ISSN: 2359-1072
REVISTA PODER & CULTURA ISSN: 2359-1072 Volume 2, Número 3, janeiro – junho / 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Prof. Dr. Roberto Leher Vice-Reitora: Profa. Dra. Denise Fernandes Lopez Nascimento INSTITUTO DE HISTÓRIA Diretor: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa Vice-Diretor: Prof. Dr. Murilo Sebe Bom Meihy LABORATÓRIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E MIDIÁTICOS DAS AMÉRICAS E DA EUROPA (LEHMAE) Coordenador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira
COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Editor Chefe) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Mestranda Quezia Brandão (Editora Executiva) — Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil. Graduanda Beatriz Moreira da Costa (Editora Técnica e Web designer) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Danilo de Lima Nunes (Editor Técnico) – LEHMAE-IH-UFRJ, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Leandro Couto Carreira Ricon (Editor Administrativo) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Dr. Christiano Britto Monteiro dos Santos (Editor Assistente) — Colégio Pedro II – Humaitá, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Carlos Vinicius Silva dos Santos (Editor Assistente) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Leonardo Montanholi dos Santos (Editor Assistente) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Graduando Ricardo Lemos Lima (Editor Assistente) – Universidade Federal do Oeste de Bahia (UFOB), Barreiras (BA), Brasil.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
CONSELHO EDITORIAL NACIONAL Prof. Dr. Alexander Martins Vianna – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. Alexandre Busko Valim — Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Prof.ª Dr.ª Ana Paula Torres Megiani — Universidade de São Paulo (USP) Profa. Dra. Angélica Müller — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Antonio Carlos Amador Gil — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Prof. Dr. Antônio Pedro Tota – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Prof. Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin—Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Elizabeth Cancelli— Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Flávio Vilas-Boas Trovão — Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert Júnior — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva — Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Frederico Alexandre Hecker — Universidade Presbiteriana Mackenzie/ Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Gabriel Passeti — Universidade Federal Fluminense (UFF) Prof.ª Dr.ª Gabriela Pellegrino Soares — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Ivana Barreto — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. José D’Assunção Barros — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. José Luis Bendicho Beired — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Julio Cesar Pimentel Filho — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Kátia Gerab Baggio — Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Prof. Dr. Leandro Karnal — Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Marcus Dezemone — Universidade Federal Fluminense (UFF) Prof.ª Dr.ª Maria Antonia Dias Martins — Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) Prof.ª Dr.ª Maria Helena Rolim Capelato — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Mariana Joffily — Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Prof.ª Dr.ª Mariana Martins Villaça — Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Prof.ª Dr.ª Mary Lucy Murray Del Priore — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Maurício Cardoso — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Osvaldo Luis Angel Coggiola — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Patrícia Valim — Universidade Federal da Bahia (UFBA) Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
Prof.ª Dr.ª Priscila Ribeiro Dorella — Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG) Prof. Ms. Raphael Nunes Nicoletti Sebrian — Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) Prof. Dr. Ricardo Antônio Souza Mendes — Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Prof. Dr. Robert Sean Purdy — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Rodrigo Farias — Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Rodrigo Ricupero — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Tânia Regina de Luca — Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) Prof. Dr. Thaddeus Gregory Blanchette — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/Macaé) Prof.ª Dr.ª Vanessa dos Santos Bodstein Bivar — Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) Profa. Dra. Yone de Carvalho — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL Prof. Dr. Alex Houen — University of Cambridge Prof.ª Dr.ª Archana Ojha — University of Delhi Prof. Dr. Diogo Ramada Curto — Universidade Nova de Lisboa Prof. Dr. Fernando Rosas — Universidade Nova de Lisboa Prof.ª Dr.ª Marie-Christine Pauwels — Université de Paris X Prof. Dr. Lorenzo Delgado Gómez-Escalonilla — Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Madrid Prof.ª Dr.ª Patrícia Funes — Universidad de Buenos Aires Prof. Dr. Pere Gallardo Torrano — Universitat Rovira i Virgili / Universitat de Lleida Prof. Dr. Philip M. Hosay — New York University Prof. Dr. Wolfgang Benz — Technische Universität Berlin PRODUÇÃO EDITORIAL Diagramação: Beatriz Moreira da Costa, Christiano Britto Monteiro dos Santos e Danilo de Lima Nunes Revisão: Beatriz Moreira da Costa, Carlos Vinicius Silva dos Santos, Danilo de Lima Nunes, Quezia Brandão e Ricardo Lemos Lima Design da Capa: Beatriz Moreira da Costa IMAGEM DA CAPA DELPINO, Delio [1907 – 1985]; Título: Panorama Central Vista de São Francisco de Paula em Ouro Preto; Descrição: óleo s/ madeira, ass., dat. 21/03/1952 e tit. no verso 24,5 x 30 cm Obra de Arte pertencente ao acervo particular de Leonardo Montanholi dos Santos
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA REVISTA PODER & CULTURA LABORATÓRIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E MIDIÁTICOS DAS AMÉRICAS E DA EUROPA (LEHMAE) INSTITUTO DE HISTÓRIA — UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Largo de São Francisco, 01 - 3º Andar / Sala 320-G - Centro CEP:20051-070 – Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel. 5521 2221-0341 - Ramal 307 E-mail: poderecultura@gmail.com Site: www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
APRESENTAÇÃO
A
Revista Poder & Cultura é uma iniciativa que nasceu dos cursos, produções historiográficas e debates realizados pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da
Europa (LEHMAE), coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/UFRJ), desde o ano de 2011. Demarcando seu campo de investigação na pluralidade de experiências históricas travadas pela relação entre Poder e Cultura, a Revista pretende ser um canal de expansão da temática e de divulgação de artigos, resenhas, entrevistas e ensaios de crítica histórica, estando aberta a abordagem de questões e conceitos acerca de todos os campos disciplinares, especialidades, períodos e temas históricos que tangenciem, de alguma forma, as noções de poder e/ou cultura. Nosso propósito é abrir um espaço de ampla circulação às pesquisas acadêmicas da área das Humanidades, contribuindo para educação pública e socializando o espaço acadêmico. Nossos esforços caminham no sentido de produzir uma integração entre os círculos intelectuais e seculares, promovendo conhecimento e cidadania através do acesso ao resultado de pesquisas de ponta que versam sobre os mais variados aspectos da sociedade e sua cultura através dos tempos.
“Do ponto de vista do poder político, a cultura é absolutamente vital. Tão vital, de fato, que o poder não pode funcionar sem ela. É na cultura, no sentido de hábitos diários e crenças de um povo, onde o poder repousa, fazendo-o parecer natural e inevitável, transformando-o em reflexo e resposta espontâneos” . (Terry Eagleton)
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
SUMÁRIO
EDITORIAL / EDITORIAL............................................................................................. 9 ARTIGOS / ARTICLES EGITO E ORIENTE PRÓXIMO: Quem é quem nas cartas de Amarna EGYPY AND NEAR EAST: Who is who in the Amarna Letters Por Priscila Scoville ..................................................................................................... 14 DA DEDUÇÃO À INDUÇÃO OU COMO QUEBRAR OS ÍDOLOS E ERIGIR UMA ‘CASA DE SALOMÃO’ PARA A CIÊNCIA HISTÓRICA: Francis Bacon, um ensaio FROM DEDUTION TO INDUCTION OR HOW TO BREAK THE IDOLS AND BUILD A ‘SOLOMON’S HOUSE’ FOR SCIENCE: Francis Bacon, a essay Por Leandro Couto Carreira Ricon ................................................................................ 30 O BOMBARDEIO DE DRESDEN EM 13 E 14 DE FEVEREIRO DE 1945: Uma análise biográfica THE BOMBING OF DRESDEN ON 13 AND 14, FEBRUARY 1945: A literature analysis Por Rafael Haddad Cury Pinto ..................................................................................... 48 ENTRE RISOS E CRÍTICAS: Representações do Brasil através das Chanchadas BETWEEN LAUGHTER AND CRITICS: Representations of Brazil trhough Chanchada Por Oscar José de Paula Neto..................................................................................... 70 OS INTELECTUAIS E AS GUERRAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL: Reflexões sobre o pensamento de Sartre, Fanon e Guevara THE INTELLECTUALS AND THE WARS OF NATIONAL LIBERATION: Reflections on thinking of Sartre, Fanon and Guevara Por Priscila Henriques Lima ....................................................................................... 87 AS NARRATIVAS CRÍSTICAS DA REVOLUÇÃO NO TERCEIRO MUNDO: Circulações e Apropriações Estéticas de O Evangelho Segundo São Mateus (1964) em A Idade da Terra (1980) THE CHRIST-NARRATIVES OF THE REVOLUTION IN THE THIRD WORLD: Circulations and aesthetics appropriations of The Gospel According St. Mathews (1964) in The Age of the Earth (1980) Por Quezia Brandão & Wagner Pinheiro Pereira .........................................................107 O SHINSENGUMI EM RUROUNI KENSHIN: A construção do mito e seu papel na cultura japonesa THE SHINSENGUMI IN RUROUNI KENSHIN: The construction of the myth and their role in Japanese culture Por Leonardo Rosa Molina de Oliveira ....................................................................... 143
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
LUX IN TENEBRIS: A construção do herói nos videogames LUX IN TENEBRIS: The Construction of the hero in video games Por Christiano Britto Monteiro dos Santos ................................................................. 161 RESENHA / BOOK REVIEW CHEVITARESE, André. Jesus no Cinema. Um balanço Histórico e Cinematográfico entre 1905 e 1927 (Volume 1). Rio de Janeiro: Kline, 2013. Por Juliana B. Cavalcanti M.T. ................................................................................... 184
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
EDITORIAL
A
presente edição da Revista Poder & Cultura, Vol. 2, Nº 3, Jan. – Jun./2015, apresenta uma importante diversidade de contribuições historiográficas que contemplam, de forma estimulante, diferentes
períodos históricos e localizações geográficas, assim como ampliam o leque de fontes documentais para a pesquisa histórica. O primeiro artigo, “Egito e Oriente Próximo: Quem é quem nas Cartas de Amarna”, de Priscila Scoville, realiza um interessante estudo sobre as relações diplomáticas entre o Egito Faraônico e as civilizações do Oriente Próximo através da análise das Cartas de Amarna, que desvendam os meandros das estratégias de alianças e de guerras do Mundo Antigo. O artigo “Da dedução à indução ou como quebrar os ídolos e erigir uma ‘Casa de Salomão’ para a ciência histórica: Francis Bacon, um ensaio”, de Leandro Couto Carreira Ricon, embrenha-se nos campos da Teoria da História para estudar como a obra de Francis Bacon, um dos fundadores da ciência moderna, tornou-se canônica no interior da historiografia desenvolvida por pensadores positivistas do século XIX, que recuperaram a noção baconiana de “progresso histórico”. Ainda no campo das reflexões sobre as abordagens historiográficas temos também o artigo “O Bombardeio de Dresden em 13 e 14 de fevereiro de 1945: uma análise bibliográfica”, de Rafael Haddad Cury Pinto, que recupera os bombardeios aéreos dos Aliados, principalmente da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América, sobre a cidade alemã de Dresden, um tema espinhoso, polêmico e controverso da historiografia sobre a Segunda Guerra Mundial. Os três artigos seguintes discutem questões históricas do “Terceiro Mundo” no período da Guerra Fria através do olhar de intelectuais e cineastas: “Entre Risos e Críticas: Representações através das Chanchadas”, de Oscar José de Paula Neto, reflete, de forma instigante, sobre a natureza histórica e historiográfica de um dos gêneros cinematográficos mais importantes e representativos do cinema brasileiro: as chanchadas produzidas nas décadas de 1940 e 1950. Já o artigo “Os intelectuais e as guerras de libertação nacional: reflexões sobre o pensamento de Sartre, Fanon e Guevara”, de Priscila Henriques Lima, discute o
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
processo histórico de descolonização afro-asiática e das guerras de libertação nacional através dos escritos Colonialismo e Neocolonialismo (1968), de Jean-Paul Sartre, Os Condenados da Terra (1961), de Frantz Fanon, e Obras Escogidas (1957-1967), de Ernesto “Che” Guevara. O artigo “As Narrativas Crísticas da Revolução no Terceiro Mundo: Circulações e Apropriações Estéticas de O Evangelho Segundo São Mateus (1964) em A Idade da Terra (1980)”, de Quezia Brandão e de Wagner Pinheiro Pereira, desvendam, sob o viés da História Conectada e das Transferências Culturais, os profícuos diálogos entre as obras cinematográficas de Glauber Rocha e de Pier Paolo Pasolini, dois dos cineastas mais representativos dos movimentos cinema-novistas na América Latina e na Europa, que apresentaram nos filmes O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e A Idade da Terra (1980) uma narrativa crística para a abordagem político-ideológica dos processos revolucionários no Terceiro Mundo. Os dois últimos artigos destacam-se pela originalidade na utilização de novas fontes documentais para a realização de pesquisas históricas: mangás japoneses e jogos de videogame americanos. O artigo “O Shinsengumi em Rurouni Kenshin: A construção do mito e seu papel na cultura japonesa”, de Leonardo Rosa Molina de Oliveira, traz uma interessante análise sobre como o Shinsengumi, força policial do governo Tokugawa no Japão, é representado pelo mangá nipônico Rurouni Kenshin (1994), de Nobuhiro Watsuki. Em “Lux in Tenebris: A construção do herói nos videogames”, de Christiano Britto Monteiro dos Santos, é proposto o estudo da construção do herói, presente em um tipo de narrativa e memória mitificada da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, nas duas franquias de games:Medal of Honor e Call of Duty. Por fim, temos a resenha do livro Jesus no Cinema. Um balanço Histórico e Cinematográfico entre 1905 e 1927 (Volume 1), de autoria do historiador André Chevitarese, realizada por Juliana B. Cavalcanti M.T.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ 3, Jan.-Jun./2015 | www.poderecultura.com
EGITO E ORIENTE PRÓXIMO: Quem é quem nas cartas de Amarna Priscila Scoville
RESUMO: Os estudos a cerca do Egito faraônico comumente o isolam do mundo antigo, centrando-se em práticas a cultos internos, sem maiores contatos e trocas com um panorama externo e mais amplo. Contudo, quando as Cartas de Amarna foram encontradas, pesquisadores do mundo todo puderam entender, ao menos um pouco, sobre como eram feitas as negociações diplomáticas na antiguidade. A chamada XVIII dinastia inicia um período de expansão e hegemonia do poder egípcio. Batalhas e alianças foram fomentadas na região, estabelecendo, assim, relações diplomáticas entre os povos nilótico e asiáticos. Procurando entender os padrões de escrita e de conduta presentes nas correspondências, este trabalho visa expor quais eram os reinos do Oriente Próximo mais influentes e como era feito seu contato com o Egito. Para tanto, utilizaremos as Cartas de Amarna, para, a partir delas, apontar o mundo conhecido no Oriente Próximo. PALAVRAS-CHAVE: Antigo Egito; Oriente Próximo; Relações Diplomáticas.
EGYPT AND NEAR EAST: Who is who in the Amarna Letters ABSTRACT: The studies about Ancient Egypt generally isolate it from the ancient world, focusing on internal practices and cults, without further contacts and exchanges with an external and wider panorama. However, when the Amarna Letters were found, researchers from all around the world could understand, at least a little, about how the ancient diplomatic negotiations where made. The eighteenth dynasty began a period of territorial expansion and Egyptian hegemony. Battles and alliances were promoted in the region, thus, providing diplomatic relations between the Asians and Nilotic peoples. By trying to understand the writing and behavior patterns in the letters, this paper aims to expose which were the most influential kingdoms of the Near East and how the relations with Egypt where made. Therefore, we will use the Amarna letters, to point the known world in the Near East. KEYWORDS: Ancient Egypt; Near East; Diplomatic Relations.
***
Mestranda em História na Universidade Federal do Paraná, membro do NEMED, bolsista CAPES. E-mail: pcnlscoville@gmail.com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Egito e oriente próximo: quem é quem nas cartas de Amarna
A
s Cartas de Amarna trouxeram à luz um complexo sistema diplomático presente no mundo antigo. Graças a elas, pudemos conhecer um pouco sobre as trocas políticas, culturais, religiosas e
sociais feitas entre o Egito e o Oriente Próximo. Contudo, para que possamos entender os tratados é necessário conhecer os territórios aos quais as correspondências se referem. Para tanto, este texto tem como objetivo apresentar, de forma breve, como é feito e quais são os reinos em contato com o Egito. Na introdução de seu livro, Cohen e Westbrook já nos lembram que, por nossa visão em retrospectiva ser limitada, não podemos saber exatamente como as relações aconteciam na antiguidade, havendo uma dificuldade em identificar as tendências mais marcantes 1. Podemos ver as consequências antes das causas, o que muitas, senão todas, vezes interfere em nossas análises. É preciso, então, que nós entendamos alguns conceitos do mundo moderno que foram apropriados aqui para aplicarmos ao mundo antigo. Uma das coisas necessárias que clareemos é o que entendemos como sendo o Oriente Próximo. De acordo com Van de Mieroop, a expressão era usada durante o século XIX para identificar o que restaria do Império Otomano na margem oriental do Mar Mediterrâneo. Apesar de os limites geográficos serem chamados atualmente de Oriente Médio, muitos arqueólogos e historiadores utilizam “Oriente Próximo” em suas pesquisas, tratando-o como a região física. Os limites, porém, não são bem estabelecidos e cada autor define sua área 2. Aqui, consideramos como fronteira a região entre a Babilônia e a Anatólia, como no mapa da imagem 1. Dito isso, é interessante lembrar que para os antigos essa noção de “Oriente Próximo” não existia. As negociações transitavam pelo mundo conhecido, que se estendia pouco além dos limites apontados acima, chegando ao sul da Europa, por exemplo.
1
COHEN, Raymond & WESTBROOK, Raymond (ed.). Amarna Diplomacy. The beginnings of international relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2002, p. 5. 2 VAN DE MIERROP, Marc. A History of the Ancient Near East ca. 3000-323 BC. 2ª edição. Oxford: Blackwell, 2007, p.1. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Outra coisa que precisamos esclarecer antes de continuar é a ideia de diplomacia. Hoje, entendemos que as relações diplomáticas são ligadas às internacionais, contudo, como sabemos, o conceito de nação surge somente no início da Idade Moderna, muito ligado ao contexto político. Nesse sentido, o conceito de Estado aparece como o setor administrativo de uma nação, que por sua vez é entendida como uma sociedade, estabelecida em determinado território, que compõe uma “unidade étnica, histórica, linguística, religiosa e/ou econômica” 3. Tais noções, como já apontado, não existiam no mundo antigo e, portanto, devemos ter isso em mente para evitar entendimentos equivocados. Então, ao falarmos de diplomacia, neste trabalho, referimo-nos aos atos tomados por governantes em prol de seu território e interesse, além de servir como uma ferramenta para o processo de criação de um império4. Neste caso, as ações diplomáticas podem ser analisadas a partir das Cartas de Amarna, tanto através do discurso, quanto pelo conteúdo expresso – como listas de presentes e requisições. Não cabe a este trabalho analisar o discurso por trás das correspondências, contudo devemos entender um pouco sobre os padrões diplomáticos estabelecidos para a escrita e comportamento.
Imagem 1: Mapa do Oriente Próximo em c. 1350 AEC. Disponível em: <http://aratta.files.wordpress.com>. Acesso em: 13/03/2015
3
SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009, p.308. 4 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond, Op. Cit., 2002, pp.10-11. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
As Cartas Em 1887, na cidade de Tel el-Amarna, antiga Akhetaten, foi encontrado um conjunto de tabletes com escritas em cuneiforme. Essas correspondências, chamadas de Cartas de Amarna, foram trocadas entre governantes egípcios e vizinhos e são datadas entre os últimos anos do reinado de Amenhotep III (c. 1390 – 1352 5) e os primeiros anos do governo de Tutankhamon (c. 1336 - 1327). Os temas mais recorrentes são casamentos diplomáticos, trocas de presentes e declarações de amizade6. Segundo Moran, essas correspondências podem ter sido, inicialmente, encontradas em expedições clandestinas 7 e com o passar dos anos outros fragmentos foram sendo encontrados. Em 1907, quando J. A. Kunudtzonpublica o primeiro volume de “Die El-Amarna-Tafeln”, 358 tabletes eram conhecidos. Knudtzon organizou-os cronológica e geograficamente, em um sistema utilizado até hoje com a sigla “EA”. Após 1907, mais 24 tabletes foram encontrados. Com exceção dos EA80, EA81 e EA82, os tabletes encontrados após a publicação de Knudtzon foram analisados por Anson F. Rainey, em 19708. Somente em 1992, Moran publicou a tradução destas cartas em inglês, fato que possibilitou o trabalho de outros pesquisadores, uma vez que, até então, a única forma de saber o conteúdo das cartas era conhecendo o cuneiforme. Em seu livro, Moran nos traz todas as cartas até então encontradas, com exceção de 32 tabletes que provavelmente foram usados para o aprendizado de escribas. Para esse texto, então, utilizaremos a versão proposta por Moran. A grande maioria das cartas foi recebida pelos egípcios, tendo como remetentes reis da Babilônia (EA1 - 14), da Assíria (EA15 - 16), de Mitani (EA17, 19 30), de Arzawa (EA31 - 32), de Alashia (EA33 - 40) e de Hatti (EA41 - 44), além de regiões da sírio-palestina e locais submetidos ao poder egípcio, como, por exemplo,
5
Como as datas podem variar de acordo com cada autor, neste trabalho usaremos a datação proposta em SHAW, Ian & NICHOLSON, Paul. British Museum Dictionary of Ancient Egypt. Londres: British Museum Press, 1995. 6 COELHO, Liliane. O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas cartas de Amarna. IN: BIRRO, R. M. & CAMPOS, C. E. da C. (org). Relações de Poder: da Antiguidade ao medievo. Vitória: Departamento de Línguas UFES, 2013, pp.1-24. 7 MORAN, William L.The Amarna Letter.Baltimore: The John Hopkins University Press, 1992, p. xiii. 8 Idem,pp.xiv-xv Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Amurru, Biblos, Shechem, Kadesh, Damasco, Ugarit e ‘Apiru. Por isso, apesar de todas estarem em cuneiforme, algumas cartas apresentam variações de escrita, adaptados aos moldes locais. O cuneiforme já havia sido implantado na Síria cerca de mil anos antes das Cartas de Amarna, na metade do terceiro milênio AEC, sendo muito usado na Acádia e na Suméria. No início do segundo milênio AEC, o cuneiforme se espalhou e babilônico havia se tornado a língua principal das relações diplomáticas. Na alta Mesopotâmia e ao oeste desenvolveu-se um dialeto local, que foi levado a Anatólia, formando a base do cuneiforme hitita. Na Síria, por sua vez, houve a influência semita e hurrita. Apesar da maioria das cartas estarem escritas em babilônico (a EA15 está em assírio; EA24, em hurrita, EA31 - 32, em hititia) algumas palavras da tradição mais antiga sobrevivem apenas na língua culta. A tradição mais nortenha, Hurro-Acadiano, é encontrada em cartas da Assíria (EA6), de Mitani (EA17, 19 - 23, 25 - 30), de Hatti (EA41 - 44), de Ugarit (EA45 - 49), de Nuhashshe (EA51), de Qatna (EA52 - 55) e de Amurru (EA156 - 61, 164 - 71)9. Estruturalmente, porém, as cartas são parecidas. Começa-se revelando o destinatário e o remetente, normalmente na seguinte forma: “Diga para [...]. Assim disse [...]”. Em alguns casos (EA5, 31 e 41) a ordem aparece invertida, apresentando o remetente antes do destinatário. Em seguida são feitas as saudações: reporta sobre o governante e seu território (exceto nas EA 15 - 16) e expressa os desejos para o endereçado. Deste modo, o início das cartas segue o modelo do exemplo a seguir: Diga para Naphurereya [Akhenaton], rei do Egito, meu irmão, meu genro, que eu amo e que me ama. Assim disse Tushratta, rei de Mitani, seu sogro, que te ama, seu irmão. Para mim tudo vai bem. Que tudo vá bem para você. Para sua família, para Tiye, sua mãe, a senhora do Egito, para TaduHeba, minha filha, sua esposa, para o resto se suas esposas, para seus filhos, para seus magnatas, para suas bigas, para seus cavalos, para suas topas, para suas terras e para qualquer coisa mais que lhe pertença, que tudo vá muito, muito bem 10.
O corpo do texto é menos estereotipado, podendo ser uma carta de envio, que reporta itens que estão sendo enviados; uma carta de injunção, que possui um ou mais 9
Idem, pp.xvii-xx. Trecho da carta EA28, Tradução própria, do inglês. MORAN, William. Op. Cit. 1992, pp.90-91.Original no British Museum, número de catálogo 37645, disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?searchText= 37645&ILINK|34484,|assetId=411074&objectId=317825&partId=1 (acesso: 16/03/2015). 10
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
pedidos; ou uma carta combinada – mais comum –, que tanto aponta itens enviados como solicita algo. A predominância de cartas combinadas nos ajuda a compreender o modo como aconteciam as relações entre os reinos. A aliança de irmandade11 tornava os governantes irmãos, membros da mesma família e casa, e, portanto, iguais. Assim, o sistema tornou-se policultural, uma sociedade em quem culturas diferentes coexistem em termos igualitários12. Contudo, nem todos os reinos recebem o mesmo tratamento. Havia um grupo de reinos, aqui identificados como (Clube dos) Grandes Poderes, que se sobressaíam aos outros. O sistema de Amarna não é o primeiro a tratar os assuntos diplomáticos, mas é o primeiro a ser usado em todo o Oriente Próximo com termos igualitários e responsabilidades, além de ser único sistema policultural viável. É por isso, então, que optamos pelo uso destas correspondências para identificarmos e refletirmos sobre os Grandes Poderes e seus submetidos no Oriente Próximo.
Clube dos Grandes Poderes O período entre o os séculos XVI e XII AEC é referido, em termos políticos, através do Clube Grandes Poderes, uma vez que a região foi dividida entre alguns governantes, que chamavam uns aos outros de “Grande Rei” e “irmão”, usando termos como “irmandade” para descrever seu relacionamento. A princípio os reinos que se destacavam eram Babilônia, Hatti, Mitani, Assíria. O Egito só entrou para esse grupo após as campanhas de Tothmés III (c. 1479 – 1425) o levarem até o Eufrates e conquistarem Canaã. Além deles, os reinos de Arzawa, na Anatólia, e Alashiya, no Chipre, aparecem como locais independentes, que não faziam parte da irmandade, mas tampouco eram dependentes dela13. Dos quatro Grandes Poderes iniciais, a Babilônia talvez seja o nome mais conhecido pela sociedade em geral nos dias atuais. O nome é dado para a região do sul da Mesopotâmia e foi usado politica e geograficamente desde os tempos de
11
É importante ter em mente que o termo irmandade, aqui, não tem qualquer relacionamento com preceitos religiosos, apenas refere-se a uma ligação fraternal, como irmãos. 12 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond.Op. Cit. 2002, p.10. 13 Idem, pp.6-8. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Hammurabbi(c. 1792 - 1750) até a era cristã. A região norte da Babilônia foi conhecida de Acádia enquanto a sul chamava-se Suméria. Por isso, a frase “terra da Suméria e Acádia” foi bastante usada para referir-se ao local14. Nas Cartas de Amarna, porém, os nomes de Karaduniyash e Shanhar também aparecem como opção. A Babilônia não dispunha de muitos materiais, precisava importar metais, pedras e madeira. Talvez por isso o Egito tenha enviado grandes quantidades de objetos em ébano e ouro para lá, como podemos ver, por exemplo, na carta EA5: Eu recentemente ouvi que você está construindo novos quartos. Eu estou, com isso, te enviando alguns móveis para sua casa [...] Com isso, eu te envio, a cargo de Shutti, presentes para sua nova casa: 1 cama de ébano revestida com marfim e ouro; 3 camas de ébano revestidas em ouro; 1 urushshu de ébano revestido em ouro; 1 grande cadeira revestida em ouro; 5 cadeiras de ébano revestidas em ouro; 4 cadeiras de ébano revestidas em ouro. Estas coisas, o peso de todo o ouro: 7 minas, 9 shekels [unidade de peso] de ouro. O peso de prata: 1 mina, 8 1/2 shekels de prata. Adicionalmente, 10 escabelos de marfim cobertos com ouro; [trecho danificado] [...] 10 e 7 shekels de ouro15.
Hatti é um reino fundado pelos hititas na parte oriental da Anatólia, algumas vezes chamado pelo nome de sua capital, Hattusha16. Os reis hititas promoveram expedições ao sul e ao leste, saqueando a Babilônia, conquistando a região norte da Síria e entrando em conflito com Egito, Assíria e Mitani17. Em c. 1400, o poder hitita se fortaleceu, iniciando o que chamamos de “Reino Novo Hitita” ou “Império Hitita”18. Foi nesse período, que Hatti passou a fazer parte dos Grandes Poderes. As relações com o Egito, a partir do governo de Akhenaton19, parecem ter sido problemáticas, como vemos nas cartas. E agora, como o tablete que você enviou para mim, por que você colocou seu nome sobre o meu? E quem agora é o que desaponta o bom relacionamento entre nós, e tal conduta é uma prática aceitável? Meu 14
BIENKOWSKI, Piotr & MILLARD, Alan (ed.). British Museum Dictionary of the Ancient Near East. Londres: British Museum Press, 2000, pp.44-45. 15 Trecho da carta EA5, enviada por Amenhotep III. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992, pp.10-11. Original no British Museum, número de catálogo 29787, e no Egyptian Museum of Cairo, número de catálogo 12195. Fragmento disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=274 101&partId=1&searchText=29787&page=1 (Acesso: 16/03/2015) 16 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.). Op. Cit., 2002, p.7. 17 SHAW, Ian & NICHOLSON, Paul (ed.). Op. Cit., 1995, pp.130-131. 18 BIENKOWSKI, Piotr & MILLARD, Alan (ed.). Op. Cit.,2000, pp.146-147. 19 Não temos cartas enviadas para Amenhotep III, apenas para possivelmente Akhenaton,Tutankhamon ou Smenkhkare. Sabemos, porém, que Akhenaton diminuiu os padrões de relacionamento com os reinos vizinhos, por isso, acreditamos que, quando as cartas referem-se ao modo como “seu pai” o tratava, o remetente esteja falando de Amenhotep III, apesar de não termos alguma forma de comprovar. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
irmão, você escreveu para mim pensando na paz? E se você é meu irmão, por que você exaltou o seu nome, enquanto eu, por minha parte, me passo por um corpo?20.
Localizada na região ao nordeste da Mesopotâmia, a Assíria por algum tempo foi submetida ao governo de Mitani, mas, no período das Cartas de Amarna, além de ter se libertado, havia se estabelecido com um dos Grandes Poderes do Oriente Próximo. As relações da Assíria aparentemente não foram muito tranquilas. Seu governante fazia reclamações sobre a Babilônia (mais tarde acertaram-se por meio de um casamento diplomático), e, anos mais tarde, Hatti não a aceitava como um Grande Poder, uma vez que ambos competiam e se desentendiam tentando controlar o antigo território de Mitani21. Contudo, apesar de um pedido por mais ouro, o relacionamento com o Egito foi mais pacífico, havendo apenas duas cartas disponíveis. Uma delas nos revela o primeiro contato da Assíria com o Egito: Diga para o rei do Egito. Assim disse Ashshur-uballit, o rei da Assíria. Para você, para sua família, para suas terras, para suas bigas e suas tropas, que tudo vá bem. Eu enviei meu mensageiro para visitar você e visitar suas terras. Até agora, meus predecessores não escreveram, hoje eu escrevo para você. Eu te envio uma bela biga, 2 cavalos, e 1 pedra de datação de genuína lápis-lazúli, como seus presentes. Não atrase o mensageiro que eu enviei para visitá-lo. Ele deve visitar e então voltar aqui. Ele deve ver como você é e como são suas terras, e então voltar aqui 22.
Também chamada de Nahrin e Hanigalbat, Mitani formou-se a partir de um grupo hurrita, no norte da Síria, entre os rios Tigre e Eufrates. Apesar de ser um reino pouco conhecido nos dias de hoje, teve um papel de grande importância na antiguidade. Quando Tothmés III expandia a área de hegemonia egípcia, Mitani precisou resistir, havendo, então, embates entre os reinos23. Contudo, as divergências entre os reinos acabaram a partir de um casamento diplomático. Assim, no tempo das Cartas de Amarna, Mitani e Egito eram grandes aliados. As correspondências encontradas foram enviadas por Tushratta e endereçadas para Amenhotep III ou Akhenaton (com exceção da carta EA26, enviada para Tiye, esposa de Amenhotep III e mãe de Akhenaton). 20
Trecho da carta EA42. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992, pp. 115-116. Original no Vorderasiatische Teil do Staatliche Museen zu Berlin, número de catálogo VAT 1655. 21 COHEN, Raymond & WESTBROOK, Raymond (ed.). Op. Cit., 2002, p.7. 22 Carta EA15. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992, pp. 37-38. Original no Metropolitan Museum of Arts, número de catálogo 24.2.11. Disponível em: http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/544695 (Acesso: 16/03/2015) 23 FREU, Jacques. Histoire du Mitanni. Paris: L’Harmattan. 2003, p.55. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Aparentemente, o grande poder de Mitani, segundo Bryan, fez com que referências a ele somente aparecem no Egito após o ano 33 de reinado de Tothmés III, e a aliança só fosse estabelecida anos mais tarde, no governo de Amenhotep II (c. 1427 – 1400), quando Mitani passa a ser representada como uma força estrangeira, não mais como cativos ou com butins24. Ao escrever a longa carta EA29, Tushratta os revela sobre a trajetória dessa união, para tentar reverter a situação: Do começo de meu governo, desde que Nimmureya [Amenhotep III], seu pai, foi escrever para mim, ele escreveu várias vezes sobre paz. [...] Quando ele [pai de Amenhotep II] escreveu pela sétima vez, então sobre tanta pressão ele [avô de Tushratta] entregou ela [princesa mitânia].Quando Nimmureya, seu pai, escreveu para Shuttarna, meu pai, e pediu por uma das filhas de meu pai, minha própria irmã, ele escreveu 3, 4 vezes, mas ele não a entregou. Quando Nimmureya, seu pai, escreveu para mim e pediu por minha filha, eu não neguei. [...] e quando eu recebi seu dote, eu a enviei. E o dote que Nimmureya, seu pai, enviou, era sem comparações [...] E assim Nimmureya, seu pai, não permitiu que em nenhum caso, nem mesmo um, aflição fosse causada. [...] Mas quando eu vi que o ouro que o próprio Nimmureya tinha prometido, não era ouro e não era sólido [...] então eu estava em ainda maior dor. Além disso, os artigos que Nimmureya, meu irmão, me deu, meu irmão [Akhenaton] diminuiu drasticamente. [...] Agora, que meu irmão envie as estátuas de ouro sólido e maciço, que meu irmão me envie prontamente muito ouro que não tenha sido trabalhado. Seu pai meu concedeu estátuas de ouro. Por que para você é tanta aflição?25
Além disso, muitas das cartas de Tushratta reclamam da maneira como Akhenaton se porta perante as relações entre os reinos. Diversas cartas pedem para que ele cumpra com o combinado. A carta EA26, enviada para Tiye (que comentamos anteriormente), é um reflexo disso. Tushratta pede para que a rainha interfira no governo de seu filho. Tiye ainda aparece referenciada em outras cartas de Tushratta, nas quais o rei mitânio pede para que Akhenaton ouça as palavras de sua mãe. Tiye, sua mãe, sabe todas as palavras que eu faleicom seu pai. Ninguém mais as sabe. Você deve perguntar para Tiye, sua mãe, sobre elas, para que ela possa te dizer26.
24
BRYAN, Betsy M. The 18th dynasty before the Amarna Period (c. 1550- 1352 BC) IN: SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt. New York: Oxford University Press, 2003, pp. 238-245. 25 Trecho da carta EA29. Tradução própria do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992, pp.9299.Original no Vorderasiatische Teil do Staatliche Museen zu Berlin, número de catálogo VAT 271, mais fragmentos 1600, 1618-20, 2192, 2194-97. 26 Trecho da carta EA28. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit, 1992, p.91.Original no British Museum, número de catálogo 37645. Disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=317 825&partId=1&searchText=37645&page=1 (Acesso: 16/03/2015). Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Reinos independentes Os reinos Alashiya e Arzawa, não pertenceram aos Grandes Poderes, mas tampouco eram subjugados a estes. O reino de Alashyia aparece como uma grande fonte de cobre no Chipre27, o que possibilitou a expansão do contato e das relações com os outros reinos – garantindo sua independência. São comuns os tratado com Babilônia, Hatti, Levante e Egito, por exemplo28. Agora eu envio meus mensageiros a você. Eu também envio com meus mensageiros 100 talentos [unidade de medida] de cobre. Ademais, que seus mensageiros agora tragam-me algumas mercadorias29.
Arzawa era um reino de tamanho médio, localizado na costa sul da Anatólia, ao oeste da zona de influência hitita30. Existem somente duas cartas referentes a essa região, das quais uma é enviada por Amenhotep III e a outra é a resposta recebida por ele. As cartas negociam um casamento diplomático, para estabelecer laços de sangue entre os reinos. Aparentemente, essa iniciativa egípcia visava garantir a lealdade de Arzawa, por meio de uma aliança, para evitar o fortalecimento do poder hitita 31. Eu enviei para você Irshappa, meu mensageiro, com as instruções: “Deixe-nos ver a filha que eles irão oferecer para minha majestade em casamento”. E ele irá derramar óleo na cabeça dela 32.
Reinos subordinados
A maior parte das Cartas de Amarna é composta por reinos submissos ao poder egípcio na região Sírio-Palestina. A grande área de influência egípcia, todavia, dificulta o controle sobre os locais de seu domínio, havendo conflitos entre eles. As
27
COHEN, Raymond & WESTBROOK, Raymond (ed.). Op. Cit., 2002, pp.7-8. BIENKOWSKI, Piotr & MILLARD, Alan (ed.). Op. Cit.,2000, p.11. 29 Trecho da carta EA34. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit, 1992, pp.105-106. Original no British Museum, número de catálogo 29789. Disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=274 290&partId=1&searchText=29789&page=1 (Acesso: 16/03/2015). 30 COHEN, Raymond & WESTBROOK, Raymond (ed.). Op. Cit., 2002, p.7. 31 MORAN, William L., Op. Cit, 1992, p.102. 32 Trecho da carta EA31. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit, 1992, p.101.Original no Museu Egípcio do Cairo, número de catálogo 4741 (12208) (informação presente em Moran, mas não confirmada). 28
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
cartas apontam, por exemplo, que Jerusalém faz acusações contra Gezer, Shechem, Gath e Qiltu33. Por se tratar de um leque muito grande de regiões, optamos por abordar apenas algumas. ‘Apiru refere-se a senhores da guerra e salteadores dos terrenos montanhosos de Canaã. Por ser um grupo de mercenários, ‘Apiru não é um território propriamente dito, e, portanto, não pode ser um reino subjugado, mas é constantemente referenciado nas cartas34. No período das Cartas de Amarna, Amurru era liderado por ‘Abdi-Ashirta e seu filho, Aziru35. Apesar das constantes declarações que afirmavam sua lealdade, ‘AbdiAshirta começa a expandir o território de Amurru, a ponto de tornar-se uma ameaça aos interesses egípcios. Por esse motivo, enviou-se uma expedição atrás de ‘AbdiAshirta, capturando-o e levando-o para o Egito, onde, aparentemente, foi executado. Nesse momento, Aziru assume o governo de Amurru e convence ao faraó que seus interesses não conflitariam mais com os egípcios, aceitando, enfim, a supremacia egípcia sobre a região36. Para o Grande Rei, meu senhor, meu deus, meu sol: mensagem de Aziru, seu servo. Eu caio aos pés de meu senhor, meu deus, meu sol, 7 vezes e 7 vezes. Meu senhor, eu sou seu servo, e em minha chegada a presença do rei, meu senhor, eu disse de todas as minhas afinidades na presença do rei, meu senhor. Meu senhor, não escute aos homens traiçoeiros que me denunciaram na presença do rei, meu senhor. Eu sou seu servo para sempre 37.
Contudo, Aziru estava, ao mesmo tempo, negociando com os hititas e fingindo defender as fronteiras do Egito. Eventualmente, após os egípcios desconfiarem de Amurru, Aziru declarou-se leal aos hititas38. A desconfiança pode ser notada, por exemplo, na carta que o próprio faraó envia para Aziru. Todas as coisas que você escreveu ainda não são verdade. [...] Por que você age assim? Por que você está em paz com o governante com o qual o rei está lutando? [...] Você não prestou atenção nas coisas que disse antes.
33
JAMES, Alan. Egypt and her vassals. IN: COHEN, Raymond & WESTBROOK, Raymond (ed.). Op. Cit., 2002, p.115. 34 Idem, pp.115-116. 35 BIENKOWSKI, Piotr & MILLARD, Alan (ed.)., Op. Cit.,2000, p.16. 36 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.)., Op. Cit., 2002, p.8. 37 Trecho da carta EA161. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992, p.247.Original no British Museum, número de catálogo 29818. Disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=317 675&partId=1&searchText=29818&page=1 (acesso 16/03/2015) 38 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.).Op. Cit., 2002, p.8. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O que aconteceu com você entre eles que você não está do lado do rei, seu senhor?39.
Dentre todos os governantes que declararam lealdade ao Egito, Rib-Hadda, rei de Biblos, foi o mais próspero, tendo, inclusive, denunciado as ações de ‘Abdi-Ashirta e Aziru40. O Egito exerceu influência em Biblos durante muito tempo e em 400 AEC os nativos da região ainda representavam a antiga deusa da cidade como Hathor41. Biblos foi uma fonte de madeira para a construção de barcos e ataúdes, por exemplo. Nas cartas podemos ver pedidos de assistência militar, feitos pelo rei de Biblos42. Que o rei, meu senhor, saiba que Gubla [Biblos], a leal criada do rei, está sã e salva. A guerra, entretanto, das forças de ‘Apiru contra mim está extremamente severa, então, que o rei, meu senhor, não negligencie Sumur para evitar que todos se unam com as forças de ‘Apiru. [...] A guerra contra nós está extremamente severa, e então que o rei não negligencie suas cidades43.
Damasco, assim como Biblos, foi legitimamente leal ao Egito e por isso, e por ser uma das regiões mais ao norte, sofreu ataques de Amurru e Kadesh44. Nesse momento o poder hitita era cada vez mais forte e, cada vez mais, cidades se uniam a Hatti. Damasco, assim, pedia por ajuda e proteção egípcia, tentando resistir aos ataques. Eles continuam dizendo “nós somos servos do rei de Hatti”, e eu continuo dizendo “eu sou um servo do rei do Egito”. Arsawuya [rei de Ruhizzi 45] foi para Kissa, capturou algumas das tropas de ‘Aziru, e capturou Shaddu. Ele os entregou para os ‘Apiru e não os entregou ao rei, meu senhor. [...] Que o rei de fato esteja em contato com seu servo. Que o rei não abandone seu servo46.
Kadesh era governado por Aitukama e era o território mais ao norte sob a influência egípcia. Entretanto, como pudemos ver, a região aliou-se aos hititas e a Amurru para atacar os outros territórios egípcios. Anos mais tarde, foi em Kadesh em 39
Trecho da carta EA162. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit.,1992, pp.248-249. Original no Vorderasiatische Teil do Staatliche Museen zu Berlin, número de catálogo VAT 347. 40 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.).Op. Cit., 2002, pp.8-9. 41 ERMAN, Adolf. A Handbook of egyptian religion. Londres: Archibald Constable & CO. Ltd., 1907, pp.194-195. 42 BIENKOWSKI, Piotr & MILLARD, Alan (ed.). Op. Cit., 2000, p.62. 43 Trecho da carta EA68. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992, pp.137-138. Original no Vorderasiatische Teil do Staatliche Museen zu Berlin, número de catálogo VAT 1239. 44 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.).,Op. Cit., 2002, p.9. 45 Uma região sob o domínio egípcio que, também, aliou-se aos hititas. 46 Trecho da carta EA197. Tradução própria, do inglês. MORAN, William L. Op. Cit., 1992,pp.274275.Original no British Museum, número de catálogo 29826. Disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=274 103&partId=1&searchText=29826&page=1 (acesso 16/03/2015). Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
que aconteceu a famosa batalha entre os hititas e o Egito47. Possuímos fragmentos de uma carta enviada pelo faraó a Kadesh, mas a leitura de seu texto torna-se quase incompreensível, com exceção de poucas frases. Na única carta que temos de Kadesh, o rei Etakkama declara-se servo egípcio e acusa Damasco de mentir para seu senhor. Meu senhor, eu sou seu servo, mas o maldoso Biryawaza passou a me difamar aos seus olhos, meu senhor, e quando ele estava me difamando aos seus olhos, em seguida, ele tomou toda a propriedade paterna juntamente com as terras de Qidshu [Kadesh], e botou minhas cidades em chamas48.
Outra região que traiu o Egito era Shechem, também chamada de Shakmu. Seu governante, Lab’ayu, expandiu suas terras entrando em conflito com os interesses egípcios, enquanto, ao mesmo tempo, declarava sua lealdade ao faraó. Lab’ayu, assim como o governate de Amurru, foi capturado pelos (ou a mando dos) egípcios, mas seus filhos continuaram com a política de seu pai49. Nas cartas, Lab’ayu explica que não é um reino rebelde e tenta justificar suas ações perante o faraó. Diga ao rei, meu senhor: mensagem de Lab’ayu, seu servo. Eu caio aos pés do rei, meu senhor. Como você escreveu para mim “Guarde os homens que tomaram a cidade”, como eu deveria guardar tais homens? Foi na guerra que a cidade foi tomada. Quando eu jurei minha paz e quando eu jurei os magnatas juraram para mim – a cidade, juntamente com meu deus, foi tomada. [...] Além disso, quando uma formiga está presa, ela não revida e morde a mão do homem que a prendeu? Como nesse momento eu posso mostrar deferência e depois outra cidade minha ser tomada? Por outro lado, se você também mandar, “caia, para que eles possam atacar você”, eu farei isso. Eu vou guardar os homens que tomaram a cidade e meu deus. Eles são saqueadores de meu pai, mas eu vou guardar eles50.
Ugarit, por fim, foi uma região importante na costa síria. Aparentemente, a região manteve-se leal ao Egito, contudo, poucos anos após as cartas, Ugarit foi absorvida pelos hititas e, portanto, fiel a Hatti51. As cartas estão fragmentadas, dificultando, ainda mais, nosso entendimento sobre a região e seus relacionamentos. Podemos ver nas correspondências, porém, que Ugarit destina presentes e desejos a 47
COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.).,Op. Cit., 2002, p. 9. Trecho da carta EA189. Tradução própria, do inglês. MORAN, William. Op. Cit., 1992, pp. 269-270. Original no Vorderasiatische Teil do Staatliche Museen zu Berlin, número de catálogo VAT 336. 49 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.)., Op. Cit. 2002, p. 9. 50 Carta EA 252. Tradução própria, do inglês. MORAN, William., Op. Cit., 1992, pp. 305 – 306. Original no British Museum, número de catálogo 29844. Disponível em: http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=327 262&partId=1&searchText=29844&page=1 (acesso 16/03/2015). 51 COHEN, Raymond &WESTBROOK, Raymond (ed.),Op. Cit., 2002, p. 9. 48
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
rainha, declara sua lealdade ao Egito, envia homens ao faraó, pede esclarecimentos e pede para que um físico seja mandado. Para o rei, o Sol, meu senhor. Mensagem de Niqm-Adda, seu servo: eu caio aos pés do rei, meu Sol, meu senhor. Que tudo vá bem para o rei, o Sol, meu senhor, sua família, sua esposa principal, para suas outras esposas, para seus filhos [...] Que meu senhor me dê dois atendentes, atendentes de palácio vindos de Kush. Dê-me também um atendente de palácio que seja físico [conhecedores de práticas da medicina]. Não há físicos aqui 52.
Reflexões finais Por meio da leitura das Cartas de Amarna podemos observar alguns padrões na forma de escrita. Tais padrões, em especial nas correspondências trocadas entre os Grandes Poderes, nos induzem a imaginar uma região estável, de respeito e negociações mútuas. Entretanto, ao analisarmos o conteúdo escrito nelas, podemos perceber que a aparente estabilidade, na verdade, era delicada e frágil. Os Grandes Poderes cobravam, uns dos outros, deveres não cumpridos, enviando ameaças sutis. Ao questionar a amizade do rei, por exemplo, entendemos que a aliança pode ser desfeita, caso os governantes não demonstrassem vontade em agradar seus irmãos. No caso de Hatti e da Assíria, a insatisfação com o comportamento egípcio, mais especificamente de Akhenaton, fez com que seus governantes iniciassem expedições para aumentar seu território, crescendo militarmente e ameaçando aos demais reinos. Mitani, por outro lado, continuou enviando cartas de cobrança ao Egito, exigindo que Akhenaton não negligenciasse os acordos estabelecidos. Aparentemente, mesmo que Akhenaton não tenha agido em favor de Mitani após tantos pedidos, Tushratta não revoltou-se por medo, talvez, de uma invasão hitita, como de fato aconteceu poucos anos mais tarde. A instabilidade do sistema diplomático amarniano fica ainda mais visível nas correspondências trocadas com os reinos que se declararam leais em troca de proteção do Egito. Os padrões apontam que os servos deveriam afirmar se curvar perante o rei sete vezes e sete vezes mais, mas os textos expõem um contexto agressivo. Territórios teoricamente leais ao Egito lutavam entre si. Traidores aliados
52
Trecho da carta EA49. Tradução própria, do inglês. MORAN, William, Op. Cit., 1992, p.121. Original no Museu do Egípcio do Cairo, número de catálogo 4783 (12238) (informação presente em Moran, mas não confirmada). Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
aos hititas atacavam os reinos que se recusavam a fazer o mesmo e mandavam cartas ao faraó alegando que as denúncias contra eles eram inválidas. Ao negligenciar as relações diplomáticas com os reinos vizinhos, sejam subordinados ou independentes, Akhenaton contribuiu para que a região do Oriente Próximo entrasse em conflito. Com a inconstância do faraó, os povos ao seu redor não sabiam se poderiam depender do Egito quando fosse necessário. Os pedidos de ajuda constantes apontam que o faraó não enviou o auxílio necessário nos tempos de guerra. A desatenção de Akhenaton fez com que o sistema entrasse em decadência, acentuando os embates entre as regiões. Contudo, o sistema diplomático amarniano continuou sendo usado por mais cem anos após as cartas. Podemos dizer, então, que, apesar da instabilidade, o sistema de Amarna trouxe uma noção de estabilidade, que possibilitou uma noção de paz para a região por cerca de dois séculos. Acreditamos que além de uma análise da diplomacia no sistema amarniano, com suas fraquezas e especificidades, é fundamental conhecer os atores políticos que cercavam o Egito nesse período. Tal conhecimento ajuda na compreensão de um contexto mais amplo. Deste modo, este artigo buscou apresentar uma visão didática da história egípcia inserindo-o em seu conjunto no Oriente Próximo, para, enfim, fomentar os estudos históricos no Brasil.
Fontes MORAN, William L.The Amarna Letter. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1992. SCHROEDER, Otto. Vorderasiatische Schriftdenkmäler der Königlichen Museen zu Berlin.Parte 11. Leipzig: J. C Hinrich, 1915. Disponível em: https://archive.org/stream/vorderasiatische1113knuoft#page/n5/mode/2up (acesso: 26/03/2015) Referências Bibliográficas BIENKOWSKI, Piotr & MILLARD, Alan (ed.). British Museum Dictionary of the Ancient Near East. Londres: British Museum Press, 2000. BRYAN, Betsy M. The 18th dynasty before the Amarna Period (c. 1550- 1352 BC) IN: SHAW, Ian. The Oxford History of Ancient Egypt. New York: Oxford University Press, 2003
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
COELHO, Liliane. O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas cartas de Amarna. IN: BIRRO, R. M. & CAMPOS, C. E. da C. (org). Relações de Poder: da Antiguidade ao medievo. Vitória: Departamento de Línguas UFES, 2013. COHEN, Raymond & WESTBROOK, Raymond (ed.). Amarna Diplomacy. The beginnings of international relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2002. ERMAN, Adolf. A Handbook of Egyptian Religion. Londres: Archibald Constable & CO. Ltd., 1907. FREU, Jacques. Histoire du Mitanni. Paris: L’Harmattan. 2003. MORAN, William L. The Amarna Letter. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1992. SHAW, Ian & NICHOLSON, Paul. British Museum Dictionary of Ancient Egypt. Londres: British Museum Press, 1995. SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. VAN DE MIERROP, Marc. A History of the Ancient Near East ca. 3000-323 BC. 2ªedição.Oxford: Blackwell, 2007. Artigo recebido em: 30 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 20 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 14-29, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
DA DEDUÇÃO À INDUÇÃO OU COMO QUEBRAR OS ÍDOLOS E ERIGIR UMA ‘CASA DE SALOMÃO’ PARA A CIÊNCIA HISTÓRICA: Francis Bacon, um ensaio* Leandro Couto Carreira Ricon**
RESUMO: O período que compreende os séculos XV e XVII é indiscutivelmente um período de redefinição epistemológica. Ou seja, durante mais ou menos 300 anos pensadores buscaram conduzir de forma nova as possibilidades das ciências propostas neste ambiente moderno. Dentro deste panorama destaca-se, entre outros, o pensamento do inglês Francis Bacon (1561 – 1626). Considerado um dos fundadores da ciência moderna, Bacon, através de sua crítica às formas científicas do passado, principalmente às manutenções da lógica aristotélica, acabou por influenciar as mais diversas ciências, incluindo a história. No interior da historiografia, este autor, muitas vezes indiretamente, acabou por estabelecer os cânones da noção de progresso histórico retomado, comumente, por pensadores positivistas durante o século XIX, como é o caso do próprio Auguste Comte, além de estabelecer a lógica de que a prática da ciência, qualquer que seja sua modalidade, deve estar orientada para a utilização e aperfeiçoamento da sociedade. Desta forma, este trabalho objetiva fazer uma apresentação à obra baconiana e suas referências à historiografia. PALAVRAS-CHAVE: Francis Bacon; Método científico; Ciência moderna; Ciência histórica.
FROM DEDUTION TO INDUCTION OR HOW TO BREAK THE IDOLS AND BUILD A ‘SOLOMON’S HOUSE’ FOR SCIENCE: Francis Bacon, a essay ABSTRACT: The period comprising the fifteenth and seventeenth centuries is a period of epistemological redefinition. For about 300 years, thinkers leading in a new way the possibilities of science proposed in this modern world. In this panorama stands out, among others, Francis Bacon (1561 – 1626). Considered one of the founders of modern science, Bacon, through his critique of scientific ways of the past, especially of Aristotelian logic, eventually influencing the various sciences, including history. In the historiography, this author often indirectly, eventually establish the canons of the concept of historical progress resumed, commonly, by positivist thinkers during the nineteenth century, as is the case of Auguste Comte, besides establishing the logic that the practice of science, whatever its form, should be directed to the use and improvement of society. KEYWORDS: Francis Bacon. Scientific method; Modern Science; Historic science. ***
*
Para Gabriela Monteiro, ou simplesmente Biscoito, que não imaginará nunca a companhia indispensável na elaboração deste pequeno texto bem como na elaboração de todo o resto deste tempo presente. Obrigado por tudo. Mesmo. Sempre presente. Sempre! ** Doutorando e Mestre em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ), na linha de Poder e Discurso. Graduado em História e graduando em Filosofia. Interessado em pesquisas acerca de Teoria e Filosofia da História e Historiografia. Esta pesquisa conta com o apoio da CAPES. E-mail: lcricon@gmail.com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
“Deve-se entender mais corretamente por antiguidade a velhice e a maturidade do mundo e deve ser atribuída aos nossos tempos e não à época em que viveram os antigos, que era a do mundo mais jovem. Com efeito, aquela idade que para nós é antiga e madura é nova e jovem para o mundo. E do mesmo modo que esperamos do homem idoso um conhecimento mais vasto das coisas humanas e um juízo mais maduro que o do jovem, em razão de sua maior experiência, variedade e maior número de coisas que pôde ver, ouvir e pensar, assim também é de se esperar de nossa época (se conhecesse as suas forças e se se dispusesse a exercitá-las e estendê-las) muito mais que de priscas eras, por se tratar de idade mais avançada do mundo, mais alentada e cumulada de infinitos experimentos e observações.
Francis Bacon. Novum Organum1
O
período que compreende os séculos XVI e XVII é um momento de redefinição epistemológica: enquanto no período anterior os homens buscavam
ainda
explicações
por
excelência
teológicas
e
pré-
determinadas, ditadas pela dominante religiosidade medieval, como é o caso da ampla produção filosófica proposta pela Igreja, neste alvorecer da Idade Moderna, marcado pela contestação do próprio poder da Igreja – como é o caso das Reformas Protestantes que correram a Europa do período –, começou-se a buscar as fronteiras daquilo que passaria a ser a ciência. Logo, neste período nota-se claramente a criação e a primeira manutenção de uma cultura cientificista, tal qual o mundo jamais tivera visto e que, em alguns séculos, estaria plenamente estabelecida. Esta cultura cientificista, por sua vez, determinou parâmetros do pensamento humano perante a sua própria existência e história e mais, a própria disciplina histórica passou a integrar possibilidades de debates científicos, o que, salvo raras exceções, não acontecia previamente. Ou seja, com a cultura racional-cientificista desenvolveu-se, também, certa cultura histórica, em nível popular e historiográfico, se pensarmos no ambiente intelectual, de caráter cientificamente orientado. Neste panorama, a Inglaterra Elisabetana (1558 – 1603) transformou-se no principal cenário dos conflitos culturais, principalmente nos campos científicos e artísticos, prolongando e adaptando, desta forma, o Renascimento originado na península itálica que, surgido no século XIV, perdia força já no XVI. É nesta Inglaterra de amplos debates intelectuais que nasceu Francis Bacon, um autor que, indiretamente muitas vezes, acabou por influenciar a percepção histórica europeia do
1
BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza e Nova Atlântida [Tradução de José Aluysio Reis de Andrade]. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p.66. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
período através de suas postulações acerca das ciências, de suas possibilidades de progresso, dos homens e das manifestações de conhecimento propostas por estes. Vivendo o momento de um possível rompimento entre as formas antigas e aquilo que seria chamado de moderno, ou ao menos acreditando viver neste instante, Bacon forjou a sentença apresentada no início deste trabalho, como epígrafe. Com ela pode-se perceber que este conselheiro da coroa britânica e 1º Visconde de Alban (1621), nascido na politicamente tumultuada Londres do século XVI, tentava inverter a lógica de pensamento do período: enquanto em um momento anterior, nitidamente na península itálica, se buscava a consolidação de um pensamento moderno vinculado à Antiguidade Clássica, propondo esta como a portadora de uma verdade única que legitima
e
reafirma
sua
veracidade
pela
antiguidade;
Bacon
propôs
a
contemporaneidade como sendo a principal possibilidade intelectual, uma vez que esta é o acúmulo dos múltiplos conhecimentos possíveis, incluindo os da antiguidade defendida no período. Neste sentido, ocorre uma valoração progressiva e cumulativa do pensamento humano. Ou seja, nesse autor, a noção de progresso foi se definindo com maior clareza do que no próprio Renascimento Italiano ocorrido anteriormente. Com isto, Francis Bacon acabou por ser identificado, ao longo dos séculos, como ‘o fundador do método indutivo moderno e pioneiro do intento de sistematização lógica do procedimento científico’2 e ainda ‘o primeiro dos modernos e o último dos antigos’, ‘aquele que esteve localizado no centro do combate entre as novas forças intelectuais que surgiam e as antigas estruturas remanescentes’3. Mais que isso, buscando uma nova possibilidade científica, Bacon acabou por sistematizar o método experimental, a base fundamental daquilo que se definiria como empirismo. Nesse método, diferentemente do racionalismo4, proposto também por seus contemporâneos, como é o caso de René Descartes (1596 – 1650), o conhecimento de uma verdade deve ser localizado a partir de experiências acessíveis às sensações, aos sentidos humanos, a partir da experiência direta da realidade5. Esta 2
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Moderna (4 volumes). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 3, p. 62. 3 ABRÃO, Bernadette Siqueira (org). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004, pp.5-6. 4 Percepção filosófica que coloca o conhecimento baseado na razão humana diante de uma manifestação da realidade. 5 Neste ponto deve ficar claro que empiristas, como Francis Bacon, não necessariamente negavam, como pode parecer a leitores mais desatentos, as possibilidades propostas pelos racionalistas, na Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
característica do pensamento baconiano, a busca por um método experimental, acabou influenciando as mais diversas ciências, incluindo a busca pela cientificidade quase empírica que a historiografia encontrou, a partir do século XVII, se aprofundando no XVIII e encontrando seu solo mais fértil durante o século XIX. Logo, estranha é a ausência das leituras historiográficas deste autor que, mesmo indiretamente, estabeleceu, em certa medida, determinadas bases epistemológicas da historiografia contemporânea – mesmo que enquanto conhecimento fundamental à crítica da historiografia dos séculos passados. Bacon acabou por tentar sistematizar certa separação entre a filosofia e a ciência, duas percepções humanas, que caminhavam em conjunto, desde o início da modernidade, pensando em suas áreas de interação. Não por negar uma ou outra, mas sim por perceber a necessidade desta separação, já que a filosofia, amplamente atrelada à teologia durante o período, muitas vezes funcionava como entrave às ciências. Contudo, a postura de Bacon perante a interação entre esta filosofia e a ciência não é a única no período. Comum é encontrarmos no século XVII autores que, tal como Francis Bacon, discutem e, boa parte das vezes, discordam da obra filosófica, principalmente a aristotélica, encontrando segurança no enfraquecimento da escolástica e da Igreja, mesmo com esta se localizando em franco processo de expansão e discussão nos círculos intelectuais, como é o caso das querelas com autores como Nicolau Copérnico (1473 – 1543) e Galileu Galilei (1564 – 1642) – apenas para mencionarmos dois que se destacaram no âmbito das pesquisas físicas. O autor inglês, por sua vez, não se desfez de toda a produção do grego. Criticou principalmente a dialética aristotélica, interpretado-a como um sistema de lógica baseada na suposição da qual surgiriam conclusões. Logo, a crítica estava centrada na possibilidade que este sistema oferecia, uma vez que suposições falsas geram conclusões insatisfatórias. A partir disso, Bacon criticou, indiretamente, o humanismo exacerbado que a ciência de sua época apresentava, cunhando, em contrapartida, uma imagem realista do homem, tal qual o florentino Nicolau
mesma medida que esses últimos concordavam com determinados pontos do pensamento empirista ocorrendo, assim, certa circulação complementar de possibilidades de problematização acerca das origens e manutenções do conhecimento humano. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Maquiavel (1469 – 1527) fizera anos antes ao pensar as discussões políticas separadamente das discussões éticas6 – o que geraria infortúnio a seu nome. O próprio título da obra deste autor inglês Novum Organum já se coloca em oposição ao Organum aristotélico. Buscou-se, para um homem concreto e real, uma ciência concreta e real, afastando as possibilidades de abstrações e engodos percebidos nos períodos anteriores. Francis Bacon planejou, audaciosamente, construir uma estrutura científica completamente nova através de seus textos. O autor chamou esta coletânea de estudos de Instauratio Magna (Grande Instauração). Nessa obra, explanaria acerca da criação de novas fronteiras da ciência e as novas possibilidades da pesquisa metodologicamente orientada pelos experimentos. O plano original da Grande Instauração compreendia seis partes, diretamente complementares: a primeira era uma classificação completa das ciências existentes; a segunda, a apresentação dos princípios de um novo método para conduzir a busca da verdade; a terceira, a coleta de dados empíricos; a quarta, uma série de exemplos de aplicação do método; a quinta, uma lista de generalizações de suficiente interesse para mostrar o avanço permitido pelo novo método; a sexta, a nova filosofia que iria apresentar o resultado final, organizado num sistema completo de axiomas7.
Destas partes, sobraram a primeira, De Dignitate et Augmentes Scientiarum (releitura de O Progresso do Saber, de 1620), na qual se agrupa a outros autores, anteriores e posteriores, como André-Marie Ampère (1755 – 1836) e Wilhelm Windelband (1848 – 1915), em sua busca de classificar as ciências – além de demonstrar seu ideal ético e humano; e a segunda, originando grandes partes do próprio Novum Organum além de pequenos trechos da terceira parte, organizados como uma Historia Naturalis (História Natural). Grande parte da terceira, bem como das quarta, (Scala intellectus sive Filum Labyrinthi), quinta (Prodromi sive anticipationes philosophiae secundae) e sexta (Philosophia secunda sive scientia activa) partes não foram concluídas e/ou se perderam, só restando fragmentos e rascunhos8.
6
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 2. ed. tradução: Roberto Grassi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. 7 ABRÃO, Op. Cit.,p.10 8 O autor, já no início da obra, afirma saber que um único indivíduo não conseguiria estabelecer este estudo. Todavia, o simples fato de ter planejado toda a obra o aproxima razoavelmente mais de autores do final do Medievo, pela amplitude da possibilidade de sua pesquisa, do que dos próprios renascentistas italianos, preocupados com especificidades – este embate entre uma tradição medieval Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Acerca desta primeira parte, pode-se lembrar que a divisão é feita segundo as faculdades da alma: ciência da memória, identificada com a história, fantasia, identificada com a poesia e ciência da razão, nitidamente identificada com a ciência de caráter filosófico9 que, com seu objeto tripartite de análise, ou seja, preocupações com a natureza, Deus e o homem, constitui o principal campo de interesse do autor como evidentemente demonstrou em sua obra10. O Novum Organum, dividido em duas partes, a primeira crítica e a segunda, inacabada, construtiva, que alcança o público na década de 1620, foi a primeira tentativa clara de sistematização do método experimental, o que, segundo Bacon, o filho do chanceler da rainha Elizabeth, configuraria a ciência moderna como um todo completo e coerente. Nesta obra pode-se encontrar duas das principais contribuições das propostas feitas por Bacon: a análise dos ídolos e a possibilidade metodológica da indução. Estas duas contribuições do autor, pensadas de forma complementar, estabeleceram uma das principais possibilidades epistemológicas da Idade Moderna. Possibilidade esta que influenciou as mais plurais disciplinas, a História inclusive. Em primeiro lugar, devemos pensar o que Francis Bacon tratou por ídolos. Para este pensador, o termo ídolo adquire o significado de ‘falso deus’. Ou seja, Bacon tentou demonstrar que a ciência pode ser muitas vezes tratada de forma equivocada, principalmente
por
fatores prévios e
externos a ela mesma, gerando,
consequentemente, erros e abstrações, tal qual um falso deus no espírito humano. Bacon foi, portanto, um iconoclasta e esta ‘iconoclastia’, uma destruição de ídolos previamente estabelecidos, e a própria utilização de metáforas religiosas são uma constante não só na obra de Bacon como em significativa parte da produção filosófica dos autores ingleses do século XVII que, vivendo no ambiente diretamente posterior à Reforma Anglicana proposta por Henrique VIII, responsável por um amplo rompimento com a Igreja Católica Apostólica Romana durante a primeira metade do
e as possibilidades realmente modernas, por si, se apresentam como um tema amplo e pouco explorado, pelo menos em profundidade, ao se pensar em Francis Bacon. 9 Esta divisão é próxima àquela proposta por d’Alembert tempos mais tarde. 10 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. 4ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
século XVI, notado ainda em nossos dias, sentiam-se confortáveis para tal, manifestando o forte condicionamento social do pensamento humano11. Percebe-se, até aqui, que as ideias pré-concebidas são como ídolos, falsos deuses, que levam a inteligência humana a ser falha, estabelecendo-se, portanto, como obstáculos à própria prática científica geratriz do conhecimento. Bacon percebe a necessidade de se descrever e classificar os ídolos da ciência para conseguir, então, anular estas interferências. Neste sentido, o filósofo lançou-se na classificação dos ídolos em quatro tipos específicos: Bacon chamou o primeiro destes ídolos de idola tribus (ídolo da tribo) e representa a imperfeição do intelecto do ser humano, ou seja, os homens, como um todo, acreditam nos sentidos, enquanto paixões, ou nas partes convenientes da realidade como verdades dadas, gerais e imutáveis sem se preocuparem com as comprovações necessárias; o segundo é chamado, pelo autor, de idola specus (ídolo da caverna) e, lembrando a Alegoria da Caverna presente em A República de Platão, demonstra a disposição de tomar o particular como regra geral tal qual o mito da caverna platônico – este ídolo e o anterior são por demais próximos, todavia, neste último, os erros interpretativos são pessoais, de determinados indivíduos, enquanto que, no anterior, os equívocos são gerais da própria espécie humana; o terceiro obstáculo é chamado de idola fori (ídolo do foro) e, por sua vez, demonstra o problema das palavras e dos conceitos: nesse, propõe que as palavras possuem os mesmos significados para todos, o que geralmente não acontece, ocorrendo, assim, vários problemas nas comunicações entre os homens12; o quarto e último é nomeado de idola theatri (ídolo do teatro), e é neste que Francis Bacon lembra da fragilidade da própria filosofia, que se mantém presa por demais na especulação, esquecendo-se do mundo lógico da ciência concreta experimental, no qual o homem está inserido. Os próprios sentidos utilizados na ciência, todavia, também são ídolos – uma vez que são formados por ideias, no geral, pré-concebidas e transmitidas como 11
Podemos lembrar que Francis Bacon nasceu e viveu significativa parte de sua vida durante o reinado de Elizabeth I. Este governo, diferentemente dos anteriores, como os de Eduardo VI (1547 – 1553), e Maria Tudor (1553 – 1558), conseguiu expandir as fronteiras do anglicanismo em território inglês e manter, por um período significativo, razoável paz entre católicos e protestantes apesar das amplas crises políticas e econômicas do período. 12 Curioso pensar que este tópico seria retomado, em certa medida, pelas ciências, notadamente as humanas, a partir da segunda metade do século XIX até o nosso tempo presente como um dos problemas centrais a serem debatidos para determinada validação epistemológica. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
verdades únicas por séculos sem os devidos questionamentos. Daí a necessidade de observação conduzida por um método rigoroso. O método passa, então, a ser um tópico relevante ao período: percebeu-se que apenas com rigor intelectual e prático seria possível a obtenção de respostas objetivas e concretas13. Como percepção da necessidade de se pensar no método, e além desta possibilidade teórico-conceitual que os ídolos oferecem, Bacon criticou, no mesmo Novum Organum14, o método da dedução, atrelado à silogística, (re)instaurando certa busca pelo método da indução. Apesar de não ser o iniciador da indução enquanto método, Bacon foi o seu grande reformador e divulgador no início da Idade Moderna. O mesmo Aristóteles, criticado por Bacon e por vários outros pensadores do período, já havia demonstrado a dinâmica entre a indução e a dedução15. Para este grego, a indução era a busca do geral através do particular; enquanto que, a dedução buscaria caminhar a partir do geral até o particular. Bacon, por sua vez, transformou a indução em uma possibilidade amplificadora. Logo, a crítica baconiana à indução aristotélica é que esta é redundante e faz-se passível de grandes erros. No século XX o amplamente discutido filósofo galês, vencedor do prêmio Nobel de literatura de 1950, Bertrand Russel (1872 – 1970) exemplificou a indução por simples enumeração, aquela firmemente criticada por Francis Bacon nos seguintes termos: Era uma vez um empregado do censo que tinha de anotar os nomes de todos os chefes de família de uma certa aldeia de Gales. O primeiro que ele interrogou chamava-se William Williams; o mesmo aconteceu com o segundo, o terceiro e o quarto... Por fim, disse com os seus botões: “Isto é tedioso; todos eles se chamam, evidentemente, William Williams. Anotarei assim todos eles e tirarei uma folga”. Mas estava equivocado; havia um cujo nome era John Jones. Isto mostra que podemos extraviar-nos, se confiarmos demasiado implicitamente na indução por simples enumeração16. 13
Podemos lembrar que o método, enquanto necessidade do período, é proposto de forma variegada pelos mais plurais autores do período, como é o caso do próprio Francis Bacon, enquanto empirista, e René Descartes, enquanto racionalista. 14 Op. Cit. 15 Bacon também se coloca contra os gregos, incluindo Aristóteles, ao se aproximar mais da possibilidade da vida ativa que da contemplativa, como proposto, no geral, na filosofia antiga. A partir desta lógica, localizou a sua noção de felicidade ativa na vida social, se afastando, também, das proposições estóicas e epicuristas que são possibilidades, segundo o autor, de felicidades apenas individuais. Este tema, notadamente vinculado à ética baconiana se apresenta, tal qual a interação entre Medievo e Modernidade em seu pensamento, como um tema pouco explorado pelos pesquisadores contemporâneos. 16 RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Moderna (4 volumes). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p.64 Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Neste sentido, o indutivismo moderno deveria buscar o cruzamento entre os fenômenos afirmativos, ou seja, quando determinado fenômeno está presente na análise, com a ausência dos mesmos fenômenos, isto é, quando eles são negativos e não acontecem, gerando, assim, as graduações e comparações. Com isto, um método tabelar de pesquisa e de crítica ia lentamente se formando em busca das conclusões finais e inalteráveis. Com todas estas propostas, Bacon acabou criticando aqueles que apenas recolhiam materiais ao acaso, sem integrá-los a um todo coerente e sistemático. Daí a noção de utilização de tabelas17. Estes cientistas, sem importar de qual área fossem – o pensador se preocupava com as mais variadas áreas do conhecimento –, não possuíam critérios de pesquisa. E sim, esta é, provavelmente, uma das principais contribuições de Bacon: a criação de critérios metodologicamente orientados à pesquisa científica. O autor esqueceu-se, contudo, ao pensar na necessidade de uma análise metodologicamente orientada, de dar importância às hipóteses enquanto característica preliminar e necessária à reunião dos fatos a serem analisados. Esta lacuna, impensada em qualquer possibilidade de pesquisa contemporânea, funcionou, também, como um dos aportes que levaram o autor a afastar as possibilidades da dedução, já que, grande parte das vezes, a dedução acaba por ter um papel colaborativo pleno na comprovação ou refutação de uma hipótese. Para a criação desta nova ciência, nada melhor, em sua visão, do que as possibilidades experimentais que as chamadas ciências naturais utilizavam outendiam a utilizar18. Logo, estas ciências formariam a base de todo o novo conhecimento e, como o intelecto humano é passível de amplas falhas, já que é por demais abstrato, já que está no plural Bacon sugere que o cientista se neutralize em primeiro lugar para, depois, através de axiomas, localizar um conhecimento exato e direto, gerando, no final, um conhecimento útil ao homem – próximo àquilo que positivistas e, em certa medida, metódicos propuseram ao longo do século XIX para história: fatores como a noção de neutralidade do produtor na escrita da história e a validação de um 17
Cf.: RUSSEL, Op. Cit. Na verdade, outros autores, tais como Roger Bacon (1214 – 1294), três séculos antes de Francis Bacon, iniciaram o estabelecimento da lógica da experiência natural como validação e renovação da ciência. Assim, o que Francis Bacon faz é ampliar o horizonte de possibilidades para a aplicação desta interpretação metodológica. 18
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
conhecimento com nítidas características daquilo que ficou conhecido como magistra vitae, ou seja, pensar a história como uma mestra da vida humana, auxiliadora na resolução de problemas contemporâneos, através de exemplificações e retomadas de um passado mesmo que remoto, podem ser encontrados nos mais variados historiadores do século XIX19. Assim sendo, passa a estar estabelecida a percepção de que a ciência esteja diretamente envolvida com a melhoria na qualidade de vida dos homens, através da proposição de novas teorias metodologicamente validadas acerca do mundo. Estas teorias auxiliariam na obtenção de leis históricas através das percepções de progresso humano, cultural, social, político, econômico e tecnológico. A noção de ciência como uma ‘serva dos homens’ é principalmente notada em dois outros apontamentos deste autor: a preocupação com a educação e o conceito de progresso. Tal como outros pensadores do período, Francis Bacon se preocupava com a educação dos homens, acreditando que apenas a ciência, ensinada, poderia trazer uma felicidade completa. Essa característica é perceptível quando se repara que a principal preocupação desse autor é o curto prazo, a curta duração, ou aquilo que a filosofia tratou muitas vezes como imediatismo temporal. Em um período de conturbada política e de plena crise econômica, este inglês foi um dos primeiros a acreditar que, apenas se estabelecendo as características da ciência como um todo, os homens poderiam se libertar de seus grilhões que ainda insistiam em os prender nas estruturas de uma Antiguidade intelectual falha e num Medievo supersticioso e sem perspectivas de melhorias, que enxergavam a salvação apenas nas possibilidades do frágil intelecto ou no apego ao divino excluindo, assim, as possibilidades de ajuda científica ao próprio homem através de um conhecimento profundo. A segunda percepção da ciência enquanto ‘serva do homem’ já é uma das próprias características de aplicação da ciência: a ideia de progresso históricocientífico. A própria noção utilitária do conhecimento científico e histórico contribuiu para a criação de um ambiente propício ao desenvolvimento da ideia de progresso. Notamos, por exemplo, a utilização que o já citado Maquiavel faz acerca dos eventos
19
Para mais informações acerca dos positivistas, metódicos e historicistas, cf.: BARROS, José Costa D’Assunção. Teoria da História (volume I). Petrópolis: Vozes, 2011; e REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. 4ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO, Valdei Lopes de (org). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
passados em seu O Príncipe20. Nesta obra, o florentino fundamenta as argumentações de seu tempo presente em atos do passado. A História, assim, ainda era, através de uma forma utilitarista e não problematizada, uma mestra da vida. Para Bacon, toda a produção do intelecto humano não deveria ser considerada em separado, mas sim em somatório, constituinte de um todo. Destarte, sempre partindo de lugares pré-determinados pelo passado, consegue-se um progresso das ciências explicativas do mundo e do homem neste mundo. Mais que isso: Francis Bacon acreditava que as inovações científicas, como um todo, seriam feitas em intervalos cada vez mais curtos, devido a estas acumulações intelectuais originais que facilitariam a compreensão do todo possível de ser atingido. Bastava, portanto, sistematizar uma lei do progresso humano. Esta interação entre a educação científica e o progresso intelectual gerando as melhorias sociais – uma das questões utilitaristas da ciência à época, se não a principal – acabou influenciando nitidamente pensadores posteriores dos quais o francês Auguste Comte (1798 – 1857), nome fundante ao se tratar da sociologia, se destacou no século XIX, sendo fundamental para as análises sociais. Desta forma, a busca pelas coisas ‘tais como são’ de Bacon acabou sendo a centelha inicial do positivismo que viria tempos mais tarde, como é o caso do próprio Comte e da sociologia inicial do século XIX, bem como de outras correntes que se propuseram a analisar os homens21. A preocupação com o método, iniciada por Francis Bacon, transversalmente ultrapassaria estes dois autores distantes temporalmente por tantos anos e tão preocupados com as questões epistemológicas. Todavia, nota-se que um dos questionamentos que mais escapam ao pensamento de Bacon é uma das principais preocupações do sociólogo francês: o pensador inglês anulava, constantemente, a existência sócio-individual no ‘desenvolvimento’ da ciência. Bacon, contudo e mais especificamente, não se afastou da historiografia enquanto possibilidade científica. Estudou história e configurou o conhecimento desta disciplina em três formas, de acordo com o seu objeto. Assim, a história poderia ser (1) de uma época, (2) de uma pessoa e, por último, (3) de uma ação. Desta forma, a 20
Op. Cit. Vale lembrarmos que, partindo de uma lógica histórica do pensamento ocidental, Auguste Comte, a partir da sistematização da Sociologia enquanto campo do saber, conseguiu harmonizar autores das mais variadas tendências, tais como René Descartes e Francis Bacon. 21
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
escrita da História se encontraria inserida em três formas narrativas: crônicas para as análises de períodos determinados, biografias para problematizações acerca de indivíduos e narrações ao se pensar em atitudes. A valoração da escrita histórica enquanto uma ciência da memória se dá, no autor, principalmente a partir dos estudos de história da literatura e da filosofia – áreas, respectivamente, da fantasia e da razão, conforme visto. E mais, Francis Bacon, tal qual o pensador francês do século XVI Jean Bodin (1530 – 1596), dividiu o tempo histórico em três: em primeiro ocorrendoàs antiguidades pagãs, em seguida, a parte central da história do mundo, que compreendia os gregos e os romanos e, por último, a modernidade que, para o filósofo inglês, compreendia desde a Idade Média até o seu próprio tempo presente22. Bacon acreditava que as antiguidades pagãs eram por demais frágeis e logicamente não ofereciam uma clara percepção do progresso histórico buscado no século XVII. Logo, sua busca histórica se fazia delicada, o que diferiria apenas na Grécia e em Roma e em seu próprio tempo, momentos nos quais a noção de progresso é plena e perceptível. Todavia, o período pagão não era o único a possuir problemas: a Antiguidade Clássica (grega e romana), apesar de passível de ser analisada, também os teria já que, mesmo sendo um período de desenvolvimento progressivo, não se destacou nas ciências naturais, as tidas como experimentais, por excelência, durante a Idade Moderna23. Logo, enquanto teórico do conhecimento e historiador amador24, Bacon ofereceu um amplo estímulo à disciplina mesmo que não perceptível à primeira leitura. Possuiu certa visão idealista a partir do momento no qual acreditou no estudo da História para configurar a amplitude da ciência como um dos instrumentos para o progresso humano. Neste sentido, procurou por uma ‘escrita histórica moderna’, afastada das caricaturas antigas e medievais, válida para a Grã-Bretanha unificada em
22
Aqui notamos, também, uma das apropriações do pensamento baconiano feita por Auguste Comte durante a fundação da Sociologia no século XIX, aquela que seria identificada e chamada como Lei dos Três Estados. 23 DUJOVNE, León. La filosofia de la historia desde el renacimiento hasta el siglo XVIII. Buenos Aires: Galatea: Nueva Vision, 1959. 24 À época não ocorria uma nítida diferenciação entre a prática historiográfica amadora e profissional o que aconteceria apenas em meados do século XIX. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
uma monarquia25. Acabando, então, por escrever uma História do reinado do Rei Henrique VII, uma narrativa que buscava um objetivismo aos moldes daquele proposto no século XIX pelas escolas positivistas – influenciadas, como se viu, pelo próprio Bacon – utilizando, também, fontes de segunda mão e possibilidades iniciais de análises psicológicas26. Ou seja, o autor tentou unificar uma história política da Inglaterra com uma história pragmática, afastando as possibilidades de uma história que fosse universal27. O britânico Alun Munslow, teórico da história contemporâneo, em uma de suas mais destacadas obras, Desconstruindo a história,chegou a afirmar acerca deste pensamento histórico de Francis Bacon: O legado do positivismo de Francis Bacon do início do século XVII manteve a metáfora do controle do estudo histórico do século XX até mesmo no centro prático-realista. História só se torna verdadeiramente problemática quando os historiadores constroem inferências indutivas fracas, formatam a história a fim de atender a seus propósitos político-ideológicos ou, o que para alguns é pior, se envolvem no mundo subterrâneo da fabricação de hipóteses. A história deveria ser como a ciência no sentido de que a ciência é o estudo do mundo real “lá fora”, é factual e não especulativa, é empírica e não apriorística, verificável, anti-hipotética, ideologicamente neutra e, acima de tudo, não-imposicionalista e objetiva28.
Lembrado nas análises de determinadas ciências, notadamente as naturais, mas esquecido nas análises historiográficas e sociológicas, Bacon acabou por influenciar variados pensadores direta ou indiretamente. Podemos lembrar, cronologicamente, de Thomas Hobbes (1588 – 1679), relevante teórico político que, além de fazer parte do círculo pessoal de Bacon e ser influenciado por este, foi responsável pela tradução latina de várias obras da teoria dos ídolos; de John Locke (1632 - 1704), responsável por certa continuidade da noção baconiana de uso da ciência; do escocês David Hume (1711 – 1776) e do francês Denis Diderot (1713 – 1784) – este último chegando a afirmar que Bacon mapeou o que os homens deveriam
25
Podemos lembrar, por exemplo, ao pensar na possibilidade de uma escrita moderna da História, que Francis Bacon percebe, em certa medida a figura de um leitor implícito que acaba, (in)diretamente, modificando o texto escrito. Cf.: RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2010. 26 FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. 27 Outra possibilidade analítica de contradição no pensamento baconiano: pensar em um autor que buscou sistemas unificados e unificadores do conhecimento humano e, ao mesmo tempo, afastou a noção de uma História Universal. 28 MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2006, p.83 Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
aprender em um momento no qual não se historiava sequer aquilo que os homens sabiam. Chegou também a influenciar autores razoavelmente divergentes nos debates contemporâneos que, partindo de Bacon, mantem esta trilha ou se afastam dela. Destes, destacam-se – não necessariamente concordando com o pensamento baconiano – Charles Sanders Pierce (1839 – 1914), relevante nome ao se pensar no pragmatismo americano do século XIX. Seu pensamento surge, também, na obra do austríaco Karl Popper (1902 – 1994) e seus seguidores, como o americano W. W. Bartley, III (1934 – 1990), que, concordando com o antigo inglês na manutenção científica da lógica e da confrontação com os fatos na delimitação do método científico29, se afastam em busca da elaboração de uma possibilidade metodológica mais profunda, uma discussão crítica. Outros nomes também se estabeleceram como influenciados pelas discussões baconianas,
como
Adolf
Grünbaum
(n.
1923),
defensor
de
Bacon
e,
consequentemente, forte opositor de Popper e Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002), filósofo alemão que se colocou como crítico-analista da teoria dos ídolos e a ‘Escola de Frankfurt’, sendo mencionado em uma das mais significativas obras do grupo, aquela que, escrita por Horkheimer e Adorno, questionaria noções razoavelmente estabelecidas como as de razão prática e de progresso: A Dialética do Esclarecimento30. A herança historiográfica de Bacon enquanto um dos primeiros pensadores ingleses a marcarem este tema e um dos ‘fundadores’ do método científico indutivo moderno ainda se apresenta em métodos históricos recentes. Este método propõe extrair os variados significados históricos através da elaboração de inferências neutras baseadas nas evidências objetivas e em exemplos concretos. Este indutivismo baconiano alcançou prestígio não apenas entre os historiadores do século XIX como o já mencionado positivista Auguste Comte, bem como Thomas Macaulay (1800 – 1859), preocupado com questões além do próprio positivismo científico, mas também entre os historiadores mais recentes – entre as décadas de 1950 e 1980, principalmente.
29
GELLNER, Ernest. Relativism and the Social Sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 30
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Entre os historiadores contemporâneos, como os ingleses Hugh Trevor-Roper (1914 – 2003) e Geoffrey Rudolph Elton (1921 – 1994) e os americanos Gertrude Himmelfarb (n. 1922) e Jack H. Hexter (1910 – 1996) especialistas em História Moderna, período no qual nosso autor viveu, Bacon atingiu amplo sucesso, bem como com a filosofia da história de Quentin Skinner (n. 1940). Todos estes autores aceitaram o sentido da referencialidade da linguagem rejeitando, também, o imposicionalismo de conceituações, a priori resultante das percepções dedutivas. Desta forma, não é de se espantar que esteja presente o debate acerca da obra de Bacon no século XX, já que estes debates se apresentam como uma possibilidade, mesmo que de ampla crítica, de oposição cientificista perante determinadas teorias pós-modernas atuais, que retiram as características de disciplina legítima da história. Como homem da Idade Moderna, Bacon também se juntou a outros pensadores, tais como Thomas More (1478 – 1535) e sua De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia (Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova ilha Utopia, ou simplesmente A Utopia)31, de 1516 e Tommaso Campanella (1568 – 1639) com sua La città del Sole (A cidade do sol)32, de 1602, na elaboração de uma utopia33. Em sua narrativa, A Nova Atlântida (2005)34, o autor demonstrou suas atitudes utópicas criando uma nova civilização na qual a ciência seria o principal ponto da razão humana. A Nova Atlântida cria a sua governança através da casa de Salomão. Esta ‘instituição’ é a responsável por administrar a cidade, também sendo responsável pelo próprio ensino e pelas pesquisas científicas orientadas, logicamente, pelo método baconiano de desconstrução dos ídolos, uma pars destruens. Esta casa do saber, também é a casa do poder. Saber é poder – esta é a máxima baconiana que está presente em grande parte de suas obras – apesar de existirem predecessores a utilizarem essa máxima, em Bacon ela encontra a ênfase pensada em nossos dias.
31
MORE, Tomas. A Utopia. São Paulo: Nova Cultural, 2005. CAMPANELLA, Tomasso. A Cidade do Sol. 2ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 33 Devemos lembrar, contudo, que A Nova Atlântida de Bacon, a Utopia de More e A Cidade do Sol de Campanella – esta última escrita originalmente em italiano e com edição latina (alemã), Civitas Sollis, de 1614 – apesar de possuírem características utópicas, possuem profundas diferenças entre suas formas de escrita e suas percepções de mundo. Ou seja, mencionamos, aqui, estas obras, como percepção da ampla necessidade utópica que este período do passado humano presenciou. 34 BACON, Op. Cit. 32
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O conhecimento histórico se inclui nesta perspectiva e, quanto a isso, faz-se difícil discordar do autor: basta pensarmos em como o conhecimento histórico é utilizado para a reafirmação de políticas específicas – lembremo-nos do nazismo e sua criação
histórico-cultural
ou
mesmo
os
negacionismos
e
revisionismos
contemporâneos, que atingem classes e camadas específicas e que se colocam, também, como empecilhos a determinados governos ou projetos. Bacon não acreditou no conhecimento sem utilidade prática e sem a possibilidade de interpretação progressiva, isso levou seu pensamento a ser o oposto a de autores como o do italiano Giordano Bruno (1548 – 1600) e o alemão Jakob Böhme (1575 – 1624). Assim, Bacon, que nascido em propício berço acadêmico e cercado das mais variadas personalidades políticas e acadêmicas em 1561, morreria, em certo ostracismo filosófico, em 1626, sistematizou a possibilidade de o saber gerar um poder suficiente para se dominar os mundos naturais e sociais. E mais, Bacon afirma que o conhecimento que, à primeira vista, não possui utilidade, pode passar a ter, principalmente se garantir que um indivíduo não domine outro – afinal de contas, o autor também viveu na fase de ampliação e firme consolidação do humanismo e de toda a defesa dos homens mesmo que tenha interpretado este humanismo de forma estrita. Bacon, um dos construtores da imagem de ciência do período que compreende a Idade Moderna, desta forma, reafirma que o conhecimento deve servir à humanidade em sua luta contra a natureza por um futuro próprio e coletivo. Para tal, o conhecimento histórico, seguindo esta lógica, encontra sua possibilidade ao analisar, inclusive, as possibilidades morais e como elas vão sendo construídas, mantidas e modificadas. Afinal, a presença do passado e do futuro, e o peso destes dois fatores, é fundamental em seu pensamento científico35.
35
ROSSI, Paolo. Francis Bacon: da magia à ciência. Londrina: EdUEL; Curitiba : UFPR, 2006. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Referências Bibliográficas Fontes BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza e Nova Atlântida [Tradução de José Aluysio Reis de Andrade]. São Paulo: Nova Cultural, 2005. ______. Del adelanto y progreso de la ciencia divina y humana. [Coleção: Tratados fundamentales] Buenos Aires: Lautaro, 1947. Bibliografia ABRÃO, Bernadette Siqueira (org). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. BAILLIE, John. The belief in progress. London: Oxford University Press, 1951. BARNES, J. Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2005. BARROS, José Costa D’Assunção. Teoria da História (volume I). Petrópolis: Vozes, 2011. CAMPANELLA, Tomasso. A Cidade do Sol. 2ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. DUJOVNE, León. La filosofia de la historia desde el renacimiento hasta el siglo XVIII. Buenos Aires: Galatea / Nueva Vision, 1959. FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. GELLNER, Ernest. Relativism and the Social Sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. KROHN, W. Francis Bacon. München: S/E, 1987. MANIERI, Dagmar. Teoria da História: a gênese dos conceitos. Petrópolis: Vozes, 2013. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 2. ed. tradução: Roberto Grassi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. MENNA, S. H. Máquinas, Gênios e Homens na construção do conhecimento: uma interpretação heurística do método indutivo de Francis Bacon. Campinas: UNICAMP, 2011 [Tese de Doutorado]. MONDOLFO, Rodolfo. Espíritu revolucionario y conciecncia histórica. Buenos Aires: Ediciones Populares Argentinas, 1955. MORE, Tomas. A Utopia. São Paulo: Nova Cultural, 2005. MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2006. NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO, Valdei Lopes de (org). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. 4ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. ROSSI, Paolo. Francis Bacon: da magia à ciência. Londrina: EdUEL; Curitiba : UFPR, 2006. ROVIGHI, Sofia Vanni.História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. 4ºed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília : Editora da Universidade de Brasília, 2010; RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Moderna (4 volumes). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. WHITE, H. Peace Among the Willows. Nijhoff: Hague, 1968.
Artigo recebido em: 30 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 20 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 30-47, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O BOMBARDEIO DE DRESDEN EM 13 E 14 DE FEVEREIRO DE 1945: Uma análise biográfica Rafael Haddad Cury Pinto RESUMO: A Segunda Guerra Mundial, mesmo diante da complexidade de seus acontecimentos, ainda hoje permanece com algumas temáticas pouco analisadas pela historiografia. A campanha de bombardeios aéreos dos Aliados, principalmente da GrãBretanha e Estados Unidos da América (EUA) sobre a Alemanha suscita diversos debates e análises em relação a seus antecedentes, causas, objetivos e consequências; diante da ampla gama de eventos relacionados a essa sequencia de ofensivas, que tiveram um importante papel na derrota do Terceiro Reich, alguns fatos se sobressaem por suas características particulares. O bombardeio da cidade de Dresden nos dias 13 e 14 de fevereiro de 1945, realizado por britânicos e estadunidenses, tornou-se um símbolo da capacidade que as investidas aéreas dos Aliados tinham para destruir quaisquer que fossem seus objetivos militares: grande parte da cidade foi reduzida a escombros fumegantes após somente alguns minutos de bombardeio nesses dois dias. Esse trabalho visa explorar as principais questões e controvérsias que cercam esse acontecimento, baseando-se nas principais referências bibliográficas sobre o tema, e que também estão sendo discutidas atualmente na historiografia sobre a Segunda Guerra Mundial. PALAVRAS-CHAVE: Dresden; Segunda Guerra Mundial; Bombardeios Aliados.
THE BOMBING OF DRESDEN ON 13 AND 14, FEBRUARY 1945: A literature analysis ABSTRACT: The Second World War, even in the face of the complexity of its events, still remains with some thematics little analyzed by historiography. The campaign of aerial bombardment of the Allies, especially Britain and the United States of America (USA) on Germany, evokes many debates and analyzes in relation to their antecedents, causes, objectives and consequences; on the wide range of events related to this sequence of offensives, which played an important role in the Third Reich's defeat, some facts stand out for their particular characteristics. The bombing of the city of Dresden on 13th and 14th of February 1945, carried out by British and Americans, has become a symbol of the capacity of air strikes of the Allies to destroy whatever were their military objectives: a big part of the city was reduced to smoldering rubble after only a few minutes of bombardment on these two days. This work aims to explore key issues and the controversies that surround this event, based in the main bibliographic references on the subject, and which are also currently being discussed in the historiography of the Second World War. KEY-WORDS: Dresden; Second World War; Allied Bombing. ***
Mestrando de História Contemporânea do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Endereço eletrônico: rafael.haddad.2004@gmail.com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A
s origens da cidade de Dresden, localizada às margens do Rio Elba, remontam à Idade Média. A região em que ela se encontra, a Saxônia, é considerada desde muito uma das mais importantes de toda a Alemanha,
por se localizar entre vias de transporte cruciais para o acesso ao centro da Europa. A cidade foi a capital do Reino da Saxônia, e participou dos intrincados acontecimentos políticos do continente europeu desde sua fundação, além de ter sido alvo de operações militares nos diversos conflitos bélicos em que se viu envolvida, como a Guerra dos Trinta Anos e a Guerra dos Sete Anos, além das Guerras Napoleônicas. Devido ao seu caráter de principal cidade da Saxônia, Dresden teve um processo de enriquecimento cultural, artístico e arquitetônico no decorrer de seu desenvolvimento que a levou a ser considerada como a “Florença do Elba”, atraindo visitantes de toda a Europa, além de outras partes do mundo. Durante o século XIX suas indústrias, que já tinham fama em todo o continente por produzirem itens de luxo como porcelanas de extrema qualidade, passaram a ser incrementadas com outros artigos e materiais, consolidando não somente a cidade, mas toda a Saxônia como importante polo industrial germânico. A incorporação da região ao Império Alemão unificado em 1871 veio a acelerar o processo de desenvolvimento fabril, aumentando os níveis de produção e levando Dresden a se tornar um dos destinos mais procurados por trabalhadores e visitantes em toda a Europa. O advento da Primeira Guerra Mundial e a derrota alemã levaram a um clima de instabilidade, perdas materiais e populacionais que atingiram não somente a cidade, mas todo o país. O regime político republicano instaurado no pós-guerra, que ficou conhecido como a “República de Weimar” levou Dresden a um razoável reerguimento econômico, mas que acabou sendo solapado com a crise econômica mundial de 1929. A instabilidade institucional e política da Alemanha, aliada aos problemas na área das finanças foram alguns dos fatores que levaram à ascensão de Hitler no país; Dresden, como a maioria das grandes cidades alemãs, também teve em suas ruas conflitos que envolveram nazistas, comunistas, as autoridades e a população em geral. A consolidação do novo regime na região da Saxônia, juntamente com o crescimento de seu aparato estatal repressivo, teve na figura do Reichsstatthalter
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
(Governador do Reich) Martin Mutschmann um de seus principais baluartes1. Uma série de desfiles militares, da Juventude Hitlerista e de outras organizações nazistas, além de algumas visitas do próprio Hitler à Dresden, demonstrava que a principal cidade da Saxônia tinha importância no quadro político do Terceiro Reich; as indústrias de precisão da cidade (lentes, instrumentos ópticos), que desde a Primeira Guerra Mundial tinham uma reputação de excelência, passaram cada vez mais a produzir produtos para a Wehrmacht (Forças Armadas da Alemanha) em processo de crescimento. Além de sua importância política e econômica, a “Florença do Elba” também possuía, na época da ascensão de Hitler, a segunda maior guarnição militar da Alemanha, dentro das possibilidades impostas pelas cláusulas do Tratado de Versalhes (cinco mil homens); em 1939, às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, a cidade continuou a ter números expressivos de tropas, ainda mais pela sua posição geográfica próxima à Polônia, e ao recentemente criado Protetorado da Boêmia e Morávia. Apesar de ser uma das cidades mais importantes da Alemanha, a população judaica de Dresden era proporcionalmente pequena, mas possuía uma das sinagogas mais conhecidas de toda a Europa. O processo contínuo de perseguição dos nazistas aos judeus na Alemanha também foi realizado na Saxônia, através das ações do “Rei Mu”, que levaram a população de uma maneira geral a hostilizar as comunidades judaicas nos seus estabelecimentos comerciais e residências; a situação teve uma piora aguda após a Kristallnacht (Noite dos Cristais)2 em 09 de novembro de 1938, inclusive com a destruição da sinagoga da cidade por tropas nazistas. Mesmo sendo 1
Segundo o autor Frederick Taylor, Mutschmann era impopular entre a população; Hitler o admirava por seu fanatismo em relação à ideologia do regime e por se tratar de um dos primeiros membros do Partido Nazista. Com o passar do tempo, o Reichsstatthalter acumulou cada vez mais poder e cargos na administração da Saxônia, não se furtando em utilizar meios brutais para consolidar sua posição, perseguindo judeus e supostos opositores do regime, além de responder pela organização da defesa da região durante a guerra. Tamanho era seu domínio sobre a política saxã que, pejorativamente, a população lhe deu as alcunhas de “Mussolini Saxão” e “Rei Mu”. TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011. pp.72-75. 2 Em 07 de novembro, um judeu alemão acabou por matar um diplomata na Embaixada da Alemanha em Paris; ao saber do ocorrido dois dias depois, Goebbels fez um violento discurso antissemita em Munique, aproveitando que as figuras mais proeminentes do regime (inclusive Hitler) estavam na cidade para comemorar o aniversário do fracassado golpe de 1923. Isso desencadeou uma torrente de ações violentas contra os judeus por toda a Alemanha, na maioria das vezes com as autoridades nazistas instigando a população a agirem contra os membros das comunidades judaicas, destruindo suas casas, locais de culto e comércios, além de os agredirem fisicamente em diversas oportunidades. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
um local historicamente ligado à cultura, às artes e à tolerância, Dresden não ficou alheia à ideologia de Hitler e de seu partido: os judeus continuaram a ser perseguidos implacavelmente e, segundo Taylor, a população judaica na cidade em 1939 estava reduzida a um quarto dos números de 19323. Tamanha foi a campanha de perseguição antissemita na cidade que, a partir de março de 1943, somente os judeus que eram casados com pessoas reconhecidamente arianas (e os filhos dessas relações) tinham das autoridades a permissão de continuarem a habitar: os outros haviam sido levados aos campos de concentração, expulsos da Alemanha, ou mortos após períodos de prisão. A invasão da Polônia e o consequente início da Segunda Guerra Mundial em setembro de 1939 elevaram a importância de Dresden como local para o transporte de tropas, suprimentos e produção de bens para a guerra. Nos primeiros estágios do conflito, as frentes de batalha não se aproximaram muito da cidade, fazendo com que o grau de normalidade da vida cotidiana permanecesse praticamente intacto4; contudo, após o início da Batalha da Inglaterra um novo componente foi acrescido. Os alarmes antiaéreos passaram a soar a partir de agosto de 1940, mas não por ataques à cidade em si, mas sim pelos ataques britânicos à Berlim: somente em outubro algumas bombas foram despejadas sobre a cidade, mas sem causarem danos. Nos dois anos seguintes, a cidade enfrentou somente onze alarmes antiaéreos e, mesmo assim, não de bombardeios sobre a cidade, mas sim em localidades vizinhas, e alguns de lançamentos de panfletos britânicos de propaganda antinazista. Por conta de tal “imunidade”, muitos habitantes da cidade acreditavam que ela nunca seria atacada5, e para isso tinham explicações diferentes e bizarras: segundo autores como Frederick Taylor, David Irving e Antony Beevor, tais ideias figuravam desde a admiração dos Aliados pela arquitetura da cidade, chegando até o fato de que uma suposta tia de Churchill moraria em um de seus bairros, e por isso ela seria poupada. 3
Ibidem, p.102. No entanto, os lembretes de que uma guerra estava sendo travada eram mostrados através dos jornais: os obituários cada vez mais exemplificavam que o número de perdas de soldados com origens em Dresden aumentava, assim como o número de baixas da Wehrmacht como um todo. 5 A explicação da causa de Dresden não ser alvo de ataques aéreos dos Aliados vinha da incapacidade da RAF em alcançar com suas aeronaves e seus sistemas de radares a região leste da Alemanha: somente o centro e o oeste do país eram áreas operacionais para a ação aérea britânica. Ibidem, p.173. A “proteção” que Dresden supostamente teria era conhecida em toda a Alemanha: quando os bombardeios ficaram mais pesados e frequentes, a região recebeu milhares de refugiados, ficando conhecida como o “Abrigo Antiaéreo do Reich”. 4
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Independentemente desses “fatores”, as autoridades estatais pouco fizeram para tornar Dresden uma cidade com proteções antiaéreas adequadas: a quantidade de baterias antiaéreas era pequena, não havia bunkers suficientes para a população (e os que existiam eram extremamente mal equipados), além da insuficiência de treinamento para equipes de resgate e combates a incêndios. Tais negligências continuaram a ocorrer até as vésperas dos devastadores ataques de fevereiro de 1945: as consequências foram funestas para a cidade e seus habitantes. Os avanços tecnológicos dos Aliados a partir de 1943 fizeram com que praticamente nenhuma região da Alemanha pudesse estar isenta de ser atacada por via aérea. A cidade de Leipzig, numa região bastante próxima de Dresden, foi impiedosamente atacada pelos Aliados em algumas oportunidades após 1943, tornando-se um dos principais alvos dos bombardeios de precisão. A região da Saxônia, que até meados da guerra pouco havia enfrentado os ataques aéreos britânicos e estadunidenses, passou a ter alarmes antiaéreos diários, sendo que localidades que na avaliação dos Aliados tivessem algum tipo de importância no esforço de guerra alemão eram atacadas, independente de seu tamanho. Mutschmann e outras autoridades nazistas locais começaram a implementar tímidas medidas para o caso de Dresden ser bombardeada: a principal delas não dizia respeito à questões militares, mas sim à evacuação das crianças da cidade para o campo 6. As medidas paliativas de defesa não sofreram grandes modificações mesmo após um pequeno ataque aéreo estadunidense (à luz do dia) no final de agosto de 1944 ter vitimado mais de duzentas pessoas numa fábrica nos subúrbios de Dresden7. Tendo em vista auxiliar as ofensivas soviéticas no leste alemão a partir do início de 1945, os Aliados elaboraram uma tática em relação às investidas aéreas sobre a 6
Tal medida era realizada desde os primeiros bombardeios mais pesados dos Aliados sobre o Terceiro Reich, principalmente nas regiões do oeste e norte do país: as crianças que viviam em cidades com grande potencial de serem atacadas (ou nas que isso já havia ocorrido) eram evacuadas para regiões onde o perigo de bombardeio aéreo era menor, principalmente nas áreas rurais do país. Tal diretiva era extremamente impopular, pois separava as famílias sem nenhum tipo de certeza se elas se reuniriam novamente em um momento posterior. No caso específico de Dresden, o número de crianças evacuadas foi bem menor do que a média do resto do país, pois a maioria dos pais boicotou as ações governamentais para esse fim, mesmo sob intensa pressão das autoridades. 7 Menos de um mês após esse ataque, as autoridades nazistas, através da Organização Nacional Socialista do Bem-Estar do Povo, emitiram um comunicado para Dresden de que todo e qualquer tipo de recursos humanos ou materiais deveriam ser direcionados para os fronts de batalha; em outras palavras, não havia mais nenhum tipo de intenção do governo em resguardar a população civil, já que o objetivo principal era a “guerra total”. Ibidem, p.184. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Alemanha: as cidades e principais entroncamentos ferroviários da região central e leste germânicas seriam atacados pelos Comandos de Bombardeiros da RAF (Royal Air Force) e da USAAF (United States Army Air Forces), com o objetivo de causar o caos no envio de tropas da Wehrmacht para as frentes de batalha, além de destruir o máximo possível da infraestrutura do país. Nas palavras do autor Frederick Taylor, o primeiro objetivo dessas ofensivas: “seriam os corações e cérebros das cidades do leste alemão, depois suas vísceras – os elos de transportes – e finalmente quaisquer fábricas”8. As ofensivas foram realizadas em fins de janeiro e início de fevereiro; apesar das péssimas condições climáticas para a aviação, pesados ataques foram realizados sobre os alvos definidos, principalmente em Berlim, que em 03 de fevereiro enfrentou quase mil aeronaves estadunidenses, numa das investidas mais destrutivas de toda a guerra. Após essa primeira leva de alvos e bombardeios, os comandos da RAF e da USAAF fizeram uma análise dos resultados das ofensivas até aquele momento, além de definirem os próximos locais que seriam atacados na segunda semana de fevereiro. O alvo continuava sendo Berlim, mas Dresden aparecia como segundo alvo prioritário para os Comandos de Bombardeiros dos Aliados. Apesar de ter tido seus subúrbios atacados em agosto de 1944, e a zona industrial do centro esparsamente bombardeada em outubro do mesmo ano9, os habitantes e as autoridades nazistas ainda consideravam Dresden uma cidade com baixo risco de ser atacada pesadamente por via aérea. Os treinamentos realizados com as equipes de resgate, combate a incêndio e evacuação para hospitais foram considerados extremamente satisfatórios, mesmo depois da cidade ter sido atingida por pequenas quantidades de aeronaves extraviadas de um ataque à outro local, que acabaram causando um grau de destruição proporcionalmente significativo. Em 8
Ibidem, p.228. Esse ataque praticamente foi o último onde as baterias antiaéreas da cidade foram utilizadas com êxito. Segundo o autor David Irving, o fogo defensivo alemão foi exitoso, mas as baterias muitas vezes eram manejadas por membros adolescentes da Juventude Hitlerista, que tinham de usar equipamentos e uniformes de tamanhos muito maiores aos que eles estariam aptos a utilizar, além de não estarem preparados para enfrentar as aeronaves inimigas. IRVING, David. A Destruição de Dresden: A Anatomia de uma Tragédia. Tradução de Manoel Roiter. 1ª Edição. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1963. p.62. Esse ataque também foi ignorado pelas autoridades nazistas: nenhuma referência em relatórios foi feita a ele, e os jornais não informaram nada sobre o ocorrido. As pessoas que foram mortas nesse bombardeio foram sendo enterradas gradativamente, com os anúncios nos veículos de comunicação não fazendo referência às causas de seus falecimentos, para que a população não entrasse em pânico. Oficialmente, o ataque não existiu. TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011. p. 239. 9
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
janeiro de 1945, mais uma vez partes da cidade foram atacadas, agora nas zonas central e oeste: o número oficial de mortos passou de trezentos. As baterias antiaéreas, que em outubro causaram perdas aos Aliados, haviam sido em suas maiorias deslocadas para outras regiões do país, tornando Dresden uma cidade praticamente indefesa em caso de bombardeio; as poucas baterias restantes eram operadas por meninos entre quinze e dezesseis anos, supervisionados por veteranos em convalescência10. Os planos operacionais de ataque à Dresden, elaborados pela RAF e pela USAAF tinham como maior preocupação não os preparativos defensivos alemães, mas sim as condições climáticas, já que o inverno de 1945 até o mês de fevereiro fora caracterizado por intensas nevascas e péssimas condições de voo. A oportunidade para o bombardeio sobre a cidade surgiu numa terça feira de Carnaval, dia 13 de fevereiro: as previsões meteorológicas demonstraram que durante a noite desse dia e a manhã do seguinte as condições atmosféricas eram as ideais para os planos dos Aliados. A RAF então enviou de seus campos de aviação no sul da Grã-Bretanha uma de suas formações de elite para o ataque a ser realizado: o Grupo 5 do Comando de Bombardeiros11. O plano de ataque não envolvia somente o bombardeio em si: uma série de táticas e despistes foram realizados para que a defesa antiaérea alemã e os poucos caças da Luftwaffe restantes não interferissem durante o trajeto entre a costa bretã e a Saxônia12. Uma preocupação real dos Aliados era que o ataque à cidade pudesse levar as aeronaves aliadas a bombardear a linha de frente ou as cidades tomadas pelos soviéticos, por engano, devido à proximidade dos mesmos em relação à Dresden; tal problema foi resolvido com uma série de ajustes no sistema de radares
10
A situação da Alemanha na guerra era tão caótica em fins de 1944 e início de 1945 que o general de exército Heinz Guderian, chefe do Estado-Maior Geral do Exército (OKH) definiu que as cidades alemãs ainda não conquistadas pelos Aliados teriam duas categorias: “fortalezas” (como um sistema de defesa permanente) e “áreas defensivas” (que receberiam dispositivos defensivos temporários em caso de perigo iminente). Dresden se encaixava na segunda definição e, por esse motivo, tinha em seu perímetro tropas de segundo escalão e com poucos recursos. 11 Inclusive esse Grupo havia sido comandado pelo próprio Sir Arthur Harris antes do mesmo assumir a chefia do Comande de Bombardeiros da RAF. 12 As ações britânicas para tais fins envolviam desde a trajetória dos aviões no espaço aéreo alemão por rotas pouco usuais até o bombardeio de outros locais próximos à Saxônia, para levar à dúvida à defesa antiaérea alemã sobre qual era realmente o alvo principal. Tais atividades foram extremamente exitosas, pois nenhuma aeronave da RAF se perdeu ou foi abatida no trajeto até Dresden. Ibidem, p. 266. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
dos aviões da RAF, que aumentaram a precisão da marcação sobre os alvos, além da constante transmissão de informações entre os pilotos e tripulações13. Além da população fixa de Dresden, o perímetro da cidade estava repleto de refugiados vindos de outras partes da Alemanha como a Silésia, que estava sendo invadida pelos soviéticos. Com isso a cidade, que possuía problemas sérios de moradia mesmo antes de a guerra eclodir, se viu com a capacidade de absorver esse novo contingente populacional totalmente comprometida; milhares de refugiados ocupavam as estações de metrô, as ruas e os campos em volta da cidade, sem as condições básicas de sobrevivência, além de não terem locais para se alimentar, dependendo do auxílio de outrem14. As instituições do Partido Nazista que tratavam das questões dos refugiados como, por exemplo, a Organização Nacional Socialista do Bem-Estar do Povo, já não conseguiam mais controlar a situação e o fluxo de pessoas. A defesa antiaérea alemã identificou as grandes formações de aeronaves sobre o espaço aéreo do país, mas não conseguiu estipular se as regiões central ou leste do Terceiro Reich seriam atacadas. Pouco depois das vinte e uma horas e trinta minutos, da noite de 13 de fevereiro de 1945, o alarme antiaéreo de Dresden foi acionado, mesmo sem a confirmação de que a cidade era o alvo prioritário do ataque. Somente às vinte e duas horas ficou confirmado para os alemães de que Dresden seria bombardeada, e a Luftwaffe colocou em ação a quantidade irrisória de dez caças para combater uma força atacante mais de vinte vezes maior. As aeronaves britânicas, que haviam decolado pouco antes das vinte horas de suas bases na Grã-Bretanha, estavam prontas para o bombardeio sobre a cidade da Saxônia às vinte e duas horas. O ataque foi realizado em duas levas, sobre um alvo em formato de cunha, que continha dois quilômetros de comprimento por quase três de largura15. A quantidade 13
IRVING, David. A Destruição de Dresden: A Anatomia de uma Tragédia. Tradução de Manoel Roiter. 1ª Edição. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1963, p. 95. 14 Segundo Frederick Taylor, o número exato de refugiados em Dresden é praticamente impossível de ser calculado. Um dos historiadores a que ele se referencia no tema, Matthias Neutzner, calcula o número em, aproximadamente, um milhão de pessoas TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011, p.276. 15 As características desse ataque, segundo o autor Jörg Friedrich eram provenientes da metodologia própria do Grupo 5 do Comando de Bombardeiros da RAF: as áreas atingidas assemelhavam-se muito ao formato de um “leque”, e na maioria das vezes a destruição no interior desse perímetro era gigantesca (FRIEDRICH, Jörg. O Incêndio - Como os Aliados destruíram as cidades alemãs. Tradução de Roberto Rodrigues. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 353.). No caso de Dresden, a área Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
exorbitante de bombas de diversos tipos e tamanhos com alto poder incendiário acabou causando uma enormidade de pequenos focos de incêndio por toda a área atingida: com o passar do tempo, as condições climáticas contribuíram para que as chamas fossem se aproximando, até juntar-se no dantesco fenômeno pirotécnico do “turbilhão de fogo” 16, já no fim do primeiro ataque. O calor sobre os locais atingidos foi crescendo incontrolavelmente, impedindo a ação dos bombeiros, e levando aos abrigados em porões, bunkers e abrigos a continuarem escondidos, pois o trânsito pelas ruas era impraticável, já que além do turbilhão “sugar” o oxigênio para aumentar sua potência, dificultando a locomoção, o asfalto em diversos locais tinha se diluído com o fogo17. A segunda leva do ataque britânico ocorreu pouco depois de uma hora da manhã do dia 14 de fevereiro, com mais de quinhentas aeronaves despejando suas bombas não mais no centro atingido pelo primeiro ataque, mas sim nos arredores; isso não impediu, no entanto, que mais uma vez os escombros fumegantes da Altstadt fossem atingidos nessa nova investida. As sirenes inoperantes não puderam dar o sinal de novo ataque aéreo, e muitas pessoas foram pegas de surpresa, sem nenhum tipo de refúgio próximo (inclusive as equipes de bombeiros). Dresden havia se tornado uma imensa fogueira, que as tripulações da RAF conseguiam identificar a oitenta
atingida correspondeu ao estádio de futebol do clube local, as linhas de trem em seus arredores, os edifícios ministeriais da parte nova da cidade (Neustdadt) e, por fim, a densamente povoada região da cidade antiga (Altstadt), que continha também o Centro Histórico. A principal estação de trem da cidade, a Hauptbahnhof, lotada de refugiados, também acabou sendo atingida, mesmo não estando prevista como um dos alvos principais no ataque britânico sobre a cidade TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011, p.297. 16 Tal situação colocava em risco a vida humana por três fatores básicos: o primeiro, devido às bombas, que faziam com que as construções atingidas ardessem em chamas desde a base até o topo, com temperaturas que facilmente passavam dos mil graus Celsius; o segundo, pelo deslocamento de ar quente, com rajadas de vento que impossibilitam a locomoção e, dependendo da força do “turbilhão”, poderiam até mesmo sugar o indivíduo para o centro do fogo; o terceiro tornava o ar irrespirável, pois o centro do fenômeno acabava aspirando os gases do entorno, principalmente o oxigênio. 17 O sistema de comunicações dresdense foi colocado em inoperância durante a queda das primeiras bombas; com isso, os alarmes de aviso sobre o fim do ataque não funcionaram, levando aos abrigados a continuarem escondidos, mesmo após meia hora de terminado o primeiro ataque. Os abrigos davam uma falsa impressão de proteção, pois os gases tóxicos desprendidos dos materiais em combustão (principalmente o inodoro monóxido de carbono) penetravam nas brechas dos esconderijos, intoxicando seus ocupantes, e os levando à morte. A maioria das vítimas fatais do bombardeio sobre a cidade veio a óbito dessa maneira: foram muitos os casos em que as equipes de resgate, dias após os ataques, desimpediram a entrada de abrigos, encontrando todos os seus ocupantes mortos pelos gases tóxicos. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
quilômetros de distância;18 os pilotos reportaram a seus comandantes que o fogo no centro da cidade era intenso, e que os alvos eram de difícil observação. Para fazer com que o segundo ataque fosse tão devastador quanto o primeiro, o Comando de Bombardeiros da RAF decidiu por mudar os alvos: agora eram os subúrbios ainda intocados pelas bombas que seriam bombardeados. A intensidade da investida aérea era poderosa: as baterias antiaéreas eram poucas, a Luftwaffe não tinha a menor possibilidade de impedir os ataques, e a quantidade de abrigos pela cidade era totalmente insuficiente.19 Essa junção de fatores causou em Dresden um grau de destruição e morte de difícil mensuração: muitos relatos de sobreviventes demonstram uma incompreensão do que estava acontecendo durante os ataques, uma estupefação por uma guerra que até dias antes os habitantes da “Florença do Elba” não haviam presenciado. A Hauptbahnhof, que havia sido atingida no primeiro ataque, foi mais uma vez atacada, agora com ainda mais intensidade, levando milhares de refugiados ao desespero, na maioria, idosos, mulheres e crianças. Alguns reservatórios de água foram construídos pela cidade no decorrer da guerra, para o caso de necessidade dos bombeiros em debelar as chamas decorrentes de ataques aéreos. Na situação desesperadora em que se encontravam durante os ataques, muitas pessoas entraram nesses reservatórios para tentarem salvar suas vidas, o que se revelou uma armadilha: alguns desses reservatórios eram rasos ou profundos demais, dificultando que os debilitados habitantes da cidade pudessem se manter a salvo. Esses fatores levaram a cenas bizarras e pavorosas, onde os que tentaram se salvar dentro desses locais foram encontrados depois, literalmente, mortos e “cozidos”, pois a água esquentou pela quantidade de calor no entorno dos reservatórios20. Um hospital com diversas
18
Ibidem, p. 327. Em uma decisão no mínimo duvidosa, o “Mussolini Saxão” ordenou durante a guerra a construção de um complexo de seguros abrigos subterrâneos na cidade, para enfrentar um possível bombardeio. Curiosamente, essas proteções encontravam-se no subsolo de sua residência, para uso particular, sendo que em nenhuma outra parte de Dresden havia abrigos de tal porte. ROBERTS, Andrew. A Tempestade da Guerra. Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2012, p.525. Durante os ataques de 13 e 14 de fevereiro, Mutschmann se escondeu nesse local, deixando a cidade sem nenhum tipo de comando durante e logo após os bombardeios. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o “Rei Mu” foi preso pelos Aliados, mas tanto a data quanto a causa de sua morte são totalmente incertas. 20 ROBERTS, Andrew. A Tempestade da Guerra. Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2012, p.523. 19
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
mulheres em trabalho de parto ou que haviam recentemente tido filhos desabou, matando a maioria de suas ocupantes. A segunda leva do ataque britânico, que terminou antes de duas horas da manhã, veio a aumentar o nível de destruição de Dresden. A maioria das riquezas arquitetônicas do centro da cidade tornara-se um amontoado de escombros fumegantes, com os prédios no entorno tendo a mesma situação: os milhares de pessoas sem vida em seus interiores aumentavam ainda mais o grau de exasperação dos sobreviventes. Os habitantes da capital da Saxônia não tinham como saber, mas nos aeródromos britânicos, enquanto os britânicos voltavam praticamente sem perdas, a experiente Oitava Força Aérea estadunidense preparava-se para a terceira incursão Aliada sobre Dresden em menos de vinte e quatro horas, agora com mais de quatrocentas aeronaves. Os alvos eram parecidos com os das incursões anteriores21, e a cidade estava envolta em uma fumaça suja e cinza, tendo em seu interior mais de mil focos de incêndio, mesmo após o fim do turbilhão de fogo. Pouco após o meio dia de 14 de fevereiro os estadunidenses atacaram não somente os locais que já haviam sido atingidos nas vagas anteriores, mas também as regiões que pouco haviam sido destruídas, como as partes industrial e residencial do oeste da cidade. A terceira investida durou pouco mais de dez minutos, com uma quantidade de bombas despejadas somente pouco inferior àquela que havia sido utilizada pelos britânicos no primeiro ataque (e que acabou causando o turbilhão de fogo). Os focos de incêndio somente foram completamente controlados três dias após o ataque estadunidense, mas as equipes de resgate que acorreram de muitas partes da Alemanha (principalmente de Berlim) iniciaram suas atividades no próprio dia 14, sendo auxiliadas por civis, membros da Wehrmacht e prisioneiros de guerra.22 Durante a
21
A Oitava Força Aérea deveria bombardear o já massacrado centro de Dresden, além da cidade próxima de Chemnitz, que possuía indústrias para a fabricação de tanques e suprimentos para motores. Além desses alvos primários, os pátios de manobras ferroviários e rodoviários deveriam ser atacados. A USAAF enfrentou condições climáticas adversas nessa terceira investida, tanto que alguns esquadrões de aeronaves atacaram a cidade de Praga, erroneamente a identificando como Dresden TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011, p. 375. 22 As condições pavorosas das áreas de resgate, aliadas aos odores de corpos em decomposição e a fumaça fizeram com que muitos integrantes das equipes de resgate trabalhassem continuamente embriagados, pois somente dessa forma conseguiriam empreender seu trabalho, segundo o autor Jörg Friedrich FRIEDRICH, Jörg. O Incêndio - Como os Aliados destruíram as cidades alemãs. Tradução de Roberto Rodrigues. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p.381. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
série de ataques, somente duas regiões da cidade serviram como abrigos razoavelmente seguros para aqueles que conseguiam deslocar-se em meio ao caos: as áreas densamente arborizadas do Grosser Garten, e os terraços alagados ao lado do Rio Elba, no norte de Dresden. As pessoas que conseguiram escapar dos bombardeios, e retornavam aos locais onde anteriormente habitavam em busca de parentes e pertences, muitas vezes encontravam em seu lugar escombros e fuligem. Construída no século XVIII, a Igreja de Frauenkirche, um dos maiores símbolos da cidade, teve sua estrutura extremamente danificada nos dois primeiros ataques, mas não desabou: o ataque da Oitava Força Aérea a atingiu ainda mais, mas algumas partes de sua estrutura permaneceram resistindo. No dia 15 de fevereiro, o arenito que dava sustentação ao grande domo da Igreja sucumbiu ao incêndio de mais de setecentos graus Celsius, levando a Frauenkirche a desabar; logo após, uma quarta investida aérea foi realizada sobre a cidade, pela mesma Oitava Força Aérea do ataque anterior, mas devido às péssimas condições climáticas, o ataque não foi exitoso. A administração nazista sobre Dresden teve de ser restabelecida às pressas para que a cidade pudesse voltar a um mínimo de normalidade. O Chefe do Comitê Interministerial de Danos da Guerra Aérea, Theodor Ellgering foi enviado à cidade por Goebbels23 para que os auxílios fossem colocados em prática no menor tempo possível: sua autoridade tornou-se superior até mesmo a de Martin Mutschmann, e resultou no restabelecimento básico dos serviços na cidade a partir do dia 16 de fevereiro24. O resgate dos mortos foi intensificado e, para que as doenças não viessem a piorar a situação calamitosa da cidade, os corpos e restos mortais encontrados eram
23
O autor Antony Beevor afirma que quando Goebbels foi informado do que havia acontecido em Dresden, “tremeu de fúria” e pensou na hipótese de ordenar a execução do mesmo número de prisioneiros de guerra que o de civis mortos nos ataques. A ideia foi apresentada à Hitler, que a aprovou, mas outros integrantes do Estado-Maior da Wehrmacht conseguiram demovê-los dessa possível barbárie. BEEVOR, Antony. Berlim 1945: A Queda. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2004, p.130. Todavia, Goebbels não permitiu que esse ataque fosse esquecido facilmente: em uma sequencia de ações propagandísticas, os efeitos do bombardeio foram distorcidos e aumentados para a imprensa alemã e internacional, causando discursos de repulsa ao ataque até mesmo no Parlamento Britânico. TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011, p.428. 24 No dia seguinte, Dresden sofreu o último ataque aéreo, realizado pela USAAF: os pátios de manobras e outros alvos ferroviários foram atingidos com extrema precisão, causando poucas mortes, e danificando os trilhos alemães no entorno da cidade, causando consequências até o final da guerra no sistema ferroviário alemão na cada vez menor região leste do país. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
recolhidos, identificados (na medida do possível) e reunidos em grandes grelhas, para serem incinerados25; as cinzas foram jogadas posteriormente em valas abertas especificamente para esse fim. Os resultados dos bombardeios sobre Dresden podem ser analisados através de diversos prismas, e os resultados nem sempre levam a conclusões inequívocas. Os objetivos dos Comandos de Bombardeiros da RAF e da USAAF eram claros, e foram alcançados com diferentes níveis de precisão: os ataques deveriam solapar o “moral” da população, e destruir a infraestrutura alemã das indústrias e transportes na região da cidade e de seus subúrbios. O centro de Dresden foi praticamente destruído26, as indústrias foram seriamente afetadas, e o sofrimento da população ultrapassou os limites da cidade, e ficou conhecido em toda a Alemanha e no resto do mundo. Contudo, os dividendos do ataque não foram totalmente positivos para a causa dos Aliados, muito pelo contrário: o sucesso e a eficiência devastadora dos bombardeios causaram sérios problemas. Os relatos jornalísticos e as imagens (manipuladas ou não) do que aconteceu na cidade auxiliaram a causa nazista, ao que Goebbels teve papel fundamental nesse processo: numa série de manobras propagandísticas, o Ministro da Propaganda do Terceiro Reich conseguiu transformar uma clara vitória dos Aliados em um massacre realizado por “bárbaros desumanos”. As consequências foram praticamente instantâneas, já que a opinião pública alemã ficou em sua maioria horrorizada com os fatos descritos, e agora tinha mais um motivo para combater até o fim, pois o destino do país seria dantesco em caso de uma vitória Aliada (vide o que tinha ocorrido à Dresden); a opinião pública estadunidense e, principalmente, a britânica, ficou estupefata em sua grande maioria pelo nível de destruição e sofrimento a que a “Florença do Elba” foi submetida. As críticas de políticos e pessoas comuns sobre a ofensiva aérea sobre a Alemanha se intensificaram após Dresden, e colocaram Churchill em uma situação desconfortável27, mesmo com a Grã-Bretanha
25
Segundo Taylor, todo esse complexo trabalho de incineração foi supervisionado por membros da SS (Shutzstaffel), que teriam vindo do Campo de Concentração de Treblinka. Ibidem, p. 405. 26 Apesar disso, em um levantamento realizado pelas autoridades nas semanas seguintes, descobriu-se que aproximadamente quatro mil pessoas viviam nas ruínas da Altstadt: a situação estrutural do local baseava-se em fachadas de prédios caídos e buracos no chão. Ibidem, p. 409. 27 A situação era tão delicada que Churchill, em seu discurso no Dia da Vitória após o fim da guerra, não citou nominalmente uma vez sequer o Comande de Bombardeiros de maneira direta, fazendo somente uma referência indireta aos danos impostos sobre Berlim. Harris ficou extremamente desgostoso com a Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
tendo sofrido problemas parecidos com as ofensivas aéreas alemãs durante a Batalha da Inglaterra. A retórica inflamada utilizada por Goebbels em um discurso após o ataque demonstra como o ocorrido em Dresden foi manipulado tendo em vista o apoio da opinião pública à causa nazista: Os três ataques aéreos a Dresden ocasionaram a mais radical aniquilação de uma grande e contínua área urbana e, em relação ao número de habitantes e de ataques, de longe a mais séria perda de vidas humanas. O horizonte de perfeita harmonia da cidade foi riscado dos céus europeus. Dezenas de milhares que trabalhavam e viviam sob suas torres foram enterrados em covas coletivas, sem a possibilidade de qualquer tentativa de identificação. [...] Isto não é uma campanha por simpatia; estamos simplesmente trazendo os métodos de guerra do inimigo à luz de um fogo que ele próprio acendeu. Seu objetivo é nos forçar, com assassinatos em massa, à rendição, para que então possa executar uma sentença de morte contra – como expressa o outro lado – os sobreviventes que restarem. Em resposta à tal ameaça, há somente o caminho da resistência combativa. Só os cegos não veem isso, e só os fracos – que já desistiram da luta – podem recuar de seguir esse caminho até o fim. Os cegos foram conduzidos pelos que enxergaram para fora da cidade em chamas, e ninguém que escapou dos incêndios com o prêmio da vida pode considerar seriamente jogá-la no Elba28.
As palavras utilizadas por Goebbels demonstram claramente como os nazistas não mediam esforços nem escrúpulos para intentar seus objetivos: mesmo diante de uma tragédia com proporções gigantescas, o importante não era somente o ocorrido em si, mas sim o convencimento da opinião pública, a defesa da luta ferrenha até o fim (mesmo que esse isso levasse a Alemanha ao desastre) e, principalmente, o apoio ao Terceiro Reich, mesmo em seus estertores. O fanatismo que ainda envolvia a luta nas cidades dominadas pelos nazistas também se manifestou em Dresden: a cidade foi considerada “fortaleza” pelas autoridades estatais em abril de 1945, mas isso não impediu que ela fosse conquistada pelos soviéticos no início do mês seguinte. Os mesmos acontecimentos ocorridos em outras cidades alemãs repetiram-se na Saxônia, e em sua capital: abusos contra os civis realizados por soldados soviéticos (principalmente contra as mulheres, com os recorrentes casos de estupro), saques, perseguição aos nazistas remanescentes e coerção de liberdades individuais. Segundo
situação e, coincidentemente ou não, foi substituído do Comando de Bombardeiros da RAF em agosto de 1945. 28 Ibidem, p.427. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Frederick Taylor, a Dresden conquistada pelos soviéticos saiu da órbita de um governo totalitário para entrar logo depois na zona de influência de outro29. Como diversas temáticas da Segunda Guerra Mundial, os bombardeios ocorridos sobre Dresden nos dias 13 e 14 de fevereiro de 1945 são objeto da historiografia, tanto na Alemanha quanto no exterior. As principais controvérsias, observações, conceitos e teorias que envolvem os atores históricos envolvidos no acontecimento remontam aos dias subsequentes ao ocorrido, e vêm tendo constantes estudos até os dias atuais; mesmo após praticamente setenta anos dos bombardeios Aliados e da destruição de boa parte da cidade, alguns assuntos que permeiam as diversas obras realizadas sobre o ocorrido à “Florença do Elba” estão no centro de acaloradas discussões e debates historiográficos, que abordam pontos de vista distintos e muitas vezes diametralmente opostos. O número de vítimas fatais dos principais bombardeios sobre a cidade foi objeto de estudos e conclusões bastante diversas no decorrer das décadas seguintes ao fim da guerra; o debate que envolvia essa questão era tão intenso que após a reunificação alemã uma comissão de renomados historiadores ficou encarregada de, após pesquisas em documentos e fontes até então não estudadas, determinar um número com razoável precisão que pusesse fim às dúvidas30. O valor encontrado, vinte mil pessoas, é considerado plausível por diversos autores, mas estaria ainda assim aquém da quantidade real para especialistas no tema como Frederick Taylor, A. C. Grayling e Richard Evans31. As extensas análises sobre o número de vítimas se intensificaram após a publicação do livro de David Irving32, “The Destruction of Dresden”, em 1963: a obra, 29
Ibidem, p. 437. ROBERTS, Andrew. A Tempestade da Guerra. Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2012, p.524. 31 Esses três autores em particular creditam o valor de mortos à cifras maiores: Taylor afirma que um número provável estaria entre vinte e cinco mil a quarenta mil. TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo, Brasil: Editora Record, 2011, p. 506.; A. C. Grayling credita entre vinte e cinco mil e trinta mil cadáveres. GRAYLING, A.C.Among the Dead Cities The History and Moral Legacy of the WWII Bombing of Civilians in Germany and Japan.1ª Edição. Londres: Editora Walker & Company, 2007, p.118. Evans é taxativo no número de trinta e cinco mil pessoas. EVANS, Richard. O Terceiro Reich em Guerra – Como os nazistas conduziram a Alemanha da Conquista ao Desastre (1939-1945). Tradução de Lucia Brito. 1ª Edição. São Paulo: Editora Planeta, 2012. p.658. 32 O autor inglês, que consultou diversos documentos da administração nazista para escrever a obra, coloca o número de vítimas fatais dos bombardeios nos dois dias de fevereiro em cem mil: as fontes que baseavam esse número eram provenientes de relatórios dos funcionários do Partido Nazista em Dresden (IRVING, David. A Destruição de Dresden: A Anatomia de uma Tragédia. Tradução de Manoel 30
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
que se tornou um best-seller, foi por longo tempo considerada uma referência basilar para os estudos sobre o bombardeio da cidade, e seus dados foram pouco questionados, mesmo pela historiografia alemã do pós-guerra. Diversos movimentos neonazistas atualmente, mesmo com os dados de Irving tendo sido desmentidos pela historiografia recente, ainda utilizam a obra para a propaganda de sua causa: tentando justificar o absurdo número de mortos defendido por Irving, alguns adeptos da extrema direita alemã afirmam que devido ao intenso bombardeio muitos corpos desapareceram por completo, uma explicação totalmente desprovida de base científica33. O número de mortos nos ataques baseia-se em estudos sobre documentações, fontes e depoimentos; todavia, questões de caráter interpretativo estão atualmente no centro do debate historiográfico sobre o que ocorreu em Dresden. Uma das principais discussões sobre os ataques aéreos Aliados em Dresden envolvem a própria escolha da cidade como alvo. O livro de Irving disseminou a ideia de que a cidade saxã era totalmente desprovida de importância militar, o que acentuaria a barbárie causada por britânicos e estadunidenses: Em princípio de fevereiro de 1945, a Capital da Saxônia virtualmente uma cidade indefesa, embora o Comando Bombardeiros possa alegar ignorá-lo. Além disso, a cidade vimos, desprovida de importantes objetivos em potencial, estratégicos ou militares34.
ainda era Aliado de era, como industriais,
Essa teoria foi aceita por muito tempo dentro da historiografia acerca dos bombardeios sobre a Alemanha, visão ainda mais reforçada pelo fato de Dresden ter sido considerada por muitos séculos uma das “capitais culturais” da Europa; o próprio fato das campanhas de bombardeios aéreos Aliados não terem causado muitos danos Roiter. 1ª Edição. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1963, p.232.); esses documentos, contudo, devem ter tido um aumento nas cifras de mortos, para impressionar a administração central em Berlim em relação ao tamanho de perdas. Irving atualmente tem suas obras vistas com ressalvas por diversos historiadores, que o identificam como um autor de tendências pró-nazistas; segundo o estudioso dos bombardeios sobre a Alemanha, Luis Vergara Anderson, o autor inglês tinha interesses em ser o principal porta-voz de uma “lenda sobre o massacre de Dresden”, que o auxiliaria na disseminação do nazismo no pós-guerra, além de ocasionar uma autopromoção. Inclusive, Irving teria sido julgado por um tribunal austríaco em relação à acusação de ter afirmado que o Holocausto não existiu. ANDERSON, Luis Vergara. Historias revisionistas del bombardeo de Dresde. Revista Historia y Grafia, nº34, Cidade do México: 2010, p.18. 33 ROBERTS, Andrew. A Tempestade da Guerra. Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2012, p.524. 34 IRVING, David. A Destruição de Dresden: A Anatomia de uma Tragédia. Tradução de Manoel Roiter. 1ª Edição. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1963, p.63. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
à cidade antes de fevereiro de 1945 pareciam corroborar a visão de que a região era desinteressante do ponto de vista militar. Entretanto, as novas interpretações dadas aos acontecimentos em Dresden por autores mais recentes como Frederick Taylor e Richard Evans demonstraram que, ao contrário da visão defendida por David Irving, a capital da Saxônia tinha importância crucial no esforço de guerra alemão, principalmente nos últimos meses do conflito. Os principais entroncamentos ferroviários para a região leste do país tinham suas ramificações de trilhos passando pela cidade ou por seu entorno; tamanha era sua importância para o transporte de tropas, suprimentos e armas35, que aproximadamente doze mil trabalhadores escravos estrangeiros eram mantidos na cidade apenas para atuarem no sistema ferroviário36. As indústrias da região também eram de suma importância para a economia de guerra da Alemanha, produzindo instrumentos de precisão para tanques e aeronaves, além de outros equipamentos para a Wehrmacht; com a aproximação do front leste de batalha sobre a cidade a produção desses itens foi aumentada, e as ferrovias tinham de suportar um aumento na demanda por sua utilização37. As indústrias que antes da eclosão da guerra produziam bens para o consumo civil tornaram-se parte integrante da economia de guerra alemã, e sua especialização era difícil de ser encontrada em outras regiões do país. Um relatório feito por autoridades do Partido Nazista da cidade ainda em 1942 refere-se à “Florença do Elba” não apenas como: uma cidade cultural, com seus imortais monumentos arquitetônicos e paisagem única, ficará muito surpreso ao tomar conhecimento da ampla e versátil atividade industrial, com todas as suas variadas ramificações, que fazem de Dresden uma das principais regiões industriais do Reich 38.
35
Além da utilização dos trilhos da região de Dresden para esses fins, havia ainda o transporte de pessoas para os Campos de Concentração do leste da Europa sob controle dos nazistas, principalmente para a Polônia. 36 TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011, p 200. 37 Estatísticas sobre o uso do sistema ferroviário de Dresden às vésperas dos ataques aéreos de fevereiro de 1945 dão conta de que vinte e oito trens militares passavam pela cidade por dia, em direção à Frente Leste, transportando cerca de vinte mil homens. Ibidem, p.201. Além disso, o fluxo de refugiados tentando entrar na Saxônia fazia com que os vagões que chegavam à cidade estivessem abarrotados de pessoas praticamente sem rumo, com o único objetivo de fugir do Exército Vermelho em rápido avanço Alemanha adentro. 38 Ibidem, p.185. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
As constatações desse relatório se coadunam com a tese defendida pelo autor Richard Evans, de que “a cidade barroca às margens do Elba (...) não era apenas um monumento cultural, mas também um importante centro de comunicações e de produção de armamentos”39. O Sistema de Inteligência dos Aliados possuía informações sobre as atividades fabris da cidade muito antes de 1945, mas as impossibilidades técnicas restringiam a possibilidade de que bombardeios aéreos de envergadura fossem realizados sobre Dresden; as condições climáticas adversas da região para a navegação aérea também contribuíram para que a capital da Saxônia fosse considerada um alvo promissor, mas de difícil execução. A redução do poder de combate da Luftwaffe, aliada à conquista de aeródromos na França após o “Dia D” e as melhorias nas condições técnicas das aeronaves e radares deram novas possibilidades aos Aliados, em relação ao leste da Alemanha. Ao contrário das ideias defendidas por David Irving, que influenciaram muitos estudiosos do assunto nas décadas posteriores, Dresden possuía importância militar significativa no contexto da economia de guerra alemã. A historiografia e a bibliografia correspondente em relação à campanha de bombardeios aéreos sobre a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial tangenciam constantemente um assunto que em Dresden se torna um dos pontos de maior debate e estudo: afinal, os bombardeios foram úteis para a causa Aliada? Caso o tenham sido, é moralmente defensável causar tamanha destruição e mortes para se conseguir uma vitória definitiva? As discussões historiográficas sobre esses assuntos vêm tendo um importante campo de análises nas últimas décadas, principalmente na Grã-Bretanha, EUA e, com mais ressalvas, na Alemanha40. O campo acadêmico sobre a Segunda Guerra Mundial tem na questão dos bombardeios aéreos uma de suas principais vertentes de pesquisa atuais, com resultados e ideias diferentes entre si, mas que enriquecem o debate sobre o assunto. Autores como Andrew Roberts, Frederick Taylor e Richard Evans são taxativos em afirmar que a ofensiva aérea sobre 39
EVANS, Richard. O Terceiro Reich em Guerra – Como os nazistas conduziram a Alemanha da Conquista ao Desastre (1939-1945). Tradução de Lucia Brito. 1ª Edição. São Paulo: Editora Planeta, 2012, p.656. 40 Autores como Jörg Friedrich apontam a temática dos bombardeios aéreos sobre a Alemanha como um dos maiores tabus sociais existentes no país atualmente. Aos poucos, contudo, a temática vem sendo tratada nos meios acadêmicos, através de trabalhos da publicação de livros e artigos; os meios de comunicação vêm trazendo o assunto para uma discussão pública, além de museus e centros culturais incluírem a temática em suas exposições e mostras. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
a Alemanha não foi o único fator decisivo para levar o Terceiro Reich á derrota final, mas contribuiu e muito para que esse fato pudesse ocorrer. A violência utilizada para isso, muitas vezes sobre uma população civil que praticamente encontrava-se indefesa, foi alvo de severas críticas, até mesmo dentro da RAF e da USAAF: o historiador Jörg Friedrich argumenta que, apesar da demonstração de força dos bombardeios, eles teriam um papel somente de assistência à invasão terrestre do continente, pois esta sim seria decisiva para a vitória Aliada. O sofrimento causado sobre os civis não tinha nenhum tipo de resultado militar palpável, o que ficou comprovado na encarniçada resistência dos alemães até o fim da guerra, mesmo com suas cidades destruídas e milhões de mortos41. Uma das ideias mais controversas sobre o resultado dos bombardeios sobre as cidades da Alemanha é defendida pelo autor britânico A. C. Grayling: as investidas contra o espaço aéreo alemão, segundo ele, seriam do ponto de vista moral, inaceitáveis, até porque no caso do momento do bombardeio de Dresden em particular, a vitória Aliada era uma certeza. Ainda segundo Grayling, o massacre perpetrado pelos bombardeios somente não se tornou um problema maior para os Aliados, porque os Campos de Concentração nazistas foram encontrados42. Essa comparação implícita entre os bombardeios Aliados e a Solução Final nazista é criticada por Max Hastings, que concorda com a visão de que a destruição causada por via aérea poderia ter sido evitada (ou mesmo diminuída), mas uma comparação entre isso e a hedionda perseguição aos judeus e outros segmentos sociais é em engano, mesmo reconhecendo que: Não são poucos os críticos alemães, e até anglo-americanos, que veem uma equivalência moral entre a perversidade com que os nazistas massacravam inocentes, especialmente judeus, e a perversidade com que os Aliados incendiavam cidades. Parece um equívoco43.
Em relação ao caso específico do bombardeio sobre Dresden, tanto os historiadores anglo-americanos quanto os alemães tem opiniões convergentes: por mais que a cidade tivesse importância estratégica para a Alemanha, os ataques aéreos 41
FRIEDRICH, Jörg. O Incêndio - Como os Aliados destruíram as cidades alemãs. Tradução de Roberto Rodrigues. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p.115. 42 GRAYLING, A. C. Among the Dead Cities The History and Moral Legacy of the WWII Bombing of Civilians in Germany and Japan.1ª Edição. Londres: Editora Walker & Company, 2007, p.43. 43 HASTINGS, Max. Inferno: O Mundo em Guerra - 1939-1945. Tradução de Berilo Vargas. 1ª Edição Rio de Janeiro, Brasil: Editora Intrínseca, 2011, p. 413. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
realizados poderiam ter poupado a maioria da população civil; todavia, baseado nos princípios da “Doutrina Trenchard”44, o objetivo era exatamente o oposto. Um dos maiores especialistas alemães sobre a história dos bombardeios, Olaf Groehler, utilizado por Taylor em seu livro, faz um balanço com bastante lucidez sobre o que ocorreu à Dresden: Com respeito à guerra aérea, o bombardeio de Dresden destaca-se da sequencia de incursões aéreas contínuas e pesadas pela sua escala destrutiva. Alimentado por boatos e lendas, ele espalha-se como uma onda de choque por toda a Alemanha. O efeito destrutivo do ataque à Dresden estilhaçou o molde do que se tornara costumeiro, de toda a experiência anterior. Mas, se analisarmos os documentos de planejamento dos ataques contra cidades realizados no começo de 1945, temos que reconhecer que em muitos casos eles assemelham-se ao estilo do ataque contra Dresden, até os mínimos detalhes. Frequentemente era apenas a situação climática favorável ou desfavorável, ou o modo como a cidade era construída (incluindo seus abrigos), ou o quanto de experiência a população adquirira durante os anos de guerra que determinava a extensão final de obliteração, destruição e morte45.
Os recursos empreendidos pelos Aliados para o bombardeio das cidades alemãs foram sendo cada vez mais elaborados, com os “turbilhões de fogo” tornandose mais corriqueiros e destrutivos. Dresden, apesar da violência de sua destruição, foi mais um ataque de rotina da RAF e da USAAF, não tendo nenhuma característica excepcional de “maldade” ou “revanchismo”: a tecnologia envolvida nos ataques aéreos em 1945 era tão avançada na época que qualquer incursão com um mínimo de condições favoráveis poderia tornar o local atingido em um monte de escombros. A questão da moralidade desses ataques é extremamente variável, pois se trata de um tema subjetivo e impalpável, onde autores e vítimas raramente concordam. Definições do que ocorreu à Dresden, mesmo nos dias atuais, não fogem muito de nomenclaturas como “terror”, “barbárie” e ”caos”, com as motivações e consequências morais dos envolvidos não justificando os resultados alcançados, nem o sofrimento dos civis e a destruição de muitas obras artísticas com valor inestimável para a cultura. O objetivo dos Aliados era claro e inconteste: levar à derrota total o Terceiro Reich e seu líder, independente dos custos sofridos e aplicados; cidades como 44
Hugh Trenchard, Marechal da RAF, defendia a ideia da quebra da resistência de um país inimigo através da destruição de suas cidades, por maciças investidas aéreas; a chamada “Doutrina Trenchard”, foi a raison d´être do Comando de Bombardeiros da Grã-Bretanha após a Batalha da Inglaterra. 45 TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011, p. 463 apud GROEHLER, Olaf. Bombenkrieg gegen Deutschland. 3ª Edição. Berlim: 1990, p.392. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
a capital da Saxônia, Hamburgo, Berlim, dentre outras, tiveram de pagar um alto custo para que os nazistas fossem alijados do poder. Os bombardeios aéreos sobre as cidades alemãs podem ter sido imorais sob alguns aspectos, mas não foram inúteis. Segundo Frederick Taylor, há poucas dúvidas que esses ataques estratégicos contribuíram sobremaneira para a derrocada alemã na guerra46; tal opinião é corroborada por Andrew Roberts, que ainda acrescenta como a combalida Luftwaffe teve de envidar custosos esforços numa tentativa de conter a ameaça sobre o espaço aéreo alemão, desguarnecendo regiões que os Aliados tomaram posteriormente, e que aceleraram o fim do conflito47. A “Florença do Elba”, assim como diversas outras cidades, foi atacada impiedosamente tendo por intuito dificultar o sistema produtivo e de transportes alemão: as mortes e o sofrimento causados aos civis foram consequências inerentes à condução da guerra aérea; o caso de Dresden foi extremamente bem sucedido, e demonstrou ao mundo como uma combinação de fatores pode causar um massacre de proporções indescritíveis, mesmo não havendo nenhum componente atômico envolvido. O contexto em que os acontecimentos de 13 e 14 de fevereiro se inseriram demonstram a enormidade do conflito pelo qual o mundo passou por quase seis anos: uma carnificina de difícil compreensão e aceitação. Dresden tornou-se um dos símbolos de uma guerra extremamente violenta e implacável, onde não somente a subjugação do inimigo importava, mas também, se possível, sua completa aniquilação.
Bibliografia
ANDERSON, Luis Vergara. Historias revisionistas del bombardeo de Dresden. Revista Historia y Grafia, nº34, pp. 207-228, Departamento de Historia, Cidade do México, México: 2010. BEEVOR, Antony. Berlim 1945: A Queda. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2004. EVANS, Richard. O Terceiro Reich em Guerra – Como os nazistas conduziram a Alemanha da Conquista ao Desastre (1939-1945). Tradução de Lucia Brito. 1ª Edição. São Paulo: Editora Planeta, 2012. 46
Ibidem, p.471. ROBERTS, Andrew. A Tempestade da Guerra. Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. 1ª Edição São Paulo: Editora Record, 2012. p.527. 47
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
FRIEDRICH, Jörg. O Incêndio - Como os Aliados destruíram as cidades alemãs. Tradução de Roberto Rodrigues. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008. GRAYLING, A.C. Among the Dead Cities The History and Moral Legacy of the WWII Bombing of Civilians in Germany and Japan.1ª Edição. Londres: Editora Walker & Company, 2007. HASTINGS, Max. Inferno: O Mundo em Guerra - 1939-1945. Tradução de Berilo Vargas. 1ª Edição Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2011. IRVING, David. A Destruição de Dresden: A Anatomia de uma Tragédia. Tradução de Manoel Roiter. 1ª Edição. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1963. ROBERTS, Andrew. A Tempestade da Guerra. Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2012. TAYLOR, Frederick. Dresden: Terça Feira, 13 de Fevereiro de 1945. Tradução de Vitor Paolozzi. 1ª Edição. São Paulo: Editora Record, 2011.
Artigo recebido em: 02 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 22 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 48-69, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
ENTRE RISOS E CRÍTICAS: Representações do Brasil através das Chanchadas Oscar José de Paula Neto RESUMO: O presente artigo examina o potencial crítico dos filmes de comédia, musicados ou não, que ficaram pejorativamente conhecidos como chanchadas. Tais filmes que futuramente acabaram por se tornar um gênero mais independente e autônomo em relação a outras produções humorísticas; foram, então, “resgatados” como um dos momentos mais importantes da cinematografia brasileira. A partir do uso de uma linguagem coloquial, sem pretensões ideológicas ou engajamento, as chanchadas trouxeram não só aspectos culturais de uma dada realidade histórica, mas críticas sociais e políticas implícitas, ou mesmo bastante explícitas, acerca da sociedade brasileira entre as décadas de 1940 e início da década de 1960. Deste modo, nos propomos a refletir sobre a natureza questionadora ou não das chanchadas e sua eventual contribuição para a historiografia, principalmente durante a década de 1950, momento de ápice destas produções cinematográficas. PALAVRAS-CHAVE: Cinema Brasileiro; chanchada; humor
BETWEEN LAUGHTER AND CRITICS: Representations of Brazil trhough Chanchada ABSTRACT: This arcticle examine the critical potential of the comedy movies, some of them musicals, that became derogatively known like "chanchadas". In the Forward in time, such movies have turned into a independent and autonomous genre in relation to other humorous productions; then, they were recovered like one of the most important moments of the Brazilian cinematography. From the usage of a colloquial language, with no ideological or engaged pretension, the "chanchadas" brought not only cultural aspects of that historical reality, but social and political reviews, implicated or explicated, about the Brazilian society between 1940 and the beginning of the sixties. Therefore, we propose a reflection about the questioning nature of the "chanchadas" and their eventual contributions to historiography, mostly in the 1950s, the apex moment of these film productions. KEYWORDS: Brazilian cinema; chanchada; humor.
***
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, orientado pelo Prof. Dr. Orlando de Barros. Bolsista CAPES. E-mail: oscarjpneto@gmail.com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Introdução
E
m 1975, Carlos Manga dirigiu o documentário Assim era a Atlântida, que foi um importante dinamizador no processo de valorização que a chanchada passava a tomar a partir daqueles anos. O documentário
traz trechos dos filmes produzidos pela Atlântida Cinematográfica recémrestaurados, intercalados por depoimentos de atrizes e atores rememorando suas trajetórias na companhia carioca. O documentário dialogou diretamente com a crítica que afirmava que as comédias cariocas eram o retrato mais fiel do subdesenvolvimento e trouxe ao debate acerca das chanchadas a questão muito negligenciada pelos pesquisadores até aquele momento, que era o “gosto estético do grande público”. O crítico e jornalista Sérgio Augusto afirma que em nenhum outro momento o cinema brasileiro se relacionou tão intensa e carinhosamente com tal público, assim como acontecia nos tempos em que Oscarito e Grande Otelo formavam a “dupla do barulho” e o estúdio da Atlântida era tido como a “Metro tropical” apesar de suas precariedades1. Podemos apontar durante todo o filme o tom nostálgico por uma época idealizada – não só do momento em que estes artistas eram estrelas, mas de um momento histórico tido como ingênuo e feliz. As chanchadas, portanto, seriam o símbolo dos tempos áureos que representaram a década de 1950, momento de euforia e otimismo da sociedade brasileira, marcada pelo desenvolvimento e modernização do país, assim como da efetivação democrática. Em Assim era a Atlântida, dois depoimentos são bastante representativos para ilustrar a idealização do período: no primeiro, o ator José Lewgoy afirma que as chanchadas eram o reflexo de uma época feliz, em que o bem sempre vencia o mal; e de Grande Otelo, que em tom pesaroso e saudosista, afirma que a Atlântida era o símbolo de uma “época que não volta mais”, na qual o povo via nas chanchadas a ingenuidade e inocência que também os perpassava. Dois fatores podem ser sinalizados como instituidores dessa idealização da chanchada e do período: o primeiro, de ordem estético-artística, e o outro, político. O 1
AUGUSTO, Sérgio. Este Mundo é um Pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 14. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
primeiro pode ser explicado pelo advento e sucesso das pornochanchadas e sua alta aceitação pelo público brasileiro na década de 1970. Num processo muito similar ao ocorrida com as chanchadas durante a década de 1950, alguns setores da crítica e das alas mais conservadoras da sociedade clamavam pela superação das comédias eróticas em prol de um cinema que nunca é definido em si, mas que se caracteriza por não ser pornochanchada2. Dessa forma, as chanchadas antes desprezadas por sua “vulgaridade” e ausência de teor estético, são tidas a partir desse momento como algo superior às comédias eróticas. Além disso, pouco a pouco, a própria produção cinematográfica consonante com o gosto estético intelectualizado passou a incorporar elementos das chanchadas em suas produções. Podemos citar os filmes Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Quando o carnaval chegar (Carlos Diegues, 1972), como tentativas de confraternização do Cinema Novo com o gênero anteriormente desprezado pela maioria dos críticos e intelectuais. Por outro lado, temos o fato da sociedade brasileira ter sofrido grandes transformações entre os anos 1964-1979, e o otimismo marcante desde anos 1950 já ter se esvaziado, ocasionado pelo regime autoritário civil-militar. Norbert Elias ao analisar a obra de Antoine Watteau, demonstra que o quadro Embarque para Cítera,foi repensado conforme as transformações políticas pós-Revolução Francesa e desse modo seu sentido foi alterado por parte dos críticos que antes o desprezavam como resquício de uma época ultrapassada e frívola, dotando-o de características que o retiraram do ostracismo e o transformaram no símbolo de um passado idealizado3. De maneira semelhante, este é o percurso das chanchadas na historiografia brasileira do cinema. A sociedade pós-golpe militar certamente via no humor das chanchadas uma atmosfera que já não era mais possível atingir naquele momento: os filmes que antes eram desprezados pela crítica, passaram a representar o saudoso espírito de uma época feliz e otimista.
2
BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.206. 3 ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pp.34-36. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Pouco a pouco também a historiografia passou a perceber naqueles filmes a mais profunda realidade social, cultural e industrial do Brasil4, e as chanchadas passaram a sinalizar o imaginário de todo um momento histórico – principalmente das classes populares. A partir de uma linguagem coloquial, sem pretensões ideológicas ou engajadas, as chanchadas trouxeram não só aspectos culturais de uma dada realidade histórica, mas críticas sociais e políticas implícitas, ou mesmo bastante explícitas, acerca da sociedade brasileira entre as décadas de 1940 e início da década de 1960. Deste modo, nos propomos a discutir o não tão ingênuo lado das chanchadas e sua contribuição para a historiografia.
A década de 1950 no Brasil e as chanchadas
João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais afirmam que entre 1950 e 1979, havia entre os brasileiros a sensação de que faltavam poucos passos para finalmente nos tornarmos uma nação moderna, pronta para dar início a uma nova civilização nos trópicos5. Desde a década de 1940, o Brasil passava por um momento importante em seu processo de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados. Era o início da construção de uma economia moderna, que incorporava os padrões de produção e de consumo em sintonia com os países desenvolvidos. As palavras chaves desse período são industrialização, urbanização e tecnologia, e quase todos os grupos sociais são tomados pelo espírito ufanista da época, em prol do projeto nacional-desenvolvimentista6. O país estava afinado com o processo que estava transformando os países mais desenvolvidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, responsável pelo tom de mudança e otimismo que marcava a sociedade brasileira, tal como é indicado por Eric Hobsbawm: Durante os anos 50, sobretudo nos países desenvolvidos, cada vez mais prósperos, muita gente sabia que os tempos tinham de fato melhorado, 4
DIAS, Rosangela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1993, p.10. 5 MELLO, João Manuel Cardoso e NOVAIS, Fernando A.. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCS, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil, Volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.560. 6 VELLOSO, Monica Pimenta. “A dupla face de Jano: romantismo e populismo”. In: Angela de Castro Gomes (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 172. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
especialmente se suas lembranças alcançavam os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. [...] O mundo, em particular o mundo do capitalismo desenvolvido, passara por uma fase excepcional de sua história; talvez uma fase única. Buscaram nomes para descrevê-la: “os trinta anos gloriosos” dos franceses, a Era de Ouro de um quarto de século dos angloamericanos. [...] O dourado fulgiu com mais brilho contra o pano de fundo baço e escuro das posteriores Décadas de Crise [...]. O mundo industrial se expandia por toda à parte; nas regiões capitalistas e socialistas e no “Terceiro Mundo” 7.
Na década de 1950, principalmente durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek, o Brasil também conheceu os “anos dourados”, momento de grande otimismo e de modernização do país, propiciado pelo ímpeto desenvolvimentista. Segundo a historiadora Ângela de Castro Gomes, não é fortuito que “a memória coletiva venha consagrando a identificação desse tempo com a expressão os anos dourados” 8: além dos fatores econômicos, JK dirigiu o governo mais dinâmico e democrático da história republicana, em que se teve a resistência das instituições democráticas, portanto, o funcionamento dos mecanismos eleitorais, a forte atuação dos partidos políticos e do Congresso, e ainda a presença do Judiciário e do papel do Executivo9. Foi o presidente que mobilizou a esperança como recurso de poder e propiciou o sentimento de que o país estava passando por mudanças cruciais que tornariam o “novo” possível. Era a chance de se desvencilhar da imagem de um país agrário e atrasado e se aproximar da realidade atraente dos países desenvolvidos. A esse respeito, a ânsia pelo novo extrapolou as esferas econômicas e políticas e se refletiu também nos campos das artes e da cultura. Tem-se início o “tempo cultural acelerado”, não só propiciado pela abertura política, mas também pela formação de um público urbano e a emergência de uma cultura de massa. No campo das artes, eram metas de mobilização e interesse unânime entre os intelectuais procurar saídas para o subdesenvolvimento, integrar as camadas populares, criar uma arte de acordo com a “nova” realidade na qual se encontravam. Buscavam-se novas formas de expressões artísticas capazes de integrar cultura, modernidade e desenvolvimento10.
7
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp.253-256. 8 GOMES, Ângela de Castro (Org.). Brasil de JK. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002, p.11. 9 AMORIM, Rose Mary Guerra. O governo JK e a revista Manchete: a criação do mito dos anos dourados. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais, Fundação Getúlio Vargas, 2008, 29-30. 10 VELLOSO, Monica Pimenta. Op. Cit., pp.172-173. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Assim, surgem tentativas de modernização nos mais diversos setores artísticos: na música, no teatro, nas artes plásticas, na poesia, no cinema. Percebe-se o aumento quantitativo e qualitativo de debates e discussões em torno destas questões, muitas das vezes difundidos nos meios de comunicação de grande alcance, como nos jornais e diversos outros periódicos temáticos que surgiram ao longo da década. Cabe destacar que é na década de 1950, que se tem a criação de suplementos literários ou de espaços ligados à cultura através de seções específicas, em quase todos os grandes jornais diários. Nestes suplementos havia a coexistência tanto da divulgação das ideias conservadoras, quanto espaço aberto para as vanguardas artísticas e culturais, que possibilitava identificar neles a introdução de novas ideias, temas e linguagens, isto é, de tendências que iriam dominar as décadas seguintes11. Os suplementos do Jornal do Brasil e do Estado de São Paulo se destacaram por conta da contribuição de intelectuais que estavam se fazendo reconhecer naquele período. O periódico paulista, inclusive, tinha um forte acento acadêmico, devido a sua organização chefiada por Antonio Cândido. E desta forma, no final da década de 1950 e início de 1960, que todo esse debate levará a elaboração do Teatro do Oprimido, da poesia concreta e do Cinema Novo, ou seja, resultados das discussões do futuro do país através das vanguardas, preocupadas em criar no público médio popular uma consciência política e social. Porém, com o advento de movimentos, obras e artistas de vanguarda sintonizados com as novas tendências e ao gosto dos críticos, havia a coexistência nem sempre pacífica com objetos culturais mais afinados com o gosto das classes populares. Durante muito tempo, tais objetos não foram percebidos como fundamentais para se entender a visão de mundo desta parcela da sociedade, e tendiam a serem excluídas em prol do gosto estético da classe dominante – excluídas pelo menos da academia e dos manuais de arte. Pierre Bourdieu indica que existe certa hostilidade das classes populares e das frações menos ricas em capital cultural das classes médias em relação a qualquer espécie de experimentação formal em arte. Isso se refere aos diversos setores artísticos e culturais como, por exemplo, no teatro
11
ABREU, Alzira. “Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 1950”. In: _______ (Org). Imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 1950. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p.19. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
ou no cinema, em que o público popular diverte-se com intrigas orientadas, do ponto de vista lógico e cronológico, para um happy end. Enquanto isso, os partilhantes dos cânones artísticos rejeitam “o que é genérico, ou seja, comum, ‘fácil’ e imediatamente acessível”
12.
É nesse quadro que podemos encontrar o gênero da chanchada: ele
possuía larga aceitação popular, enquanto era hostilizada pela maioria dos críticos e intelectuais. As chanchadas foram o sustentáculo para o funcionamento da indústria cinematográfica brasileira durante a década de 1940 e na década 1950 atingiu sua fase mais produtiva e qualitativa. Tais filmes tinham como influência o teatro de revista, o rádio e diversos outros elementos sem grande prestígio cultural. Em 1941, foi inaugurada a Atlântida Cinematográfica, a principal produtora das chanchadas, que funcionou até 1962, sendo responsável pela produção de 62 filmes de ficção e 20 cinejornais. A Atlântida encontrou no gênero a melhor forma de manter uma produção contínua, e com garantia de público. O estúdio produziu alguns “filmes sérios”, como A Sombra da Outra (Watson Macedo, 1950) e Amei um bicheiro (Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952), que fizeram bastante sucesso entre a crítica e o público, mas foi com a chanchada que ela manteve sua produção em continuidade. Com efeito, foi graças à aliança com Luis Severiano Ribeiro, dono da maior cadeia de cinemas do Brasil, que o estúdio alcançou o seu apogeu durante a década de 1950. O empresário tornou-se o sócio majoritário da Atlântida e garantiu a exibição dos filmes, independentes de sua qualidade, para atender a lei de obrigatoriedade do cinema nacional. Além disso, era um negócio lucrativo, devido à boa aceitação do público. Pela primeira vez desde a Bela Época do cinema brasileiro (primeira década do século XX), os filmes produzidos aqui tiveram domínio sobre o difícil trinômio produção-distribuição-exibição13. Embora a Atlântida tenha sido a principal produtora de chanchadas, não foi a única, pois outros estúdios, tal como o Cinédia, o Herbert Richers e o Maristela, e também produziram chanchadas sem a mesma qualidade que as do estúdio carioca.
12
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk Editora, 2011, p. 35. LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo: Perseu Abramo, 2005, pp.71-72. 13
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
De acordo com o contexto da época, a industrialização e modernização do cinema brasileiro deveriam ser alcançadas, mas a Atlântida e nem suas chanchadas correspondiam a isso. Havia entre os críticos, intelectuais e profissionais cinematográficos da época uma busca pela renovação da situação de atraso e subdesenvolvimento que estava vinculada a realidade do cinema brasileiro. Era preciso ser moderno: foi ainda na década de 1950, que foi produzido o primeiro filme colorido brasileiro, mesmo que não houvesse ainda no Brasil, a possibilidade técnica de realizá-lo. Em 1953 foi lançado O destino em apuros, dirigido por Mário Civelli, que marcou a estreia do estúdio paulista Multifilmes, sendo que este passou por inúmeros problemas técnicos para ficar pronto. Por conta da inexistência no Brasil de tecnologia que fosse capaz de gravar em tecnicolor, o filme foi quase que inteiramente realizado nos Estados Unidos14. Aliás, o cinema paulista, principalmente as produções do estúdio Vera Cruz, que por algum tempo conseguiu trazer ânimo aos críticos, que desprezavam a falta de qualidade do cinema carioca. O campo cinematográfico esperava do estúdio, fruto do investimento da classe intelectualizada paulista, uma resposta para que seus anseios cinéfilos fossem atendidos. O cinema em São Paulo foi tido por seus idealizadores como manifestação cultural e artística, ganhando o status de arte que o colocava em posição equivalente as artes plásticas, ao teatro e a literatura15. Porém, por falta de tato para a real situação do cinema brasileiro, logo os estúdios paulistas malograram e suas atividades foram encerradas em pouco tempo. O crítico do Jornal do Brasil, Clóvis Castro Ramon, em relação à crise dos estúdios paulistas lamenta seu insucesso: A Vera á Cruz, lá de são Paulo, lá está em situação de indigente. [...] Lastimável situação, sem dúvida, para uma organização que teve a incumbência de projetar o cinema nacional além-fronteira, produzindo ‘O cangaceiro’ e ‘Sinhá Moça’ tirando-nos da ridícula situação de cineminha de carnaval. [...] Esta é situação do cinema brasileiro, indigente, vítima da incompetência. Ah, mas encontrou um óleo canforado para doentes: ‘Campanha para a sobrevivência do cinema brasileiro’. Os que fizeram aqueles dois comunistíssimos ‘Congressos’ de cinema estão à testa da iniciativa salvadora...16.
14
Jornal do Brasil, 05/09/1953, p. 9. CATANI, Afrânio. “A aventura industrial e o cinema paulista”. In: RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p. 10. 16 Jornal do Brasil, 26/03/1954, p.10. 15
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Em contraposição a crise que abalou as tentativas industriais e dispendiosas do cinema paulista, a Atlântida prosseguiu durante a década de 1950 conseguindo resultados geralmente positivos. No entanto, os especialistas cinematográficos não compreenderam em sua maioria, o papel desempenhado pelas chanchadas no quadro geral da situação do cinema brasileiro, e as consideravam como culpadas de seu entrave. Os filmes foram classificados como “sem valor”, “vulgar”, “desleixados” e submissos ao “apelo popular”. Todos esses atributos acabaram por marcar e deformar muito do significado das chanchadas para a história do cinema brasileiro, que ao mesmo tempo a inclui em seu panteão dado sua forte ligação com o público, a exclui devido a não correspondência com os anseios da crítica da época e nem de décadas posteriores. Tais indicativos aparecem como demarcadores da representação das chanchadas na prática dos pesquisadores e estudiosos do cinema brasileiro e até mesmo entre os seus defensores. Os críticos pós-1970, como Jean-Claude Bernardet e João Luiz Vieira influenciados pelos postulados de Paulo Emilio Salles Gomes, com juízos de valores calcados na teoria do subdesenvolvimento, indicavam que as chanchadas eram conscientes de sua própria inferioridade, e dessa maneira a paródia e a sátira contida nos filmes eram sintomas dessa consciência. Assim, o conteúdo dos filmes geralmente foi ignorado por conta de sua suposta falta de qualidade, e por isso, os críticos em geral não perceberam as diversas críticas ao sistema que estavam presentes nas chanchadas. Mesmo que tais filmes não fossem engajados politicamente e nem tinham a intenção de tecer longas e complicadas análises da conjuntura política, social ou cultural, várias “alfinetadas” eram feitas contra os problemas do cotidiano: a carestia dos alimentos, os baixos salários, o mau funcionamento do serviço público, a corrupção dos governos, etc..
O Brasil através da lente crítica das chanchadas
As chanchadas traziam em seus roteiros a representação de Brasil mais vinculado à realidade das classes populares por meio dos esforços das classes abastadas, responsáveis pela produção dos filmes. Ainda assim, os filmes traziam muito da visão de mundo das classes de média e baixa renda, o que propiciou a Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
criação do vínculo de cumplicidade do público com os filmes. Afrânio Catani e José de Melo Souza afirmam que o público jovem e as camadas populares garantiam o sucesso dos filmes, pois encontravam nelas o que não estava presente nos filmes estrangeiros: o seu cotidiano, maneiras de falar e se comportar, por meio das anedotas tipicamente cariocas apresentadas nas películas17. As chanchadas serviram como propagandista do modo de vida dos habitantes do Rio de Janeiro e certamente alimentou a imaginação do público de outras cidades sobre a cidade, aonde os filmes eram exibidos pelo país. A vida dos cassinos, dos clubes e das praias cariocas era exaltada e estavam presentes em praticamente todos os filmes. Porém, os problemas que afligiam a sociedade brasileira, não apenas a carioca, também estavam presentes em número considerável nos filmes. Os personagens das chanchadas foram muitas vezes migrantes do interior para a ainda capital do país – assim como também o seu público. O cinema era um lazer barato e de fácil acesso para a população das cidades, que cresceu vertiginosamente após a intensificação do êxodo populacional para os grandes centros urbanos. De certa forma, o público da chanchada sofreu com o mesmo caráter negativo das análises do fenômeno populista: seu público por muitas vezes foi acusada de destruir o cinema brasileiro por causa de seu apoio a tais filmes. Catani e Melo Souza afirmam que o êxodo rural foi responsável por constituir o “mercado potencial dos filmes da chanchada”18. Na crítica ao filme Osso, amor e papagaios (Carlos Alberto de Souza Barros, 1957), o crítico Clóvis de Castro Ramon afirma que: No seu interesse de manter-se acima do nível médio de nossa produção, ‘Osso, amor e papagaios’, por certo há de chocar a este mau público que vai a plateia endeusar oscaritices e outros vícios que tanto tem entravado a boa marcha do cinema brasileiro, impedindo, por conseguinte, o expurgo de maus profissionais que não conseguem fazer nada sem a ajuda de uma lei qualquer.19.
Assim, ora público popular era responsável por desviar o cinema brasileiro do rumo da qualidade necessária, pois eram os principais consumidores do “mau cinema”, ora era vítima da ação de capitalistas com total irresponsabilidade éticoestética, apenas com uma vontade firme de fazer dinheiro rápido. Por outro lado, 17
CATANI, Afrânio M. e SOUZA, José I. de Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 68. 18 Idem, p.70. 19 Jornal do Brasil, 14/06/1957, p. 10. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
também havia o esforço de muitos críticos e intelectuais que defendiam a necessidade de “criar no público um clima de consciência mais generalizada para com o que seja o cinema e para as possibilidades de um tal campo de atividades, tanto no diz respeito ao setor artístico, ao educativo ou como ao do entretenimento”20. No entanto, os críticos não foram capazes de perceber naquele momento o que significam aqueles filmes tanto para o seu público, quanto para a leitura de mundo que ali estava presente. Como afirmou Marc Ferro, o documento – neste caso, o filme – tem uma riqueza de significação que não é percebida no momento em que ele é feito21. As chanchadas, julgadas como divertimento frívolo e sem conscientização, eram o depositário de insatisfações e críticas contra o sistema. Mesmo sem um engajamento claro, e se utilizando do humor, da sátira e da paródia, foram responsáveis por trazer alguma reflexão a seu público, mesmo que de maneira descompromissada. À guisa de exemplo nos deteremos na análise da chanchada Esse milhão é meu (Carlos Manga, 1958), que traz algumas das críticas que estavam também incluídas em outros filmes do gênero. Já nos créditos iniciais do filme, surgem numa animação vários cartazes de candidatos a deputados num muro e naquele que apresenta o diretor Carlos Manga, podemos ler a seguinte provocação as falsas promessas dos candidatos: “O que diz que faz e faz mesmo”. A trama de Esse milhão é meu se refere às aventuras do funcionário público Felismino Tinoco (Oscarito) após ser premiado com um cheque de um milhão de cruzeiros por conta de sua presença diária na repartição em que trabalha. Felismino mora com a mulher na casa dos pais dela, e diariamente é acordado em meio a constantes reclamações de sua esposa, que exige um nível de vida melhor. O diálogo inicial entre os dois personagens já abre o filme com a crítica a corrupção do funcionalismo público, expressa na fala da mulher que diz que o marido é “Uma vergonha para a classe”, por conta de sua honestidade em não tirar proveito do dinheiro público. O filme traz inúmeras críticas à qualidade do funcionalismo público, a desonestidade de seus funcionários e da péssima qualidade dos transportes públicos. O personagem de Oscarito numa das sequências após aceitar a carona oferecida pelo 20 21
Jornal do Brasil, 04/08/1957, p. 10. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 88. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
namorado de sua sobrinha, se ente aliviado e afirma que só assim vai “chegar rápido e viajar confortavelmente”. Os jovens, porém, o deixam num ponto de ônibus mais próximo de seu trabalho e Felismino se depara com uma enorme fila para entrar no transporte que deveria não passar por ali há algum tempo, devido ao tamanho da fila. Quando Felismino chega ao trabalho, o seu chefe é acordado por seu funcionário para que agracie o homem com seu prêmio por sua assiduidade exemplar: nenhuma falta ao trabalho naquela semana. Um dos personagens ao parabenizar o funcionário exemplar fala que o colega “é um orgulho da classe” e que “agora esse país vai pra frente”. Para fechar a sequência da maneira mais sarcástica possível, o chefe da repartição que informa a seu subordinado que viajará e ficará fora por um mês, assinará a folha de ponto mesmo assim, e diz em tom pomposo e afetado que espera “que a reserva moral da nação, cada um se mire nesse exemplo [de Felismino], e espera que cada umcumpra com o seu dever”. Um fato curioso sobre Esse milhão é meu, é que o filme foi censurado antes de sua estreia, por conta de uma cena exibida no trailer antes de seu lançamento. Em nota lançada no Jornal do Brasil sob o título “Filme Nacional censurado”, foi informado que o trecho em que se via o personagem de Oscarito ser surpreendido pelo personagem de Augusto César, vilão da trama, gritava e levava a plateia ao riso: “Não faça isso, Juscelino!”. Uma semana depois quando o filme foi lançado tal plano já não mais constava e a cena foi apresentada de maneira imperfeita por causa da censura. Finalizando a nota, o jornal informava que “Juscelino não é nome de cafageste [sic]” 22. No dia posterior o Jornal do Brasil divulgou outra nota acerca do assunto: A respeito do tópico dado ontem nesta coluna de que a censura tinha cortado um plano do filme nacional, ‘Esse milhão é meu’, pela existência de um personagem na história com o mesmo nome de batismo do Presidente da República, fomos informados de que o corte em apreço não foi medida da censura, mas um pedido do próprio Palácio do Catete, para que a cena fosse retirada... 23.
A gestão de Juscelino chegou a ser criticada em outras produções do gênero que felizmente não foram censuradas. Em Vai que é mole (J. B. Tanko, 1960), enquanto o personagem de Ankito discute com dois assaltantes por meios de 22 23
Jornal do Brasil, 11/11/1958, p. 10. Idem, 12/11/1958, p. 10. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
metáforas na qual criticavam o governo do presidente afirma que “o negócio é o desenvolvimento econômico”. Depois complementava: “Precisamos fazer uns investimentos mais sérios”, ao mesmo tempo em que fazia sinal com mão que demonstra o tradicional gesto que denota roubo24. Em Nem Sansão nem Dalila (Carlos Manga, 1954), a crítica ao presidente Vargas é bem mais clara e a sequência que Oscarito faz a imitação do presidente se tornou clássica da história do cinema brasileiro. Na famosa cena, Oscarito satiricamente inicia o seu discurso com todos os trejeitos de Getúlio, quando este se referia aos trabalhadores e afirma que “a situação política do país está uma pouca vergonha”. Sérgio Augusto, na já clássica obra Este Mundo é um Pandeiro – A chanchada de Getúlio a JK, que propiciou estudos que modificaram o estatuto do gênero na história do cinema brasileiro, afirma que extraídas de seus respectivos contextos. Tais críticas, principalmente se partir de um excesso de empolgação do analista, podem nos induzir a uma visão destorcida da “consciência social” das chanchadas. O autor afirma que tais críticas eram demasiadamente estreitas, ou praticamente mínimas25. Com isso, o crítico minimiza o alcance político das chanchadas, não levando em conta que embora os filmes não fossem engajados, eles revelavam o imaginário de determinado segmento da população, mesmo que ao nível do senso comum. Como é indicada por Roger Chartier, a identificação da maneira como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler, nos revela as classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social, permitindo assim nos aproximar da percepção e da apreciação do real de determinada temporalidade26. Sérgio Augusto, ainda repete muito do discurso do conceito de populismo, e vê na chanchada, um meio reprodutor desse fenômeno: “Contagiados pelo verde-amarelismo,as chanchadas assimilavam, readaptavam e disseminavam o discurso populista dominante”27. Ainda que sem profundidade, as críticas contidas nas chanchadas correspondiam a uma determinada representação da realidade política daquele
24
AUGUSTO, Sérgio. Op. cit., p. 172. Idem, p. 166. 26 CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002, pp.16-17. 27 AUGUSTO, Sérgio. Op. cit., p. 174. 25
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
período, sendo esta pela ótica de um determinado grupo, neste caso, as classes populares e médias da população brasileira. Excluir o modo como estes indivíduos se relacionavam com a política é empobrecer em enorme grau a análise histórica. As
chanchadas
traziam
à
cena,
os
indivíduos
excluídos
do
afã
desenvolvimentista experimentado no período. Seus personagens, caipiras ou malandros em grande parte, não eram o exemplo para o país que buscava a modernização. Estes eram o retrato de um mundo conservador em contraposição ao desenvolvimentismo urbano-industrial: os personagens da chanchada não tinham um projeto de vida político que fosse além de viver o dia-a-dia, pois pensavam apenas em sobreviver, e nem sempre o trabalho estava incluído neste projeto. Não havia na órbita da ideologia desenvolvimentista espaço para camelôs, empregadas domésticas, preguiçosos, donas de pensão, manicures, barbeiros, faxineiros, caipiras, etc28. No entanto, em alguns momentos também as chanchadas se alinharam ao desenvolvimentismo: no filme Garota Enxuta (J. B. Tanko, 1959) o personagem de Grande Otelo defende a fabricação do DKW, declarando que “o carro nacional não precisa de gasolina, anda só com o cheiro e o ritmo do samba”. No mesmo filme, a cantora Nelly Martins apresentava um samba-canção marcado pela ideologia do período: “O futuro é lá longe/ onde está o porvir/ Vamos trabalhar/ um mundo novo construir/ pelas estradas do tempo/ vamos conduzindo um ideal/ fazendo o Brasil de amanhã/ quando o progresso é natural”29. Além disso, nas chanchadas estavam representados muitos dos aspectos ainda conservadores da sociedade brasileira como um todo: nos filmes as mulheres praticamente não tinham voz. Os casamentos eram tidos como uma prisão para os personagens masculinos e as esposas quase sempre eram representadas como megeras, seja na rispidez e antipatia de suas personalidades ou na aparência física. A felicidade só poderia ser encontrada fora do âmbito conjugal. Ainda o racismo ou outrasatitudespreconceituosas estavam presentes em muitos filmes. Em Um candango na Belacap (Roberto Farias, 1961), os personagens de Grande Otelo e Vera Regina, fazem troça com a sua própria condição de negros ao longo do filme, ao dizer 28 29
CATANI, Afrânio M. e SOUZA, José I. de Melo. Op. cit., p. 78. AUGUSTO, Sérgio, Op. cit., p. 172. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
em tom de piada que “futuro de criolo é cada vez ficar mais preto”, “preto com branca é legal” e “preto com preto só dá escuridão”.
Conclusão
Assim, as chanchadas não apenas representaram o imaginário e a cultura das classes populares e como estas se relacionavam com o mundo em que estavam inseridas, mas também seus anseios, suas inquietudes e seus preconceitos. Levar em conta o contexto em que tais obras foram realizadas é de fundamental importância para a melhor compreensão dos filmes e suas relações com a sociedade da década de 1950, no Brasil. Marc Ferro aponta que assim como todo produto cultural, toda ação política, toda indústria, todo filme tem uma história que é História, com sua rede de relações pessoais. Além disso, o mesmo se passa com o conteúdo e a significação de uma obra, que podem ser lidos de maneiras diferentes e mesmo inversas, em diferentes momentos históricos30. As chanchadas souberam captar o espírito de uma época, não por estas serem consideradas representantes de um momento feliz, otimista e ingênuo. Michéle Lagny afirma que o cinema também tem o papel de mostrar os afetos de uma sociedade31. As diversas críticas presentes nas chanchadas demonstram como geralmente nem felicidade e nem ingenuidade estavam presentes na população brasileira: possivelmente ninguém era inteiramente feliz com o ônibus lotado, com a corrupção dos governos, com a inflação que aumentava o preço dos alimentos, nem com o mau funcionalismo público de que precisavam. As chanchadas deixaram transparecer as falhas do discurso dominante, embora estas nem sempre tenham sido a intenção de seus autores e nem de seu público, já que a imagem fílmica escapa em boa parte da ação destes. A chanchada, produto industrial, mas quase artesanal, marcada pelos finais felizes em que o bem sempre vencia o mal, em que os personagens bondosos sempre terminavam alegres e com seus problemas superados, traziam a complexidade das
30
FERRO, Marc, Op. Cit., p. 18. LAGNY, Michéle. “O cinema como fonte de história”. In: Jorge Novoa (Org.). Cinematografo: Um olhar sobre a história. São Paulo: Unesp, 2009, p.107. 31
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
representações nas quais se embaraçam tentativas de sedução ou de enquadramento ideológico. Assim, conseguiram mostrar os medos inconscientes e conscientes, desejos confusos, mentalidades confusas, mas que fizeram dos filmes um historiador inconsciente do inconsciente social da época32. Considerada como símbolo de atraso cultural da Brasil pelos críticos e intelectuais do período, a chanchada é a representante do outro lado do nacional-desenvolvimentismo, o lado dos não participantes ativos do projeto político vigente no período.
Bibliografia ABREU, Alzira. “Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 1950”. In: _______ (Org). Imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 1950. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. AMORIM, Rose Mary Guerra. O governo JK e a revista Manchete: a criação do mito dos anos dourados. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais, Fundação Getúlio Vargas, 2008. AUGUSTO, Sérgio. Este Mundo é um Pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk Editora. CARDOSO, João Manuel de Mello e NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil, Volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CATANI, Afrânio M. e SOUZA, José I. de Melo. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. CATANI, Afrânio. “A aventura industrial e o cinema paulista”. In: RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987. CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002. DIAS, Rosangela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995. ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. GOMES, Ângela de Castro (Org.). Brasil de JK. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX : 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 32
Idem, p. 105. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
LAGNY, Michéle. “O cinema como fonte de história”. In: Jorge Novoa (Org.). Cinematógrafo: Um olhar sobre a história. São Paulo: Unesp, 2009. LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo: Perseu Abramo. VELLOSO, Monica Pimenta. “A dupla face de Jano: romantismo e populismo”. In: Angela de Castro Gomes (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. Referências cinematográficas: Amei um bicheiro. Direção: Jorge Ileli e Paulo Wanderley. Brasil, Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., 1952. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ). Assim era a Atlântida. Direção: Carlos Manga. Produção: Carlos Manga. Brasil, Atlântida e Carlos Manga Produções, 1975. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ). Esse milhão é meu. Direção Carlos Manga. Brasil, Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., 1959. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ). Macunaíma. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Produção: Joaquim Pedro de Andrade. Brasil, Difilm, 1969. DVD. Nem Sansão nem Dalila. Direção Carlos Manga. Brasil, Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., 1954. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ). Quando o carnaval chegar. Direção: Carlos Diegues. Produção: Carlos Alberto Prates. Brasil, Mapa Produções Cinematográficas Ltda., 1972. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ). Um candango na Belacap. Direção: Roberto Farias. Produção: Herbert Richers. Brasil, Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A., 1960. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ). Vai que é mole. Direção: J. B. Tanko. Produção: Herbert Richers. Brasil, Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A., 1960. Arquivo pessoal do Professor Orlando de Barros (IFCH-UERJ).
Artigo recebido em: 26 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 20 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 70-86, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
OS INTELECTUAIS E AS GUERRAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL: Reflexões sobre o pensamento de Sartre, Fanon e Guevara Priscila Henriques Lima
RESUMO: Pretendemos com esse trabalho analisar a lógica do sistema colonial e a função do intelectual no processo de descolonização e, consequentemente, no despertar de uma consciência política dos colonizados, por meio do pensamento de Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon e Ernesto Guevara. Para tanto utilizaremos três obras básicas que visam compreender tais questões: “Colonialismo e Neocolonialismo” (1968) de Sartre, “Os Condenados da Terra” (1961) de Frantz Fanon e “Obras Escogidas” (1957-1967) de Ernesto Guevara. PALAVRAS-CHAVE: Intelectual; Descolonização; Consciência Política.
THE INTELLECTUALS AND THE WARS OF NATIONAL LIBERATION: Reflections on thinking of Sartre, Fanon and Guevara ABSTRACT: This paper analyzes the logic of the colonial system and the role of the intellectual in the decolonization process and in the wake of a political consciousness of the colonized, by the thought of Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon and Ernesto Guevara. For this we use three basic works aimed at understanding these issues, "Colonialism and NeoColonialism" (1968) - Sartre, "Les Damnés de la Terre" (1961) - Frantz Fanon and the "Obras Escogidas" (1957-1967) - Ernesto Guevara. KEYWORDS: Intellectual; Decolonization; Awareness Politic.
***
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA) do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: priscila-henriques@hotmail.com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Não basta escrever um canto revolucionário para participar da revolução africana; é preciso fazer essa revolução com o povo. Com o povo, e os cantos virão por si mesmos. Sékou Touré
N
o decorrer do século XX um dos episódios mais relevantes foi o fim dos impérios coloniais das grandes potências europeias, que foram construídos ao longo do século XIX.
Com a vitória da URSS sobre a Alemanha em 1945, o modelo socialista
pregado pela nova potência mundial passou a ser exemplo de possibilidades para os países que até então viviam sob as rédeas do capitalismo, e sua influência nos países europeus acabou por facilitar o desenvolvimento de uma consciência anticolonialista: Daí em diante, o nacionalismo adquiriu uma forte associação com as esquerdas durante o período antifascista, associação essa que foi reforçada subsequentemente pela experiência da luta antiimperialista nos países coloniais. Pois as lutas coloniais estavam vinculadas às esquerdas internacionais de várias maneiras. Seus aliados políticos em países metropolitanos encontravam-se, quase invariavelmente, nessas áreas. As teorias antiimperialistas há muito tempo era uma parte orgânica do corpo de pensamentos socialistas1.
Ainda em 1945, Roosevelt e Churchill, por meio de um novo organismo internacional da manutenção da paz, a ONU, fixaram como princípios básicos do pósguerra na Carta do Atlântico: a) a impossibilidade de aquisição de territórios sem o consentimento da respectiva população; b) o direito à autodeterminação dos povos; c) o acesso de todos os Estados ao comércio internacional; d) a liberdade dos mares23. Apesar da união entre EUA e a URSS para o combate ao inimigo comum, era perceptível às diferenças entre os interesses das duas nações, culminando no ano de 1947 na Guerra Fria, com a divisão dos países em dois blocos distintos: o bloco Ocidental representado pelos EUA com sua política capitalista, caracterizados por uma democracia liberal e pelo livre comércio internacional enquanto que o bloco Oriental representado pela URSS pregava o controle estatal da economia e da sociedade. Para aqueles países colonizados, os princípios do bloco oriental representavam um instrumento de luta contra a opressão dos colonizadores, pois 1
HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo: desde 1780 – programa Mito e Realidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1990. p.177. 2 LINHARES, Maria Yedda Leite. A Luta contra a metrópole (Ásia e África). São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. p.15 3 HOBSBAWM, Op.Cit., p.177. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
possibilitavam o surgimento de uma nação para além da exploração fomentada pelo capitalismo: Desde que Lênin descobrira que a libertação de povos coloniais oprimidos era um argumento potencialmente importante para a revolução mundial, os revolucionários comunistas fizeram o que podiam em favor das lutas de libertação colonial, que, de todo modo, os atraía para afirmações de que qualquer coisa que atrapalhasse os imperialistas metropolitanos deveria ser bem-vinda aos trabalhadores4.
O neocolonialismo estabelecido durante o século XIX dividiu o continente africano e asiático entre um pequeno número de países europeus, deixando clara a divisão entre fortes e fracos, avançados e atrasados.5 Também é possível afirmar que as duas grandes guerras do século XX tiveram como pano de fundo questões que envolviam diretamente os países europeus, bem como esta mesma região foi o berço do capitalismo e da revolução industrial; contudo ao fim da II Guerra, encontramos uma Europa devastada e o surgimento de novas potências mundiais: EUA e URSS. De acordo com Maria Yedda Linhares, existe para alguns historiadores, como por
exemplo, Jacques Arnoult, uma conotação eurocêntrica na
palavra
“descolonização”. A ideia é que como o processo de colonização foi de origem europeia, também na descolonização existe a vontade do colonizador de abrir mão dos seus direitos. Para outros, o eurocentrismo do termo surge do levante contra a Europa, na figura dos movimentos nacionais. Para Hobsbawm, o novo modelo de imperialismo compunha uma nova etapa do capitalismo, onde entre outras características “levava à divisão territorial do mundo entre as grandes potências capitalistas” 6, e essa expansão econômica e a exploração ultramarina foram fundamentais para o desenvolvimento dos países capitalistas. Com as mudanças estruturais, baseadas no keynesianismo e ocorridas nos países capitalistas europeus no pós-guerra, como a intervenção do Estado na economia e a participação dos trabalhadores na formulação de práticas que proporcionasse uma distribuição de renda igualitária, levantou-se a questão de que estaria surgindo uma nova etapa do capitalismo.
4
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007, p. 91. HOBSBAWM, 2007, p. 91. 6 Idem, p.93. 5
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A burguesia francesa mostrou-se relutante em aceitar as reformas no sistema capitalista, devido á redução nos lucros no momento que o país voltou a se reestruturar. Com isso, ocorre a ascensão do processo de politização do sindicato, confrontando os movimentos populares franceses com as “forças de ordem”, tendo como cerne da discussão o sistema capitalista e, inevitavelmente a independência das colônias, como fruto da exploração do trabalho pelo capital. Essa nova etapa do capitalismo alterou a realidade dos países europeus, entretanto não diminui as desigualdades sociais, já que o Estado não conseguia mais intervir de fato no desenvolvimento tecnológico que consequentemente peca nos desperdícios da produção, por outro lado também a agricultura fica totalmente subordinada à indústria e as redes de comercialização: “A luta pela descolonização não podia deixar de ser uma luta contra o capitalismo, sem deixar de ser, também, no sentido político, uma luta contra as Metrópoles”.7 No âmago do processo de descolonização estava o despertar da consciência dos povos colonizados através do discurso dos intelectuais colonizados e rebeldes, que faziam parte do movimento antiimperialista do Ocidente. Um dos arautos do processo de descolonização foi Jean Paul Sartre. Para África Negra temos Franz Fanon e escritores negros de expressão francesa com seus discursos: Um dos aspectos fundamentais da negritude é a afirmação de si, após a longa noite de alienação, como aquele que sai de um pesadelo e apalpa o corpo todo para se reconhecer a si próprio, como o prisioneiro libertado que exclama bem alto: Estou Livre! Embora ninguém lhe pergunte nada 8.
A oposição ao colonialismo começou com a crítica marxista e socialista que o identificavam como instrumento do capitalismo. Coube ao partido Bolchevique, vitorioso na Revolução Russa em 1917 o primeiro pronunciamento que condenava a anexação de territórios, caracterizando o imperialismo como “parasitas por natureza”. Toda a mobilização Russa contra o colonialismo europeu foi refreada a partir do momento que o nazismo de Hitler tomou força, mas com o término da II Guerra toda a formulação de pensamento e a propagação dos ideais contra o colonialismo foram reiniciados.
7 8
LINHARES, Maria Yedda. A luta contra metrópole. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p 33. KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra - Vol. 2. Viseu: Biblioteca Universitária, 1972, p.276. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Voltados para a África, os ideais de independência surgiram através do conceito de Pan-Africanismo, que contava com o apoio de intelectuais africanos de todo o continente em prol da autonomia da África, bem como de intelectuais afrodescendentes, principalmente aqueles localizados na América. Com o lema: “A África para os africanos! Exclamei (...) Um Estado livre e independente na África. Queremos poder governar-nos neste nosso país sem interferência externa. (...)”9, firma-se o princípio do Pan-Africanismo por Kwame Nkrumah, responsável pela independência da Costa do Ouro, chamada posteriormente de Gana no ano de 1957. Porém, os movimentos a favor da união do continente africano têm início ainda no século XIX, com Alexander Crummell e a ideia de que a África seria a pátria negra, sendo somente o quesito racial responsável por delegar o direito de falar por ela e de pensar o seu futuro: Crummell sustentava que havia um destino comum para os povos da África – pelo que devemos sempre entender o povo negro -, não porque eles partilhassem de uma ecologia comum, nem porque tivessem uma experiência histórica comum ou enfrentassem uma ameaça comum da Europa imperial, mas por pertencerem a essa única raça. Para ele o que tornava a África unitária era ela ser a pátria dos negros10.
Com Henry Sylvester William, o conceito de Pan-Africanismo toma um caráter mais igualitário, sem discriminação de cor, onde os brancos e negros teriam os mesmos direitos, sem sofrerem discriminação de raça, credo e origem social, tendo o primeiro reivindicado em 1900 durante a Conferência de Londres, que era necessário assegurar os direitos civis e políticos dos africanos em todo o mundo; melhorar as condições de vida de africanos independente de onde eles estejam; encorajar os povos africanos o desenvolvimento da educação bem como a criação de indústrias e do comércio; e reafirmar os laços entre três Estados negros: Haiti, Abissínia e Libéria, ressaltando a necessidade da consolidação dos seus interesses e da combinação dos seus esforços no campo diplomático. Já com William Edward Burhardt Du Bois, o Pan-Africanismo começa a se formar da maneira como o foi percebido no período pós Segunda Guerra, tendo como impulso os processos de descolonização, e essa postura se concretiza no Congresso 9
KWAME, Anthony Appiah. Na casa de meu pai – a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1997, p.19. 10 KWAME, Op. Cit., p.22. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
de Manchester, realizado na Inglaterra no ano de 1945, onde reivindicava a independência da Argélia, Tunísia e do Reino do Marrocos. Temos então dois períodos distintos: o Pan-Africanismo voltado para a inclusão e igualdade de tratamento, geralmente motivado por afrodescendentes, americanos, e o segundo momento, caracterizado pelas guerras anticoloniais e com o envolvimento de nacionalistas africanos ou nascidos na África, tendo como bandeira a fala “Povos colonizados e subjugados do mundo, uni-vos!”, tornando-se um movimento de vanguarda. Para Joseph Ki-Zerbo “o nacionalismo só é justificável quando um povo se encontra oprimido. Ele concentra então numa aspiração bruta as diversas forças sociais, igualmente humilhadas e que vivem na esperança”11. Representante do movimento nacionalista africano Negritude12, Aimé Césaire afirma em seus estudos que: Ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente, que uma nação que coloniza que uma nação que justifica a colonização – portanto, a força – é já uma civilização doente, uma civilização moralmente ferida que, irresistivelmente, de consequência em consequência, de negação em negação, chama o seu Hitler, isto é, seu castigo13.
O processo de independência das colônias francesas dividiu-se em duas partes: o processo pacífico de descolonização, tendo seu início em 1958 com a assinatura da Lei Quadros, que delegava autonomia as colônias africanas, através de uma proposta de descentralização e o fim da divisão em África Ocidental Francesa e África Equatorial Francesa, e o processo violento de independência empreendido com a Argélia. A Lei-Quadro foi proposta pelo então chefe de estado francês De Gaulle, onde propunha a criação de uma comunidade francesa, todavia as colônias teriam autonomia através da africanização dos escalões administrativos. Com exceção de 11
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra – vol. II. Lisboa: Biblioteca Universitária, 1972. p. 157. Movimento literário de negros francófonos surgido na década de 30 que buscava resgatar a cultura africana tradicional de maneira a definir e afirmar sua própria identidade, combater o eurocentrismo forjado na África pelo processo de colonização europeu e principalmente despertar o sentimento de valorização da cultura negra no mundo, deixando clara a sua contribuição cultural ao ocidente. Para maiores esclarecimentos: DEPESTRE, René. Bom dia e adeus à negritude. Tradução de Maria Nazareth Fonseca e Ivan Cupertino. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980. pp.82-160. Disponível em http://www.ufrgs.br/cdrom/depestre/depestre.pdf 13 CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978. p. 21. 12
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Guiné que escolheu sua independência imediata, todas as demais colônias optaram por fazer parte da comunidade. Esse sistema durou por dois anos e em 1960 as demais colônias francesas da África obtiveram sua independência. A Tunísia obteve sua “interdependência livremente consentida” em 1956. A história da colonização argelina foi marcada pela utilização constante de violência por parte da metrópole, visando estabelecer o controle do país, frente à resistência do povo, e ao contrário das demais colônias, seu processo de descolonização caracterizou-se por uma longa guerra, culminando na sua independência em 1962. Foram 120 anos de enfrentamentos entre colônia e metrópole. Com o término da Segunda Guerra e a consequente crise pela qual passava a França, cabia à comunidade de origem francesa e residente na Argélia a posse das melhores terras e o controle total da economia. Assim sendo, cerca de 75% da população de origem mulçumana encontrava-se na iminência de total falta de alimentação. Esse fato somado a inspiração de movimentos de independência, vindo de todas as partes, acabou culminando em 1954 no início oficial da guerra de libertação. O processo de independência da Argélia contou com o apoio de grande parte da opinião mundial. Dentro da França as opiniões divergiam, em alguns casos com o apoio a Argélia e em outros casos o controle da colônia era fundamental, nem que para isso fosse necessário utilizar de repressão e violência. Os apontamentos de Sartre sobre a prática do colonialismo têm como questão chave o cerceamento da liberdade do indivíduo no aspecto econômico, político, cultural e social. Com o objetivo de colaborar na criação de uma consciência crítica, ele visita vários países europeus, americanos, africanos e asiáticos levantando a bandeira em defesa da liberdade. Entretanto, com o levante das nações colonizadas em prol de sua soberania, Sartre engaja-se em condenar as guerras da Argélia e do Vietnã, dedicando-se principalmente à questão argelina por ser a mais importante colônia francesa. Ele observa no conflito entre a metrópole e a colônia um símbolo da luta de classes entre o campesinato, sendo representado pela Frente de Libertação Nacional (FLN) contra a burguesia colonialista presente na figura do governo francês. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Sartre analisa que o imperialismo se move na necessidade da burguesia financeiraindustrial em criar reservas de mercado para sua produção, bem como garantir o fornecimento de matérias-primas e controlar os mercados externos visando resguardá-los para o investimento de capitais excedentes, ou seja, o interesse colonial francês resguardava-se na exploração da agricultura e das matérias primas que abasteceriam o mercado e a indústria francesa, visto que devido à abundância de mão-de-obra na Argélia, e consequentemente seus baixos salários, ter naquela região a intenção de um mercado consumidor tornava-se inviável. Diante da impossibilidade de industrialização na Argélia, o sistema colonial mantém funciona mantendo sua colônia em dependência e subdesenvolvida economicamente, isto é, o Estado desempenha desenvolve um projeto de colonização capaz de criar uma estrutura produtiva com o objetivo de atender as necessidades da metrópole: Mas a quem, pois, a indústria nova contava vender seus produtos? Aos argelinos? Impossível: onde encontrariam eles dinheiro para pagar? A contrapartida desse imperialismo colonial, é que é preciso criar um novo poder de compra para as colônias. E, bem entendido, são os colonos que vão se beneficiar de todas as vantagens e que se transformarão nos compradores eventuais. O colono é, em princípio, um comprador artificial, criado com todas as peças em além-mar por um capitalismo que procura novos mercados14.
Visando a sobrevivência desse sistema, o Estado estabelece uma infraestrutura administrativa que pretende doutrinar os colonizados dentro de códigos civis e jurídicos, e que é aplicada por meio da violência do exército que substitui a força policial. Assim, a prática colonial torna-se violenta por meio da imposição do terror pelo Estado que estabelece uma rotina de massacre a população autóctone. Todavia, esse processo violento funciona como um núcleo de sabotagem dentro do próprio sistema colonial, visto que exterminar a mão-de-obra extremamente barata dos colonizados arruinaria o sistema por si só. E, diante da prática colonialista, Sartre procura analisar o maniqueísmo dos colonos, que de acordo com as premissas do neocolonialismo afirmava a existência de colonos bons e maus. Para ele, existem colonos de maneira geral, pois o sistema
14
SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo – Situações, V. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, p.25. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
de exploração não se implantou sozinho na colônia. A questão antecede ao confronto de colonos nas guerras de libertação e do apoio destes as colônias. Em algum momento o colono participou da implantação desse sistema, foi conivente: Pois não é verdade que há bons colonos e outros que sejam perversos: há colonos, é tudo. Quando compreendermos isto, compreenderemos porque os argelinos têm razão de se oporem de início politicamente a este sistema econômico, social e político e porque a sua liberação e a da França só podem sair do estilhaçamento da colonização15.
E, ainda sobre a divisão maniqueísta inadequada dos colonos, cabe destacar o que Sartre entende como colonialismo enquanto sistema econômico. Ele o compreende como um sistema racional fruto do Segundo Império francês caracterizado pela expansão do processo de industrialização e que atua de acordo com os interesses e as necessidades das empresas coloniais objetivando claramente a exploração dos recursos sociais e naturais da colônia em benefício da metrópole. Sendo assim, se o colonialismo é considerado um sistema racional, um produto da expansão industrial, não cabe afirmar a existência de colonos bons ou maus, existiu a colonização e isso basta: Quando falamos de sistema colonial, é preciso compreendermos: não se trata de um mecanismo abstrato. O sistema existe, funciona; o ciclo infernal do colonialismo é uma realidade. Mas essa realidade se encarna num milhão de colonos, filhos e netos de colonos, que foram modelados pelo colonialismo e que pensam, falam e agem segundo os próprios princípios do sistema colonial16.
Sobre as consequências do colonialismo francês para a Argélia, Sartre aponta três eixos: primeiro a necessidade de alimentar nove milhões de pessoas, ou seja, primeiramente seria de natureza econômica. Logo a seguir surge o problema social com a urgência em aumentar o número de médicos e escolas; e por último um problema psicológico devido o complexo de inferioridade do argelino face aos colonos. Neste último ponto Sartre confronta a "obra civilizatória francesa" e seu projeto de assimilação criado para suprir as necessidades dos argelinos. O discurso de assimilação foi muito utilizado por todas as metrópoles em seus processos de colonização. Buscando arregimentar o apoio dos colonizados, os colonizadores discursavam todos os benefícios de se viver numa colônia, 15 16
Idem, p. 23. Idem, p. 36. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
principalmente por meio da sua missão civilizatória, ou seja, negavam todo o passado dos colonizados associando-o a barbárie e afirmavam seu posicionamento "salvador", onde numa preocupação maternal, cuidariam para que seus filhos não cometessem os mesmos erros do passado, isto é, valorizassem suas raízes. Para isso, deveriam portar-se como os colonos, vestir-se, proferir o mesmo idioma. Uma réplica indígena e inferior, e que sempre seria vista dessa maneira, de um colono europeu.17 Outro ponto relevante no sistema colonial para Sartre é a questão da superexploração dos colonizados que, ao terem seus salários praticamente equivalentes a zero, possibilita aos colonos a aquisição de matéria prima a um custo mínimo e a venda dos produtos manufaturados a um preço elevado, favorecendo desse modo ao comércio colonial com produtos a um preço mais competitivo que aqueles produzidos pela exploração do operariado na metrópole. Porém, Sartre observa nessa relação um ponto negativo para o próprio sistema colonial que não pode desenvolver a industrialização em sua colônia sem arruinar a própria indústria francesa: É indispensável que cedo ou tarde ele se arruíne: é o seu destino. Em outros termos, depois de ter servido a economia capitalista (...) e aos próprios assalariados, ele se transforma inelutavelmente em um parasita insaciável que absorve inutilmente todas as forças do país colonizador. (...) Era absolutamente necessário que a miséria dos argelinos crescesse. Nenhuma medida tomada pela metrópole poderia impedir seu empobrecimento. Em primeiro lugar porque a super exploração só pode se fundar lá pelo crescimento ilimitado da mão-de-obra. Em segundo lugar porque as tímidas reformas projetadas pelo governo devem ser sabotadas pelos colonos que estão lá, ou em todo caso, elas se voltam em seu proveito. Enfim, porque a industrialização da Argélia, única solução do problema econômico, não pode mesmo ser tentada sem ameaçar na França as empresas industriais de mesma natureza. 18
Percebemos com o fragmento acima que a manutenção do sistema colonial consome todas as forças francesas. Sartre demonstra que a guerra gera um custo alto para a metrópole, e que desse confronto depende a manutenção do sistema, ou seja, as colônias custam mais do que produzem. Pela perspectiva política o sistema colonial recusa o igualar o status do colonizado e do cidadão francês a partir do momento que nega seus direitos em prol da manutenção do lucro, ou seja, caso 17 18
Idem, p. 137. Idem, p.97. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
fornecessem, por exemplo, a seguridade social, as alocações familiares, auxílio desemprego e outros benefícios, eles alcançariam um patamar político que possibilitaria o pleito a condições de igualdade salarial e, assim, ele aponta o projeto de assimilação como mito. Assim, os trâmites democráticos aplicados na metrópole não poderiam ter a mesma função na colônia; de um lado o Estado francês dotado de instituições democráticas em que predominam a liberdade de expressão, o direito ao voto e o de livre associação, entretanto o colono não poderia implementar a mesma política na colônia, pois estaria possibilitando a aplicação de um sistema democrático que chocaria com a ideia e a prática do colonialismo. Dessa maneira, Sartre destaca que a contradição do sistema ocorre em dois níveis: no nível objetivo, ou seja, do sistema como um todo e no nível subjetivo, pois a miséria argelina produzida pelo colonialismo fomenta uma oposição ao sistema com o despertar de uma consciência das massas diante das ações desumanas deste, ou seja, o sistema colonial oferece munição ao seu adversário. Com o despertar da consciência das massas, Sartre observa o levante do Terceiro Mundo, que apesar de não ser homogêneo possuem no passado a marca da opressão colonial. Juntos, eles poderiam triunfar por meio da Revolução Nacional de cunho socialista contra a burguesia colonizada. 19 Mas a quem caberia o despertar da consciência das massas, que de tão imersas num complexo de inferioridade, adormecia? Para Fanon, o despertar da consciência caberia aos intelectuais colonizados, visto que o movimento de libertação geralmente se preocupa com a independência. Para ele seria imprescindível a formação de uma sociedade consciente diante da despersonalização fomentada pelo sistema colonial através de seus projetos de assimilação. O processo seria de legitimar a formação da nação argelina e a cultura cumpriria um papel fundamental nesse processo: Os partidos políticos partem do real vivido e é em nome desse real, em nome dessa atualidade que pesa sobre o presente e sobre o futuro dos homens e mulheres, que eles nos convidam à ação. O partido político pode falar em termos comoventes da nação, mas o que lhe interessa é que o
19
Idem, p.140. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
povo que escuta compreenda a necessidade de participar do combate, se simplesmente quiser existir20.
Visando estagnar os movimentos de libertação, o sistema colonial utiliza de economismo, ou seja, reconhece toda a exploração cometida pela metrópole com uma
“humildade
ostensiva”
e
formula
um
discurso
voltado
para
o
subdesenvolvimento da região, disponibilizando novos projetos de crescimento. Essas medidas a princípio podem atrasar o surgimento da consciência nacional, porém o próprio sistema conclui a inviabilidade de projetos socioeconômicos tão ousados para satisfazer a massa colonizada. A metrópole percebe que confrontar os movimentos de libertação no campo econômico equivale uma ação nem mesmo utilizada no Estado francês. Assim, Fanon destaca que a conscientização do povo deve surgir através do reconhecimento da incapacidade do colonialismo de proporcionar condições básicas de vida.21 Cabe ao intelectual colonizado conscientizar o povo a partir da sua realidade atual, ou seja, de sua situação como explorados. Para Fanon, aos homens da política destina-se a ação no real, enquanto que os homens da cultura se situam no quadro histórico. Corresponde a esse homem da cultura o intelectual colonizado que se coloca em confronto com o sistema colonial e que, por compartilhar de um discurso já proferido por especialistas na metrópole, conta com uma resistência menor por parte dos colonizadores. O discurso da intelligentsia colonizada pauta-se pelo resgate ao passado antecolonial almejando suscitar o orgulho de suas raízes: Inconscientemente talvez, os intelectuais colonizados, não podendo fazer amor com a história presente do seu povo oprimido, não podendo maravilhar-se com a história de suas barbáries atuais, decidiram ir mais longe, descer mais baixo e é – sem dúvida alguma – com um júbilo excepcional que eles descobriram que o passado não era de vergonha, mas de dignidade, de glória e de solenidade. 22
Esse caminho à memória busca reverter á ação colonizadora que criou nos indígenas a ideia de um passado de barbárie. O colonizado crê em um passado violento onde o negro é um preguiçoso. O colonizador traria os benefícios para essa 20 21
22
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p. 240. Idem, p.242. Idem, p.243. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
sociedade tornar-se civilizada atuando, como diz Fanon, “como uma mãe que monitora seus filhos para que não cometam nenhum delito ou falta grave”.23 Com esse processo civilizatório de europeizar a sociedade, sonhava-se com a retirada dos indígenas das sombras e do atraso em que viviam, guiando-os para a luz, num processo de alienação cultural. O objetivo do colonialismo era despertar a dependência nos indígenas onde a saída do colono de suas terras acarretaria a volta da degradação, da animalização. Entretanto, para que a ação do intelectual colonizado consagre-se vitoriosa, torna-se imprescindível que ele opte por uma de suas nações. Ele deve posicionar-se no dilema de “argelino e francês”, mergulhando nas raízes de uma dessas nações. Todavia, é importante destacar que, de acordo com Fanon, esse intelectual nunca será aceito plenamente como um cidadão francês; ele sentir-se-á como um membro não pertencente aquela massa, rejeitado, e é exatamente essa sensação que o despertará para a sua opção de fato, ou seja, um retorno desesperado em direção do lugar de origem, de seu povo. 24 O intelectual que optar por assumir a matriz europeia percebe-se como um estranho, visto que a história ocidental construída é direcionada para sua própria sociedade, fazendo com que ele se volte para sua matriz de origem, onde abandona por completo qualquer resquício europeu, pois reencontrar seu povo é fazer-se negro, o mais indígena possível. O retorno desse intelectual colonizado ao seu povo contabiliza uma grande perda para o colonizador. O processo de engajamento do intelectual pode ser compreendido em três etapas: 1) o intelectual é assimilado e sua produção é voltada para a metrópole; 2) ele produz somente lembranças de sua época de inserção no povo; 3) ele entra no combate de libertação produzindo uma literatura engajada que vise o despertar do povo.24 Toda a produção política desse intelectual, por mais que se apresente em confronto com o colonialismo, acaba utilizando dos mecanismos do colonizador para fazer-se valer. Um exemplo claro seria a utilização do idioma para a sua produção. Outro ponto a se destacar são as questões abordadas nessa literatura que, apesar de
23
Idem, p.244. Idem, p.256.
24
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
algumas vezes fazer valer-se de dialetos específicos, levantam questões que foram pensadas de fora da colônia. O fato do intelectual não conseguir desvencilhar-se de todo da influência da metrópole, serve como parâmetro também para a análise dos efeitos da prática colonial, no sentido que para Fanon, apesar das produções literárias dos intelectuais estarem imersas nas raízes indígenas, não poderia de maneira alguma se deixar de lado o momento que essas raízes foram tiradas do seu povo. A alienação cultural a que foram submetidos cumpre um papel importante na formação da identidade daquela nação. A produção desse intelectual deve direcionar-se para o momento de mudança da identidade do seu povo. Não basta olhar para as raízes daquela sociedade, mas sim para o momento que essas raízes foram tiradas do povo. Fanon considera a produção intelectual desses escritores como uma literatura de combate, a partir do momento que ela clama pela participação do povo na luta em prol da construção de sua nação. Ela é peça fundamental na formação de uma consciência nacional porque abre ilimitadas perspectivas, “porque é vontade temporalizada”. Dessa maneira, caberia ao intelectual despertar a sociedade para o modelo desumano de exploração empregado pelo colonizador durante o processo de assimilação: [...] o primeiro dever do poeta colonizado é determinar claramente o sujeito povo da sua criação. Só podemos avançar resolutamente se tomamos, primeiro, consciência da nossa alienação. Tomamos tudo do outro lado. Ora, o outro lado não nos dá nada sem, através de mil rodeios, curvar-nos para sua direção; sem, através de dês mil artifícios, cem mil astúcias, atraírem-nos, seduzir-nos, aprisionar-nos.25
Assim, para Fanon, o homem colonizado que escreve para o seu povo deve utilizar de suas raízes para descortinar o futuro, clamar pela luta de todos em prol da libertação. Deve dedicar-se de corpo e alma a ação de combate nacional. Seu comprometimento não é com a cultura nacional, mas sim com a nação de maneira global, na qual a cultura é apenas uma parte. “Combater pela cultura nacional, é
25
Idem, p.261. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
primeiro combater pela libertação da nação, matriz material a partir da qual a cultura se torna possível”26. Fanon prossegue dizendo que o combate via cultura e o combate popular atua de maneira conjunta, pois a cultura nacional desenvolve-se durante os enfrentamentos, na prisão, no confronto direto entre argelinos e militares franceses. Esse combate compõe primordialmente a criação de uma identidade nacional por meio da resistência. Dessa forma não basta retornar as raízes dos indígenas em busca de elementos que corroborem a luta; é necessário trabalhar, lutar na mesma cadência que o povo, a fim de preparar o futuro. Para ele, “a cultura nacional é o conjunto dos esforços feitos por um povo no plano do pensamento para descrever, justificar e cantar a ação através da qual o povo se constituiu e se mantém”27. Podemos analisar Fanon como “interprete”; de acordo com o conceito de cultura política, como um porta-voz de uma realidade, como representação de sua sociedade. Ao escrever “Os Condenados da Terra” ele falava para os colonizados, não para os colonizadores, e entende-se aqui colonizados não só da Argélia, mas de todo o Terceiro Mundo. 28 A obra funcionaria como um manifesto a ser seguido por aqueles que por tanto tempo se subjugaram aos mandos e desmandos de uma Europa “cínica e violenta”. Para tanto, ele clama pela união das novas nações, pois “o jogo europeu está definitivamente terminado, é preciso achar outra coisa. Podemos fazer tudo hoje, com a condição de não imitar a Europa, com a condição de não ter a obsessão de alcançar a Europa”29. Assim, torna-se compreensível a influência que tal obra suscitou por todos os movimentos de libertação, servindo como bíblia para os militantes anticolonialistas da década de 60. É importante ressaltar um ponto fundamental de convergência entre o pensamento de Fanon e Sartre: a legitimação da revolta e da luta armada. Esse apoio justifica-se na possibilidade dos colonizados alcançarem a vitória frente ao massacre
26
Idem, p.265. Idem, p.268. 28 Idem, p.364. 29 Idem, p.362. 27
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
e torturas cometidos pelo poder militar visando à manutenção do “estatuto colonial” que reduzia a população argelina a condições desumanas e a segregação racial. Era necessário ser ouvido. E, indo além, para Sartre a luta armada era consequência do próprio sistema colonial. “É a hora do bumerangue, o terceiro tempo da violência: ela volta para nós, ela nos golpeia, e, como das outras vezes, não compreendemos que ela é a nossa”.30 Fanon também apresentava a violência dos oprimidos como uma reação necessária e proporcional, embora às vezes descontrolada, contra a violência empregada pelos opressores colonialistas, pois para ele “o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado de natureza e não pode inclinar-se senão diante de uma violência maior”.31 Assim, Fanon e Sartre estavam do mesmo lado que Ernesto Guevara no que tange o apoio à luta armada e pelo despertar do Terceiro Mundo. Não seria possível alcançar a vitória se não por meio da luta armada:“Nosotros décimos: frente a la fuerza bruta, la fuerza ya la decisión; frente a quienes quieren destruirnos, no outra cosa que la voluntad de luchar hasta el último hombre por defendernos”32. Também concordavam que a solução dos problemas sociais não poderia partir do pensamento capitalista. Para ele, diante do histórico da região as medidas cabíveis para a construção de uma sociedade justa encontram-se na contramão dos interesses de sobrevivência da classe dominante e, sobretudo do interesse do imperialismo e neste caso, principalmente o norte-americano. Assim, o confronto entre a população oprimida e os inimigos colonialistas seria inevitável, principalmente pelos últimos estarem dispostos à utilização de força militar para a aniquilação de possíveis insurgentes. Dessa forma a luta armada seria inerente à libertação do controle colonialista. Com base nessa afirmação, Guevara aponta a importância da conscientização política dos povos para a luta militar contra as classes dominantes e neste aspecto afirma que a revolução deveria acontecer por meio da união do campesinato, da classe operária e dos intelectuais revolucionários, e não através da liderança de uma burguesia nacional. Portanto, o campesinato por caracterizar-se pelo isolamento 30
SARTRE, Jean-Paul. Prefácio à edição de 1961. In: Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p.37. 31 FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p.54. 32 GUEVARA, Ernesto. Obras Escogidas (1957-1967). Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2001, p.501. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
deveria ser instruído politicamente e revolucionariamente pela classe operária e pelos intelectuais, pois dessa articulação desponta a vitória na luta contra o imperialismo. E o êxito no confronto só ocorreria através da ação guerrilheira. Ele reforça essa afirmação em dois pontos específicos: 1) o inimigo lutará sempre para manter o seu poder e para isso utiliza de todo o seu potencial bélico. Frente a isso, para alcançar a vitória, seria necessário destruir o exército opressor, arregimentando um exército 33 popular; 2) a luta é de âmbito continental, e neste caso todas as nações que sofrem com a opressão colonial devem unir-se em prol do objetivo comum: alcançar sua liberdade. 3) Devido à importância dada por Che ao confronto armado, sua lógica atuava no campo político-militar, onde a guerra funcionava como uma continuação da política e reciprocamente. Seu desejo era de que o poder político, e neste caso também militar, fosse tomado por um novo homem capaz de construir uma nova sociedade. Voltando sua análise para todo o Terceiro Mundo, Guevara afirma a necessidade de união dos três continentes: América, Ásia e África, pois os movimentos de independência deveriam ir além de seus colonizadores direto. Neste caso, Guevara faz um alerta sobre o perigo do imperialismo norte-americano para os continentes que até aquele momento ainda não estava sob seu jugo. Aos explorados das três regiões caberia o papel de atacar incessantemente e duramente todos os pontos de confronto com o imperialismo: El panorama del mundo muestra una gran complejidad. La tarea de la liberación espera aún a países de la vieja Europa, suficientemente desarrollados para sentir todas las contradicciones alcanzarán en los próximos años carácter explosivo, pero sus problemas u, por ende, la solución de los mismos son diferentes a la de nuestros pueblos dependientes y atrasados económicamente34.
Para ele, tomar consciência de que os três continentes sofrem as agruras do imperialismo é ponto chave para o êxito as lutas de independência, e que apesar dos
33 34
Idem, p.504. Idem, p.588. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
países possuírem características próprias, seus continentes apresentam pontos em comum. Especificamente no caso do continente africano, suas observações se voltam para a questão do neocolonialismo norte-americano, enfatizando que neste aspecto a África até aquele momento (1967) encontrava-se praticamente intocável.
35
Mesmo
que tenham ocorrido mudanças nessas nações a partir de sua independência, para Che esse continente não estava preparado para a prática imperialista econômica dos Estados Unidos. Despertar a consciência política nessa região era extremamente necessário, pois como os norte-americanos não possuíam colônias nesta região aproveitaram da saída e da imagem deixada pelos europeus para se apresentarem como a solução eficaz diante de um cenário pós-guerra. E neste ponto mais uma vez enfatizava a união de todo o Terceiro Mundo visando um aprendizado mútuo a partir da troca de experiência. Só assim seria possível construir nações socialistas. Corroborando com o pensamento de Guevara, Sartre afirma a importância do Terceiro Mundo se descobrir, mesmo com todas suas particularidades: Sabe-se que ele não é homogêneo e nele ainda se encontram povos escravizados, outros que adquiriram uma falsa independência, outros que se batem para conquistar a soberania, outros, finalmente que conseguiram a plena liberdade, mas que vivem sob a ameaça constante de uma agressão imperialista. Essas diferenças nasceram da história colonial, o que quer dizer da opressão36.
Assim, a partir da leitura das obras “Colonialismo e Neocolonialismo” de Sartre, “Os Condenados da Terra” de Fanon e “Obras Escogidas” de Guevara, consideramos que os três possuem opiniões convergentes no que concerne à prática do sistema colonial, sendo: A necessidade do posicionamento no confronto. Ou confronta o sistema ou omite-se, e a omissão caracteriza apoiar a prática colonialista. Não existe um bom colonialismo ou um colono bom, ou até mesmo um colono mau. Esse maniqueísmo não deve ser analisado a partir do sistema colonial já implantado e a aceitação de seus ditames. É importante perceber que até na efetivação do colonialismo caberia
35
Idem, p.590. SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo – Situações, V. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, p.140. 36
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
movimentos de discordância e ao aceitar a prática da metrópole, o colono se abstém de qualquer posicionamento. A revolução de cunho socialista e a criação de novas identidades nacionais ocorreriam por meio da luta armada, num movimento fomentado pela própria violência exercida pela manutenção do sistema colonialista. Manter todos sob seu jugo exigia que o poder militar controlasse os colonizados através da desumanização dos mesmos e assim o combate a essa ação se daria por reflexo. A consciência das massas ocorreria em âmbito intercontinental, ou seja, era necessário o despertar do Terceiro Mundo e isso aconteceria através da troca de experiência entre seus movimentos de independência. Os discursos anti-imperialistas continuam em todos os continentes. O cenário se modificou, entretanto alguns atores permanecem. As disputas ideológicas entre Estados Unidos e alguns países da América do Sul mudaram o tom, tomando novas formas. Hoje os blocos que visam integração da região atuam de maneira sutil nesse sentido; protegem seus mercados por meio de acordos econômicos. No que tange o continente africano, após as guerras de libertação o que encontramos são países com estruturas precárias, governos autoritários e estruturas administrativas estatais que reproduzem o modelo colonialista. E a pergunte que cabe neste caso é: de fato são países livres? Neste sentido a importância dos apontamentos de Sartre, Fanon e Guevara funciona como um livro de memória que colaboram sistematicamente no processo de reflexão da sociedade atual.
Bibliografia
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978. FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010. GUEVARA, Ernesto. Obras Escogidas (1957-1967). Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2001. HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo: desde 1780 – Mito e Realidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1990. KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra - Vol. 2. Viseu: Biblioteca Universitária, 1972. KWAME, Anthony Appiah. Na casa de meu pai – a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1997. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
LINHARES, Maria Yedda. A luta contra metrópole. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e Neocolonialismo – Situações, V. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
Artigo recebido em: 29 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 25 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 87-106, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
AS NARRATIVAS CRÍSTICAS DA REVOLUÇÃO NO TERCEIRO MUNDO: Circulações e Apropriações Estéticas de O Evangelho Segundo São Mateus (1964) em A Idade da Terra (1980)
Quezia Brandão** Wagner Pinheiro Pereira*** RESUMO: O artigo analisa, sob o viés da História Conectada e das Transferências Culturais, os profícuos diálogos entre as obras cinematográficas de Glauber Rocha e de Pier Paolo Pasolini, dois dos cineastas mais representativos dos movimentos cinema-novistas na América Latina e na Europa, que apresentaram nos filmes O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e A Idade da Terra (1980) uma narrativa crística para a abordagem político-ideológica dos processos revolucionários no Terceiro Mundo. PALAVRAS-CHAVE: A Idade da Terra; O Evangelho Segundo São Mateus; Glauber Rocha; Pier Paolo Pasolini.
THE CHRIST-NARRATIVES OF THE REVOLUTION IN THE THIRD WORLD: Circulations and aesthetics appropriations of The Gospel According St. Mathews (1964) in The Age of the Earth (1980) ABSTRACT: The article analyzes, under the bias of the Connected History and Cultural Transfers, the fruitful dialogue between the films of Glauber Rocha and Pier Paolo Pasolini, two of the most representative filmmakers of the New Cinemas’ movements in Latin America and Europe, who presented in the movies The Gospel According to St. Matthew (1964) and The Age of the Earth (1980) a Christ-narrative to the political-ideological approach to revolutionary processes in the Third World. KEY-WORDS: The Age of the Earth; The Gospel According to St. Mathew; Glauber Rocha; Pier Paolo Pasolini.
***
O presente artigo é resultado dos estudos desenvolvidos por Quezia Brandão em suas pesquisas: “Entre o Transe e o Subdesenvolvimento: Cinema e Política na América Latina de Glauber Rocha e Tomás Gutierrez Alea” (Rio de Janeiro: Monografia de Conclusão do Curso de História – IH-UFRJ, Orientação: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, 2014) e “A Idade da Terra: Glauber Rocha e seu projeto político e cultural para a América Latina” (São Paulo: Pesquisa de Mestrado em Andamento – PPGHSFFLCH-USP, Orientação: Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato, 2014-2015.). ** Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora no Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE), no Laboratório de Imagem, Arte e Metrópoles (IMAM) e na Cátedra José Bonifácio (CIBA-USP). E-mail: queziabrandao@usp.br *** Professor de História das Américas e História do Audiovisual nos cursos de Bacharelado em História e de Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PGHC – UFRJ). Coordenador do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE). E-mail: wagnerpphistory@gmail.com Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A investigação sobre as transferências culturais tinha que admitir que se pode apropriar um objeto cultural e se emancipar do modelo que o constitui, isto é, realizar uma transposição, que, por mais distante que seja, tem tanta legitimidade quanto o original. Michel Espagne – A Noção de Transferência Cultural (2013)
Glauber Rocha & Pier Paolo Pasolini: Diálogos & Conexões entre a América Latina e a Europa
E
ntre os anos de 1950 e 1970 houve uma grande circulação de propostas e programas de cunho revolucionário, seja em seu viés estético e/ou ideológico, entre o ambiente político e cinematográfico
da Europa e da América Latina. Na década de 1950, muitos jovens aspirantes a cineasta partiram rumo à Europa para estudar nas grandes escolas de cinema de onde importariam experiências e modelos cinematográficos para por em prática na América
Latina,
compartilhando
o
desenvolvimento
de
uma
renovação
cinematográfica que ocorria na Europa. Corolário do Neorrealismo Italiano, da Nouvelle Vague Francesa, do Free Cinema Inglês e das vanguardas históricas1, ocorreu na América Latina o autodenominado movimento do Nuevo Cine Latinoamericano. Ao nos debruçarmos sobre a produção do Nuevo Cine Latinoamericano é possível identificar um sem número de paralelos estéticos e ideológicos com as produções europeias. Linguagem, recursos de montagem, movimentos de câmera, entre outros aspectos técnicos e estéticos, são apropriações verificáveis nos filmes de realizadores do Nuevo Cine Latinoamericano. Para nós, historiadores, é importante analisar como funcionou essa circulação de ideias, imagens e práticas cinematográficas produzindo o que Sanjay Subramanyam e Serge Gruzinski chamaram de História Conectada2.Essa história conectada se daria dentro de um fenômeno que Michel Espagne denominou de transferências culturais3. Para Espagne 1
Ver: DEL VALLE D’ÁVILA, Ignácio. Cámaras en Trance. El nuevo cine latino-americano, un proyeto cinematografico subcontinental. Santiago: Ed. Cuarto Propio, 2014. p.16. 2 Ver: SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies, Vol I, N 3, 1997.; e GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo milênio. Revista Estudos Avançados, 17/49, 2003. 3 No caso do cinema, as Connected Histories de Sanjay Subrahmanyan e de Serge Gruzinski operam dentro daquilo que Michel Espagne denominou de Transferências Culturais, sobre as quais entende: “Toda passagem de um objeto cultural para outro, resulta em uma transformação de seu significado, uma ressignificação dinâmica, que não podemos reconhecer plenamente sem ter em conta os vetores históricos dessa passagem” (Traduzido pela autora). ESPAGNE, Michal. La notion de Transfert Culturel. Revue Sciences/Lettres.Nº1. 2013. pp.2 e 5. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
não seria produtivo pensar a noção de “influência”, e sim de “transferências”, pois esta última nos conduz a pensar acerca das traduções, interpretações e ressignificações, que uma cultura/grupo pode realizar de determinados modelos artísticos, políticos, econômicos, etc. Assim, paraalém de pensar aqui uma comparação entre os dois filmes, ou os dois cineastas, tentará se demonstrar os resultados dos contatos e das transferências através da circulação de ideias políticas e estéticas cinematográficas. A partir dessa chave teórica, pretende-se analisar como se deram as conexões e apropriações do filme Il Vangelo Secondo Matteo (O Evangelho Segundo São Mateus, 1964), do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, no filme A Idade da Terra (1980), do cineasta brasileiro Glauber Rocha, procurando apontar para a existência de afinidades, diálogos e conexões entre a filmografia dos dois cineastas, contemporâneos entre si e de linguagens e estéticas semelhantes e influentes cada qual no cinema do outro. Duvaldo Bamonte, em sua tese de doutorado em Ciências da Comunicação, “Afinidades eletivas: o diálogo de Glauber Rocha com Pier Paolo Pasolini (1970-1975)”, recorda que o cineasta italiano Bernardo Bertolucci foi um dos primeiros a apontar as semelhanças entre Manuel, personagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol4 (dir. Glauber Rocha, 1964), e Accatone, personagem de Desajuste Social5(Accatone, dir.
4
O filme apresenta um retrato realista e dramático de uma família sertaneja cuja pobreza e degradação a conduzem à luta contra o latifúndio e a Igreja, simbolizando exemplarmente as rebeliões populares nos sertões brasileiros através do recurso das alegorias e alusões folclóricas regionais. Depois de matar um patrão inescrupuloso, Manoel foge com a mulher Rosa para as terras áridas do sertão. Convertidos em foras-da-lei, depois que a sociedade os julga indignos de tratamento justo e respeitabilidade, encontram primeiro Sebastião, um místico negro que prega a proximidade de um levante milenarista quando “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. No entanto, Sebastião acaba sendo morto por Rosa e seus seguidores são assassinados por Antonio das Mortes, uma figura misteriosa, contratada por latifundiários e membros da Igreja católica. Em seguida, Manoel e Rosa encontram Corisco, o “Diabo Louro”, um dos últimos cangaceiros ainda vivo. Após ingressarem no cangaço, sofrem a perseguição empreendida por Antonio das Mortes contra os cangaceiros. Ao final, Corisco acaba sendo assassinado por Antonio das Mortes, enquanto Manoel e Rosa são obrigados a fugir, ainda rebeldes, mas conscientes de que nem a marginalidade nem o misticismo podem resolver seus problemas. 5 Trata-se de um filme dramático italiano ambientado na cidade de Roma na década de 1960, cenário onde Accattone, o protagonista da trama, representa a figura de um cafetão da periferia pobre romana que, acossado pela fome e decidido a não procurar um emprego, abandona a sua esposa e seus filhos, passando a roubar e a ficar a maior parte do tempo ocioso em cafés com os seus amigos, enquanto vive do dinheiro ganho pela sua nova companheira, a prostituta Maddalena. Por sua vez, quando Maddalena é presa por perjúrio, Accatone encontra-se sem a sua fonte de rendimento e, sem ninguém para sustentá-lo. Neste cenário, chega a passar fome até que conhece a bela e inocente jovem Stella. De início, pretende iniciá-la na prostituição, mas acaba se apaixonando pela jovem e decide tentar arranjar uma forma – honesta ou não – de sustentá-la e recuperar sua sorte financeira, apesar de acabar fazendo a única coisa que sabe: pensar em si mesmo e prosseguir tendo uma vida miserável, sobrevivendo e não vivendo. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Pier Paolo Pasolini, 1961)6. Da mesma forma, ainda segundo Duvaldo Bamonte, o crítico cinematográfico italiano Lino Miccichè também apontou sutis semelhanças, em certos posicionamentos comuns que teriam guiado a incursão política e cultural dos cineastas, principalmente a partir do final da década de 19607. Até mesmo o cineasta Glauber Rocha também sinalizou para os pontos de aproximação em comum entre os seus filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e A Idade da Terra (1980) com o filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini. Em seu livro O Século do Cinema (1981), uma reflexão sobre as experiências cinematográficas de Hollywood, do Neorrealismo Italiano, da Nouvelle Vague Francesa e de suas influências no Cinema Novo Brasileiro, Glauber Rocha apresentou em quatro textos – “Pasolini”, “Um Intelectual Europeu”, “O Cristo Édipo” e “Paso Sado Mazo Zalo” – vários comentários sobre o cinema italiano e o cineasta Pier Paolo Pasolini, procurando marcar tanto as suas aproximações e semelhanças quanto os seus distanciamentos e diferenças em relação aos filmes e a estética desenvolvida pelo cineasta italiano, sua crítica à apropriação fílmica do Terceiro Mundo feita por Pasolini – segundo Glauber, Pasolini procurava no Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão –, assim como pontuou a relevância de Pasolini na representação cinematográfica da Itália e na realização de um retrato
6
Homenageado do Seminário Internacional de Cinema – CineFuturo em julho de 2011, o cineasta italiano Bernardo Bertolucci gravou uma saudação à Bahia em que diz que seu relacionamento com o Brasil foi intensificado com a chegada de Glauber Rocha na Europa: “O primeiro filme brasileiro que lembro ter visto foi Barravento. Glauber me balançou com aquele filme e depois Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Etc., Etc.”. Bertolucci lembra ainda que ele e o cineasta baiano chamavam seus filmes de miúra, “uma raça de touros, os mais blindados das touradas, como diria Glauber, que nem um mosquito poderia entrar no cú deles. Nossos filmes eram tão fechados que nenhum espectador entrava para vê-los”. (Cf. MEIRELES, Adalberto. “Será que estamos cansados de Glauber?”. Blog .C de Cinema. http://pontocedecinema.blog.br/blog/sobre-o-blog/. Acessado em 22/05/2015, às 22:55). Francisco Luiz de Almeida Salles recorda o encontro entre Glauber Rocha e Bernardo Bertolluci: “Uma vez eu estava em Paris, era adido cultural da embaixada, Glauber estava comigo, e vieram me anunciar que o Bertolucci estava na portaria então o mandei entrar. Ele viu o Glauber e disse Barravento! E o Glauber respondeu Prima della Rivoluzione! (risos). Eram os dois grandes diretores jovens daquele momento”. Sobre a relação entre Glauber e Pasolini, apontada por Bernardo Bertulluci, ver também: Glauber aereo. In: GIUSTI, Marco (a cura di). Prima e dopo la rivoluzione. Brasile anni’ 60: dal cinema novo al cinema marginal. Turim: Lindau, 1995. p.95. 7 MICCICHÈ, Lino. Rocha: saggi e invettive sul nuovo cinema. Turim: ERI Edizioni RAI, 1986. p.10 ;e MICCICHÈ, Lino. Un cineasta tricontinentale. In: Glauber Rocha: scritti sull cinema. Veneza: XLIII Mostra Internazionale del Cinema, 1986. p.27, nota 65, no qual Lino Miccichè afirma: “[...]Vale a pena notar [...] como a atitude de Glauber Rocha tem notável ponto de contato com a de Pier Paolo Pasolini”. (traduzido pelos autores deste artigo). Apud. BAMONTE, Duvaldo. “Afinidades eletivas: o diálogo de Glauber Rocha com Pier Paolo Pasolini (1970-1975)”. São Paulo: Tese de Doutorado em Ciências da Comunicação (ECA-USP), Orientação: Prof. Dr. Ismail Norberto Xavier, 2002. p.09. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
realista da decadência da sociedade italiana da época8. Em uma das passagens do livro, Glauber Rocha recorda os seus primeiros encontros pessoais com Pier Paolo Pasolini, assim como descreve a personalidade polêmica do cineasta italiano: Gustavo Dahl, que conhecia profundamente o cinema mundial, me disse: “...Olha, só tem dois filmes bons na Itália, tirando os velhos comunistas do sistema, como Visconti ou De Sica, os místicos financiados pela Democracia Cristã, como Rosselini, Antonioni e Fellini... De coisa mais nova tem o filme de Francesco Rosi, Salvatore Giuliano [O bandido Giuliano, 1962] e Il Vangelo Secondo Matteo, de Pier Paolo Pasolini, que é uma porra louca genial, uma mistura de Jean-Luc Godard com Che Guevara...”. Salvatore Giuliano precedia a Deus e o Diabo..., eu conheci Pasoloni no festival de Karlov Vary, Tchecoslováquia, (ele apresentou Accattone [Desajuste Social, 1961] e eu Barravento (1961) e quando voltei de Gênova para Roma fui ver Il Vangelo.... Como tinha filmado Deus e o Diabo ...quase ao mesmo tempo, o filme de Pasolini me revelava comuns identidades tribais, bárbaras... Mas eu já pensava em Terra em Transe, no mar que sucede ao sertão, ondas além da Nouvelle Vague9. [...] ROMA 1965: os jovens cineastas italianos Gianni Amico e Bernardo Bertolucci levaram Pierre Paolo Pasolini, romancista, filólogo, poeta, cientista e cineasta para uma sessão privada de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Esperei do lado de fora com meu amigo Arnaldo Carrillo. Quando terminou a projeção não pude falar muito tempo com Pasolini porque ele estava gripado. E o encontro esperado não veio porque ele partia no dia seguinte para o Marrocos, onde filmaria Édipo Rei [Edipo Re, 1967]. Ia tratar do lançamento de Il Vangelo secondo Matteo [O Evangelho segundo São Mateus, 1964], a vida de Cristo modernizada segundo preceitos do papa João XXIII a quem o filme é dedicado. O reencontro se deu em Veneza, 1967, onde Pasolini apresentava a sua versão de Édipo Rei. Pier Paolo, como os amigos o chamam na intimidade, tem por volta de 44 anos, é baixo, magro, usa óculos, cabelos pretos: é violento, tímido e irônico ao mesmo tempo. É personagem lendário na Itália. Começou sua vida intelectual como professor de línguas romanas numa escola de província. Foi envolvido num escândalo de corrupção sexual de menores. Expulso da escola e processado, Pasolini iniciou a vida de poeta e romancista, mas sua evidência começa por volta de 1965, dez anos depois da guerra. Amigo de Alberto Moravia, grande incentivador de valores literários. Pasolini é 8
No artigo “Um Intelectual Europeu”, Glauber exalta a obra cinematográfica de Pier Paolo Pasolini, indicando a importância de cada filme: “Accatone é o último grito do neo-realismo. Mamma Roma é uma ópera psicolinguística. Il Vangelo é integração do artista ao Vaticano Comunista. Uccellacci e uccellini é a primeira blasfêmia. Édipo Rei é o primeiro pecado capital. Teorema é o primeiro escândalo. Porcile é a primeira comunhão. Medea é a primeira missa. Il Decameròn é a Capela Sixtina. Il racconti di Canterbury, o dilúvio. Il fiore dele mille e una notte é ritual estetificado pela frustração sexual”. No entanto, no mesmo texto, não deixa de criticar o filme Il fiore dele mille e una notte [As Mil e Uma Noites, 1974], afirmando: “Neste filme, Pasolini revolucionário do cinema vira costureiro da montagem, maquiador de heróis decadentes, fotógrafo de turismo, um sonoplasta oco e poeta católico de tendência espanholizante. Pasolini não se liberta da frustração de virilidade perdida, a beleza não o erotiza, a violência é um maneirismo, universo escuro de idealista onipotente. Il fiore é exposição audiovisual de fantasmas cristãos que desfilam no Terceiro Mundo encantados com a flexibilidade sexual dos primitivos. Pasolini colonializa o sexo do pobre, o subproletariado é máquina indefesa diante da sua morbidez”. Cf. ROCHA, Glauber. “Um Intelectual Europeu”. In: O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.282. 9 ROCHA, Op.cit., p.256. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
consagrado como inovador da língua italiana no romance e, politicamente, é ligado ao Partido Comunista, que faz publicidade do jovem rebelde 10.
Glauber faria ainda outra referência a Pasolini em 1981, quando, realizando quase uma homenagem póstuma tributária à memória do cineasta italiano, assassinado em 2 de novembro de 1975, relata a importância do filme O Evangelho Segundo São Mateus para a concepção do “Cristo Terceiro Mundista” do seu último filme, A Idade da Terra: No dia em que Pasolini o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a Vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a Vida de Cristo na mesma época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo, e também em relação à classe operária europeia. Foi o renascimento, a ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz, mas um Cristo que era venerado, vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição. Sobre o cadáver de Pasolini eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito nova 11.
Por sua vez, encontramos poucas referências feitas por Pasolini sobre o cinema de Glauber Rocha. A primeira delas seria feita no seu famoso texto-manifesto Il Cinema de Poesia (1965) no qual aponta o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, como exemplo da poética cinematográfica que estava sendo desenvolvida em vários países na década de 196012. A segunda referência é realizada 10
ROCHA, Glauber. “Pasolini”. In: O Século do Cinema, pp.276-277. Esta passagem por ser encontrada em Roteiros do Terceiro Mundo. Ver: ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. p. 461. 12 A princípio, a obra de Pasolini é percebida como um “cinema de poesia” (cf. SAVERNINI, Erika. Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.) que o próprio Pasolini identificou em alguns filmes da década de 1960. Ele defendeu esta hipótese no texto “Cinema de Poesia” (Ver: PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Herege. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982), onde propõe que certo tipo de abordagem cinematográfica pode ser compreendida a partir do mesmo ponto de vista linguístico utilizado na distinção entre a prosa e a poesia. De acordo com Pasolini, no cinema é mais difícil distinguir entre linguagem da prosa e linguagem da poesia porque não sabemos com clareza qual é a linguagem do cinema. Ele não explicita se existe uma relação correspondente entre palavra e imagem, mas afirma que a distinção que fez entre a prosa e a poesia no cinema era muito empírica; a linguagem da poesia é aquela onde se sente a câmera, assimcomo na poesia se pode sentir imediatamente os elementos gramaticais da função poética; na linguagem da prosa, não sentimos a câmera, a presença do autor e seu estilo não são aparentes. (Cf. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds.) Pier Paolo Pasolini per Il Cinema. Milão: Mondadori, 2001. Entrevista concedida ao Cahiers du Cinéma, nº 169, agosto de 1965. Vol. II, p.2891.) Para ele, o naturalismo da linguagem em prosa leva ao limite a própria vocação naturalística do cinema: com uma só imagem, o cinema pode mostrar um rosto em detalhe. Na superação do naturalismo, a linguagem da poesia, que não é natural, inundaria a imagem com metáforas: construção de um vocabulário de comunicação através de imagens; inventar as próprias imagens. Entretanto, conclui Pasolini, “isto depende em primeiro lugar dos poderes e da qualidade da metáfora e das abstrações do cineasta. Mas não acredito que nenhum filme tenha nunca ultrapassado este limite – nem mesmo o mais poético dos filmes”. (Idem, p. 11
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
no texto Il Cinema impopulare (1970), onde descreve o rompimento do modelo de narrativa cinematográfica como uma forma de expressão de liberdade autoral, considerando exemplar o caso do filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969): Também Glauber Rocha sofreu a chantagem avanguardista-gauchista (quanto a mim, me reservo o direito de lançar esta pedra), e “Antonio das Mortes” (O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro) o testemunha: os destinatários de categoria A o levaram para trás de suas barricadas, desta vez seguidos também dos pávidos comunistas tradicionais que leram neste filme a esquemática reinvindicação revolucionária de que se acontentam 13.
Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha: os cinemas europeu e latino-americano em diálogo.
Ao refletir sobre as conexões Glauber-Pasolini, Maria Rita Nepomuceno considera ser preciso levar em conta que: Antes de tudo entre os dois autores existe um diálogo estético: se identificam na épica de Cristo, no arquétipo do deserto, dialogam os manifestos “Estética da Fome”, 1962 e “Estética do Sonho”, 1971, com “O Cinema de Poesia”, 1965. O “irracionalismo” das estéticas de vanguarda da teorização pasoliniana de um cinema de poesia (em que Glauber Rocha é usado como exemplo do aspecto internacional) é também a base a crítica à “estética da recusa” – que em torno ao escândalo linguístico e
2893.) Apesar de referenciar o “cinema de poesia”, Pasolini não se incluiu como exemplo, advertindo que: “[...] provavelmente, meus filmes não pertencem a esta corrente. Ou então só em parte: isso valeria exclusivamente para meu último filme, O Evangelho Segundo São Mateus [Il Vangelo Secondo Matteo, 1964]”. (Idem, p. 2899.) Contudo, citava alguns filmes de Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Milos Forman e Glauber Rocha como exemplos. Referência que repete no texto “A Poesia do Novo Cinema”, resultado da mesa-redonda sobre o tema “Crítica e Novo Cinema”, realizada durante a Primeira Mostra Internacional do Novo Cinema (de 29 de maio a 6 de junho de 1965), em Pésaro (Itália), onde afirma: “Como exemplos concretos de tudo isso, levarei ao laboratório Antonioni, Bertolucci e Godard – mas também poderia acrescentar Glauber Rocha, do Brasil, ou alguém da Tchecoslováquia, e naturalmente muitos outros (muitos dos autores do Festival de Pésaro, presumivelmente)”. Cf. PASOLINI, Pier Paolo. “A Poesia do Novo Cinema”. Revista Civilização Brasileira, nº.07. Maio de 1966. p.280. 13 PASOLINI, Pier Paolo. “Il Cinema Impopulare”. In: SITI, Walter (Org.). Saggi sulla letteratura e sull’arte, vol.1. Milão: Mondadori, 2001.p.1607. Apud. NEPOMUCENO, Maria Rita. “A visita de Pasolini ao Brasil: um Terceiro Mundo melancólico”. Ciberlegenda (UFF. Online), v. 23, p. 38/4-48, 2010. p.44, nota 21. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
comportamental revelava o conformismo de esquerda, o “neozdanovismo”14 das novas vanguardas15.
Após o período de diálogo e apropriação do Neorrealismo Italiano16, Glauber Rocha, em sua admiração pelo cinema de Pier Paolo Pasolini, dá continuidade a um intenso diálogo com o Fórum Cinema Novista italiano, que já vinha se estabelecendo desde os fóruns de debate do Cinema Novo Brasileiro na Itália, através da iniciativa do Columbianum, um instituto cultural, criado pelo padre jesuíta Angelo Arpa em julho de 1958, que, segundo Miguel Pereira, [...] teve uma importância fundamental não apenas na divulgação do cinema latino-americano na Europa, mas também como espaço privilegiado de avaliação crítica da produção e de discussão sobre propostas estéticas, além de grandes retrospectivas do cinema argentino, mexicano e brasileiro. Foi também pela primeira vez que o cinema cubano pósrevolucionário, enquanto uma cinematografia nova e engajada, foi mostrado na Itália17.
14
“Neo-zdanovismo” em referência ao secretário de cultura do partido comunista soviético Andrej Zdanov. 15 NEPOMUCENO, Op.cit., p.44. 16 O Neorrealismo Italiano foi uma corrente cinematográfica que se tornou importante após a Segunda Guerra Mundial. Pretendiam os seus autores um regresso ao realismo, que marcou a segunda metade do século XIX, e o qual procurava descrever a realidade com objetividade, sem uso do embelezamento poético, ou recurso a explicações sobrenaturais e artificiais. Uma série de filmes se caracteriza por um conjunto de traços comuns: o uso de cenários naturais em vez de filmagens em estúdios, má iluminação, por vezes o uso de atores não profissionais, forte atenção aos problemas sociais, eprincipalmente temas próximos do povo anônimo, que surgia como personagem principal, e uma temática atual, que coincidia com uma filmagem quase em estilo de documentário. Pretendia-se, assim, fugir ao cinema Hollywood, com os seus temas de heróis, aventura e romance, que era seguido por parte do cinema italiano. Cf. FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo italiano: uma leitura. São Paulo: Edusp-Fapesp, 1996, pp. 33-51. Glauber Rocha, já em A Idade da Terra, encontrava-se em rompimento (ao menos em nível teórico) com o Neorrealismo italiano. Geraldo Sarno revela em seu livro uma conversa com Glauber Rocha, em finais da década de 1970: “‘Eu tenho uma concepção épica e trágica da vida’. E fala de cinema, e faz um ataque frontal ao neorrealismo”, conta Geraldo Sarno. Ver: SARNO, Geraldo. Glauber Rocha e o cinema Latino-americano. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ/Rio Filmes, 1995. p.11. Nesta época, Glauber queria romper as ligações com qualquer “Estética do colonizador”. Em Projeto de um filme a ser realizado em Cuba (Proyecto de una película a realizarse en Cuba – de 9 de março de 1972), Glauber Rocha, claramente identificando o Neorrealismo Italiano como uma linguagem do colonizador, explica à direção do Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC): “A influência do estilo de fotografia, montagem e direção de atores do cinema latino-americano revela constantemente submissão aos métodos da Nouvelle-vague, do Neo-realismo e menos do cinema americano, devido às impossibilidades econômicas de imitá-lo. Um cinema não pode ser descolonizador se utiliza da linguagem colonizadora: zooms, estilo de montagem fragmentado de efeitos visuais, câmera na mão, montagem a partir de textos escritos, uso literário e sonoro que se limita às velhas práticas de Resnais e Chris Marker (o documentário) e práticas de Truffaut, Godard (com as diferenças que cada estilo apresenta), vinculação humanista ao Neo-Realismo e a consideração que se tem por cineastas recolonizados pelos americanos como Gavras, Petri, Rosi”. Ref.: ROCHA, Glauber. Proyecto de una película a realizarse en Cuba. Apud. SARNO, Op.cit., p.14. 17 PEREIRA, Miguel. “O Columbianum e o cinema brasileiro”. Alceu, vo.8, nº15, pp.127-142, jul./dez. 2007. p.128. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O Istituto Columbianum tornou-se um importante centro difusor da cultura latino-americana na Europa, divulgando e discutindo, dentre outras manifestações artístico-culturais, a literatura18 e o cinema produzidos na América Latina. Dentre as várias atividades realizadas por este instituto cultural destacou-se a criação da Rassena del Cinema Latino-Americano, um importante festival dedicado ao cinema da América Latina, realizado nas cidades de Santa Margherita Ligure (I Rassegna: 7 a 15 de junho de 1960; II Rassegna: 19 a 27 de maio de 1961), Sestri Levanti (III Rassegna: 1 a 8 de junho de 1962; IV Rassegna:25 maio a 1º de junho de 1963) e Gênova (V Rassegna: 21 a 30 de janeiro de 1965). Além das competições pelas premiações do festival, julgadas por um júri composto de importantes nomes da cinematografia e da intelectualidade europeia e latino-americana, era um evento que promovia simpósios, mesas-redondas, exposições, cursos de cinema com análise e discussão de filmes na moviola, realizando, assim, um profícuo debate sobre temas da cultura latinoamericana. Gianni Amico, organizador da Prima Rassegna del Cinema LatinoAmericano, ao ser entrevistado pelo jornal Il Lovoro Nuovo (4 de junho de 1960), afirmou: Duas razões principais motivaram a nossa escolha: o interesse pela cultura latino-americana, cujo estudo o Columbianum há muito se dedica e a vontade de propor, de um modo orgânico e documentado, um discurso sobre cinematografias ainda desconhecidas, em sua maior parte, na Europa. Estaremos, por isso, associando um trabalho de estudos a uma ação informativa19.
Os cinco Festivais do Cinema Latino-Americano organizados pelo Instituto Columbianum, indubitavelmente, representaram uma intrigante iniciativa intelectual, responsável pela tentativa de criar e de desenvolver provavelmente o primeiro espaço de interlocução de intelectuais e artistas engajados em promover uma resistência cultural ao processo avassalador de globalização da cultura de massas que os Estados Unidos da América estavam desenvolvendo desde a década de 1930 e que ganhou 18
Segundo Miguel Pereira: “Uma das iniciativas importantes foi a edição de alguns livros que traziam para a Itália um pouco da cultura latino-americana. Em colaboração com a Editora Silva do Milão, o Columbianum criou uma coleção de livros de iniciação à cultura ibero-americana do século XX, cujos títulos principais, segundo Amos Segala foram: – Ruggero Jacobbi: Lirici brasiliani dal modernismo ad oggi, 1960; – Leopoldo Zea: América Latina e cultura occidentale, com introdução de Manuel Tuñón de Lara, 1961; – Rómulo Gallegos: Canaima, com introdução de Juan Liscano, 1962; – Octavio Paz: Il labirinto dela solitudine, com introdução de Giuseppe Bellini, 1963; – Miguel León Portilla: La memoria dei vinti, 1964; e – Jorge Luis Borges: Antologia personal, 1965”. Cf. PEREIRA, Op.cit., p.131. 19 Apud. PEREIRA, Op.cit., p.133. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
força maior após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Destes cinco festivais, certamente o de maior repercussão foi a V Rassegna del Cinema Latino-Americano (1965), responsável pela criação do megaevento cultural denominado Congresso Terzo Mondo e Comunità Mondiale, “um estimulante encontro de culturas” (segundo dizia a impressa italiana da época) que reuniu renomados intelectuais da América Latina, da Europa e da África na busca de efetivação de um projeto de estreitamento cultural entre a Europa, especialmente a Itália, e o Terceiro Mundo. Inserido no cenário da Guerra Fria, o Congresso Terzo Mondo e Comunità Mondiale representava a tentativa italiana de recuperação da hegemonia cultural europeia sobre os países do Terceiro Mundo (em especial a América Latina e a África) em detrimento do poderio cultural exercido pelos Estados Unidos da América (EUA) ou pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)20. Neste sentido, o Congresso propiciou uma maior exposição do cinema latino-americano através de empreendimentos como a realização da Mesa-Redonda e da Mostra Informativa sobre o Cinema Novo Brasileiro, a formação de um grupo de trabalho reunido para a criação de uma revista chamada “América Latina” e a apresentação e divulgação do texto-manifesto do movimento cinema-novista “Cinema Novo e Cinema Mundial”, de Glauber Rocha, que viria depois a ser publicado no Brasil, na Revista Civilização Brasileira, número 3, de julho de 1965, sob o título A Estética da Fome. Neste profícuo cenário artístico-cultural para a América Latina, Glauber Rocha, que desde a década de 1960 vinha teorizando acerca do Cinema Novo Brasileiro e Latino-Americano, árduo defensor de um cinema de autor, viu no Fórum Cinema Novista italiano postulados e perspectivas promissoras para se fazer cinema na América Latina. Nos moldes do “cinema de poesia”, seu referencial mais forte foi o filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo).
20
Miguel Pereira aponta que na ata da fundação do Columbianum (1958) o padre jesuíta Angelo Arpa sublinhou as motivações de criação desta instituição cultural e fundamentou sua origem na necessidade de a Europa rever sua vocação como “força de ordem espiritual e moral”, ameaçada pelo “surgimento de dois grandes blocos, o Leste e o Oeste, que lutam para conquistar novas hegemonias mundiais. Aos povos da Europa se coloca, de imediato, um dilema simples e grave: unir-se ou desaparecer”. Cf. PEREIRA, Op.cit, p.130. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Pier Paolo Pasolini e “O Evangelho Segundo São Mateus”
Mais que um cineasta, Pier Paolo Pasolini foi um intelectual, um artista, que teve
considerável
protagonismo
e
influência
em
todos
os
conturbados
acontecimentos históricos da Itália após a Segunda Guerra Mundial, tendo sido responsável por quebrar preconceitos e tabus, escandalizar a sociedade italiana, polemizar política e ideologicamente com os seus inimigos e até mesmo conseguir unir elementos opostos como o Comunismo, a Igreja Católica e a Homossexualidade. Graduado em Literatura pela Universidade de Bologna aos 20 anos, Pasolini trabalhou como professor, romancista e poeta, publicando poesias e romances, que o levaram a tornar-se um intelectual engajado. Quando resolveu se dedicar ao cinema, começou atuando como colaborador em vários roteiros cinematográficos – dentre os quais, Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, dir. Frederico Fellini, 1957) – antes de realizar a sua estrondosa estreia como diretor em Desajuste Social (Accatone, 1961), filme que cria uma mistura de esquerdismo marxista com cristianismo, aspectos que seriam recuperados em sua versão cinematográfica de O Evangelho Segundo São Mateus. Apesar de fundada no Neorrealismo Italiano, a produção cinematográfica de Pasolini é singular pelo fato de que ele apropriava os princípios do realismo para expressar em seus filmes a sua própria realidade, permeada de ideologia, mitologia, metáforas e alegorias. Como em seus romances romanos, o realismo dos lugares, das personagens e das situações vai além dos limites de questões estilísticas, configurando-se em uma espécie de realismo transfigurado com elementos épicos e religiosos. Dessa forma, Pasolini mostrou-se particularmente interessado no enquadramento da cena mais do que na edição, por isso os seus filmes tendiam a focar na intensidade de expressão da imagem, num gesto ou olhar isolados do contexto, quase como se ele quisesse que esta fosse mais real do que a própria realidade. Pasolini nutria profunda rejeição pela sociedade burguesa, industrial e massificada, pontuando, assim, a sua inquietude frente à uniformização da sociedade italiana, que vinha perdendo sua cultura diversificada e ancestral. Segundo Alexandre A. Fernandez, doutor em Cinema pela Universidade de Paris III, Pasolini, ateu e marxista, profundamente incomodado com uma cultura de massa cada vez mais Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
crescente entre os anos 1950 e 1960 na Itália, traz uma contraposição com os elementos “poéticos e míticos da cultura ancestral”: É o caso de filmes como O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Édipo Rei (1967) e Medéia (1969-1970), por exemplo, que apresentam mitos ligados ao sacrifício, ato indispensável à sacralização e ao renascimento. O sacrifício está intimamente relacionado com o cristianismo, que Pasolini absorveu da mãe, apesar de ter abraçado o marxismo ainda na juventude. Mesmo sendo ateu e anticlerical, o cineasta não ignorava que estava impregnado de dois mil anos de cristianismo21.
Ainda para Fernandez, Pasolini recupera o mito, o irracional e o instintivo para lançar como dados de uma experiência coletiva ameaçada, indispensáveis para que a humanidade não perca suas referências22. Neste sentido, o cineasta reconhecia que a sua cultura histórica estava impregnada de dois mil anos de cristianismo, e que este – ontologicamente – demarcava a dinâmica sócio-histórica da Itália. Em uma entrevista, Pasolini discute essa questão: Nunca fui religioso, a menos que considere uma ridícula crise religiosa, aos 14 anos de idade, eu ainda era muito inocente. Daí, de um dia para o outro eu não acreditava mais. Nasci católico, por acaso, porque nasci na Itália, mas nunca fui particularmente católico e critiquei a Igreja como qualquer católico intelectual. Eu tive uma criação muito agnóstica. Isso me levou ao marxismo. Portanto, cheguei lá de modo mais óbvio e natural. A Igreja na Itália sempre foi um instrumento de poder. Mas não creio que um poder ideológico, em oposição ao poder prático que tenha influência sobre o camponês italiano. O italiano não é religioso. Não quero dizer pagão, o que seria uma generalização, mas ele é pré-católico, ele permaneceu no estado em que o catolicismo chegou, principalmente no sul. O catolicismo é uma crosta superficial sobre o povo italiano e acredito que basta um confronto forte para destruir estes ideais. Acho que o Evangelho é um dos livros de propaganda religiosa que foram escritos. Vai chegar o tempo em que o Evangelho vai ser linguisticamente incompreensível para a humanidade. O Evangelho cabe no seu tempo e no seu lugar histórico. A Igreja só sobreviverá se mudar continuamente em crise sua própria institucionalidade. Estou preparando agora um filme sobre São Paulo, no filme questionamos não a validade da Igreja, mas a sua existência moral. A Igreja, provavelmente, poderá continuar a séculos a vir ainda que criando assembleias clericais que continuamente se negam e se recriam. Minha crítica é contra a Igreja como poder, de como ela é hoje. Eu disse que quando era garoto, eu acreditava, eu rezava, mas não era nada sério. Acho que há algumas facetas no meu caráter que têm algo de uma qualidade mistificadora. Digo que isso faz parte do trauma que domina a minha existência. A natureza não me parece natural é um ato entre mim e a naturalidade da natureza. Filosoficamente, nada que eu já fiz foi mais adequado a mim que “O Evangelho Segundo São Mateus”, devido à minha
21 22
FERNANDEZ, Alexandre A. DVD “O Cristo austero de Pasolini”. Revista História Viva. Dez, 2003. Idem. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
tendência de ver sempre algo mítico, sagrado e de uma qualidade épica, mesmo em objetos e eventos mais banais23.
O filme O Evangelho Segundo São Mateus foi uma das primeiras produções cinematográficas de Pier Paolo Pasolini a ser influenciada livremente pelas tradições religiosas, marxistas e neorrealistas, apresentando-se como um filme épico bíblico bem diferente dos filmes hollywoodianos e europeus realizados até aquele momento. Em uma reportagem do cinejornal LUCE sobre a viagem de Pasolini a Israel para dar início ao seu projeto cinematográfico, o cineasta afirmou: “Quero filmar a história mais extraordinária já escrita. Não será um filme para as massas, no senso comum da palavra porque a história não traz nada novo ao público, mas se me permite usar uma expressão popular, é uma história que dá tudo, sem entregar nada”24. No documentário cinematográfico Locações na Palestina para O Evangelho Segundo São Mateus (Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo, dir. Pier Paolo Pasolini, 1965), sobre os preparativos para a realização do filme, o cineasta realiza uma viagem para a Palestina, com o Padre Don Andrea Carraro, com o objetivo de procurar cenários apropriados para as filmagens, na esperança de encontrar os lugares que lembrem o mundo bíblico arcaico. No entanto, ao longo do percurso pelos lugares da pregação de Cristo, reconhece neles os elementos típicos da campanha no sul da Itália, assim como fica surpreendido pela modernidade de algumas áreas de Israel, como Tel Aviv e a parte israelense de Jerusalém, em contraste com as aldeias arcaicas miseráveis do mundo árabe. Ele constata ainda que o mundo judaico é muito ocidentalizado e industrializado para servir como cenário das filmagens. Da mesma forma, ao entrar em contato próximo com a população local, ele percebe que seria impossível encontrar o elenco para atuar no filme, pois considera que os judeus possuem rostos muito modernos, enquanto os árabes da região apresentam rostos pré-cristãos. Próximo à cidade de Nazaré, Pasolini chega a entrevistar alguns moradores de uma Kibbutz, conhecendo a sua organização social e sistema de educacional. 23
Entrevista do cineasta Pier Paolo Pasolini concedida para o documentário Pier Paolo Pasolini (dir. Carlo Hayman-Chaffey, Itália, 1971), vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. 24 Entrevista do cineasta Pier Paolo Pasolini concedida para um cinejornal da LUCE na época do início das filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus, vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O cineasta Pier Paolo Pasolini e o ator Enrique Irazoqui durante as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus.
Antes de entrar em Jerusalém, o diretor afirma estar desapontado com a sua investigação e levanta a possibilidade de ter de recriar em outros lugares o cenário do seu filme, embora reconheça que a simplicidade e a pequenez dos lugares da pregação de Cristo eram, para ele, uma lição de vida. O documentário termina com uma visita a Jerusalém, cuja grandeza fascina Pasolini, e a Belém, com imagens da gruta onde, segundo a tradição, Cristo nasceu. Próximo ao final do documentário, o cineasta concede uma entrevista ao seu amigo e companheiro de viagem, o Padre Don Andrea Carraro, onde sintetiza a experiência de sua viagem à Israel e as mudanças de planos para as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus: PADRE DON ANDREA CARRARO: Dr. Pasolini, à sua frente está a divisa entre Israel e Jordânia. Aqui você pode ver a área crucial dos últimos dias da paixão e vida de Jesus. O monte das Oliveiras, o vale Kidron, com o Getsêmani, a antiga fundação do templo, Sião. Agora que você visitou toda a Palestina e Israel, talvez vá a Jordânia. Qual é a sua impressão desta terra, destes lugares, onde Jesus andou e falou? PIER PAOLO PASOLINI: Se entendi corretamente esta cerca não apenas separa Israel da Jordânia, dividindo a nossa viagem em duas, mas ela também divide os estudos para nosso filme em dois. Vimos os lugares onde Jesus pregou e estamos prestes a ver os lugares de sua paixão. Já falamos muito sobre os lugares onde ele pregou. Não posso dizer que estou decepcionado, isto seria totalmente absurdo. Talvez de um ponto de vista prático, sim, esteja decepcionado. Não encontrei nada que possa usar no filme, nem na paisagem, nem nos personagens. A paisagem é composta por quatro colinas estéreis e os personagens são judeus com rostos muito modernos, que mostram toda a cultura moderna a partir do Romantismo. São pessoas marcadas por ela e perderam todos os aspectos “arcaicos” que eu gostaria em meu filme. O que mais me intriga é esta paisagem, que Cristo tenha escolhido um lugar tão árido, tão estéril, sem nenhum conforto. Quatro colinas estéreis, a base de um lago, calor escaldante e nada mais. Tudo isto pode ser reconstruído em outro lugar. PADRE DON ANDREA CARRARO: Doutor Pasolini, você fala de decepção prática. Podemos achar que, na época de Jesus, a Galiléia era diferente, que a Palestina, antes das invasões árabes era mais enfeitada, mais rica. Quais as suas impressões espirituais da locação?
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
PIER PAOLO PASOLINI: Veja, para nós, a palavra “espiritual” tem significados diferentes. Quando você diz “espiritual”, você quer dizer, acima de tudo, religioso, íntimo e religioso. Para mim, “espiritual” corresponde à estética. Ao chegar aqui, quando experimentei uma decepção prática não teve importância. Mas, uma profunda revelação estética corresponde a esta decepção prática. E esta revelação estética é muito mais importante porque se desdobra num campo que pensei que fosse totalmente meu. Minha ideia de que quanto menor e mais humilde as coisas forem, mais profundas e bonitas elas são, foi abalada porque é mais verdadeira do que eu imaginava que fosse. Então, a ideia destas quatro colinas estéreis, de Cristo pregando se tornou uma ideia estética, e assim espiritual. [...] Jerusalém é um lugar como nenhum outro em Israel. É um mundo dentro de um mundo. E se antes as inspirações estilísticas do meu filme eram de uma certa natureza sobre a qual venho falando de modo confuso até agora, ver Jerusalém me sugeriu outras possibilidades graças a estes aspectos diferentes. Jerusalém é grandiosa, sem dúvida. Há algo historicamente sublime em sua aparência. E é evidente que quando Jerusalém aparece no filme, ela não pode evitar incutir no filme uma identidade estilística diferente. Jerusalém aparece na história contada por Mateus no momento em que Cristo está pregando. Até então solenemente religioso não por vontade direta de Cristo, nem pela dos apóstolos, mas devido a eventos objetivamente históricos se torna um fato político e público, assim como religioso. Obviamente, isto não vai ser dito explicitamente no filme, seria absurdo. Mas será dito implicitamente. E isto acontecerá através de uma mudança estilística na história. Onde antes tudo era puro, simples, articulado com absolutismo extremo, a chegada em Jerusalém marcará uma virada no filme. Haverá uma sensação de grandeza no filme. Foi assim que Cristo provavelmente entrou em Jerusalém 25.
As filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus, uma produção francoitaliana26, acabaram sendo realizadas principalmente nas ruínas de Matera, ao sul da Itália, em 1964. Pasolini buscou utilizar-se de cenários mínimos e de enquadramentos simples para criar um retrato convincente Palestina27 da Era Bíblica. Herdeiro da tradição do Neorrealismo Italiano, Pasolini escalou atores não-profissionais, figurantes escolhidos entre a população local de camponeses e alguns amigos pessoais para atuarem no filme. Para o papel de Jesus Cristo seria escolhido inicialmente um ator 25
Entrevista do cineasta Pier Paolo Pasolini ao Padre Don Andrea Carraro concedida para o documentário Locações na Palestina para o Evangelho Segundo São Mateus (Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo, dir. Pier Paolo Pasolini, Itália, 1965), vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. 26 Produção: Arco Film (Roma) / Lux Compagnie Cinématographique de France (Paris). Distribuição: Titanus Distribuzione S.p.A. (Itália). 27 Também denominada – especialmente por historiadores brasileiros – como Bacia do Mediterrâneo. No entanto, neste artigo prefere-se utilizar o termo ‘Palestina’ para designar esta região em que viveu Jesus, por concordarmos com as observações feitas pelo historiador Reza Aslan, que afirma: “Embora a Palestina fosse a designação romana não oficial para a terra que engloba o território moderno de Israel, Palestina, Jordânia, Síria e Líbano durante a vida de Jesus, não foi senão até os romanos sufocarem a revolta de Bar Kochba em meados do século II que a região foi oficialmente nomeada Síria Palestina. No entanto, a expressão ‘Palestina do século I’ tornou-se tão comum nas discussões acadêmicas sobre a era de Jesus que não vejo nenhuma razão para não usá-la neste livro”. Cf. ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Notas. p.234. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
alemão, mas o cineasta acabou selecionado Enrique Irazoqui, um estudante espanhol de 19 anos, enquanto que para o papel de Maria na fase idosa, o cineasta escalou a sua própria mãe, Susanna Pasolini.
Cartazes do filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964)
O filme é uma adaptação do texto bíblico de Mateus, considerado o mais realista de todos os Evangelhos de Cristo28. Narrando desde o nascimento de Jesus de 28
A palavra “Evangelho” é de origem grega e significa a “Boa-nova” ou “Boa Notícia”. Os Evangelhos são escritos que contam a boa-nova da vinda entre os homens daquele que se fez “filho do homem”, a fim de que nos possamos tornar “filhos de Deus”. Estes livros foram escritos em grego, em décadas distintas, muito tempo depois da crucificação de Jesus Cristo. Mas antes de ser um livro, o Evangelho foi a palavra pregada: antes de ser lido, ele foi ouvido. Como o Senhor Jesus tinha falado, assim falaram os apóstolos depois de sua morte. Mas eles não se contentaram em transmitir sua doutrina: acrescentaram-lhe um testemunho sobre sua vida e suas ações, como descreve Lucas em Atos dos Apóstolos: “Em minha primeira narração, ó Teófilo, contei toda a sequência das ações e dos ensinamentos de Jesus, desde o princípio até o dia em que, depois de ter dado pelo Espírito Santo suas instruções aos apóstolos que escolhera, foi arrebatado (ao céu). E a eles se manifestou vivo depois de sua Paixão, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta diase falando das coisas do Reino de Deus”. (At-1:1-3.). Pericopes retiradas de: Bíblia Sagrada. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). São Paulo: Editora Ave-Maria, 2013. p.1413.O ensinamento dos apóstolos se inseria no quadro seguinte: 1.a pregação de João Batista; 2.a missão de Jesus na Galiléia; 3.a missão de Jesus na Judeia e em Jerusalém; 4.sua paixão, sua morte e sua ressurreição. É esse o quadro em que se amolda a narrativa dos três primeiros evangelistas. Segundo os historiadores André Leonardo Chevitarese e Pedro Paulo A. Funari: “O primeiro deles [os Evangelhos] e o mais curto, o de Marcos, escrito a partir de 70 d.C., é considerado o testemunho mais fidedigno. Marcos, Mateus e Lucas são chamados de sinóticos, que em grego significa ‘com a mesma visão’, pois seus relatos são paralelos e seguem fontes comuns. O Evangelho de João segue caminhos próprios e foi escrito mais tarde, entre 90 e 110. O Ato dos Apóstolos é um relato ‘histórico’ dos primeiros seguidores de Jesus e deve ter sido escrito entre 64 e 85. As cartas ou epístolas constituem um gênero literário próprio, referente à correspondência entre os primeiros cristãos. As cartas de Paulo são os mais antigos documentos que sobreviveram. Elas foram escritas, provavelmente, entre os anos 40 e 60, sendo anteriores ao Evangelho de Marcos. A carta mais antiga é a Primeira aos Tessalonicenses, escrita entre 50 e 51, vinte anos após a morte de Jesus. Não há evidências de que Paulo tenha conhecido pessoalmente Jesus. Por isso, pouco nos fala sobre a vida do nazareno. Por fim, o livro do Apocalipse consiste em uma visão profética do futuro e Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Nazaré até a sua morte e ressurreição, Pasolini constrói uma narrativa austera e desmistificada da figura de Cristo, apresentando-o não como Deus, mas como homem revolucionário, envolvido de corpo e alma nas questões de seu tempo e sua sociedade29. A narrativa cinematográfica pasoliniana da vida de Jesus Cristo em O Evangelho Segundo São Mateus é distinta da clássica visão religiosa – e cinematográfica – sobre o nazareno, que era produzida até então, pois o cineasta não acreditava que Jesus era o filho de Deus. Além disso, o filme reinventa a figura mítica do Cristo partindo da reprodução fiel de algumas passagens do texto bíblico: todos os diálogos foram extraídos diretamente de O Evangelho Segundo Mateus30, pois o cineasta considerava que Mateus era o mais mundano e revolucionário dos evangelistas, assim como era o mais próximo a entender os problemas da época de Cristo. “Ninguém na Itália lê o Evangelho. O filme sugere que os italianos comecem a lêlo”, advertia Pasolini.
tampouco se volta para o Jesus da Galileia. Portanto, as principais fontes sobre a vida de Jesus são os Evangelhos”. CHEVITARESE, André Leonardo & FUNARI, Pedro Paulo. Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução. Rio de Janeiro: Kline, 2012.p.11. 29 Como o título sugere, todo o filme foi construído a partir dos relatos do Evangelho de Mateus (primeiro Evangelho do Novo Testamento, de acordo com a ordem do Cânone bíblico). Como é possível constatar a partir da leitura, e como afirmam teólogos e historiadores da religião, o Evangelho de Mateus, dentro os quatro evangelhos (sendo os outros três: os de Marcos, Lucas e João) é o que apresenta o Cristo mais “humano”, diferente, por exemplo, do Cristo miraculoso de Marcos e Lucas, e do Cristo ressurreto – Deus – de João. Dadas essas características, o Evangelho de Mateus apresentava o conteúdo narrativo mais adequado à proposta do filme de Pasolini. Ver: CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e debates metodológicos. Rio de Janeiro: Kliné, 2011; CHEVITARESE, André Leonardo e FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução. Rio de Janeiro: Kliné, 2012. 30 Se os Evangelhos Sinóticos se assemelham a ponto de apresentarem às vezes uma reprodução textual de certas narrativas, nem por isso deixam de ter entre si grandes diferenças que destacam a originalidade de seus autores. Embora fosse judeu, Mateus, conhecido como Levi nos Evangelhos de Marcos e de Lucas, foi coletor de impostos do governo romano, uma atividade lucrativa, porém desprezível entre o povo hebreu. Mateus deixou seu emprego para seguir a Jesus (Mt. 9.9-13) e foi um dos que acompanharam Jesus todo o tempo, começando desde o batismo de João até o dia em da ressurreição de Cristo (At.1:21-22). O Evangelho Segundo Mateus foi escritona Palestina em aramaico (dialeto do hebraico), provavelmente, entre 60 a 65 d.C., embora alguns tenham sugerido uma data nos anos 50 d.C. Esse texto, não conservado, foi depressa traduzido para o grego, idioma que era comum ao mundo e por meio do qual o conhecimento de Cristo seria transmitido mais efetivamente a todas as nações da Terra. Mateus escreveu especialmente aos leitores hebreus. Seu principal objetivo era provar que Jesus é o Messias, o Salvador e o Rei eterno. Ela faz isso ao mostrar como Jesus cumpriu as profecias do Antigo Testamento. Seu Evangelho inclui 53 citações e 76 referências ao Antigo Testamento – mais do que qualquer outro escritor do Novo Testamento. Informações extraídas de: Bíblia Sagrada. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). São Paulo: Editora Ave-Maria, 2013. pp.43-44; e Bíblia de Estudo Matthew Henry (The Matthew Henry Bible). Rio de Janeiro: Ed. Central Gospel, 2014.p.1393. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Vida e Paixão de Jesus Cristo: Cenas do filme O Evangelho Segundo São Mateus (1964)
O Cristo pasoliniano é um intelectual num mundo de pobres revolucionários em potencial. Em vez do cordato pastor, Pasolini apresenta Jesus Cristo como um homem pequeno, grave, que vive em movimento permanente, lançando imprecações aos fariseus. Severo e inflexível, diz que não veio trazer a paz, mas a espada. A força dramática do personagem e de seu verbo é enfatizada pelos enquadramentos que destacam o rosto do ator, o desconhecido Enrique Irazoqui...31.
31
FERNANDEZ, Op.cit., p.10. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Ao apresentar Jesus como um líder que reivindica e se enfurece, que não é pacífico e amoroso, e cujo discurso não é indulgente ou clemente, a intenção de Pasolini era mostrar Cristo como um homem de seu tempo 32. Neste aspecto, o cineasta italiano seleciona os elementos da narrativa bíblica que corroboram o seu discurso político-ideológico no filme, excluindo as passagens de amor, compaixão e auxílio ao próximo, apenas encenando as passagens de sermões e parábolas aos fariseus. Da mesma forma, os discípulos de Jesus Cristo são retratados como um grupo de jovens com consciência social, que trabalham por uma causa revolucionária. A juventude e a inexperiência dos atores revela a natureza tênue dos primórdios do movimento cristão, cheio de incertezas e ainda por ganhar forma. É como se Pasolini quisesse apagar 2000 anos de dogma e tradição para examinar os Evangelhos de um novo ângulo. Sobre isso, no documentário A Vida de Pasolini (dir.Ivo Barnabò Micheli, 1995), Pasolini afirmou: Minha visão do mundo é sempre épico-religiosa no final. Logo, mesmo no caso dos personagens mais miseráveis, aqueles sem nenhuma consciência histórica e me refiro especificamente à consciência burguesa, estes elementos épico-religiosos têm um papel muito importante. A pobreza sempre foi intrinsecamente épica. E os elementos que existem na psicologia de um infeliz, um pobre, um subproletário, são, de certo modo, sempre puros, sem autoconsciência e logo, essenciais33.
O filme é, em suma, um claro manifesto contra uma nação com uma profunda clivagem sócio-econômica, é um discurso contra o poder político da elite italiana. Pier Paolo Pasolini busca ainda inspiração em outras manifestações artístico-culturais para conseguir apresentar uma aura de espiritualidade para essa histórica ser contada e interpretada de forma a manter a simplicidade original da vida de Jesus Cristo. Para alcançar esse efeito, o filme possui poucos diálogos entre os personagens, que são retratados através dos recursos cinematográficos dos close-ups icônicos que lembram as pinturas religiosas medievais. A trilha sonora é composta por missas dos compositores de música clássica Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart, mescladas com blues. Além disso, a trilha sonora do filme tornou-se um
32
Para compreender como essa visão de um Cristo Revolucionário se constrói nos estudos acerca do Jesus Histórico, ver: CROSSAN, J. D. Jesus. Uma Biografia Revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995; e MEIER, J. P. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 33 Declaração do cineasta Pier Paolo Pasolini apresentada no documentário A Vida de Pasolini (dir. Ivo Barnabò, 1995), vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
inteligente artifício cinematográfico para auxiliar a interpretação e a mise-en-scène realizadas por um elenco inexperiente, que, por vezes, parece ter dificuldades para expressar suas emoções na tela de cinema. Por tudo isso, Pasolini conseguiu realizar um filme marcante e inovador a partir do Evangelho Segundo Mateus, e ao mesmo tempo fazer – sem assaltar visceral e intelectualmente o espectador – uma crítica marxista à cristandade. Glauber Rocha e “A Idade da Terra”
O cineasta Glauber Rocha, baiano de Vitória da Conquista, passou a adolescência em Salvador, onde começou a fazer cinema aos 13 anos, como crítico de um programa da Rádio Sociedade da Bahia, Cinema em Close-up. Três anos depois, fundou a sociedade Cooperativa de Cultura Cinematográfica Yemanjá, e tentou, no ano seguinte, produzir o curta-metragem Senhor dos Navegantes. Depois de uma viagem ao Rio de Janeiro, onde conheceu o cineasta Nelson Pereira dos Santos, que então realizava Rio, Zona Norte (1957), retornou a Salvador, em 1958, para dedicar-se a uma intensa atividade jornalística e dirigir o seu primeiro curta-metragem O Pátio (1959). Pouco depois iniciou Cruz na Praça, seu segundo curta-metragem, não finalizado. Em seguida atuou como produtor executivo de A Grande Feira (1960), de Roberto Pires, e realizou as filmagens de Barravento, projeto escrito e iniciado por Luís Paulino dos Santos, que se afastou da realização depois de alguns dias de filmagem. Mudou-se para o Rio de Janeiro, tornou-se jornalista e escreveu o livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), na mesma época em que assinou o roteiro e dirigiu Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), um dos filmes mais representativos do Cinema Novo Brasileiro. Realizou os curtas-metragens documentários Amazonas, Amazonas (1966) e Maranhão 66 (1966). Repetiu o feito de produzir outra obra-prima do Cinema Novo brasileiro com Terra em Transe (1967) – um marco poético e estético para todo o Cinema Novo Latino-americano – e, perfeitamente integrado ao Rio de Janeiro, dividiu com Vinícius de Moraes, Leon Hirszhman e Eduardo Coutinho o roteiro de Garota de Ipanema (1967). Ainda no Rio de Janeiro, Glauber Rocha filmou as manifestações populares contra a ditadura militar em 1968. Em 1969, fez o roteiro, o argumento, a cenografia e dirigiu O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro e, no Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
ano seguinte, saiu do Brasil. Viveu um ano em Cuba, onde realizou o filme Historia do Brazyl (1972-1974), transferindo-se depois para a Itália, onde realizou diversos trabalhos, incluindo longas-metragens em Super-8 como Mossa (1971), Super Paloma (1972) e A Viagem (1974), com Juliet Berto. Em Brazzaville, África, filmou Der Leone Has Sept Cabeças/O Leão de Sete Cabeças (1970); em 1970 fez Cabeças Cortadas, na Espanha; em 1975 estava na Itália para dirigir Claro, levando pelo mundo suas ideias e câmera. Ao regressar ao Brasil produziu dois curtas-metragens documentários Di Cavalcanti (1977) e Jorjamado no Cinema (1977). Glauber produziu ainda entre 1979 e 1980 um quadro semanal para o programa de televisão Abertura, e muitos textos: Poemas (em 1989 a editora Alhambra publicou alguns Poemas eskolhydos de Glauber Rocha), uma peça de teatro sobre João Goulart, uma série de romances, dos quais apenas um chegou a ser publicado, Riverão Sussuarana (1978), e principalmente uma grande quantidade de críticas e ensaios teóricos sobre cinema, dentre os quais “Estética da Fome” (1965) e “Estética do Sonho” (1971), os seus textos-manifestos mais famosos e representativos, que foram publicados na coletânea Revolução do Cinema Novo (1981). Após ter uma série de roteiros e projetos cinematográficos não realizados, tais como Ciro, Lua do Oriente; Alexandre, o Sol do Ocidente; O Destino da Humanidade; e O Testamento da Rainha Louca, Glauber Rocha recuperou a ideia de seu roteiro América Nuestra para realizar o seu testamento cinematográfico em A Idade da Terra (1980)34. O projeto cinematográfico de A Idade da Terra tem suas origens em 1965 com o roteiro – nunca filmado – de America Nuestra35. Glauber Rocha começa o projeto 34
As informações biográficas foram extraídas do catálogo: Glauber Rocha: Um Leão ao Meio-Dia. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p.15. 35 Glauber Rocha começou a redigir o roteiro de América Nuestra logo depois de terminar as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Na versão original o título constante do roteiro era “América Nuestra (A terra em transe)” e, em sua concepção primária, toda a história girava em torno de uma “história da América Latina”. O primeiro personagem, ao invés de Paulo Martins, chamava-se Juan Morales. A primeira versão fora escrita entre janeiro de 1965 e abril de 1966, durante as suas estadias em Roma e no Rio de Janeiro. E foi em Roma, que, partindo de América Nuestra, Glauber Rocha acabou desenvolvendo a ideia do filme Terra em Transe (o roteiro de Terra em Transe aparece, precisamente, depois da polêmica com seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, tendo 700 páginas, que mais convergiam para uma teoria histórica, política e cinematográfica do que para a estória propriamente.). O ponto de partida dessa trajetória era a matriz reflexiva e histórica de Deus e o Diabo na terra do Sol, pois, segundo Glauber Rocha: “Senti a necessidade de prosseguir a estória de Manuel e Rosa correndo para um mar libertador. Esse mar banhava uma nova terra, esta terra estava em crise, dividida, estraçalhada – era uma terra possuída pelas paixões políticas e atormentada pelos problemas sociais”, de luz tropical e “mau gosto operístico nas mansões milionárias”; um “país ou ilha interior” onde os partidos Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
logo depois de escrever o manifesto Eztétyka da Fome, e deste roteiro – que pretendia fazer um filme épico e didático, que contasse os grandes dilemas políticos, sociais e culturais enfrentados pelos países latino-americanos – saíram quase todos os filmes subsequentes, a começar por Terra em Transe, de 1967. Em uma carta a Alfredo Guevara, datada de 1967, Glauber falou sobre o desejo de realizar America Nuestra: Para os cineastas é necessário fazer filmes na América Latina. Por isto, sobretudo por causa do meu próximo filme, America Nuestra, precisarei de tráfego “livre” para filmar no Peru, Chile, Argentina e Uruguay. Agora já tenho a ideia do filme mais desenvolvida e devo fazê-lo em co-produção com Achugar. É um filme muito ambicioso, onde quero mostrar o processo de destruição e libertação da América Latina, desde a destruição dos Incas pelos conquistadores, a influência da igreja, a criação dos latifúndios e da opressão, a chantagem da política civil e por fim as guerrilhas como caminho de liberação. Deve ser um filme épico e violento 36.
No entanto, ao contrário da ideia inicial, a versão final de A Idade da Terra tornou-se um filme que não possui um enredo narrativo clássico, inclusive pelo fato de ter sido idealizado para ter os seus rolos exibidos sem uma sequência pré-ordenada. Contendo 160 minutos de duração, o filme reúne 16 sequências autônomas, sem a existência de qualquer vinculo narrativo entre elas. O filme é, na realidade, uma constante desconstrução no plano estético, poético, linguístico e, sobretudo, histórico37. O sentido da obra se dá a partir de associação das cores, dos sons e dos
“ofereciam ideologias fechadas, os capitalistas estavam às portas da falência, os escritores mudos, o povo esquecido de sua própria condição”. O filme que Glauber começa a filmar ainda em 1966, Terra em Transe, é na realidade uma fusão dos dois roteiros: A ideia do primeiro – situar a ação num país imaginário, Eldorado, “uma tentativa de sintetizar o chamado terceiro mundo subdesenvolvido e discutir alguns de seus problemas mais importantes” (Em entrevista à Revista Artes, de 1967, Glauber Rocha afirma: “Situei o filme no país interior de Eldorado porque me interessava o problema geral do transe latino-americano e não do brasileiro, em particular”.) – se funde a proposta do segundo – que deveria, sobretudo, se passar no Brasil, entre o mar do Rio e o sertão do Nordeste. Cf. informações extraídas de: AVELLAR, José Carlos. A Ponte Clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. (Rio de Janeiro / São Paulo: Ed.34 / Edusp, 1995. p.9.); SANCHES, Pedro Alexandre. Terra em Transe e Panis et Circensis. In: Tropicalismo: decadência bonita do samba. (São Paulo: Boitempo, 2000.); e PEREIRA, Wagner Pinheiro & BRANDÃO, Quezia. As memórias do transe latino-americano: os bastidores político-culturais dos filmes Terra em Transe (1967) e Memórias del Subdesarrollo (1968). In: ALVES, Gracilda et alli (Org.). A História que ensinamos e o Ensino da História. Rio de Janeiro: Ed. Autografia, 2015. pp.138-139. 36 ROCHA, Glauber. Cartas ao Mundo (Organização: Ivana Bentes). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 292. 37 No Dicionário de Cinema Brasileiro, de Mauro Baladi, encontramos a seguinte tentativa de redigir uma sinopse do “enredo” do filme: “Drama operístico mítico-carnavelesco-político. No Rio de Janeiro, em Brasília e na Bahia, quatro derivações de Cristo (um negro em luta pela liberdade, um índio acaboclado, um guerrilheiro revolucionário e um político populista), cavaleiros do apocalipse da hecatombe tropical, lutam contra o poderoso Brahms, uma encarnação do estrangeiro explorador de nossas riquezas e misérias. Em seu último filme, Glauber Rocha une os principais temas de sua obra”. Cf. BALADI, Mauro. Dicionário de Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
cenários arquetípicos. O cineasta afirmou em 1980, numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que: A Idade da Terra é a desintegração da sequência narrativa sem a perda do discurso infra-estrutural que vai materializar os signos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas em revolucionárias38.
Em A Idade da Terra, Glauber Rocha procurou realizar uma adaptação livre de passagens do Novo Testamento, em especial do Evangelho Segundo João e do Apocalipse, leituras que o cineasta indicou aos seus atores para poderem personificar, de maneira bem improvisada, as figuras de quatro Cristos no Terceiro Mundo. Neste sentido, podemos perceber como a religião marcou profundamente a formação de Glauber Rocha, conforme nos relata a biografia sobre o cineasta produzida por João Carlos Teixeira Gomes: Glauber foi criado com rigor dentro dos princípios presbiterianos, tendo frequentado regularmente com Dona Lúcia e os irmãos a igreja Batista Sião, no Campo Grande, em Salvador, onde, cantando no coro, se fez intérprete de hinos religiosos. [...] Dos 12 aos 14 anos de idade, Glauber aprofundou conhecimentos sobre assuntos bíblicos, integrando a Sociedade Evangélica dos Moços do Brasil, onde exercia um papel de liderança, que sempre lhe foi inerente, e já demonstrava vocação política. [...] Em síntese, duas inclinações se conciliaram prematuramente na personalidade de Glauber, com projeções decisivas sobre o seu futuro: a religiosa (ou, mais propriamente, a bíblica, como adiante veremos) e a política, ambas visceralmente presentes em sua obra de cineasta. Na Bíblia, um dos capítulos que mais o comoviam era a narrativa da paixão de Cristo. E, quando menino, costumava escrever breves textos de conteúdo político, refletindo sobre as distinções entre pobreza e riqueza39.
Em entrevista concedida à Tribuna da Imprensa (16 de junho de 1978) e posteriormente à revista Manchete, Glauber Rocha falou sobre a sua formação religiosa e a importância da religião em sua produção artística:
Cinema Brasileiro. Filmes de longa-metragem produzidos entre 1909 e 2012. São Paulo: Martins Fontes, 2013.p.816. 38 ROCHA, Glauber. Entrevista a Reali Júnior, O Estado de S. Paulo (1980). In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.pp. 497-498. 39 GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. pp.10 e 12. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Estudei para ser pastor protestante até os 13 anos de idade. Sei a Bíblia de cor. Li os Cânticos de Salomão e os Salmos de Davi, e trago a angústia da alma do judeu. Minha verdadeira origem é judaica. Sou cristão-novo40. Eu nasci lendo a Bíblia. Porque sou protestante, sou judeu, descendente direto de Davi. Judeu, cristão-novo, protestante. Nasci em Vitória da Conquista, na Bahia. Aliás, o meu livro Riverão Sussuarana trata disso. Nele eu mostro as minhas origens. É por isso que sou um sujeito diferente dentro da sociedade brasileira. Não fui criado pelos padres nem pelos catecismos. Fui criado pela Bíblia. Sobretudo pelo Velho Testamento, que considero mais forte que o Novo41.
Em determinada sequência do filme A Idade da Terra, mais especificamente na cena do Cristo negro de Antônio Pitanga, que grita a plenos pulmões em direção à Brasília – “Está é a Terra do futuro!”– ao lado de uma mulher negra que o ajuda a segurar um quadro do Cristo Nazareno42 – detalhe emocional, desafiador, profético dentro do discurso engendrado pela cena –, Glauber Rocha, em voz-over, explicita a proposta do filme: No dia em que Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a Vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a Vida de Cristo na mesma época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo, e também em relação à classe operária europeia. Foi o renascimento, a ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz, mas um Cristo que era venerado, vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição. Sobre o cadáver de Pasolini eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito nova. [...] São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, europeia misturada com índios e negros. [...] Aqui, por exemplo, em Brasília, este palco fantástico no coração do planalto brasileiro, fonte, irradiação, luz do Terceiro Mundo, uma metáfora que não se realiza na História, mas preenche um sentimento de grandeza: A visão do paraíso43.
40
TRIBUNA DA IMPRESSA, 16.06.1978. (Lurdes Gonçalves). Apud. REZENDE, Sidney (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986.p.112; Excerto também citado em: GOMES, Op.cit., p.12. 41 MANCHETE, julho de 1978 (Sheila Dunaevits). Apud. REZENDE, Sidney (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986. p.112; Excerto também citado em: GOMES, Op.cit., p.13. 42 “Cristo Nazareno” é a designação dada por Glauber Rocha no Roteiro de A Idade da Terra. ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. p.460. 43 Esta passagem por ser também encontrada em Roteiros do Terceiro Mundo. Ver: ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. p.461.Glauber Rocha afirmou que a escolha por Brasília era justificada pela seguinte razão: Brasília é a representação do El Dorado (País fictício onde é ambientado o filme Terra em Transe), e o El Dorado é a América Latina, é seu estigma histórico. Ainda segundo Glauber Rocha Brasília era o signo de “uma revolução cultural do Brasil, com a sua construção, o Brasil pode se livrar do seu complexo diante do colonialismo. O despertar político e a consciência do subdesenvolvimento datam da construção de Brasília. Isto é bastante contraditório porque Brasília era uma espécie de Eldorado, a possibilidade que os brasileiros tinham de criar eles mesmos alguma coisa”. Cf. ROCHA, Glauber. Reflexões sobre o novo Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Glauber Rocha parte de Pasolini. A Idade da Terra é uma resposta – não direta – ao filme O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Não apenas interessado pela abordagem social e política que tem o Cristo do filme de Pasolini, mas instigado por usar a figura de Cristo como revolucionário, como alegoria44 escatológica da Guerra de Liberação latino-americana, desejando filmar sua trajetória no Terceiro Mundo. Toda a carga ideológica que pesa sobre a imagem crística do filme de Pasolini inspira Glauber Rocha a realizar um filme que recuperasse essa narrativa mítica, irracional, religiosa. A diferença de Glauber para Pasolini é que o Cristo de O Evangelho Segundo São Mateus veio para reafirmar e recuperar referências culturais, associando valores milenares com um humanismo revolucionário; em Glauber, Cristo (ou melhor, “os Cristos”), é uma subversão da história. Os Cristos de Glauber não reafirmam, desconstroem. Assim como Cristo é o “marco zero” do Mundo Ocidental, Glauber Rocha utiliza-se dessa narrativa/imagem como uma alegoria para dar aos povos do Terceiro Mundo, à América Latina, um marco zero, concretizando, assim, um discurso revolucionário e de descolonização cultural. Afinal, segundo Glauber Rocha: Toda a representação de Cristo foi feita pela estética medieval renascentista europeia. Meu Cristo é materializado dentro do complexo barroco brasileiro, da fusão das mitologias católicas, negras e Índias 45.
O interesse de Glauber Rocha pelo filme de Pasolini fica exposto em um de seus textos sobre cinema. Glauber está transpondo a alegoria crística de Pasolini pelo discurso deste acerca do Terceiro Mundo. A ideologia predominante na construção de O Evangelho Segundo São Mateus é o que motiva Glauber a apropriar elementos em A Idade da Terra.
tempo no cinema. Revista Civilização Brasileira, nº3, Rio de Janeiro, set.1978. Apud. VENTURA, Tereza. A Poética Polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000.pp.382-383. 44 Aqui entendemos por alegoria as definições dadas por Ismail Xavier em suas obras sobre arte, modernidade e cinema (sobretudo o cinema de Brasileiro). Xavier comenta: “A noção de alegoria aparece muito no discurso sobre arte contemporânea e há toda uma discussão em torno de alguns momentos da produção cultural, no Brasil, onde se utiliza essa noção para caracterizar determinadas estratégias dos artistas – formas de construção e de montagem – e determinadas relações entre obra e contexto social”. XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. Revista Novos Rumos. Instituto Astrojildo Pereira. São Paulo: Ed. Novos Rumos. Ano 5 – nº16 – 1900. p.51; XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 45 ROCHA, Glauber. Manchete. Rio de Janeiro, maio de 1978. Apud. VENTURA, Op.cit., p.385. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Na passagem do texto a seguir é possível ver a aproximação de Glauber com o ideário de Pasolini, e a disposição de elementos narrativos crísticos de O Evangelho Segundo São Mateus que estão presentes em A Idade da Terra: Pier Paolo Pasolini em 1964, filmou Il Vangelo Secondo Matteo. Versão moderna da vida de Cristo, análise histórica de fenômeno judaico e tentativa de nova moral revolucionária, o filme de Pasolini foi atacado por setores da crítica francesa. Pasolini respondeu e deu a chave do problema: “A sordidez da crítica francesa recusa admitir a existência de um subproletariado em evolução nos países subdesenvolvidos, recusa compreender os valores destas novas forças. A cultura francesa caiu num racionalismo que Sartre já denunciou como aristocrático e decadente...”. Passolini deixou claro que a crise da consciência do cinema moderno é o reflexo da crise da Europa Ocidental capitalista. Seu Cristo – que prega a intolerância antes da piedade, que prega a violência antes da complacência, que se revolta contra o Pai quando, na Cruz, se vê desamparado – é o porta-voz da nova moral: a moral do homem subdesenvolvido consciente. O Cristo de Pasolini é um estigma contra a alienação: alienação é a piedade, a complacência, a hipocrisia, o tabu sexual, o servilismo, todos comportamentos que caracterizam o homem subdesenvolvido, ou melhor, o homem colonizado. O Cristo de Pasolini é um revolucionário que sucede ao Cristo anárquico de Buñuel46.
Em outro capítulo do livro O Século do Cinema, Glauber Rocha continua expondo a importância do filme O Evangelho Segundo São Mateus no cenário cinematográfico mundial da época: A primeira novidade desta vida de Cristo era o contexto: a Judéia era um país miserável, colônia romana. Nada do luxo visto nos filmes de Cecil B. De Mille. Cristo era o homem do povo, vestido pobremente. Os governantes hebreus a serviço do imperialismo romano. Cristo surgia subversivo, capaz de atirar o povo contra os vendilhões da pátria. Há uma trama que mistura moralismo com medo político – Cristo é traído por um dos seus, crucificado e na hora da morte grita desesperado: – Pai, por que me desamparastes? O Cristo de Pasolini é forte, viril, sem complacência para com os opressores e canalhas. Cristo é violentíssimo. Na pregação usa tom incisivo de agitador social. O texto de São Mateus, usado na íntegra, ganha nova dimensão: este Cristo desmitificado e revolucionário parece ter saído das encíclicas de João XXIII. A nova Igreja o premia. A esquerda ortodoxa acusa Pasolini de fazer aliança socialista-cristã. Pasolini não reza pela cartilha do Kremlin, embora se professe marxista convicto e intransigente 47.
46 47
ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.188. ROCHA, 2006, p.278. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Cartaz do filme A Idade da Terra (1980) e o cineasta Glauber Rocha preparando a encenação do ator Geraldo Del Rey (o “Cristo-Guerrilheiro”) durante as filmagens de “A Idade da Terra”.
É dessa “nova moral revolucionária” e desse direcionamento de Pasolini para o Terceiro Mundo, que Glauber vai se inspirar para produzir A Idade da Terra: No meu último filme, A Idade da Terra (1978-1980), falo de Pasolini, digo que desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão dum Cristo Terceiro-Mundista que não teria nada a ver com o Cristo pasoliniano. Pasolini procurava no Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão. Para mim, o conceito de subversão é muito diferente do conceito de perversão, porque a perversão culturalmente constituída pelos intelectuais sadianos não é a minha. Para mim a subversão é inverter verdadeiramente essa perversão por um fluxo amoroso que não exclui a homossexualidade48.
Em entrevista para o jornalista Luís Fernando Silva Pinto, da TV Globo, no Festival de Veneza de 1980, Glauber Rocha faz a seguinte afirmação sobre A Idade da Terra: [...] Disseram que o filme era louco, incompreensível que eu tinha deixado de ser marxista para virar cristão. E que a minha visão do mundo já não estava mais comprometida: disseram que eu tinha traído os princípios revolucionários. Quer dizer, me atacaram ideologicamente querendo me imputar responsabilidades políticas, e foram incapazes de entender o sentido e a novidade formal do filme porque são ignorantes. [...] Essa concepção de Cristo do Terceiro Mundo já foi uma coisa que a impressa criou aqui. A jogada é a seguinte: Eu mostro no filme que o mito cristão, que é o mito solar, vem da Ásia, vem da África, vem do Oriente Médio e que a Europa sequestrou a verdadeira identidade de Cristo, entende, importando um Deus. Então, eu disse que como o filme mostra um Cristo-Negro, interpretado por Antônio Pitanga; um Cristo-Pescador e místico, interpretado pelo Jece Valadão; mostra o Cristo que é o Conquistador português, o São Sebastião, o Dom Sebastião, interpretado por Tarcísio Meira e mostra o Cristo Guerreiro-Ogum de Lampião, interpretado pelo Geraldo Del Rey. Quer dizer, os quatro Cavaleiros do 48
Idem, pp.285-286. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Apocalipse que ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo, recontando o mito através dos quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João 49 e os quatro cavaleiros do Apocalipse cuja identidade eu revelo no filme quase como se fosse um Terceiro Testamento. E o filme assume um tom profético, realmente bíblico e religioso. Não é um filme comercial, não é um filme político, não é um filme de western, não é uma pornochanchada, é apenas um filme religioso. Sendo um filme religioso é uma novidade. Então, eu rezei, cheguei na catedral e rezei uma missa bárbara, uma missa bárbara, bárbara, uma missa bárbara, e o pessoal se assustou, porque se eles entrassem no barato, eles tinham de ajoelhar e rezar nessa missa. Então, eu disse para eles: Olha aqui: é como Cristo chegando, o Cristo bárbaro, chegando, os cristãos chegando na catacumba. E vocês estão me acusando, porque vocês tem o costume de jogar, vocês romanos e italianos, tem o costume de jogar os cristãos no paço dos leões. Mas eu não tenho medo de leão, como o profeta Daniel, que dominará os leões na arena. Então eles fundiram a cuca e o assunto continuou neste campo. Daí prossegue o pau 50.
Quando Glauber fala que os quatro Cristos são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse ele está evocando a terceira visão profética do livro de Apocalipse de João. Os quatro cavaleiros do Apocalispse são: Peste, Guerra, Fome e Morte. As referências para tal compreensão no livro Bíblico são Apocalipse 6:2; 4; 6; 8 51. Os Quatro 49
Os Evangelhos são escritos religiosos, doutrinais, destinados a alimentar a fé e a comunicá-la, fazendo conhecer a pessoa de Jesus Cristo. Cada autor, ao escrever, tinha seu ponto de vista particular: O Evangelho Segundo Mateus é escrito, provavelmente entre 60 e 65 d.C., na Palestina para leitores judeus; seu texto se particulariza pela abundância de citações do Antigo Testamento. O Evangelho Segundo Marcos, escrito sob a orientação de Pedro, em Roma, entre 55 d.C. e início da década de 60 d.C., e baseado na pregação dele, antes da perseguição aos cristãos instigadas por Nero, é curto, não possuindo uma narrativa tão completa dos sermões de Cristo, mas objetiva apresentar Jesus aos pagãos que habitavam Roma, fazendo notar, sobretudo, o que havia de extraordinário e de valor probatório de sua missão nos milagres por ele operados. O Evangelho Segundo Lucas, escrito entre de 60 d.C. e 80 d.C. (há divergência entre os estudiosos sobre a data correta),para Teófilo (“amigo de Deus”), que possivelmente era um oficial romano ou ao menos uma pessoa importante, e para um público de gentios, tinha a visível preocupação de apresentar Jesus sob um aspecto mais atraente e comovedor, fazendo notar, antes de tudo, a bondade e a misericórdia do Salvador. Ele frequentemente usa termos gregos em vez de hebraicos e enfatiza que o Evangelho é para o mundo todo. Por último, O Evangelho Segundo João, pode ter sido escrito antes de 60-70 d.C ou entre 80-95 d.C., é um pouco diferente dos evangelhos sinópticos. Enquanto os outros três Evangelhos se concentram em recordar os acontecimentos da vida e do mistério de Jesus, João procura mostrar aos leitores – provavelmente gregos – a divindade de Jesus e revelar-lhes um pouco de sua realidade invisível, mas conservando o cuidado de apresentá-lo como um homem no concreto de seus atos e de seus discursos. Ou seja, João permanece no significado espiritual do que Jesus disse e fez, assim como coloca grande ênfase nos sinais de Jesus, nos milagres que provam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus. Malgrado todas essas diferenças, a Igreja Católica considera que não houve jamais senão um Evangelho, uma só Boa-Nova de salvação, mas esta foi apresentada sob quatro formas: segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João. Informações extraídas de: Bíblia Sagrada. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). São Paulo: Editora AveMaria, 2013. p.44; e Bíblia de Estudo Matthew Henry (The Matthew Henry Bible). Rio de Janeiro: Ed. Central Gospel, 2014. pp.1393; 1481; 1535 e 1615. 50 Retirado do documentário sobre o filme. DVD. Extras. A Idade da Terra. Produção: Paloma Cinematográfica. Versátil Vídeo. 2005. 51 Apocalipse 6:2 – E olhei, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele tinha um arco; e foi lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso e para vencer./ Apocalipse 6:4 – E saiu outro cavalo, vermelho; e ao que estava assentado sobre ele foi dado que retirasse a paz da terra e que se matasse uns aos outros; e foi Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Cavaleiros do Apocalipse são os fenômenos dos quatro primeiros selos, que são abertos para dar sequência ao Armagedom, a Batalha Final. A referência de Glauber aos Quatro Cavaleiros é uma alegoria dos fenômenos da liberação do Terceiro Mundo na América Latina. Peste, Guerra, Fome e Morte são as catástrofes que vão acontecer antes do fim do mundo colonizado, antes que o Terceiro Mundo torne-se livre. Cada um dos Cristos carrega uma dupla alegoria: são agentes histórico-culturais inerentes ao processo revolucionário; são negros, índios, militares e revolucionários que se confrontam consigo mesmos, dando a impressão, no filme, de um colapso, uma crise destruidora de todos os modelos históricos52.
Os Quatro Cristos de A Idade da Terra: o Cristo-Índio (Jece Valadão), o Cristo-Militar (Tarcísio Meira), o Cristo-Negro (Antônio Pitânga) e o Cristo Guerilheiro (Geraldo Del Rey)53
Segundo a análise da historiadora Tereza Ventura: lhe dada uma grande espada./ Apocalipse 6:6 – E ouvi uma voz no meio de quatro animais, que dizia: uma medida de trigo por um dinheiro; e não danifiques o azeite e o vinho. Pericopes retiradas de: Bíblia de Estudo Matthew Henry (The Matthew Henry Bible). Rio de Janeiro: Ed. Central Gospel, 2014. P. 21122113. (A escolha de uma versão protestante da tradução da Bíblia se deve ao fato de que a matriz religiosa cristã de Glauber Rocha é protestante, então preferiu-se buscar referências diretas de sua influência religiosa). 52 Ismail Xavier aponta que “(...) A Idade da Terra deixa como testamento a exposição implacável de uma crise”. XAVIER, Ismail. A Idade da Terra e sua visão mítica da decadência. Cinemais: Revista de Cinema e outras questões audiovisuais. N.13, Set/Out, 1998. p.183. 53 Estes fotogramas foram retirados do filme A Idade da Terra, de Glauber Rocha. Edição Especial, versão restaurada sob a direção de Paloma Rocha, 2008. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O amor é associado à possibilidade de redenção da humanidade no caminho trágico onde Cristo se alia à guerra. Esta tragicidade estará presente no A Idade da Terra, sendo que a figura de Cristo torna-se carnal e sexualizada como nos desenhos feitos por Glauber quando esteve na prisão. No A Idade da Terra, o Cristo realiza milagres, multiplicando os objetos ou dejetos das multinacionais simbolizados pela Pepsi Cola e pelos cachorrosquentes. O Cristo do A Idade da Terra regressa, diante do decadente império americano, como um homem comum que realiza milagres. A figura de Cristo impõe à coesão religiosa a força do amor entre os homens, superando assim o sentimento do nada e a divisão do mundo entre ricos e pobres, fortes e fracos, capitalistas e socialistas. O Cristo é um gesto de integração afetiva e emocional entre os homens contra toda a razão dominadora. O gesto/verbo, seja religioso e/ou emocional, projeta-se não para um futuro possível, mas para a vivência carnal presentificada no tempo real. No A Idade da Terra a fé permanece como fonte de ingenuidade e pureza; contudo, ela conduz ao amor, que conciliará a política à religião, ou seja, guerra e Cristo. Em Terra em Transe ele reclamava a impotência da fé e reivindicava a coesão do amor. No A Idade da Terra a fé é potência, vontade transfiguradora e força dionística, que rompe com a dinâmica do tempo e da linguagem, enfrentando as trevas da razão para criar o novo 54.
O Cristo-Índio é o trabalhador, que, assim como Adão, foi expulso da eternidade do paraíso (leia-se o paraíso como o Novo Mundo, o Eldorado). Não acredita mais em Deus, e diz: “O pássaro da eternidade me traiu. Só o real é eterno”. Não acredita mais em seus colonizadores, dominadores e patrões. O Cristo-Negro é a encarnação de todo o sofrimento de uma raça negra, explorada e escravizada. Em uma de suas falas no filme, parafraseia uma das bem-aventuranças de Jesus: “Bemaventurados os que têm fome! Bem-aventurados os famintos!”55, utilizando, assim, a miséria como um elemento liberador. O Cristo-Militar é a figura dos valores nacionais, de uma nação cristã-católica, da civilização pela força. Se parece contraditório apresentar um militar/conquistador como alegoria do processo revolucionário isso se desconstrói ao compreendermos que Glauber Rocha vivia em uma América Latina sitiada por ditaduras militares que se diziam revolucionárias, e ele as compreendia como fase importante e indispensável para a descolonização. É o militarismo que vai gerar a violência que vai desembocar em lutas revolucionárias. Por fim, o CristoGuerrilheiro é o próprio filho de Brahms (o anticristo), que se encontra indignado com seu pai que não lhe dá sua herança, seus espólios e sua parte no império comercial. Desse modo, ele representa a Revolução como sendo resultado de uma indignação do 54
VENTURA, Tereza. A Poética Polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000. p.371. No texto bíblico original a passagem diz exatamente: Mt 5:6 – “Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”. Ver: Bíblia de Estudo Matthew Henry (The Matthew Henry Bible). Rio de Janeiro: Ed. Central Gospel, 2014.p.1402. 55
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
papel da América Latina, dos povos do Terceiro Mundo, enquanto subdesenvolvidos no plano econômico e cultural. Enquanto Cristos, cada um representa uma “missão revolucionária”, e encarnam valores políticos, históricos e culturais importantes ao processo de descolonização cultural, política e econômica. Enquanto Cavaleiros do Apocalipse, cada um traz sua mensagem – Peste, Guerra, Fome e Morte – e a impregna de propósito e justificativa. Desse modo, os Cristos de Glauber Rocha representam a Revolução como sendo resultado de uma indignação do papel da América Latina, dos povos do Terceiro Mundo, enquanto subdesenvolvidos no plano econômico e cultural. Enquanto Cristos, cada um representa uma “missão revolucionária”, e encarnam valores políticos, históricos e culturais importantes ao processo de descolonização cultural, política e econômica. Neste sentido, estes cristos, em A Idade da Terra, possuem uma dupla função: uma referente ao passado e outra ao futuro. No passado porque suas diversas facetas – como índio, negro, militar e guerrilheiro – recuperam símbolos e elementos fundamentais da história latino-americana. Os índios como elemento ancestral do continente, os negros e a africanidade presentes em todos os povos latino-americanos, os militares como referência fundamental às políticas governamentais recorrentemente impostas na América Latina e a figura do guerrilheiro, personagem icônico do século XX latino-americano, tendo como ponto de partida a Revolução Mexicana de 1910 e, posteriormente, a Revolução Cubana de 1959, consagrando as figuras históricas de Emiliano Zapata e Ernesto Che Guevara. Enquanto Cavaleiros do Apocalipse, cada um traz sua mensagem – Peste, Guerra, Fome e Morte – e a impregna de propósito e justificativa. Em outra direção, estes Cristos apontam para o futuro na medida em que essa reinterpretação histórica conduz a um novo olhar e uma nova perspectiva para os rumos dos povos latino-americanos: é a construção de um projeto político-cultural para a América Latina. O desenvolvimento destes personagens ao longo do filme apresenta um constante movimento entre o passado histórico e um discurso para o futuro, em um incessante diálogo que utiliza a repetição de falas, movimentos e cenas para concretizar um conceito: uma nova América Latina, independente histórica, cultural, religiosa e politicamente.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A associação com a Bíblia e o tema religioso foi, logo de início, considerada a maior loucura de Glauber em A Idade da Terra. No entanto, essa associação é tanto metafórica quanto literal. É metafórica por retomar, com a figura de Cristo, o Apocalipse e o próprio Novo Testamento, a noção de um novo tempo, um novo milênio, uma ruptura de estruturas tradicionais e patriarcais; ao mesmo tempo é literal por recuperar todo o sentido religioso da vida no “Novo Mundo”, apresentando uma América Latina que vive suas tensões sociais e políticas por meio da ótica religiosa e mística. Não obstante, Glauber Rocha apresenta um “caminho místico” para a libertação dos povos latino-americanos, sem trazer toda a aridez e ceticismo do socialismo, mas construindo um projeto onde a verdadeira independência histórica do continente deve vir a partir da sua cultural fundamental, da sua religiosidade. A figura do tirano Brahms também está em uma chave alegórica apocalíptica. De igual modo, a cena (entre as primeiras sequências do filme) de um diabo quase carnavalesco com um globo nas mãos, no qual ateia fogo, e recita exaustivamente: “Minha missão é destruir a terra! Esse planeta miserável!”. Ambas apresentam uma alegoria do anticristo, figura apocalíptica responsável por levar a cabo a Batalha Final; são alegorias do fim e da descolonização. Brahms personifica o norte-americano, o espanhol, o francês, o inglês. Brahms é, ao mesmo tempo, todos os colonizadores, é o imperialismo cultural e econômico dos EUA no século XX.
Brahms: a figura do Anti-Cristo Americano Imperialista no “El Dorado”.
Neste sentido, Ismail Xavier, especialista no cinema de Glauber Rocha, faz a seguinte consideração: [...] A transação com o espírito messiânico de inclinação popular, dado constante na obra de Glauber Rocha, assume em Idade da Terra uma tônica religiosa definida, contrastando com as ambiguidades que tornam mais ricos seus filmes dos anos 60, notadamente Deus e o Diabo na Terra do Sol. De modo incisivo, a salvação é agora apresentada como processo
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
intramundo onde simultaneamente devem-se instaurar o reino de Deus na Terra e o “reinado do povo”. Muito genérico, o diagnóstico do presente se apega aos sinais de degenerescência das figuras do mal (potências imperialistas) e aos sinais de energia em expansão nas figuras do Bem massas arregimentadas pela fé, pela resistência cultural, renovando as suas forças sob os escombros da opressão tecnológica). [...] A figura de Brahms e certas presenças mais ou menos evanescentes em sua vizinhança se põem definitivamente como personificações (figurações sensíveis) de conceitos abstratos, de forças ou princípios, à maneira do poema enciclopédico medieval: cada figura repete sempre o mesmo gesto e só é convocada para atualizar o povo, repetir o princípio, força, vício ou virtude que encarna. [...] Brahms será sempre obsceno, reunindo os atributos da decadência, da corrupção, do poder cínico – consciente de sua ilegitimidade e reduzido à evocação das glórias dos antepassados. Brahms é “instinto de morte”, princípio de destruição, a que se opõe a nova mensagem de esperança do Cristo multiplicado e imenso no coração do povo que é sede da beleza, do carisma, da festa, da coesão na fé, elementos que injetam um princípio de vida na cidade. Exceto o movimento dos ritos nos espaços abertos, o universo urbano na representação do filme é puro monumento, bloco de pedra, túmulo56.
Como vemos, a matriz ideológica do discurso fílmico de Glauber Rocha é uma interpretação livre que o cineasta realiza do filme de Pier Paolo Pasolini. Não apenas ao nível discursivo, mas também estético, é possível encontrar paralelos nas duas obras. Se em Pasolini o Evangelho de Mateus é a referência para a adaptação e alegoria, em Glauber serão mobilizados os quatro evangelhos bíblicos, capturando a polissemia da figura crística. Em Pasolini, o Cristo é destacado em sua posição de confronto e de embate ideológico, sem que se perca a matriz bíblica da história. Em Glauber, são valorizadas as mesmas situações de tensão, mas a narrativa e a construção dos personagens são feitas de maneira livre, desprendidas de uma fidelidade aos relatos bíblicos. Em termos estéticos, o filme de Pasolini trabalha com recursos técnicos do Neorrealismo Italiano; Glauber, em A Idade da Terra, extravasa estes parâmetros, dando um tom muito particular para a linguagem que pretende construir no filme. Ambos os filmes, por sua estrutura de montagem, possuem narrativas extremamente fragmentadas – no filme de Glauber muito mais no que de Pasolini –, gerando um filme épico-didático. Glauber utiliza o mesmo tipo de plano-sequência e de travellings. O recurso de utilizar a câmera em contra-plongé para dar a dimensão emocional dos personagens representantes das classes mais altas, e em plongé para dar a diminuta 56
XAVIER, Ismail. Evangelho, Terceiro Mundo e as Irradiações do Planalto. Filme Cultura, nº38-39, Rio de Janeiro, ago.-nov./1981. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
sensação do proletariado miserável e faminto, estão presentes nos dois filmes. À diferença de Pasolini, que mantém essa estrutura de ângulo de câmera durante todo o filme, Glauber vai desconstruindo esse tipo de enquadramento para, com ele, descontruir posições sociais e históricas, não importando em que angulação de câmera aparecerá ricos e pobres, senhores e servos. A breve análise das conexões entre estes filmes de Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini nos deixa a importante contribuição para pensar como o cinema latinoamericano (e brasileiro) esteve em diálogo com os debates políticos e estéticos do cinema europeu, e em que medida se deu a circulação de modelos de pensamentos que, transpostos de uma realidade para outra, não se anulam, mas se complementam num cenário artístico e político mundial, onde a questão do Terceiro Mundo e da ideologia revolucionária mobilizam intensos esforços.
Bibliografia: ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. AVELLAR, José Carlos. A Ponte Clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro / São Paulo: Ed.34 / Edusp, 1995. BALADI, Mauro. Dicionário de Cinema Brasileiro. Filmes de longa-metragem produzidos entre 1909 e 2012. São Paulo: Martins Fontes, 2013. BAMONTE, Duvaldo. Afinidades eletivas: o diálogo de Glauber Rocha com Pier Paolo Pasolini (1970 -1975). São Paulo: Tese de Doutorado - Pós-Graduação ECA-USP, 2002. BENTES, Ivana (Org.). Glauber Rocha: Cartas ao Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. BERNARDET, Jean-Claude et alli. Glauber Rocha. Coleção Cinema Volume 1. São Paulo: Paz e Terra, 1977. Bíblia de Estudo Matthew Henry (The Matthew Henry Bible). Rio de Janeiro: Ed. Central Gospel, 2014. Bíblia Sagrada. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). São Paulo: Ave-Maria, 2013. BRANDÃO, Quezia. Entre o transe e o subdesenvolvimento: repensando a América Latina no cinema de Glauber Rocha e Tomás Gutiérrez Alea. Rio de Janeiro: Monografia de Conclusão do Curso de História (IH-UFRJ), Orientação: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, 2014. 74p. CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e debates metodológicos. Rio de Janeiro: Kliné, 2011. CHEVITARESE, André Leonardo e FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma brevíssima introdução. Rio de Janeiro: Kliné, 2012. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
CROSSAN, J. D. Jesus. Uma Biografia Revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995. DEL VALLE D’ÁVILA, Ignácio. Cámaras en Trance. El nuevo cine latino-americano, un proyeto cinematografico subcontinental. Santiago: Ed. Cuarto Propio, 2014. ESPAGNE, Michal. La notion de Transfert Culturel. Revue Sciences/Lettres. Nº1. 2013. FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo italiano: uma leitura. São Paulo: Edusp-Fapesp, 1996. FERNANDEZ, Alexandre A. DVD “O Cristo austero de Pasolini”. Revista História Viva. Dez, 2003. GIUSTI, Marco (a cura di). Prima e dopo la rivoluzione. Brasile anni’ 60: dal cinema novo al cinema marginal. Turim: Lindau, 1995 Glauber Rocha: Um Leão ao Meio-Dia. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo milênio. Revista Estudos Avançados, 17/49, 2003. MEIER, J. P. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1992. MICCICHÈ, Lino. Rocha: saggi e invettive sul nuovo cinema. Turim: ERI Edizioni RAI, 1986. MICCICHÈ, Lino. Un cineasta tricontinentale. In: Glauber Rocha: scritti sull cinema. Veneza: XLIII Mostra Internazionale del Cinema, 1986. NEPOMUCENO, Maria Rita. “A visita de Pasolini ao Brasil: um Terceiro Mundo melancólico”. Ciberlegenda (UFF. Online), v. 23, p. 38/4-48, 2010. PASOLINI, Pier Paolo. “A Poesia do Novo Cinema”. Revista Civilização Brasileira, nº.07. Maio de 1966. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Herege. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. PASOLINI, Pier Paolo. “Il Cinema Impopulare”. In: SITI, Walter (Org.). Saggi sulla letteratura e sull’arte, vol.1. Milão: Mondadori, 2001. PEREIRA, Miguel. “O Columbianum e o cinema brasileiro”. Alceu, v°.8, nº15, pp.127142, jul./dez. 2007. PEREIRA, Wagner Pinheiro & BRANDÃO, Quezia. As memórias do transe latinoamericano: os bastidores político-culturais dos filmes Terra em Transe (1967) e Memórias del Subdesarrollo (1968). In: ALVES, Gracilda et alli (Org.). A História que ensinamos e o Ensino da História. Rio de Janeiro: Ed. Autografia, 2015. PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha. Textos e entrevistas com Glauber Rocha. Tradução: Eleonora Bottmann. Campinas, SP: Papirus, 1996. REZENDE, Sidney (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986. ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. (Organizado por Orlando Senna). Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SANCHES, Pedro Alexandre. Terra em Transe e Panis et Circensis. In: Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000. SARNO, Geraldo. Glauber Rocha e o Cinema Latino-Americano. Rio de Janeiro: CIECUFRJ/Rio Filmes, 1995. SAVERNINI, Erika. Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004 Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds.) Pier Paolo Pasolini per Il Cinema. Milão: Mondadori, 2001. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies, Vol I, N 3, 1997. VENTURA, Tereza. A Poética Polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000. XAVIER, Ismail. A Idade da Terra e sua visão mítica da decadência. Cinemais: Revista de Cinema e outras questões audiovisuais. N.13, Set/Out, 1998. XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. Revista Novos Rumos. Instituto Astrojildo Pereira. São Paulo: Ed. Novos Rumos. Ano 5 – nº16 – 1900. XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012. XAVIER, Ismail. Evangelho, Terceiro Mundo e as Irradiações do Planalto. Filme Cultura, nº38-39, Rio de Janeiro, ago.-nov./1981.
Artigo recebido em: 29 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 30 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
O SHINSENGUMI EM RUROUNI KENSHIN: A construção do mito e seu papel na cultura japonesa
Leonardo Rosa Molina De Oliveira*
RESUMO: O Shinsengumi foi uma força policial a serviço do governo Tokugawa durante o período conhecido como Bakumatsu no Japão. Era formado por samurais leais ao shôgun e se dividiam em dez regimentos. Sua atuação e importância foram relativamente pequenas na historia do país. Porém, é comum que tal grupo ainda seja referenciado através de filmes, animações ou literaturas. Nesse artigo, a atuação de tal bando será analisada dentro do mangá nipônico Rurouni Kenshin, criado por Nobuhiro Watsuki em 1994. PALAVRAS-CHAVES: Shinsengumi; Rurouni Kenshin; Nobuhiro Watsuki.
THE SHINSENGUMI IN RUROUNI KENSHIN: The construction of the myth and their role in Japanese culture
ABSTRACT: The “Shinsengumi” were a police force in service of the Tokugawa government during the period known as “Bakumatsu” in Japan. It was formed by samurais loyal to the shôgun and consisted of 10 squads. Their actions and importance were relatively small in the history of Japan. But, it’s quite common to see this groups being mentioned in movies, animations or literature. In this article, the actions of this group will be analyzed through Japan’s manga series “Rurouni Kenshin”, created by Nobuhiro Watsuki in 1994. KEYWORDS: Shinsengumi; Rurouni Kenshin; Nobuhiro Watsuki.
***
*
Graduando do curso de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX) na linha de pesquisa Preservação do Arquivo Histórico do Museu Nacional: contribuição ao resgate da memória científica da UFRJ sob a orientação daProfª Dra. Maria das Graças Freitas Souza Filho.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Causas para a restauração Meiji
E
m 1868 começou a Era Meiji1 no Japão. O país deixou de ser governado por um líder militar, o shôgun2. A partir desse novo período, o Estado nipônico se juntou aos países ocidentais na corrida
imperialista, se tornando o primeiro país na Ásia a passar por uma revolução industrial e ter sua própria carta magna da constituição. O período Tokugawa (1603 - 1867), também conhecido como período Edo3, anterior a Meiji, havia sido derrubado por questões internas e externas. A visita de navios ocidentais aos portos japoneses havia chamado atenção nipônica, tanto dos citadinosquanto dos nobres rurais, pois o shogunato havia mantido o Estado japonês em relativo4 isolamento deste a expulsão das missões cristãs no século XVII. A situação interna do governo não era estável: desastres naturais e terremotos tinham deixado os camponeses descontentes. A classe5 que governava o país, os samurais, estava se endividando e nesse cenário, o chonin6, ganhava cada vez mais espaço, mesmo ainda sem poder político. Algo estava mudando no Japão Tokugawa. A estabilidade de dois séculos do governo já não existia mais. Nas cidades, as pinturas Kawaraban7retratavam o imaginário popular da época. Na imagem 1, temos as gravuras dos "Navios Negros" . Esse tipo de arte era numeroso e aparecia em muitos formatos, geralmente com informações complementares sobre o tamanho e a tripulação do navio e uma breve história dos países de onde estes vieram. Esta figura, de 1854 mostra a impressão nipônica em relação aos navios negros da América e de vários outros países. Sua
1
Período da história japonesa de 1868 a 1912. Shôgun: generalíssimo; chefe do governo militar (bakufu) YAMASHIRO, José. A Pequena História do Japão. 2. ed. São Paulo: Herder, 1964., pp. 194. 3 Chamado assim porque a capital do governo era a cidade de Edo, posteriormente chamada de Tokyo. 4 Relativo porque o governo insistia no isolamento do país, porém mantinha relação com navios holandeses, em Nagasaki. 5 Inicialmente houve a divisão de classes em samurai (shi), lavrador (no), artífice (kô) e comerciante (shô). 6 Classe dos negociantes e artesãos, "gente da cidade". 7 Um tipo de xilogravura do Período Edo. 2
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
descrição da missão Perry8 é, em sua maior parte, precisa, embora o retrato do “Rei” americano (inserida no topo, à esquerda) seja pouco lisonjeiro.
Figura 19. Representação de navios estrangeiros e a representação de suas tripulações.
Segundo William Steele, foi durante esses eventos que se teve o surgimento de um nacionalismo japonês. Para o autor: In attempting to satisfy the curiosity of the masses for information about the “other,” Yokohama prints helped Japanese people to imagine a new sense of self and a new sense of community. Repeated references to foreign countries (gaikoku or ikoku) and to the symbols associated with each prompted and demanded answers to the questions: What is our country (waga kuni)? What are its symbols? The curiosity reflected in the prints of foreigners thus helped to generate a consciousness of ethnic, cultural, and national identity that set the people of Japan apart from those in other parts of the world10.
Durante o período Tokugawa, conhecimento detalhado da geografia do mundo foi limitado à elite intelectual e política. A chegada de Perry e dos "Navios 8
Logo depois de concluir o tratado de comércio com a China, os Estados Unidos propuseram, em 1853 (6.° da Era Kaei), a abertura dos portos nipônicos para estabelecer relações comerciais entre os dois países. Foi portador da proposta, assinada pelo presidente Millard Fillmore (1800 - 1874), o comodoro Matthew Calbaith Perry (1794--1858), que entregou a mensagem do seu governo ao bakufu, no porto de Uraga, de Sagami (Kanagawa--ken). As fragatas da Esquadra de Perry equipadas com armamentos modernos impressionaram os japoneses, que as denominaram kurobune (navios pretos). YAMASHIRO, José. A Pequena História do Japão. 2. ed. São Paulo: Herder, 1964. p.137 9 STEELE, M. William. Alternative Narratives in Modern Japanese History.2 ª edição. Nova York: Taylor & Francis e-Library, 2004. p.7. 10 Idem. pp.30-31.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
negros" mudou tudo isso. Embora em comparação com a primitiva forma de trazer mapas ocidentais da mesma data, estes novos desenhos estavam entre as primeiras representações do mundo prontamente disponível para os plebeus japoneses. O mapa mostrado na Figura 2 inclui informações básicas sobre os cinco continentes e vários países e povos do planeta, mas contém muita desinformação também. Ele mostra, por exemplo, o País de Gigantes na América do Sul, a pátria de anões e a nação de mulheres no norte da Europa. Várias representações simbólicas identificam o Japão no centro do mapa: o Monte Fuji, o sol nascente, um sacerdote xintoísta, e os membros das quatro classes: samurai, agricultor, artesão e mercador.
Figura 211. Mapa mundial feito durante os últimos anos do governo Tokugawa, mostrando o Japão no centro do mundo e as nações estrangeiras ao redor.
Com a investida ocidental e a fragilidade do governo, foi assinado em 1854 o Tratado de Amizade e Comércio entre Estados Unidos e Japão, conhecido como Tratado de Kanagawa. Dessa forma, o país nipônico abria seus portos ao comércio internacional. A política de assinar tratados econômicos com as potências ocidentais não foi bem vista pelas elites rivais do governo central. Com a justificativa de que o
11
STEELE, M. William. Alternative Narratives in Modern Japanese History.2 ª edição. Nova York: Taylor & Francis e-Library, 2004. p.8. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
shôgunestava “abrindo” o país para o estrangeiro, o Imperador passou a ser visto pelos clãs contrários a Tokugawa, como a chave para o fim dos problemas e de uma nova política forte para o Estado. Entre esses clãs, estava o de Satsuma, encabeçados por figuras como Takamori Saigo e Toshimichi Okubo, futuros políticos durante a Era Meiji; Choshu, com Takayoshi Kido como líder e, Shojiro Goto, do feudo de Tosa. Importante dizer que tais clãs faziam parte de famílias samurais. Essas figuras da política japonesa perceberam a necessidade de se extinguir os bushi12com o novo governo, pois o Estado não tinha mais recursos para sustentar tal classe. Por isso é correto afirmar que, apesar do fim da classe samurai e a marginalização de muitos desses indivíduos, foram os próprios bushi que lideraram o processo de mudança governamental e continuaram a frente do governo durante a Era Meiji. Outro grupo envolvido nos eventos que derrubaram o shôgun seriam os samurais legalistas, conhecidos como patriotas (Ishin Shishi). Segundo Andrew Gordon13 esses guerreiros praticavam o terror político visando inimigos internos ou externos. Para esse autor, os legalistas eram na maioria das vezes jovens revoltados do escalão mediano ou inferior da classe bushi. Eles se juntaram a um número de membros politicamente engajados da elite rural e urbano, incluindo mulheres ativistas. Foram figuras cruciais da história revolucionária de ideias e ação política no Japão. Os Ishin Shishi eram pessoas ferozmente orgulhosas que se entendiam em virtude de nascimento e treinamento para serem servos de seus senhores e de um reino maior e vagamente definido de Estado simbolizado pelo imperador. Na tradição do funcionalismo Tokugawa, eles combinaram cultivo civis e militares. Tinham contato com clássicos confucionistas enquanto treinavam a luta de espadas. Refletindo essa dupla formação, eles sentiram uma par responsabilidade de pensar e de agir: propor soluções para os problemas do momento e para realizá-los de forma abnegada na prática.
12
Sinônimo para Samurai. GORDON, Andrew. A Modern History of Japan From Tokugawa Times to the Present.New York: Oxford University Press, 2003. pp.52-53. 13
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A Guerra Boshin Com a sucessiva pressão, o shôgun acabou aceitando entregar o poder para o Imperador. Dessa forma, Tokugawa Yoshinobu14 retirou-se para o Castelo de Osaka para evitar uma guerra. No entanto, a profundidade do ressentimento em relação aos clãs Satsuma e Choshu para com as forças partidárias do bakufu, particularmente os Aizu e Kuwana do norte do país, era feroz e não seria facilmente neutralizado. Com a aceitação do shôgun, parecia que não haveria conflitos. No entanto, quando as forças pró-bakufu, especificamente do clã Shonai cercaram o complexo militar Satsuma em Edo no final de dezembro, um conflito em larga escala parecia inevitável. Ele eclodiu em 3 de janeiro de 1868 na região de Toba e Fushimi, ao sul da capital imperial e marcou o início da série de batalhas referidos como a Guerra Boshin. O conflito que irrompeu entre Satsuma e Choshu contra as forças pró-Bakufu rapidamente deu uma lição sobre a superioridade do treinamento e equipamento do novo exército. Embora em menor número, as forças imperiais enviadas para o combate conseguiram ter vantagens e venceram os aliados do shôgun. Este, sem dúvida ficou convencido da futilidade de tentar resistir ao novo governo. Após uma série de encontros relativamente breves nos arredores de Edo, o castelo formidável da metrópole oriental foi preparado para a defesa. Em última análise, no entanto, este era também uma fortaleza abandonada sem uma campanha prolongada. Saigo Takamori foi imediatamente fazer negociações com o antigo shôgun e seus aliados para determinar os termos de rendição. No final, uma resolução relativamente branda foi acordada e implementada, onde Yoshinobu e sua comitiva foi removido para a região de Mito, no nordeste japonês, enquanto o novo governante assumiu o castelo e foi apresentado para às forças imperiais em 4 de abril. Entre as forças pró-bakufu, se encontrava um grupo de samurais conhecido como a Tropa Shinsengumi.
14
Último shôgun. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A Tropa Shinsengumi e seu papel no Shogunato Segundo Mike Wagner, a Shinsengumi foi um grupo de espadachins poderoso que foi formado pelo governo Tokugawa para proteger as cidades japonesas daqueles que queriam ver o retorno do poder para as mãos do imperador. Esse bushidan15 teria sido formado no fim do período Tokugawa, durante o período conhecido como o bakumatsu16. Ainda segundo esse autor, eles não só lutaram contra os revolucionários que queriam derrubar o poder do shôgun, mas também foram atribuídos por esse governo para proteger o povo japonês e derrubar a corrupção onde quer que ela fosse encontrada17. O significado literal do nome “Shinsengumi” traduzido por Rômulo Hillsborough é "recém-corpo selecionado” um nome que reflete o quão rápido o grupo foi criado, segundo Wagner18. O grupo foi formado em 1862, inicialmente conhecido como “Corpo Roshi” por líderes do bakufu para ajudar Matsudaira Katamori, comissário militar de Kyoto a proteger seu povo dos imperialistas. Depois de centenas de recrutamentos de samurais, um de seus líderes, Kiyokawa Hachirô, estabeleceu uma sede nos arredores da vila de Mibu no Templo Shintokuji. Em um primeiro momento, o grupo foi caluniado pela população local porque alguns de seus membros teriam extorquido dinheiro da classe comerciante local19. No entanto, Kiyokawa Hachirô se mostrou um adepto do Imperador, traindo assim o corpo militar na qual fazia parte, a fim de usa-lo para minar a política externa do shôgun. Eventualmente, ele revelou seu plano em 13 de Fevereiro de 1863, e afirmou que seus seguidores tinham de servir ao imperador, se revelando assim como um dos revolucionários que queriam restaurar o sistema imperialista. O bakufu ficou chocado e com raiva. Kiyokawa foi assassinado em 1862, no entanto, por querer enfrentar navios estrangeiros em Yokohama. Treze membros do Corpo Roshi que
15
Grupo ou legião de samurais. YAMASHIRO, José. História dos Samurais. 3. ed. São Paulo: Ibrasa, 1993. p. 267. 16 Período correspondente aos últimos anos do período Edo, entre 1853-1867. 17 WAGNER, Mike. Shinsengumi: In: Fact and Fiction.Asian Studies Major, 2005.p.4. 18 Idem p.4. 19 Idem p.5. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
foram leais ao bakufu juntou-se oficialmente no esforço para preservar o governo. Em 1863, o Shinsengumi foi formado por estes membros20. O Shinsengumi possuía uma hierarquia estruturada (que inicialmente consistia nos treze membros do Corpo Roshi que decidiram pelo lado do bakufu). O grupo tinha um comandante (Kondô Isami), dois vices comandantes (Hijikata Toshizô e Yamanami Keisuke) e um conselheiro militar (Kashitarô Itô). Além disso, havia dez capitães. Foram eles: Okita Sôji (Primeiro Capitão), Nagakura Shinpachi (Segundo Capitão), Saitô Hajime (Terceiro Capitão), Matsubara Chûji (Quarto Capitão), Takeda Kanryûsai (Quinto Capitão), Inoue Genzaburô (Sexto Capitão), Tani Sanjûrô (sétimo Capitão), Tôdô Heisuke (Oitavo Capitão), Suzuki Mikisaburô (Nono Capitão) e Harada Sanosuke (Décimo Capitão)21.
A Tropa Shinsengumi em Rurouni Kenshin O drama de Rurouni Kenshin, a obra analisada nesse trabalho, se passa dez anos depois do inicio da Era Meiji e tem como personagem principal Kenshin Himura, um guerreiro da classe samurai que lutou a favor do imperador contra as forças do shôgun, às vésperas de 1868. Nobuhiro Watsuki, criador do mangá em questão, procurou inspiração em vários personagens históricos japoneses, principalmente antigos espadachins do fim da Era Edo. A série apareceu pela primeira vez como um par de pequenas histórias publicadas de forma esporádica, ambas são intituladas Crônicas de um Espadachim da Era Meiji publicadas entre 1992 e 1993 na revista Weekly Shōnen Jump Special da editora Shueisha. Em 1994, esse autor criou uma versão definitiva que foi publicada na Weekly Shōnen Jump e concluída em 1999. A Tropa Shinsengumi aparece em Rurouni Kenshin como um grupo militar pró bakufu. Como já foi dito nesse trabalho, ela fora criada para enfrentar os restauradores. Na figura 3, temos a primeira referencia à tropa em Rurouni Kenshin. Essa alusão mostra dois membros diante do protagonista Kenshin: Saitou Hajime e Okita Sôji. 20 21
Idem p.6. Idem pp.6-7.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Figura 3. Encontro entre Kenshin e os membros da Shinsengumi: Saitou Hajime e Okita Souji.
Para Rosa Lee22, o Shinsengumi, um grupo de jovens recrutados pelo bakufu para proteger Kyoto da ameaça da Casa Imperial no período Bakumatsu, é romantizado e idolatrado no Japão, apesar de sua limitada importância na história daquele país. Citando Antonio Gramsci, o que explica o fato dos japoneses serem atraídos pela literatura popular, esta na observação de suas "filosofias de idade", que podem ser descobertas ao examinar heróis populares. O público nipônico ao ter contato com os heróis samurais, especificamente os membros da Tropa Shinsengumi, se identificariam com estes personagens por representarem parte do universo que esses leitores estão inseridos. Dessa forma, o público encontraria nos heróis da Shinsengumi, a reflexão de suas filosofias de idade. Ou seja, a atração por personagens autônomos, protagonistas determinados que apreciem o valor da comunidade, pode ser a razão para a constante romantização da tropa, segundo Rosa Lee.
22
LEE, Rosa. Romanticising Shinsengumi in Contemporary Japan. New Voices: A Journal for Emerging Scholars of Japanese Studies in Australia and New Zealand,Sydney, v. 4, jan. 2011. p. 168. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Sonia Bide Luyten23 afirma que os heróis do mangá têm como característica recorrente em seu comportamento, um caráter estoico, austero, de personalidade rígida herança direta do bushi. Além de Histórias de autossacrifícios típicas da classe samurai. Devemos perceber durante o trabalho, como as características das personagens de “Rurouni Kenshin” pode dialogar com ideias de Rosa e Luyten a respeito do samurai. Na figura 4, vemos Kenshin falando sobre o grupo. Em sua fala, Himura além de dizer que tais homens formaram o último grande grupo de espadachins do Japão, para ele quem os derrotou não foram outros samurais, mas sim o armamento moderno, ou seja, se de um lado os membros da Shinsengumi são vistos como heróis, as armas modernas ocidentais são culpadas pela derrota desses guerreiros.
Figura 4. Representação da Tropa Shinsengumi em Rurouni Kenshin.
Ainda na mesma imagem, podemos perceber que a forma gráfica na qual Nobuhiro traz os membros da Shinsengumi são as mesmas onde representa alguns de 23
LUYTEN, Sonia. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo, Hedra, 1999. p. 57. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
seus personagens fictícios em Rurouni Kenshin. Dessa forma, dos dez capitães representados na imagem, além de Saitou, podemos identificar outros três membros que servem de inspiração para personagens na historia de Kenshin. Sanosuke Harada, Takeda Kanryûsai e Okita Souji serviram de base para a construção dos personagens fictícios Sanosuke Sagara, Kanryu Takeda e Soujirou Seta, respectivamente.
Construção das personagens
Sanosuke Sagara
A primeira personagem a ser analisada foi inspirada em um samurai real: Harada Sanosuke. Segundo Mike Wagner24 Harada teria sido o capitão da décima divisão da Tropa Shinsengumi. A primeira aparição de Sanosuke em Rurouni Kenshin (figura 5) remete aos primeiros movimentos por direitos civis no Japão Meiji.
Figura 5. Introdução da personagem Sanosuke Sagara na obra.
Assim, os movimentos de protesto que se desenvolveram no Japão moderno, sob o impacto dos vários processos de modernização, eram, na aparência, em larga medida, muito semelhantes àqueles que se
24
WAGNER, Mike. Shinsengumi: In Fact and Fiction. Asian Studies Major. 2005. p. 7. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
desenvolveram na Europa. Isso é válido, particularmente, para os movimentos pelos direitos dos cidadãos, bem como para os vários movimentos trabalhistas e socialistas, a fim de aumentar a participação na arena política25.
A fala de Sanosuke na figura é curta. Porém, o autor Nobuhiro passa a ideia de que o personagem possui uma definição do que seriam direitos civis: um mecanismo para defender a liberdade dos mais “fracos”. Devemos também fazer um paralelo com o movimento feminino que se iniciou em Meiji. Pois ao apresentar seu argumento, Sanosuke acabara de defender uma moça. Dá a entender tal alegoria como uma espécie de simbolismo usado pelo autor. Sagara cita os direitos civis e a proteção dos mais dos mais fragilizados, e ao mesmo tempo está segurando uma mulher, passando a ideia de que esse personagem corresponde aos ideais nobres com aos quais a Shinsengumi é tão representada. Seu embate contra Kenshin irá representar a rivalidade entre os apoiadores do regime do shôgun, no caso os membros da Tropa Shinsengumi, com os samurais patriotas que agiram apoiando o imperador.
Aoshi Shinomori
Mais um personagem com base em uma figura real, Aoshi Shinomori, foi inspirado em um dos lideres da tropa Shinsengumi, um samurai chamado Hijikata Toshizô26, que segundo Mike Wagner27, foi vice-comandante do grupo. Apresentado como um vilão, Aoshi é representado em um primeiro momento como um mercenário, trabalhando para o empresário Kanryu Takeda. Líder da gangue Oniwabanshuu28, Aoshi nunca se mostra submisso ao capitalista. Mesmo assim, podemos notar que essa representação do guerreiro, trabalhando por dinheiro, seja uma forma de Nobuhiro trazer a questão da marginalização do samurai. Além disso, quando assiste Kenshin lutar, Shinomori mostra que não esqueceu os princípios que um grande guerreiro deve trazer. Isso fica amostra com os elogios 25
EISENSTADT, S. N. Modernidade Japonesa: A Primeira Modernidade Múltipla Não Ocidental. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2010. pp.32-33. 26 Samurai vice-comandante da Tropa Shinsengumi. 27 Idem, p. 6. 28 O Oniwabanshu foi um grupamento existente durante o período Edo. Era formado por ninjas e espiões, atendiam basicamente aos interesses dos daimyô. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
que estabelece a Himura. O personagem diz que se o protagonista tivesse como intenção o lucro, teria se tornado um oficial do exercito japonês. Devemos tirar disso uma critica ao aparelho militar da Era Meiji e suas motivações por parte do autor da obra. Segundo Aoshi, faltaria um principio nobre durante a Era Meiji.( figura 6).
Figura 6. Reconhecimento do valor de Kenshin por Aoshi Shinamori.
Outra característica presente nesse personagem será sua lealdade para com seus subordinados. Com o fim da Era Edo, Aoshi fora chamado para ser funcionário do novo governo, mas rejeitou o cargo porque não queria abandonar seus amigos. Depois de ver seus afetos sendo mortos, Shinamori decide que quer matar Kenshin, pois assim, conseguiria ser o guerreiro mais forte, podendo dar esse título à memória de seus antigos companheiros.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Saitou Hajime Mais um personagem inspirado em uma figura real, Saitou Hajime em Rurouni Kenshin possui o mesmo nome do samurai histórico, que segundo Mike Wagner29 foi capitão da terceira unidade do grupo Shinsengumi. Posição que Saitou também possuía no drama. Na figura 7, Saitou é mostrado primeiramente como alguém que possui uma rivalidade com Kenshin. Essa dualidade estaria mergulhada no passado, com o processo que culminou no fim da Era Edo e inicio da Era Meiji. Sendo o herói um patriota a serviço do imperador, Saitou foi um de seus antagonistas, membro de uma unidade pró- shôgun.
Figura 6. Rivalidade no discurso de Saitou Hajime em relação a Kenshin.
Esse embate entre Kenshin e Saitou será uma das principais formas de relacionar os dois personagens antagonistas durante o Bakumatsu. Além disso, essa dualidade também refletiria a rivalidade entre samurais a serviço do Shôgun de um lado e entre os guerreiros a favor do Imperador. O antigo capitão é retratado na obra à serviço do governo Meiji e diferente da maioria dos samurais mostrados no mangá, Hajime conseguiu um posto como policial na nova Era japonesa. Segundo Wagner, com a vitória das forças imperiais, o Saitou 29
Idem, p.6. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
histórico teria passado a ser policial depois de 1868. Seria a forma em que o antigo bushi teria encontrado para lutar contra as injustiças no país, mostrando dessa forma uma espécie de lembrança dos tempos de guerreiro.
Soujirou Seta Soujirou Seta é mais um personagem criado por Nobuhiro a partir de um personagem real: Okita Souji, membro da Tropa Shinsengumi. Segundo Wagner (2005, p.9), Okita foi um prodígio no manuseio da espada e seu nascimento teria sido no ano 1844. Segundo esse autor, o jovem espadachim morreu com 25 anos, vitima de tuberculose (2005, p.15). Okita foi retratado em Runouni Kenshin. Sua pequena aparição na obra de Nobuhiro será lutando ao lado de Saitou Hajime, outro membro do grupo Shinsengumi. Na figura 3, vemos o jovem Souji representado como alguém que possui tuberculose, doença na qual Wagner, citado anteriormente, teria matado o samurai. Sobre Soujirou Seta, esse samurai será apresentado como o assassino do político Okubo Toshimishi, fato que aconteceu no dia 14 de maio de 1878, produto de bushi radicais descontentes com a política de Okubo, segundo Swale (2009, p. 127128). Soujirou não é tão critico quanto outros samurais. Pelo contrário, se mostra como alguém frio e sem emoções, nos quais as ações estarão voltadas apenas para os desejos de seu mestre Shishio Makoto. Seta representa, dessa forma, a figura do bushi leal ao seu senhor. Alguém que não mostra suas emoções e que, ao mesmo tempo, transmite confiança para seu sensei. Essa relação entre Shishio e Soujirou lembra a lealdade da tropa Shinsengumi para com o Shôgun. Por isso, a importância de representar um samurai histórico na figura de um guerreiro leal ao seu mestre, como vemos na obra estudada.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Takeda Kanryuu
Durante a Era Meiji, o Japão entrou no surto desenvolvimentista. O capitalismo ganhou espaço de vez no país nipônico. As indústrias cresceram e tivemos a formação da classe operária japonesa. Em Rurouni Kenshin, essa fase capitalista será simbolizada na figura do vilão Takeda Kanryuu. Sua representação será de um homem sem nenhum interesse que não seja o lucro através da venda do ópio30 (figura 6). O samurai histórico que serviu de inspiração para a criação de Kanryuu foi o quinto capitão da Tropa Shinsengumi, Takeda Kanryûsai, morto em 1867 por Saitou Hajime, não só porque ele era um líder ineficiente e arrogante e suas táticas ultrapassadas, afirma Wagner. Mas também porque, Kondô Isam, líder máximo da Shinsengumi, descobriu que Kanryûsai era um traidor quando ele se juntou aos imperialistas, viajando para a mansão do clã Satsuma em Fushimi31. No mangá, Takeda é representado como um empresário capitalista. Além disso, ele não entende o código de um guerreiro samurai. “Um homem capaz de morrer por suas crenças”, é assim que Aoshi se refere à Kenshin, quando questionado por Kanryuu (figura 6). Além disso, Shinamori sendo um guerreiro irá fazer uma analogia: diz que Himura “não liga para lucros, pois se ligasse, seria um oficial do exército durante a Era Meiji”. Ou seja, um guerreiro virtuoso, característico do Período Tokugawa, cedeu espaço para um militar apenas interessado no dinheiro durante a Era Meiji. A visão de Nobuhiro sobre o capitalismo japonês não é complexa. O autor cria Takeda para representar tal fase nipônica, um homem que busca o lucro com a venda de ópio, tem poderio bélico moderno e desconhece a honra samurai. Uma crítica a Era Meiji através do sistema lucrativo é encontrada em Rurouni Kenshin dessa forma. Para Watsuki, tal contexto histórico representou o surgimento de homens incapazes de pensar como os antigos samurais, verdadeiros guerreiros de honra. O novo homem japonês, segundo esse autor, apenas ligaria para ganância e lucro.
30 31
Substância que pode causar alucinações ou morte. Um bairro da cidade de Kyoto. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Considerações finais Como analisado nesse trabalho, a representação da Tropa Shinsengumi na cultura japonesa, em especial no mangá “Rurouni Kenshin”, está inserida em um contexto comum dentro da literatura nipônica: a tentativa de lembrar a cultura tradicional, principalmente através da figura do samurai. Os integrantes da Shinsengumi em “Rurouni Kenshin” estão representados em personagens fictícios. Sanasuke Sagara é o samurai marginalizado; Aoshi Shinamori é um mercenário que não esqueceu a essência de um verdadeiro guerreiro; Saitou, um antigo membro da Tropa, é um policial que ainda luta por justiça; Soujirou Seta esqueceu os sentimentos e se juntou a um samurai radical e, Takeda Kanryuu, inspirado em um membro traidor da Shinsengumi, é representado como um homem sem valores morais. Portanto, Nobuhiro traz antigos membros da Tropa Shinsengumi como pessoas dentro do contexto da Era Meiji, mesmo que historicamente, tais membros morreram antes do inicio daquele período (exceto Saitou Hajime). A representação em cima desses samurais mortos durante a Restauração Meiji nos leva a entender que o autor queria fazer com que o público japonês lembrasse seus heróis nacionais dentro de um contexto polêmico da modernização no qual o país passava quando a obra foi publicada: a década de 1990. Segundo Elise K.Tipton32, a crítica à modernização japonesa encontra base na perda de identidade cultural, propiciada principalmente com a globalização. Uma linha de pensamento já presente nos anos 1880 e que, com a década de 1990 veio à tona novamente, principalmente com a crise econômica na qual o país enfrentou nesse período. É discutível se a modernidade marcou o fim do tradicionalismo nipônico. Segundo Yutaka Tazawa33, a cultura japonesa não se perde com a entrada da influência estrangeira. Para esse autor, os hábitos nacionais contemporâneos devem ser definidos como produto do encontro da cultural tradicional japonesa, com os
32
TIPTON, E. K. Modern Japan. New York: Routledge, 2002. p. 56. TAZAWA Yutaka. História Cultural do Japão – uma perspectiva. Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão, 1973. p.1. 33
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
comportamentos estrangeiros, onde estes últimos foram “importados”, absorvidos e misturados de forma harmoniosa à primeira. Houve dessa forma, possibilidade de aberturas flexíveis para práticas estrangeiras. Portanto, a rejeição pela cultura estrangeira por parte dos japoneses foi bem rara. Porém, não se teve a perda da identidade nacional com a entrada das culturas “alienígenas”. Além disso, aumentar a importância da Tropa Shinsengumi, criando personagens inspirados em seus membros e, o caráter autônomo desses guerreiros, nos faz lembrar das citações de Rosa Lee e Sonia Bide Luyten, onde as autoras nos deixam a importância da representação do samurai como herói dentro da literatura nipônica. Lembrar-se dos samurais em tempo de crise é um jeito de mostrar ao povo japonês que eles têm alguém a se espelhar. Representar esses heróis como prejudicados pela modernização da forma que Nobuhiro faz em “Rurouni Kenshin” é criticar o processo japonês de modernização, principalmente quando este destruiu um dos maiores símbolos da cultura nacional daquele país: o bushi.
Bibliografia EISENSTADT, S. N. Modernidade Japonesa: A Primeira Modernidade Múltipla Não Ocidental. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, p.11-54, 2010. Rio de Janeiro. GORDON, Andrew. A Modern History of Japan From Tokugawa Times to the Present. New York: Oxford University Press, 2003. LEE, Rosa. Romanticising Shinsengumi in Contemporary Japan. New Voices: A Journal for Emerging Scholars of Japanese Studies in Australia and New Zealand,Sydney, v. 4, p.168-187, jan. 2011. LUYTEN, Sonia. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses.São Paulo, Hedra, 1999. STEELE, M. William. Alternative Narratives in Modern Japanese History.2 ª edição. Nova York: Taylor & Francis e-Library, 2004. TAZAWA Yutaka. História Cultural do Japão – uma perspectiva. Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão, 1973. TIPTON, E. K. Modern Japan. New York: Routledge, 2002. WAGNER,Mike. Shinsengumi: In: Fact and Fiction. Asian Studies Major. 2005. WATSUKI, Nobuhiro. Kenshin Kaiden. Shueisha Inc. Tokyo. 1999. YAMASHIRO, José. A Pequena História do Japão. 2. ed. São Paulo: Herder, 1964. YAMASHIRO, José. História dos Samurais. 3. ed. São Paulo: Ibrasa, 1993. Artigo recebido em: 29 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 20 de Abril de 2015 Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 143-160, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
LUX IN TENEBRIS: A construção do herói nos videogames Christiano Britto Monteiro dos Santos RESUMO: Esse artigo propõe uma abordagem de pesquisa histórica a partir do fenômeno da mídia de massa dos videogames. Indico tais jogos como novas fontes para o campo da historiografia. Analiso a construção do herói presente em um tipo de narrativa e memória mitificada da II Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra Fria (1947-1991), sob grande influência de tipos de valores nacionais americanos. A indústria e a cultura dos videogames se manifestaram nos EUA, na segunda metade do século XX e no início do XXI e receberam grande interferência de valores americanos. A base de nossa investigação é a análise de duas franquias de games, Medal of Honor e Call of Duty. PALAVRAS-CHAVE: História; Análise de videogames; História dos EUA.
LUX IN TENEBRIS: The Construction of the hero in video games ABSTRACT: This article proposes a historical research approach from video games mass media phenomenon. We consider such games as new sources to the field of historiography. Analyze the construction of this hero in a kind of narrative and mythical memory of World War II (1939-1945) and the Cold War (1947-1991), under great influence of types of domestic American values. The industry and the video game culture is expressed in the US in the second half of the twentieth century and early twenty-first and received great interference of American values. The basis of our research is to examine two games franchise, Medal of Honor and Call of Duty. KEYWORDS: History; Video game analysis;US history.
***
Esse artigo é resultado da pesquisa de doutorado e da tese “Medal of Honor e Call of Duty: uma comparação entre missões do videogame e eventos históricos” sob a orientação do Professor Doutor Wagner Pinheiro Pereira no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC. SANTOS, Christiano Britto Monteiro dos. Medal of Honor e Call of Duty: uma comparação entre missões do videogame e eventos históricos. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em História Comparada (PPGHCUFRJ), Orientador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, 2014. Doutor em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IHUFRJ), na linha de Poder e Discurso, bolsista CAPES. E-mail: historiadorvideogames@gmail.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
A
construção do herói na narrativa das franquias dos jogos aqui analisados está relacionada com uma ambiguidade/dualidade. A construção e a deformidade do inimigo se fazem necessário como
instrumento de destaque para a exaltação do herói. Os videogames permitem uma profunda empatia com essa identidade do protagonista, pois os jogadores assumem a posição desses heróis, ao contrário do cinema que lança os expectadores à condição de passividade na relação com o filme. Na trajetória da narrativa mítica nacional americana, podemos identificar uma postura de aplicação do que chamo de Lux in Tenebris (A Luz brilha na escuridão), de maneira que "A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam”1. Defendo que há uma narrativa sacralizada do protagonista do jogo, que se “sacrifica” pela missão, pela comunidade a qual pertence e pelos ancestrais. Tais aspectos são relacionados com a estrutura usual e comum aos videogames, que é a divisão em missões, contudo, no caso desses jogos com temáticas de guerra específicas, há uma retroalimentação no sentido de missão. Considero que as missões são carregadas de sentidos de cultura política, para além de parâmetros técnicos e geométricos de Tags e divisões da jogabilidade. Para tanto, recorro às considerações de Cecília Azevedo no sentido das missões para a identidade nacional americana e coesão nacional, de maneira que: No século XX, a Segunda Guerra Mundial teria reforçado este paradigma da guerra justa, que resultaria em poder, prestígio e reforço da ideia de destino e missão redentora da América. Por outro lado, no entanto, a guerra seria demonizada, apreendida como uma ameaça aos ideais de democracia, liberdade individual, pela ampliação desmesurada e indevida do aparato militar2.
Ao longo das missões dos jogos, as variadas localizações geográficas e os diversos combates e guerras nos indicam uma reafirmação e consonância com as missões das Forças Armadas dos EUA, essas estariam: (...) exportando os princípios da Revolução Americana, é interessante notar a tensão entre a busca do outro - diferente, mas igual - já que a universalidade da condição humana é sublinhada -, e o excepcionalismo 1
Frase contida no quinto versículo do primeiro capítulo do evangelho de João: "E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.", a Luz é uma referência a Jesus Cristo, luz dos homens. In: CATÓLICA, BÍBLIA; COMPÊNDIO DO VATICANO, I. I. Petrópolis. Vozes, 1993. 2 AZEVEDO, Cecília. Culturas políticas em confronto: a política externa norte-americana em questão. Maringá: Anais Eletrônicos do VI Encontro da ANPHLAC, 2004. p.2.AZEVEDO, Cecília da Silva. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional, v. 3, n. 2, 2007. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
dos Estados Unidos, que não deviam deixar de cumprir sua missão de redimir o mundo, seu “Destino Manifesto”.3
Tal construção trás à tona a deformidade do inimigo que se manifesta como trevas para a exaltação do herói. Na trajetória da narrativa mítica nacional americana, podemos identificar uma sacralização do protagonista. Tais jogos são instrumentos de propaganda política. Como nos apoia o historiador Wagner Pinheiro Pereira: A propaganda política, entendida como fenômeno da sociedade e da cultura de massas, consolidou-se nas décadas de 1920-1940, com o avanço tecnológico dos meios de comunicação. Valendo-se de ideias e conceitos, a propaganda os transforma em imagens, símbolos, mitos e utopias que são transmitidos pela mídia. A referência básica da propaganda é a sedução, elemento de ordem emocional de grande eficácia na conquista de adesões políticas. (...)O poder político, nesses casos, conjuga o monopólio da força física e da força simbólica; tenta suprimir, dos imaginários sociais, toda representação do passado, presente e futuro coletivos que seja distinta daquela que atesta a sua legitimidade e cauciona o controle sobre o conjunto da vida coletiva (...) 4.
Sob tais considerações, consideremos que um aspecto muito peculiar dos videogames é a possibilidade de jogabilidade em primeira pessoa. Podemos definir esse recurso técnico como o elemento fundamental da identidade dos novos jogos de guerra à medida que proporciona uma intensa experiência no campo da identidade do jogador. O recurso do first person, nos jogos Medal of Honor e Call of Duty, permite ao jogador uma relação com a espacialidade como se fosse a “vida real”. O jogador assume, na relação com o ambiente, apresentado por meio da interface do jogo, novos braços e armas e navega com sua nova identidade nos cenários à frente. Este é um recurso digital fundamental para um efeito que consideramos como catarse. Esta tem como destaque a característica de lançar o jogador para uma condição sensorial de estar “dentro dos jogos”, pois desenvolvem movimentos, escolhas, transformações com um conjunto de elementos presentes nos cenários que são carregados de uma considerável representação gráfica que se remete ao real. Como nos auxilia a especialista em educação e videogames, Lynn Alves: A palavra catarse tem origem no grego kátharsis e significa purgação, purificação, limpeza, um efeito que provoca a conscientização de uma 3
AZEVEDO, Cecília da Silva. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional, v. 3, n. 2, 2007. 4 PEREIRA, Wagner Pinheiro. Cinema e Propaganda Política no Fascismo, Nazismo, Salazarismo e Franquismo. In: História: Questões & Debates. UFPR, ano 20, n. 38, jan./jun. 2003. p. 102. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então, reprimida (...)5.
Tais aspectos emocionais associados à narrativa das crises presentes nos eventos históricos dos jogos, como o ataque à Pearl Harbor ou o Desembarque na Normandia, são fundamentais para uma consciência que se remete aquele evento. Esta técnica contribuiu para o estrondoso sucesso da versão Medal of Honor: Allied Assault, atestado pela premiação de Computer First Person Action Game of Year no ano de 2003. Para o jogo Medal of Honor, este efeito insere o jogador em um ambiente que gera uma personificação dele, transformando-se em uma questão de identidade e valores reunidos em torno de um evento lúdico6. Jogar em primeira pessoa é, acima de tudo, experimentar uma imersão de sentidos envolta em identidades, mas o mais impressionante dessa vivencia é que são identidades massificadas. Essa experiência é um paradoxo, pois há uma massificação ligada a uma subjetividade. O indivíduo, quando joga, se percebe como único naquela missão em que ele foi inserido. Podemos afirmar que há um aperfeiçoamento, mas não uma invenção dessas relações com os videogames, ou seja, não são sentimentos artificiais, mas a intensificação sensorial de determinadas vivências, como em um livro imaginado; nesse caso, o leitor está dentro da imaginação. Conforme Martín-Barbero destaca: Edward Shils irá mais longe. Com o advento da sociedade de massa não temos unicamente "a incorporação da maioria da população à sociedade", o que de alguma maneira reconhece até seus inimigos, mas também uma revitalização do indivíduo: "A sociedade de massa suscitou e intensificou a individualidade, isto é, a disponibilidade para as experiências, o florescimento de sensações e emoções, a abertura até os outros (...), liberou as capacidades morais e intelectuais do indivíduo”7.
Para compreendermos o significado da navegação nos cenários digitais dos eventos americanos, buscamos no campo da historiografia, a formulação de Mary Junqueira: Desde a chegada dos primeiros peregrinos em 1620, encontram-se nos documentos referências ao wilderness. (...) Os peregrinos, ao atravessarem 5
In: ALVES, Lynn; HETKOWSKI, Tânia Maria. Gamers brasileiros: quem são e como jogam. NASCIMENTO, Antonio Dias. Desenvolvimento Sustentável e Tecnologias da Informação e Comunicação. Salvador: Edufba, v. 1, p. 161-174, 2007. 6 Ver: SANTOS, Christiano Britto Monteiro dos. Medal of Honor e a construção da memória da Segunda Guerra Mundial. Dissertação (Mestrado). Niterói: UFF, 2009. Orientadora: Dr.ª Samantha Viz Quadrat. 7 MARTÍN BARBERO MARTÍN B. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Editora UFRJ, 2013. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
o Atlântico a bordo do navio Mayflower, comparavam-se aos hebreus, o povo eleito por Deus, ao atravessar o rio Jordão rumo à terra prometida. Travessia do wilderness, que também significava passar por provações a fim de alcançar a terra prometida 8.
A narrativa presente no jogo possui um sentido de peregrinação, em um cenário mítico rememorado. É possível, digitalmente, experimentar o inóspito e desconhecido, nas missões, em um mundo estranho, conforme os peregrinos. De maneira que os soldados são os novos peregrinos que experimentam a travessia do Atlântico, na fase do Desembarque da Normandia. E o jogador que vence se torna, ao lado de seus companheiros, parte do “povo eleito”, que atravessa seu “novo rio Jordão”. Esse mundo selvagem e misterioso, presente nas missões dessas franquias, está distante da civilização e se relaciona com a postura expansionista dos EUA, se lançando aos desafios que foram impostos aos americanos. Vale destacar que a wilderness e a “fronteira” estão no imaginário nacional nos Estados Unidos, de tal forma que reforçam o “excepcionalismo” do país. Dessa maneira, esse imaginário está ligado ao Oeste da Nação americana e foi lá que ela teria se consolidado. Então, é interessante entender como os EUA percebiam o seu próprio espaço territorial9. Ao longo do século XIX, em sua formação nacional, a delimitação de novas fronteiras teria cunhado a identidade do povo americano. Como vemos a seguir com a pesquisadora Cristina Soreanu Pecequilo: Entrando no século XIX, ainda na questão da consolidação nacional, vamos ter o que chamamos destino manifesto e a expansão das fronteiras, que é a colocação do caminho natural e a tarefa de expansão continental americana que se torna a terceira tradição. Existe na história americana o que chamamos de mito da fronteira. Qual é o mito da fronteira? O mito do país que cresce, que prospera, a partir do momento em que ele se expande, isso nasce no século XIX e está sustentado numa ideologia política, mas também numa ideologia religiosa chamada de destino manifesto, na verdade os Estados Unidos se expandem não por interesse próprio, mas por uma tarefa, um dever de disseminar democracia e liberdade pelo continente. Os Estados Unidos nascem somente na costa leste, as 13 colônias no Atlântico. Em menos de um século o país toma todo o continente, sobe e desce, chegando às fronteiras com o Canadá e às atuais fronteiras com o México.10
8
JUNQUEIRA, Mary A. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, 2001.p. 331. 9 JUNQUEIRA, Mary A. Estados Unidos: a consolidação da nação. São Paulo: Contexto, 2001. 10 PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos EUA: continuidade ou mudança? Porto Alegre: UFRGS, 2005. p. 7. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Nesse contexto, ao receber uma missão (mission), como é denominado nos jogos, há um aspecto narrativo que se coaduna às tradições de mitificação, que são presentes na narrativa da história nacional dos EUA, como nos auxilia Cecília Azevedo: (...) o mito da fronteira associado ao sentido de missão e virtude subjacentes à retórica grandiloquente que acompanha a política externa norte-americana vem sendo identificado e associado às representações da identidade nacional (...).11
Embora haja uma possibilidade, por parte do jogador, de conduzir seu personagem em um cenário, se torna necessário frisar, que, no caso dos jogos Medal of Honor e Call of Duty, sempre é assumida uma identidade de uma civilização específica. Qual a influência do firstperson nisso? Detenhamo-nos no fato de que, ao jogar em primeira pessoa, há uma extensão do nosso corpo (braços e mãos) que sempre é de homens brancos, ou seja, não há a opção de escolher a extensão de um homem negro, que no caso dos EUA, também lutou no teatro de operações de guerra na Europa. Dessa maneira, é imposta uma identidade WASP (White, Anglo-Saxon, Protestant) para todos os jogadores, que tem um papel de destaque nas mitologias políticas dos EUA, conforme Mary Junqueira: (...) os Estados Unidos como um país harmonioso e ordenado, formado por uma sociedade WASP — White, Anglo-Saxon, Protestant (branco, anglosaxão e protestante), perspectiva que excluía católicos, negros, índios e imigrantes em geral. Essa identidade é carregada de mitos que tem como propósito aplicar um conjunto de noções do que seria realmente ser americano, de forma que o: (...) ‘americanismo’, (...) consiste na representação de um conjunto de crenças de uma parcela da sociedade norte-americana, conhecida como WASP (...).12
Questiono qual seria o papel das mitologias no ambiente virtual do jogo e após a análise das fontes, considero como referencial as definições de Richard Slotkin, que tem vasta obra dedicada à análise do quanto a “fronteira” tornou-se um elemento de formação de identidade para o povo americano. Partilho de suas noções e observo que ao iniciar o jogo, os gamers são inseridos em um caminhar dentro do conjunto imagético investido de tal narrativa, que gera uma ligação emocional e intelectual com o passado, de tal forma que esse passado se torna comum ao jogador, uma “memória compartilhada”, através do caráter migratório para as fronteiras. Aspectos 11
AZEVEDO, Cecília. Política externa norte-americana: doutrinas, culturas e práticas políticas. Niterói: UFF, 2003. p. 10. 12 JUNQUEIRA, Mary A. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, 2001.p. 324. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
esses que podem ser emprestados da análise sobre a Segunda Guerra Mundial e os filmes de Hollywood, como podemos constatar a seguir nas palavras de Slotkin: A função primária do mitológico é fornecer a um povo ligações emocionais e intelectuais significativas com seu próprio passado. Apesar de o pioneirismo no Oeste ter sido sempre (após 1800) uma experiência de minorias, a Fronteira foi capaz de simbolizar um passado nacional porque seus temas principais – emigração na busca por coisas novas e melhores – tinha cognatos próximos nas experiências de mobilidade e deslocamento que pertenciam tanto a imigrantes estrangeiros quanto a migrantes internos em uma nação que se industrializava e urbanizava-se. Mas como eu apontei na minha argumentação sobre Roosevelt, Wister, e o Western “progressista”, o Mito da Fronteira do Século XX foi desenvolvido em reação contra a heterogeneidade racial e cultural, para sancionar uma definição exclusiva, “völkkisch” de nacionalidade Americana. Apesar de imigrantes e seus descendentes imediatos terem dado forma a desenvolvimentos da nova indústria cultural de Hollywood, os filmes western que eles fizeram estavam pautados em um desejo (e uma necessidade comercial) de imitar, e adquirir para si próprios, o “Americanismo real”. Eles aceitaram sem questionamentos a ideia de que o Velho Oeste era uma reserva Anglo-Saxônica, assim como aceitaram a beleza WASP como o padrão para selecionar heróis das telas. O monopólio WASP do heroísmo nos filmes ficou comprometido, até certo ponto, nos filmes de combate da Segunda Guerra Mundial – Apesar de através da década de 1940 e início de 1950, o ator principal no pelotão étnico era mais frequentemente um ícone WASP como Robert Taylor, Errol Flynn, ou Van Johnson. A divisão bipolar da demografia do Oeste em caubóis e Índios (e Mexicanos ocasionais) não foi seriamente expandida até a emergência dos western de “diretos civis” (de vida curta) após 1960. Mesmo assim, caubóis, soldados, e posseiros negros nunca foram representados em uma escala proporcional a seus números reais no Oeste (Tradução do autor)13.
13
SLOTKIN, Richard. Gunfighter nation: The myth of the frontier in twentieth-century America. Norman: University of Oklahoma Press, 1992. p. 638. Para aprofundar o tema da fronteira na construção de mitologias nacionais nos EUA, veja: SLOTKIN, Richard. Regeneration through violence: the mythology of the American frontier, 1600-1860. Norman: University of Oklahoma Press, 2000. Nessa obra Slotkin analisa a mitologia do Oeste americano, expõe as atitudes e tradições que formam a cultura americana e como esta se desenvolveu a partir das ansiedades sociais e psicológicas dos colonizadores europeus, que combateram em um mundo novo e reivindicaram a terra ao mesmo tempo em que expulsaram os nativos americanos. O autor recorre à literatura popular dos séculos XVII, XVIII e início do XIX, como o exemplo de narrativas de cativeiro, contos de Daniel Boone, os escritos de Hawthorne, Thoreau, Melville, dentre outros. Pode-se pesquisar também: SLOTKIN, Richard. The fatal environment: the myth of the frontier in the age of industrialization, 1800-1890. Norman: University of Oklahoma Press, 1985. Nesse livro Richard Slotkin expõe como o mito da expansão da fronteira e a subjugação dos índios estiveram relacionados com a justificativa do curso da ascensão da América para a riqueza e poder. O autor identifica como os americanos temiam que o elemento "selvagem" dominasse o mundo "civilizado" deles, e que em 1890 surge a redefinição de um mito cuja finalidade é criar um imaginário que ajude os americanos a responder aos temores e conflitos promovidos pela industrialização e expansão dos EUA no século XIX. Grifos meus. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Em sentido complementar a tais mitificações nacionais e como essas se dão na dinâmica dos jogos, o autor contribui com grande auxílio é Joseph Campbell14 que definiu o papel e lugar do herói em um universo muito peculiar: O ciclo cosmogônico é apresentado com surpreendente consistência nos escritos sagrados de todos os continentes e dá à aventura do herói uma nova e interessante conotação — pois agora parece que a perigosa jornada não foi um trabalho de obtenção, mas de reobtenção, não de descoberta, mas de redescoberta. Os poderes divinos, procurados e perigosamente obtidos, segundo nos é revelado, sempre estiveram presentes no coração do herói. Ele é "o filho do rei" que veio para saber quem é e, assim, passou a exercitar o poder que lhe cabe — "filho de Deus", que aprendeu a saber o quanto esse título significa. A partir desse ponto de vista, o herói simboliza aquela divina imagem redentora e criadora, que se encontra escondida dentro dele15.
Para tanto, trabalho com a referência de monomito, na qual há uma divisão em três seções para explicar a jornada do herói, como vemos na sequência: Partida/Separação, Iniciação e Retorno. Essas etapas de peregrinação sacralizam as relações do herói com seu desafio ao longo da jogabilidade. Destaco a presença dessas etapas ao longo das jornadas dos protagonistas de cada jogo de ambas as franquias, em uma adequação com a estrutura da narrativa, apresentada anteriormente. Na etapa da Partida o herói aspira à jornada; na Iniciação ele encontra aventuras por seu trajeto; e no Retorno o herói volta a sua casa, contudo, seu conhecimento e poderes são marcados por uma identidade mais empoderada, com as capacidades adquiridas em sua jornada.
14
Destaco que o modelo analítico do monomito fora aplicado ao mito americano de formação nacional, em uma obra de referência, pelo filósofo John Shelton Lawrence e pelo teólogo Robert Jewett, que indicam: “Joseph Campbell, em O herói de mil faces, aponta que o monomito clássico possui o seguinte padrão de enredo: um herói aventura-se do mundo comum a uma região de maravilha sobrenatural; encontra lá forças fabulosas e uma vitória decisiva é obtida; retorna dessa aventura com o poder para beneficiar as demais pessoas. Sugere-se que esse arquétipo é moldado a partir de ritos de iniciação, onde as pessoas deixam suas comunidades, passam por provações e retornam e são integrados como adultos maduros que podem servir à comunidade.” Cf.: LAWRENCE, John Shelton; JEWETT, Robert. The myth of the American superhero.Wm. B. Eerdmans Publishing, 2002. p. 269. 15 CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Cholsamaj Fundacion, 2004. p. 21.Utlizei profundamente os referenciais de Campbell em minha dissertação de mestrado que me auxiliou na abordagem da valorização e resgate dos veteranos da II Guerra Mundial por meio dos videogames. Ver: SANTOS, Christiano Britto Monteiro dos. Medal of Honor e a construção da memória da Segunda Guerra Mundial. Dissertação (Mestrado). Niterói: UFF, 2009. Orientadora: Dr.ª Samantha Viz Quadrat. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Wallpaper do jogo Medal of Honor: Frontline, 2002.
Dentre as etapas da jornada do herói, que foram divididas por Campbell em 12 estágios, destacaremos algumas, a começar pelo Chamado da Aventura, no qual uma crise se apresenta ao herói, com um desafio e uma aventura. No caso da franquia Medal of Honor frisamos que seus jogos começam com o chamado. Dentre as convocações dessa franquia destacamos o wallpaper, que indica claramente a todos “Você não joga, você é um voluntário”. A franquia Call of Duty define que seu “chamado” também assume um tom
convocatório militar desde seu próprio título, “chamado ao dever”. Em uma forma bem objetiva e capaz de convocar antes que o jogador aperte o botão de start em seu console e pegue seu joystick, há, nesse caso, uma antecipação da entrada do herói na jornada. Na fonte a seguir, selecionamos a frase “The world’s darkest hour shall be
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
youinest”16, em uma circunstância em que o jogador é chamado ao seu dever. Nessa expressão há um comando que indica a tarefa a ser realizada.
Capa do jogo Call of Duty – Finest Hour.
Esse formatado apresentado se mantém por várias edições da franquia, ou seja, tornou-se um padrão de divulgação do produto. Como exemplificamos na próxima capa exposta. O Segundo jogo da franquia Call of Duty (Big Red One) também realiza um chamamento. “Play one of the most enduring legends in military history”17. Na trajetória do jogo não foi identificada a etapa na qual há uma “reticência do Herói ou Recusa do Chamado”, no caso analisado, o herói dos games nunca se recusaou demora a aceitar o desafio seu medo não está presente. Isso por conta da maior vantagem da simulação, não há danos e diante da derrota é possível retornar e tentar vencer novamente.
16
“O mundo está na sua hora mais escura, seu dever é ser o melhor”. Tradução do autor. Clara referência ao discurso do 1º. Ministro Britânico durante a II Guerra Mundial (1939-1945). Winston Churchill, “Finest Hour” - Speech to Parliament June 18, 1940. Para mais informações ver o livro: CHURCHILL, Winston. Their finest hour. Houghton Mifflin Harcourt, 1986. 17 “Jogue uma das lendas mais duradouras da história militar”. Tradução do autor. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Capa do jogo Call of Duty – Big Red One.
Na sequência das etapas temos o “encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural”. Nos jogos, o herói encontra um orientador que frequentemente é o representante de uma das instituições americanas, que são portadoras dos valores dos ancestrais, como a O.S.S. (Office of Strategic Services), que dá instruções da missão, além de fazer o jogador aceitar o chamado, o informa e o treina no modo tutorial para sua aventura. Como no modelo recorrente do jogo Medal of Honor, pois em todas as edições há um tipo de introdução, na qual alguma instituição americana informa os procedimentos da batalha e mapeia a área que será palco do confronto, de maneira que ouvir as instruções torna mais eficiente o jogo e gera mais conquistas no percurso de jogabilidade.
Cena inicial do jogo Medal of Honor Airborne18
18
Ver informação no Apêndice E: TABELA DE VÍDEOS DA FRANQUIA MEDAL OF HONOR. Tabela de links dos principais vídeos ligados à franquia Medal of Honor. Na introdução do Medal of Honor Airborne, da página 240, no link: http://www.youtube.com/watch?v=lZZjsqkaN5o .Acesso em: 18/03/2013. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Usarei um exemplo do Medal of Honor Airborne, entretanto ressalto que há um padrão de apresentação na franquia inteira, como já fora explicado anteriormente. Ao começar a jogar, a primeira cena tem uma imagem de um documento da Divisão Airborne, com isso, o mentor é essa instituição militar americana, que lhe confereidentidade e o sentido de missão. Dessa forma a instituição é seu apoio na jornada de aventuras e desafios. O jogador sabe quem é e qual o sentido de sua existência.
Cena inicial do jogo Medal of Honor Airborne. Operação Husky (10 de Julho de 1943), no qual se vê os militares americanos sendo orientados na sala de instruções pelo oficial encarregado de explicar o plano de ataque à Sícilia. 19
Na sequência os militares da Divisão Airborne são orientados para a realização da Operação Husky (10 de Julho de 1943), no qual se vê o plano de ataque à Sícilia. Se os principais mentores são a O.S.S. e a Divisão Airborne, por outro lado temos também um simultânea ajuda sobrenatural, com o aparecimento, na cena a seguir de uma frase de algum antepassado, como vemos na próxima imagem:
19
Ver informação no Apêndice E: TABELA DE VÍDEOS DA FRANQUIA MEDAL OF HONOR. Tabela de links dos principais vídeos ligados à franquia Medal of Honor. Na introdução do Medal of Honor Airborne, da página 240, no link: http://www.youtube.com/watch?v=lZZjsqkaN5o. Acesso em: 18/03/2013. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Cena do jogo Medal of Honor Airborne. 2007.
Nesse exemplo temos a frase de um dos pais fundadores, Benjamin Franklin20 afirma que: Onde está o príncipe, que pode se dar ao luxo de cobrir o país com tropas para a sua defesa, como que dez mil homens descerem das nuvens, não poderia fazer um acordo infinito de maldade antes que uma força pudesse ser reunida para repeli-los?21
Os paraquedistas da Airborne são reverenciados com uma frase de um dos personagens históricos fundadores da nação americana. Essa é a “Ajuda Sobrenatural” presente na estrutura de narrativa desse jogo. Na frase do presidente Eisenhower “A história não concederá mais a dádiva da liberdade para os fracos ou tímidos22.” (tradução do autor), a imagem do wallpaper utiliza da expressão histórica, do então Comandante na II Guerra Mundial, para que se faça no jogo o que se “deve fazer em sociedade”, de acordo com a mentalidade mítica nacional americana, com esse discurso mítico da guerra, aqueles que buscam a prosperidade terão liberdade.
20
“ Where is the prince who can afford to cover his country with troops for its defense, as that ten thousand men descending from the clouds might not do an infinite deal of mischief before a force could be brought together to repel them?”. Benjamin Franklin 1784. 21 Tradução do Autor. 22 “History does not long entrust the care of freedom to the weak or the timid”. Dwight D. Eisenhower. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Wallpaper do jogo Medal of Honor: Frontline, 2002.
A franquia Call of Duty acompanha essa estrutura da franquia Medal of Honor e também tem seus jogos com o início marcado pela instrução, pela ajuda do mentor, queinicia o jogador nas habilidades com armas e equipamentos que lhe dão a competência de combater, a técnica realmente auxilia e se faz necessária no percorrer das missões. O jogador é orientado a como agir em combate, estando em equipe e utilizando granadas, na fase inicial do jogo, como vemos na imagem a seguir, temos o “Capitão Foley” como representante da América por meio da instituição militar americana, no caso o Exército.
Imagem de cena inicial do jogo Call of Duty 1, na qual se vê a etapa do treinamento básico.
No exemplo do Call of Duty, na jogabilidade, há uma peculiar característica de “Ajuda Sobrenatural”, na medida em que o jogador tem seu avatar abatido e morre, ele, ao perder, visualiza na interface da tv ou do pc uma frase, de algum personagem Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
histórico que esteja relacionado a grandes decisões da humanidade ou até mesmo ligados a estratégias de guerras do passado, não somente da história dos EUA, como também da humanidade e com uma variedade de origens de civilizações ou nações. Recolhemos um conjunto de frases quando ocorre essa técnica e realizamos uma lista de frases históricas presentes na franquia Call of Duty. Como o exemplo das frases23 a seguir: Winston Churchill: "Nunca no campo do conflito humano tanto foi devido por tantos a tão poucos." General Omar Bradley: "Na guerra não há prêmio para o vice-campeão." Napoleão Bonaparte: "A morte não é nada, mas para viver derrotado e sem glória é morrer todos os dias." John F. Kennedy: "A humanidade deve pôr fim à guerra, ou a guerra porá fim à humanidade." Robert McNamara: "Acho que a raça humana precisa pensar sobre a matança. Quanto mal que devemos fazer para fazer o bem?” 24
Imagem do jogo Call Of Duty 4, com a frase de Nicolau Maquiavel: “Nunca faça uma pequena injúria a seu inimigo.”
Portanto, até mesmo ao perder o jogador recebe o auxílio dos mentores e a “ajuda sobrenatural”, como uma espécie de reabilitação para retornar ao jogo e
23
Quoted sayings in the Call of Duty series. Disponível em: http://callofduty.wikia.com/wiki/Quoted_sayings_in_the_Call_of_Duty_series. Acesso em 20/08/2013. 24 Lista de frases históricas presentes na franquia Call of Duty. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
buscar sua conquista na missão que lhe foi atribuída. Ele falhou e a melhor forma de se reabilitar é lutar novamente com as orientações de sábios anciões. As outras etapas da jornada do herói têm muitas relações com a jogabilidade e identificamos o “cruzamento do primeiro portal”, como uma etapa ligada à estrutura de passagem de fases presentes nos videogames em geral, com isso o herói deixa para trás o mundo comum e entra em um novo mundo especial. Ele passa, assim, a ter relações com as “provações, aliados e inimigos”. Dessa forma, enfrenta testes, encontra aliados e confronta seus inimigos, com essa relação ele aprende as regras desse mundo especial, no caso o mundo da guerra que o está forjando. Na sequência há uma “aproximação”, o jogador tem êxitos frente às provações, na medida em que o jogo avança, ele passa por uma “provação difícil ou traumática”, que marca a maior crise da aventura, com alguma morte nos jogos. Principalmente na franquia Call of Duty temos a frequência da morte de algum companheiro de batalha, com uma série de cenas sacralizadas, tornando a morte uma comunicação de sacrifício.
Imagem da cena final com funeral de um combatente americano de Medal of Honor Warfigther.
Na etapa seguinte o herói recebe sua “recompensa”, pois enfrentou a morte, atravessou o vale da escuridão, se sobrepôs ao medo e merece receber uma recompensa, como uma espécie de elixir. Medal of Honor tem um acervo de medalhas, que fazem parte de um acervo pessoal de prêmios do jogador e desta forma ele é
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
classificado como alguém capacitado e suas medalhas são títulos que comprovam seus atos de heroísmo no campo de batalha.
Imagem do quadro de medalhas de Medal of Honor Airborne.
Imagem do manual de Medal of Honor Airborne, na qual se vê o quadro de medalhas com suas explicações sobre o valor e classificação de cada medalha. 25
25
In:https://attachment.fbsbx.com/file_download.php?id=260312194138669&eid=ASt0DrOb9TCm76ez hIDDRk9SvOve8cEYIojvSwsAl1iyXrwY3RPxMdEeHTP7iJblDFo&inline=1&ext=1397355244&hash=AStY MTazAt6NOzzG . Acesso em: 18/03/2013. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
No quadro explicativo de medalhas do manual de Medal of Honor Airborne há um conjunto de explicações semelhantes a definições do Departamento de Defesa dos EUA, com isso o jogador está imerso a uma estrutura narrativa profundamente militar. Como vemos na tradução: Medalhas: Seu heroísmo e bravura no campo de batalha são justamente recompensados. Para ver as medalhas que você ganhou, selecione CAMPANHA, então Estatísticas e medalhas. Medalha do Soldado - Atribuída por serviços meritórios excepcional em uma posição de grande responsabilidade. Para ganhar esta medalha, você deve equipar e usar todas as armas na campanha. Legião de Mérito - Concedido ao pessoal do Exército por conduta meritória excepcional no desempenho de um excelente serviço. Para ganhar esta medalha, complete uma missão no jogo sem morrer. Estrela de bronze - concedida ao pessoal do Exército que demonstraram heróico ou meritório serviço em conexão com operações militares. Para ganhar esta medalha, ganhar uma cinco estrelas em todas as missões na dificuldade Casual. Silver Star - concedido a todos os membros do Exército por bravura em ação enquanto servia em qualquer capacidade. Para ganhar esta medalha, ganhar uma classificação de quatro estrelas em todas as missões na dificuldade Normal. Distinguished Service - atribuído a todos os membros do Exército para atos de heroísmo. Para ganhar esta medalha, ganhar uma classificação de três estrelas em todas as missões na dificuldade Expert. (tradução do autor)
A franquia Call of Duty não utiliza o modelo de medalhas como a franquia. Medal of Honor, todavia, também utiliza uma forma de premiação, que indica uma condição de superioridade entre os jogadores, pois há uma diferença entre “zerar um jogo” (concluir) e “zerar esse jogo” tendo encontrado, intels com informações e condicionados à liberação de documentos e informações restritas e secretas. O que lhe torna o detentor de um objeto de valor considerável para o jogador e a sociedade que o possuir, pois com tais informações a trama do jogo, a aventura fica mais clara. Conforme podemos ver na imagem extraída do jogo Call of Duty Black Ops:
Imagem extraída do manual do jogo Call of Duty Black Ops.26
Vejamos a tradução a seguir: 26
Ver manual em: https://attachment.fbsbx.com/file_download.php?id=223207777881501&eid=ASva4JQut0XLWH1rI4B. Acesso em: 18/03/2013. Wpvq7fUD7j8A0XtN1xDhfbIc9ZFv_uVrATn1W0VpPrKS2le4&inline=1&ext=1397349436&hash=ASt9mY DKJ92yIdOG. Acesso em: 18/03/2013. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Campanha Iniciar um novo Call of Duty ®: Black Ops Single-player campanha ou retomar uma jogo salvo anteriormente *. Use a opção Mission Select para repetir missões concluídas em qualquer dificuldade. Use a opção de Intel para visualizar documentos informativos adquiridos via colecionáveis escondidos ao longo da campanha. 27
Há uma relação direta entre ser mais capacitado na jogabilidade e conquistar intels que possuem dossiês secretos. Esses dossiês, em geral, são elaborados com ótima qualidade, no tange a aparência de um documento real que copia as classificações de um documento de Estado, pois sua aparência sugere que ele seja real. As informações de dossiês são fundamentais para várias operações e seriam uma espécie de “elixir” que podem gerar a preservação do bem estar dos “homens de bem”. Aquele que possui o dossiê e o usa em prol da sociedade é o herói.
Imagem do jogo Call of Duty Black Ops, na qual se vê o Intel com informações sigilosas da CIA sobre a Operação 40 (Invasão à Baía dos Porcos). 28
27
Nota: Call of Duty ®: Black Ops usa um save sistema baseado em checkpoint automática. Selecione a opção Salvar e Sair no menu de pausa no jogo para salvar o progresso do jogo e voltar ao menu principal. (tradução e grifos do autor). 28 Identificamos a utilização de documentos da NSA para a produção dessa edição do jogo Call of Duty, ver: na página 254: ANEXO A: Entrevista com Frank Sturgis sobre a “Operação 40”. Ver os dossiês enviados por Intels em: http://callofduty.wikia.com/wiki/Intel. Acesso em: 18/03/2013. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Essas medalhas e premiações têm relação com “o Caminho de Volta”, quando o herói retorna ao mundo comum. Nesse momento ela possui uma nova identidade perante a sociedade, como uma espécie de “ressurreição do Herói”, na qual se confronta com a morte, e deve usar tudo que foi aprendido. E a próxima etapa é o “regresso com o Elixir”, elemento que servirá para auxiliar a todos no mundo comum. O que indica que esse herói realizou uma “grande conquista” e ele passa a ser um “senhor de dois mundos” e passa a ter direito à “liberdade para viver”.
Bibliografia: ALVES, Lynn; HETKOWSKI, Tânia Maria. Gamers brasileiros: quem são e como jogam. In: NASCIMENTO, Antonio Dias. Desenvolvimento Sustentável e Tecnologias da Informação e Comunicação. Salvador: Edufba, v. 1, p. 161-174, 2007. AZEVEDO, Cecília. Culturas políticas em confronto: a política externa norteamericana em questão. Anais Eletrônicos do VI Encontro da ANPHLAC. Maringá:ANPHLAC, 2004. __________. O sentido de missão no imaginário político norte-americano. Revista de História Regional, v. 3, n. 2, 2007. __________. Política externa norte-americana: doutrinas, culturas e práticas políticas. Niterói: UFF, 2003. CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. Cholsamaj Fundacion, 2004. CATÓLICA, BÍBLIA; COMPÊNDIO DO VATICANO, I. I. Petrópolis. Vozes, 1993. CHURCHILL, Winston. Their finest hour.Houghton Mifflin Harcourt, 1986. JUNQUEIRA, Mary A. Estados Unidos: a consolidação da nação. São Paulo: Contexto, 2001. ____________. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, 2001. LAWRENCE, John Shelton; JEWETT, Robert. The myth of the American superhero. Wm. B. Eerdmans Publishing, 2002. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos EUA: continuidade ou mudança? Porto Alegre: UFRGS, 2005. PEREIRA, Wagner Pinheiro. Cinema e propaganda política no fascismo, nazismo, salazarismo e franquismo. História: Questões & Debates, Curitiba, ano 20, n°38, jan./jun. 2003. _________. O Poder das Imagens: Cinema e Política nos Governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011. _________. O Triunfo do Reich de Mil Anos: Cinema e Propaganda Política na Alemanha Nazista (1933-1945). CAPELATO, Maria Helena et ali. (Orgs.). História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2007.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
SANTOS, Christiano Britto Monteiro dos. Medal of Honor e a construção da memória da Segunda Guerra Mundial. Dissertação (Mestrado). Niterói: UFF, Orientadora: Dr.ª Samantha Viz Quadrat, 2009. SCHELL, Jesse. A arte de game design: o livro original. Rio de Janeiro: CampusElsevier, 2011. SLAVEN, Andy. Video Game Bible, 1985-2002. Bloomington: Trafford Publishing, 2002. SLOTKIN, Richard. Gunfighter nation: The myth of the frontier in twentieth-century America. Norman: University of Oklahoma Press, 1992. _________. Regeneration through violence: the mythology of the American frontier, 1600-1860. Norman: University of Oklahoma Press, 2000. _________. The fatal environment: the myth of the frontier in the age of industrialization, 1800-1890. Norman: University of Oklahoma Press, 1985.
Artigo recebido em: 30 de Março de 2015 Artigo aprovado em: 30 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ 3, pp. 161-181, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ 3, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
RESENHA: CHEVITARESE, André. Jesus no Cinema. Um balanço Histórico e Cinematográfico entre 1905 e 1927 (Volume 1). Rio de Janeiro: Kline, 2013. Juliana B. Cavalcanti M.T.
A
ndré Leonardo Chevitarese é um pesquisador que tem se dedicado desde os anos 2000 a pesquisa no campo das experiências religiosas, mais especificamente no campo do judaísmo e do cristianismo, no
mundo antigo e suas recepções ao longo da história. Entre suas principais publicações encontram-se: Judaísmo, Cristianismo e Helenismo (2007) e Jesus de Nazaré: Outra História (2006), Cristianismos. Questões e Debates Metodológicos (2011) e Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução (2012). A presente obra pode ser entendida como uma continuidade do trabalho do referido autor no campo das recepções, mas com um caráter inédito em muitos aspectos. Como o próprio título sugere e o autor nos explica na introdução, este é o primeiro livro de uma trilogia que visa abordar como Jesus e o seu movimento foi um tema recorrente já nos primeiros anos de nascimento do cinema. O livro pode ser fragmentado em três partes, a saber: (a) Uma breve e densa introdução em que o autor dá um panorama sobre os desafios de se pensar História e Cinema. Chamando atenção para o fato de que o Cinema ainda hoje é visto por muitos, na melhor das hipóteses, como um entretenimento. Deixando de lado os aspectos políticos e ideológicos. Se as primeiras produções fílmicas de Jesus trazem um profundo teor antissemita, elas estão dialogando com as ideias, concepções de seu tempo, bem como dos interesses daqueles que estão à frente da direção destas produções. Neste sentido, o autor aqui chama atenção para a série de pressões por parte de grupos protestantes evangélicos junto ao Estado por controle e censura destes filmes, uma vez que o cinema se apresentou como uma ameaça ao monopólio do falar sobre
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) e Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHERIH-UFRJ). Bolsista CAPES. julianajubcmt@yahoo.com.br Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 184-187, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Jesus, monopólio até então restrito as igrejas cristãs. O primeiro órgão de censura foi o The Bristish Board of Film Censors, criado em 1912, que baniu a representação visual de Jesus. Uma proibição que perdurou até depois da Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos a censura não foi nacional, mas encontramos diferentes estados, entre eles o da Pensilvânia, que promulgaram leis de censura com o intuito de garantir a decência e a moralidade. Todo este processo culminou com o Código de Produção de Cinema, em 1930, redigido por um padre jesuíta com a finalidade de garantir que nenhum filme ferisse o kerigma. Este primeiro ponto do livro é encerrado com a menção as dependências imagéticas produzidas no período medieval para a produção dos primeiros filmes sobre Jesus, a saber: (1) A Paixão de Oberammergau e (2) pinturas como a Última Ceia de Leonardo da Vinci.
(b) O segundo bloco, e também o mais extenso da obra, inicia-se com a seguinte indagação: “Que retrato de Jesus de Nazaré pode ser extraído nos primeiros trinta anos do cinema?” Esta pergunta é central, pois é aqui que Chevitarese faz uma apresentação e análise comentada dos filmes mudos. São doze filmes selecionados para a análise: (a) La Vie et La Passion de Jésus Christ, (b) La Naissance, La Vie et La Mort du Christ, (c) From the Manger of the Cross, (d) Cristus. The Reverent Portrayal of the Life of Our Saviour, (e) Intolerance, (f) Christus, (g) Blade af Satans Bog, (h) Der Galiläer, (i) Behold the Man!, (j) INRI, (k) Ben-Hur. A Tale of the Christ e (l) The King of the Kings. A partir destes filmes priorizou-se observar a quais dependências textuais cada roteiro girava em torno, observando a harmonização feita por cada um deles. Em sua grande maioria forma identificadas referências aos quatro evangélicos canônicos, além de marcas populares (por exemplo: From the Manger of the Cross e Cristus. The Reverent Portrayal of the Life of Our Saviour). Outro aspecto mencionado foi à marca da produção acadêmica das últimas décadas do século XIX sobre estes filmes. O resultado foi que, excetuando Ben-Hur. A Tale of the Christ, todas as produções deste período tinham uma forte presença de um olhar histórico preconceituoso. Em que Jesus em 99,9% dos casos foi declarado como não sendo judeu e em 100% dos casos não foi circuncidado. Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 184-187, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Chevitarese ainda indagou-se sobre os demais personagens que estavam no entorno de Jesus. A constatação foi de que nestes primeiros trinta anos de filmagem, os diretores estavam mais preocupados em tornar Jesus o ator principal e todos os demais eram coadjuvantes nesta história. O que não significou dizer que alguns elementos próprios de uma sociedade patriarcal de finais do século XIX e início do XX não tenha imprimido sua leitura sobre os companheiros de Jesus. Um bom exemplo disto está na total ausência de discípulas de Jesus em todos os filmes. Mesmo o filme La Naissance, La Vie et La Mort du Christ de Alice Guy, a única diretora encontrada neste recorte, optou por colocar apenas homens como discípulos.
(c) A última parte do livro é a sessão “anexos”, que compreende dois pequenos artigos abordando duas personagens centrais e intrigantes na história de Jesus: João Batista e Maria Madalena. João Batista torna-se personagem de destaque neste primeiro volume pelo fato do mesmo gozar de uma grande centralidade nas narrativas neotestamentárias, ainda que por vezes perceba-se o esforço em diminuir a sua figura frente a Jesus. Este esforço não foi ignorado pelos roteiristas, muito pelo contrário, o que se observou foi a tentativa de se contornar dois grandes problemas que gravitavam em torno de João: de imediato, a relação estabelecida de mestre e discípulo, em que Jesus teria sido discípulo de João. E o outro é o batismo ministrado por João. Tendo Jesus sido batizado por João, Jesus também seria um pecador? Apenas dois filmes trazem a questão do batismo, no geral o que houve foi à omissão. Quanto a Maria Madalena a análise gira em torno numa reflexão sobre o papel desta mulher no movimento de Jesus que em nada tem a ver com a prostituição. As narrativas selecionadas giram em torno da visita ao túmulo de Jesus e sua ressurreição. Em todos os casos o que se verificou é que havia mulheres próximas a Jesus e atuantes em seu movimento. Talvez o caso de maior destaque esteja registrado em João 20: 14-17 em que Maria Madalena é a única a ver Jesus ressuscitado. Uma cena que foi omitida nas produções fílmicas. É apenas nas pinturas que ainda é possível perceber a recepção desta passagem do Evangelho de João.
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 184-187, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Desta forma, o texto se propõe não apenas a sinalizar os diálogos entre História e Cinema, mas também a pontuar de que forma muito das leituras e impressões que o grande público tem sobre Jesus advém da produção cinematográfica. Um material riquíssimo a ser problematizado pelos historiadores e cientistas sociais de maneira geral. Assim sendo, a presente obra é mais uma contribuição no campo da História das Religiões.
Resenha recebida em: 31 de Março de 2015 Resenha aprovada em: 29 de Abril de 2015
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 184-187, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nยบ 3, pp. 184-187, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com