão para o cinema sonoro no Brasil e o mercado exibidor na década de 1930. In: Significações – Revista de Cultura Audiovisual. Dossiê História e Audiovisual. v. 40, nº 40, 2013. Pp. 29-51. GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande, 1984. 115 p.
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“(...) se convirtió en una referencia en el estado y fue apropiado por una elite que tenía y tiene intereses de revivir la Retirada da Laguna, en uno eterno buscar en el pasado ‘sus raíces’ y ‘su identidad’ con el fin de justificar sus acciones en el presente y mantenerse en el poder”.Ibid. p. 19. [tradução do autor] 60
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FUTEBOL NA VISÃO DE MAZZAROPI:
O filme “O Corintiano” como documento de compromisso a um happy-end possível
Cristiano José Pereira* RESUMO: A rivalidade entre os torcedores do Sport Club Corinthians Paulista – fundado em 1910 – e da Società Sportiva Palestra Italia (1914), denominada a partir de 1942 como Sociedade Esportiva Palmeiras, – é uma constante na história do futebol paulista e brasileiro desde o início do século XX. O conflito entre dois torcedores foi o tema central do filme “O Corintiano” (rodado em 1966 e lançado no início de 1967), de Amácio Mazzaropi. O enredo do filme culmina numa solução típica de “happy end”, gerando a paz entre os dantes irreconciliáveis torcedores fanáticos. O objetivo de nosso artigo é discutir as formas como, após vários conflitos, esta “paz efetiva” foi atingida nas últimas cenas do filme “O Corintiano”. PALAVRAS-CHAVE: Amácio Mazzaropi; cinema; futebol; Corinthians; Palmeiras. SOCCER ON MAZZAROPI’S VISION: “The corintiano” movie as compromise document to a possible happy-end ABSTRACT: The rivalry between the fans of “Sport Club Corinthians Paulista” – founded in 1910 – and the “Società Sportiva Palestra Italia” (1914), known from 1942 as “Sociedade Esportiva Palmeiras”, – is a constant in the history of São Paulo and Brazilian football since the beginning of XX century. The conflict between two fans was the central theme of the movie "O Corintiano" (filmed in 1966 and released in early 1967), of Amácio Mazzaropi. The plot of the film culminates in a typical solution "happy end", generating peace between irreconcilable before fanatical fans. The purpose of our article is to discuss the ways in which, after several conflicts, this "true peace" has been achieved in the last scenes of the movie "O Corintiano". KEYWORDS: Amácio Mazzaropi; cinema; football; Corinthians; Palmeiras. ***
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Pós-Doutor em História Econômica (FFLCH-USP). Professor da Universidade de Taubaté (UNITAU). E-mail: cjp@usp.br. *
Introdução
A
mácio Mazzaropi (1912-1980), natural de São Paulo – SP e ator de trinta e dois filmes rodados durante quatro décadas (1953-1980), com atuação destacada no estabelecimento de argumentos e direção de vários deles, imortalizou nas telas
do cinema vários personagens cômicos, em filmes como "Jeca Tatu", "Casinha Pequenina", "Um Caipira em Bariloche", "Sai da Frente", entre outros.1 O ator, a partir de 1958, passou a ter uma produtora própria, a P.A.M. (Produções Amácio Mazzaropi). Esta, para Mazzaropi, se interessava “em produzir filmes para o povo, de maneira que este sa[ísse] satisfeito do cinema”.2 Muitos de seus filmes foram rodados na Fazenda da Santa, situada na cidade de Taubaté-SP.3 Estes filmes foram, sem exceção, sucessos de bilheteria, e eles nunca tiveram público inferior a quatro milhões de pessoas.4 Tal sucesso fez com que os filmes de Mazzaropi fossem reeditados em DVD no final do século XX, o que colabora – e muito – para a preservação de parte da memória cinematográfica genuinamente brasileira. O DVD do filme “O Corintiano”, rodado em 1966 e lançado em janeiro de 1967, 5 possui várias informações extras, tais como ficha técnica, elenco etc., além do trailer veiculado na época para atrair as atenções do público nos cinemas. O slogan veiculado no trailer sobre o filme é sugestivo: “um superfilme: futebol / música / amor / violência / ação / heroísmo / fantasia. ‘O Corintiano’: um espetáculo completo”.6 Neste artigo, respeitamos a grafia original do título do filme, que remete à pronúncia popular referente ao time de futebol bastante corrente na segunda metade do século XX, na qual o grupo consonantal “th” frequentemente é omitido. Entretanto, quando realizarmos referências à agremiação esportiva “Sport Club Corinthians Paulista”, utilizaremos o nome original do clube fundado em 01/10/1910. Jean Claude Bernadet, em um artigo publicado originalmente no jornal “O Estado de S. Paulo” em 1977, comentou o sucesso alcançado por Mazzaropi: Não é à toa que Mazzaropi tem sucesso. Mazzaropi só tem sucesso porque seus filmes abordam problemas concretos, reais, que são vividos pelo imenso público que acorre a seus filmes. Não é só porque é careteiro e tem um andar desengonçado. É porque põe
“As Parte Escrita” [sic], “extras” do DVD “O Corintiano”. C.M.M. [identificado apenas pelas iniciais], 1981, s.p. 3 Esta fazenda foi comprada por Amácio Mazzaropi no início da década de 60 do século XX, a qual serviu como locação para vários de seus filmes. 4 “As Parte Escrita” [sic], extras do DVD “O Corintiano”. 5 SOUZA, Olga Rodrigues Nunes de. Fontes para a história de Amácio Mazzaropi: uma cronologia, p. 27. 6 “As Parte Escrita” [sic], extras do DVD “O Corintiano”. 1 2
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na tela vivências e dificuldades de seus espectadores, e se assim não fosse, não teria o sucesso que tem.7
O tema do filme poderia ter pendido tão somente para o caricato, se não fosse a real existência de torcedores de futebol que realmente colocam as suas agremiações esportivas acima das convenções da sociedade. O amor pelo seu time é justificado por muitos através da violência – física ou simbólica – e de um pretenso heroísmo em defender as suas cores sacralizadas. Tal fanatismo, de acordo com Florencio Escardo, em seu livro “Geografia de Buenos Aires”, citado na Revista Placar no ano de 1982, é externado pelo torcedor da seguinte forma: [O torcedor] não odeia ninguém nem nada: aceita ou rejeita. Sua capacidade de paixão, sempre determinada pelo sentimento, é positiva. Enfim, o torcedor substituiu a adesão intelectual, ou moral, pelo arrebatamento apaixonado. Só ele ama e compreende, só ele tem em suas mãos todos os fios para resolver a realidade de acordo com a justiça. 8
Escardo comenta o sentimento do torcedor negando o sentimento de ódio ao que é alheio, colocando em outra ordem o sentimento de aversão às outras agremiações, de aceite ou repulsa. Para o autor argentino, o amor e a justiça andam juntas, sem quaisquer referências à violência. Mazzaropi, sempre sensível ao gosto de seu público fiel, procurou retratar conflitos ao longo do filme “O Corintiano” de uma forma que poderia ser encontrada em inúmeros estádios de futebol ou campos de várzea do país: entreveros de pouca monta que forneceram o tom conflituoso presente em quase todo o transcorrer do filme, que, em seu final, redundou numa “paz efetiva” em um clima de “happy end”. Todos esses elementos puderam ser enfeixados do final do filme quando o fanatismo de torcer cegamente por um time de futebol foi posto de lado. O objetivo deste artigo é discutir elementos de como, após vários conflitos, esta “paz efetiva” foi atingida nas últimas cenas do filme “O Corintiano”, levando em consideração, principalmente, a atuação dos personagens “Mané”, interpretado por Amácio Mazzaropi, corinthiano fanático, e “Leontino”, interpretado por Nicolau Guzzardi (Totó), o italiano torcedor da Sociedade Esportiva Palmeiras, agremiação dantes denominada “Società Sportiva Palestra Italia”, fundada em 26/08/1914. Ao longo desse artigo transcrevemos algumas das falas dos personagens do filme, as quais julgamos representativas para a compreensão de como Mazzaropi atingiu a chamada “paz efetiva” através de um “happy end” em “O Corintiano”.
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BERNARDET, Jean Claude. “Nem pornô nem policial: Mazzaropi”. In: RODRIGUES, Carlos Roberto de Souza; SOUZA, Olga Rodrigues Nunes de. Mazzaropi: a imagem de um caipira, p. 32. 8 KINJÔ, Celso et alii. “Este povão abençoado”. In: Revista Placar, n.º 615, 05/03/1982, p. 4. 7
Enredo da “paz efetiva” enfim alcançada O enredo do filme “Jeca Tatu” possui os seguintes elementos: Mané (Amácio Mazzaropi) é um barbeiro absolutamente fanático pelo Corinthians, a ponto de exercer o seu mister de graça aos sócios de seu time de coração. Vive numa pequena vila na cidade de São Paulo, não denominada no filme9, e possuía um vizinho italiano, Leontino (Nicolau Guzzardi – “Totó”), fanático torcedor do Palmeiras. Este era pai de Luigino (Carlos Garcia), centroavante do time da Vila. Mané era casado com Eulália (Lúcia Lambertini) e tinha dois filhos, Jair (Roberto Perillo), estudante de Medicina, e Marisa (Elizabeth Marinho), promissora bailarina, que recebia elogios constantes de sua professora, Dona Milu (Leonor Pacheco). Ricardo (Roberto Orosco), filho de Dona Milu, é namorado de Marisa. Mané, que já fora jogador de futebol (em um time não citado no filme), e tivera ganhos que foram rapidamente gastos por excessiva prodigalidade, tinha dois sonhos em relação a seus filhos: que Jair se tornasse um jogador de futebol e que Marisa fosse uma costureira. Mané ganha um burro – que era preto e branco – numa rifa e leva o animal para sua casa. O burro, teimoso, foge repetidas vezes do quintal da pequena casa de Mané para provocar quebras nas casas dos vizinhos, os quais questionavam repetidamente tais prejuízos. O fanatismo de Mané pelo Corinthians era tão grande que, ao ouvir comentários desfavoráveis ao seu time de coração em um rádio, tentou quebrá-lo, sem sucesso; então jogou-o longe e, por fim, deu-o de presente a uma senhora que passava nas imediações, também corinthiana. O barbeiro discutia frequentemente sobre futebol com o italiano Leontino. Na ocasião, disposto a fazer valer perante os habitantes da vila – e principalmente, ao italiano – a sua predileção pelo Corinthians, Mané chegou a utilizar um gigantesco megafone para tocar o hino do clube, logo imitado pelo italiano, que tocava em volume altíssimo o hino do Palmeiras. Os habitantes da vila, incomodados pelo barulho, foram reclamar sobre o hino na porta da casa de Leontino; repelidos por este, foram interpelar Mané, que tão somente mostrou uma bandeira branca com o distintivo do Corinthians, provocando gritos de alegria do grupo dantes contrariado. À noite, o burro provoca novamente quebras de objetos da vizinhança. Mané é acordado e toma as rédeas do burro. Um dos habitantes da vila dispara um tiro de espingarda, provocando
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Dentre outras locações, Mazzaropi utilizou as instalações da antiga Vila Operária “Maria Zélia”, situada na cidade de São Paulo – SP. 9
um tumulto generalizado. Alertada pelo estampido, a polícia chega ao local em duas viaturas (“baratinhas”), e não encontra ninguém para autuar ou prender. Acompanhado de seu burro, Mané termina a noite cantando a “Canção do Burrinho”, de Elpídio dos Santos: (...) Ninguém gosta de você Mas eu vejo que razão não tem Pra entender um burro É preciso que seja outro burro também Pra entender um burro É preciso que seja outro burro também Durma, meu bem Durma quietinho, o italiano não vem. (...)10
Na manhã seguinte, Mané faz uma oração a São Jorge, padroeiro do Corinthians. Em sua oração, pede literalmente que o santo dê uma boa “chuchada” nos adversários. Mané pede à Eulália que providencie leite, café e pão para o burro, provocando uma reação desalentada de sua mulher. Mané é chamado por uma vizinha, pois o burro invadira a casa dela. Em conversas com a mãe, Jair e Marisa falam abertamente em sair de casa, não só por causa dos despropósitos de Mané em torcer em demasia para o Corinthians e criar um burro de portas adentro, mas também para seguirem seus estudos em paz, sem a presença do pai. Num campo de terra perto da Vila, Luigino, filho do italiano, joga bem e chama a atenção de “olheiros” de futebol, no mesmo jogo em que a não-marcação de um pênalti provoca uma briga generalizada. Leontino e Mané, que acompanhavam o jogo na beira do campo, entram na briga e saem levemente feridos. Mané, ferido e de mau-humor, discute com seus filhos e Marisa chega a afirmar: “O burro ou eu”. Contrariado, Mané chega a erguer o braço para dar um tapa na filha, mas não consegue, pois está ainda sentindo dores no corpo em consequência da briga anterior. A família de Mané, ao acomodar-se à mesa para o café da manhã, compartilha os lugares da mesa com o burro e um cachorro, devidamente paramentado com um babador com o escudo do Corinthians. Eulália, Jair e Marisa, espantados, abandonam a mesa um de cada vez. Em seguida, Jair procura uma “república”, pois já não aguentava mais conviver com o pai. Marisa faz um teste para bailarina e agrada, sendo aprovada por um Diretor.
“Canção do Burrinho”, composta por Elpídio dos Santos.
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Ao mesmo tempo, Luigino discute com o pai, pois quer conversar com os “olheiros”, ao que este retruca que seu filho deveria tão somente jogar no Palmeiras. Apesar de Luigino argumentar que queria ser um jogador profissional, e que, no início, qualquer time servia, o italiano manteve-se irredutível. Logo a seguir, um Chevrolet Impala, dirigido por um dirigente do “Esporte Clube”11 vai buscar Luigino para que ele pudesse começar sua carreira. O italiano tenta demover o seu filho desse intento, sem sucesso. Mané, que acompanha a cena, fala para Leontino que, se Jair se tornasse jogador de futebol e deixasse a sua casa por isso, estaria até contente – desde que o time tivesse um uniforme “preto e branco”. Com medo de que o Corinthians perdesse para o Palmeiras no próximo jogo, pois o time estava desfalcado, Mané e outros amigos da barbearia vão a um terreiro de macumba pedir ao “Pai” do terreiro uma “intermediação” para conseguirem uma vitória garantida. São repelidos, e Mané não deixara de ver que o italiano também fora ao terreiro, para pedir o mesmo para o Palmeiras. Enquanto Mané estava no terreiro de macumba, Marisa beija Ricardo, seu namorado. Este quer apresentar-se aos pais de Marisa. Reticente, Marisa diz que “talvez” o próximo domingo fosse o dia adequado para a conversa. No domingo, quatro horas antes do jogo Corinthians e Palmeiras, Mané e toda a sua família promovem um piquenique na frente do estádio. O burro e o cachorro de Mané ficam dentro de casa, com comida à disposição na mesa de jantar. Dentro do Pacaembu, Mané procura o juiz do jogo e, após breve conversa, oferece dinheiro para ele “amolecer” o jogo. O juiz fica revoltado e repele imediatamente Mané. Este vai para as arquibancadas, e deixa a sua família de lado para assistir o jogo ao lado de Elisa, chefe da torcida corinthiana,12 que propõe a Mané casamento. Mané recusa a proposta, alegando já ser casado. O jogo termina com a vitória do Palmeiras por 3 tentos a 1. Quando Mané e a sua família voltam para a Vila, há uma ruidosa manifestação dos palmeirenses, o que provoca a ira de Mané, que reage contra a alegria alheia através de golpes de bandeira contra o italiano. Após o entrevero, Eulália entra em sua casa e a encontra completamente desorganizada pelos animais. Jair, já não aceitando mais tais conflitos, faz a mala e abandona a sua casa.
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O “Esporte Clube” foi uma forma que Mazzaropi encontrou de não citar textualmente no filme o Esporte Clube Taubaté, fundado em 14/11/1914. 12 Elisa foi, efetivamente, um dos símbolos da torcida do Corinthians no século passado, e representou a si própria no filme. 11
Ricardo resolve apresentar-se à família de Marisa. Interpelado por Mané, diz que torce para o São Paulo Futebol Clube. Após várias observações de Mané, dentre as quais que “o casamento não daria certo”, Ricardo, exasperado, vai embora. No dia seguinte, Marisa, bem cedo, faz as malas e também abandona a casa de seus pais. Mané, bem cedo, deixa em casa toda e qualquer identificação do distintivo do Corinthians e passa em várias bancas de jornal para adquirir todos os exemplares que noticiassem a vitória do Palmeiras que ocorrera no dia anterior. O italiano, que fora comprar os jornais, não os encontra. O italiano acusa Mané de ter “sumido” com todos os jornais das redondezas para esconder o resultado do jogo. Mané volta para a sua casa e encontra sua mulher chorando, pois Marisa abandonara o lar. O barbeiro fica acabrunhado. A seguir, o italiano e sua esposa fazem uma visita a Mané, e faz um convite a este de assistirem juntos a uma “festa”, que nada mais era do que assistirem a um jogo no Parque Antártica, estádio do Palmeiras, proposta imediatamente repelida com indignação pelo corinthiano. Em um campo de futebol, o “Esporte Clube” vence a partida e o bom desempenho de “Pepino” (nome futebolístico de Luigino), faz com que o Palmeiras se interesse pelo passe do jogador, tomando-o por empréstimo. A notícia logo sai nos jornais e o italiano, contentíssimo, faz questão de contar a notícia a Mané, que novamente trata mal o italiano. Corinthians e Palmeiras jogariam outra vez no Estádio do Pacaembu, e Mané, sem os filhos e a mulher, vai assistir ao jogo. Elisa propõe casamento novamente ao barbeiro, sem resultado. Enquanto isso, Eulália escuta o jogo pelo rádio. Estoura uma briga na arquibancada entre vários torcedores dos dois times, e Mané fica estatelado na arquibancada, ferido. O jogo termina 2 a 1 para o Corinthians, e o gol do Palmeiras foi marcado por Pepino, para o delírio de seus pais. Mané é atendido por Jair, que estava, como auxiliar, no plantão médico do estádio. Após breve conversa, Mané diz que gostaria de vê-lo novamente em sua casa, e que respeitaria os rumos que Jair colocara em sua própria vida, principalmente quanto à escolha do filho em ser um “doutor”. Quando Mané volta para casa, encontra sua mulher, e esta faz uma observação: Jair poderia, no futuro, ser médico do Corinthians. Com um charuto na boca, o barbeiro fica contente com tal conjectura e até promete “uns cobrinhos” para ajudar o filho. Na porta da casa do italiano, um torcedor desenha um soldado trajado de mosqueteiro, mascote do Corinthians, com uma espada espetada em um papagaio, mascote do Palmeiras, além com Mané. Pepino chega de carro, cumprimenta vários habitantes da vila e a briga acaba. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº4, pp.77-92, Jul.-Dez./2015 | www.poderecultura.com
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do resultado do jogo: 2 a 1 Corinthians. O italiano fica contrariado e começa a brigar novamente
No dia seguinte, Jair leva vários convites para a Vila para que as famílias de Mané e do italiano pudessem assistir à estreia de Marisa como bailarina no Teatro Municipal de São Paulo. À noite, o barbeiro leva um rádio para o balé, pois um jogo do Corinthians estava acontecendo na mesma hora da apresentação. É obrigado a desligar o rádio, pois houve protestos do público presente. Mané reconhece sua filha no palco; Marina era a solista do espetáculo. Contrariado, tenta ir embora e é impedido por todos que o acompanhavam. Um militar, que estava na plateia, diz a Mané que as moças ali presentes faziam parte das melhores famílias da cidade de São Paulo, fazendo o barbeiro aceitar a assertiva de que bailarinas não eram vedetes de teatro de revista. Após a apresentação, Mané vai ao camarim conversar com Marisa, pede humildemente desculpas à filha e diz que aceitará os caminhos que seus filhos queriam seguir, pois queria ser feliz na vida. Todos voltam para a vila, contentes. Na praça pública, havia a irradiação de um jogo do Corinthians, mas Mané resolve fazer as pazes com o italiano, e recomenda claramente que o assunto daquele dia não seria futebol – “paz efetiva” enfim alcançada.
Preto e branco, branco e verde: faces do esporte das multidões. Dentro de uma obra cinematográfica, o enredo merece especial atenção: como integrante de uma obra acabada, não permite adulterações oriundas de falsas informações, tais como as abaixo: No filme O Corintiano, rodado em 1966, o comediante Amácio Mazzaropi vivia um barbeiro tão fanático que bastava apresentar-se a ele como torcedor do Timão para ganhar uma barba feita de graça. Evidentemente, a barbearia entrou em falência. [sic!] No final do filme, as finanças de Mazzaropi eram salvas por seu filho, um craque, que assinava polpudo contrato para jogar – onde? – no Corinthians. [sic!] O enredo da fita, dirigida por Milton Amaral, pode parecer hoje [1993] ingênuo.13
A barbearia de Mané, é certo, não tinha muitos lucros por causa da generosidade do corinthiano, mas o filme não discorre sobre uma pretensa “falência” da barbearia. O resumo acima do filme comete um erro grosseiro em afirmar que o jogador de futebol era o filho de Mané, sendo que o era, na realidade, filho do italiano. O filho do barbeiro era estudante de Medicina, o que muito desgostava o seu pai:
Revista PLACAR. “Timão das telas e telinhas”. In: Revista Placar, n. 1088, out/1993, p. 15.
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(...) E seu filho joga futebol? Não... esse aí já está perdido... se ele seguisse os meus conselhos hoje ele tava bem na vida, mas o diabo quer ser médico! Muito bem! Muito bem os colete! [sic] Muito bem por quê? Se ele fosse jogador de futebol, ele devia ser um centroavante, já tava enchendo o canecão de ganhar dinheiro e ajudava a família, né, mas não interessa, o diabo já tá perdido mesmo! 14
No início do filme “O Corintiano”, a apresentação de páginas do jornal “A Gazeta Esportiva” com dizeres diretamente referentes ao contexto do filme, mostram a preocupação de Mazzaropi em não suscitar polêmica com os torcedores das agremiações de Corinthians e Palmeiras. Mazzaropi pretendia que o entretenimento oferecido pelo seu filme poderia ser desfrutado, sem acepções, por todos: Esclarecimento ao público Este filme conta uma história que não aconteceu, mas poderia ter acontecido... É uma homenagem a todos os Clubes de futebol do Brasil, e seus torcedores. Não há, nem houve, intenção de exaltar ou desmerecer um ou outro, e sim dar ao grande público que prestigia o esporte, momentos de diversão e entretenimento. A PRODUTORA.15
A homenagem expressa no filme “a todos os clubes de futebol do Brasil” era um elemento que garantia ao público que não existia, por parte de Mazzaropi, parcialidade em relação ao Corinthians, o que poderia facilmente ser afirmado, levando em consideração tão somente o título da obra. Torcedores do Palmeiras e de outras agremiações esportivas poderiam boicotar o filme e invocar que o mesmo mereceria o repúdio do público em geral, e Mazzaropi procurou evitar tal problema. A origem da rivalidade entre as agremiações paulistas Sport Club Corinthians Paulista e Sociedade Esportiva Palmeiras (antes denominada Società Sportiva Palestra Italia) é objeto de discussões diversas. Uns afirmam que esta rivalidade começou após uma vitória do Palestra Italia sobre o Corinthians, em 1917, por 3 a 0, e, por desfrute, esta vitória foi comemorada num restaurante chamado “Palhaço”.16 Outra versão afirma que, para vingar-se da derrota de 8 a 0 impingida pelo Palestra Italia ao Corinthians no dia 05/05/1933, torcedores alvinegros passaram a detestar ainda mais o rival, pois o Corinthians, na ocasião do jogo, estava com o time desfalcado, pois os diretores venderam
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Transcrição de um diálogo do filme “O Corintiano”. Transcrição de dizeres veiculados pela produtora do filme “O Corintiano”. 16 AQUINO, José Maria de. “O Derby”. In: Revista Placar n. 602, 27/11/1981, p. 53. 14
vários jogadores, tais como Del Debbio, De Maria, Rato e Guimarães ao Lazio, time italiano.17 A comoção dos torcedores do Corinthians foi tão grande por tal derrota e fraqueza de seus jogadores que uma turba resolveu colocar fogo na sede do clube, provocando a renúncia do presidente Alfredo Shüring.18 O termo “derby”, referindo-se aos confrontos entre Corinthians e Palmeiras foi utilizado pela primeira vez pelo jornalista Thomaz Mazzoni em 1929.19 Entre as décadas de 10 e 30 do século passado, a rivalidade entre estes times se tornou ainda maior. No último jogo do Campeonato Paulista de 1935, o Corinthians, já sem chances de obter o título, jogaria a última partida com o Santos Futebol Clube. Caso vencesse, o título ficaria com o time do Palestra Italia. O Corinthians, em pleno Parque São Jorge, no estádio também conhecido como “Fazendinha”, preferiu perder a partida por dois tentos a zero, fazendo o Santos, pela primeira vez em sua história, ser campeão paulista.20 Portanto, segundo os autores, “de fato, daí por diante, Palmeiras e Corinthians jamais se amaram como antes”.21 A rivalidade, dentro do esporte, deve ser sempre encarada de uma forma sadia, o que nem sempre acontece: Há ódio nos corações palmeirenses e corinthianos. Um ódio que explode a cada confronto entre os dois times e que dele se alimenta, nele se fortalece. Um ódio doentio, que não encontra paralelo em nenhum outro clássico do futebol paulista (...) 22.
Esta aversão ao time adversário não pode ser confundida com ódio no filme “O Corintiano”. Esse “ódio” foi apenas sugerido e/ou abrandado ao longo do filme. Após a briga generalizada num campo de terra batida, o italiano, machucado mas cheio de brios, disse: “Ai! A minha mulher falou “não brigue!” e eu briguei. Estou satisfeito agora!”.23 Quando as brigas não chegam ao ponto da utilização de força física, a ironia entra com força, tal como o diálogo entre Mané e o italiano no início do filme, quando o barbeiro ganha o burro na rifa:
Idem, p. 54. Revista GRANDES CLUBES BRASILEIROS n.º 6, 1971, p. 36. O nome deste presidente atualmente denomina o antigo estádio do Corinthians, situado do bairro do Tatuapé, em São Paulo. Este estádio também é conhecido pela alcunha de “Fazendinha”, que lembra o uso anterior das terras nas quais foram construídas as dependências do Estádio. 19 AQUINO, José Maria de., op. cit. 20 AQUINO, José Maria de; FONSECA, Divino. “São Jorge na boca do dragão”. In: Revista Placar, n. 348, 10/12/1976, pp. 14-15. 21 Idem, p. 15. 22 AQUINO, José Maria de. “O Derby”. In: Revista Placar n. 602, 27/11/1981, p. 54. 23 Transcrição de uma fala do filme “O Corintiano”. 17 18
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[Es]pera aí! Quero te cumprimentar também! Parabéns pelo belo prêmio que você ganhou! Ainda bem! Pensei que você já vinha com gozação! Não é gozação! Mas que esse burro vai te dar um azar desgraçado, vai! Vamo[s] esperar o primeiro jogo! Se ele der azar, eu mando pintar ele de verde e branco e te mando de presente! Olha! Promessa é dívida, eh?24
As forças sobrenaturais deveriam, segundo Mané e o italiano, auxiliar as agremiações esportivas no que eram consideradas autênticas batalhas em um campo de futebol. Procurar o terreiro de macumba era uma boa opção, portanto; pedir a intercessão de São Jorge através de uma oração, idem, conforme a oração proferida por Mané: “Meu São Jorge! Vós que estais no seu cavalo na Lua, atormentado por tantos foguetes russo[s] e americano[s], não deixai o Corinthians cair do cavalo!...”.25 Os conflitos provocados pelo extremo amor por suas agremiações esportivas chegaram a tal ponto que Mané resolveu intervir na discussão entre o italiano e Pepino, quando este decidiu deixar a casa dos pais para dedicar-se à carreira de jogador de futebol:
“ ‘É claro! Mas pra co-
meçar qualquer time serve, contanto que seja preto e branco!’ / ‘É, mas o Esporte Clube eu nem sei o que é!’ ”.26 O “Esporte Clube” citado no filme era o Esporte Clube Taubaté, fundado em 14/11/1914, time que em seu segundo ano de existência já enfrentava em seu campo situado na Praça Monsenhor Silva Barros – locação de um dos jogos mostrados no filme “O Corintiano” – o Palestra Italia e o Corinthians. O E. C. Taubaté perdeu ambos os jogos por pequena diferença de gols (0 a 1 e 0 a 2, respectivamente).27 Os conflitos elencados no filme também foram para o terreno amoroso. Elisa, chefe da torcida alvinegra, “torcedora número um do Corinthians”,28 tenta convencer Mané a casar-se com ela: Você já pediu? Pediu o quê? O desquite. Eu vou falar com o advogado do Corinthians e a gente não paga nada!29
Transcrição de um diálogo do filme “O Corintiano”. Transcrição de uma fala do filme “O Corintiano”. 26 Transcrição de um diálogo do filme “O Corintiano”. 27 UNITAU/CDPH, Arquivo Oswaldo Barbosa Guisard, caixa n.º 21. 28 Revista GRANDES CLUBES BRASILEIROS n.º 6, 1971, p. 96. 29 Transcrição de um diálogo do filme “O Corintiano”. 24 25
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Elisa, para dar legitimidade ao seu pedido, invoca seus contatos com elementos ligados diretamente ao Corinthians, o que seria um atrativo extra para Mané. Este recusou a proposta, pois já era casado. Como personagem conservador, não poderia pensar indissolubilidade do casamento. No final do filme, quando Mané perdeu o apoio de seus filhos, Eulália, mesmo contrariada, foi a única a continuar a seu lado, procurando compreendê-lo em seus múltiplos defeitos, o que era um êmulo da mulher “boa dona de casa” e “mãe de família”, estereótipos de uma sociedade brasileira ainda em muitos aspectos conservadora quanto à autonomia feminina na segunda metade do século XX. Em relação às uniões, Mané era tradicional e imperativo: o candidato a casar-se com sua filha deveria ser corinthiano. O barbeiro resolveu dar conselhos à Marisa, querendo convencê-la a desistir do relacionamento com Ricardo, que era torcedor do São Paulo Futebol Clube, mesmo com Eulália a adverti-lo que o “moço poderia se converter” (à autêntica “religião” corinthiana): “ ‘Minha filha. Escuta meu conselho. Trata de conquistar o Rivellino, é um moço bom, aí sim, vai nascer tudo preto e branco!’ ”.30 Os jogos filmados em 1966 no Estádio do Pacaembu por Mazzaropi contaram com a atuação de jogadores como Roberto Rivellino, o “Reizinho do Parque”31 [São Jorge] ou “docede-coco da torcida”32 e Ademir da Guia, o “Divino”, “personagem único do futebol brasileiro”,33 que são, até os presentes dias, ídolos de suas torcidas. O roteiro do filme fez relações diretas a elementos que seriam, para os aficionados de futebol, facilmente reconhecíveis: a própria profissão de Mané, no filme, foi definida através de uma referência à profissão de Salvador Bataglia, proprietário de uma barbearia que foi uma das primeiras sedes do Corinthians.34 Outro exemplo foi o fato de Mané ter fumado, no final do filme, um charuto para comemorar a vitória do time alvinegro por 2 a 1, o que poderia remeter ao espectador conhecedor de aspectos do futebol à ação de Chico Mendes (homônimo do famoso seringueiro brasileiro assassinado no final do século XX), que, em gestos que ganharam ares de folclore, fumava enormes charutos nos jogos do Corinthians.35
Transcrição de uma fala do filme “O Corintiano”. AQUINO, José Maria de. “O Derby”. In: Revista Placar n. 602, 27/11/1981, p. 56. 32 AZEDO, Mauricio ; CARDOSO, Mauricio et alii. “Um garoto fora de série”. In: Revista Placar, n. 401, 30/12/1977, p. 5. 33 MARANHÃO, Carlos. “A um passo de virar estátua”. In: Revista Placar, n. 365, 22/04/1977, pp. 4-5. 34 Revista GRANDES CLUBES BRASILEIROS n.º 6, 1971, p. 8. 35 Idem, p. 96. 30 31
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Patrimônios paulistas documentados no filme “O Corintiano” O Pacaembu, palco de inúmeros jogos marcantes para a história do futebol brasileiro, foi uma das locações do filme “O Corintiano”. O Estádio foi inaugurado em 26/04/1940, com a presença de Getúlio Vargas e do interventor Adhemar de Barros.36 O Pacaembu é um patrimônio preservado – não sem alterações ao projeto original, tais como a construção da arquibancada conhecida como “tobogã” na década de 70, que substituiu a antiga “concha acústica”, registrada em várias cenas do filme – o que não aconteceu com o antigo estádio do Esporte Clube Taubaté, situado na Praça Monsenhor Silva Barros, outra locação utilizada por Mazzaropi. Inaugurado em 1914 em um terreno cedido em comodato pela Prefeitura Municipal da cidade paulista,37 foi demolido no final da década de 70 do século passado para dar lugar a uma loja de departamentos, a Eletroradiobraz, inaugurada em junho de 1972.38 Nos dias atuais o prédio abriga uma das filiais do supermercado Pão de Açúcar. A Vila “Maria Zélia”, outra das locações utilizadas no filme “O Corintiano”, nome este dado em homenagem a uma das filhas do industrial Jorge Street, proprietário da Cia. Nacional de Tecidos de Juta, construiu a Vila entre 1911 e 1916 para o usufruto de seus empregados. Esta é tombada pelo patrimônio histórico desde 1992, tendo boa parte de suas características preservadas,39 embora parte do patrimônio necessite ser restaurada. Renato da Silveira Mendes, no livro organizado por Aroldo de Azevedo “A cidade de São Paulo: estudos de geografia urbana”, faz o seguinte comentário sobre o casario da região da Vila Maria Zélia no ano de 1958: As edificações dos bairros mais antigos conservam, ainda, em grande parte, o mesmo aspecto da época em que surgiram: uma sucessão de casas térreas, modestas, quase sempre geminadas, com fachadas monotonamente uniformes, construídas em série (...) as vilas periféricas oferecem um aspecto mais agradável e, sob certos aspectos, melhores condições de vida, por serem mais arejadas e possuírem esporadicamente um ou outro estabelecimento fabril.40
Revista PLACAR n.º 766, 25/01/1985, p. 58. ORTIZ, José Bernardo (org.) Atas do Conselho de Intendência Municipal e Atas da Câmara Municipal de Taubaté – tomo IV (1911-1926), pp. 141-145. 38 CAMÕES FILHO. A história do comércio de Taubaté. Taubaté: Sindicato dos Empregados no Comércio de Taubaté, 1996, p. 35. 39 PETRATTI-TEIXEIRA, Palmira. “A Vila Maria Zélia: A fascinante história de um memorial ideológico das relações de trabalho na cidade de São Paulo”. In: ANPUH – Anais do XXV Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009, p. 4. 40 MENDES, Renato da Silveira. “Os Bairros da Zona Norte e os Bairros Ocidentais”. In: AZEVEDO, Aroldo de (coord.). A cidade de São Paulo: estudos de geografia urbana. São Paulo : Companhia Editora Nacional/AGB, v. III, 1958, pp. 243-244. 36 37
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Um dos maiores méritos encontrados no filme “O Corintiano” é que Mazzaropi, através de sua produtora, procurou utilizar locações que fossem economicamente viáveis para a redução dos custos do filme, ao mesmo tempo em que não descurou de elementos que poderiam facilmente remeter os espectadores a uma maior verossimilhança com a sociedade paulista da ocasião, ou seja, segunda metade do século XX.
Considerações finais Amácio Mazzaropi, no filme “O Corintiano”, só consegue alcançar a “paz efetiva” entre todos os personagens que se digladiaram ao longo do filme pedindo que toda a sua família e seus vizinhos não mais falassem de futebol, para evitar brigas. O personagem Mané sabia que era um dínamo: gerava brigas continuamente através de sua intolerância que se desdobrava nas gamas mais diversas. Mané percebeu no devido tempo – no final do filme – que não era saudável ser intolerante, pois as pessoas que mais amava se afastavam dele. O barbeiro já não mais dizia: “Passo a mão na navalha e corto teu nervo...”41 e, após inúmeras peripécias, em um clima de “paz” e deveria, segundo o filme, ser proporcionado por ele, dizer “o que eu quero é viver em paz com todos...”, 42 solução típica de “happy end”: personagens sorridentes, problemas esquecidos, público contente. Mazzaropi utilizou a tática, para atrair o público de todas as idades, de colocar no mesmo filme elementos aparentemente díspares, tais como balé e futebol. Entretanto, estes elementos contribuíram para realçar as qualidades do enredo do filme, fazendo com que a obra tivesse a necessária coesão interna, o que gerou, na ocasião, um sucesso de público e bilheteria e não tenha perdido o seu encanto até os presentes dias. Portanto, o filme “O Corintiano” teve o grande mérito de utilizar aspectos conhecidos e caros ao grande público, tais como o futebol, para demonstrar que realmente existia a possibilidade de encontrar a “paz efetiva” entre opiniões absolutamente díspares de uma forma absolutamente lúdica, oferecendo diversão e entretenimento que oferecessem satisfação plena ao público, que, até os presentes dias, podem se divertir imensamente com os inúmeros conflitos que redundaram num “happy end” proporcionados por um artista que foi ímpar em seu tempo – Amacio Mazzaropi.
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Transcrição de uma fala do filme “O Corintiano”. Idem.
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Referências Bibliográficas: AZEDO, Mauricio; CARDOSO, Mauricio et alii. “Um garoto fora de série”. In: Revista Placar, n.º 401, 30/12/1977, pp. 5-9. AQUINO, José Maria de. “O Derby”. In: Revista Placar, n.º 602, 27/11/1981, pp. 54-57. __________ de; FONSECA, Divino. “São Jorge na boca do dragão”. In: Revista Placar, n.º 348, 10/12/1976, pp. 12-15. BERNARDET, Jean Claude. “Nem pornô nem policial: Mazzaropi”. In: RODRIGUES, Carlos Roberto de Souza; SOUZA, Olga Rodrigues Nunes de. Mazzaropi: a imagem de um caipira. São Paulo: Serviço Social do Comércio (SESC), 1994, pp. 31-32. CAMÕES FILHO. A história do comércio de Taubaté. Taubaté: Sindicato dos Empregados no Comércio de Taubaté, 1996. C. M. M. [autor indicado apenas pelas iniciais]. “Festa de cinco dias para rever o Jeca de Mazzaropi”. In: O Estado de S. Paulo, 11.12.1983, s. p. GRANDES CLUBES BRASILEIROS. “A Fiel”. In: Grandes Clubes Brasileiros, n.º 6, 1971, p. 96. KINJÔ, Celso; “Equipe Placar”. “Este povão abençoado”. In: Revista Placar, n.º 615, 05/03/1982, pp. 2-5. MARANHÃO, Carlos. “A um passo de virar estátua”. In: Revista Placar, n.º 365, 22/04/1977, pp. 4-6. MENDES, Renato da Silveira. “Os Bairros da Zona Norte e os Bairros Ocidentais”. In: AZEVEDO, Aroldo de (coord.). A cidade de São Paulo: estudos de geografia urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional/AGB, v. III, 1958. ORTIZ, José Bernardo (org.) Atas do Conselho de Intendência Municipal e Atas da Câmara Municipal de Taubaté – tomo IV (1911-1926). Taubaté: Prefeitura Municipal de Taubaté, 2002. PETRATTI-TEIXEIRA, Palmira. “A Vila Maria Zélia: A fascinante história de um memorial ideológico das relações de trabalho na cidade de São Paulo”. In: ANPUH – Anais do XXV Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009. Disponível em: <http://anpuh.org/anais/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0155.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2015. REVISTA PLACAR. “Timão das telas e telinhas”. In: Revista Placar, n.º 1088, out/1993, p. 15. RODRIGUES, Carlos Roberto de Souza; SOUZA, Olga Rodrigues Nunes de. Mazzaropi: a imagem de um caipira. São Paulo: Serviço Social do Comércio (SESC), 1994. SOUZA, Olga Rodrigues Nunes de. Fontes para a história de Amacio Mazzaropi: uma cronologia. Taubaté: UNITAU/CDPH, 1999. ________. Pequenas soluções para um cinema caseiro: quem é quem na obra filmográfica de Mazzaropi. Taubaté: UNITAU/CDPH, 1999. UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ – CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA HISTÓRICA (CDPH). Arquivo Oswaldo Barbosa Guisard – E. C. Taubaté – caixa n.º 21.
Material Cinematográfico: O Corintiano. Direção: Milton Amaral. Produtor: Amácio Mazzaropi. Brasil. P.A.M. (Produções Amácio Mazzaropi), 1966. 1 DVD.
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Artigo recebido em: 10 de Novembro de 2015. Artigo aprovado em: 18 de Dezembro de 2015.
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A QUESTÃO AGRÁRIA NO DEBATE DOS 50 ANOS DO GOLPE DE 1964
Entre contribuições e estereótipos
Pedro Henrique Barbosa Balthazar* RESUMO: O artigo procura apresentar e problematizar visões consagradas na historiografia brasileira atual sobre os movimentos sociais rurais da década de 1960. A partir desse objetivo, o texto revisita produções de décadas anteriores com a intenção de mapear a evolução do debate sobre o campesinato brasileiro, pontuando algumas evoluções e retrocessos nas análises. De uma maneira geral, questiona-se uma análise que transforma o trabalhador rural e o camponês em um bloco politicamente homogêneo a partir da atuação das Ligas Camponesas. O lema “reforma agrária na lei ou na marra” e o temor da “cubanização” do Brasil propiciaram uma leitura genérica que não questionou a multiplicidade de propostas e movimentos sociais rurais. Ademais, os periódicos da década de 1960 contribuíram nessa construção. PALAVRAS-CHAVE: Ligas Camponesas; camponeses; mundo rural. THE LAND ISSUE IN DEBATE OF 50 YEARS OF 1964’S COUP: between contributions and stereotypes ABSTRACT: The article intends to present and problematize consecrated visions on current Brazilian historiography about the rural social movements on the 1960's. With this objective, the text goes back to the previous decades with the intention of mapping and following the evolution of the debate about the Brazilian peasantry, pointing out some evolutions and recessions on the analysis. Generally, it is questioned the analysis that transforms the rural worker and the peasant in a politically homogeneous block since the Peasant Leagues started. The motto “land reform by law or by force” and the fear of “Cubanization” of Brazil provided a general reading that did not question the multitude of proposals and rural social movements. In addition, the journals of the 1960s contributed in this construction. KEYWORDS: Peasant Leagues; country dwellers; countryside. ***
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Mestrando em História no setor de Contemporânea II no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: ph.balthazar@hotmail.com. *
O
bjetiva-se, ao longo do trabalho, trilhar um breve panorama do desenvolvimento da questão agrária na literatura especializada sobre o Golpe civilmilitar brasileiro de 1964. O foco principal do texto é analisar a produção
acadêmica empreendida ao longo do ano de 2014, por causa da (des)comemoração dos 50 anos do Golpe, e observar como os principais historiadores brasileiros trataram a questão agrária e os movimentos sociais do campo nesse evento traumático. Entretanto, buscar-se-á contrapor a literatura especializada aos jornais da década de 1960 e observar suas semelhanças e diferenças. A produção acadêmica nacional teve cinco fases analíticas distintas, com rompimentos e permanências, sobre a contribuição e a influência das lutas do campesinato e das suas relações políticas, econômicas e sociais para a derrubada do presidente João Goulart. Por coincidência, essas transições de perspectiva ocorriam, de uma maneira geral, a cada década e influenciadas diretamente pelo contexto no qual estavam inseridas. Em meados de 1940, e no decorrer de 1950/60, ocorreu uma mudança nas formas de percepção acerca do campesinato. O campo ainda se mantinha na perspectiva de muitos pesquisadores como uma região atrasada frente às demais. Esse atraso, no entanto, não se explicava mais por questões geográficas ou físicas, mas sim por motivações econômicas e sociais, encarnadas no latifúndio. Emergiram, então, inúmeras propostas de organização camponesa e o latifúndio passou a ser o maior símbolo de atraso do país1. A concepção do campesinato como conservador e retrógrado, típico das análises marxistas do final do XIX e início do XX, foi substituída pela noção de um possível revolucionarismo inato da classe. Esse perfil revolucionário atribuído aos camponeses esteve presente na grande maioria dos veículos de comunicação do país durante o governo de João Goulart e influenciou as obras da literatura especializada sobre o tema. No entanto, como problematiza Marcus Dezemone, devemos demonstrar que a imagem referente ao camponês, tanto como conservador, ou como revolucionário, é construída e “imposta de fora”. Muitas vezes, essa identidade atribuída ao campesinato vai à contramão daquilo que os próprios camponeses percebem de si mesmos.2 Durante a década de 1960 o campesinato vai assumir diversas roupagens, passando pelo conservadorismo, reformismo, revolucionarismo dependendo de como a situação se apresentar para ele. A ação e a experiência própria foram fatores determinantes para a sua opção política. 1 GRYNZSPAN,
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Mario. Da barbárie à terra prometida: o campo e as lutas sociais na história da República. In: GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves; ALBERTI, Verena (orgs.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. 2 DEZEMONE, Marcus. Revoluções Camponesas no século XX. In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org.) O século sombrio. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2004. p. 72-73.
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Nesse ambiente de mudança de interpretação acerca do mundo rural brasileiro surgiram os primeiros trabalhos acadêmicos de maior fôlego, alguns profundamente influenciados e mergulhados nas análises feitas por veículos de notícias do próprio período. No decorrer da década de 1960, alguns anos após o Golpe, mas ainda com algumas liberdades de expressão em vigor, foi desenvolvida pela pesquisadora norte-americana Marie Wilkie sua tese de mestrado em Sociologia, que é um marco nas produções acadêmicas sobre o tema. “A Report on rural syndicates in Pernambuco”3 é um trabalho de grande fôlego acadêmico e pode ser encarado como uma fonte primária, visto que a socióloga vivenciou as lutas sociais do nordeste brasileiro no momento em que escrevia sua dissertação. Evidentemente, algumas passagens devem ser problematizadas devido às dificuldades de se escrever a História do seu tempo, ou seja, no momento em que a vivemos e estamos mergulhados nos eventos, todavia, a autora aponta dados estatísticos importantíssimos para uma análise séria do mundo rural brasileiro e que foram deixadas de lado por outros historiadores. A “flexibilização” do regime militar, no início da década de 1980, permitiu uma maior liberdade de expressão no país e contribuiu para o aparecimento de uma nova geração de autores brasileiros. Esse fator explica, em grande medida, a proliferação de diversos livros importantes para a compreensão do mundo rural no Golpe, dentre eles, dois com o mesmo título: “As Ligas Camponesas”. Ambos escritos no ano de 1984, por Fernando Azevedo4 e Elide Rugai Bastos5, são teses de mestrado com viés sociológico que buscam retratar a trajetória política das Ligas e repensar a queda de João Goulart a partir da perspectiva voltada para o mundo rural. Essas obras tornam-se pontos nodais para compreendermos as influencias na historiografia brasileira atual. No bojo da década de 1990 surgem novas interpretações sobre o Golpe civil-militar que recolocam o campesinato em uma posição distinta, de menor prestígio e maior esquecimento. Reunidos na obra organizada por Caio Navarro de Toledo intitulada de “1964: visões críticas do golpe”6, e reeditada em 2014, a coletânea de artigos conta com a contribuição de autores importantes que vivenciaram o período, como por exemplo, Jacob Gorender e Nelson Werneck Sodré. No aniversário dos 40 anos do Golpe, em 2004, foi organizado um seminário para discutir o desfecho do período democrático. Dele surgiu o livro “O Golpe e a ditadura militar: 40 anos
WILKIE, Mary. A report on rural syndicates in Pernambuco, Brazil. 2. rev. ed. Madison: Wisconsin University., (mimeo). Oct. 1967 4 AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984 5 BASTOS, Elide Rugai. As Ligas Camponesas. Petrópolis, Vozes, 1984. 6 TOLEDO, C. N. de. (Org.) 1964: visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. São Paulo: Unicamp, 1997 3
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depois”7. Essa obra conta com artigos de pesquisadores renomados na atualidade como Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira e Marcelo Ridenti, no entanto, ainda negligencia o papel do campesinato ao não desenvolver as lutas no campo como palco importante de disputas que ajudaram no desfecho de 1964. A reforma agrária é um tema presente em diversos artigos, mas focada nas disputas em torno do Congresso Nacional e nos projetos envolvendo os partidos políticos. Os artigos supervalorizam as Ligas Camponesas e não discutiram as múltiplas formas de organização do campesinato. A exceção é o trabalho de Maria Eliza Linhares Borges, intitulado “Reforma agrária e identidade camponesa”, entretanto, voltado especificamente para as disputas ocorridas em Governador Valadares, em Minas Gerais. O último bloco refere-se aos 50 anos do Golpe civil-militar completados há pouco mais de um ano. Os autores citados na década anterior continuam como ícones da historiografia atual. O ano passado foi palco de uma ebulição na sociedade brasileira ao discutir profundamente o tema. Diversos livros foram lançados com destaque para “O Golpe de 1964: momentos decisivos”8, de Carlos Fico, ou para “1964”9, de Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira. Houve um grande movimento de “busca” a partir da Comissão Nacional da Verdade e o retratamento do maior veículo de imprensa nacional, o jornal O Globo, que fez o mea-culpa pela participação e cumplicidade com a ditadura brasileira. Todo esse ambiente de participação recolocou o campesinato na discussão sobre as causas do Golpe, no entanto, ainda de maneira muito tímida se comparada com as décadas de 1960 e 1980. A genealogia de parte da literatura especializada no Golpe de 1964 busca oferecer ao leitor uma breve percepção sobre em que condições os autores inseriram o campesinato na luta política do pré-golpe. Será indagado ao longo do artigo questões que buscam relativizar certos estereótipos e generalizações voltadas ao mundo rural, além de complexificar a questão das disputas envolvendo diversos agentes no campo brasileiro. Busca-se, ademais, observar como os jornais da época retrataram o tema a partir da comparação com alguns livros acadêmicos, ora em consonância, ora bem diferentes. Diversas características foram muito associadas ao campesinato tanto nas produções historiográficas e sociológicas quanto na imprensa da década de 1960, como por exemplo, uma excessiva radicalização política. Essa imagem de um movimento social radical e inconciliável foi construída a partir do lema
Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo P. O Golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, São Paulo: Edusc, 2004. 8 FICO, Carlos. O Golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: FGV, 2014. 9 FERREIRA, Jorge e GOMES, Ângela de Castro. 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
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7 REIS,
“reforma agrária na lei ou na marra”, defendido pelas Ligas Camponesas e muito difundido pelos veículos de notícias e pela academia, no entanto, pouco discutidos e problematizados.
A cubanização do Brasil e o temor de uma nova ilha vermelha na América A historiografia atual tenta, timidamente, elucidar as disputas no mundo rural a partir de um tripé explicativo: reforma agrária (“na lei ou na marra”), Ligas Camponesas e I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. Elencam esses três aspectos e pouco problematizam o que há ao redor por corroborar que o mais relevante em relação à questão agrária é, em parte, o que era mais noticiado em todos os jornais do país quando se referiam ao campo: a cubanização do Brasil. A década de 1960 no Brasil, em especial o governo de João Goulart, é um momento de grande instabilidade da política nacional. Inserido no contexto da chamada Guerra Fria, a bipolaridade latente entre o capitalismo e o comunismo chegou ao Brasil com toda força, trazendo consigo grandes sonhos e temores para as diversas classes sociais do país. A Revolução Cubana, em 1959, aguçou ainda mais essa rivalidade ideológica, visto que instaurou uma ilha vermelha em pleno oceano capitalista que era o continente americano. Todos aqueles que simpatizassem com o regime dos irmãos Castro ou viajassem para visitar Cuba, eram taxados pela grande imprensa como comunistas, subversivos e revolucionários – no sentido negativo do termo. Foi o caso do ex-presidente Jânio Quadros. Ele não era um revolucionário, entretanto, a organização de uma comitiva para visitar a ilha e a condecoração do argentino Ernesto “Che” Guevara contribuíram para esse imaginário. Segundo o Diário Carioca, “Jânio inicia a cubanização do Brasil” ao: As classes produtoras, os partidos políticos e as Forças Armadas Nacionais vêm observando, com crescente inquietação, sintomas cada dia mais evidentes, de que o Sr. Jânio Quadros, à frente do governo federal, está desenvolvendo um plano tático cujo objetivo é uma concentração cada vez maior, de poder pessoal em suas mãos, através da cubanização do Brasil.10
O medo de uma possível cubanização do Brasil era gigante entre os setores liberais e do grande capital brasileiro. Diversos foram os jornais que repetiram esse termo cunhado no próprio
10Diário
Carioca, Rio de Janeiro, 06.03.1961. p. 1
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período, como por exemplo: Diário Carioca, Diário de Notícias, A Cruz, A Noite, Jornal do Bra-
sil, Correio da Manhã e Diário da Noite. A maioria deles, afirmava que existia a possibilidade real de uma revolução no Brasil vinda, principalmente, do campo brasileiro. Essa visão possui a sua historicidade e foi construída a partir da atuação e do destaque dado um movimento social rural específico: as Ligas Camponesas. Lideradas por Francisco Julião e com grande atuação, principalmente, no nordeste brasileiro, o grupo defendeu no I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas o lema “Reforma agrária na lei ou na marra com flores ou sangue”, amplamente divulgado na mídia e nos setores conservadores. Ao final do Congresso foi divulgado para o público e para a imprensa um documento intitulado “a declaração de Belo Horizonte”. O primeiro parágrafo dizia: As massas camponesas oprimidas e exploradas de nosso país, reunidas no I Congresso Nacional, vem por meio desta Declaração manifestar a sua decisão inabalável de lutar por uma reforma agrária radical. Uma tal reforma nada tem a ver com as medidas paliativas propostas pelas forças retrógradas da Nação, cujo objetivo é adiar por mais algum tempo a liquidação da propriedade latifundiária. A bandeira da reforma agrária radical é a única bandeira capaz de unir e organizar as forças nacionais que desejam o bem-estar e a felicidade das massas trabalhadoras rurais e o progresso do Brasil. 11
O Congresso Camponês de Belo Horizonte, como também é conhecido o encontro, tinha como objetivo discutir os rumos da classe camponesa e buscar promover o caminho para a reforma agrária no país. Participaram cerca de 1600 delegados, dentre os quais 215 das Ligas Camponesas. Além disso, contou com a presença do então presidente João Goulart e do primeiro-ministro Tancredo Neves. O Congresso foi organizado pela ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil) liderada na época pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) que vivia uma forte dissidência política interna, fato que propiciou as Ligas a liderança do encontro. O conteúdo da declaração demonstrou que as propostas das Ligas Camponesas haviam prevalecido. O I Congresso determinou a unidade do movimento camponês e definiu o lema da luta em busca da posse da terra: “reforma agrária na lei ou na marra, com flores ou com sangue”. Segundo Elide Rugai Bastos, até o Congresso Camponês o raio da ação das Ligas Camponesas era basicamente estadual e regional. O encontro teria alavancado a entidade em termos nacionais com a primeira aparição das Ligas para todo o país12. Essa aparição foi decisiva para a construção de estereótipos que se perpetuaram ao longo da década de 1960 e influenciaram as análises bibliográficas atuais. Basta observar a constatação
11
BASTOS, Elide Rugai. BASTOS, Elide Rugai. As Ligas Camponesas. Petrópolis, Vozes, 1984, p. 134 p.79
12 Ibid.
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do renomado historiador Daniel Aarão Reis Filho,
no congresso de fundação da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), apareceu e foi ovacionada uma palavra de ordem que sintetizava diagnósticos e prognósticos: reforma agrária na lei ou na marra.13
Por isso, ao discutir a reforma agrária, a principal reforma de base, normalmente, se associava o projeto político do campesinato ao lema: “reforma agrária na lei e na marra”. Segundo Jorge Ferreira, muitas análises defendem que a resistência dos grupos políticos conservadores as reformas de base, com destaque para a agrária, foi à razão principal para a conspiração. Nessa interpretação, a reforma agrária é vista como uma medida que assombrava as forças políticas do país.14
No entanto, para Ângela de Castro Gomes, a reforma agrária não era um tabu para a sociedade brasileira na segunda metade do século XX15. Ao contrário, existia uma grande aceitação social à proposta visto pelas pesquisas desenvolvidas pelo IBOPE em todo o país em meados de 1960. Apresentadas por Carlos Fico, elas beiravam, em algumas cidades, as cifras de 70% de aceitação.16 O Congresso de Belo Horizonte reforçou o temor das elites brasileiras da cubanização do Brasil. O discurso de Julião e o lema da reforma agrária radical eram as provas necessárias para demonstrar os planos de transformar o país em um satélite da União Soviética. Os jornais brasileiros contribuíram para a demonização do campesinato e dos comunistas, de uma maneira geral. Para eles, o governo de Jango era conivente com essas atitudes. Fica-se mesmo a pensar se tudo isso não obedece a um plano preconcebido, a um complô para levar o país a uma aventura de esquerda, que nos leve a cubanização do Brasil. Terão os governantes a clara visão das consequências de sua obra nefasta? Ou são tão medíocres que admitem que podem ganhar alguma coisa arrancando as tábuas do barco?17
O Jornal do Brasil divulgou em fevereiro de 1964, antes do Comício da Central do Brasil, uma reportagem profética com o título “Comício do dia 13, senha para invasões”. Na reportagem o veículo afirmava que: “o Poder Executivo adotou as providências adequadas para provocar a revolução no sistema agrário do país” e que essa atitude de Jango era “uma espécie de senha para
REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo P. O Golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, São Paulo: Edusc, 2004. p.8 14 FERREIRA, Jorge e GOMES, Ângela de Castro. op. cit. p.94 15 Ibid. p.94 16 FICO, Carlos. O Golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p.9 17 Diário Carioca, Rio de Janeiro, 29.11.1961. p. 4 13
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as invasões de terra em larga escala e o consequente surto de choques e agitações em várias regiões do interior”.18 Não só João Goulart era visto como “culpado” pela radicalização do campo brasileiro. De acordo com o Diário de Notícias, Pode ser que me engane, mas a manifestação cubano-comunista, dita estudantil, veio reforçar as suspeitas que muitos democratas já formularam. Lá estava o Sr. Julião a fazer a apologia de Fidel Castro; lá estava o Sr. Hércules Correia a anunciar a breve cubanização do Brasil.19
Miguel Arraes também era alvo de suspeita, e quando foi eleito governador de Pernambuco, o jornal fez uma reportagem sinalizando a legitimidade da sua vitória, mas ressaltando que o político deveria governar para conter o “Vulcão no Nordeste”: Em primeiro lugar, quaisquer que sejam as restrições que se façam e se possam fazer ao Sr. Miguel Arraes, por maiores que sejam os perigos que porventura apresente, nem a mínima dúvida se deve levantar quanto à legitimidade de sua investidura. Foi límpida e honestamente eleito, e sua diplomação e sua posse não devem sofrer o menor obstáculo. Se o acham perigoso, dentro da sistemática do regime democrático há suficientes recursos para evitar quaisquer excessos. A vigilância só poderá ser exercida na forma legal. Quanto ao eleito, grave responsabilidade lhe cai sobre os ombros. Embora não natural do Estado, o povo de Pernambuco deu-lhe sua confiança. Que se saiba mostrar digno dela. Em primeiro lugar, está no dever de desmentir quaisquer propósitos de agitação ou de “cubanização” do Estado, lembrando-se de que é agora o governador de todos os pernambucanos, não de uma facção ou grupo subversivo, por mais que consultem ao seu próprio pensamento político. E, justificando a confiança nele depositada para a alta missão de governar, que faça um governo progressista, reformador, porém profundamente nacionalista e democrático, sem se deixar envolver por injunções extremistas e fórmulas de importação. Agora, não só Pernambuco, mas todo o Brasil tem os olhos nele.20
A ameaça do lema proferido pelas Ligas no Congresso Camponês era tão forte na imprensa que chegou a influenciar uma decisão do TRE (Tribunal Regional Eleitoral), as margens das eleições de 1962. O órgão proibiu e mandou “destruir todo cartaz do Sr. Francisco Julião ilustrado por uma mão segurando uma enxada com os dizeres: reforma agrária na lei ou na marra”.21 Em 1962, foram descobertos em Dianápolis e Almas-Natividades, em Goiás, campos de treinamentos para guerrilhas organizados pelas Ligas Camponesas. Em sua composição existiam camponeses, mas a maioria dos futuros guerrilheiros seriam estudantes universitários e secunda-
do Brasil, Rio de Janeiro, 29 fev. 1964, 1º Cad. p. 4. de Notícias, Rio de Janeiro, 12.01.1962, 1ª Seção, p. 2. 20 Diário de Notícias, Rio de Janeiro 23.10.1962, 1ª Seção, p. 4. 21 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13. 09. 1962, 1º Cad. p. 4 19 Diário
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ristas22. Rapidamente a organização foi desarticulada. Entretanto, foram encontrados nos acampamentos manuais cubanos, fotos de Fidel Castro, Francisco Julião, além de relatórios de outros focos de agitação e de financiamento cubano para a ação, fato que contribuiu para o aumento das perseguições aos camponeses e a construção de uma identidade de radicalismo ao campesinato, em geral ligadas a Revolução Cubana. O temor da cubanização e da radicalização da sociedade brasileira não se restringia ao campo. Diversos movimentos sociais urbanos, instituições e personalidades políticas também foram acusados de subversão. O maior exemplo de todos foi o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Segundo o Diário de Notícia, ainda em 1962, Muros e paredes da Zona Norte, ali pelo Grajaú, apareceram depois do carnaval, fantasiados com os seguintes dizeres: Viva Brizola, Viva Cuba, e ainda, Encampação da Light. Vivas e palavras de ordem ligam-se entre si por uma evidente conexão. No fundo, trata-se de um só viva, um grande viva aos encampadores e às encampações. De empresas de capitais americanos, está visto, pois esse é o inimigo que se pretende atingir. (...) E assim, de repercussão em repercussão, num pingue pongue de intrigas, acabaria por desarticular-se todo o sistema interamericano e estaria aberto o caminho para a cubanização do Brasil, como de outras nações latino-americanas.23
No caso, o jornal estava fazendo referência as políticas de encampações empreendidas por Brizola no Rio Grande do Sul. Em 1959, por exemplo, a companhia americana24 Blond and Share foi expropriada, sem a autorização do presidente da república, pelo preço simbólico de um cruzeiro. Jorge Ferreira demonstra que as relações com o governo norte-americano começaram a se deteriorar, em meados de 1962, a partir das declarações de Leonel Brizola defendendo a luta contra a exploração das empresas privadas dos Estados Unidos, qualificados pelo embaixador Lincoln Gordon como discursos corrosivos com forte sentimento antiamericanista. Evidente que o governador foi duramente criticado pelos jornais conservadores. Era junto com Francisco Julião, Miguel Arraes e Jango, o símbolo máximo da revolução no país. O Diário Carioca o qualificou como nativista. O governador do Rio Grande do Sul, o Sr. Leonel Brizola, montou sua campanha política sobre o primarismo nativista. Por isso investiu contra a Aliança para o Progresso, afirmando que o seu estado nada quer dos recursos oferecidos por ela. Para o Sr. Brizola, a Aliança é manejada no Brasil pela Embaixada Americana. (...) Os nativistas de hoje, neste mundo tão pequeno e tão solidário em seus êxitos, seus fracassos e suas desgraças, são retrógrados à serviço da dominação russa no mundo. São contra a Aliança porque são contra o progresso, que pode salvar a América Latina da cubanização.25
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AZEVEDO, Fernando. Op. cit. p.93 de Notícias, Rio de Janeiro. 1ª Seção, p. 5 24 FERREIRA, Jorge. João Goulart. Editora: Civilização Brasileira: 2011, p.312 25Diário Carioca, Rio de Janeiro. 09.05.1962, p. 4 22
O Diário da Noite ultrapassou a barreira da acusação pessoal e apontou que a cubanização se transformou em algo institucional e, se não o fosse, estava presente e corroendo as instituições da sociedade brasileira. A primeira delas seria o exército: E até agora sua influência no Executivo só deu galho. O Exército no entanto, está coeso em torno do Sr. Brizola. Não há mais generais anti-brizolistas nesta República. Resta-nos admitir a cubanização do Brasil, inexorável e rápida. Mais rápida do que se pensa.26
A viagem de uma comitiva das Forças Armadas, em especial do corpo de Fuzileiros Navais, em expedição para Havana, em janeiro de 1963, seria um ponto nodal para esse processo de desenvolvimento do esquerdismo no exército. O Diário segue afirmando: A unidade de vistas entre nossos fuzileiros e as empregadas domésticas de Havana será absoluta, e com isso se iniciará a cubanização das nossas Forças Armadas. Marx não poderia bolar coisa melhor.27
Ter o exército como base estrutural para levar a diante a revolução comunista no Brasil era um grande temor das classes sociais conservadoras. Todavia, ao contrário do Diário da Noite, alguns jornais ainda acreditavam que os valores pregados dentro do exército, expulsariam a ameaça do país junto com os generais que estavam ligados ao processo de subversão. A história da cubanização do Brasil, se um dia se fizer registrará com suas verdadeiras cores o justo pensamento do Exército, mas será inexorável quanto ao apelo que coube a certos generais, Anfrizio, Aragão e Jurema, enquanto tiverem filhos para empregar no Brasil e no exterior.28
No entanto, a cubanização do Brasil não se restringiria a cooptar somente o exército. Os comunistas precisariam de algo a mais para atingir os seus objetivos, no caso, a mente da população. A forma mais eficaz de conseguir isso era através da educação. O Sr. Guido Mondim (PRP - Rio Grande do Sul) denunciou ontem, a infiltração comunista no ensino em Brasília e pediu providências às autoridades, no sentido de proteger os professores contratados e, os horistas, contra os quais se move ferrenha perseguição por não compactuarem com os colegas que promovem a cubanização dos colégios da nova capital.29
da Noite, Rio de Janeiro. 24.06.1963, 2º Cad. p. 7. da Noite, Rio de Janeiro. 31.01.1963, 2º Cad. p. 4. 28Diário de Notícias, Rio de Janeiro. 14.03.1964, 2ª Seção, p. 3. 29 A Noite, Rio de Janeiro.19.12.1962, p. 5. 27Diário
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Às vésperas do Golpe de 1964, o mesmo discurso da cubanização via educação se repetia. Segundo o periódico A Noite: Analisando a determinação presidencial sobre a elaboração e o fabrico de livros uniformes para todo o país, o deputado Edson Guimarães afirmou peremptoriamente: “Os livros e a uniformidade dessa medida federal naturalmente trariam benefícios incalculáveis; todavia, no conteúdo desses livros é que reside o perigo para a nossa juventude. Objetiva-se a cubanização de nossos estudantes por meio de escritos adrede preparados sob o rótulo de “Uniformidade Educacional”.30
O discurso sobre o processo de cubanização do Brasil percorreu três caminhos que se cruzaram e terminaram na mesma afirmativa: o Brasil estava indo na direção da subversão. O primeiro deles primava em apontar os agentes desse processo, normalmente pessoas ou partidos políticos. O segundo buscava indicar as instituições mergulhadas na ideologia comunista. E, por fim, o último caminho apontava para as causas que levariam adiante esse processo. Sobre o último aspecto, a causa primeira para a cubanização seria a inflação, problema grave enfrentado ao longo de todo o governo de Jango e herança de governanças anteriores. Conter o aumento dos preços era essencial para manter a ordem capitalista no Brasil. Para o Diário Carioca: Mas, para que chegue a formular planos válidos de reforma econômico-social, e disponha de tempo e tranquilidade para realizá-los, o governo precisa dar prioridade aos problemas emergenciais, como a regularização do abastecimento e o domínio gradual da inflação. Se não começar por aí estará fazendo obra de pura demagogia e conduzindo o país, de fato, às portas da cubanização31.
Essa proposta emergencial exigida pelo jornal foi elaborada pelo governo e resultou em um plano com o objetivo de aliviar o aumento dos preços e do custo de vida. O Plano Trienal, como ficou conhecido o programa feito por Celso Furtado, foi o a plataforma econômica do governo Goulart, entretanto, teve pouco efeito prático e o processo inflacionário continuou a crescer nos primeiros anos da década de 1960. Para os conservadores, esse fato criava um campo de proliferação e propaganda comunista. O Correio da Manhã acusou o abandono do Plano Trienal de manobra política das esquerdas para levar a cubanização ao país, visto que isso aguçaria a inflação no Brasil e o desgaste do modelo capitalista.
Noite, Rio de Janeiro. 25.02.1964, p. 9 Carioca, Rio de Janeiro. 02.08.1962, p. 4
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Este Plano Trienal, se fosse executado, poderia ter assegurado pelo menos em parte, o nosso desenvolvimento econômico e social em ritmo satisfatório e teria impedido a aceleração do processo inflacionário com o cortejo de suas penosas consequências para as classes média e pobre. O abandono do Plano foi imposto ao Sr. João Goulart pelo bloco da esquerda radical, que nele via um programa inspirado nos ideais do mundo livre, quando o que esse bloco deseja é modificações estruturais fundadas nos ideais do mundo soviético. Cedendo à pressão do bloco radical, o governo renunciou ao Plano Trienal, que contava com sólido apoio no Congresso e passou a pregar demagogicamente reformas estruturais vazias de conteúdo e que visam, em última instância, a cubanização do país.32
Outra causa para a revolução no Brasil seria a proposta de reforma agrária levada adiante por diversos segmentos sociais. Como vimos anteriormente, Jorge Ferreira, Angela de Castro Gomes e Carlos Fico afirmam que a reforma não era um tabu para a sociedade, entretanto, os periódicos ainda assim recriminavam a sua execução. O colunista Danton Jobim abordou a reforma agrária como medida demagógica para angariar votos. Segundo ele: Políticos assanhados com a descoberta de um novo trunfo eleitoral, apressam-se em fazer declarações demagógicas sobre a solução do problema. Dois pontos de vista, na questão, podem ser levados a sério: o dos comunistas e sua linha auxiliar, que querem uma reforma para incendiar o campo, com vistas à cubanização; e o dos homens públicos, industriais e agricultores que, sentindo a impossibilidade de manter o status quo, se esforçam por encaminhar o processo de reforma no sentido da conciliação dos interesses em conflito.33
O Diário de Notícias segue um caminho semelhante e afirma que a reforma não era necessária, apenas uma nova organização agrícola bastaria para solucionar o problema agrário. O problema dessa alegação é que o jornal não explicou o que estava querendo dizer com essa organização e acabou por refutar a necessidade da reforma. Não se pode pensar em reforma agrária sem atentar logo para as reformas que já foram tentadas no mundo e fracassaram. A russa principalmente. O caso do México também é típico. Todas porém, quando foram tentadas, tinham no bojo a ideia revanchista. Os líderes dessas reformas pensavam em função do ódio e do despeito. Não pensavam na Pátria. Pensavam neles próprios, mas vantagens políticas que poderiam capitalizar. No Brasil o erro está sendo repetido. Sem precisar de uma reforma agrária essencial, mas de organização agrícola inadiável, o Brasil vem sendo campo fértil para a exploração imoralíssima de um tema que é mais econômico do que meramente político. 34
O discurso dos jornais está deslocado do sentido da reforma agrária para a sociedade. O tema era extremamente necessário, mesmo sendo controverso. Partidos políticos de linhas ideoda Manhã, Rio de Janeiro. 04.01.1964, 1º Cad. p. 6 Carioca, Rio de Janeiro. 16.02.1962, p. 4 34Diário de Notícias, Rio de Janeiro. 12.01.1964, p. 3 33Diário
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lógicas distintas concordavam com essa necessidade da proposta, mas discordavam da maneira como ela deveria ser feita. Projetos distintos foram colocados em disputa, alguns diametralmente opostos, outros nem tanto, mas o fato é que essa divisão prejudicou a sua execução. A principal discussão sobre reforma agrária que rodeava o Congresso era a alteração do artigo 141 da Constituição brasileira, que previa a indenização em dinheiro em caso de desapropriação por interesse social ou utilidade pública. A partir desse “empecilho”, rapidamente surgiram para o público três projetos específicos de reforma tocando, obviamente, na resolução dessa questão. Mesmo com uma grande parte da população sendo a favor da reforma agrária, o calcanhar de Aquiles para a aprovação do projeto no Congresso Nacional era a discussão sobre como seria feita essa reforma. Projetos políticos distintos foram colocados em disputa, alguns diametralmente opostos, outros nem tanto, mas o fato é que essa divisão prejudicou a sua execução. Os petebistas (PTB), em especial o governo, defendiam a alteração do artigo 141 e o pagamento através de títulos da dívida pública com reajustes de 10% ao ano. Os pessedistas (PSD), aceitavam a reforma agrária, todavia, em terras improdutivas e com o reajuste dos títulos de acordo com a inflação que na época se encontrava muito acima dos 10% propostos pelo PTB. O projeto udenista (UDN) visava à desapropriação de terras improdutivas mediante o pagamento em dinheiro, sem a alteração da Constituição brasileira.35 Os três principais partidos do Congresso Nacional não chegaram a um acordo e a proposta de reforma agrária não foi adiante. Mais do que isso, como aponta Aspásia Camargo, teriam sido as disputas em torno da reforma agrária que contribuíram decisivamente para o rompimento da aliança histórica entre PSD e PTB, ajudando na debilidade do governo de João Goulart que se encontrava no caminho para o isolamento político.36 Todos esses fatores conjugados, ou seja, a campanha que buscava acusar os supostos “culpados pela cubanização” do país, a demonstração da infiltração comunista em diversas instituições brasileiras, somadas com apontamento de possíveis causas para essa conjuntura – a inflação e a reforma agrária – ajudaram a construir no Brasil um clima de incerteza, inquietudes e insegurança que tentou justificar e legitimar arbitrariedades que culminaram na ação golpista de 1964.
Jorge. Op. cit. p.164-167. Aspásia de Alcântara. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In: BORIS, Fausto (org.). O Brasil republicano: sociedade e política (1930-1964). 2ª edição. São Paulo: Difel, 1983. 36 CAMARGO,
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35 FERREIRA,
A proposta da reforma agrária, unicamente, não pode ser vista como um fator que explique o Golpe de 1964. A redistribuição de terras ao campesinato não era o problema principal em discussão no Congresso brasileiro, mas a forma como ela deveria ser encaminhada. Esse fato causou, em grande medida, as disputas e as divisões políticas partidárias que prejudicaram o governo, influenciando na sua estabilidade com o “rompimento” entre o PSD e PTB. O que pouco se discute na bibliografia especializada, contudo, é em que condição se insere o camponês nesse debate. Ele está isolado dessas discussões que permeavam a sociedade brasileira? Não seria ele o centro da questão? Não seria a sua condição de vida a principal beneficiada ou prejudicada pela reforma agrária? Porque não se aprofundar no projeto de reforma agrária desenvolvido em torno dos próprios camponeses? Porque não são discutidas as alterações no modo de vida campesino que surgiram com maior força na década de 1950 e que contribuíram para que a reforma agrária se tornasse a principal bandeira política desse grupo e da própria sociedade? A negligencia com os projetos políticos oriundos do próprio campesinato é ancorada nos fatos ocorridos ao longo de novembro de 1961. O I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas contribuiu para homogeneizar o campesinato brasileiro. Grande parte da sociedade brasileira se aproveitou do documento para fazer a analogia imediata entre a plataforma do Congresso com a do campesinato em geral. Esse episódio foi central para a construção de uma opinião pública, vista aqui não somente como a opinião dos jornais ou veículos de imprensa, mas da sociedade de uma maneira geral, que homogeneizou a bandeira política dos camponeses e trabalhadores rurais em torno do lema “reforma agrária na lei ou na marra”. É necessário problematizar essa perspectiva associativa encampada também por parte da historiografia. Ela mistura e apaga múltiplos projetos de reforma levados a cabo por diversos movimentos sociais rurais e coloca em um pedestal de destaque a bandeira política radical proferida por Francisco Julião, além de atribuir esse significado ao campesinato como um todo. A partir dessa perspectiva, o campo brasileiro passou a ser caracterizado como palco de ebulição social e ambiente desfavorável a propostas reformistas e democráticas. As discussões feitas no ano de 2004 e mantidas em 2014, não conseguem orientar as suas análises para a pluralidade de tendências políticas existentes entre os camponeses, sendo o projeto das Ligas Camponesas, retratado como hegemônico para o campo brasileiro. Os veículos de comunicação da década de 1960 são agentes centrais na construção da imagem do campo como palco da radicalização e da revolução agrária. Ao apontar que o Brasil
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estaria caminhando para o mesmo destino de Cuba e poderia se tornar mais uma ilha do comu-
nismo na América, geraram medo e apreensão em setores da sociedade civil que se organizaram para retirar Jango da presidência da república. De acordo com o Jornal do Brasil, é claro que a delonga no encaminhamento de medidas que nos levem a reforma agrária abrirá as forças interessadas em ampliar o campo de agitação possibilidades de um trabalhado claramente subversivo. É quase lógico que, no impasse da reforma agrária, haja interessados em avançar a preparação de uma Revolução Agrária. 37
A conclusão era simples e óbvia para a grande imprensa. O Nordeste estava em convulsão social - com disputas entre camponeses e latifundiários – e aumentava o número de invasões de terra e o desrespeito aos limites da propriedade privada. O governo de Jango era conivente com essas atitudes. Fica-se mesmo a pensar se tudo isso não obedece a um plano preconcebido, a um complô para levar o país a uma aventura de esquerda, que nos leve a cubanização do Brasil. Terão os governantes a clara visão das consequências de sua obra nefasta? Ou são tão medíocres que admitem que podem ganhar alguma coisa arrancando as tábuas do barco?38
Com o clima de agitação e temor era simples caracterizar o campesinato como radical e revolucionário e associá-lo ao movimento social que defendia a plataforma política da reforma agrária na lei ou na marra: as Ligas Camponesas. No entanto, o mais problemático é a utilização desse tipo de fonte primária sem as devidas precauções por parte de alguns autores que chegam a conclusões equivocadas e genéricas sobre o campesinato brasileiro. É preciso fazer o movimento crítico e compreender que o historiador possui um papel específico, ou seja, problematizar com o aparato de inúmeras ferramentas à identificação imediata e linear entre a narração do acontecimento e o próprio acontecimento. O que a maioria da produção bibliográfica em questão não conseguiu distinguir quando colocada a questão campesina no centro das disputas. A tese da socióloga Marie Wilkie ajuda a contrariar essa perspectiva. A autora demonstra a partir de dados estatísticos que os sindicatos rurais possuíam um número de adeptos quatro vezes maior do que o das Ligas Camponesas. Enquanto os sindicatos tinham uma adesão de cerca de 200.000 filiados, em 1962, as Ligas contavam com 40.000 pessoas no mesmo período.39 Não des-
do Brasil, Rio de Janeiro. 15 dez 1962, p. 6 Carioca, Rio de Janeiro 29.11.1961. p. 4 39 WILKIE, Marie. Report on rural syndicates in Pernambuco, Brazil. 2. rev. ed. Madison: Wisconsin University., (mimeo). Oct. 1967. p.39 38 Diário
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37 Jornal
prezando a grande quantidade de associados às Ligas e nem desmerecendo a sua ação política e social, principalmente no nordeste, não é possível enquadrar o campesinato e os trabalhadores rurais como radicais a partir do momento em que se observa que a ampla maioria deles não estava filiada ao caminho revolucionário, ao contrário, estava disposta a negociar a reforma agrária nos limites da organização sindical. As Ligas Camponesas tornaram-se a grande vitoriosa na memória e no imaginário coletivo e, por isso, um dos principais alvos dos setores conservadores da década de 1960, dentre eles parte da grande imprensa. Impedir a cubanização do Brasil seria o objetivo número um dos liberais que taxavam todos os oposicionistas de revolucionários. Nesse contexto, a presença das Ligas Camponesas ajudou a construir uma identidade, no senso comum da época, do campo como palco essencial de uma revolução brasileira, tese encampada por diversos acadêmicos. Elas se diferenciavam dos sindicatos na sua interpretação da situação rural e nos prognósticos futuros. Acreditavam que ocorreria uma revolução armada em dois ou três anos e para que uma nova ordem social fosse criada era necessário que os camponeses estivessem preparados, por isso o envio para o treinamento guerrilheiro em Cuba. Os sindicatos, por sua vez, apostavam na organização do campesinato e na luta democrática a partir do voto, manifestações e greves. 40 A mobilização social no campo era evidente e facilmente perceptível. Leila Stein demonstra como ocorreu um grande impulso no processo de sindicalização rural, na década de 1960, a partir do crescimento do número de sindicatos criados e reconhecidos pelo Ministério do Trabalho.41 No entanto, existe um grande hiato entre essa mobilização e a possibilidade e a capacidade real do campesinato de levar adiante um projeto revolucionário. Os sindicatos, inclusive, viam como negativa a guerra de guerrilhas e buscavam desarticular esse caminho. O PCB, na tese número 15, do V Congresso do partido, defendia que a função dos sindicatos era “a luta por medidas parciais, como a desapropriação de grandes propriedades incultas ou pouco cultivadas, com base no preço da terra registrado para fins fiscais, (...)”42. Portanto, refutava a opção armada e revolucionária, optando por um caminho gradativo e reformista. A Igreja, por sua vez, era ainda mais conservadora. Os dados apresentados na tese de Marie Wilkie sobre a maior adesão camponesa aos sindicatos rurais em consonância com às propostas reformistas, constitucionais e democráticas defendidas pelos sindicatos, ajudam a refutar a teoria de uma possível revolução agrária no Brasil.
Marie. op. cit. p.39 STEIN, Leila de Menezes. Trabalhismo, círculos operários e política: a construção do Sindicato de Trabalhadores Agrícolas no Brasil (1954-1964). São Paulo: Annablume, 2008. 42 AZEVEDO, Fernando. op. cit. p.88 41
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40 WILKIE,
Os grupos revolucionários no campo eram minoria e não tinham capacidade de mobilização e ação para levar a cabo o projeto de criar uma nova Cuba na América Latina. Portanto, é preciso problematizar as fontes consultadas permeadas de interesses políticos que fogem a análise objetiva. A bibliografia dos 40 e 50 anos do Golpe coloca como protagonista a ação das Ligas Camponesas, o lema reforma agrária na lei ou na marra e o projeto de cubanização do Brasil. Sendo assim, reforçam a visão dos periódicos e deixam de analisar outros fatores políticos importantes que envolvem o campesinato e projetos reformistas distintos que permeavam as ações dos camponeses e trabalhadores rurais. Fernando Azevedo, em 1984, afirmava que as Ligas Camponesas se defrontaram com um novo movimento social agrário, no qual não mantinham mais a hegemonia.43 As teses cubanas e o radicalismo dessas propostas afastaram o campesinato das Ligas Camponesas, ou seja, o ideal da luta a partir da legalidade estava no jogo político dos camponeses. A bibliografia especializada em 1964 insiste em destacar o oposto, ao focar somente no tripé explicativo e excluir os outros tipos de mobilização social. O interesse maior pelo campesinato anda lado a lado com a proposta de extensão do voto aos analfabetos, na década de 1960. Visto que o fenômeno do êxodo rural ganhava grande impulso no Brasil, tanto a direita como a esquerda, vão disputar a hegemonia na organização dessa classe social. Inserir no jogo político e conseguir o apoio de uma vasta população que até o momento estava marginalizada politicamente era o objetivo de partidos políticos, da Igreja e do próprio governo de Jango. Essa “corrida” em torno do campesinato ocorreu de diversas formas, sendo uma delas a criação e organização de sindicatos rurais para representar os interesses e anseios desses indivíduos. Assim, o que estava em jogo era o monopólio da representação camponesa, muito importante para angariar força em um país que se encontrava em estado de grande radicalização política. A partir da década de 1940, pela primeira vez, partidos de esquerda abandonaram a retórica revolucionária e deslocaram quadros políticos para organizar os camponeses. Em 1960, o PCB era o maior deles e tinha grande influência na organização de sindicatos e federações de trabalhadores rurais. Vale ressaltar, novamente, que a linha política traçada pelo Partido, era da defesa da reforma agrária por vias legais, constitucionais e de caráter gradativo, em oposição à plataforma radical da guerra revolucionária defendida por Julião.
Ibid. p.101.
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43
Com a mudança na estratégia revolucionária, o PCB distanciou-se, em meados de 1950, das Ligas Camponesas. Todavia, essas definições não seguem padrões rígidos de ação. As Ligas encaminharam diversas vezes reivindicações de caráter legal ao Judiciário, rompendo com uma linha radicalizada e recorrendo aos padrões legais da justiça. O PCB, por sua vez, apoiou algumas invasões de terras e desrespeitaram o princípio da propriedade privada. Esses exemplos refutam teorias rígidas e estruturalistas que não apreendem a dinâmica da História44. Além desses dois atores, a Igreja Católica também foi protagonista na organização de movimentos sociais no campo, aumentando ainda mais a complexidade da questão. A presença de clérigos no mundo rural é antiga e na maioria das vezes estavam em consonância com as classes dominantes. Por volta de 1950, no entanto, essa situação irá se inverter com o distanciamento dos grandes proprietários de terra e a aproximação com os camponeses, atendendo carências básicas como remédios, itens de higiene, etc. Nesse momento, os grupos de esquerda encontraram um poderoso rival que também atuou na sindicalização do trabalhador rural. Nesse ambiente, os sindicatos vão aumentando o seu número de filiados enquanto as Ligas Camponesas vão esvaziando cada vez mais. Fernando Azevedo elenca algumas causas desse processo de decadência das Ligas, dentre as quais a falta de uma organização vertical que melhor gerisse as ações do grupo em cadeia nacional; as sucessivas disputas internas que dividiram a liderança do movimento; por fim, “era, sobretudo, produto de uma atuação tática e uma visão estratégica radicalizante, que se desenvolvia numa faixa própria, contornando e rejeitando as regras do jogo político então em vigor e que passavam pelos acordos e pactos mais amplos”. 45
O último e talvez o principal rival de Francisco Julião na arregimentação e organização do campesinato foi o próprio governo Jango. Diversos mecanismos foram criados durante o seu mandato com destaque para Supra em 1962 (Superintendência Política de Reforma Agrária), com o objetivo de promover a distribuição de terras e a reforma agrária, e o ETR (Estatuto do Trabalhador Rural) de 1963. De acordo com Stein, ele seria importante para flexibilizar o processo de criação de sindicatos, auxiliar na formação de uma estrutura de lutas nacionais, além de regulamentar as normas para contratação e gerar defesas efetivas para os trabalhadores46.
Mario e DEZEMONE, As esquerdas e a descoberta do campo brasileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos (1945-1964). In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão. Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.p. 222-224. 45 AZEVEDO, Fernando. op. cit. p. 95. 46 STEIN, Leila. op. cit. p. 124.
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44 GRYNZSPAN,
Na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), de 1943, já estava em vigor a organização de sindicatos rurais por todo o Brasil. Entretanto, os camponeses encontravam um grande obstáculo para a execução desses sindicatos: a pluralidade de formas de trabalho no campo. Posseiros, meeiros, foreiros, arrendatários, assalariados formavam um grupo heterogêneo com modalidades de trabalho distintas, o que inviabilizava o processo de construção de um sindicato rural. Com o Estatuto, as múltiplas categorias de trabalho no campo puderam ser inseridas em uma única, Trabalhador Rural, algo que propiciou o desenvolvimento e proliferação dos sindicatos rurais por todo o país. A opção de João Goulart em incentivar a sindicalização rural está ligada a tentativa do governo em estabelecer um vínculo de reciprocidade entre o Estado e os trabalhadores rurais. Buscava-se (re)construir uma relação varguista que ganhou muita força a partir do Estado Novo, em 1937, ou seja, o trabalhismo. Jango buscaria constituir um trabalhismo voltado para os camponeses, sendo assim chamado de rural ou agrário.47 O intuito era o mesmo de Vargas, dentro da expressão: “dar, receber e retribuir”.48 O Estado seria o responsável por criar mecanismos – como o ETR - que fizessem com que a legislação trabalhista atingisse o trabalhador rural sindicalizado. O governo buscaria transmiti-las como se fossem presentes e dádivas (dar) – o que se tornou mais viável para Getúlio por governar em um Estado autoritário e com um forte serviço de propaganda, organizado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Aos camponeses caberia receber aqueles benefícios (receber) e, em troca, viria à retribuição e a gratidão ao presidente da República (retribuir), transformada em apoio político e admiração – como ocorreu com Vargas, conhecido pela alcunha de “pai dos pobres”. Em todo ato de dar / doar vêm implícita a ideia de retorno, uma vez que aquele que doa se coloca em uma posição ascendente frente ao que recebe49. João Goulart acreditava que a sindicalização rural era, portanto, o caminho para angariar uma nova base política, além de um meio eficiente para promover a Reforma Agrária. Sofrendo grande oposição da bancada ruralista dentro do Congresso Nacional, o incentivo a mobilização de camponeses e trabalhadores rurais através de greves e passeatas se transformou em um dos métodos do presidente para aprovar as reformas de base.
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47 BALTHAZAR,
Pedro Henrique Barbosa. XVI Encontro Regional de História da Anpuh RJ. Sindicalização Rural no governo de João Goulart (1961-1964): As discussões historiográficas acerca do campo brasileiro. 2014. (Simpósio). 48 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 226-233. 49 Ibid. p. 226-233.
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Conclusão Em síntese, é possível observar a complexidade das lutas sociais no campo brasileiro. O governo Goulart buscou incluir os camponeses como agentes centrais do processo político mobilizando-os em torno da sua plataforma reformista. Partidos políticos, com maior destaque para o PCB, seguiram o mesmo caminho visto que acreditavam na reforma agrária como etapa para a construção do futuro socialismo brasileiro. A Igreja Católica também se dedicou a organização do campesinato em busca da adesão de um maior número de fiéis e com o objetivo de afastar o comunismo do mundo rural. As Ligas Camponesas, constituídas como maior elemento da memória social do campo e alvo de maior investimento de autores especializados no Golpe de 1964, possui a sua contribuição histórica que em momento algum deve ser desmerecida. Elas contribuíram, a partir de 1955, para a mudança na mentalidade política dos camponeses. Demonstraram a eles a possibilidade de vitórias, pacíficas ou não, frente aos grandes proprietários de terra. A desapropriação do Engenho Galileia é o símbolo maior da vitória política da organização na sua luta contra a opressão no campo. Entretanto, não é correto supervalorizar as suas ações ao alertar para uma possível revolução agrária no Brasil. As Ligas não tinham essa capacidade de mobilização, pois não eram hegemônicas na organização do trabalhador rural, não tinham uma adesão maior do que os sindicatos e não possuíam uma organização vertical que ajudasse no processo de liderança. Erro mais grave ainda, entretanto, é atribuir a todo o campesinato brasileiro o estereótipo de revolucionário e radical devido à ação das Ligas e do seu líder. Observarmos a pluralidade de ideologias e tendências de organização dos camponeses, especialmente aquelas ligadas à sindicalização. O governo Jango colocou o campo brasileiro na pauta do dia e viu nos camponeses um caminho para impulsionar as reformas de base. Logo, é preciso um maior cuidado e investimento ao trabalhar com os movimentos sociais, partidos políticos ou instituições que organizaram o campesinato e os trabalhadores rurais, buscando observar que as disputas políticas existentes eram de uma complexidade enorme e que não é possível atribuir à população rural uma única identidade política.
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A LÓGICA DO TESTEMUNHO E O JOGO NARRATIVO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES Pedro Beja Aguiar* RESUMO: O presente artigo busca analisar a construção do jogo narrativo que o escritor português António Lobo Antunes desenvolve em suas obras literárias Os cus de Judas e O Manual dos Inquisidores. A pedra de toque desta abordagem será, no limite, compreender a lógica do testemunho das personagens de Lobo Antunes como uma experiência histórica contemporânea – no sentindo que não se refere unicamente à preservação de uma memória sobre uma experiência concreta do passado, mas diz, fundamentalmente, sobre como a sociedade portuguesa contemporânea constantemente reconstroe o passado a partir do tempo presente – marcada pelo horror da experiência colonial. PALAVRAS-CHAVE: Testemunho; António Lobo Antunes; Engenharia narrativa. THE LOGIC OF TESTIMONY AND THE NARRATIVE IN ANTÓNIO LOBO ANTUNES ABSTRACT: This article seeks to analyze the construction of the narrative game that the Portuguese writer António Lobo Antunes develops in his literary works Os cus de Judas and O Manual dos Inquisidores. The cornerstone of this approach will be, ultimately, understand the logic of the testimony of Lobo Antunes character as a contemporary historical experience - the feeling that does not refer solely to the preservation of a memory of a concrete experience of the past, but says, basically on how contemporary portuguese society constantly economic reconstruction and the past from the present time - marked by the horror of the colonial experience. KEYWORDS: Testimony; António Lobo Antunes; Narrative engineering. ***
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Mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio. Graduado em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de mestrado do CNPQ. E-mail: pedrobejaaguiar@gmail.com. *
El regreso del pasado no es siempre un momento liberador del recuerdo, sino un advenimiento, una captura del presente.1
Introdução
P
ensar o campo da cultura portuguesa contemporânea – seja nas artes plásticas, na pesquisa histórica, nas formas ensaísticas de crítica literária, no cinema ou na própria construção de narrativas ficcionais – é pensar as respostas da sociedade
aos desafios impostos pelas “políticas de memória” no processo inicial de democratização de Portugal. Desde uma ruptura com o passado ditatorial, marcadamente caracterizado pela adesão de Portugal à Comunidade Econômica Europeia (no qual se buscou demonstrar um papel crítico e denunciador sobre os posicionamentos políticos e econômicos do colonialismo português), até uma estratégia de esquecimento e ocultação das vozes que provinham das experiências da Guerra Colonial, a transição para o regime democrático se estruturou sobre pilares divergentes: ora denunciando o passado ditatorial, ora omitindo a violência colonial. Passados quarenta anos dos processos de descolonização e do início dos debates pelo futuro da democracia em Portugal, diversas formas artísticas e culturais começaram a aparecer como uma necessidade social de apresentação de um conjunto de percepções do tempo em que viviam, no qual elementos perceptíveis da história recente portuguesa, bem como elementos imaginários e factíveis, definiam o contexto político contemporâneo2. Como produtos do contexto político-social a que pertenciam – emergindo das zonas de sombra que as formas e experiências recalcadas pelas “políticas de memória” estatais proporcionaram – as obras artísticas, principalmente as obras literárias, apareceram utilizando os testemunhos como uma estratégia narrativa que flagrava as experiências coloniais que o Estado omitia na estratégia de um “desaparecimento memorial”. Principalmente no contexto do pós-25 de abril de 1975, quando as ficções literárias que daí surgiu passaram a resgatar os traumas e as memórias daqueles que participaram das experiências de violência e terror na Guerra Colonial, “questionando os protocolos do esquecimento”3 que a transição política impôs. Com a centralidade no tema da experiência colonial, através de uma atitude de abrogação4 cultural e política sobre o colonialismo realizado pelo governo português durante o séSARLO, Beatriz. “Tiempo pasado”. In: Tiempo pasado: cultura de la memória y giro subjetivo. Una discusión. México: Siglo XXI Editores, 2006, p. 9. 2 RANCIÉRE, Jacques. “Em que tempo vivemos?”. Revista Serrote. Rio de Janeiro: IMS, nº 16, abril, 2014, p. 203. 3 RIBEIRO, Margarida Calafate. “Memórias coloniais imperfeitas”. In: Jornal Público, caderno Cultura, 20 de janeiro de 2015, p. 28. Disponível em: <http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/memorias-imperfeitas-1682657>. 4 LEITE, Ana Mafalda. “Literaturas Africanas e Pós-Colonialismo”. Literaturas Africanas e Formulações Pós-coloniais. Lisboa, Portugal: Edições Colibri, 2ª edição, 2013, p. 19. 1
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culo XX, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, muitos escritores se debruçaram sobre os relatos e as próprias experiências com o regime para desencadear uma narrativa e um enredo que fossem críticos ao pensamento colonial e anticolonial, voltados mais para a complexidade das relações entre colonizador e colonizado do que uma crítica direta ao salazarismo ou ao imperialismo empregado nas colônias africanas. Esta postura de crítica pós-colonial5 na ficção, que desestrutura a visão colonial, ganha espaço no pós-Revolução dos Cravos com autores portugueses, como: Helder Macedo, Isabel Barreno, José Cardoso Pires, Lídia Jorge, José Saramago, António Lobo Antunes, entre outros. Destes autores, destacaremos aqui um dos casos mais paradigmáticos da literatura de testemunho sobre a violência colonial e que foi produzida na chamada “viragem na tomada de consciência pós-colonial”, para utilizar uma expressão da professora Margarida Calafate Ribeiro: o caso de António Lobo Antunes. Como afirma Lara Leal sobre a literatura de testemunho: A literatura testemunhal demanda um leitor que tome para si a responsabilidade dos acontecimentos. É, pois, uma literatura que procura acordar o homem, mesmo que se saiba de antemão que tais relatos são tecidos de matéria frágil, pois a experiência traumática é sempre impossível de ser relatada na sua integralidade. 6
É a partir da citação acima que podemos compreender a frase de Beatriz Sarlo utilizada como epígrafe nesta introdução. A estratégia do testemunho como um relato que resgata um tempo passado deve ser pensada na forma como a escritora argentina afirma, na qual o resgate de outro tempo não significa, necessariamente, um momento de libertação de uma lembrança, mas sim a captura do presente. Por isso, a literatura testemunhal “procura acordar o homem” para que este veja o seu próprio tempo, compreenda seus traumas sociais, pois a reconstrução
O sentido do conceito pós-colonial neste texto refere-se a uma leitura crítica dos efeitos culturais da colonização, no qual se propõe uma nova perspectiva e reinterpretação dos discursos da época colonial. Como coloca a professora Ana Mafalda Leite: “pós-colonial não designa um conceito histórico ou diacrônico, mas antes um conceito analítico que reenvia às literaturas que nasceram num contexto marcado pela colonização europeia” (LEITE, op. cit., p. 11). Outra ótima definição para a crítica pós-colonial é da professora Heloísa Toller Gomes: “um conjunto de estratégias interpretativas voltadas para a rica diversidade de práticas culturais que caracterizam as sociedades colonizadas ou egressas da colonização europeia” (GOMES, Heloísa Toller. “Crítica pós-colonial em questão”. Z Cultural – Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, Ano III, vol. 1, 2008, p. 1). Por último, utilizo também a interpretação de Stuart Hall, elaborada a partir dos diversos pontos de vista críticos ao conceito: “o termo também oferece [...] outra narrativa, destacando conjunturas-chave àquelas incrustadas na narrativa clássica da Modernidade. [...] o pós-colonial provoca uma interrupção crítica na grande narrativa historiográfica que, na historiografia liberal e na sociologia histórica weberiana, assim como nas tradições dominantes do marxismo ocidental, reservou a essa dimensão global uma presença subordinada em uma história que poderia ser contada a partir do interior de seus parâmetros europeus” (HALL, Stuart. “Estudos culturais e seu legado teórico”. In: Da diáspora. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 112-113). 6 LEAL, Lara. “O longo aprendizado da agonia: a epopeia lírica de Lobo Antunes”. Revista Gândara, Rio de Janeiro, n. 2, 2007, p. 131. 5
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memorialística de um fato sempre está relacionada com o presente. No entanto, não é fácil captar seu tempo e analisá-lo friamente. Compreendido este ponto, retornamos à literatura de António Lobo Antunes. Como uma das grandes características do vasto projeto literário do escritor português, a busca por um mapeamento do que chamaria aqui de “vida cotidiana” perpassa todas as obras do autor, no qual fatos e eventos histórico-políticos são revelados em pequenos detalhes na trama. Através de um jogo e de um fluxo de “vozes” que compõe uma complexa “arquitetura de sentidos”7, Lobo Antunes constrói uma engenharia narrativa que dá forma a uma multiplicidade de falas que, se analisadas em conjunto, produzem significados e revelam grandes eventos históricos inscritos na historiografia oficial portuguesa. Como um escritor “contemporâneo”8, Lobo Antunes dá a ver as “obscuridades [do seu tempo], [com a capacidade] de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” 9, ou seja, um escritor que através de “vozes” angustiadas, permeadas de lembranças com testemunhos do horror da guerra, revela “um presente com o qual não é possível coincidir”10. Este caráter intempestivo das obras literárias de Lobo Antunes proporciona um jogo entre passado e presente que se revela por meio de detalhes nos diálogos e na composição do enredo, no qual: O passado apenas se presentifica enquanto perdido, oferecendo como testemunho seus índices desconexos, matéria-prima de uma pulsão arquivista de recolhê-lo e reconstruílo literariamente. Enquanto isso, o futuro só adquire sentido por intermédio de uma ação intempestiva capaz de lidar com a ausência de promessas redentoras ou libertadoras.11
A dolorosa aprendizagem da agonia em Lobo Antunes [...] o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente do seu tempo. 12 MONTAURY, Alexandre. “António Lobo Antunes: Ficção e Cotidiano”. Gláuks, v. 10, n. 2, 2010, p. 292. Utilizo aqui a noção de contemporâneo retirada de Giorgio Agamben, no ensaio “O que é o contemporâneo?”, onde o autor parte de uma compreensão da leitura de Roland Barthes sobre as “Considerações intempestivas”, de Nietzsche. Utilizando a interpretação do professor Karl Erik Schollhammer no texto introdutório do seu livro “Ficção brasileira contemporânea”: “o contemporâneo é aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo.” (SCHOLLHAMMER, Karl Erik. “Que significa literatura contemporânea?” In: Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 9, grifo meu). Desta forma, o verdadeiro contemporâneo não é aquele que se identifica com seu tempo ou que está completamente sintonizado com ele, mas que desloca seu olhar e critica o seu tempo. 9 AGAMBEN, Giorgio. “O que é o contemporâneo?” In: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 63. 10 SCHOLLHAMMER, op. cit., p. 17. 11 Idem, p. 12-13. 12 AGAMBEN, op. cit., p. 64. 7 8
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Utilizando como pretexto narrativo os reflexos sociais da guerra e a memória pessoal como fonte inspiradora para os questionamentos da subjetividade nas personagens, António Lobo Antunes constrói no seu segundo livro – Os cus de Judas, de 1979 – uma trama composta por uma rede em que o horror, o medo, a violência e a solidão se entrelaçam e se manifestam através de diálogos irônicos e secos. Publicado no mesmo ano do seu primeiro livro – Memória de Elefante –, e cinco anos depois da Revolução dos Cravos, Os cus de Judas se destacou em meio à crítica por trabalhar o recalcamento das memórias coloniais através de uma longa narrativa em que a personagem-narrador manifesta “o espectro da agonia”13 que foi a experiência colonial. Como nos informa Inocência Mata: Depois das independências, a África evocada era-o primeiramente enquanto localização da inquietação colonial e imperial, mais precisamente por ser lugar de um tempus horribilis histórico: a guerra colonial – e já não propriamente lócus horrendus, como fora na construção na ultramarinidade e da colonialidade, em que o confronto era com o espaço humano e natural.14
Destacando de forma ácida e incisiva as fragilidades envolvendo o processo da colonização, o escritor português enfatiza a barbárie numa “atmosfera irreal, flutuante e insólita”15 de uma “guerra invisível”, sempre de maneira a sublinhar uma perspectiva pós-colonial, ou seja, a de salientar as dificuldades de se construir as identidades, o estranhamento sobre os espaços (LisboaAngola) e as relações ambíguas entre colonizador e colonizado. Um exemplo desta perspectiva pós-colonial é a ênfase dada pelo autor para as angústias dos soldados portugueses que rumavam para um país distante sem saber ao certo o que deveriam fazer, quais seriam suas funções naquela engrenagem política de Salazar e como conseguiriam sobreviver a costumes e culturas tão diferentes como as deles. A desestruturação psicológica da personagem é percebida já no início da narrativa quando tomamos conhecimento das lembranças da infância e tudo aquilo que o fazia feliz no Jardim Zoológico de Portugal. Estas imagens, como o professor negro que deslizava na pista de patinação, as meninas que olhavam atentas ao professor, a descrição da casa dos pais, a girafa solitária e os cães; todas estas imagens da infância veiculadas por um narrador que tinha acabado de retornar da guerra demonstram que este momento também foi uma experiência traumática para o narrador, visto que esse período de sua vida já se confunde pelas percepções da guerra. A descrição 14
LOBO ANTUNES, António. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 24. MATA, Inocência. “Uma intensa disseminação: a África como lócus na literatura portuguesa”. Reflexos, nº 1, 2012, p.
1. 15
LOBO ANTUNES, op. cit., p. 49.
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destas impressões e sensações nos é revelada através de um ritmo fluente e uma linguagem repleta de metáforas, tanto que nas descrições destas memórias antigas tomamos conhecimento apenas da morte: “os meus pais moravam não muito longe, perto de uma agência de caixões”16; da solidão e das tias, mulheres bastante religiosas que desejavam que o personagem-narrador entrasse para a tropa portuguesa, pois apenas assim ele se tornaria homem. O fluxo narrativo intenso, permeado de relatos que exemplificam a tentativa difícil e, ao mesmo tempo, frustrada de dar conta de uma experiência traumática é ilustrada no Capítulo H (todos os capítulos são nomeados por ordem alfabética) quando o autor utiliza uma mesma palavra – “Escute” – para iniciar os três – e longos – parágrafos do capítulo. Não há nenhuma pausa nesta parte, o que podemos interpretar como uma tentativa de desabafo ansioso daquele que tem pressa ao falar para não se esquecer de nada e poder compartilhar, de forma terapêutica, todas as lembranças que o assombram. Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo [...], escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda [...].17
A forma como a memória marca o narrador no jogo de composição da narrativa e o desespero das lembranças na escrita de Os cus de Judas fica evidenciado nas passagens que a personagem-narrador fala de Ninda, comuna angolana na província do Moxico (Angola). Em diversos momentos, refletindo a ansiedade ao contar às lembranças que aparece, “os eucaliptos de Ninda não cessavam de aumentar”18, o narrador repete algumas palavras em exaustão: “caralho caralho caralho”; “empalidecia e corava, empalidecia e corava, empalidecia e corava”; “cabrões de merda, cabrões de merda, cabrões de merda”19. Este ato contínuo das falas que se repetem e a presença fundamental da memória como condutora da narrativa são elementos imprescindíveis para pensarmos a lógica do testemunho da personagem e a forma como a obra literária de Lobo Antunes produz uma inquietação e proporciona um espaço para discussão do presente. Os testemunhos na literatura do escritor português se originam da violência estatal, e não no sentido das narrativas usualmente criadas na chamada “literatura de testemunho”, como resultado dos relatos produzidos pelos sobreviventes do Holocausto ou dos testimonios latinoamericanos da década de 1980. A estratégia de uma trama construída a partir do testemunho de
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Idem, p. 10. Idem, p. 57, grifos meus. 18 Idem, p. 58. 19 Idem, p. 59, 60 e 62. 16
uma personagem significa demonstrar um discurso permeado por silêncios e omissões, repleto de situações-limite que revelam um narrador por vezes passivo àquilo que expõe. Desta forma, “é como se ali, naquelas palavras [ditas pelo narrador em Os cus...], ou naqueles silêncios, a sociedade [portuguesa] buscasse sua própria memória, ou seja, sua própria história”20.
Quando os palhaços se tornam pássaros A memória tem a ver com o presente, embora sempre seja vista como coisa do passado. Ela é uma construção do presente, está sempre voltada para questões atuais. Se você silencia os discursos da memória, você está na verdade silenciando potenciais agentes de poder. O teatro da memória é eminentemente político. 21
Através de uma estratégia diferente da empregada n’Os cus de Judas, no décimo primeiro livro lançado por António Lobo Antunes – O Manual dos Inquisidores (1996) –, o escritor desenvolve uma narrativa muito mais complexa, com um número bem maior de elementos literários para dar sentido a um todo. Através de um jogo de “relatos” e “comentários”, sempre um intercalando o outro, a história vai se formando na medida em que o leitor desenvolve a leitura. Com uma diferença de 17 anos do lançamento do seu segundo livro para o seu décimo primeiro, e com nove livros neste ínterim, Lobo Antunes consegue aprimorar sua escrita a ponto de levar ao ápice a engenharia narrativa que já havia testado de forma magistral em Os cus de Judas. A multiplicidade de vozes narrativas que coexistem em O Manual dos Inquisidores e a forma como estas produzem significados para o contexto sócio-histórico da sociedade portuguesa contemporânea demonstram como a frase de Márcio Seligmann-Silva, “o teatro da memória é eminentemente político”, utilizada na epígrafe faz sentido na obra literária de Lobo Antunes. Como já colocado acima, partimos da premissa de que o texto literário do escritor português é produto de uma condição histórica portuguesa, como uma partilha de sensibilidade22, inserido no bojo das discussões críticas pós-coloniais. O próprio Lobo Antunes afirma numa entrevista concedida ao jornal Visão, quando do lançamento d’O Manual dos Inquisidores, a ideia original para o livro: LEAL, op. cit., p. 129. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Os escaninhos da memória”. In: Jornal da Unicamp, Edição 391, 7 a 13 de abril de 2008, p. 2. Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/abril2008/ju391pag5-67.html>. 22 O texto literário de António Lobo Antunes pode ser interpretado como uma partilha de sensibilidade quando identificamos na composição narrativa do escritor uma reconfiguração dos modos de existência, ou seja, um alargamento das formas de perceber o mundo e a comunidade a sua volta. Numa relação direta entre política e estética, como pontua Jacques Rancière, a estratégia narrativa de Lobo Antunes pode ser compreendida como uma “questão de distribuição dos lugares” (RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Rio de Janeiro: Editora 34, 2009, p. 17) na composição dos relatos e comentários das personagens. 20 21
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N`O Manual..., como nos meus últimos livros, procurei escrever uma história em que as personagens se iluminassem umas às outras, sublinhar as contradições tremendas das pessoas, o que elas são difíceis de julgar. Pareceu-me que era importante dar um retrato daquilo a que se chama direita vista pela própria direita. Não há ali nenhuma personagem revolucionária, mesmo os pobres são conservadores. Lembro-me de um chauffeur particular que, a seguir ao 25 de Abril, me dizia que votava no CDS [Centro Democrático Nacional], porque, se acabassem os patrões, ele perdia o emprego. Essa gente, poderosos e pobres, que pretendo retratar. Por outro lado, não pude deixar que os maus fossem completamente maus, e por isso também lhes dei o lado humano. 23
Da mesma forma como Lobo Antunes realizou nos livros anteriores, o ponto de partida para esta obra é uma análise crítica de um passado mal resolvido pelos portugueses que sempre reflete no tempo presente através de dúvidas e questionamentos. Seja a partir de uma releitura da Guerra Colonial em Angola, do período ditatorial de Salazar no poder (de 1932 até 1968), da complexa construção democrática que se iniciou em 1974 ou das relações do regime de Salazar com as colônias africanas, “todo e qualquer escrito de Lobo Antunes fala [...] do horror da guerra que desnuda a relação entre linguagem e violência estatal, que dá a ver o homem o quão de animal ele possui.”24 Centralizando a análise no jogo narrativo empregado n’O Manual..., a ideia metafórica de um espelho quebrado permite compreender estes lugares de discurso das personagens na construção formal do livro. Se pensarmos que cada pedaço deste espelho estilhaçado é um ponto de vista de um evento, perceberemos que todos irão “refletir” um mesmo objeto, mas de tamanhos e formatos diferentes. Estes pedaços são os próprios discursos das personagens que apresentam uma interpretação particular de uma situação compartilhada, na qual cada personagem-narrador fornece uma percepção de uma situação histórica do lugar de fala que pertence. Exatamente como é realizada na estrutura narrativa d’O Manual, no qual as narrativas se entrelaçam num jogo de “relatos” e “comentários” que se sobrepõem aos eventos mencionados, como em uma “complexa arquitetura de sentidos”25. A título de exemplo, dois trechos do livro em análise compreendem o jogo da composição narrativa, em que as personagens de João, filho do ministro de Salazar, e Sofia, sua ex-esposa, relatam uma situação que envolve uma história compartilhada pelos dois. No primeiro trecho, relatado por João, temos a não compreensão da personagem sobre as tarefas que exercia no banco que pertencia à família de Sofia. No segundo trecho, comentado por Sofia, temos a circunstância pela qual a personagem descobriu as fraudes na empresa causadas por João:
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Entrevista concedida ao jornal Visão, no dia 26 de setembro de 1996. Grifos meus. LEAL, op. cit., p. 127-128. 25 MONTAURY, Alexandre. “António Lobo Antunes: Ficção e Cotidiano”. Gláuks, v. 10, n. 2, 2010, p. 292. 23
eu que não me ocupava de nada, me limitava a escrever o nome onde me indicavam que escrevesse e a rubricar as letras e as quitações que o diretor de pessoal me apresentava - Por cima dos selos senhor engenheiro obrigadíssimo que não entendia de empréstimos nem de letras nem de quitações, que não adivinhava que o diretor de pessoal havia de fugir para Joanesburgo com o dinheiro do banco, e os irmãos da minha sogra já fora de Caxias ou de Peniche ou de Vale de Judeus a convocarem-me para uma reunião, a não me convidarem a sentar e a sacudirem uma pilha de dívidas - Que é isto? dívidas, promissórias, contratos, cedências de ações, compras, vendas, cambalhotas cambiais, operações catastróficas.26 e mal libertaram os meus tios de Caxias, do forte junto aos esgotos da cidade e ao pontão de pescadores coberto de limos que avançava pela água na direção da foz, chamaram-me ao escritório na Estrela, ofereceram-me um ginger-ale, mostraram-me dossiês e dossiês, imensas cartas, letras, hipotecas, faturas e títulos de dívida tudo com a assinatura do João em baixo, esperaram, muito sérios, que eu dissesse alguma coisa, e como não disse nada o meu tio Pedro agarrou-me no cotovelo e ficou a agarrá-lo que tempos como seu eu estivesse a desmaiar.27
Os dois trechos, assim como diversos outros, refletem a multiplicidade de vozes que coexistem e que causam uma fratura na descrição narrativa, no qual cada personagem-narrador assume uma versão dos fatos. É neste momento, e principalmente na relação que as personagens “da vez” possuem com o contexto sócio-histórico em que está inserida, que podemos apreender o motivo pelo qual ela conduz sua voz narrativa para um ângulo diferente daquela que tínhamos apreendido antes, com outro personagem. Como referimos acima, o lugar de fala das personagens influencia no seu discurso: quando as personagens pertencem ao núcleo dos empregados – palhaços – da quinta de Palmela, todos hesitam nos comentários; quando as personagens pertencem ao núcleo próximo ao regime – pássaros –, poucas vezes percebemos uma fuga do que deveria ser dito. Numa breve descrição do que a professora Maria Alzira Seixo chamou de “estrutura externa”, O Manual dos Inquisidores é dividido em cinco grandes “Relatos”, intitulados por uma sequência numérica ordinal – do Primeiro ao Quinto relato –, no qual cada um destes possui uma epígrafe enigmática – Qualquer pássaro que voe como um pássaro desconhecido; A malícia dos objectos inanimados; Da existência dos anjos; Os dois sapatos descalços no êxtase; Pássaros quase mortais da alma –. Em cada “Relato”28 totalizante existe uma sequência de três relatos e comentários que se alternam, em um procedimento semelhante ao da entrevista jornalística. Para todo relato haverá um comentário de personagens diferentes – somente no Quinto Relato esta composição não acontecerá –
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LOBO ANTUNES, António. O Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 20. Idem, p. 67. 28 Para este texto, todos os momentos que aparecer a palavra “Relato” com letra maiúscula e entre aspas, significa que estou me referindo ao capítulo totalizante. 26
numa tentativa do inquiridor de compor uma entrevista em que as informações sejam contrapostas por todos aqueles que vivenciaram aquilo que foi relatado. Esta estratégia funciona para conduzir os leitores a uma experiência constante de choque com os eventos, no qual sempre seremos atirados para um olhar diferente no relato ou comentário do narrador do momento. A trama que desencadeia o fluxo narrativo do livro em análise é a trajetória de um período decisivo da vida de um ministro de Salazar, chamado Francisco. Esta personagem é sempre referida pelas vozes narrativas que aparecem ao longo do livro como “senhor doutor”, além de ser uma figura que no decorrer da trama ora ganha novas características, ora reforça os adjetivos já apresentados, na medida em que os “comentários” vão aparecendo e enriquecendo o enredo. Dono de uma quinta em Palmela, Francisco é uma figura de grande importância para a estrutura ditatorial em Portugal, “um dos pilares do regime”29, servindo até como conselheiro de Salazar “a fim de discutir o governo do País [...], a meio das decisões sobre o Ultramar, Portugal uno e indivisível do Minho a Timor, a civilização cristã, Afonso de Albuquerque, o milagre de Fátima, a última barreira contra o comunismo ateu” 30, chegando a discutir também “assuntos sérios [como] se damos a África aos pretos ou não damos a África aos pretos”31. Outras personagens de grande valor para a composição narrativa são reveladas ao longo dos diálogos, como o filho de Francisco, João; a governanta Albertina, que possui um núcleo de relatos; o clã familiar da ex-esposa de João, Sofia; e os diversos empregados da quinta: Odete, filha do caseiro; Idalete, a cozinheira; Luís, o veterinário; entre outros. No entanto, ao longo da leitura e da compreensão do jogo narrativo que o autor constrói, percebemos que a instituição familiar de Francisco e, principalmente, a figura do “senhor doutor” apresentam uma face do poder e da resistência a este poder que vigorou na sociedade portuguesa no contexto de ditadura. Como um microcosmo da experiência histórica contemporânea, a quinta de Palmela e suas personagens configuram, de forma simbólica, os discursos do regime. Desta forma, acreditamos que a engenharia narrativa apresentada por Lobo Antunes, repleta de “vozes” que se complementam e que expandem o ponto de vista, seja um procedimento para operar uma ambiência específica dos eventos que aconteceram no regime de Salazar e no 25 de abril de 1974, como uma metáfora da própria construção do discurso histórico do regime ditatorial. O escritor acaba por construir em sua obra ficcional o que Jacques Rancière afirmou em entrevista aos jovens filósofos Muriel Combes e Bernard Aspe:
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MONTAURY, Alexandre. “Manual-romance, um jogo de inquisidores”. Revista Gândara, Rio de Janeiro, nº 1, 2006, p. 2. 30 LOBO ANTUNES, António. O Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 112. 31 Idem. 29
Os atos estéticos como configurações da experiência, que ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas da subjetividade política. [...] A multiplicação dos discursos denunciando a crise da arte ou a sua captação fatal pelo discurso, a generalização do espetáculo ou a morte da imagem são indicações suficientes de que, hoje em dia, é no terreno estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas da emancipação e nas ilusões e desilusões da história.32
Os relatos de Odete, filha do caseiro, e do tio de Sofia, Pedro, são bastante precisos quanto ao lugar de fala e da leitura de mundo frente ao fim da ditadura e início da democracia: sem contar os operários da fábrica que discursavam na rua a tratarem-se por camaradas, a prometerem-nos casas de graça, a afirmarem que éramos livres e eu pensei - Livres de quê? já que a miséria permanecia a mesma só que com mais gritaria, mais bêbados e mais desordem por não haver polícia, os foguetes e os morteiros foram rareando, cansaram-se de besuntar os muros a giz, o do café desistiu do acordeão, os doentes na cama continuavam na cerca a sua procissão de agonizantes [...]. 33 (inquieto com essa parvoíce da democracia e preocupado com a independência dos pretos já que a única coisa para que esses macacos servem é arreganharem o dente, satisfeitíssimos, nos calendários das missões, agora independência por amor de Deus não me façam rir)34
No entanto, quanto mais nos aproximamos do final da leitura do livro e identificamos todos os pilares e vigas (as “vozes”) que compõe a estrutura do “prédio” da narrativa, identificamos outra história que está por trás de toda a trama realizada pelos discursos das personagens. Uma história que nos é revelada apenas quando nos atentamos aos mínimos detalhes da narrativa, nas entrelinhas e nas omissões do enredo. A partir da seção do “Quarto Relato”, no último comentário, identificamos na fala do personagem-narrador Tomás, um “oficial do Exército, tenente coronel na reserva”35 e ex-furriel, uma figura histórica que se omitia no jogo narrativo. Como o professor Alexandre Montaury nos informa sobre Tomás: O depoimento de Tomás revela uma das maneiras por meio das quais a mecânica do esquecimento se instalou em Portugal, quando figuras ligadas ao regime autoritário foram sendo lotadas em autarquias, secretarias e ministérios, em troca de silêncio. 36
RANCIÉRE, op. cit., p. 11-12. LOBO ANTUNES, António. O Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 32. 34 Idem., p. 86. 35 Idem, p. 313. 36 MONTAURY, Alexandre. “Manual-romance, um jogo de inquisidores”. Revista Gândara, Rio de Janeiro, nº 1, 2006, p. 2. 32
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Estas figuras políticas ligadas ao regime que foram afastadas dos núcleos de discussões com o fim da ditadura, através de uma política de “desaparecimento memorial”, deveriam ser caladas de todas as formas. Principalmente aqueles que modificaram seus ideais políticos e se puseram contrários ao regime, como Humberto Delgado. Este militar português das Forças Armadas ficou conhecido como o “General Sem Medo”, principalmente após sua mudança de postura frente às ideias do regime de Salazar e pela sua tentativa de derrubada do regime através de eleições. Frustrado pelas fraudes que o impossibilitaram de vencer o processo eleitoral, perdendo para Américo Tomás, Delgado se exilou no Brasil e começou a preparar o que seria seu maior ato “sem medo”, o assalto e o desvio da rota do paquete de Santa Maria, que saía de Portugal e rumava para Miami. Depois do caso Santa Maria [protagonizado por Henrique Galvão e Humberto Delgado], Delgado exilara-se na Argélia e ali organizara um movimento de oposição [a Salazar]. Atraído para uma reunião perto da fronteira de Portugal e Espanha em 1965, foi assassinado em circunstâncias misteriosas.37
Retomando a descrição da personagem Tomás, motorista e capataz do senhor doutor Francisco, identificamos no seu discurso, principalmente na descrição de alguns detalhes sutis, que um dos topos centrais do romance é a descrição do assassinato de Humberto Delgado. A fala de Tomás, permeada de interrogações e desvios das inquirições do entrevistador – em nenhum momento menciona-se quem seja o entrevistador, mesmo que tudo leve a crer que seja Francisco –, demonstra o enorme desejo daquele que pergunta para que se revele tudo que sabe, como uma forma de quebrar o silêncio imposto pelo final do regime, como no trecho: não entendo que interesse possa ter para um livro a maneira de pensar de um furriel de trinta anos acabado de chegar de cabo, é certo que me chamo Tomás, é certo que me colocaram há imensos anos no Terreiro do Paço mas em lugar de falarmos não quer antes que lhe traga uma cadeira e um guarda-sol de praia para gozarmos a tarde, ouvemse os pavões da mata, nem precisamos de falar, e no momento em que o escuro impedir de nos distinguirmos um ao outro você mete os papeis e as suas gravações na pasta que não há utilidade em desenterrar o passado.38
O momento em que identificamos a figura de Humberto Delgado no comentário de Tomás, depois de diversas divagações que buscam fugir das lembranças do regime, como: “eu queria
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MAXWELL, Kenneth. O Império derrotado: revolução e democracia em Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 109, grifos meus. 38 LOBO ANTUNES, António. O Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 315, grifos meus. 37
falar-lhe do carvalho, das estufas de tomateiros, das cobertas de plástico que me cegavam e do campanário da igreja”39; é na sequência do discurso abaixo: se me afigurava repetirmos a viagem de há pouco, oliveiras, trigo que a geada crestara, pássaros de asas abertas pregados ao céu, e o senhor ministro, a apodrecer por aí num hospital qualquer, chamando-me ao gabinete diante do senhor major que lhe mostrava documentos, fotografias, cartas - Acompanhas no meu lugar a polícia a Espanha para prender o general o general barrigudo, de bigode postiço e cabeleira postiça, numa pensão com a secretária que os vimos chegar a pé num vagar de turistas os vimos entrar. 40
A secretária de Humberto, Arajaryr Campos, também foi assassinada no momento em que o “general barrigudo” foi pego. A descrição do crime continua: sem que eu entendesse o motivo, a borbulhar de ódio pelo general barrigudo da cabeleira postiça por trás do estore apagado - Malandro o indiano ao meu ouvido estremecendo num soluço - Eu mato-o [...] o general barrigudo, de bigode postiço, de cabeleira postiça, vestido com um fato castanho ou cinzento de notário e ao lado do general uma mulher de carteira pendurada ao ombro, o general e a mulher a avançarem: para nós, outra vez o eco muito antigo do galo e do cachorro, as cobertas de plástico prateadas do sol, a bexiga a soltarse-me, as minhas pernas úmidas, as peúgas e os sapatos como se caminhassem num pântano, uma perdiz para aqui e para ali e o general de mão estendida - Companheiros 41
O relato de Tomás deixa clara a participação do ex-furriel no assassinato, mesmo que não tenha sido ele o assassino de Delgado. Como cúmplice, tendo visto toda a cena do crime, desde a forma como o “general” morreu até o enterro e a cal jogada nos corpos para que o sangue desaparecesse, Tomás responde a pressão do inquiridor e, aos poucos, vai revelando o inaudito. Para finalizar, na transcrição das passagens em que Humberto Delgado é referido – mesmo que seu nome não seja mencionado em nenhum momento do livro – temos o momento em que Tomás expõe a forma como ocorreu o crime: E não se ouviram tiros, quer dizer eu pelo menos sou capaz de jurar que não ouvi tiro nenhum, tudo se passou numa mudez de aquário, num vagar de congros, até a demora dos gestos, dos movimentos, das quedas, e no entanto o general a esvaziar-se de si mesmo dobrado sobre o ventre, com uma espumazinha esquisita no nariz, o general com um dos pés descalço de bruços num talude a perder a cabeleira postiça, o bigode postiço, um terço do crânio quando o inspetor, não, o indiano, acho que foi o indiano,
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Idem, p. 322. Idem, p. 318, grifos meus. 41 Idem, p. 318-319. 39
se abraçou a ele, a voz preocupada do senhor ministro a arrulhar beijinhos gaiteiros ao espantalho.42
Conclusão A memória não é conservação, mas reconstrução do passado a partir do presente. Ela é por essência seletiva, e o esquecimento é uma das formas privilegiadas da sua organização, serve a estruturar a identidade individual e colectiva. A história do esquecimento e a história da memória fazem e reenviam à história dessa identidade. 43
Em resumo, podemos identificar O Manual dos Inquisidores e Os cus de Judas como dois livros em que António Lobo Antunes desenvolve uma crítica pós-colonial as zonas de incerteza que caracterizaram as “políticas de memória” sobre as quais foi construída a democracia portuguesa. Através de uma precisão técnica, Lobo Antunes constrói duas narrativas que necessitam do desenvolvimento da leitura até o final do livro e uma compreensão dos diversos discursos que se chocam para que seja possível perceber a montagem de uma estrutura que alude às práticas culturais que caracterizaram a sociedade portuguesa na ditadura e no início do período democrático. Mesmo em Os cus..., que possui apenas uma narrativa, precisamos completar a leitura do livro para formar uma opinião coesa sobre os objetivos do escritor. Entre pássaros e palhaços, entre aqueles que funcionam como mecanismos de manobra do regime e aqueles que personificaram o próprio regime, temos a composição da engenharia narrativa dos livros.
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NÓS SOMOS CONSCIÊNCIAS, CONSCIÊNCIAS E CONSCIÊNCIAS
O romance-ensaio na obra ficcional de José Saramago Rafael da Cunha Duarte Francisco* RESUMO: O presente trabalho pretende discutir como o escritor português José Saramago constrói um projeto estético no qual o romance adquire um caráter ensaístico e, dessa forma, procura atuar de diversas formas na transformação do mundo referencial de seus leitores, consolidando uma estética do diagnóstico que extrapola a própria obra ficcional do autor para refletir sobre a condição do homem moderno na contemporaneidade. Esse movimento se inicia com a construção do enredo romanesco mas não se esgota nele. O que advogamos nesse ensaio é a hipótese de que o romance-ensaio constitui-se como um subgênero do romance contemporâneo em que a construção de um diagnóstico sobre a sociedade ocidental pode ser desenvolvido não apenas como uma reação, mas também como uma tentativa de transformação dessa realidade social e dessas múltiplas consciências por ele tematizadas a partir do fingimento ficcional. PALAVRAS-CHAVE: José Saramago; Romance-ensaio; diagnóstico. WE ARE CONSCIOUSNESS, CONSCIOUSNESS AND CONSCIENCES: the novelessay in the José Saramago’s fictional writing ABSTRACT: This paper aims to discuss how the portuguese writer José Saramago develops an aesthetic project in which the novel acquires an essay character and thus seeks to engage in different ways in the transformation of their reader's social world, consolidating an aesthetic of diagnosis that surpasses the proper author's fictional work to reflect on the condition of modern man in contemporary times. This movement begins with the construction of the novel plot but does not end on it. What we defend in this paper is the assumption that the romance-assay was established as a subgenre of contemporary novel in which the construction of a diagnosis of Western society can be developed not only as a reaction, but also as an attempt to change this social reality and these multiple consciences themed by the fictional pretending. KEYWORDS: José Saramago; Romance-essay; diagnosis. ***
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Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Atualmente desenvolve sua pesquisa com a bolsa oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: rafaelcfrancisco@hotmail.com. *
O
que é um ensaio? No âmbito acadêmico, essa é uma pergunta de difícil resposta. Por vezes confundido com o artigo científico1, trata-se de um gênero textual no qual o caráter de experimentação é (ou pelo menos deveria ser)
aquilo que orienta a composição do trabalho. Trata-se mais dos caminhos adotados para a reflexão científica, filosófica ou literária do que do resultado a ser obtido. É sobre esse caráter de experimentação, em dois dos romances de José Saramago, que o presente ensaio procurará propor suas reflexões. José Saramago é um ponto fora da curva no cenário da literatura contemporânea ocidental, especialmente quando o tema é essa antiga dicotomia entre o escritor ensaísta (o crítico literário/social) e o romancista premiado. O autor português não se liga à tradição de grandes nomes como J.M Coetzee, Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez e tantos outros que paralelamente às suas obras ficcionais, produziram profundas reflexões não apenas sobre a literatura, mas também acerca da realidade política e social. Não tendo escrito sobre a literatura e nem sobre a sociedade, obviamente não queremos dizer que Saramago não posicionou-se sobre essa vasta gama de questões e, muito menos, que elas não possuíram um impacto fundamental sobre sua ficção. Pelo contrário, pensar os seus ensaios (sobre a cegueira e lucidez)2 só parece possível à luz das muitas entrevistas e conferências proferidas ao longo de sua carreira. Saramago foi um romancista-ensaísta capaz de levar às últimas consequências o hibridismo entre dos gêneros textuais tão distintos. Em uma de suas muitas entrevistas à televisão brasileira, o escritor português afirmou que “a mim, me parece, às vezes, que o homem não tem remédio e basta olhar o mundo para ficar com essa terrível impressão.”3 Essa impressão parece ser a mais capaz de dar conta dos enredos ficcionais construídos tanto no Ensaio sobre a cegueira (1995) como em sua continuação, o Ensaio sobre a lucidez (2004). No primeiro romance, um certo país é acometido por uma “cegueira branca”4 que lança o país inteiro em um estado no qual as leis sociais e os princípios éticos são colocados em suspensão em nome de um objetivo maior: a sobrevivência. A narrativa encerra-se aparentemente com a solução do problema inicial, ou seja, com os primeiros a cegarem (o grupo
Para um maior aprofundamento sobre o assunto, ver: PENA, Elke. Artigo e Ensaio Científicos: dois gêneros e uma só forma? Gêneros Textuais, Acontecimento e Memória. 2005. 79f Dissertação (Mestrado em letras) Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Minas Gerais. 2 SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das letras, 2004 e SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 3 A declaração foi retirada de uma entrevista concedida pelo escritor ao programa Roda-viva e disponível atualmente na internet em: https://www.youtube.com/watch?v=QCACUZly3DM (último acesso em 04/03/2015 às 03:54). 4 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 90 1
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de seis personagens que são o alvo principal da narrativa e reaparecem no segundo romance) recuperando as suas visões. Nove anos depois, José Saramago decide escrever uma continuação à trama. No começo, não fica muito claro como os dois livros possuem qualquer relação que não seja marcada tão somente pelo mesmo estilo literário. Em ambos, os personagens são designados por uma característica e não por nomes próprios (o Primeiro-ministro, o ministro do interior, o oftalmologista, a mulher da venda preta e etc.) e o espaço/tempo no qual o enredo se desenvolve é totalmente ocultado. Esse ocultamento dos nomes, do tempo e do lugar assume contornos irônicos e é constantemente mobilizado pelo narrador. No ensaio sobre a lucidez, passados quatro anos após os meses de cegueira do primeiro romance, quase 90% dos eleitores da capital decidem, sem nenhuma causa aparente, optar pelo voto em branco nas eleições. A primeira reação dos governantes é associar esse evento ao outro ocorrido no passado recente, no entanto sem compreender qual relação ambos poderiam manter. Em uma passagem do romance em que todos os ministros se reúnem para pensar uma solução frente a essa crise, o presidente do país afirma que "o debate nada adiantaria, por isso não darei a palavra a nenhum dos senhores ministros, tanto mais que, talvez sem se dar conta, o senhor ministro da cultura acertou em cheio ao comparar a praga que estamos padecendo a uma nova forma de cegueira".5 Aqui formula-se de maneira mais evidente, mesmo que o narrador já prepare a construção em algumas passagens pregressas, a dicotomia entre cegueira/lucidez como dois aspectos intimamente relacionados. Nesse segundo romance, a "cegueira branca" literal (a perda da visão) ganha novos contornos e se transforma em metáfora para um novo tipo de cegueira metafórica (a perda de interesse na democracia, ou nos pleitos eleitorais, como forma de organização dos homens e mulheres).6 O mundo ficcional é aqui apresentado ao leitor como uma metáfora oriunda de uma situação que finge ser real. Nos dois romances a cegueira é palpável. Ela faz com que os personagens tomem decisões difíceis (como o assassinato cometido pela mulher do médico, a única personagem a conservar a visão durante todo o tempo) e é experimentada enquanto evento não apenas por eles, mas também, e principalmente, pelo leitor. A lucidez se contrapõe ao processo geral. Quanto mais os governantes (ministros e presidente) insistem em interpretar o voto em branco SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das letras, 2004. p.123. Para isso e tudo o que se segue acerca da ideia de democracia em Saramago, ver: SARAMAGO, José. O que é, afinal, democracia? In: Le monde diplomatique. 1 de agosto de 2004 (tradução de Jô Amado). Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=1174. Nas palavras de Saramago, "o que me recuso a admitir é que só seja possível governar e desejar ser governado segundo os modelos democráticos vigentes, incompletos e incoerentes." Dessa forma, a crítica contida à democracia na obra do escritor português, sobretudo a partir da década de 2000 e de sua mudança de residência para Lanzarote, é especificamente dirigida ao modelo democrático liberal e bipartidário europeu do pós-segunda guerra. Para os fins deste artigo, é essa a concepção de democracia que estaremos endereçando quando nos referimos às críticas de Saramago tanto em suas palestras como em seus romances. 5 6
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como cegueira, e quanto mais tentam atribuir esse sentido através do uso da força, removendo todas as forças policiais, militares e o governo da capital e deixando-a sitiada sem que ninguém possa deixá-la, orquestrando atentados terroristas para criar uma atmosfera de pânico generalizado, ordenando o uso da espionagem para saber quem havia votado em branco e finalmente ordenando uma investigação para tentar achar (e posteriormente criar com base em falsas evidências) a relação que poderia haver entre a mulher que não cegara anos antes e o fenômeno da votação em branco, menos sucesso o governo obtém e mais a democracia apresenta-se aos personagens e leitores não como um bem em si mesma, mas como uma imposição de uma pequena elite frente à maioria da população que, desde os eventos de quatro anos antes, já não se sentem mais representados pelos partidos tradicionais. Pouco a pouco, a ausência do governo democraticamente eleito e de seus opositores na capital acaba cumprindo um papel inverso daquele que boa parte dos leitores, e os próprios dirigentes da pátria, poderiam ter imaginado. Ao invés do estado de selvageria anárquica no qual as leis entrariam em suspensão, tal como aquele ocorrido quatro anos antes durante a súbita epidemia de cegueira branca, o que se sucede é na verdade uma paz sem precedentes na capital. Sem a polícia e os bombeiros, os próprios moradores passam a coibir os poucos crimes na cidade. Esse é o primeiro golpe nas intenções do movimento estratégico adotado pelos políticos da capital, mas sobretudo trata-se do primeiro momento em que a lucidez se manifesta em contraposição à cegueira. A selvageria do primeiro romance, que faz o grupo de cegos se reunirem em torno da mulher do médico (a única pessoa que ainda conservava a visão) dá lugar à resignação e a calmaria que apontam para uma conclusão dolorosa demais para qualquer entusiasta da democracia: o Estado democrático mostrava-se pela primeira vez como algo totalmente dispensável no interior da sociedade ficcional, situada em um lugar e tempo desconhecidos, imaginada por Saramago. Se parece ao autor que o homem não tem remédio, é bem provável podermos inferi-lo menos pelo mundo, como ele havia sugerido em sua entrevista anteriormente citada, e mais por sua própria literatura ensaística. Lucidez e cegueira são ligadas por uma cobiça de poder capazes de atravessar os dois romances, criando um laço comum a ambos. Seja na ausência de um Estado democrático organizado, isto é, no interior das camaratas nas quais os primeiros cegos foram abandonados à sua própria sorte quando a epidemia passou a espalhar-se por toda a pátria, seja nesse mesmo Estado agora altamente organizado para reprimir os seus inimigos, o homem médio foi sempre o mesmo; uma criatura já cega de antemão pelos seus medos e desejos. Mas a lucidez, desenhada uma tônica comum às grandes distopias do século XX: indivíduos confrontados por Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº4, pp.130-142, Jul.-Dez./2015 | www.poderecultura.com
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ou o despertar da cegueira, de alguma forma progressivamente muda esse quadro. Aqui temos
ações temerárias de um Estado opressor que têm uma epifania ética e rebelam-se contra os seus mandatários.7 Mesmo havendo diferenças fundamentais no plano narrativo, como a ausência de uma detalhada construção da subjetividade desses heróis (pessoas que não possuem nem mesmo um nome próprio), parece notório como a dicotomia cegueira/lucidez é fulcral para ambos.8 Em uma conferência no ano de 1999, realizada na cidade espanhola de Extremadura e gravada pela emissora de televisão espanhola TVE, sobre os desafios da esquerda no novo século, Saramago afirmou que A consciência não é um sistema econômico. A consciência não é uma forma de organização do mercado. E não é um novo regime político. Mas é algo mais que tudo isso: é a consciência que se deve ter contra todos os que precisamente entendem que aquilo que não há de se ter é consciência. Isso é o que temos de fazer todos os dias na reflexão, no debate e no exame aprofundado das circunstâncias. [...] Não temos poder, não somos o governo, não temos multinacionais, não dominamos o mercado financeiro especulativo. Não temos nada disso. Então, o que temos para nos opor a eles? A consciência dos nossos atos, dos meus próprios direitos. A consciência de que sou um ser humano e de que não quero ser nada mais. A consciência de que o que está no mundo me pertence, não como propriedade, mas como responsabilidade, como direito a saber, como direito a intervir e como direito a mudar. Isso chama consciência. E isto não se ganha em um dia, permanecendo imutável até o final da sua vida. Se ganha, se perde e se renova todos os dias. [...] Nós somos consciências, consciências e consciências. 9
Alguns anos após a publicação de Ensaio sobre a Cegueira (1995) a temática sobre a importância da construção de uma consciência que ao mesmo tempo fosse capaz de ser individual e coletiva era central nas reflexões do escritor português. Os heróis de Saramago, embora quase que completamente destituídos de traços subjetivos mais expressivos, parecem sempre buscar com certo desespero a sua humanidade. Em meio à suspensão de tudo aquilo que nos define como humanos, no caos e total ausência de leis criadas pela cegueira branca espalhada por todo o
Os romances distópicos aos quais nos referimos consistem em: ZAMYATIN, Yevgeni. Nós. Lisboa: Antígona, 2004, HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1979 e também ORWELL, George. 1984. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 2001. 8 O que defendemos aqui é que a literatura distópica encena ficcionalmente o futuro não em seu aspecto meramente social (compreendido como aquilo que concerne à composição de uma sociedade) mas sim através da representação da experiência desse indivíduo em um futuro mais ou menos distante dos próprios leitores, ou seja, a partir da elevação desses indivíduos ao posto de protagonistas/heróis da trama. Afinal, o protagonista de Brave New World é John e não a sociedade distópica Huxleyiana. E o mesmo sucede com outros romances como 1984 de George Orwell e We de Yevgeny Zamyatin. Para um maior aprofundamento sobre essa temática, ver: FRANCISCO, Rafael. Nós somos os mortos: a estética do prognóstico na literatura realista distópica de Aldous Huxley, George Orwell e Yevgeny Zamyatin. 2014. 162f Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/1211373_2014_completo.pdf, PAVLOSKI, Evanir. Admirável Mundo Novo e a Ilha: entre o idílio e o pesadelo utópico. 2012. 362f Tese (Doutorado em Letras), Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Paraná. 2012 e também CALDER, Jenni. Huxley and Orwell: Brave New World and Nineteen EightyFour. London, Edward Arnold, 1976. 9 A presente conferência foi proferida em 23 de fevereiro de 1999 e faz parte do acervo online mantido pela Fundação José Saramago. Os trechos citados foram livremente traduzidos e a sua versão original, em espanhol, encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pEOB3Sed8kw (último acesso em 27/02/2014 às 02:50) 7
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país, os diferentes mecanismos capazes de organizar a vida coletiva pareceriam fadados ao desaparecimento. No entanto, essas seis pessoas (um grupo qualquer entre uma imensidão de construções ficcionais não-ditas mas possíveis no interior dessa alegoria) optam por permanecer juntas, fazendo a escolha de manter os finos laços que ligam os homens e mulheres entre si. Escolhem manter a consciência sobre sua própria humanidade. A mulher do médico poderia ter simplesmente abandonado todos os outros (talvez até mesmo o marido) a sua própria sorte. Pelo contrário, ela os acolhe, protegendo-os, chegando inclusive a cometer um assassinato para defender as mulheres de sua camarata dos assédios de um grupo de cegos armados, e assim, em meio ao caos imposto pela cegueira o caminho para a lucidez se abre; vencer a cegueira só se torna possível mantendo a consciência de que somos humanos e nada mais do que isso, e que somos humanos apenas enquanto partilhamos desse mundo e da responsabilidade pela manutenção dele com os nossos iguais. Nesse ponto, a falta de profundidade dos personagens parece apresentar-se como um recurso retórico fundamental para a construção do enredo ficcional de ambos os romances. Esses indivíduos importam mais quando interpretados pelo leitor como consciências do que propriamente em seus hábitos, gostos, apelidos e paixões quase inexistentes. Isso porque tratam-se de personagens-consciência. O leitor não estabelece uma relação de empatia com um sujeito concreto (uma pessoa por assim dizer) mas com as ideais de uma pessoa qualquer. A mulher do médico, a prostituta e o velho da venda preta sob um dos olhos poderiam ser qualquer mulher ou qualquer pessoa idosa do sexo masculino nesse mundo ficcional construído por Saramago. Contribuem diretamente para isso também a ausência de um tempo e de um espaço claramente definidos (a capital pode ser qualquer capital e a data também) na criação de um efeito estético que visa apresentar aos leitores nada mais do que as ações diretas ou indiretas dessas consciências sem forma definida. Essa ausência de forma dos personagens e do mundo ficcional fica evidente, por exemplo, quando o narrador afirma que: Três dias depois do atentado, de manhã cedo, começaram as pessoas a sair para a rua. Iam caladas, graves, muitas levavam bandeiras brancas, todas um fumo branco no braço esquerdo, e não venham os protocolistas em exéquias dizer-nos que um sinal de luto não pode ser branco, quando estamos informados de que neste país já o foi, quando sabemos que para os chineses o foi sempre, e isto para não falarmos dos japoneses, que iriam agora todos de azul se o caso fosse com eles. 10
da já discutida ausência de forma dos personagens, também um ar de movimento espontâneo que 10
Cf. SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das letras, 2004. p. 94.
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O emprego do vocábulo “pessoas” não parece ser gratuito. Ele confere à passagem, além
atravessará todo o romance. Desde a primeira eleição, quando mais de 80% dos eleitores optaram pelo voto em branco, chegando ao final do romance quando a mulher do médico, injustamente acusada de liderar uma conspiração contra a democracia ao incitar o voto em branco, é assassinada por um agente das forças policiais na varanda de seu apartamento, Saramago constrói uma atmosfera como a da passagem supracitada, isto é, de que todos os eventos sucedidos ao longo da trama são de certa forma inevitáveis ou incontornáveis. Quando, no começo da última parte de O ensaio sobre a lucidez (2005), o ministro do interior decide enviar à capital sitiada três policiais (um agente, um inspetor e um comissário) para investigar qual seria a relação da mulher do médico, que não havia cegado quatro anos antes, com toda aquela insurgência manifestada pelo voto em branco, o destino a moça já estava traçado antes mesmo do final da investigação. Uma das conversas entre o comissário (tratado pelo codinome de papagaio-do-mar) e o ministro interior (que atende pelo pseudônimo de albatroz) são bastante elucidativas a esse respeito: E que fazemos se não encontrarmos provas, albatroz, Recuso-me a admitir que não as encontre, papagaio-do-mar, para comissário parece-me demasiado ingénuo, desde que me conheço como ministro do interior, as provas que não havia, afinal estavam lá, O que me está a pedir não é fácil nem agradável, albatroz, Não peço, ordeno. 11
Assim, o destino da personagem já está traçado de antemão. Mesmo quando o comissário conclui que a investigação não será capaz de encontrar um culpado pelos muitos votos brancos, pois aquela mulher não apresenta qualquer indício que justifique a suspeita, o Estado cumpre sua sentença previamente dada e manda matar a esposa do médico e também o comissário responsável pelo inquérito. Ironicamente, inverte-se totalmente a ordem dos fatores para obter-se o mesmo resultado: ao invés de um sujeito autocentrado que opõe conscientemente ao regime político vigente (como os clássicos heróis distópicos de Orwell, Zamyatin e Huxley) o que Saramago apresenta é um personagem-consciência sem uma forma definida que é de antemão alçado à condição de inimigo do Estado. A ironia é perversa. Esses personagens-consciência, ao contrário dos heróis dos demais romances distópicos, não possuem qualquer tipo de agência concreta contra o governo estabelecido. O processo de lucidez atingido não apenas pela mulher do médico, mas também pelo comissário de polícia (um agente do aparelho repressor do governo) é construído no interior da trama ficcional como um movimento quase involuntário. Essa lucidez consiste em uma resignação ao mesmo tempo da força e da inutilidade do aparelho estatal para a organização dos homens e mulheres em sociedade. A perversidade e a força derivada dessa construção em Saramago
11
Cf. Ibid. p. 175
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deriva justamente de apresentar não uma sociedade totalitária como inimiga desses indivíduos,
mas sim uma democracia que se nega a exercer o seu direito fundamental: o voto. A alegoria suscita em seus leitores pelo menos uma questão de ordem ética que parece estabelecer as bases nas quais a profunda crítica política de ambos os romances será desenvolvida; é desejável ou mesmo possível que o livre-arbítrio de uma escolha seja imposto aos homens? A democracia pode ser considerada um bem em si mesmo também quando se volta contra a vontade da maioria dos indivíduos? A resposta provavelmente só pode ser alcançada quando pensamos na trajetória de dois membros do establishment governista que, no segundo romance, permanecem na capital após a migração de todos os governantes e das forças policiais e militares para fora do perímetro urbano: o comissário de polícia e o presidente da assembleia legislativa. Ambos são mobilizados pelo ministro do interior, um personagem cuja única característica marcante é o desejo pela manutenção e expansão de seu próprio poder, em sua busca pelos culpados da suposta conspiração contra o Estado democrático de direito. Os dois personagens funcionam como o fio condutor da narrativa, ou dito de outra forma, são eles mesmos a própria metáfora da lucidez construída por Saramago em seus ensaios. Sobre o presidente da assembleia legislativa, o narrador afirma que É interessante como levamos todos os dias da vida a despedir-nos, dizendo e ouvindo dizer até amanhã, e, fatalmente, em um desses dias, o que foi último para alguém, ou já não está aquele a quem o dissemos, ou já não estamos nós que o tínhamos dito. Veremos se neste amanhã de hoje, a que também costumamos chamar o dia seguinte, encontrando-se uma vez mais o presidente da câmara e o seu motorista particular, serão eles capazes de compreender até que ponto é extraordinário, até que ponto foi quase um milagre terem dito até amanhã e verem que se cumpriu como certeza o que não havia sido mais que uma problemática possibilidade. O presidente da câmara entrou no carro. Ia dar uma volta pela cidade, olhar as pessoas à passagem, sem pressas, estacionando uma vez por outra e sair para caminhar um pouco a pé, escutar o que se dissesse, enfim, tomar o pulso à cidade, avaliar a força do febrão que se estava incubando. 12
O milagre das despedidas e reencontros ao qual o narrador se refere trata-se de um atentado terrorista que seria orquestrado nessa mesma noite em uma estação de metrô na parte leste da cidade e que por muito pouco não vitimaria fatalmente o político durante o seu jantar em um restaurante próximo. Essa passagem, que testemunha seu final com a contagem dos mortos no atentado e uma respectiva manifestação pacífica de luto pelos mortos na qual não apenas o presidente da assembleia como também boa parte dos cidadãos da capital participam, marca o desaparecimento desse personagem da trama. Esse sumiço marca a primeira grande derrota do ministro do interior e daquele governo cujo os interesses por ele são representados. Em seu passeio pela
12
Cf. Ibid. p. 80.
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cidade, o presidente não encontra nenhum registro de problemas em decorrência da ausência das
forças policiais e militares da capital, exceto o posterior atentado que, poucas páginas depois, ele descobre ter sido organizado pelo próprio governo para incitar o caos na população e dessa forma ganhar a opinião pública. O fracasso dessa estratégia é tão retumbante que o próprio personagem some da trama na medida em que já havia passado ao outro lado, isto é, para utilizar os termos propostos por Saramago em seu romance, o lado dos lúcidos. O diálogo travado com um cidadão qualquer durante o seu passeio pela capital é bastante elucidativo: Senhor presidente, Diga, diga, não faça cerimónia, Se algo sou capaz de entender do que se passa na cabeça da gente, o que o senhor tem aí é um remorso de consciência, Remorso pelo que não fiz, Há quem afirme que esse é o pior de todos, o remorso de termos permitido que se fizesse, Talvez tenha razão, vou pensar nisso, seja como for, tenha cuidado, Terei, senhor presidente, e agradeço-lhe o aviso, Embora continuando a não saber de quê, Há pessoas que nos merecem confiança, É a segunda pessoa que mo diz hoje, Nesse caso pode dizer que já ganhou o dia, Obrigado, Até à vista, senhor presidente, Até à vista. 13
Aqui, a ideia de remorso é fundamental para compreendermos não apenas como o narrador constrói essa mudança de perspectiva desse personagem-consciência, mas também do comissário de polícia na segunda parte da trama. Esse remorso é gestado lentamente ao longo da trama e pauta-se sobretudo na percepção de que o governo não só é dispensável, como também configura-se como uma ameaça ao homem comum. Como recurso retórico, não parece gratuito esse diálogo travado pelo presidente da câmara com um cidadão qualquer em meio ao passeio público. Em um romance repleto de personagens-consciência, o questionamento frente ao estranho é muito mais um mergulho introspectivo do que propriamente um alerta ao estranho. A fala do presidente contém um tom auto-reflexivo. Há nela uma tomada de consciência sobre si mesmo que precisa ser urgentemente verbalizada, mesmo que com um estranho qualquer. Essa percepção é a de que a consciência, o alicerce no qual esse personagem está acentado, é uma construção baseada nos atos dos homens e mulheres. O remorso daquilo que não foi feito, e para os nossos fins pouco importa se o personagem estaria ou não se referindo ao atentado que viria a ser perpetrado alguns minutos após esse diálogo, é o cerne dessa consciência em formação por demarcar justamente a importância de uma ação que esteja efetivamente ligada ao pensamento e às ideias. São os atos do sujeito, antes do que seus desejos, vontades e emoções que definem o seu acesso à vida contemplativa lúcida, ou dito de outra forma, à vida do espírito.14
Ibid. p. 85. (grifo nosso) A vida do espírito seria marcada, para Hannah Arendt, por suas três funções fundamentais: o intelecto, designado pela autora de o pensar, a volição, correspondente ao desejo dos homens, e por último o juízo, do qual a autora, embora não tenha completado seus escritos em virtude de sua morte, seja largamente tributária de uma tradição de pensamento kantiano. Recorre-se à expressão mais por sua versão original do que pela tradução clássica para o português na qual o termo mind transforma-se em espírito, no sentido usualmente atribuído ao termo na tradição de 13
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Os ensaios de Saramago consistem em romances nos quais tempo e espaço são abolidos para criar uma trama que encontra-se em permanente estado de suspensão. A construção ficcional, que geralmente consiste na elaboração de um mundo em que os personagens habitam, voltase aqui para a elaboração de um mundo sem fronteiras ou distâncias. O mundo dos cegos e lúcidos, povoado pelos personagens-consciência como o comissário de polícia e o presidente da câmara, parece mesmo ser o reino do pensamento no qual tanto o tempo como o espaço são abolidos para criar no leitor a sensação de que a trama se desenvolve não em um mundo físico, mas no plano de sua própria consciência. Se a suspeita sobre o termo ensaio poderia recair na ideia de experimentação, o que poderia ser bem verdade a nível linguístico, preferimos compreendê-la em sua acepção teatral, isto é, como uma encenação cuja finalidade é recriar ficcionalmente não apenas a consciência do leitor, mas principalmente um mundo de consciências no qual o pano de fundo aparenta ser o processo do pensamento mesmo.15 O efeito estético produzido por essa construção parece ser similar à impressão causada por um teatro de marionetes. Sob o controle do narrador, em um ambiente que se encontra em completa suspensão em ambos os romances, os personagens são recorrentemente manipulados à serviço da elaboração do questionamento central da narrativa. A função preenchida pelo presidente da câmara é tão somente ser capaz de diagnosticar o fracasso do governo ao qual ele está ligado, e com isso, passar ao lado dos esclarecidos. Quando isso ocorre, esse personagem-consciência torna-se já completamente inútil à economia do texto. Não é gratuito que apenas duas páginas depois ele suma para nunca mais retornar. Sua última aparição, em meio à manifestação pacífica após o atentado do metrô, é uma metáfora: o presidente da assembleia se perde em meio à multidão. Agora ele não é mais um dos cegos. Finalmente, o narrador pode dispensá-lo pois esse já é mais uma das consciências que encontrou a verdade fora do falso mundo das sombras. 16 Essa passagem da condição de cego, ou fora da metáfora elaborada por Saramago, de crente nos bene-
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pensamento francesa. O que importa para nós, nesse termo, é o aforisma de Paul Valery do qual Hannah Arendt se apropria em sua obra: tantôt je pense et tantôt je suis (às vezes sou, às vezes penso) para formularmos essa ideia de personagens-consciências e de um mundo composto inteiramente por essas consciências (minds) e especialmente pelos seus múltiplos embates e confrontos no interior da narrativa ficcional. Para um maior aprofundamento sobre o conceito, ver: ARENDT, Hannah. A Vida do espírito: o pensar, o querer e o julgar. São Paulo: Civilização brasileira, 2008. 15 Como escreveu Hannah Arendt, em A Vida do espírito, "já que o tempo e o espaço não podem nem mesmo ser pensados sem um contínuo que se estende do próximo ao distante, do agora ao passado ou ao futuro, do aqui a qualquer ponto do espaço, direita e esquerda, à frente e atrás, acima e abaixo, eu poderia dizer, com alguma razão, que não apenas as distâncias, mas também o tempo e o espaço são abolidos no processo do pensamento." Nesse sentido, com a abolição das categorias de tempo e espaço, Saramago procura criar um ambiente suspenso em que as consciências por ele ficcionalmente criadas possam agir umas contra as outras. Cf. Idem. 16 Um dos últimos romances de Saramago, publicado em 2000, chama-se A caverna em uma clara referência à alegoria criada por Platão para explicar aos seus discípulos o funcionamento de sua metafísica. Para um maior aprofundamento sobre essa temática, ver: ASSUNÇÃO, Karina. A caverna, de José Saramago: lugar de enfrentamento entre o sujeito e o poder. 2010. 118f. Dissertação (mestrado em letras). Programa de Pós-graduação em Estudos linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia.
fícios da democracia tal como por ele construída em sua cidade sem forma, à condição da lucidez branca (a manifestação demonstra seu luto pela cor branca e não com a utilização do preto) ocorre uma outra vez ao longo do segundo romance com o comissário de polícia. Em menor escala, todos os que estão na capital são atingidos, cedo ou tarde, por essa epidemia branca que os transforma em inimigos do governo. Ironicamente, não há conspiração e tampouco um ou mais culpados. Mesmo os democratas do governo parecem tomar consciência, cada um à sua própria maneira, de que a defesa da democracia é antes de tudo uma defesa do poder pelo qual todos eles lutaram tanto. De acordo com o narrador: Que extraordinário país este nosso, onde sucedem coisas nunca antes vistas em nenhuma outra parte do planeta, Não precisarei de lhe recordar, senhor presidente, que não foi esta a primeira vez, Precisamente a isso me estava a referir, meu caro primeiroministro, É evidente que não há a menor probabilidade de uma relação entre os dois acontecimentos, É evidente que não, a única coisa que têm em comum é a cor, Para o primeiro não se encontrou até hoje uma explicação, E para este também a não temos, Lá chegaremos, senhor presidente, lá chegaremos, Se não dermos antes com a cabeça numa parede, Tenhamos confiança, senhor presidente, a confiança é fundamental, Em quê, em quem, diga-me, Nas instituições democráticas, Meu caro, reserve esse discurso para a televisão, aqui só nos ouvem os secretários, podemos falar com clareza. 17
Ao fim e ao cabo, o conflito velado entre as forças do governo e os habitantes da capital poderia ser interpretado como um embate entre duas entidades lúcidas, cientes não apenas dos limites da democracia no país, mas sobretudo das vicissitudes humanas. Os homens - ou as consciências - irremediáveis que Saramago vê no mundo estão em primeiro lugar no seu próprio romance, apresentando-se ao leitor como partes menores e sem forma de uma alegoria, ou dito de outra forma, de um diagnóstico sobre a forma como esses mesmos homens e mulheres têm se organizado e experimentado suas próprias vidas. Seja em um mundo de cegos ou em um mundo de seres politicamente esclarecidos, o romance-ensaio de Saramago testa os limites dos homens diante de situações diversas; com seus personagens-consciência que se desenvolvem no plano do pensamento (atemporal), o leitor é convidado a exercer uma agência através dos múltiplos pontos de vistas construídos pelo narrador. Essa ação no interior da narrativa é marcadamente ativa, quase como um role-play no qual constantemente ocupa-se a posição do personagem, em especial nas situações adversas experimentadas por eles durante a história. Desse movimento narrativo surge algo que poderia ser expressado como um certo sentimento de inquietação.18 Um incômodo com algo que é ao mesmo tempo estranho e familiar; o mundo ficcional criado por Saramago encon-
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SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das letras, 2004. p. 62 Para isso e tudo o que se segue, ver: FREUD, Sigmund. O inquietante. In: Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das letras, 2010. p. 328-376. 17
tra-se justamente no meio dessa estrada. Uma democracia como a nossa, composta por pessoas como nós, cansadas dos mesmos problemas cotidianos, mas ainda assim totalmente diversa da sociedade experimentada pelo seu leitor. Os cegos somos nós, incapazes de conceber uma vida utópica longe dos muros da democracia liberal, longe da tutela de nossos governantes. O leitor chega ao final do romance tão cego quanto aqueles que iniciaram sua jornada quatro anos antes (no começo do primeiro romance) durante a epidemia branca. Na pele dos personagens, dessas consciências quase sem forma soltas pelo mundo ficcional de Saramago, caminhamos entre um mundo muito diverso do nosso, mas que certamente nasceu (metafórica e factivelmente) da sociedade na qual esteve o seu escritor e também todos os seus leitores. Tratase de um diagnóstico sobre o homem. Um diagnóstico sobre a consciência dos homens. E principalmente um diagnóstico sobre os seus próprios leitores. Todos cegos, como o narrador ironicamente deixa claro no último parágrafo do romance: A mulher aproxima-se da grade de ferro, põe-lhe as mãos em cima e sente a frescura do metal. Não podemos perguntar-lhe se ouviu os dois tiros sucessivos, jaz morta no chão e o sangue desliza e goteja para a varanda de baixo. O cão veio a correr lá de dentro, fareja e lambe a cara da dona, depois estica o pescoço para o alto e solta um uivo arrepiante que outro tiro imediatamente corta. Então um cego perguntou, Ouviste alguma coisa, Três tiros, respondeu outro, Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro, Ainda bem, detesto ouvir os cães a uivar.19
Uma metáfora espantosamente similar à adotada por Orwell na década de 1940 e por Calvino 30 anos mais tarde. “Nós somos os mortos”20 e “o inferno é este que formamos estando juntos no mundo dos vivos”.21 Os ensaios de Saramago parecem trabalhar essa hipótese e inquietam porque, aparentemente, obtém um constrangedor sucesso em apresentá-las ao leitor como ato de fingir.22
SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das letras, 2004. p. 234. ORWELL, George. 1984. London: Penguin Books, 1989. p. 252. 21 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Biblioteca Folha, 2003. p. 71 22 Os atos de fingir, para Wolfgang Iser, consistem em três mecanismos (seleção, combinação e autodesnudamento) a partir dos quais se dá o processo de criação ficcional. Cada um desses mecanismos tem uma função específica na construção literária, sendo os dois primeiros mais ligados à transgressão dos limites entre texto e contexto histórico e o terceiro consiste na apresentação da própria ficção como aquilo que ela se pretende, ou seja, um ato de encenação. Cf. ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ. 1996. p. 15. p. 2425. 19 20
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Referências Bibliográficas: ARENDT, Hannah. A Vida do espírito: o pensar, o querer e o julgar. São Paulo: Civilização brasileira, 2008. ASSUNÇÃO, Karina. A caverna, de José Saramago: lugar de enfrentamento entre o sujeito e o poder. 2010. 118f. Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós-graduação em Estudos linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia. CALDER, Jenni. Huxley and Orwell: Brave New World and Nineteen Eighty-Four. London, Edward Arnold, 1976. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Biblioteca Folha, 2003. FRANCISCO, Rafael. Nós somos os mortos: a estética do prognóstico na literatura realista distópica de Aldous Huxley, George Orwell e Yevgeny Zamyatin. 2014. 162f. Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/1211373_2014_completo.pdf>. FREUD, Sigmund. O inquietante. In: Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das letras, 2010. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1979. ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ. 1996. ORWELL, George. 1984. London: Penguin Books, 1989. PAVLOSKI, Evanir. Admirável Mundo Novo e a Ilha: entre o idílio e o pesadelo utópico. 2012. 362f. Tese (Doutorado em Letras), Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Paraná. PENA, Elke. Artigo e Ensaio Científicos: dois gêneros e uma só forma? Gêneros Textuais, Acontecimento e Memória. 2005. 79f. Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Minas Gerais. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. _____________. Ensaio Sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das letras, 2004. ZAMYATIN, Yevgeni. Nós. Lisboa: Antígona, 2004. Artigo recebido em: 02 de Novembro de 2015. Artigo aprovado em: 18 de Dezembro de 2015.
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GIAMBATTISTA VICO E A HISTÓRIA DA HISTÓRIA Ivan Leski* RESUMO: Este ensaio investiga como as obras de alguns autores da Antiguidade, além da Bíblia, embasaram a história ideal eterna de Giambattista Vico, ajudando a criar sua peculiar teoria da história. PALAVRAS-CHAVE: Giambattista Vico; Bíblia; Mitologia. GIAMBATTISTA VICO’S HISTORY OF HISTORY ABSTRACT: This essay investigates how some ancient works, as well as the Bible, support Giambatttista Vico’s ideal eternal history, i.e., his peculiar theory of history. KEYWORDS: Giambattista Vico; the Bible; Mythology. ***
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Doutorando em História pelo Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Desenvolve sua pesquisa com a bolsa oferecida pelo CNPq. E-mail: ivan.leski@gmail.com. *
I
O
conceito de história ideal eterna, criado pelo filósofo setecentista italiano
Giambattista Vico (1668-1744), procura dar conta das origens e desenvolvimentos das diferentes civilizações que surgiram na Terra no decorrer da his-
tória da Humanidade. 1 De acordo com Vico todos os povos devem obrigatoriamente, ao longo dos tempos, percorrer um curso histórico, que compreende três fases: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Como salientou Francesco de Sanctis, Vico, na esteira de Platão, preocupava-se em “achar as leis” da História, em “fazer uma história da História, isto é, fazer uma ciência nova”. 2 Tal propósito demandava uma leitura acurada e criativa de vários escritores da Antiguidade, assim como um debate acirrado com historiadores e filósofos pós-renascentistas, que também comentaram as mesmas fontes. Segundo Luigi Salvatorelli, foi a capacidade de Vico em evocar “sociedades desaparecidas, de reconstruir mundos desconhecidos” que fez dele um dos grandes nomes nas letras italianas em todos os tempos. 3 O objetivo deste ensaio é investigar algumas das fontes que forneceram a Vico subsídios para construir, de forma sólida e coerente, a sua teoria da História. A grande preocupação do filósofo napolitano era descobrir e determinar as leis divinas que regulam o desenvolvimento e o progresso do Homem. Católico fervoroso, professor de direito na Universidade de Nápoles, fluente em latim e grande poeta ele achava que o Homem era o instrumento usado por Deus para desenvolver Sua grande obra: o Mundo. Assim como a Bíblia narra (principalmente no Livro do Gênesis) as origens do povo hebreu, desde o princípio guiado pelas leis da Providência Divina, nosso autor pensa que todos os demais povos devem passar por um processo semelhante, já que são igualmente filhos de Deus. Dessa forma, o que ele procura são documentos que comprovem essa teoria. A história ideal eterna, ou seja, o processo pelo qual todas as nações surgem, se desenvolvem, atingem um apogeu, entram em decadência e desaparecem é um curso histórico imposto ao Homem pela vontade de Deus para que este possa atingir um estágio intelectual compatível com sua origem divina. Assim, a cada uma das três idades irá corresponder um tipo específico de sociedade, com seus usos e costumes característicos. Como observou Gustavo Costa, “a filosofia da Para uma abordagem mais ampla do assunto gostaríamos de remeter o leitor à nossa dissertação de mestrado A Concepção de História em Giambattista Vico, que pode ser baixada no sítio da Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH-USP. 2 Francesco de Sanctis. Storia della Letteratura Italiana; quarta edizione, volume III. Bari: Gius. Laterza e Figli, 1949; pp 301-311, (nossa tradução). 3 Luigi Salvatorelli. “G. B. Vico” in Le Più Belle Pagine di G. B. Vico, Scelte da Luigi Salvatorelli. Milano: Fratelli Treves, 1926; p ii (nossa tradução). 1
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história de Vico tem um caráter naturalista, uma vez que todas as três idades por ele identificadas (deuses, heróis, homens) correspondem, grosso modo, à evolução do Homem da infância (...) à maturidade. (...) E assim como os homens as nações ou povos também envelhecem e morrem”. 4 É importante salientar que este processo implica uma passagem gradual da Imaginação à Razão. Assim sendo os homens da idade dos deuses possuem uma abordagem poética do mundo que os cerca, ao passo que aqueles da idade dos homens são mais afeitos às normas de convívio da civilização. Mas onde Vico busca as provas para sua teoria? Fora da Bíblia, onde encontrar testemunhos da presença divina entre os povos? Nas lendas e mitos das antigas civilizações. Ao contrário de seus contemporâneos, que viam a Mitologia como uma invenção poética, nosso autor argumentará que as narrativas sobre deuses e heróis são, na verdade, fontes documentais de eras que não conheceram a escrita e, portanto, não puderam desenvolver um discurso histórico. Ele explica, no §7 da Scienza Nuova, que em sua obra, “a Filosofia põe-se a examinar a Filologia (ou seja, a doutrina de todas as coisas das quais depende o arbítrio humano, tais como as histórias das línguas, dos costumes e dos fatos, assim como da paz e da guerra dos povos, (...) e a reduz em forma de ciência, ao descobrir o desenho de uma história ideal eterna, na qual correm, através dos tempos, as histórias de todas as nações”. 5 O que veremos a seguir é como essa história foi elaborada.
II No §51 da Scienza Nuova está escrito “que o primeiro povo do mundo foi o hebreu, de que foi príncipe Adão, o qual foi criado pelo Deus verdadeiro quando da criação do mundo.” Mais adiante no mesmo parágrafo, Vico afirma que a primeira ciência que devemos aprender para compreender o Passado é a Mitologia, ou seja, “a interpretação das fábulas (por que, como se verá, todas as histórias gentias possuem princípios fabulares) e que as fábulas foram as primeiras histórias das nações gentias.” Ele critica os sábios coevos por desprezarem as narrativas mitológicas e dessa forma não conseguirem explicar, de forma satisfatória, os tempos pretéritos. Segundo Jürgen Gebhardt, “na base da análise da convergência do início e princípio da Humanidade (...) está uma interpretação de inspiração agostiniana do primeiro livro de Moisés, na qual existe uma clara distinção entre história pagã e história dos hebreus. Estes últimos teriam recebido o conhecimento dos princípios direta-
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Gustavo Costa. “Preilluminismo meridionale: Giannone e Vico” in Enrico Malato (org). Storia della Letteratura Italiana, volume VI, Il Settecento. Roma: Salerno Editrice, 1998; p. 357 (nossa tradução). 5 Giambattista Vico. “Scienza Nuova” in Opere, a cura di Fausto Nicolini. Milano/Napoli: Riccardo Ricciardi Editore, 1953 (nossa tradução). 4
mente de Deus na forma da sua Religio vera através da legislação mosaica”. 6 Partindo do pressuposto de que as leis divinas são gerais e eternas, como teriam os outros povos aprendido os ensinamentos de Deus? É isso que Vico se propõe a investigar. Para ele existe um padrão no desenvolvimento humano (a história ideal eterna); uma vez que esse padrão está descrito na Bíblia, principalmente no Livro do Gênesis, então deve haver para cada povo uma documentação idêntica de suas origens. Paolo Rossi observa que nosso autor afirma de maneira categórica que existem “dois desenvolvimentos paralelos da história humana, o primeiro dos quais, relativo ao povo hebreu, está documentado pela Bíblia; o segundo, relativo às nações gentias, está documentado nos poemas homéricos e na legislação das Doze Tábuas”. 7 É a partir do estudo de inúmeras fontes, que incluem poemas, monumentos, moedas, descrições de armas e navios, baseando-se principalmente em narrativas de antigos historiadores que Vico irá elaborar a sua história da História. Seguindo a tradição bíblica Vico diz que a história dos povos inicia-se após o Dilúvio Universal (Gen VIII) quando a Terra deve ser repovoada pelos descendentes de Noé (Gen IX; 812). Naquela época, após as águas que cobriram os continentes terem voltado ao seu leito original, grandes florestas se espalharam pelo globo terrestre. Nosso autor conta (em sua prosa única, que o tornou um dos grandes escritores da língua italiana) que foi “da dispersão do gênero humano pela grande selva da Terra, que começou a fazer-se pela Mesopotâmia (...) pela raça ímpia de Sem na Ásia Oriental por cem anos, e outros duzentos pelas duas outras de Cam e Jafet no resto do mundo (...), começaram os príncipes das nações a estabelecer-se em várias terras (...) e assim correram os novecentos anos da idade dos deuses”. (Scienza Nuova, §736). Como as florestas surgiram após a grande inundação suas árvores eram enormes e o seu interior habitado por feras terríveis. Os primeiros homens a frequentar tal meio ambiente não poderiam sobreviver nele a menos que tivessem uma estatura e uma força brutais, por isso eles se tornaram gigantes. (Scienza Nuova, §369). Esses homens gigantescos (Bestioni) viviam como animais na grande selva da Terra, solitários caçadores que se acasalavam ocasionalmente e tinham por hábito abandonar a prole à própria sorte. Como nesse meio ambiente as águas eram abundantes sua constante evaporação provocava frequentemente chuvas torrenciais, acompanhadas por reluzentes raios e sonoros trovões. Tais manifestações da Natureza aterrorizavam os Bestioni pois, segundo Vico, elas eram a demonstração de um poder superior, a personificação de uma força que se bem possuísse o poder de destruir, tinha também o poder de proteger. Os gigantes, cônscios de sua inferioridade física
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Jürgen Gebhardt. “Sensus Communis: Vico e la tradizione europea antica.” In Bolletino del Centro di studi vicchiani anni XXII – XXIII (1992-1993). Napoli: Bibliopolis, 1993; p. 59 (nossa tradução). 7 Paolo Rossi. “Giambattista Vico” in Emilio Cecchi e Natalino Sapegno (org). Storia Della Letteratura Italiana, volume VI, Il Settecento. Milano: Garzanti, 1976; p.30 (nossa tradução). 6
em relação a tal ente superior, passaram a idolatrar e temer essa divindade dos raios, a quem chamaram de Júpiter (ou Odin, ou Tupã). Desse temor e respeito nasceram as religiões. A partir de então, os Bestioni temeram que Júpiter não aprovasse seu comportamento em relação às suas mulheres, e resolveram a elas unir-se em celebrações que invocassem a proteção divina para uma vida em comum. Surgiram assim os matrimônios. Passaram os gigantes a viver em companhia de suas esposas e filhos. Como consequência os filhos reconheciam seus genitores e quando eles morriam não deixavam mais seus corpos sobre a terra para servirem de pasto às feras, mas começaram a enterrá-los. Originaram-se assim os sepultamentos. Na teoria viquiana quando um povo estabelece uma religião, matrimônios e sepultamentos ele entra no curso histórico, e viverá então as três idades: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. Os gigantes primeiramente viveram em cavernas, como o ciclope Polifemo, pois nas montanhas estariam protegidos de um novo dilúvio. Com o tempo, mudaram-se para as planícies e finalmente habitaram regiões costeiras. Nessas mudanças de meio ambiente, foram aos poucos adquirindo uma estatura corpórea normal. Vico ressalta que os hebreus jamais foram gigantes e que os demais povos não passaram pelas três idades simultaneamente. Como documento dessa afirmação existe a história contada por Homero no capítulo X da Odisseia.8 Ali está narrado que Ulisses, vindo de Tróia, aportou sua frota na terra dos Lestrigões, gigantes canibais que devoraram muitos de seus companheiros e afundaram a maioria dos seus navios atirando sobre eles grandes blocos de pedra. Isso demonstra que no início da civilização grega ainda havia povos que estavam em um estágio anterior, isto é, ainda eram gigantes (Bestioni). Vico nos diz que uma vez os homens estabelecidos em comunidades, “deve ocorrer esta série de coisas humanas: primeiro as repúblicas aristocráticas, depois as populares e finalmente as monarquias” (Scienza Nuova, §1004). Também no §52 está escrito que os homens, ao longo do tempo, falaram três tipos de línguas: hieroglífica (caracteres sacros), simbólica (caracteres heroicos) e epistolar (caracteres convenientes à maioria dos povos). Está claro que para cada idade existe um tipo diferente de língua. Isso se explica pela formação das sociedades: na idade dos deuses toda a justiça é divina, ou seja, os homens devem seguir os desígnios dos deuses, que são expressos pelos oráculos. De acordo com Vico, isso é confirmado pela História, que nos diz que as coisas mais antigas do mundo são “os oráculos e as sibilas” (Scienza Nuova, §464).
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Omero. Odisseia; Testo greco e traduzione di G. Aurelio Privitera. Milano: Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore, 2004 (6 volumes). 8
Como era a língua na idade dos deuses? Era uma língua muda, expressa por sinais, ou hieróglifos. Diz Heródoto9 (História II, 36) que “os egípcios usam dois tipos de escrita, uma das quais chamam sagrada e outra demótica”. Essa escrita sagrada representa o falar dos deuses, que é diferente do falar dos homens. Assim está escrito na Odisseia de Homero. No Livro X, quando Ulisses se dirige sozinho ao palácio de Circe para libertar seus companheiros transformados em porcos, ele encontra no caminho o deus Mercúrio que lhe diz que o único antídoto seguro contra os filtros mágicos da feiticeira é a ingestão de uma planta que os deuses chamavam moli; no Livro XII, Circe diz a Ulisses que ele deve navegar entre os rochedos que os deuses denominavam planctas. Isso mostra que havia uma língua peculiar aos deuses, que não era do conhecimento dos homens. Segundo Vico, foi “uma necessidade natural comum a todas as primeiras nações o falar através de hieróglifos” (Scienza Nuova, §435), pois só assim elas poderiam entrar em contato com a divindade. Outro exemplo dessa linguagem por sinais pode ser encontrada em Tito Livio 10 (História de Roma I, 54), quando ele narra a conquista da cidade de Gabi. Diz o historiador que Sesto Tarquinio, rei de Roma, armou um grande exército para conquistar Gabi e entregou seu comando ao filho. Uma vez conquistada a cidade o jovem general mandou um mensageiro a Roma para perguntar como deveria ser administrada a nova conquista. O rei recebeu em seu palácio o enviado do filho e não lhe dirigiu a palavra, levou-o consigo ao jardim e mostrou-lhe um canteiro de papoulas. A seguir, usando o bastão real, que portava, Sesto Tarquinio destruiu todas as flores e incontinenti dispensou o mensageiro. Chegado a Gabi o enviado a Roma apresentou-se perante o general e narrou-lhe o ocorrido. O jovem príncipe, uma vez ciente da atitude do rei, convocou todos os membros das mais importantes famílias da cidade, inclusive suas esposas e filhos, e os assassinou impiedosamente. E assim Gabi tornou-se para sempre uma possessão romana. Isso comprova que a língua na idade dos deuses era muda, composta por sinais. Uma vez que está escrito na Bíblia (Gen II, 19-20) que Deus apresentou a Adão todas as criaturas vivas para que ele as nomeasse, deduz-se que os hebreus e Deus falavam a mesma língua. Assim Vico nos diz que “de tal maneira se formou a língua poética entre as nações, composta por caracteres divinos e heroicos (mito, poesia, escrita hieroglífica) depois explicados em linguagem vulgar, e finalmente escritos em caracteres vulgares” (Scienza Nuova §456). Lembremos também que a Bíblia conta (Gen XI, 9) a história da Torre de Babel, cuja construção motivou Deus a confundir as línguas e a espalhar os povos pela Terra. Vico explica que os deuses são personificações de forças da Natureza: Júpiter (os raios), Netuno (o mar), Vulcano (os vulcões); ou de habilidades humanas: Apolo (as artes), Marte (a
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Heródoto. História; introdução, tradução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988. 10 Tito Livio. Storia di Roma; testo latino e versione di Guido Vitali. Bologna: Nicola Zanichelli Editore, 1954. 9
guerra), Mercúrio (o comércio), Diana (a caça), etc. Podem significar também a deificação de um antepassado ilustre, como parece ser o caso de Mercúrio Trimegisto entre os egípcios (Scienza Nuova, §68). É fato que Cícero no livro Sobre a natureza dos deuses (III, 22-23) afirma que existiram 5 Mercúrios, 4 Apolos, 3 Dianas, 5 Dionísios, 4 Vênus, 5 Minervas e 3 Cupidos. Ele fornece a filiação de todos esses deuses e acrescenta que “tais divindades nada mais são do que antigas fábulas provenientes da Grécia”. 11 Na origem de todos esses mitos, segundo Vico, repousa o caráter poético dos homens que viveram na idade dos deuses. Para nosso autor tais indivíduos eram como crianças que vão explorando o ambiente ao seu redor, já que o Mundo era uma criação recente, após o Dilúvio. Esse mundo ainda na infância gerou, nas palavras de Vico, “nações poéticas, não sendo a poesia outra coisa que imitação” (Scienza Nuova, §216). Por isso a fala desses povos antigos não estava de acordo com a “natureza das coisas”, mas foi uma linguagem composta por “substâncias animadas” (Scienza Nuova, §401), transmitida de geração em geração pelos poetas teólogos. Esses eram indivíduos que divulgavam entre os povos as mensagens dos deuses recebidas pelas sibilas e pelos adivinhos, que sempre falavam em versos (Scienza Nuova, §381). O termo poetas teólogos já aparece em Santo Agostinho,12 que em sua obra A cidade de Deus (XVIII, 37) diz que “apenas os poetas teólogos, Orfeu, Lino e Museu e, se houve, alguns outros entre os gregos, foram anteriores aos profetas hebreus. (...) Contudo (e é necessário admiti-lo) não só na Grécia, mas também nas nações bárbaras, como no Egito, já antes de Moisés havia certa doutrina, Sabedoria para eles”. Isso embasa a teoria viquiana que o primeiro conhecimento produzido pelos homens teve uma inspiração divina, foi intermediado por Deus. Sobre este ponto, observou Jürgen Gebhardt que “para o Vico humanista civil toda a ordem constitutiva do mundo possui a própria expressão simbólica em uma theologia civilis. E essa se origina em qualquer que seja a forma de contemplação do divino”. 13 Ainda de acordo com Vico, “com uma cronologia meditada da história poética determina-se que a idade dos deuses durou novecentos anos; é onde se encontram os princípios da história universal profana” (Scienza Nuova, §69). Está escrito na Scienza Nuova (§369) que os descendentes de Noé se espalharam “pela grande selva da Terra – os filhos de Cam pela Ásia meridional, pelo Egito e o resto da África; os filhos de Jafet pela Ásia setentrional, onde fica a Sítia, e dali para a Europa; os filhos de Sem por toda a Ásia menor até o Oriente”. Devido a um meio ambiente hostil esses primeiros habitantes dessas regiões foram homens selvagens de grande corpulência (Bestioni), que fizeram suas moradias inicialmente em
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Cícero. Sulla natura degli dèi. Testo latino e versione di Alberto Zuccoli. Milano: Società Anonima Notari, 1929 (nossa tradução). 12 Santo Agostinho. A cidade de Deus; tradução de Oscar Paes Leme, Petrópolis: Vozes / São Paulo: Federação Agostianiana Brasileira, 1990 (2 volumes). 13 Jürgen Gebhardt. Op cit, p. 63. 11
cavernas nos altos montes, depois desceram para as planícies e finalmente ocuparam as áreas costeiras aos oceanos. Pelo temor dos raios, que lhes sugeriam uma força superior, adoraram os fenômenos da Natureza e criaram as religiões; para pedir a proteção dos deuses a seus filhos uniram-se em matrimônios; e para honrar seus genitores lhes deram sepultamentos. Assim se inicia, por adoração a uma divindade, o processo histórico de todas as nações – a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens, que constituem a história ideal eterna, ou seja, o processo civilizatório imposto por Deus aos homens.
III Em um ensaio escrito em 1940 (Dalla prima alla seconda Scienza Nuova – appunti sullo stile del Vico) Mario Fubini comenta que “à imagem dos heróis antigos, que eram celebrados nas escolas como exemplo de virtudes a serem seguidos pelos homens de qualquer época”, Vico opõe uma imagem muito diferente: os heróis da mitologia grega são homens violentos e aguerridos, não raro desprovidos de qualquer senso ético que possa ser identificado com as chamadas virtudes cristãs, tais como piedade e misericórdia. Muito embora, como nota Fubini, tais indivíduos fossem “devotados à família, à Pátria e aos deuses, eram também impiedosos para com aqueles estranhos à sua pátria, ou seja, à sua ordem social, e com os quais não sentiam-se ligados por nenhum vínculo comum”. 14 Foram esses os homens que viveram na segunda etapa do curso histórico viquiano: a idade dos heróis. Segundo Benedetto Croce, Vico não faz nenhuma distinção entre História e Poesia, já que para o filósofo napolitano, “a Poesia foi a história primitiva, as fábulas foram narrativas verdadeiras (...). Poesia e História, na origem, são portanto idênticas, ou, melhor dizendo, indistintas. (...) Daí surge a ideia completamente nova da Mitologia, não mais uma invenção arbitrária, mas uma visão espontânea da Verdade, tal qual esta se apresentava aos homens primitivos”. 15 Assim como os deuses foram a personificação de forças da Natureza ou das habilidades humanas, os heróis representam em um personagem mitológico as qualidades e as virtudes dos vários membros fundadores das nações antigas, eles são caracteres poéticos (Scienza Nuova, §79). Dessa forma, de acordo com Francesco Flora, Vico considerava que “as fábulas heroicas foram histórias verdadeiras das nações na época de sua barbárie, e também história de seus costumes”. 16 Por isso também Homero não foi um personagem histórico, sendo ele Mario Fubini. Stile e Umanità di Giambattista Vico (seconda edizione con un’appendice di nuovi saggi). Milano / Napoli: Riccardo Ricciardi Editore, 1965 (1ª ed. 1946), p. 52 (nossa tradução). 15 Benedetto Croce. Estetica come scienza dell’espressione e linguistica generale (teoria e storia), nona edizione riveduta. Bari: Gius Laterza e Figli, 1950; p. 247 (nossa tradução). 16 Francesco Flora. “Introduzione” in Tutte le opere di Giambattista Vico. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1957; p. XXXIII (nossa tradução). 14
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antes a somatória de todos os poetas que narraram os acontecimentos da época formadora da civilização grega. Na Scienza Nuova está escrito que “todos os historiadores marcam o início do século heroico com os corsários de Minos e com a expedição naval que Jasão fez ao Helesponto, prosseguem com a guerra troiana e com narrar os erros dos heróis e finalizam com o retorno de Ulisses a Ítaca”. (§634). Os heróis sempre vivem em guerra (§638), qualquer motivo serve para que eles peguem em armas e atentem contra a vida uns dos outros. A justiça heroica (§939) é inflexível e sempre exercida com o uso da força, por isso nas cidades heroicas predomina a razão de Estado, expressa através dos senados locais (§949). No princípio os pais de família, ou seja, os gigantes que se estabeleceram nas planícies, cuidavam de suas terras e não raro recebiam outros gigantes oriundos das selvas que pediam abrigo e proteção contra feras e intempéries em troca de trabalho e submissão: surgiram assim os aristocratas (os gigantes proprietários) e os plebeus (os gigantes que não possuíam terras ou rebanhos). Depois de adquirirem uma estatura normal, os homens começaram a sentirem-se inseguros com relação aos outros gigantes que habitavam as selvas e não haviam ainda adentrado o curso da história ideal eterna. Assim decidiram unir-se em grupos de famílias e fundarem cidades. Porém, como conta Vico, “os pais eram reis soberanos de suas famílias” e ao unirem-se, em razão da “natureza feroz dos polifemos” não desejando ceder o poder a outro que não fosse seu parente surgiram “os senados reinantes” (Scienza Nuova, §584). Atenas e Esparta eram cidades governadas por esse tipo de aristocracia, assim como Roma ao tempo da República. Por isso, Vico diz que Esparta foi a cidade dos heróis gregos e Roma foi a cidade dos heróis do mundo (Scienza Nuova, §668). De acordo com a teoria viquiana, junto a todas as nações da Antiguidade “primeiro correu a idade do deuses, rei dos quais os povos acreditaram ser Júpiter; e depois a idade dos heróis, que se diziam filhos dos deuses, o maior dos quais acreditou-se ser Hércules” (Scienza Nuova, §53). Desse modo, assim como todos os panteões possuem um rei dos deuses (e todos esses deuses soberanos manejam raios), cada povo tem um herói de extraordinária força física dotado de muitas habilidades bélicas. Tal afirmação é embasada por Tácito,17 que nos Anais (II, 60) conta que uma foz do Rio Nilo, visitada por Menelau em seu retorno de Tróia, era consagrada a um Hércules. Já tratamos desse herói mitológico em outro estudo 18 e diremos apenas que ele, para Vico, personifica os fundadores de cidades, sendo que muitas de suas façanhas estão ligadas a colonização de terras incultas. Nosso
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Cornelio Tacito. Gli Annali; versione di Camillo Giussani; 3ª edizione. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1945. Ver Ivan Leski. A Concepção de História em Giambattista Vico (dissertação de mestrado). São Paulo: FFLCH – USP, 2010; pp 61 a 63. 17
autor faz um paralelo entre Hércules (o herói dos povos do Ocidente) e Zoroastro (o herói dos povos do Oriente) (Scienza Nuova, §59), já que ambos são mitos fundadores, ou seja, libertam os povos e os ensinam a viver de uma maneira mais elaborada. E qual seria a língua dos heróis? É uma linguagem simbólica, representada pelos atributos desses personagens mitológicos: a força de Hércules, a sagacidade de Ulisses, a coragem de Teseu, a persistência de Eneas, etc. Por isso, Vico afirma que o primeiro verso foi o verso heroico (Scienza Nuova, §463), já que foram os poetas os primeiros a cantar as proezas desses indivíduos. Indivíduos reais, não seres fantásticos, que na origem dos povos foram amalgamados para formar um personagem de fábula. Porque Mitologia é História, apenas que com um discurso poético, obra dos poetas teólogos. Santo Agostinho em A Cidade de Deus (XVIII, 14) já havia dito que “também houve, nessa época, poetas que se diziam teólogos, por comporem versos em honra dos deuses. Compunham-nos, entretanto, a deuses que, embora grandes homens, não passaram de homens (...)”. Isso porque todos os povos diziam-se descendentes de um deus, e todas as cidades afirmavam terem sido fundadas por um herói, filho de um deus com um mortal. Assim como nega a existência histórica de Homero, que seria o nome pelo qual todos os poetas que narraram os feitos heroicos são conhecidos (haja visto que várias cidades gregas clamam terem sido o seu berço), Vico também diz que Esopo jamais existiu (Scienza Nuova, §91), mas é igualmente um caráter poético que representa todos os vates que se dedicaram a contar fatos da vida das plebes humildes das cidades heroicas. Na Bíblia a constituição das nações sob a bênção de Deus é tratada por Moisés em dois de seus livros: Gênesis (XXII, 18), e Deuteronômio (IV, 6). Ali o grande historiador do povo hebreu conta que Deus espalhou sua semente por todas as nações da Terra, e que desta forma Sua lei será universalmente aceita por todas elas. Já nos Salmos (CXLVII, 9) está dito que Deus fez de Israel sua nação escolhida quando entregou aos judeus suas leis. Existem também heróis bíblicos como Josué, Davi e Sansão. O que Vico tenta mostrar com a idade dos heróis é que todas as nações da Antiguidade se organizaram em torno de uma figura comum: Zoroastro no Oriente, entre os assírios e os caldeus e Hércules no Ocidente, entre egípcios e gregos. Eles não são apenas personagens de fábulas mitológicas, mas representam os primeiros legisladores dos povos: homens dotados de uma grande capacidade de liderança e iniciativa defronte aos grandes desafios de guiar tribos inteiras em territórios inóspitos, mantê-las unidas contra inimigos poderosos, dar-lhes um lar e ensinar-lhes a tirar da terra inculta a riqueza ali depositada pela Providênlhos de deuses. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº4, pp.143-157, Jul.-Dez./2015| www.poderecultura.com
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cia Divina. Para seus descendentes tais homens só poderiam ter origem divina, eram heróis fi-
IV Segundo Vico, “a Providência Divina ordenou as coisas humanas com um conselho eterno: que primeiramente, sob o auspício das religiões, se formassem as famílias, e depois dessas surgissem, sob o auspício das leis, as repúblicas” (Scienza Nuova, §14). Tais repúblicas de início foram aristocráticas (os senados heroicos), transformaram-se em populares (as leis escritas) e finalmente viraram monarquias (os imperadores), como descrito no §1006. A constituição das cidades heroicas marca a transição da idade dos deuses para a idade dos heróis; e a imposição das leis escritas assinala o início da idade dos homens (Scienza Nuova, §52). Vico diz que “a Providência Divina ordenou as coisas humanas com esta ordem eterna: que, nas repúblicas, aqueles que usam a mente comandem e aqueles que usam o corpo obedeçam” (Scienza Nuova, §17). Dessa forma, as cidades heroicas estabeleceram-se com os heróis habitando intramuros e os servos dos heróis (os plebeus) habitando os campos que eles arrendavam dos heróis. Apenas os aristocratas podiam usar armas e assim não permitiam que os servos entrassem em suas cidades, só podendo fazê-lo os que se dedicavam às tarefas domésticas nas casas dos heróis. Somente a aristocracia residente podia contrair matrimônios solenes (abençoados pela religião) e portanto ter legítimos herdeiros. Os plebeus não podiam contrair matrimônios e em consequência não tinham como transmitir aos filhos suas posses. As leis não eram escritas, elas baseavam-se nas palavras dos heróis pronunciadas nos senados, já que eles detinham o domínio da força armada para impor a sua vontade pessoal. Era esse o caso de Aquiles, que dizia viver pelo poder de sua espada. 19 Os plebeus se rebelaram e arrancaram dos heróis o direito de realizar matrimônios solenes e assim puderam ter os filhos reconhecidos como seus herdeiros. Exigiram também que todos vivessem sob uma única lei, escrita e válida sob quaisquer circunstâncias, e assim começou a idade dos homens. Os plebeus, amparados pelas leis escritas, passaram a ter voz ativa nos senados heroicos. Por isso começaram as lutas pela posse das terras cultivadas, já que os camponeses agora se organizavam contra os desmandos praticados pelos proprietários. Com o passar dos tempos surgiram os tribunos da plebe, que ocuparam lugar nos senados heroicos. Tito Lívio, em sua História de Roma (II, 35) conta que Márcio Coriolano foi expulso da cidade pelos senadores após sua vitória sobre os volscos por que se opôs aos direitos da plebe. Também Cornelio Nipote, no capítulo sete da sua Vida de Aníbal, diz que o general cartaginês teve todos os seus bens confiscados
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Uma versão muito interessante dessa relação dos heróis com suas armas nos é oferecida pela tragédia Filoctetes, de Sófocles. 19
pelo senado de Cartago. 20 São eles dois exemplos demonstrativos de como os heróis militares estavam sujeitos à justiça dos homens comuns, consequência da aplicação das leis escritas (Scienza Nuova, §1448). A língua da idade dos homens é composta por caracteres (letras) que possam ser compreendidos por todos, já que expressam o falar comum a todo um povo (Scienza Nuova, §52). Vico diz que os governos desse ciclo da história ideal eterna primeiro são repúblicas populares que posteriormente transformam-se em monarquias. Isso deve necessariamente acontecer porque os povos não se interessam pelo bem comum, mas entregam-se a lutas intestinas pelos interesses privados de suas famílias. Por isso, sempre aparecerá alguém que tomará a si as tarefas administrativas do Estado deixando os outros livres para cuidarem de seus negócios, como fez Augusto em Roma (Scienza Nuova, §1008). Surgem então os reis, cuja justiça iguala todos os súditos; e numa etapa posterior os impérios, cuja justiça iguala todas as nações (Scienza Nuova, §1023). Assim, no curso da história ideal eterna, primeiro foram os homens solitários (os gigantes); depois apareceram as famílias que cultivaram os campos e apascentaram seus rebanhos; reuniram-se as famílias em um povo, que finalmente, sob o governo de um rei, constitui-se em uma nação. A primeira grande nação a surgir no mundo foi a Assíria (Scienza Nuova §60). No momento em que as decisões estão concentradas em uma única pessoa, que tem poder suficiente para mediar conflitos e impor soluções, as nações começam a se desenvolver. O processo inverso também é verdadeiro: os povos envolvidos em lutas facciosas, que não conseguem estabelecer uma legislação comum a todo um território e se mostram incapazes de criar uma cultura civilizatória, acabam por serem dominados e escravizados pelas nações melhor estruturadas. Dessa maneira são formados os impérios. Vico diz que “as falsas religiões começaram a desaparecer com as letras, que deram início às filosofias” (Scienza Nuova, §40). Também Santo Agostinho, na obra A Cidade de Deus (VI, 5) comenta que existiram três tipos de teologia: a fabular, a física e a civil. A teologia civil é justamente aquela que se adapta a uma nação politicamente estruturada, onde o poder político mescla-se com o poder religioso, ou seja, onde os reis são também sacerdotes. Roma e Egito foram nações desse tipo. Os judeus não passaram por esse processo porque, segundo Vico, foram proibidos por Deus de entrar em contato com nações gentias (Scienza Nuova §94). A esse respeito Tácito,21 em As Histórias (V, 5), fala que “os judeus entendem um Deus como pensamento, e possuem um só nome:
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Cornelio Nipote. Le Vite, testo in latino e versione di Alberto de’ Stefani. Milano: Società Anonima Notari, 1928. Cornelio Tacito. Le Storie; testo latino e versione di Giuseppe Liparini. Milano: Società Anonima Notari, 1930 (2 volumes) (nossa tradução). 20
sacrílegos são aqueles que representam em forma humana a figura de Deus; este é sumo e eterno, inimitável e incorruptível. Portanto em suas cidades não existem estátuas, muito menos templos; nem mesmo para adular seus reis, nem mesmo para homenagear César”. Lembremos que, segundo a tradição bíblica, as leis dos judeus foram escritas por Deus e entregues a Moisés. É na idade dos homens que surgem as primeiras narrativas da origem das nações, já que não existe nenhum “escritor que seja mais antigo do que Homero” (Scienza Nuova, §788). Não devemos esquecer que, para Vico, o bardo grego é um personagem fictício, cuja obra seria a reunião de várias histórias transmitidas oralmente de geração em geração desde os tempos heroicos. Nosso autor argumenta que as duas epopeias homéricas, devido ao cenário e aos costumes nelas narrados, não podem ter sido escritas na mesma época: a Ilíada deve ter sido gerada na idade dos deuses, e a Odisseia na idade dos heróis. Da mesma forma, Orfeu representa os poetas teólogos, já que ele “com suas fábulas (...) primeiramente fundou e depois reafirmou a humanidade da Grécia” (Scienza Nuova, §81). Homero e Orfeu, na concepção viquiana, são testemunhas da época que precedeu os tempos históricos, eles são caracteres poéticos.
V De certa forma resumindo seu pensamento, Vico diz que a sua nova ciência é “uma história das ideias, costumes e fatos do gênero humano” (Scienza Nuova, §368). Um dos mais importantes estudiosos da obra viquiana, Benedetto Croce, acha que, na verdade, a filosofia da história do pensador napolitano, “sua história ideal, a sua Scienza Nuova d’intorno alle comune natura delle
nazioni, não se refere à história concreta, aquela que se desenvolve no tempo; e não é história, mas uma ciência do ideal, uma filosofia do espírito”. 22 Também Francesco de Sanctis, pensador um pouco anterior a Croce, realça a importância do legado de Vico uma vez que em sua obra, “Língua, Mitologia, Poesia, Jurisprudência, religiões, cultos, artes, costumes, indústrias, comércio não são fatos arbitrários, são fatos do Espírito (...). Cronologia, Geografia, Física, Cosmografia, Astronomia, tudo se renova sob esta nova crítica”. 23 Isso se deve à maneira como Vico se dedica a esmiuçar coisas que seus contemporâneos não julgavam dignas de serem estudadas. O filósofo napolitano declarou que em toda a sua obra procurou “não desprezar as tradições vulgares, mas sim investigar a verdade que lhes deu razão de publicamente nascerem e conservarem-se” (Scienza Nuova, §1446). Ele não está interessado em fazer uma história do império romano, por exemplo, mas sim em descobrir como os impérios surgem, por que se desenvolvem
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Benedetto Croce. Op cit, p 255. Francesco de Sanctis. Op cit, pp 301-311.
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e quais são as razões de seu declínio. De acordo com Paolo Rossi, Vico demonstrou que “somente a recusa à mentalidade aristocrática e deformante que projeta no mundo primitivo as categorias da razão poderá evitar que aquele mundo apareça como até então havia aparecido aos filósofos, todo repleto de absurdos, de contradições, de incongruências e de depravações morais”. 24 A Scienza Nuova pode ser lida como uma revisão das obras de vários historiadores e poetas da Antiguidade sob esse novo enfoque. Luigi Salvatorelli acha que “Vico alargou e ‘mobilizou’(a expressão é de De Sanctis) o conteúdo da História. Às guerras e aos tumultos civis, às façanhas individuais dos generais e dos chefes de Estado ele acrescenta, sobrepõe e substitui os institutos jurídicos e as transformações. E, através da história das instituições, ele constrói uma história total e unitária da Humanidade”. 25 Uma história do espírito humano, uma história do aprimoramento moral e intelectual do Homem, uma história da História.
Referências Bibliográficas:
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Paolo Rossi. Op cit, p 35 Luigi Salvatorelli. Op cit, p iv
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NORMAS DE PUBLICAÇÃO I. GERAL A Revista Poder & Cultura é uma publicação de caráter semestral e eletrônica, mas que, a qualquer tempo, a critério da Comissão Editorial, poderá lançar números especiais. O periódico publica artigos, resenhas, entrevistas, traduções e textos críticos de fontes e documentos relacionados às áreas da História, das Artes e das Humanidades em geral, produzidos por docentes, graduados, doutorandos e doutores, mestrandos e mestres, além de pósgraduandos stricto sensu sobre as mais variadas temáticas. A revista recebe trabalhos em fluxo contínuo. Os textos devem ser originais, inéditos, e redigidos em português, espanhol ou inglês. Todos os trabalhos enviados à Revista devem ter envio exclusivo, não podendo ser enviada simultaneamente a outros periódicos, sejam nacionais ou internacionais. As resenhas podem ser de livros publicados até dois anos antes, a contar da data de apresentação da resenha. No caso de livros publicados no exterior, a contagem é de quatro anos antes, contados de igual modo. Os conteúdos constantes nos textos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. (No ato de submissão de artigo para avaliação o proponente deverá encaminhar assinado o Documento-Anexo 1: Declaração de responsabilidade e originalidade: “Declaro minha inexequível responsabilidade de autoria do texto, bem como o ineditismo de seu conteúdo, atestando não ter omitido quaisquer referências a outros trabalhos científicos e/ou acadêmicos. Atesto igualmente que o texto a ser submetido não foi nem será enviado a outro periódico, seja no formato impresso ou no eletrônico, enquanto o mesmo estiver sendo apreciado pela Revista Poder & Cultura”.) A partir do aceite para publicação a Revista Poder & Cultura passará a deter os direitos autorais e de publicação dos respectivos textos. (No ato de submissão de artigo para avaliação o proponente deverá encaminhar também assinado o Documento-Anexo 2: Declaração de Cessão de Direitos Autorais) “Declaro que, caso o texto enviado seja aceito para publicação, a Revista Poder & Cultura estará na situação de detentora dos direitos de publicação e reprodução do artigo/resenha/ensaio, não podendo o mesmo ser veiculado – parcial ou completamente – em outro periódico, seja digital ou impresso, por parte do autor ou de terceiros.”)
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Cada autor só poderá enviar um texto (de natureza artigo, resenha ou ensaio crítico) por vez para submissão.
II. FORMALIDADE As colaborações para a Revista Poder & Cultura devem seguir, rigorosamente, as seguintes especificações, de acordo com as normas de estrutura, fixadas pela ABNT. O não cumprimento das normas acarretará a devolução do trabalho. Os textos devem ser enviados através da página da Revista Poder & Cultura, mediante formulário preenchido e declarações assinadas, disponíveis em: http://www.poderecultura.com/p/submissao.html Serão aceitos também o recebimento de textos enviados, juntamente com formulário e declarações, para o e-mail: poderecultura@gmail.com. Só serão aceitos arquivos em Word 2007 ou superior (.doc. ou .docx). Margens esquerda e superior de 3 cm e direita e inferior de 2 cm. Os textos devem estar grafados em fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5, justificado. Devem constar na primeira página do arquivo digital, os seguintes dados do autor: nome completo, filiação institucional, titulação acadêmica, agência de fomento à qual se vincula (para os bolsistas) e endereço eletrônico. Estrutura geral do artigo: Título (em português e inglês); autor(es) com nota de rodapé biográfica; Resumo, (em português e em inglês) com no máximo 250 palavras; palavras-chave (3); Texto (com notas de rodapé); e Bibliografia. No caso dos artigos, logo após o nome do autor, o texto deve apresentar um resumo – onde fiquem claros os propósitos, os métodos empregados e as principais conclusões do trabalho – na língua utilizada com até 250 palavras e ter 03 palavras-chave – que identifiquem os principais assuntos tratados – no mesmo idioma, separadas por ponto. Também deverá constar, obrigatoriamente, a versão do título/subtítulo, do resumo e das palavras-chave em inglês: "Abstract" e "Keywords". Os artigos devem ter um mínimo de 15 laudas e um máximo de 30 laudas. As Resenhas deveram ter de 3 a 6 laudas. Os ensaios devem conter de 10 a 15 laudas. Todas as notas devem ser colocadas no rodapé da página, em espaço simples e justificado. A Bibliografia complementar deve estar listada ao final do texto.
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As citações de até 3 linhas devem estar entre aspas no corpo de texto. Aquelas acima de 3 linhas devem estar destacadas em corpo menor, e com recuo à esquerda de 1, 25. As intervenções devem ser postas entre colchetes. Todas as referências de citação deverão estar indicadas, de acordo com a ABNT, em nota de rodapé, nunca no corpo do texto. Exemplificação das citações para livros, dissertações, teses, artigos e similares: SOBRENOME, Nome. Título da obra ou livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome (ed.; org.; coord.; etc.); ou Idem. Título em itálico: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fasc., ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do artigo ou matéria. Jornal em itálico, Cidade, dd/mm/aaaa, caderno, p. SOBRENOME, Nome. Título do trabalho apresentado. In: NOME DO EVENTO, número, ano, local. Resumos, Anais, Atas, Proceedings em itálico. Cidade: editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título da tese/dissertação em itálico. Tese de doutorado/dissertação de mestrado, área, departamento/instituto, universidade, ano. NOME DO EVENTO, número, ano, local. Observação: o nome do autor nunca deve ser abreviado. No caso de documentos e fontes: Autor. Tipo de Documento. Data. Informações descritivas seguidas de vírgula. Informações de localização seguidas de vírgula. Cartografia: Autor. Título em itálico. Local: editora, ano. Designação específica (1 atlas, mapa, fotografia aérea). Escala. Demais informações seguidas de vírgula. Materiais sonoros: Compositor ou intérprete. Título em itálico. Local: gravadora (ou equivalente), data. Suporte, demais informações seguidas por vírgula.
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Material Cinematográfico: Exemplo: Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs). Direção: Hamilton Luske. Produtor: Walt Disney. Estados Unidos da América, Walt Disney, 1937. 1Blu-Ray/DVD. Iconografia: Autor. Título em itálico. Data. Suporte (pintura, gravura, fotografia, etc), demais informações seguidas por vírgula.
III. AVALIAÇÃO Atendendo as especificidades de formatação dentro das normas da ABNT, as propostas de textos submetidas serão avaliadas inicialmente pela Comissão Editorial. Após a primeira avaliação os textos serão enviados para dois pareceristas ad hoc, designados pela Comissão Editorial, para que emitam sua avaliação. Será mantido sigilo quanto à identidade tanto destes quanto dos autores. Havendo desacordo entre as avaliações dos pareceres, ou conflito de interesses, a Comissão Editorial enviará o texto para um terceiro parecerista. Os pareceres poderão recomendar: a) a aceitação integral do texto; b) a recusa integral; c) a aceitação com pequenas modificações; d) a aceitação com modificações significativas, sendo o texto, nestes dois últimos casos, reenviado ao autor para realizar as alterações recomendadas dentro do prazo máximo de 1 mês, a contar da data do envio do pedido por parte da Comissão Editorial. A decisão final sobre a publicação ou não do texto caberá sempre a Comissão Editorial, que se reserva o direito de solicitar, igualmente, alterações nos manuscritos originais. As alterações referentes à padronização e redação, introduzidas pelos próprios Editores, visarão sempre a manter a homogeneidade e a qualidade do periódico, respeitando, porém, o estilo e as opiniões dos autores.
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