Revista Poder & Cultura vol 1, 2014

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Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Marรงo/2014.


ISSN: 2359-1072

Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Marรงo/2014.


REVISTA PODER & CULTURA ISSN: 2359-1072 Conselho Editorial Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (Editor Chefe) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof. Ms. Leandro Couto Carreira Ricon (Editor Executivo) — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Prof.ª Ms. Priscila Henriques Lima — Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Departamento de História, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Mestranda Quezia Brandão — Universidade de São Paulo (USP), Departamento de História, São Paulo (SP), Brasil. Graduanda Beatriz Moreira da Costa— Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de História (IH), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Conselho Consultivo Nacional: Prof. Dr. Alexander Martins Vianna – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. Alexandre Busko Valim — Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Prof.ª Dr.ª Ana Paula Torres Megiani — Universidade de São Paulo (USP) Profa. Dra. Angélica Müller — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Antônio Pedro Tota – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Prof. Dr. Carlos Alberto Sampaio Barbosa – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis) Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Elizabeth Cancelli — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Flávio Vilas-Boas Trovão – Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Prof. Dr. Francisco Cabral Alambert Júnior — Universidade de São Paulo (USP)

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Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva — Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Prof. Dr. Frederico Alexandre Hecker – Universidade Presbiteriana Mackenzie / Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP – Assis) Prof.ª Dr.ª Gabriela Pellegrino Soares — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. José D’Assunção Barros — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Prof. Dr. Leandro Karnal — Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Maria Helena Rolim Capelato — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Mariana Joffily — Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Prof.ª Dr.ª Mariana Martins Villaça — Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Prof.ª Dr.ª Mary Lucy Murray Del Priore — Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) Prof. Dr. Maurício Cardoso — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Osvaldo Luis Angel Coggiola — Universidade de São Paulo (USP) Prof.ª Dr.ª Patrícia Valim – Universidade Federal da Bahia (UFBA) Prof.ª Dr.ª Priscila Ribeiro Dorella — Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Prof. Ms. Raphael Nunes Nicoletti Sebrian — Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) Prof. Dr. Robert Sean Purdy — Universidade de São Paulo (USP) Prof. Dr. Rodrigo Farias — Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Profa. Dra. Yone de Carvalho — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)

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Internacional: Prof. Dr. Alex Houen — University of Cambridge Prof.ª Dr.ª Archana Ojha — University of Delhi Prof. Dr. Diogo Ramada Curto — Universidade Nova de Lisboa Prof. Dr. Fernando Rosas — Universidade Nova de Lisboa Prof.ª Dr.ª Marie-Christine Pauwels — Université de Paris X Prof. Dr. Lorenzo Delgado Gómez Escalonilla — Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Madrid Prof.ª Dr.ª Patrícia Funes — Universidad de Buenos Aires Prof. Dr. Pere Gallardo Torrano — Universitat Rovira i Virgili / Universitat de Lleida Prof. Dr. Philip M. Hosay —New York University Prof. Dr. Wolfgang Benz — Technische Universität Berlin

Revisão: Quezia Brandão Diagramação: Beatriz Moreira da Costa

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APRESENTAÇÃO A Revista Poder & Cultura é uma iniciativa que nasceu dos cursos, produções historiográficas e debates realizados pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE), coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (IH/UFRJ), desde o ano de 2011. Demarcando seu campo de investigação na pluralidade de experiências históricas travadas pela relação entre Poder e Cultura, a Revista pretende ser um canal de expansão da temática e de divulgação de artigos, resenhas, entrevistas e ensaios de crítica histórica, estando aberta a abordagem de questões e conceitos acerca de todos os campos disciplinares, especialidades, períodos e temas históricos. Nosso propósito é abrir um espaço de circulação para as pesquisas contemporâneas em história, contribuindo para educação pública e socializando o espaço acadêmico, promovendo, assim, uma integração no ambiente intelectual e a cidadania através do acesso às produções. “Os fatos históricos não se organizam através de períodos e de povos, mas através de noções; não têm de pôr-se no seu tempo, mas sob seu conceito.”

(Veyne, 1989:33)

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Sumário EDITORIAL ..................................................................................................................... 7

O MITO EVITA NO CINEMA ARGENTINO: “EVA PERÓN – A VERDADEIRA HISTÓRIA” (1996) - WAGNER PINHEIRO PEREIRA ............................................. 10

A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA DA GUERRA DO PARAGUAI NO CINEMA PARAGUAIO: A EXALTAÇÃO DE SOLANO LÓPEZ E A REINTERPRETAÇÃO DO CONFLITO - FÁBIO RIBEIRO DE SOUSA ........................................................ 30

A ESPERANÇA: A POLÍTICA DE NÃO-INTERVENÇÃO NA OBRA DE ANDRÉ MALRAUX - REBECA GIL ......................................................................................... 43

“NOSSOS ANOS VERDE-OLIVA”: ROBERTO AMPUERO ENTRE O GOVERNO DE AUGUSTO PINOCHET, A REVOLUÇÃO DE FIDEL CASTRO E UM SÉCULO DE AUTORITARISMOS -QUEZIA BRANDÃO ....................................................... 56

O

RETORNO

DAS

BIOGRAFIAS

ATRAVÉS

DE

UM

PRISMA

PROBLEMATIZADO OU ULTRAPASSANDO OS LIMITES DA SOLIDÃO LEANDRO COUTO CARREIRA RICON .................................................................... 71

UM PARAÍSO TERRESTRE?: OS AMERÍNDIOS E AS DOENÇAS ANTES DE 1492 - DANILO DE LIMA NUNES .............................................................................. 91

O TEATRO DO PROGRESSO: DOM PEDRO II - O IMPERADOR ILUSTRADO - E O MUSEU REAL - UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO -BEATRIZ MOREIRA DA COSTA. ........................................................................................................................ 113

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NEONAZISMO ONLINE: VALHALLA88 E CIUDAD LIBERTAD DE OPINIÓN, ESTRATÉGIAS E APROPRIAÇÕES DO CIBERESPAÇO (2000-2005) - MÔNICA DA COSTA SANTANA ............................................................................................. 124

RESENHA DE: ROBERTS, ANDREW. A TEMPESTADE DA GUERRA: UMA NOVA HISTÓRIA DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. RIO DE JANEIRO: RECORD, 2012, 814 P. - JOÃO ARTHUR CICILIATO FRANZOLIN. ................... 141

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Editorial O volume 1 da Revista Poder & Cultura – volume inaugural de nosso primeiro ano de publicações – inicia sua edição com uma rica gama de textos que se pretendem importantes contribuições para pensar a relação Poder e Cultura. No bojo de uma historiografia que pensa a sócio história das práticas culturais, tal como afirmou o historiador Roger Chartier, os artigos publicados nesta edição trazem distintas contribuições de história cultural sob o trabalho com diversos tipos de fontes documentais. Assim, os dois primeiros artigos exploram recortes históricos a partir da relação cinema e história: o primeiro trabalha com as representações do mito argentino de Eva Perón no filme Eva Perón – A verdadeira História (dir. Juan Carlos Desanzo, 1996), construindo uma interessante análise sobre o cinema como instrumento de monumentalização histórica. Já o segundo artigo, tem como ponto de partida o filme Cerro Corá (dir. Guilhermo Vera, 1978), e preocupa-se com a construção de memória sobre a Guerra do Paraguai e os usos políticos do passado acerca da figura do líder paraguaio Solano López. Outros três artigos trabalham com a relação História e Literatura, e a sua significação para pensar política e as formas de resistência, memória e politização dos relatos históricos: o primeiro artigo traz uma discussão sobre a política de nãointervenção durante a Guerra Civil Espanhola a partir da literatura de André Malraux. Nesse caminho, o segundo artigo trabalha com o romance biográfico de Roberto Ampuero – Nossos Anos Verde-Oliva (2012) – e a problematização dos regimes autoritários cubano e chileno, das décadas de 1960 e 1970, um à esquerda política, outro à direita. Nesse caminho, o terceiro artigo utiliza as fontes literárias biográficas para pensar uma pertinente questão teórica para o campo da história: o retorno da biografia e a vocação da historiografia. O último bloco de artigos explora diferentes tipos de fontes, trabalhando com um arcabouço das chamadas “fontes mistas”, indo desde a pesquisa com fontes pictóricas e crônicas da Mesoamérica pré-colombiana, passando pela construção do discurso histórico nos acervos museológicos, até chegar à utilização de sítios eletrônicos como 7 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


importante corpus documental para pensar as novas ondas de grupo neonazistas, expandindo a ainda pouco explorada relação História e Internet. O volume traz, ainda, uma importante resenha de um livro sobre a história da Segunda Guerra Mundial, voltado para aspectos militares e políticos do conflito - A tempestade da guerra: uma nova história da Segunda Guerra Mundial, de Andrew Roberts (2012).

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O MITO EVITA NO CINEMA ARGENTINO: “EVA PERÓN – A VERDADEIRA HISTÓRIA” (1996) Wagner Pinheiro Pereira* RESUMO: O artigo pretende realizar uma análise da representação de Eva Perón e da Argentina peronista apresentada no filme Eva Perón – A Verdadeira História (Eva Perón: La Verdadera Historia, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996). Através da análise desse filme, buscaremos traçar um perfil da imagem criada em torno do mito Eva Perón e de sua relação com as “massas”, percebendo de que forma uma temática do passado é apropriada e interpretada pela cultura da mídia contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: Argentina; Cinema; Eva Perón; Peronismo. ABSTRACT: The article intends to conduct an analysis of the representation of Eva Peron and the Peronist Argentina featured in the movie Eva Peron: The True Story (Eva Perón: La Historia Verdadera, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996). Through analysis of this film, we will seek to draw a profile image created around the myth of Eva Peron and her relationship with the "masses", realizing how a theme of the past is appropriated and interpreted by the culture of contemporary media. KEYWORDS: Argentina; Cinema; Eva Peron, Peronism.

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Doutor em História Social (FFLCH-USP). Professor Adjunto de História da América no Instituto de História e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/PPGHC-UFRJ).

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Ligando a figura mundialmente conhecida, de “Evita”, uma glória ‘hollywoodiana’ de proporções desmedidas, com a moça simples, a criança ultrajada, podemos chegar à conclusão de que Eva foi, possivelmente, uma personalidade dividida. De um lado, repleta de altruísmo e generosidade, há a moça simples, ‘revoltada com a injustiça’, de outro, no entanto, a mulher seduzida pelo poder. No âmago de suas preocupações sociais mais profundas, como o salário e as seguranças empregatícias para a dona de casa, encontra-se uma infância pobre e uma mãe humilhada pelas circunstâncias. Promovida pelo peronismo, e sendo principal fator de legitimação deste, a figura de Eva irá se confundir com a de uma grande estadista. Eva torna-se mais importante do que a própria imagem da Argentina real, uma vez que esta imagem é representada revestida de um aparato e de uma glória que não correspondem à realidade social da época. Luiz Carlos Cappellano. Evita: A Mulher, O Mito. (1986) 1

Para os argentinos que continuam a venerá-la, Eva Perón, ou simplesmente Evita ,

é como Carlos Gardel: enquanto ele canta cada vez melhor, quanto mais passa o tempo, mais bela – e poderosa – ela fica. Os que a odeiam ainda espumam ao lembrar seu nome. A aura mitológica de Evita continua tão forte que mesmo décadas depois de sua morte ainda é difícil dizer, para quem procura um ponto de vista objetivo, se foi boa ou se foi má. Uma coisa é certa: Evita se inventou e captou como poucos o poder da

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No livro La Razón de Mi Vida (A Razão de Minha Vida), Eva Perón faz a seguinte distinção: “Lembrese, mais, que eu não era apenas a esposa do Presidente da República. Era também e, acima de tudo, a mulher do condutor máximo dos argentinos. À dupla personalidade de Perón devia por força corresponder em mim uma dupla personalidade: uma, a de Eva Perón, mulher do Presidente, a quem incumbe uma tarefa simples e agradável de dias festivos, de honrarias, de funções de gala; a outra, a de ‘Evita’, mulher do Líder de um povo que nele depositara toda a sua fé, toda a sua esperança, todo o seu amor. Somente uns poucos dias ao ano represento o papel de Eva Perón. E creio que desse papel, porque simples e agradável, me desincumbo cada vez melhor. Em compensação, toca-me, os mais dos dias, desempenhar o papel de Evita, primeira peronista argentina, ponte estendida entre as esperanças do povo e as mãos realizadoras de Perón. E esse sim, é-me deverás difícil, ao ponto de que nunca me sinto totalmente satisfeita do modo por que o desempenho... Quando escolhi o papel de ‘Evita’, fí-lo plenamente consciente de estar optando pelo caminho do povo... Ninguém, a não ser o povo, me chama de Evita. Somente os descamisados aprenderam a me chamar assim... De resto, eu própria me apresentei assim, no dia em que saí ao encontro dos humildes do meu país, alegando que ‘preferia ser Evita a ser a esposa do Presidente da República, desde que, sendo Evita, pudesse mitigar uma dor ou enxugar uma lágrima...’[...] Sim. Confesso que tenho uma única ambição, uma única e grande ambição pessoal: quisera que o nome de ‘Evita’ ficasse inscrito para sempre na história de minha pátria. Quisera que dela se dissesse, numa pequena nota inscrita ao pé do capítulo maravilhoso que a história certamente dedicará a Perón, algumas poucas palavras: ‘Houve junto a Perón, uma mulher que foi o veículo das esperanças do povo, que Perón mais tarde convertia em realidades...’ E me sentiria sobejamente compensada se essa pequena nota terminasse assim: ‘Dessa mulher sabemos apenas que o povo a chamava carinhosamente de: ‘Evita’”. PERÓN, Eva. A Razão de Minha Vida. Rio de Janeiro: Edições Freitas Bastos, sd., pp.87-88; 90-91 e 94.

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imagem. De artista medíocre de rádio e cinema2, de cabelos castanhos e aparência comum, transformou-se ao lado de Juan Domingo Perón, num fenômeno que até hoje tem apelo global. A mãe dos pobres, a protetora dos descamisados, a chefe espiritual da nação, entre outros epítetos, deixou também um legado estético e visual. A figura de Evita tem transcendência internacional e permite uma reflexão sobre a cultura e a identidade na Argentina. Pobre e sem estudos, Evita chegou à Casa Rosada, a sede do governo argentino, em 1946, aos 27 anos, acompanhando Perón como uma espécie de acessório incômodo, pela reputação, pela origem social e pela facilidade de comandar. Antes mesmo de domar os erros de concordância pôs-se a se produzir como uma artista de cinema, adquirindo vestidos, luvas e chapéus de grifes famosos. Os seus casacos de pele e os diamantes, dizia ela, pertenciam ao povo. As pessoas mais simples admiravam o fato de Evita, que viam como uma delas, ter alcançado o sonho de todos. A roupa e o estilo dela serviam justamente para mostrar que tinha chegado lá. Evita morreu aos 33 anos, de câncer no útero. Quando Perón foi deposto, uma das medidas dos militares para apagar o rastro do peronismo foi sumir com o corpo embalsamado da mulher, que, em mórbida epopeia, passou anos escondido em caminhões, porões do exército, na casa de um oficial e até em um cinema, antes de ser enfim enterrado em Buenos Aires. O mito sobreviveu a tudo. Tendo-se em mente a importância política e cultural que Eva Perón possui em seu país, o presente texto pretende realizar uma análise da representação de Eva Perón e da Argentina peronista apresentada no filme Eva Perón – A Verdadeira História (Eva Perón: La Verdadera Historia, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996). Este filme argentino, realizado como uma resposta ao filme americano Evita (Evita, dir. Alan Parker, EUA, 1996), configura-se enquanto fonte para a análise acerca das controvérsias do Mito Eva Perón e do período peronista na cultura midiática contemporânea: Eva Perón – A Verdadeira Historia é um exemplo de como na Argentina, Eva Perón tem sido tema de alguns filmes de estilo documentário, marcados pelo realismo e por certa solenidade para com a inesquecível heroína. Nele, vemos uma Eva Perón combativa, hábil líder política e condutora de massas, sendo também a Eva da renúncia e da agonia

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Evita fez a seguinte avaliação sobre a sua carreira artística: “No cinema, má; no teatro, medíocre; no rádio, passável”. O seu papel político, no entanto, teria outra qualificação. Cf. NAVARRO, Marysa. Evita. Buenos Aires: Corregidor, 1981. p.78.

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que deixa os descamisados, com apenas 33 anos de idade, para tornar-se a “Santa Evita” na imortalidade. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997, pp.196-197.)

As representações de Eva Perón no cinema argentino e americano: Cartazes dos filmes Eva Perón – A Verdadeira História (Eva Perón: La Verdadera Historia, dir. Juan Carlos Desanzo, Argentina, 1996) e Evita (Evita, dir. Alan Parker, EUA, 1996).

Através da análise desse filme, buscaremos traçar um perfil da imagem criada em torno do mito Eva Perón e de sua relação com as “massas”, percebendo de que forma uma temática do passado é apropriada e interpretada pela linguagem do presente. 13 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


Em primeiro lugar, considero importante apontar, conforme as palavras de Francis Vanoye, que um filme é um produto cultural inscrito em determinado contexto sócio-histórico. [...] Em um filme, qualquer que seja seu projeto (descrever, distrair, criticar, denunciar, militar), a sociedade não é propriamente mostrada, é encenada. Em outras palavras, o filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginário, constrói um mundo possível que mantém relações complexas com o mundo real: pode ser em parte seu reflexo, mas também pode ser sua recusa (ocultando aspectos importantes do mundo real, idealizando, ampliando certos defeitos, propondo um ‘contramundo’ etc.). Reflexo ou recusa, o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe é contemporâneo. Estrutura a representação da sociedade em espetáculo, em drama (no sentido geral do termo), e é essa estruturação que é objeto dos cuidados do analista (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.56.).

Assim, a Eva Perón que aqui descreveremos é uma síntese construída e consolidada pela memória nacional da Argentina, e, por outro lado, é uma visão comercial do produto ‘Evita’, sendo este absorvido pela grande indústria cultural americana, que a transforma em um mito de sucesso internacional, desvencilhado de seu caráter nacional argentino. No entanto, ao produzir-se o filme Evita, os americanos ocasionaram grandes problemas e conflitos com os argentinos, pois, como sinaliza a historiadora Maria Helena R. Capelato, na Argentina, o peronismo de hoje é muito mais do que uma lembrança: é força política sustentada pela permanência de mitos que ainda mobilizam a sociedade, quer no sentido da eleição de um presidente da República, quer no repúdio a Madonna, profanadora do mito Eva Perón, a ‘Santa Evita’. A popularidade de Evita persiste e, em menor ou maior grau, Perón e Vargas também se mantêm como heróis no panteão da pátria argentina e da brasileira. (CAPELATO, 1998, p.285.)

O filme Eva Perón – La Verdadera Historia inicia-se com a imagem de vários peronistas colocando cartazes de propaganda da candidatura de Juan Perón e Eva Perón para as eleições de 1951, que ficou conhecida como “Perón-Eva Perón. A Fórmula da Pátria (1952-1958)”, em vários murais de toda a Argentina. O que já de início demonstra o forte poder da propaganda para conquistar as massas, e o seu desempenho de consolidar a imagem do ‘Mito Evita’ na Argentina peronista. 14 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


Jogos do Poder: Os estilos diferentes de “fazer política” de Eva Perón e Juan D. Perón.

A segunda cena ocorre em abril de 1951, quando a CGT (Confederação Geral do Trabalho) confirma sua proposta de apoiar a candidatura de Eva Perón para vicepresidente da Argentina. Todavia, na cena seguinte, aparece Juan Perón rodeado de generais, que tentam influenciá-lo para não concordar com a ideia de Eva candidatar-se a vice-presidência, o que leva Perón a responder: “Minha vice-presidente deve ser dócil e manipulável, ma-ni-pu-lá-vel!”. Ao anoitecer, Perón mostra-se preocupado com o ritmo das atividades de Eva, pois enquanto ele, ainda sob a tradição militar, vai dormir cedo, ela vira a noite trabalhando; segundo Perón, Eva precisava diminuir a sua rotina e descansar. Eva, pelo contrário, fala diretamente sobre a sua candidatura à vice-presidência da Argentina e sobre a articulação do povo em seu apoio. No entanto, Perón alega que os militares e a Marinha mantêm-se contrários a seu desejo político. Neste momento, Eva afirma que para ela nada foi fácil, e, então, aparecem flashbacks de sua infância em Chivilcoy, em 8 de janeiro de 1926, época em que tinha apenas sete anos de idade, contando o episódio de sua ida ao velório de seu pai, quando ela, sua mãe e irmãos não foram permitidos de entrar, por serem filhos ilegítimos. Porém, neste filme, ao contrário de Evita, ela e a sua família tem permissão de ver rapidamente seu pai falecido, mas Eva nega-se a beijá-lo. Em seguida, é apresentada uma reunião de seus principais opositores, que tramam uma forma de impossibilitar a candidatura de Eva, pois a consideram apenas uma bastarda, filha ilegítima e atriz (que na época era visto como uma garota de programa), que colocava a saúde da pátria em perigo. Isso mostra, evidentemente, como Eva gerava intensas controvérsias, pois recebia tantas críticas por parte das classes mais abastadas quantos eram os aplausos vindos das massas. Muitos a consideravam uma 15 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


oportunista que manipulava as pessoas sem o menor escrúpulo para manter-se, junto ao seu marido, no poder. Afinal, para Eva Perón, o poder era uma forma de atingir seus objetivos e ela não tinha a menor dúvida quanto à justiça de sua causa. Um dos momentos mais interessantes do filme é a cena seguinte, quando Eva Perón faz um discurso aos ferroviários, que haviam entrado em greve geral, no início de 1951, ano em que Perón enfrentou o primeiro de uma série de conflitos sindicais. Neste ano, os ferroviários declararam uma greve geral por aumento de salários. Isso levou Eva Perón, seguindo sua política de mediação com as associações, a interceder no caso e, dirigir-se às estações de trem para tentar dissuadir os grevistas da paralisação, conforme aponta o discurso produzido no filme: EVA PERÓN: A greve contra o governo peronista é uma greve contra o movimento operário. Uma greve contra vocês mesmos! Ouçam bem, companheiros, quem faz greve é um carneiro da oligarquia! Entendam bem, companheiros! ... Não sei se quero dizer ‘carneiro’ da oligarquia.... Procuro outras palavras mas não encontro. Greve contra Perón é antipatriótico! FERROVIÁRIO 1: Companheira, um ferroviário ganha apenas 340 pesos. Somente 340 pesos. Isso é justo, companheira? EVA PERÓN: Não. Isso não é justo. E há muitas coisas que ainda não são justas. Os salários serão aumentados para 500 pesos, eu juro. Mas também juro que só faremos isso, se suspenderem essa greve rapazes! .... Mas companheiros, estamos só falando de salários, o que é que há? E a moradia? E os direitos sociais? E as aposentadorias e as férias pagas? Como é companheiro? Já se esqueceram disso? Quem lhes deu tudo isso? ... Foi Perón! E contra Perón estão fazendo essa greve? O que teriam se tivesse ganhado a União Democrática? Menor salário e nenhuma conquista social! Comeriam lixo, lixo da oligarquia! FERROVIÁRIO 2: Certo companheira, mas em 1945 a oligarquia não venceu, nós vencemos! Portanto, deles não esperamos nada, mas de você e do General Perón, esperamos tudo, companheira! EVA PERÓN: Diga-me, você é peronista? FERROVIÁRIO 2: Sim, companheira. EVA PERÓN: Então, entenda. Eu e Perón esperamos coisas dos peronistas. Antes de tudo, que não nos façam greves e que não deem mau exemplo aos companheiros. Não queremos greves na Argentina de Perón! Está Claro! FERROVIÁRIO 3: Não se nega ao Movimento Operário o direito de greve. EVA PERÓN: Você não é peronista! FERROVIÁRIO 3: Sou socialista, de Juan B. Justo e de Palácios.

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A relação direta líder e massas: Eva Perón profere discurso aos ferroviários grevistas. EVA PERÓN: Sim. Socialista dos puxas-sacos, da oligarquia e do ianque Braden! Dos canalhas da União Democrática! Ouça-me bem, na Nova Argentina quem defende os operários é Perón, e quem é contra Perón, está contra os operários por mais socialista que se diga! FERROVIÁRIO 3: Senhora, permita-me... EVA PERÓN: Não te permito nada... Sabe quem defende esta greve, companheiro socialista? O jornal La Prensa! O que houve? Viraram socialistas os Gaunza Paz, que esbanjam grana quando vão para Europa? Ou será que certos operários, obtusos como você, estão fazendo o jogo dos inimigos do povo? Uma greve operária apoiada pelo jornal da oligarquia. Onde já se viu isso? Só idiotas caem nessa, companheiro! FERROVIÁRIO 3: A luta operária começou muito antes de Perón. EVA PERÓN: Sim, claro que começou! Mas com projetos que passaram anos nas gavetas do congresso. Nós os tornamos leis! Desafiamos a oligarquia, metemos medo e ensinamos a respeitar os operários! E vocês nos fazem uma greve! Por 200 pesos de droga! FERROVIÁRIO 1: Para um operário 200 pesos não são porcaria, companheira. EVA PERÓN: Sim, são! 200 pesos ao lado da política social do peronismo, ao lado do amor do General para seu povo, são droga. Suspendam esta greve. A greve tem de ser suspensa! Entendem? Está não é uma greve operária. Por última vez, companheiros, suspendam esta greve! Depois não digam que não avisei. Se tivermos que ir pro pau, vamos pro pau, companheiros. Caia quem caia e custe o que custe!

Conforme pode ser observado, em seu caminho rumo à lenda, Evita havia endurecido. Seu discurso contra a classe alta tornou-se ainda mais agressivo [...]. Dessa fase final, datam suas mensagens mais violentas: embora conservasse o segundo plano da esposa, essa retórica a fazia transcender sua condição de líder feminina. A linguagem alcança um registro que vai no sentido contrário à canonização oficial. Evita revela seu lado mais combativo e com ele funde o bronze que o governo já está polindo 17 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


sobre sua imagem. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997, p.132.).

Esse discurso representa também o conturbado momento histórico dos anos 1950, quando a economia argentina começou a mostrar sintomas de esgotamento. A inflação subia e a balança comercial estava desequilibrada. As medidas tomadas pelo governo eram parcialmente responsáveis por aquela situação. Os ambiciosos programas de assistência social haviam esvaziado o Tesouro Nacional. Os salários altos, embora bons para os trabalhadores, desencorajavam os investimentos estrangeiros, que também faziam parte do plano do presidente para o crescimento industrial do país. Além disso, o fascínio que Perón exercia sobre as massas começara a enfraquecer. Surgiam greves contra a política governamental. Na Fundação Eva Perón, Evita propõe o controle absoluto de todos os meios de comunicação e o fechamento do jornal La Prensa, função que ficará sob os cuidados do deputado Cooke. Tendo êxito em sua missão, Cooke faz as seguintes considerações à Eva Perón: “Nossos inimigos enchem a boca com a palavra democracia. Mas acho que se nos derrubarem, não serão muito democráticos conosco. Senhora, Apold e eu coincidimos em querer fechar o jornal La Prensa. Ele quer fazê-lo porque quer o peronismo como ditadura. Eu quero que o peronismo seja uma revolução. Perguntou se é ditadora, como dizem seus inimigos. Ouça-me bem, senhora: Se uma ditadura é uma revolução, se justifica. Se não é uma revolução, então é uma ditadura e nada mais. Apenas isso, lamentável isso”.

A cena seguinte retrata uma conversa de Perón com Eva, no jantar, onde ela explica a sua razão de querer ser vice-presidente: EVA PERÓN: É uma jogada política minha. Política e pessoal. Sobretudo pessoal. JUAN D. PERÓN: Por que pessoal? EVA PERÓN: Eu tinha sete anos quando morreu meu pai. JUAN D. PERÓN: Já me contou isso... EVA PERÓN: Espera, não te contei tudo! JUAN D. PERÓN: Vá, então conte! EVA PERÓN: Minha mãe levou-nos ao velório e nos barraram. Aí, surgiu uma chata, filha legítima do meu pai... Gritava como louca: ‘Com que direito!?!’... Você pode imaginar? Comigo sempre foi assim: ‘Com que direito esta atriz de segunda categoria anda com o Coronel Perón?’, ‘Com que direito acompanha-o aos desfiles de 9 de julho?’, ‘Ao Teatro Cólon no 25 de 18 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


maio?’ E depois, ainda pior: ‘Com que direito ela opina sobre questões de Estado?’, ‘Com que direito armou esta fundação, deu seu nome e ajuda aos pobres?’. Sempre fui ilegítima, Juan. Uma bastarda, nunca tive direito a nada. Agora isso acabou. Agora quero ser parte do Estado. Quero ter direito, Juan! Ouça-me bem, não quero que ninguém volte a perguntar: ‘Com que direito?’, entende? Quero a vice-presidência, Juan. Quero esse direito!

Todavia, Perón ao ser perguntado se iria apoiá-la, respondeu apenas que ela continuasse fazendo seu jogo, pois não havia sido a ele que ela doutrinou na Escola Superior Peronista, mas sim aos outros, então era deles que ela deveria buscar o apoio.

Uma Lição Peronista: Eva Perón ministrando curso na Escola Superior Peronista.

Nesta perspectiva, o filme apresenta uma cena de Eva Perón lecionando na Escola Superior Peronista, com o seguinte discurso: EVA PERÓN: Vocês se perguntarão: ‘Por que outra vez o mesmo?’, ‘Por que insisto em falar-lhes sobre a ética peronista?’ É muito simples, companheiros. Porque ainda há peronistas no afã de obterem privilégios, mais parecem oligarcas do que peronistas. Quero dizer-lhes, e o que digo é com a paixão de peronista e de mulher, que o peronismo que nasceu no dia 17 de outubro, é uma vitória do povo contra a oligarquia! Vou dar-lhes um exemplo. O funcionário que serve-se do seu cargo é oligarca! Não serve ao povo, serve a sua desmesurada ambição! Esses não são peronistas, são oligarcas! Ídolos de barro! A oligarquia que derrotamos em 17 de outubro está morta! Ou está agonizando nos estertores do fracasso! Por isso, tenho mais medo da oligarquia que possa haver entre nós! Do que ela possa fazer cotidianamente! A cada dia entre nós! Perdão. Perdoem-me, que eu insista tanto com isso. Mas quero que levem isso profundamente gravado no coração. É fundamental para o nosso movimento! É fundamental que os peronistas não destruam o peronismo!

Com isto, segundo Maria Helena R. Capelato, percebe-se como a nacionalidade e a reformulação da identidade nacional tornaram-se, desde então, prioridade: viver na Argentina, sentir-se argentino, produzir e consumir coisas argentinas, tudo isso se tornou moda. Recusando o modelo cosmopolita que gozava de grande privilégio, a reformulação propunha a busca da marca de ‘origem’ trazida pelas 19 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


massas. A presença delas na cena política era apresentada como uma garantia de ‘argentinidade autêntica’. A nova identidade nacional coletiva tinha o caráter das multidões: ela era tumultuada e se distanciava fortemente do passado recente, dos homens políticos tradicionais e solenes, dos jornais clássicos e de seu estilo intelectual, rígido e formal. Esta nova argentinidade era insolente, emotiva e primária, na visão dos adversários. (CAPELATO, 1998, p.249.)

A próxima cena retrata o trabalho de Eva na sua Fundação, mostrando como o momento de sua chegada representava a vinda de uma santa, que iria salvar e purificar seus fiéis da miséria. Eva era idolatrada e ovacionada pela multidão, não era preciso dizer nada, nenhuma palavra, bastava olhar a expressão de felicidade e o sorriso de seus fiéis seguidores, que com a presença da ‘Santa Evita’ sentiam-se plenamente amparados e unificados numa comunhão mística.

A relação direta e carinhosa de Santa Evita com os descamisados na Fundação Eva Perón.

Conforme aponta a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, Eva Perón configurou-se como personagem adequada para representar a encarnação viva do mito feminino da redenção. Sua capacidade de liderança era inquestionável; a profissão de artista explica sua desenvoltura diante das massas, seu grande público. Além disso, seus dotes físicos tornavam-na especialmente dotada para a representação da feminilidade ideal, expressão do bem, do bom e do belo. Não se tratava de uma figura qualquer, mas da primeira-dama que dividia com o presidente da República a liderança do poder. Nessa divisão cada um desempenhava funções próprias. O presidente Perón, expressão do poder masculino, atuava na vida pública, exercendo atividades políticas bem definidas. Eva Perón, a mulher classicamente feminina, representava a intuição, o sentimento, a emoção. (CAPELATO, 1998, pp.270-271.)

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Mas, a figura radiante e elétrica de Eva Perón já estava com seus dias contados, pois, segundo mostra o filme, após uma sequência frenética de suas atividades, Eva enfraquece e desmaia, era o princípio de sua queda. Mesmo assim, ao falar com Perón, Eva busca passar uma imagem de força e energia, embora odiasse seu corpo, que a estava atraiçoando cada dia mais. É nesta conversa, que começa a recordar juntamente com seu marido, seu primeiro encontro com Perón, em 1944, ano do terrível terremoto que atingiu a cidade de San Juan, onde houve milhares de mortos e imensos prejuízos. Nesta época, Perón fez com que a Secretaria do Trabalho montasse uma vasta operação de socorro e conclamou a nação a contribuir com remédios, roupas, comida, dinheiro, abrigo e sangue. A resposta foi imediata e generosa. Artistas e figuras de projeção nacional propuseram-se a ajudar, participando de um grande espetáculo beneficente em um estádio de Buenos Aires. Entre os artistas presentes encontrava-se Eva Duarte, conhecida cantora e atriz de rádio e de cinema. Após a apresentação, ela e Perón deixaram o estádio juntos. Iniciava-se, então, o maior relacionamento da história argentina, pois ao contrário das críticas, Perón ignorou a opinião dos militares e dos oligarcas, mantendo o seu caso com Eva Duarte publicamente.

O primeiro encontro entre Juan Domingo Perón e Eva Duarte durante o espetáculo beneficente para socorrer as vítimas do terremoto de San Juan.

Eva recordou também o famoso 17 de outubro de 1945, quando o presidente Edelmiro Farrell pediu a Perón para que mandasse a massa reunida em frente à Casa Rosada para casa, pois era necessário controlar a situação e livrar-se das quinhentas mil pessoas lá fora. John DeChancie descreve essa cena da seguinte forma: A multidão se acotovelava na grande praça e nas ruas adjacentes a ela. Os bombos ressoavam, mesclando seu pesado som aos gritos e às canções. A grande maioria desses homens e mulheres tinha vindo dos bairros periféricos da cidade, invadindo com seu aspecto pobre e mal cuidado o elegante centro da cidade – como os homens costumavam usar as camisas por fora das calças, os refinados habitantes do centro 21 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


os apelidaram pejorativamente de descamisados3. Eles estavam ali, no coração de Buenos Aires, frente à Casa Rosada – a sede do governo –, reivindicando pela presença do homem que idolatravam e a quem obedeciam cegamente. O cenário deste acontecimento era a Plaza de Mayo; a data, 17 de outubro de 1945; o homem reivindicando, Juan Domingo Perón, exvice-presidente da nação. As pessoas que o aguardavam – operários das indústrias argentinas – queriam que ele assumisse a presidência do país, de uma nação dilacerada por escândalos e conflitos políticos. E Perón sabia disso. Chegara a hora de seu triunfo. Um triunfo que seria ainda mais saboroso pelo fato de que, pouco tempo antes, fora obrigado a renunciar ao seu cargo no governo e preso por oficiais do Exército. [...] Perón apagou o cigarro. Estava na hora de executar os planos que lhe devolveriam o poder. Para a multidão que esperava em frente à Casa Rosada, o tempo demorava a passar. Fazia calor; o ar estava parado, úmido. [...] Por fim, pouco após as 23 horas, o coronel apareceu na sacada. O povo delirou. Seu herói estava são e salvo e, aparentemente, livre. Aclamaram-no entusiasticamente, gritaram até ficar roucos, choraram de emoção. Os aplausos se estenderam por mais 15 minutos. Então, muito emocionado, Perón pediu aos trabalhadores ali reunidos que cantassem o hino nacional. Após o hino, disse-lhes que aquele era o maior dia da história política da Argentina, e que aquela demonstração de apoio era uma ‘grande celebração da democracia’, uma data muito importante para o trabalhismo argentino, pois pela primeira vez os operários haviam se unido para mudar o rumo do governo. (DECHANCIE, 1987, pp.07 e 09-10.)

3

Pertencer ao povo não dependia, para o peronismo, da condição social ou profissional. Neste sentido, por exemplo, ao propor como modelo do povo argentino o descamisado, o peronismo retirou o sentido pejorativo do termo, elevando-o a condição de “amigo do líder”. Genericamente descamisado significava povo / massa, mas no peronismo o termo tornou-se mais preciso e revelou-se com clareza na afirmação de Eva Perón: “Para mim os trabalhadores, homens e mulheres, são sempre, e antes de tudo, descamisados. E, o que são, para mim, os descamisados? Não posso falar deles sem que venha a minha memória os dias de minha solidão em outubro de 1945. [...] Descamisados foram todos os que estiveram na Plaza de Mayo em 17 de Outubro de 1945; os que cruzaram a nado o Riachuelo, vindos de Avellaneda, da Boca e da Província de Buenos Aires, os que em colunas alegres, mas dispostos a tudo, inclusive a morrer, desfilaram naquele dia inesquecível pela Avenida de Mayo e pelas diagonais que conduzem à Casa do Governo, fizeram calar a oligarquia e a aquele que disse “yo no soy Perón”; os que todo o dia reivindicaram a presença do Líder ausente e prisioneiro; os que acenderam fogueiras com os jornais da La Prensa que havia se vendido a um embaixador estrangeiro por trinta moedas, ou talvez menos! Todos os que estiveram naquela noite na Plaza de Mayo são descamisados! Ainda se houve ali alguém que não o fosse, materialmente falando, um descamisado, esse ganhou o título por ter sentido e sofrido naquela noite com todos os autênticos descamisados; e para mim, esse foi e será sempre um descamisado autêntico. [...] Para mim, descamisado é aquele que se sente povo. É importante que nos sintamos povo, que amemos, soframos e nos alegremos como faz o povo, embora não nos vistamos como o povo, circunstância puramente acidental. [...] Nem todos os descamisados são trabalhadores, mas para mim, todo trabalhador é um descamisado; e eu jamais esquecerei que a cada descamisado devo um pouco da vida de Perón”. Através dessa definição de Eva Perón conclui-se que descamisado é sinônimo de peronista. PERÓN, Eva. La Razón de Mi Vida. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1951. pp.115-117.

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Assim, Perón consolidou sua ascensão política na Argentina. Pouco tempo depois, casou-se com Eva Duarte, que representaria um papel fundamental no peronismo. Após essas recordações da ascensão política de Perón e Evita, a cena seguinte, indubitavelmente, a mais interessante e emocionante do filme, passa-se em Buenos Aires, no dia 22 de agosto de 1951. Reunidos na Avenida 9 de Julho, multidões entram em cena para apoiarem a candidatura ‘Perón-Eva Perón. La Fórmula de La Pátria’. O filme registrou esse momento da seguinte forma: SINDICALISTA: Companheiros, em nome da CGT e do Conselho Superior do Partido Peronista, proclamamos a fórmula: Perón-Eva Perón, para a presidência e vice-presidência! EVA PERÓN: Excelentíssimo senhor Presidente. Meus queridos descamisados da pátria! É para mim uma grande emoção encontrar-me novamente com os descamisados como em 17 de outubro e como em todas as datas em que o povo esteve presente. Todos sabem que foi o General Perón quem os dignificou social, moral e espiritualmente! E sabem que os oligarcas, que os medíocres, que os vendedores da pátria, ainda não estão derrotados! De suas guaridas asquerosas, atentam contra o povo e contra o General! Eu, General, com a plenipotência espiritual que me dão os descamisados da pátria, vos proclamo, antes que o povo vote em 11 de novembro, Presidente de todos os argentinos! POVO: Com Evita! Com Evita!.... SINDICALISTA: Senhora, o povo pede-lhe que aceite seu posto! EVA PERÓN [discretamente dirigindo-se para Perón no palanque]: E agora? JUAN D. PERÓN [discretamente para Eva]: Impossível, não pode! EVA PERÓN [discretamente para Perón]: Por quê? JUAN D. PERÓN [discretamente para Eva]: Mande-os para casa! EVA PERÓN: Companheiros, eu peço à Confederação Geral do Trabalho e à vocês, pelo carinho que vos une, pelo amor que propagamos mutuamente, que para uma decisão transcendental na vida desta humilde mulher, me deem, pelo menos, quatro dias para pensar numa decisão! POVO: Não! Não! Não!... EVA PERÓN: Companheiros... POVO: Greve Geral! Greve Geral! EVA PERÓN: Companheiros e Companheiras! Eu não renuncio do meu posto de luta! Renuncio às honrarias! 23 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


POVO: Resposta! Resposta! EVA PERÓN: Companheiros, pelo carinho que nos une! Eu lhes peço, por favor, não me façam fazer o que não quero fazer! Peço a vocês como amiga, como companheira, que se desconcentrem. Companheiros, quando Evita lhes enganou? POVO: Nunca! Nunca! EVA PERÓN: Eu só lhes peço uma coisa, que esperem até amanhã! JUAN D. PERÓN [discretamente dirigindo-se para Eva Perón]: É preciso suspender esse ato! SINDICALISTA: Companheiros, a companheira Evita pede-nos duas horas. Nós vamos ficar aqui! Não vamos sair até que ela nos dê uma resposta favorável! EVA PERÓN [dirigindo-se para Juan Perón]: Então!?!

“Perón-Eva Perón – La Formula de la Pátria”: A política de massas peronista no comício de apoio para o lançamento da candidatura de Eva Perón como candidata a VicePresidência da República Argentina (22 de agosto de 1951) JUAN D. PERÓN [discretamente para Eva]: Diga que sim, sem dizer sim! EVA PERÓN [dirigindo-se para Perón]: E como se diz isso!?!

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EVA PERÓN: Companheiros, asseguro-lhes que isto me pega de surpresa! Jamais em meu coração humilde de mulher argentina, sequer pensei que poderia aceitar este posto! POVO: Vice-presidente! Vice-presidente! EVA PERÓN: Companheiros, o mínimo que posso pedir é que me deem, ao menos, quatro horas para anunciar minha decisão pelo rádio a todo país! POVO: Agora, Evita! Agora! EVA PERÓN: Companheiros, como diz o Coronel Perón: farei o que diga o povo!

Após essa grande concentração, Juan D. Perón encontra-se com Eva e discutem o que foi decidido na Reunião de Gabinete. Neste momento, Perón explica para Eva os motivos que impossibilitaram-na de aceitar o cargo de vice-presidente. Não somente os militares não aceitaram, mas, principalmente, Eva havia sido derrotada pelo câncer. Incontrolável, Eva entra em pânico e desesperada quebra um espelho, gritando que não queria se ver morrendo. Mais tarde, renuncia sua candidatura pelo rádio, com as seguintes palavras: EVA PERÓN: Companheiros! Quero comunicar ao povo argentino minha decisão irrevogável e definitiva, de renunciar à honra com que os trabalhadores e o povo da minha pátria, quiseram me honrar na Assembleia de 22 de agosto. Eu não tinha então, nem tenho neste momento, mais que uma ambição pessoal, que de mim se diga, quando escreverem o capítulo maravilhoso que a história certamente reservará a Perón, que houve ao lado de Perón uma mulher, que se dedicou a levar ao presidente as esperanças do povo, e que a essa mulher o povo chamava carinhosamente de Evita.

A preservação da imagem: A doença não impediu Eva Perón de continuar mantendo uma preocupação constante com a sua beleza e aparência física.

As últimas cenas do filme apresentam uma Eva Perón, que mesmo doente e fraca, mantêm-se combativa e preocupada com Perón e com o destino da Argentina. Para Perón, expressa seu imenso desejo de poder votar nele e se pudesse nela também; e 25 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


também chega a adverti-lo para ficar atento com os militares e com o golpe que poderia vir a ser desencadeado, pois segundo ela, mesmo com a vitória peronista através das eleições, os militares poderiam mudar os rumos da história, afinal, para eles as eleições não valiam nada.

Os últimos conselhos políticos de Evita: A doença não impediu Eva Perón de continuar atuando – mesmo que nos bastidores – politicamente. Temendo o enfraquecimento político peronista ou um golpe militar, a principal preocupação de Eva Perón era planejar uma forma de proteger a manutenção de Perón no poder após a sua morte.

Enquanto a oposição faz a festa com a doença de Eva, escrevendo nos muros, “Viva el Cancer!”, Eva fazia um de seus últimos discursos, carregado de tom agressivo:

O último discurso público de Eva Perón em 17 de Outubro de 1951: Eva Perón debilitada fisicamente precisa ser amparada e segura pela cintura por Juan D. Perón. EVA PERÓN: É o povo humilde da pátria que segue e seguirá Perón. Porque Perón levantou a bandeira da redenção e da justiça, das massas trabalhadoras! Por isso, o povo o seguirá contra os traidores de dentro e de fora! E eu peço a Deus que não permita a esses insensatos, levantar a mão contra Perón! Porque aí desse dia! Porque nesse dia, meu General, eu sairei com os descamisados da pátria, morta ou viva, para não deixar em pé, sequer um tijolo que não seja peronista! 26 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


Estava consolidada a imagem de Eva Perón como a Santa da Argentina, pois o próprio povo via-a como tal, colocando sua imagem num altar, rezando pela sua melhora em frente à Casa Rosada.

Celebração peronista nas ruas: Eva Perón acompanha Juan Perón na posse de seu segundo mandato presidencial.

É com muita emoção que o filme retrata o 4 de maio, dia em que seu esposo prestaria juramento relativo a seu novo período de governo, quando alguma vez sonhou que o secundaria como vice-presidente, Evita insistiu em acompanhar o general. Foi sua última e maior produção cinematográfica. Os médicos ministraram-lhe três calmantes para deslocá-la da residência à Casa Rosada, e ali repetiram a dosagem para que pudesse realizar o desejo de saudar os manifestantes. Foi-lhe confeccionada uma armação – uma estrutura de gesso e arame, oculta pelo amplo casaco de visom – que a manteria de pé no carro para acenar aos descamisados. Os noticiários da época refletem o capítulo de maior lirismo da história argentina: Perón de pé, rígido, apenas sorri, deixando a ribalta para sua esposa moribunda. Ela, uma caveira sorridente e afetuosa, quase sobrenatural. Mais que saudá-la, a multidão parece despedir-se dela. Nenhuma das imagens de Evita tem a intensidade desse passeio à véspera da morte. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997, pp.147148.) 27 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


O momento final do filme ficou reservado para uma conversa de Eva Perón com o seu padre confessor e a despedida de seu marido Perón. Nas duas conversas, fica evidente a forma de sacrifício e martírio personificados por Evita. Ao padre, afirma que não consegue compreender Deus, afinal “Ele não gosta dos pobres?”, perguntava ela, enquanto o padre não conseguia disfarçar suas lágrimas. “Afinal, por que queria a sua morte, se neste país, a única que os pobres tinham era ela; Se Deus ama os pobres, por que a afastava do caminho e não fazia nada para impedir sua morte”. A única resposta dada pelo padre era que “Deus nem sempre pode impedir o Mal”. O que levou Eva a replicar: “Se Deus deixa que eu morra, é porque é ‘dos contrários’!”

O martírio de Santa Evita: Agonia e revolta de Eva nos momentos finais de sua vida.

Nos momentos finais de sua vida, Eva faz seu último pedido a Perón, advertindo-o a nunca abandonar os pobres, pois eles são os únicos que sabem ser fiéis. Eva Perón morreu em 26 de julho de 1952, tinha apenas 33 anos. Em 16 de setembro de 1955, um golpe militar (que ela tanto alertou para Perón) derrubou o governo peronista na Argentina. Conforme apresentado, procurou-se realizar algumas reflexões sobre os elementos básicos que constituem e permeiam o imaginário político do ‘Mito Evita’. O cinema nos faz ter saudade de Evita no próprio processo de ungi-la com uma auréola de arte e santidade, por meio do registro fotográfico. Evita em cores distancia-se do real, é como um suvenir do suvenir. As décadas e os piores avatares políticos arrasaram seu legado. Sobraram três sílabas, logo para ela, que empreendeu sua saga pessoal de nomes próprios: a conquista do sobrenome do pai, a conquista do sobrenome do marido e, com este, todo o poder. Uma vez conquistados, preferiu perdê-los para ter seu verdadeiro nome e, assim, dever toda a glória a si mesma. Evita, um diminutivo no tempo. Os heróis populares não têm sobrenome nem biografia. Eles os 28 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


perdem em troca do eco perpétuo. Evita reina na memória coletiva dos argentinos como emblema desse tempo feliz, quando os pobres acreditaram encontrar seu espelho. Não há razão para chorar. (GARCÍA, LABADO & VÁZQUEZ, 1997, p.200.)

BIBLIOGRAFIA: CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em Cena. Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo. Campinas: Papirus, 1998. __________. “O personagem na história – Perón e Eva: Produtos da sociedade argentina”. In:Jogos da Política. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/Fapesp, s.d. __________. “Populismo en América Latina: Propaganda política y formas de manipulacíon de massas”. In: História política del siglo XX. Quito: Ed. Nacional, 1992. ELIA, Tomás de. & QUEIROZ, Juan Pablo. Evita: An Intimate Portrait of Eva Perón.Nova York: Rizzoli, 1997. DECHANCIE, John. Os Grandes Líderes – Perón. São Paulo, Nova Cultural, 1987. FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. GARCÍA, Fernando Diego; LABADO, Alejandro & VÁZQUEZ, Enrique (Comp.). Evita: Imagens de uma Paixão. São Paulo: DBA/Cia. Melhoramentos, 1997. PEREIRA, Wagner Pinheiro. “A ditadura das Imagens: Cinema e Propaganda nos Regimes Políticos de Massas da Europa e da América Latina (1922-1955)”. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da et al. (Org.). O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010. _________. “O Espetáculo do Poder: Políticas de Comunicação e Propaganda nos Fascismos Europeus e nos Populismos Latino-Americanos (1922-1955)”. In: SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti et al (orgs.). Do político e suas interpretações. Campinas: Pontes Editores, 2009. _________. O Poder das Imagens: Cinema e Política nos Governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012. PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1951. ______. A Razão de Minha Vida. Rio de Janeiro: Edições Freitas Bastos, s.d. VANOYE, Francis & GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a Análise Fílmica. Campinas: Papirus, 1994. Artigo recebido em: 04 de agosto de 2013 Aprovado em: 11 de novembro de 2013 29 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIA DA GUERRA DO PARAGUAI NO CINEMA PARAGUAIO: A EXALTAÇÃO DE SOLANO LÓPEZ E A REINTERPRETAÇÃO DO CONFLITO. Fábio Ribeiro de Sousa* RESUMO: O presente trabalho pretende analisar o processo de construção de memória da Guerra do Paraguai no cinema paraguaio, ressaltando a exaltação da figura de Solano López. O ponto central para esta análise será o filme “Cerro Corá”, de 1978. Dirigida por Guillermo Vera e financiada pelo regime ditatorial de Alfredo Stroessner, esta produção cinematográfica tornou-se fundamental para a exaltação da figura de Solano López e para a consequente consagração da Guerra do Paraguai no imaginário dos paraguaios. “Cerro Corá” acompanhou a orientação nacionalista do governo de Stroessner, reproduzindo o revisionismo histórico paraguaio, corrente historiográfica que visava realizar uma reabilitação histórica acerca da imagem de Solano López e do conflito. PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Paraguai, Solano López, Cinema. RESUMEN: El presente trabajo pretende analizar el processo de construcción de la memória de la Guerra del Paraguay en cine paraguayo, enfatizando la exaltación de la figura de Solano López. El punta central para esta análisis será la película “Cerro Corá”, de 1978. Dirigida por Guillermo Vera y financiado por el régimen ditatorial de Alfredo Stroessner, esta producción del cine hubo tornado essencial para la exaltación de la figura de Solano López y para la consequente consagración de la Guerra del Paraguay en lo imaginário de los paraguayos. “Cerro Corá” aconpañó la orientación nacionalista de Stroessner, reproducindo el revisionismo histórico paraguayo, movimiento historiográfico que buscava llevar a cabo una rehabilitación acerca de la imagem de Solano López y del conflicto. PALABRAS-CLAVE: Guerra del Paraguay, Solano López, Cine.

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Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ). É professor da educação básica.

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A Guerra do Paraguai1 (1864-1870) é um tema extremamente polêmico, ao longo dos anos, desde o término do conflito, os debates acerca dos acontecimentos e personagens do conflito foram intensos. Dentro desta ótica, a figura do presidente paraguaio durante o conflito, Francisco Solano López (1827-1870), assumiu um papel de destaque. López 2 é, sem dúvida, o personagem principal da guerra. Como será visto, uma grande marca dos historiadores alinhados à corrente tradicional do conflito, era atrelar às ações tirânicas e covardes do presidente paraguaio a causa da guerra. Nenhum outro personagem do confronto gerou tanta polêmica, sua morte, em 1870, na batalha de Cerro Corá, marcou, definitivamente, o início de um processo que se prolonga até os dias atuais, a disputa acerca de sua memória. Em nenhum outro local a memória da Guerra do Paraguai é tão viva quanto no país levado ao confronto por Solano López. Os paraguaios respiraram a guerra não somente nos nomes dados a ruas, praças e monumentos em homenagem aos combatentes, mas também, através de um processo de mitificação da figura do expresidente paraguaio, que saiu dos livros, artigos e periódicos e chegou ao cinema, sim, a 7ª arte, foi fundamental para o processo de monumentalização histórica da Guerra do Paraguai promovido pelo governo ditatorial de Alfredo Stroessner (1954-1989). Em relação ao povo paraguaio e a memória acerca do conflito, as autoras Priscila Lizieiro e Tábita Brito tecem um importante relato: A História do Paraguai é constituída de lembranças. São seu patrimônio. E estão vinculados à perda e a morte. Com o passar dos anos e das gerações acumulou histórias de guerra para contar, porém, em muitos relatos, o que se sabe sobre a Guerra da Tríplice Aliança se confunde com as impressões e recordações da ditadura. O professor paraguaio Luiz Alberto Cristaldi Escobar, diz que a confusão histórica justifica uma boa relação entre Brasil e Paraguai: ‘Se escrevia livros do jeito que o governo queria; não se falava toda a verdade sobre a guerra. A verdade é o pior inimigo do governo. Foi assim durante muito tempo, principalmente no tempo de Stroessner. Este processo fez com que o povo paraguaio esquecesse a guerra contra o Brasil.(LIZEIRO; BRITO, 2008, p.12)

É importante ressaltar que, sem dúvida, dentre os países envolvidos3 no confronto, o Paraguai foi o que sofreu mais danos, a perda mais significativa se deu em 1

Também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança, Guerra Grande e Maldita Guerra. Francisco Solano López também é chamado de López II, devido ao seu pai, Carlos López. Para este trabalho esta distinção não se faz necessária – López se refere a Solano. 3 Brasil, Argentina e Uruguai formaram a Tríplice Aliança, contra o Paraguai. 2

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relação ao número de mortos4 durante o conflito e por consequência das más condições nos campos de batalha, onde os combatentes eram assolados por inúmeras doenças. Entretanto, num país marcado por uma derrota dolorosa como esta foi justamente onde surgiu um movimento historiográfico de exaltação das ações militares paraguaias e de culto à imagem de Solano López. O revisionismo historiográfico paraguaio surgiu em fins do século XIX, levado a cabo por interesses financeiros, tal movimento atingiu importantes setores da sociedade. A marca mais forte deste processo foi a transformação de Solano López em um grande herói nacional – uma imagem bem distinta da proposta por alguns intelectuais e predominante ao término do confronto. Durante as primeiras décadas do século XX o lopizmo – nome dado a este movimento paraguaio – começou a se fortalecer, e a exaltação da figura de Solano López tornou-se uma prática comum de governos como o dos militares Rafael Franco5 (1936-1937) e Higino Morinino (1940-1948). A ascensão dos colorados ao poder, em 1947, além de marcar o início da hegemonia do Partido Colorado6, também marca o início do fortalecimento desta corrente historiográfica no país. O Partido Colorado foi fundado em 1887, por Bernadino Cabellero, um excombatente da Guerra do Paraguai, e um homem de confiança de Solano López. No cerne de fundação do partido a figura de Solano López já aparecia com muita força e, conforme nos aponta a historiadora argentina Liliana Brezzo a relação entre o surgimento, o fortalecimento e a disseminação da corrente historiográfica revisionista e o Partido Colorado foi muito íntima: É também entre fins do século XIX e início do XX quando no Paraguai começaram a manifestar pequenos impulsos por oferecer uma construção intelectual diferente, pressagiando o complexo 4

Esta é uma das questões mais polêmicas da guerra e explicita o quão difícil é trabalhar com o tema. Os números variam, chegando a apresentar diferenças exorbitantes, isto se deve à falta de dados confiáveis acerca do tamanho da população paraguaia antes da guerra. O historiador brasileiro Francisco Doratioto faz um balanço dos números apresentados por autores e sua pesquisa estipula que a população Paraguai antes do confronto girava em torno dos 450 mil habitantes, havendo uma redução de 60% a 69% com a guerra. Algo bem distinto do apresentado por Chiavenatto, que desenvolve a tese de que a população paraguaia girava em torno de 800 mil pessoas e que ao término da guerra, apenas 194 mil habitantes, sendo estes na maioria mulheres e crianças com menos de 10 anos. Ou seja, segundo ele 96,50% da população masculina do Paraguai foi morta com o confronto. 5 Rafael Franco estabeleceu o dia 1º de março – dia da morte de Solano López em 1870 – como feriado nacional e declarou-o herói máximo. 6 A chegada dos colorados ao poder marcou o início da hegemonia do partido, que dominaria a presidência por mais de 60 anos. Somente com a eleição de Fernando Lugo, em 2008, os colorados deixam de comandar o Paraguai, entretanto, a recente crise política paraguaia depôs Lugo e, em eleições realizadas no início de 2013, recolocou os colorados no cerne do poder no país, com a vitória de Horácio Cartes.

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caminho que viveria durante o século XX. Começaram a ser publicados em Assunção os periódicos La Patria, que, orientado por Enrique Solano López, fazia a reinvindicação da memória de seu pai, e El Tiempo, em que escreviam Ignácio Pane, Juan O’Leary e Manuel Domingues, que iriam articulando uma leitura alternativa do passado centrada na exaltação da figura do Marechal López e que se alimentava na derrota sofrida na Guerra Grande. Esta campanha revisionista contou com a adesão de muitos filiados do Partido Colorado, como Juan Natalino Gonzalez, e, inclusive atraiu intelectuais identificados com o Partido Liberal, como Juan Pastor Benítez, Pablo Max Ynsfrán, Facundo Recalde e Anselmo Jover Peralta, que se uniram para formar o que passaria a ser chamado de lopizmo. No início da segunda década do século XX, a Guerra Grande e o mito guerreiro que encarnava Francisco Solano López – ainda sendo reprimido no âmbito acadêmico e entre o público culto – demonstrava haver sobrevivido na memória de boa parte da sociedade paraguaia, sobretudo nos setores populares (BREZZO, 2005, p.282283).7

Juan Emiliano O’Leary, citado por Brezzo, se destaca como um dos maiores propagadores desta reabilitação histórica acerca de Solano López. Autor de importantes livros8, alguns dos principais sobre a Guerra do Paraguai e sobre o presidente paraguaio, o historiador O’Leary sempre buscou defender a imagem de Solano López das acusações que sofria: “O grito feroz de seus inimigos só serviu para dar ressonância à seu nome” (O’LEARY, 1970, p.11)9. Apesar deste trabalho não ter como foco central um debate acerca das correntes historiográfica já produzidas acerca do tema, é fundamental que sejam tragos à tona algumas interpretações das principais correntes historiográficas já produzidas sobre o tema. Esta ação visa orientar o leitor e ressaltar como a Guerra do Paraguai tem gerado intensos debates ao longo dos anos, desde o término do conflito.

7

“Es también en los años entre siglos cuando en Paraguay principian a manifestarse recatados impulsos por oferecer um construcción intelectual diferente, pressagiando el complejo derrotero que viviría durante el siglo XX. Comenzaron a publicarse en Assunnción los periódicos La Patria, orientado por Enrique Solano López y Manuel Dominguez, quienes irían articulando una lectura alternativa del pasado nacional centrada en la exaltación de la figura del Mariscal López y que se alimentaba en la derrota sufrida en la Guerra Grande. Esta campaña revisionista contó con la adhesión de muchos afiliados al flamante Partido Colorado, como Juan Natalicio Gonzalez, e incluso atrajo a intelectuales identificados con el Partido Liberal, como Justo Pastor Benítez, Pablo Max Ynsfrán, Facundo Recalde y Anselmo Jover Peralta, que se unirían para conformar lo que pasaria a denominarse lopizmo. Al comenzar la segunda década del siglo, la Guerra Grande y el mito guerrero que encarnaba Francisco Solano López – aún siendo reprimido en el ambito académico y entre el público culto – demostraba haber sobrevivido en la memoria de buena parte de la sociedad paraguaya, sobre todo entre sus sectores populares.” 8 Destaque para as suas obras: El centauro de Ybicuí: a vida heroica del general Bernadino Caballero en la Guerra del Paraguay. Paris: Le Livre Libre, 1929. El libro de heroes; páginas históricas de la Guerra del Paraguay. Assunção: Libreria Mundial, 1922. El mariscal Solano López. Madrid: Imprenta de Félix Molinos, 1925. 9 “La grita feroz de sus enemigos sólo há servido para dar ressonância a su nombre”.

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O maior confronto armado da América do Sul vem suscitando inúmeras questões. A morte de Solano López, no dia 1º de março de 1870 representou o marco inicial para um extenso debate acerca de acontecimentos e personagens do conflito. O que deve ser levado em conta, e o historiador Francisco Doratioto lembra muito bem, é justamente o contexto histórico no qual estas interpretações foram produzidas. Existem três correntes historiográficas principais que explicam e analisam a Guerra do Paraguai; a versão oficial/tradicional10 – que começou a ser produzida logo nos primeiros anos após o término do conflito e que contou com relatos de pessoas que estiveram no confronto e o anotaram em seus diários – a versão revisionista11 – que ganha força principalmente na década de 1960, e que apesar de conter algumas explicações pouco fundamentadas em documentos, conseguiu se espalhar com muita força pela a América do Sul, e até o hoje tem influenciado no modo como a Guerra é vista – e a nova história/neorrevisionismo12 – que vem ajudando, através de estudos pautados em documentos primários, na quebra de alguns juízos de valor e paradigmas estabelecidos pelas versões anteriores. Abaixo cada uma destas três correntes principais será brevemente analisada. A versão tradicional confere às ações de Solano López a culpa da explosão do conflito. Ele seria o grande vilão da América do Sul, um tirano, que visava expandir o seu território e dominar a região. Segundo Ricardo Salles: De acordo com a versão tradicional do conflito, este foi basicamente decorrente da agressividade de Francisco Solano López, que tinha pretensões expansionistas e hegemônicas na região platina. As razões para essa pretensão não são muito bem explicadas, ficando por conta da vaidade pessoal e da megalomania do governante paraguaio (SALLES, 1990, p.16).

Os autores desta versão, em sua maioria, são militares que participaram da guerra e passaram a escrever sobre ela com base nos escritos de seus diários. Além de pecar por explicar o início do confronto como uma decorrência direta dos ideais 10

Destacam-se nesta corrente os seguintes trabalhos: CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980. 341 p. e FRAGOSSO, Tasso. A História da Guerra entre a Tríplice Aliança e Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1956. 11 Destacam-se nesta corrente os seguintes trabalhos; POMER, León. La Guerra del Paraguai: gran negocio!. Buenos Aires: Caldén, 1968. e CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1979. 12 Destacam-se nesta corrente os seguintes trabalhos; DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 617 p. IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997. e SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 165 p.

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tirânicos e agressivos de Solano López, omitindo importantes acontecimentos que acarretaram o conflito – tais como as disputas territoriais e o contexto de formação dos Estados nacionais dos países do cone-sul – a versão tradicional não poupou elogios às atuações dos chefes militares aliados, principalmente os brasileiros, como no caso do Marquês de Caxias.13 Doratioto esclarece mais alguns aspectos desta corrente historiográfica: Ficou claro que, desde o final da guerra, em 1870, a historiografia tradicional brasileira reduziu a importância do aliado argentino para a vitória sobre Solano Lopez e minimizou, quando não esqueceu, importantes críticas à atuação de chefes militares brasileiros no conflito. Em compensação, ficou evidente que Francisco Solano Lopez era um ditador quase caricato de um país agrícola atrasado, autor de erros militares que custaram a vida de milhares de seus valentes soldados, mas que foram motivo de suspeito silêncio de seus admiradores futuros, os revisionistas históricos (DORATIOTO, 2002, p.18).

Já a historiografia revisionista criou o mito de Solano López como um líder anti-imperialista, que comandava um país extremamente avançado, livre da escravidão e do analfabetismo. O Paraguai passou a ser relatado como um país de desenvolvimento diferenciado em relação aos demais, já que não necessitava dos empréstimos concedidos pela Inglaterra para a sua modernização. Como mostrado, este processo revisionista iniciou-se no Paraguai, em fins do século XIX, sob o nome de lopizmo, e configura-se, até os dias atuais, como uma versão historiográfica bastante disseminada, principalmente no Paraguai, que o governo de Alfredo Stroessner popularizou, através de uma grande propaganda política, na qual o filme “Cerro Corá” (Dir. Guillermo Vera, 1978) possui um papel de destaque. Aqui no Brasil, intelectuais positivistas – já em fins do século XIX e antes mesmo de terem contato com os ideais revisionistas – também passaram a criticar a monarquia, culpando-a pelo início da guerra, desta forma, eles entravam em confronto com os autores da versão tradicional, que diziam ser Solano López o responsável pelo confronto. Um fator fundamental para o surgimento deste revisionismo foi a tentativa, por parte de Enrique Venancio Solano López, de reconquistar a posse das terras que sua mãe, a escocesa Elisa Lynch – companheira de Solano López desde 1853, quando se conheceram na França – havia se apropriado durante a guerra: 13

Luís Alves de Lima e Silva tonou-se Barão de Caxias em 1841, Visconde de Caxias em 1843, Conde de Caxias em 1845, Marquês de Caxias em 1852 e Duque de Caxias em 1869, após retornar dos campos de batalha.

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A busca do reconhecimento, por parte de Enrique Venancio Solano López, do direito de receber os bens de que seus pais se apropriaram durante a guerra, explica, em parte, a transformação da imagem de Francisco Solano López de tirano para herói. Relatório sobre a situação política do Paraguai, elaborado em 1931 pela Legação do Brasil em Assunção, lança luzes sobre o nascimento do revisionismo lopizta e explica a surpreendente transformação de O’Leary de crítico à panegirista de Solano López (Ibid, p.84).

Esta corrente historiográfica ganhou força na América Latina a partir das décadas de 1960 e 1970, período no qual os países do Cone Sul sofriam com as instalações de regimes ditatoriais chefiados por líderes militares. Criticar as ações militares dos aliados na guerra, apresentando-os como covardes e violentos, atendia à um desejo de desmoralização destes regimes. Ao mesmo tempo, em tempos onde a Revolução Cubana (1959) exercia grande influencia no imaginário latino americano, apontar o Paraguai de Solano López como um precursor de Fidel Castro no que diz respeito à luta contra grandes potências mundiais – EUA para Cuba e a Inglaterra para o Paraguai – tornou-se um discurso muito comum, embora mais panfletário do que acadêmico. A nova história da Guerra do Paraguai é uma historiografia recente e ainda vem sendo construída. Foi no final da década de 1980 que o confronto começou a ser enxergado de outra forma, alguns historiadores passaram a criticar determinadas interpretações propostas pelas correntes anteriores. A teoria de que a Inglaterra forçou a guerra, unindo Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, não leva em conta os acontecimento geopolíticos da região do Prata14, tratando os países envolvidos como simples “marionetes” de um comando externo. A Guerra do Paraguai foi o fruto de inúmeras tensões regionais, e a causa de seu início está ligada às ambições dos países envolvidos. Delimitar a guerra aos interesses ingleses na região é apagar nossa própria história, é reproduzir um grande preconceito e complexo de inferioridade, que, implicitamente, aponta para o fato de que a América Latina não é capaz de fazer sua própria história. Ainda em relação à historiografia da guerra, vale ressaltar o trabalho empreendido pelo historiador Mario Maestri15. O autor constrói uma importante análise

14

Os rios Paraná, Paraguai e Uruguai, com seus respectivos afluentes, formam a Bacia do Prata – a segunda maior do Brasil. 15 Destaque para o seu livro, recentemente publicado. MAESTRI, Mario. A Guerra no papel: História e historiografia da Guerra no Paraguai (1864-1870). Passo Fundo: PPGH/UPF, 2013.

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acerca da historiografia do conflito, tecendo críticas, inclusive, aos autores da nova história. Maestri aponta para o que ele chama de “restauração-nacionalista”, ou seja, uma recuperação das teses nacionalistas da historiografia tradicional, presente atualmente nas obras neorrevisionistas. Apesar de todo este debate historiográfico acerca do tema, a forma como o cinema retratou a guerra e, no caso de “Cerro Corá”, foi utilizado para disseminar determinados acontecimentos, construindo uma visão que atendesse às perspectivas e aos interesses de alguns grupos, é uma espaço aberto, que carece de estudos aprofundados. Vale ressaltar que importantes produções cinematográficas foram realizadas pelos países que se envolveram no confronto, tais como: “Alma do Brasil” (Dir. Líbero Luxardo, 1932), “Argentino Hasta La Muerte” (Dir. Fernando Ayala, 1971) e “Guerra do Brasil – Toda a verdade sobre a Guerra do Paraguai” (Dir. Sylvio Back, 1987). Como visto, Solano López, de perverso e tirano – apresentado pela corrente tradicional – transformou-se num herói – consagrado pela versão revisionista. Sua figura passou a representar o ideal de homem paraguaio; guerreiro, nacionalista. Foi durante o governo ditatorial de Alfredo Stroessner (1954-1989) que a exaltação de Solano López alcançou seu ponto máximo, encontrando em “Cerro Corá” (1978) um grande disseminador dessa imagem positiva do ex-presidente paraguaio. O filme irá retratar três importantes batalhas da guerra; a de Curupaiti (1866), da Piribebui (1869) e a de Cerro Corá (1870) – batalha esta marcada pela morte de Solano López, e que dará nome à produção cinematográfica. Vale ressaltar ainda, como o filme “Cerro Corá” tentou ser fiel ao retrato de Solano López:

Solano López na ficção e em pintura.

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Tais batalhas foram escolhidas por se adequarem ao grande ideal de exaltação do ex-presidente paraguaio. Curupaiti é a maior vitória paraguaia na guerra, na produção cinematográfica, ela aparece como fruto das perfeitas ações estratégicas promovidas por Solano López. O incêndio ao hospital de Piribebui mostra a valentia do povo paraguaio, que liderado por López, se uniu e defendeu, até o fim, a independência do país. Mulheres, crianças e enfermos foram vítimas de um ataque aliado lançado pelo comandante Conde D’eu. Cerro Corá marca a morte de Solano López, ressaltando o quanto suas ações foram heroicas, López prefere morrer ao se render, defende seu país até o fim. Um discurso do esquecimento pode ser construído a partir do não dito, como no caso de “Cerro Corá” (1978), onde muitos dos acontecimentos – basicamente os que pudessem apresentar Solano López como um perverso e tirano – foram deixados de lado, em troca de batalhas e acontecimentos que retratassem um lado positivo do presidente paraguaio. Em nenhum momento o filme aponta o início do conflito a partir das ações providas por López, pelo contrário, o presidente paraguaio, tenta, de todas as formas, evitar a guerra. Em relação a isto, Michael Pollak faz uma importante afirmação: Conforme as circunstâncias ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformando e reinterpretando o passado (POLLAK, 1989, p.8).

A construção de uma memória coletiva, que exalte a figura de Solano López como um grande líder foi uma grande iniciativa da propaganda levada a cabo pelo regime ditatorial de Alfredo Stroessner. Em relação ao conceito de memória coletiva, Ulpiano Bezerra de Meneses expõe que: Essa memória assegura a coesão e a solidariedade do grupo e ganha relevância nos momentos de crise e pressão. Não é espontânea: para manter-se precisa permanentemente ser reavivada. É, por isso, que é da ordem da vivência, do mito e não busca coerência, unificação. Várias memórias coletivas podem coexistir, relacionando-se de múltiplas formas (MENESES, 1992, p.15).

A historiadora sul-mato-grossense Ana Paula Squinelo, ao tratar do revisionismo acerca da figura de Solano López, afirma que: Esse movimento ganhou forte relevo no governo ditatorial do general Alfredo Stroessner, líder da nação paraguaia entre os anos de 1954 e 38 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


1989. Seu governo, de cunho nacionalista, empenhou-se em uma intensa propaganda política, com o objetivo de despertar o sentimento “patriótico” nos cidadãos paraguaios (SQUINELO, 2002, p.41).

Este movimento patriótico também esteve no cerne de “Cerro Corá”, já que este foi o primeiro filme produzido totalmente no Paraguai, por um diretor – Guillermo Vera – e por atores – Roberto de Felice, Rosa Ros e Pedro Ignácio Aceval – nacionais. “Cerro Corá” também foi o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Guillermo Vera, que mais tarde iria participar da produção binacional de “A cafetina de meninas virgens” (1981)16, junto com o Brasil. O diretor também se destaca como o autor de uma série de filmes sobre o Paraguai, produzidos para a televisão. Durante a década de 1970, Vera, que havia estudado durante alguns anos na Espanha, tornou-se um diretor de ponta no Paraguai, dirigindo “Paraguay, tierra de progresso” (1970), “Crisol de glória” (1971) e “La voluntad de un Pueblo” (1973). Entretanto, nenhuma destas produções alcançou o sucesso de “Cerro Corá” (1978), filme que tornou-se um símbolo para o país, e que, até os dias atuais, é considerado uma obra canônica.17 No que diz respeito ao cinema e à propaganda política, o historiador Wagner Pinheiro Pereira faz um importante relato:

Em qualquer governo, a propaganda é estratégia para o exercício do poder, mas adquire uma força muito maior naqueles em que o Estado, graças aos monopólios dos meios de comunicação, exerce controle rigoroso sobre o conteúdo das mensagens, procurando bloquear toda atividade espontânea ou contrária à ideologia oficial. (...) Dentre todos os meios de comunicação utilizados para exercer tal influência psicológica, o cinema foi bastante privilegiado, tanto pelas ditaduras de direita e de esquerda, quanto pelas democracias liberais (PEREIRA, 2012, p.17-18).

Com base no historiador francês Jacques Le Goff (1994), precisando o seu conceito de “Documento/Monumento”, o filme aqui exposto é analisado como um documento produzido pela sociedade, criado pelas relações de força dos que possuem o poder, e como monumentos, que evocam os acontecimentos do passado através do presente. Atrelado a isto, definir o que é um filme histórico torna-se bastante importante. Segundo Robert Rosestone, um filme histórico é aquele que “tenta recriar, conscientemente o passado” (2010, p.15). Recriar o passado, apresentando o 16 17

Este filme foi gravado no Paraguai, onde recebeu o nome de “Kapanga”. http://www.imdb.com/name/nm0893539/ acesso em 23/01/2013.

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acontecimento mais marcante da história paraguaia de acordo com as demandas vigentes, seguindo uma doutrina nacionalista é o ponto principal de “Cerro Corá”. Em relação à reconstrução consciente acerca de acontecimentos e personagens da guerra, uma importante questão deve ser ressaltada; a utilização, por parte de Alfredo Stroessner, do revisionismo histórico paraguaio para o fortalecimento de seu governo, enquanto nos demais países, os intelectuais revisionistas o fomentaram como uma forma de crítica às ditaduras chefiadas por líderes militares, que comandavam os países do Cone-Sul durante as décadas de 1960 e 1970 – justamente o período em que tal revisão historiográfica passou a se fortalecer e se disseminar. A exaltação de Solano López tornou-se fundamental para a opressão realizada pelo regime stronista. O uso político do passado histórico forneceu legitimidade ao ditador Alfredo Stroessner. A reconstrução da Guerra do Paraguai no imaginário nacional, ao apontar para a união e o patriotismo dos paraguaios, foi constante na ditadura paraguaia. Por fim, vale citar, que este trabalho compreende a construção de memória a partir de uma constante luta, de um constante conflito, logo, não há unanimidade, e, sem dúvida, havia setores que enxergavam nas ações de Solano López e Alfredo Stroessner atos de tirania, porém, a exaltação de López, a partir da reconstrução de suas ações na Guerra do Paraguai, conferiu ao ex-presidente paraguaio um status de herói, uma imagem extremamente mitificada, perceptível a partir da constante presença de seu nome até os dias atuais no país, através de ruas, praças e outros espaços – principalmente públicos. O cinema e a grande força na propagação de ideias, costumes e memórias que possui, tornou-se fundamental para disseminar este processo. BIBLIOGRAFIA:

BREZZO, Liliana M. Aislamiento, nación e historia en el Rio de la Plata: Argentina y Paraguay. Siglos XVIII-XX. Rosário: Universidad Católica Argentina, 2005.

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980. 341 p.

CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1979. 40 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

FRAGOSSO, Tasso. A História da Guerra entre a Tríplice Aliança e Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1956.

IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discórdia: a Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997.

LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994.

LIZEIRO, Priscila; BRITO, Tabita. Ressentimentos de uma Guerra. São Paulo: Uniban, 2008.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das ciências sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, 1992. O’LEARY, Juan Emiliano. El Mariscal Solano López.3.ed.Assunção: Casa América – Moreno Hnos. 1970.

PEREIRA, Wagner Pinheiro. O Poder das Imagens: Cinema e Política nos Governos de Adolf Hitler e Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989.

POMER, León. La Guerra del Paraguai: gran negocio!. Buenos Aires: Caldén, 1968.

ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 41 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... Ensino, memória e história de um conflito secular. Campo Grande: UCDB, 2002.

Artigo recebido em: 27 de setembro de 2013 Aprovado em: 21 de novembro de 2013

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A ESPERANÇA: A POLÍTICA DE NÃO INTERVENÇÃO NA OBRA DE ANDRÉ MALRAUX Rebeca Gonzalez* RESUMO: O presente artigo tem como objetivo mostrar como a obra literária A Esperança (L’espoir, 1937), de André Malraux tratou a Guerra Civil Espanhola, em particular a política de Não-Intervenção. Segundo o autor, esta política foi decisiva para a derrota da República Espanhola, visto que as potências democráticas liberais não ofereceram ajuda, participando do pacto de Não-Intervenção, mas países como Alemanha e Itália participaram ativamente da guerra espanhola, inclusive com tropas próprias. PALAVRAS-CHAVE: André Malraux; Guerra Civil Espanhola; Pacto de Não intervenção. ABSTRACT: This article aims to show how the literary work Man’s Hope (L’espoir, 1937), by André Malraux treated the Spanish Civil War, particularly the policy of NonIntervention. According to the author that policy was decisive to the defeat of Spanish Republic, since the liberal democrats powers didn't offer help, participating with the Non-Intervention agreement, but countries like Germany and Italy actively participated in the Spanish war, including their own troops. KEYWORDS: André Malraux; Spanish Civil War; Non-Intervention Pact.

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Rebeca Gonzalez, mestranda do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Introdução

André Malraux nasceu na cidade de Paris em 1903 e muito jovem começou a escrever, tendo publicado seu primeiro livro em 1923, Lunes em Papier1, com apenas vinte anos. Desde sua juventude esteve envolvido em temas políticos, tendo participado ativamente da Revolução Chinesa como militante de esquerda e esta luta deu origem ao livro Condition humaine (A Condição Humana), em 1933, obra que lhe rendeu o prêmio francês Goncourt de literatura neste mesmo ano. Alguns anos depois, Malraux se envolve na Guerra Civil Espanhola (19361939), sendo esta uma oportunidade para o escritor aliar sua paixão pela escrita e a necessidade de ação2. Assim, imediatamente vai à Madri, se estabelecendo lá apenas três dias após o início do conflito. É importante destacar que o francês “teria sido o primeiro escritor a perceber que a Europa estava em guerra e a fazer uma literatura de guerra”3. Logo André Malraux retorna a França com objetivo de chamar mais pessoas para ajudar a República Espanhola. organiza uma esquadrilha de aviões para lutar ao lado dos legalistas, inicialmente chamada Esquadrilha Espanha, mas logo rebatizada para Esquadrilha Malraux4. Porém, é irônico saber que o escritor francês nunca pilotou um avião. Enquanto esteve na França devido aos ferimentos sofridos na guerra, arrecadou, junto com ouros escritores e intelectuais, donativos para levar a Espanha. Foi neste período também que escreveu o livro A esperança, sendo publicado antes do final da guerra, obra que inicialmente foi pensada como um texto de propaganda. A sua experiência no combate ajudou o escritor com esta obra visto que [...] Malraux trocou temporariamente a ficção pela realidade, as palavras-arma por uma esquadrilha aérea, vivenciando batalhas reais. Terminada sua ação, as batalhas foram imortalizadas nas palavras dos personagens de L’Spoir(1937) e dos interpretes do filme Sierra de Teruel(Espoir)(1939).5

1

SOARES, Daniela. Anarquistas na Guerra Civil Espanhola: Uma abordagem a partir das obras literárias de Ernest Hemingway e André Malraux. 2010. Monografia [Graduação] – Curso de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. p 57 2 FREITAS, Maria Teresa. “Ficção e História: Malraux e a Guerra Civil Espanhola”. Revista brasileira de história. São Paulo: Associação Nacional de História, 1986/1987. v.7 n.13 set/fev. p. 145. 3 Ibid. p. 145. 4 Ibid. p. 146 5 OLIVEIRA, Clarissa Laus Pereira. A Condição Crítica de Malraux no Brasil e na Espanha: recepção crítica das obras La Condition humaine, L’Spoir e Antimémoires. Tese de Doutorado. Programa de Pós Graduação em Letras/UFRGS, Porto Alegre: 2006. p. 90

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Após o término das atividades da Esquadrilha Malraux em março de 1937, em 1938 retorna a Espanha para produzir e dirigir seu filme, Sierra de Teruel(Espoir), mas este não tinha a intenção de ser uma adaptação do livro L’Spoir. A filmagem não foi fácil, já que o país ainda se encontrava em guerra, não sendo diferente para a estréia, já que seu único filme estreou em julho de 1939, assim, poucas pessoas puderam assistir, inclusive o presidente exilado Juan Negrín. Logo depois o filme foi proibido na França, sendo liberado apenas em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial. A Esperança trata da primeira fase da Guerra Civil Espanhola, de julho de 1936, com a rebelião dos nacionalistas, até a vitória republicana em Guadalajara, em março de 1937, passando por diversas batalhas que ocorreram neste tempo. Este livro não é um romance peculiar, visto que não existe um protagonista, mas sim diversos personagens que surgem no decorrer da trama, que por vezes, retornam – estes são os “protagonistas” da história. Apesar do personagem Magnin, comandante, apresentar certas semelhanças a Malraux, este não serviu de base para a criação do personagem. Dessa maneira, nenhum personagem desta obra pode ser identificado com pessoas reais, pois todos existem apenas no mundo imaginário6. Outro aspecto importante a ser ressaltado sobre esta obra é que não existem heróis, desta maneira, Malraux buscou valorizar o coletivo e a igualdade entre os soldados. O livro é divido em três partes: Ilusão Lírica, O Manzanares e L’Spoir. A última parte termina dando esperança, assim como o próprio nome sugere, de que a guerra pode ser ganha pelos republicanos. Além disso, tenta transmitir coragem e otimismo às massas oprimidas. Porém, como já foi apresentado, no momento que a obra é lançada, o quadro que se apresentava na Espanha já não era do otimismo republicano da vitória em Guadalajara, último episódio do livro.

Uma guerra que atrai a intelectualidade Durante a Segunda República espanhola houve um salto na educação da população, visto que para àquele governo, “[...] a cultura constitui uma forma de emancipar o povo, libertando-o da estagnação mental em que assentava o anterior regime” 7.Assim, alavancado por esta ideia, ocorreu a alfabetização de 75 mil soldados e 300 mil civis, foram criadas 800 escolas, mil bibliotecas, além de serem colocadas 60

6 7

FREITAS, Maria Teresa. Op. cit. p. 149. CERQUEIRA, João. Arte e literatura na Guerra civil de Espanha. Porto Alegre: ZOUK, 2005. p. 10.

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mil crianças em colônias escolares8. Dessa maneira, neste período, os números da educação espanhola se aproximavam do padrão europeu, publicação de imprensa e livros atinge valores inéditos. Após o início da Guerra Civil Espanhola, o governo também promovia “a confraternização entre soldados e civis e realizados colóquios de politização das massas, com o objetivo de explicar as finalidades da guerra”9. A massa, antes privada do conhecimento, demonstrava grande interesse pelo o que agora lhe era oferecido. Por isso, pode-se dizer que “a Guerra Civil acorda talentos adormecidos que sem os trágicos acontecimentos ocorridos em Espanha talvez permanecessem ocultos”10. Temas históricos atraem, não sendo de se estranhar, [...]que essa atração seja maior pelos processos com dimensão especialmente ‘catastrófica’ da História: guerras, revoluções, insurreições constituem momentos em que essas situações se exacerbam, e que oferecem, por conseguinte, fontes inesgotáveis de inspiração às mais diversas formas de produção literária.11

Durante a Guerra Civil espanhola, o país se tornou em campo de discussão sobre os principais ideais que estavam se expandindo pelo mundo – Fascismo e Comunismo. Assim, “a Espanha converteu-se em um símbolo de esperança para intelectuais, representou a possibilidade de lutar pela liberdade e justiça e as grandes correntes políticas da época puderam ser ouvidas e discutidas”12. A guerra espanhola foi considerada a última guerra romântica, pelos ideais envolvidos nela. Para Freitas, “era uma guerra romântica, feita de ‘tragédias’ e não de batalhas; por heróis e não por soldados. E o afluxo de voluntários estrangeiros, nem sempre simples mercenários, só fez ampliar esse caráter romântico que o conflito adquiria”13. O apelo republicano era grande, o que levou a muitos artistas aderirem à causa, fazendo com que compositores como Dmitrj Sostakovic e Frans Szabo criassem hinos para as Brigadas Internacionais. O próprio Luís Buñuel estava filmando na Espanha, com Jean Grémillon, o filme chamado Sentinela Alerta, uma comédia militar que, de certa maneira, era inspirada nos acontecimentos espanhóis do início da década de 30, 8

Ibid. p.10. Ibid. p. 10. 10 Ibid. p. 110. 11 FREITAS, Op. cit., p. 138. 12 SOARES, Op. cit., p. 15. 13 FREITAS, Op. cit., p.139. 9

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que teve sua estreia em plena guerra civil14. A lista que Cerqueira faz de alguns intelectuais que participaram é imensa, porém, vale lembrar que mesmo que o lado republicado tivesse mais atrativos para a intelectualidade, os nacionalistas também tinham apoio, por exemplo, Salvador Dali15. Em 1937 foi realizado em Valência o Congresso Internacional de Escritores, onde foi defendida a “intervenção da literatura nas causas políticas, tendo sem dúvida reforçado o comprometimento ideológico de inúmeros escritores e consequentemente contribuído para o aumento de obras de propaganda”16. Porém, alguns escritores, dentre eles Malraux e Orwell, não se contentaram em participar escrevendo, mas também se alistaram nas Brigadas Internacionais. Dessa forma, pode-se falar sobre a literatura engajada, onde a geração de escritores – artistas ou intelectuais – da década de 1930 estava engajada em questões políticas, sendo a guerra que acontecia uma oportunidade de colocar seus valores em prática. Para Maria Freitas, a Guerra Civil Espanhola provocou o desenvolvimento desta nova relação entre a História e Literatura, produzindo a chamada literatura engajada com um caráter político, polêmico e pragmático17. Assim, Muitos esforços e criatividade foram subordinados às demandas conjunturais. Os textos produzidos foram marcados pelo caráter emergencial e pela necessidade de denunciar e convencer, objetivos maiores que pautaram a ação dessa geração engajada18.

Essa geração engajada estava disposta a arriscar suas vidas por seus ideais – Miguel Unamuno e Federico Garcia Lorca, foram dois que perderam a vida por se colocarem contra os fascistas. Muitos deles não eram comunistas, mas como se unir ao comunismo significava fazer frente ao fascismo, se vinculavam aos partidos de esquerda – que nem sempre era comunista, mas também anarquista, por exemplo – para lutar na guerra da Espanha. Alguns imaginavam que seria como uma aventura estar na Espanha, enquanto outros, não aguentaram a disciplina e privações que lhes eram impostas nas Brigadas Internacionais. Questão curiosa levantada por João Cerqueira é que os escritores estavam convencidos da superioridade moral da sua causa, por isso não

14

BUÑUEL, Luís. Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.203. CERQUEIRA, Op. cit., p.118. 16 Ibid. p. 117. 17 FREITAS, Op. cit., p.138. 18 OLIVEIRA, Op. cit., p.77. 15

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tentam “[...] compreender as motivações dos adversários nem analisar com imparcialidade as razões da Guerra, cedendo a tentação de dividir os combatentes entre bons e maus”19. Alguns escritores, menos seguros das suas capacidades e menosprezando a inteligência do seu público leitor, interferem diretamente na ação, intrometendo-se na relação entre o leitor e as personagens, para facilitar a compreensão do enredo ou propagar mensagens políticas. Em vez de utilizarem a voz das personagens, alguns autores não resistem a expressar as suas opiniões e, inclusive, interpelar o leitor, congelando a narrativa por períodos mais ou menos longos. O cúmulo da propaganda dá-se quando certas personagens, ao invés de defenderem os seus ideais, desferem críticas ao sistema político em que acreditam e renegam a ideologia pela qual lutavam.20

É interessante lembrar que, devido a ruptura que os intelectuais espanhóis desejavam fazer, os “autores republicanos ignoram as regras da métrica e a inspiração lírica, por as considerarem expressões culturais dos intelectuais do antigo regime”21. Outra curiosidade é que a poesia republicana não valorizava a figura do herói – com exceção de algumas figuras simbólicas -, pois glorificava o coletivo – bastante marcada na obra A esperança, de Malraux. Como consequência do objetivo de levar a “cultura” para as massas, pela linguagem, a poesia republicana tenta se aproximar do povo, enquanto os nacionalistas fazem o contrário, rebuscando ainda mais a escrita. Os nacionalistas permaneciam seguindo as regras da academia e baseando seus textos nos autores clássicos. Além disso, o apoio intelectual aos nacionalistas foi menor e, talvez, o apoio desta intelectualidade não fosse o objetivo do grupo, pois um dos lemas mais conhecidos dele é Abaixo a inteligência! Viva a morte!, do General Millán Astray22. Dessa maneira, durante a guerra, pela necessidade dos combatentes registrarem o que viviam, além de muitos intelectuais se descobrirem soldados, soldados também se descobriram escritores. Frequentemente, os soldados nos seus momentos de descanso se tornavam escritores, registrando suas memórias. Porém, de acordo com Cerqueira, as obras concebidas após o término do conflito, são mais maduras, pois permitiram que a 19

CERQUEIRA, Op. cit., p.118. Ibid., p. 119. 21 Ibid., p.111. 22 Palavras ditas durante o Festival da Raça em 12 de outubro de 1936, realizado no salão de honra da Universidade de Salamanca. Neste evento Unamuno retirou seu apoio aos nacionalistas e foi preso até sua morte em 31 de dezembro de 1936. 20

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distância evitasse um discurso de propaganda, com complexidade e estrutura superiores23. Vale ressaltar que a experiência da guerra causa desilusões e rupturas ideológicas em alguns escritores, como o caso de Koestler, que “acaba por descobrir que nenhum ideal, por mais elevado que seja, pode aplacar a brutalidade dos homens enraivecidos pela Guerra”24. Dessa maneira, os escritores se chocam com a realidade da guerra que entra em choque os ideais que antes defendiam, levando a introspecção, conduzindo a dramáticas transformações de identidade25. Para Cerqueira, a literatura não consegue derrotar as ditaduras fascistas e comunista, mas preserva a memória dos seus horrores ao evitar o esquecimento e a distorção da verdade, fornecendo assim à humanidade preciosa ajuda para não repetir erros do passado.26

Abandono das democracias ocidentais A obra de André Malraux aborda – ainda que não durante todo o livro – um tema de grande importância para entender o desenvolvimento do conflito espanhol. Em algumas passagens A esperança menciona questão da política de Não-Intervenção, que na verdade foi uma fraude. Neste trecho vemos exatamente a sensação de abandono que os republicanos sentiam: “Os fascistas ajudaram aos fascistas, os comunistas ajudaram aos comunistas e até mesmo à democracia espanhola; as democracias não prestam ajuda às democracias”.27 “Nós, democratas, acreditamos em tudo, menos em nós mesmos. Se um Estado fascista dispusesse da força dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França reunidos, estaríamos aterrorizados. Mas como se trata da nossa força, não acreditamos nela”.28

No momento da revolta dos militares, em julho de 1936, o governo sabia que não podia contar com países como Alemanha nazista, Itália fascista e Portugal de Salazar, pois estes apoiariam ou, ao menos, não se oporiam aos nacionalistas. Os aliados 23

CERQUEIRA, Op. cit., p. 118. Ibid., p.121. 25 Ibid., p.122. 26 Ibid., p.124. 27 MALRAUX, André. A esperança. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000. p. 361. 28 Ibid., p. 161. 24

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“naturais” da República espanhola seriam a URSS, já que o governo espanhol era de esquerda, e as democracias ocidentais, porém estas últimas acabaram por não fornecer ajuda oficial, mas apenas voluntários enviados por organizações desvinculadas dos seus Estados. Dessa maneira, os republicanos tinham grande esperança de conseguir ajuda imediata da França, visto que o governo também era da Frente Popular 29. Em 19 de julho, o primeiro-ministro da República envia um telegrama ao primeiro-ministro francês, Léon Blum, pedindo ajuda com armas e aeroplanos30. Segundo Salvado, esta solicitação não era ilegal, já que, segundo o direito internacional, um governo tem o direito de comprar armas quando confrontado com uma rebelião. Além disso, um acordo comercial franco-espanhol, assinado no final de 1935, providenciou a aquisição de armas na França até a quantia de 20 milhões de francos31.

Além do que foi apresentado, a França tinha interesse que a Frente Popular permanecesse no governo espanhol, pois seria um aliado ao sul de sua fronteira32. Uma vitória nacionalista seria hostil ao governo francês e estaria cercada por três países hostis33. Porém, a posição do governo francês muda, já que o governo britânico, temendo uma nova guerra europeia, pressiona a neutralidade francesa. Ao contrário do que ocorria com a França, a administração britânica tinha mais simpatia pelos rebeldes. Mesmo que a Grã-Bretanha fosse uma democracia, assim como a Espanha, não apoiaria o governo da Frente Popular, porque se tratava de um governo esquerdista e na Inglaterra os conservadores estavam no poder. Por isso, “desde os primeiros dias, relatórios diplomáticos e de inteligência confirmam os sentimentos antirepublicanos já dominantes no governo britânico”34. Assim sendo, devido a pressões inglesas, a França foi persuadida a quebrar o acordo de envio de armas a Espanha, já que o cumprimento deste acordo colocaria em risco as relações entre Londres e Paris. Dessa forma, em 9 de agosto de 1936, a França proíbe a exportação de equipamentos militares, inclusive transações feitas por 29

SALVADÓ, Francisco. A Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 95. THOMAS, Hugh. A Guerra Civil Espanhola. Vol. 1 . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. p.257. 31 SALVADÓ, Op.cit., p.96. 32 Ibid., p 96. 33 THOMAS, Op. cit. V. 1., p.259. 34 SALVADÓ, Op.cit., p.98. 30

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particulares com o governo espanhol35. A Partir de então, adota de forma unilateral a política de não-intervenção e “falou-se demais nas ‘lágrimas’ de Léon Blum”36. Inicialmente, se acreditou que a política de não-intervenção, mesmo com a República impedida de comprar armas, deixaria esta em condição de derrotar a insurreição, visto que os nacionalistas também não o fariam37. Segundo Matthews, a “teoria da não-intervenção era compreensível e, aparentemente, sensata: fazer com que nenhuma potência estrangeira fornecesse ou vendesse armas ou material bélico a qualquer um dos lados na Guerra Civil”38. Porém, se mostrou um total fracasso, visto que não conseguiam impedir a ajuda dada aos nacionalistas pela Itália e Alemanha, já que “a intervenção no lado insurreto começou com uma explosão; no lado republicano, começou com um murmúrio”39. Ainda que a Alemanha tivesse iniciado sua ajuda de maneira tímida, logo seu apoio foi fundamental, principalmente pela Legião Condor que os nazistas utilizaram na guerra espanhola para testar a eficiência da Luftwaffe. A Legião Condor mostrou sua eficiência ao bombardear a cidade de Guernica. Estima-se que esta legião era composta de 80 a 150 aparelhos, variando de acordo com o momento, e 4 mil homens40. A Itália também não poupou esforços para ajudar os espanhóis nacionalistas. Para Vilar, “a intervenção italiana foi mais teatral, mais ideológica, financeiramente mais desinteressada que a intervenção alemã, sem ser, no entanto, isenta de interesses a longo prazo”41. Entretanto, para Salvadó, “a decisão da Itália de se envolver na Espanha foi resultado de um cuidadoso exercício de oportunismo político”42. Dessa forma, a política de não-intervenção se mostrou uma fraude, a flagrante ineficiência do NIA43 era, em grande medida, consequência de ele ser na realidade uma trapaça, um instrumento da diplomacia britânica cujos objetivos não eram os retratos pela propaganda oficial, isto é, a prevenção da participação estrangeira na guerra.44

35

Ibid., p. 106. VILAR, Pierre. A Guerra da Espanha, 1936-1939. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p.103. 37 SALVADÓ, Op. cit., p.107 38 MATTHEWS, Herbert Lionel. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p.136. 39 Ibid. p.136. 40 VILAR, Op. cit., p.101. 41 Ibid., p.102. 42 SALVADÓ, Op. cit., p.104. 43 Sigla de Acordo de Não-Intervenção em inglês. 44 SALVADÓ, Op. cit., p.108. 36

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A Liga das Nações também mostrou sua ineficiência em colocar em prática a política de não-intervenção ao ignorar a participação de Estados estrangeiros no lado nacionalista. Além disso, a Liga ignorou os protestos do governo espanhol, que era membro do Conselho da Liga45. O Conselho chegou a votar para que o Comitê de NãoIntervenção organizasse, entre seus membros, mediação para a política ser cumprida, porém, esta não foi aceita por republicanos nem por nacionalistas, acabando por ser abandonada46. Assim, países como França e Inglaterra mostraram ser de pouca confiança, principalmente após o primeiro confiscar parte do ouro do Banco de Espanha e só entregar após a guerra à Francisco Franco47. Os Estados Unidos, seguindo a política isolacionista que adotou após a Primeira Guerra Mundial, se manteve afastado do conflito, ficando neutro e, logo, também adotou a política de não-intervenção, inclusive, realizando embargos à República Espanhola. Sendo o México o único país ocidental a defender abertamente a república espanhola, não participando da não-intervenção, já que a consideravam um embuste48. Como foi mostrado no trecho inicial do texto, havia uma sensação de abandono e “a falsidade evidente das consequências a revoltar a maioria dos liberais e socialistas dos países ocidentais”49. Por isso, “face ao abandono da República Espanhola pelas democracias e à crise mundial do Capitalismo, muitos destes homens abraçam o Comunismo como a única forma de travar o Fascismo”50. Dessa maneira, a República apenas pode contar com a ajuda da URSS, já que o México não podia ajudar em muito.

Considerações Finais André Malraux esteve envolvido na guerra até o seu final, ainda que não como combatente todo este tempo, mas sempre buscando ajudar a causa republicana na Espanha, sendo um exemplo disso o próprio romance A Esperança, que por ter sido lançado ainda durante a guerra, constituiu, segundo Sartre, uma literatura engajada por excelência51. Por conta disso, esta obra foi, muitas vezes, classificada como “romancereportagem”, já que seria de cunho jornalístico e autobiográfico, ainda que, não trate de 45

MATTHEWS, Op.cit., p.174. THOMAS, Opcit. V. 2., p.27. 47 MATTHEWS, Op.cit., p.176. 48 Ibid., p.173. 49 THOMAS, Op. cit., p.36. 50 CERQUEIRA, João. Arte e literatura na Guerra civil de Espanha. Porto Alegre: ZOUK, 2005. p.117. 51 Ver: FREITAS, Op.cit. 46

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seus próprios relatos, mas sim, em uma ficção baseada no que viu durante sua estadia na Espanha em guerra. Além disso, vale ressaltar que o país natal de Malraux, a França, de todos os países envolvidos, foi o mais concernido52. “A única democracia de esquerda a ter fronteira comum com a Espanha na época, já que Portugal tomara o partido dos rebeldes nacionalistas”53. Além disso, a própria população francesa se posicionou contrária a política de não intervenção, sendo que, segundo estatísticas, os franceses foram maioria nas Brigadas Internacionais, deixando também uma vasta bibliografia sobre o assunto54. Assim, percebemos que o escritor não era uma exceção entre os franceses, que apoiavam a luta da República. Porém, posteriormente, devido ao pacto de NãoIntervenção e pressão Inglesa, a França retirou a ajuda e o governo eleito democraticamente foi massacrado pelas tropas nacionalistas que tiveram apoio militar até o final da Alemanha e Itália.

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CERQUEIRA, João. Arte e literatura na Guerra civil de Espanha. Porto Alegre: ZOUK, 2005. 52

Ibid. p. 140. Ibid. p. 140. 54 Ibid. p. 142. 53

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Artigo recebido em: 29 de agosto de 2013 Aprovado em: 28 de setembro de 2013

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“NOSSOS ANOS VERDE-OLIVA”: ROBERTO AMPUERO ENTRE O GOVERNO DE AUGUSTO PINOCHET, A REVOLUÇÃO DE FIDEL CASTRO E UM SÉCULO DE AUTORITARISMOS. Quezia Brandão* RESUMO: O presente artigo se propõe a discutir o papel da obra literária Nossos Anos Verde-Oliva, de Roberto Ampuero, para pensar as experiências autoritárias dos governos do General Augusto Pinochet, no Chile, após o Golpe de 1973 que derrubou o governo da Unidade Popular de Salvador Allende e do líder revolucionário Fidel Castro, em Cuba, após a vitória da Revolução Cubana de 1959, sobretudo com o acirramento do governo de Castro na década de 1970. Assim, o texto abordará as questões atinentes à memória, a legitimação, consenso e consentimento sociais acerca de tais regimes políticos, partindo das contribuições deixadas por Roberto Ampuero em seu romance biográfico. PALAVRAS-CHAVE: Nossos Anos Verde-Oliva; Agusto Pinochet; Fidel Castro; Autoritarismo. ABSTRACT: This article aims to discuss the role of literary Roberto Ampuero’s Nuestros Años Verde-Olivo, to think the of authoritarian government’s experiences of General Augusto Pinochet in Chile after the 1973 coup that overthrew the Popular Unity Governements Salvador Allende and revolutionary leader Fidel Castro in Cuba after the triumph of the Cuban Revolution in 1959, especially with the growth of Castro's government in the 1970s. Thus, the text will address the issues relating to memory, legitimation, social consensus and consent about such political regimes, starting from the left by Roberto Ampuero contributions in his biographical novel. KEY-WORDS: Nuestros Años Verde-Olivo; Augusto Pinochet; Fidel Castro; Authoritarianism

***

*

Graduanda em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora no Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa e no Laboratório de Imagem, Arte e Metrópoles. Bolsista de Iniciação Científica – Jovem Cientista - Faperj.

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“Só a Literatura, aquela que surge do conhecimento profundo da alma humana e de suas paixões, suas mesquinharias e grandezas, era capaz de dar conta daquilo que eu presenciava. Disso provém a causa última pela qual o gênero do romance nunca perderá sua vigência.” Roberto Ampuero. Nossos Anos Verde-Oliva (2012).

Introdução

Todo trabalho que pretenda analisar obras literárias coloca, em si, uma difícil e árdua tarefa. Ao pensar uma produção literária do ponto de vista das suas implicações políticas e sociais estamos indo além da crítica literária e construindo uma complexa teia de compreensões e caminhos interpretativos sobre aquilo que, grosso modo, Hayden White problematizou com as noções de representação histórica e o papel da imaginação histórica1. Embora White estivesse preocupado em pensar o problema da escrita da história pelos historiadores e daquilo que se pode ou não chamar de “real”, suas reflexões, em um primeiro momento, tornam-se úteis para pensarmos como o devir histórico de certos eventos é representado socialmente a partir da literatura, que é associada diretamente à ideia de uma narrativa eivada de subjetividades, simbolismos e posições sobre determinado acontecimento ou conjunto de acontecimentos. Nesse caminho, o historiador Antônio Celso Ferreira em A Fonte Fecunda2implica que “Afirmar que a literatura integra o repertório das fontes históricas não provoca hoje qualquer polêmica, mas nem sempre foi assim. Mais do que isso, nas últimas décadas, os textos literários passaram a ser visto pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo.”3

O presente artigo pretende se debruçar sobre as experiências autoritárias de Cuba – sob o regime de Fidel Castro, instaurado após a Revolução Cubana de 1959 - e do Chile – sob o presidente Augusto Pinochet, após o Golpe de 1973 que depôs o presidente Salvador Allende - , a partir da análise crítica da obra literária de Roberto

1

WHITE, Hayden. Meta-História: A imaginação histórica no século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995. FERREIRA, Antônio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA, Tânia Regina de. Os Historiadores e suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2009. pp.61-91. 3 Ibidem. 2

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Ampuero4 – Nossos anos verde-Oliva (Nuestros años verde olivo). Através do romance biográfico de Ampuero iremos pensar a noção de memória5 acerca do regime de Fidel Castro, do Golpe de 1973 que elevou Pinochet à presidência do Chile e do conflito bipolar da Guerra Fria que propulsionou diversas experiências políticas autoritárias e ditatoriais6 na América Latina, sobretudo. O que se quer aqui é demonstrar como ambas as experiências históricas constituíram (e, constitui, no caso cubano) regimes autoritários, como se deu a subida e permanência ao poder, entendendo tais governos como produtos sociais. Nesse sentido, nos utilizaremos do duplo eixo analítico proposto por Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, em A construção social dos regimes autoritários7: 1) como um regime autoritário/ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade; 2) como os valores desses regimes autoritários/ditatoriais estavam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi antes o resultado da própria construção social. Não deixaremos de abordar também, mesmo que brevemente, as questões atinentes à memória desses regimes, como se constitui a obra literária aqui analisada. Para além de toda uma discussão em torno do conceito(s) definidor(es) de tais regimes, pretendemos nos referir às experiências quanto ao seu caráter repressivo, nocivo às liberdades individuais e coletivas, suas ideologias legitimadoras e seus líderes carismáticos ou não. Utilizaremos, então, tanto o termo ditadura quanto regime

4

Roberto Ampuero é um dos autores mais significativos de toda a América Latina. Ampuero nasceu em Valparaíso, no Chile, ano de 1953. Permaneceu exilado em Berlim Oriental após o Golpe que instaurou a ditadura de Augusto Pinochet, radicou-se em Cuba, até mudar-se para os Estados Unidos da América. É, atualmente, embaixador do Chile no México e professor de escrita criativa e redação na Universidade de Iowa (EUA). 5 Apesar do presente esforço historiográfico aqui proposto perpassar pela noção de memória, afinal de contas, a obra literária em discussão é um romance biográfico e, portanto, parte importante do que Michael Pollak em Memória, Esquecimento, Silêncio (Rio de Janeiro. Revista de Estudos Históricos, Vol. 2, n.3, 1989, páginas 3 - 15) irá chamar de memória coletiva e memórias subterrâneas, a construção de memória não é discussão principal. 6 As discussões sobre a conceituação acerca da natureza das diversas experiências políticas do século XX partem das reflexões teóricas de Hanna Arendt em Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo (Companhia das Letras. São Paulo, 1998). Neste trabalho, Hanna Arendt toma o conceito de totalitarismo e o considera como definição de um sistema político no qual o Estado detém o domínio completo sobre a sociedade a qual está imposto e mesmo à vida particular dos indivíduos constituintes da mesma. O conceito de totalitarismo, entretanto, foi construído a partir de uma discussão que teve, como horizonte principal de observação, a Alemanha Nazista de Adolf Hitler (1933 1945) e o governo de Josef Stálin na Rússia Soviética. A partir de então, diversos estudiosos do tema começaram a considerar a necessidade de novos eixos e paradigmas conceituais para tentar determinar a essência e dinâmica de diversas experiências autoritárias, sobretudo na América Latina. Logo, hoje é possível e necessário trabalhar com os conceitos de ditadura, autoritarismo e totalitarismo, tendo em vista as especificidades de cada regime político-social posto em análise. 7 ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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autoritário, porque compreendemos aqui que não há uma distancia inconcebível entre ambos, e são capazes de dar conta do discurso sobre os processos históricos.

Da Obra

Ao propor a presente análise literária da obra Nossos anos verde-Oliva, de Roberto Ampuero, precisamos entender o contexto de produção, quais fatores propiciaram a publicação da obra, tendo em consideração sua motivação social e seu efeito no mesmo sentido, pois como refletiu Antonio Cândido em Literatura e Sociedade8: (...) a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprime na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando nele o sentimento dos valores sociais9.

Nuestros años verde olivo (título original da obra) teve sua primeira edição em 1999, pela editora Planeta, no Chile. No Brasil teve sua primeira edição no recente ano de 2012 pela editora Benvirá, traduzido por Luis Reyes Gil. A publicação dessa obra de Roberto Ampuero é significativa do ponto de vista do momento de fala. O fim do século XX presenciava todo tipo de deflagração aos regimes ditatoriais; estava em pauta (e ainda está até os dias de hoje) o debate sobre consentimento, legitimação e consenso, bem como as questões em torno da memória. Precisamos lembrar também que o fim do regime de Augusto Pinochet era recente (1990).O romance biográfico de Ampuero é importante pois, além de aludir a ditadura chilena de Pinochet, retrata, às próprias impressões, a ilusão do Regime Castrista após a Revolução Cubana de 1959. Roberto Ampuero faz parte dos escritores da escola literária pós-moderna. Ainda há uma discussão entre literatos e intelectuais sobre situar ou não as obras pósmodernas como uma escola literária. Existem várias vertentes de escrita dentro da escola pós-moderna. Enquanto o Concretismo consolidava suas características na poesia, a prosa pós-modernista seguia por diferentes estilos, marcada por tendências diversas: regionalista, urbana, intimista, política, realista-fantástica, além de crônicas e contos. O pós-modernismo, em todas as áreas da cultura, se configura uma mistura, um “boom” de diversos assuntos, estilos e interesses. É sintomático do mundo que emerge 8 9

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro. Ed.: Ouro sobre Azul, 2006. CANDIDO, Op.cit., p.29.

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após os anos 1950; é o mundo do pós-guerra, da polarização política e da verdadeira convergência de estruturas culturais. Nesse sentido, o romance biográfico Nuestros años verde olivo surge como corolário dessa nova vertente, explorando o sentido político, e por consequência, social e econômico. No entanto, podemos perceber que não há uma marcada característica dessa escola literária, justamente porque é – em contraposição – movimentação do diversionismo. Roberto Ampuero Espinoza nasceu em Valparaíso, Chile, em 1953. Criado por uma família pequeno-burguesa que se inclinou para a direita, Ampuero estudou alemão na Deutsche Schule de Valparaíso (DSV)e tornou-se um militante político de esquerda em apoio a Unidade Popular de Salvador Allende. Contudo, após o Golpe de 1973, quando Pinochet tomou o poder e instaurou um governo de cunho autoritário, o escritor – na época apenas estudante – viu-se obrigado a pedir asilo político, indo parar na Alemanha Oriental. Estudando em Leipizig, na Karl Marx Universität, conheceu a filha de um comandante cubano que trabalhava na embaixada, em Moscou. Envolvendo-se em um caso amoroso Ampuero parte para Cuba onde recebe asilo político. Nos anos subsequentes o autor, que sentirá a decepção política com a Revolução Cubana tentará a saída da Ilha até voltar à Alemanha Oriental e, dali, atravessar para a parte ocidental onde escreve seus dois primeiros romances policiais (gênero predominante dos livros de Ampuero) que só serão publicados posteriormente. Voltando ao Chile em 1993, o escritor passa pela Suécia e depois irá morar nos Estados Unidos. Roberto Ampuero, atualmente, além de ser escritor pós-modernista com treze obras publicadas, é reconhecido mundialmente por seus muitos prêmios e seu trabalho em relação à propaganda da cultura no Chile e, de alguma forma, nos Estados Unidos, onde é embaixador chileno. O seu trabalho de 1999 se destaca em relação a seus outros livros por seu gênero biográfico e por ser um importante testemunho, não só sobre o Regime Cubano, mas sobre os anos da ordem bipolar mundial, sendo o livro que teve mais traduções pelo mundo. Ainda percebemos a característica principal que, ao lançar breve atenção sobre as obras de Roberto Ampuero, podemos notar ser predominante em todas as suas obras que é o estilo de sua escrita – o romance policial. Essa tendência é típica da influência contextual do autor, pois ele viveu o auge dos romances policiais e de espionagem à égide da Guerra Fria. O livro Nossos anos verde-Oliva narra a história que viveu Roberto Ampuero desde sua saída do Chile, após o Golpe Militar de Augusto Pinochet que derrubou a 60 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


Unidade Popular de Salvador Allende. Em Leipzig, Alemanha oriental, Roberto estudará na Karl Marx Universität e conhecerá Margarita Cienfuegos10, filha do comandante cubano e embaixador em Moscou Ulisses Cienfuegos. Envolvido em um romance a personagem principal recebe asilo político em Cuba onde se casa com Margarita e, meses depois, nasce o filho do casal. Ao passar dos anos, mesmo trabalhando em Cuba e estudando o nível superior, Roberto irá perder a ilusão do regime socialista, estando em contato direto com a camada dirigente do governo ele perceberá as rupturas ideológicas, se fatigará da penúria econômica em que vive a Ilha e, assim, seu casamento irá ruir. Sem poder manifestar seu descontentamento político e suas “quedas” pela literatura proibida pela administração Roberto presenciará diversos episódios de repressão a cidadãos cubanos e asilados políticos, bem como conhecerá o sofrimento dos gusanos11, a perseguição política e os mecanismo sombrios para conter o “diversionismo ideológico”. Assim, Roberto começa a ansiar pela saída de Cuba, ao que se colocam muitas dificuldades devido à sua situação de estrangeiro com passaporte vencido e seu conflito com a família Cienfuegos. Ao desenrolar dos acontecimentos a decepção de Roberto aumenta, não apenas em relação a Cuba, mas também à sua organização política – a Jota, que representa a resistência socialista chilena que tinha seus polos em vários países socialistas. Ao discordar dos trâmites partidários, principalmente em relação à recém-montada FAR (Fuerzas Armadas Revolucionarias), pede saída do partido. O seu desespero e agonia de estar preso à Ilha aumentam a cada dia e novos episódios reafirmam esses sentimentos. Graças ao festival de comemoração da Revolução, diversos grupos e partidos, bem como turistas socialistas, visitam Cuba e Roberto se reencontra com um antigo compatriota – Alberto Arancibia – que era líder da UJD na Alemanha Oriental, uma resistência chilena de tendência social-democrata. Assim, ele tenta com o auxílio de Aranciabia uma saída por vias legais de Cuba – visto que intentava sair com uma balsa pelo mar rumo à Miami. Durante o tempo em que espera uma carta de salvo-conduto para poder sair do país – o que demora meses – o seu desespero aumenta e ele é levado ao total desespero. Quando a embaixada peruana é invadida e essa decide dar asilo político para cubanos a situação torna-se insustentável em Havana e Roberto presencia 10

Todos os nomes de personagens foram alterados e por isso são meras ficções. O autor decidiu trabalhar dessa forma, pois várias pessoas retratadas na história ainda fazem parte do governo cubano e poderiam ser comprometidas pelo relato. 11 Gusanos – expressão pejorativa usada em Cuba para designar aqueles que se opõe ao governo castrista.

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cenas de violência como vira anos atrás antes de sair do Chile. Ele sentira estar preso para sempre na Ilha. Como vemos, ele consegue sair de Cuba pelo intermédio da UJD de Arancibia, até que sairá para o mundo ocidental definitivamente. As personagens principais desta história são Roberto Ampuero, Margarita Cienfuegos e seu pai Ulisses Cienfuegos. Apesar deste último não aparecer com grande evidência na breve exposição acima, no papel de comandante e homem próximo a Fidel Castro ele foi o elemento propiciador dos primeiros questionamentos de Roberto por ser um homem duro, cruel, calculista e por se envolver em fuzilamentos e prisões que chocaram seu genro. Roberto, um jovem iludido, ingênuo e pacífico se torna cada vez mais consternado com as atitudes de sua mulher ao longo do enredo – Margarita – que abandona a posição crítica e “os olhos brilhantes”12 para se entregar ao serviço pela revolução de modo acrítico e passional. A personagem principal é uma só, com o aparecimento, ao longo da narrativa, de várias personagens secundárias e típicas que nos ambientam ao lugar e momento de fala da história. A narrativa de Ampuero mescla elementos de um tipo linear e retrospectivo, criando uma expectativa pelo desfecho e acaba por ser um recurso muito bem utilizado, pois transmite ao leitor a sensação vivida pelo autor, de espera, agonia; ao mesmo tempo em que trabalha episódios mais ou menos independentes Roberto Ampuero nos transmite a ideia base: a tormenta de viver recluso em um país de regime fechado, situação econômica precária e sentimento de insegurança e medo sociais. Em seu enredo, constatamos:

Com o passar dos dias, fui descobrindo com angústia que, embora me esforçasse para escolher bem as palavras e dar descrições precisas, era incapaz de transmitir de forma cabal a meus pais o que significava viver no socialismo. Só aqueles que viveram nele e experimentaram na própria carne as penúrias provocadas pela escassez cotidiana, a regulamentação extrema de todas as esferas da vida e a mensagem messiânica de um governo sem oposição entendem o que é o socialismo e a dolorosa marca que imprime na pessoa para sempre13.

Ao longo de quase toda a narrativa temos a sensação de estática, como se o tempo houvesse parado e um eterno ciclo de acontecimentos repetitivos o que é um recurso do autor que nos demonstra como a Ilha estava parada no tempo e como viviam sem novas perspectivas as pessoas ali. Apenas temos a sensação de avanço, de 12 13

AMPUERO, 2012. AMPUERO, Op.cit., p.210.

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mudança, quando dos capítulos finais que Roberto espera pela saída para integrar-se à UJD na Alemanha Oriental e a narrativa torna-se precisamente linear, progressiva, com diversos acontecimentos extraordinários até que enfim alcança seu objetivo. Assim o tempo nesta narrativa não é cronológico e sim psicológico, medido a partir dos sentimentos do personagem principal. O ambiente da história é, no início do livro, retratado pela sua beleza paradisíaca, pelas pessoas felizes com o regime castrista e pelas reverberações políticas. Ampuero chega a dizer: “Agora, nesta terra imensamente verde, de morros suaves, céu azul e gente alegre, começa uma nova etapa de minha vida (...)”14. No entanto, ao avançar da história temos uma mudança de perspectiva e o ambiente começa a ser descrito a partir do descontentamento que se instaura no autor: o calor intenso e inquietante, a atmosfera irrespirável, as filas de víveres, as construções decadentes, os utensílios domésticos que não funcionam. E essa mudança é também consequência da alteridade de meio social, pois se no início Roberto estava em contato com a administração do regime, os setores diplomáticos e as lideranças políticas, ao fim ele irá conviver com a massa, com os pobres, com as pessoas pelas quais o governo havia se estabelecido, mas que eram privadas de direito de expressão, da liberdade e do desfruto do desenvolvimento econômico – inexistente na Ilha. Como a narrativa tem a intenção de transmitir as sensações e os sentimentos o autor recorre sempre ao uso de um tipo específico de figura de linguagem, a metáfora. Do ponto de vista técnico a forma de narrar – narrador empenhado – onde ele é a personagem principal e não reconhece as “verdades alheias”, não é onisciente, não sabe as verdadeiras intenções e os sentimentos das outras personagens. Essa escolha é típica do estilo biográfico. O discurso utilizado pelo autor mescla o discurso direto e o discurso indireto. Esse recurso traz maior dinâmica à história e é comum em narrativas biográficas. Com uma mensagem que veicula valores políticos, morais e sociais, ficando claro seu apelo por liberdades, direitos humanos, representação política e auxílio mútuo, o livro de Roberto Ampuero foi sucesso de crítica e vencedor de prêmios. Nuestros años verde olivo foi bem recebido não só por seu vigor literário, mas por sua característica política, sendo louvado por literários como Mario Vargas Llosa15 e Heberto Padilla16 14

AMPUERO, Op.cit., p.70. Mario Vargas Llosa é um importante intelectual latino-americano. Muitas de suas obras refletiram sob o espectro político, social e cultural dos países latino-americanos. Sua obra mais recente é o livro A 15

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que conheceram bem a repressão em torno das artes em geral praticadas pelo governo cubano. Ampuero reflete sobre essa repressão, dizendo o seguinte Uma das questões que surgem ao conhecer as reflexões políticas de autores como Milan Kundera, Heberto Padilla ou Herta Müller, que viveram em regimes socialistas reais, é como se pode depois manejar essa experiência produtivamente em termos literários. (...) Suspeito que o melhor antídoto para essa dor – causada por quem monopoliza sua pátria e emprega seus símbolos, sua história e seus recursos para reprimi-lo e desprestigiá-lo – é escrever sobre a própria experiência que a originou. Trata-se, ao que parece, de converter a dor em memória, em literatura, em resistência17.

Esses aspectos trazem para o cerne da crítica o que anteriormente havíamos colocado sobre a memória. Um importante elemento que se coloca ao analisar um romance de tipo biográfico, como este, é questão da disputa de memória, situação incontornável em todas as realidades nacionais, mas, sobretudo, naquelas que foram assoladas por regimes de natureza autoritária e repressiva. É, precisamente, o conflito que se impõe entre memória coletiva, memórias individuais, e, mais apuradamente, memórias subterrâneas. O exemplo do livro de Ampuero é significativo para pensarmos como se conforma, grosso modo, os espaços de disputa entre uma memória oficial/coletiva e uma memória individual/subterrânea. Para Michael Pollak, a função desse tipo de discurso memorial, importa que

(...)Esses exemplos tem em comum o fato de testemunharem a vivacidade das lembranças individuais e de grupos durante dezenas de anos, e até mesmo séculos. Opondo-se a mais legítima das memórias coletivas, a memória nacional, essas lembranças são transmitidas no quadro familiar, em associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou política (...)18.

Civilização do Espetáculo: Uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura, publicado no Brasil em 2013, pela editora Objetiva. O livro discute as metamorfoses que incidiram sobre a noção/conceito de cultura, trazendo o advento da mídia e seus diversos desdobramentos para o centro do debate. Os regimes autoritários de toda natureza (populistas, regimes militares, ditaduras personalistas, etc.), que eclodiram por toda a América Latina no século XX, e existem ainda hoje no século XXI, são elencados como principais espaços de metamorfoses da cultura, propiciando uma cultura midiática que os favoreceu. 16 Heberto Padilha aparece enquanto personagem do romance de Roberto Ampuero. O autor narra e dá vida, em seu livro, às experiências do poeta Padilha. Nossos Anos Verde-Oliva conta o drama de Heberto Padilha em seu exílio, durante quase uma década, dentro de Cuba, a proibição que lhe era imposta quanto ao seu exercício de poeta e marginalização de suas obras, como foi o estopim com o livro de poemas Fuera del Juego. Heberto Padilha – conta Ampuero – conseguiu sair da Ilha contando com a intervenção do senador norte-americano Edward Kennedy junto a Fidel Castro. Nos EUA, Heberto Padilha lecionou em diversos colégios e universidades. Morreu em 25 de setembro de 2000, no estado do Alabama. 17 AMPUERO, Op.cit., p.479. 18 POLLAK, Op.cit., p.8.

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E, ainda, citando os mecanismos psíquicos de Claude Olievenstein19, Pollak nos faz pensar sobre as questões colocadas pelo próprio autor do romance em questão, sobre a sua escolha pelo gênero literário:

A linguagem é apenas a vigia da angústia (...) Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser posto a distância. É aí que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior20.

Assim, o regime político cubano sob Raúl Castro relegou a obra a ilegalidade, sendo proibida a circulação em Cuba apesar de ter posado para fotografia junto à expresidente do Chile – Michelle Bachelet – na feira do Livro em Havana, 200921. Roberto Ampuero afirma, em capítulo dedicado à construção da obra Nossos Anos Verde-Oliva

Não consigo, porém, voltar à Ilha. A publicação deste romance autobiográfico, escrito originalmente para minha mulher, meus filhos e meus pais, irritou de tal modo o regime que desde então minha entrada em Cuba está proibida. É uma represália dolorosa (...)Uma represália que me une à diáspora de milhões de cubanos que perambularam pelo planeta privados de sua pátria22.

Essa proibição se dá por razões óbvias: o relato contido no livro revela uma face do regime cubano dos anos 1970 que expõe seu caráter autoritário e repressivo, como significou para Ampuero e muitos outros indivíduos, constituinte de um Estado de Exceção.

19

OLIEVENSTEIN, Claude. Les non-dits de l'émotion, Paris. Odile Jacob, 1988. Apud: POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2. n. 3, 1989, p.3- 15. 20 POLLAK, Op.cit., p.8. 21 Na foto mencionada, Raul Castro (irmão de Fidel Castro), está com Nuestros Años Verde-Olivo em mãos, junto à ex-presidente chilena Michele Bachelet (reeleita à presidência do Chile no ano de 2013), na feira do Livro de Havana, em 2009. O livro está censurado em Cuba e Roberto Ampuero não pode entrar na Ilha desde a publicação de seu romance. Apesar da situação o governo cubano tenta mostrar à imprensa internacional que o livro circula livremente no território cubano. “(...)Os exemplares do livro se esgotaram em questão de minutos no estande do Chile daquela feira, adquiridos, segundo a imprensa, por leitores entusiastas e por discretos indivíduos de cabelo curto, óculos e guayabera, que agiam de maneira previamente combinada.” (Apud. AMPUERO, Roberto. “Iconografia/Documentos”. In: Nossos Anos Verde-Oliva. São Paulo: Benvirá, 2012) 22 AMPUERO, Op.cit., p.473.

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Cuba e Chile: diferentes/semelhantes apenas no plano conceitual?

Para começar aqui uma discussão que imediatamente se propôs devemos pensar, ademais, sobre as categorias conceituais exploradas no trabalho de Denise Rollemberg e Samantha Quadrat23. Nunca houve, entre os historiadores, um horizonte comum quanto ao entendimento em relação a um regime – se era autoritário ou mesmo uma ditadura. A Cuba castrista, por exemplo, é um bom exemplo desse problema. Uma ditadura alude um sistema repressivo, coercitivo, sem nenhuma representação e perspectivas sobre ela; remete, sobretudo, a algo imposto, manipulado e imoral. A partir das definições de Newman24poderíamos ter, para o caso chileno, uma ditadura tipicamente simples, onde o governo tem o controle da polícia, do exército, da burocracia e do judiciário, somando se a características da ditadura cesarista, onde o apoio ao governo e o culto ao líder são indispensáveis. Logo, em Cuba haveríamos de ter uma ditadura cesarista. Em contrapartida, o trabalho de Stoppino25classificaria o governo chileno de ditadura reacionária e, o cubano, ditadura revolucionária. No entanto, ao analisar as experiências cubana e chilena – a primeira ainda mais que a segunda – percebemos que as aspirações em torno da chegada ao poder por tais governos/governantes estiveram todo tempo legitimada pela participação social. Portanto, o que se quer entender aqui é como chegamos a ditas conjunturas históricas e como se conformou a fisionomia desses regimes ao suceder dos anos; não se trata de estabelecer semelhanças e diferenças, entre Cuba e Chile, no plano conceitual. Como bem podemos observar, nos amparando mesmo no relato da obra de Ampuero, Fidel e Pinochet galgaram o poder em conjunturas (guardadas as devidas proporções e momentos históricos) muito semelhante do ponto de vista estrutural, marcado pela insatisfação/contestação dos governos anteriores. O trabalho de Daniel Aarão Reis26 é muito importante para trabalharmos a questão do consenso em torno do regime cubano. Como o historiador aponta o processo revolucionário esteve apoiada sobre os mais variados setores sociais. A proposta da

23

ROLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos Regimes Autoritários. Legitimidade, Consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 24 Idem. 25 Idem. 26 REIS, Daniel Aarão. A Revolução e o socialismo em Cuba: ditadura revolucionária e construção do consenso. In: ROLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos Regimes Autoritários. Legitimidade, Consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp.364.

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Revolução de 1959 se mostrou capaz de reunir os diversos interesses em uma mesma pauta política, o que conferiu consentimento ao novo sistema. O uso da história, do passado, do futuro, de heróis nacionais para criar um consenso e uma identidade em torno da causa, como é o caso da figura de José Martí. O governo de Fidel Castro sobe ao poder sob a prerrogativa de construir uma Cuba livre, independente, sem clivagens sociais

e

sem

o

medo

do

domínio

Americano.

Em

suma,

a

ditadura

revolucionária/cesarista sobe ao poder por meio de um “compromisso social”. Nesse mesmo caminho nos aproximamos do Chile, a partir das perspectivas lançadas pelo trabalho História del Siglo XX Chileno – Balance paradojal27. Pinochet sob ao poder a partir de um Golpe de Estado (11/09/1973) que depõe a Unidade Popular de Salvador Allende. Como aponta a obra Nossos anos verde-oliva, o Chile entra em um processo de viragem política devido a própria conjuntura nacional, sua economia fragilizada, o descontentamento social, a decepção em torno dos projetos da Unidade Popular. Augusto Pinochet não sobe ao poder sozinho: uma maioria apoia seus atos a partir do já chamado “compromisso social”. Nesse sentido, aproximamos Cuba e Chile, ao menos quanto à instauração dos referidos governos. Mas ainda fica a pergunta: como dois regimes de diferentes orientações políticas (esquerda e direita) podem ser comparados dentro de um quadro comum? É justo isso que pretendemos destacar aqui. As especificidades só demonstram o caráter e conjuntura nacionais de cada país, essas, tão logo, só corroboram para entender o processo histórico de cada um em separado, pois

na verdade não

influem

na

forma

de

governo

vigente:

o regime

ditatorial/autoritário. Como observamos quando da leitura do romance biográfico, o sistema, o aparelho de Estado e as configurações dos pós-consolidados governos são muito parecidas, quando não idênticas. Ampuero sinaliza o controle da sociedade, das idas e vindas, do cerceamento total da liberdade que se estabelece em ambos os governos. A oposição é reprimida, perseguida, presa. A literatura é controlada e deve ser sempre a favor do sistema – como o slogan de Fidel, “Dentro da Revolução, tudo; contra a revolução, nada”. Ainda sobre esse aspecto, o trabalho Fidel Castro28é importante ao abordar as palavras de Fidel aos intelectuais cubanos, onde o controle das ideologias grassava as mais simples manifestações culturais. Esse dois governos se entronizaram 27

SUTIL, Sofía Correa; GARVAGNO, Consuelo Figueroa; LETELIER, Alfredo Jocelyn-Holt; CRUZ, Claudio Rolle e URRUTIA, Manuel Vicuña. História del siglo XX Chileno – Balance Paradojal. Santiago: Sudamerica, s/d. 28 SADER, Emir & FERNANDES, Florestan. Fidel Castro - Política. São Paulo: Ática, 1986.

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(Cuba, de forma muito mais intensa) na vida social; dissolveram o indivíduo nos propósitos estabelecidos. Ambos assinalaram um viés de cunho democrático, mas logo nos momentos imediatos e ao longo dos anos as liberdades democráticas passaram a ser suplantadas face às necessidades de fortalecimento/permanência dos regimes. As duas ditaduras sobem ao poder no contexto da Guerra Fria, expressam, portanto, a aproximação às duas potências beligerantes do mundo de meados/fins do século XX – Estados Unidos e URSS – e acabam fomentando a via autoritária que mantém a sociedade sob rédeas curtas contra o opositor comum – seja o imperialismo ou o comunismo. É importante também pensar o importante relato que consta na narrativa de Nossos anos verde-Oliva: às vésperas de sua tão almejada saída da Ilha socialista Ampuero se vê frente ao que anos antes havia presenciado no Chile. Quando Pinochet sobe ao poder a resistência popular vai às ruas em protesto, tenta convocar a população para se unir contra o novo governante. No entanto, essa militância encontra violência absurda por parte dessa mesma população e uma cena de massacre é protagonizada, e fica claro o apoio social ao governo de Pinochet. Já em Cuba, quando da crise diplomática com a embaixada do Peru, onde vários cidadãos cubanos ao saberem da possibilidade de asilo político se colocaram em uma intensa movimentação em Havana para sair do país, a reação social aos traidores foi imensamente violenta e, as cenas de morte presenciadas por Roberto Ampuero, no Chile, se repetiam na maior das Antilhas. A passagem do livro, confirma

Permaneci na calçada, rodeado de milhares de pernas e pés, ouvindo as batidas do tambor batá que ressoavam torturando meu coração e meu cérebro, causando-me náuseas assustadoras, como as daquela maldita rua de Santigado [do Chile], náuseas que subiam, queimando e dilacerando meu peito29.

Isso mostra como os valores desses regimes estavam presentes na sociedade, e que o estabelecimento dos mesmos se deu através de ideologias que beberam da própria moral, dos valores e ideais comuns que repercutiam nas mentes locais. É esse caráter de consenso que aponta tais regimes como construções sociais. Em suma, muitos são os aspectos que devem ser abordados sobre ambos os regimes. Contudo, um esforço de comparação entre as duas experiências – feito de forma cabal – não cabe no presente trabalho. Entretanto, para o que aqui se projetou –

29

AMPUERO, Op.cit., p.459.

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aproximar o Chile de Augusto Pinochet e a Cuba de Fidel Castro a partir da literatura de Roberto Ampuero – nos contentamos em apontar apenas as características mais importantes que permitiram vislumbrar uma semelhança nas formas de governo. É necessário ainda que se reflita sobre as condições atuais de tais países, pois o Chile conta agora com vários grupos chamados neo-nazistas, Cuba permanece fechada para o mundo (os seus cidadãos) e agora entra em um novo estágio em seu governo ditatorial – de governo fidelista passa-se a falar em ditadura dos irmãos Castros, devido a assunção de Raúl Castro (irmão de Fidel) ao poder cubano. Roberto Ampuero fala sobre suas experiências com a seguinte perspectiva

Poderia dizer que foi a ameaça de ambas as ditaduras latino-americanas o que terminou por converter minhas memórias em um romance autobiográfico, ou que o texto inicial optou por mudar de gênero para continuar contando sua verdade. Reitero que cheguei à Ilha de Fidel Castro fugindo de Augusto Pinochet. A ilha era então a minha utopia. Pinochet, o meu pesadelo. A experiência me ensinaria que ambos eram ditaduras, e que não há ditaduras boas nem justificáveis. Todas são perversas e nocivas, inimigas do ser humano e de sua liberdade30.

Precisamos pensar em que medida a memória, o consentimento e o consenso ainda fazem pairar sobre esses países a sombra do autoritarismo, quando não na forma de governo, nas ideologias de pequenos grupos organizados, caso do Chile. Essas experiências vividas, sentidas, durante anos e anos por ambas as nações, são um importante campo de estudos para investigar de que forma a identidade nacional desses países foi marcada durante esses regimes, qual legado foi deixado para a prática cidadã e política e, ainda, quais heranças se fazem sentir no plano cultural.

BIBLIOGRAFIA:

AMPUERO, Roberto. Nossos anos verde-oliva. São Paulo: Benvirá, 2012.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ed.: Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

30

AMPUERO, Op.cit., p.477.

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FERREIRA, Antônio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi & LUCA, Tânia Regina de. Os Historiadores e suas Fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

REIS, Daniel Aarão. A Revolução e o socialismo em Cuba: ditadura revolucionária e construção do consenso. In: ROLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos Regimes Autoritários. Legitimidade, Consenso e

consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2010.

ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

SADER, Emir & FERNANDES, Florestan. Fidel Castro - Política. São Paulo: Ática, 1986.

SUTIL, Sofía Correa; GARVAGNO, Consuelo Figueroa; LETELIER, Alfredo JocelynHolt; CRUZ, Claudio Rolle e URRUTIA, Manuel Vicuña. História del siglo XX Chileno – Balance Paradojal. Santiago: Sudamerica, s/d.

Artigo recebido em: 01 de outubro de 2013 Aprovado em: 12 de novembro de 2013

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O RETORNO DAS BIOGRAFIAS ATRAVÉSDE UM PRISMA PROBLEMATIZADO OU ULTRAPASSANDO OS LIMITES DA SOLIDÃO Leandro Couto Carreira Ricon* RESUMO: Escrita histórica comum desde a Antiguidade, as biografias alcançaram destaque durante a transição do século XVIII para o XIX principalmente pela ampla individualização que as sociedades europeias passavam neste momento. Após certo tempo, este gênero acabou saindo da cena da produção histórica entrando em certo interregno historiográfico apenas retornando a partir do final da década de 1960. Assim, o trabalho aqui apresentado objetiva fazer um apanhado da situação do gênero biográfico demonstrando a sua presença ao longo do tempo; objetiva, também, demonstrar os problemas teórico-metodológicos que esta forma encontra em nosso tempo presente. Principalmente a necessidade de problematização social dos indivíduos biografados. PALAVRAS-CHAVE: Abordagens Historiográficas Contemporâneas; Biografias; Teoria e Metodologia da Produção do Conhecimento Histórico. ABSTRACT: Model of common historical writing since antiquity, biographies achieved a prominent position during the transition from the eighteenth to the nineteenth motivated primarily by the personalization that European societies passed this time. However, after this time, this genre ended up leaving the scene of historic production entering certain interregnum historiographical just returning in the 1960s. Thus, this paper aims to do an outline of the situation of the biographical genre demonstrating its presence over time, also aims at demonstrating the theoretical and methodological problems that this form of historical writing is in our present time. KEYWORDS: Contemporary Historiography; Biographies; Theory and Methodology of History.

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Doutorando e Mestre em História pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ), na linha de Poder e Discurso. Especialista em História Social pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Graduado em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Interessado em pesquisas acerca de Teoria e Filosofia da História, Historiografia e da relação músicasociedade a partir do século XVIII. Este trabalho conta com o apoio da CAPES.

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Em seu estudo acerca do gênero biográfico, o historiador francês François Dosse (2009: 19) afirma com certo humor irônico: “não contem para minha mãe que sou biógrafo: ela pensa que sou historiador”. Esta afirmação, baseada na própria prática deste historiador em escrever biografias, como as de Michel de Certeau e de Paul Ricoeur1, encerra algumas reflexões acerca dos estudos biográficos ao longo do século XX. Pensemos em duas, que estão estritamente interligadas: em primeiro lugar, demonstra que em alguns núcleos acadêmicos ou mesmo perante certa parte do público em geral ainda impera uma negação das pesquisas biográficas e, em segundo lugar – e como consequência direta da primeira –, a biografia aparece como gênero relegado às curiosidades, sem valor documental, principalmente de caráter historiográfico, uma pequena História. Devemos, contudo, compreender esse gênero de escrita que é um dos mais expressivos – e debatidos – de nosso tempo presente. As narrativas de histórias de vidas (biografias) surgiram na Grécia antiga ao mesmo tempo em que surge a História como ramo de conhecimento. Neste momento do passado humano estas escritas servem a uma ordem propedêutica, de ensinamentos mínimos ao cidadão do contexto social e político. Daniel Madélenat (1984), ao dividir a escrita biográfica em três momentos2, afirma que a biografia entre a Antiguidade e o século XVIII mesmo sofrendo variegadas modificações mantém a lógica de instrumentalidade e finalidade e, acerca da escrita biográfica da Antiguidade ainda demonstra que essa modelagem de estudo surge após o declínio da polis, mesmo momento em que a vida coletiva vai se esvaindo, surgindo, assim, por exemplo, as biografias elogiosas – encomion (ἐγκώμιον) – principalmente políticas e unidas à memória. Nesta Antiguidade encontramos, por exemplo, Cornélio Nepote que, com seu De viris illustribus3, acabaria influenciando outros autores, como é o caso de Suetônio e seu De vita Caesarum4e de Plutarco, um dos principais autores do gênero e o primeiro a 1

Cf.: Paul Ricoeur: les sens d’une vie (1913-2005). Paris : La Decouverte, 2008. Michel de Certeau: el caminante herido. Buenos Aires: Universidad Iberoamericana, 2000. 2 Madélenat, buscando uma conciliação teórica entre a Biografia e a História, divide as biografias em três momentos: em primeiro lugar, se prolongando desde a Antiguidade até o século XVIII, encontramos as biografias clássicas, que possuem uma instrumentalidade e finalidade determinadas; em segundo lugar, encontra-se o paradigma romântico, preferindo uma leitura das personagens mais fiel à ‘verdade’, se estendendo entre a transição do século XVIII-XIX e o momento em torno da Primeira Guerra Mundial; por último, localizamos as biografias modernas, que são aquelas nas quais se encontra o direito à imaginação, mesclando características de objetividade científica e narratividade ficcional, sofrendo interferências, portanto, da sociologia e da psicanálise. 3 As vidas ilustres 4 A vida dos doze Césares

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escrever biografias a partir de uma abordagem comparativa, ou algo próximo a tal. Nestes estudos, comparando personagens gregas e personagens romanas, ocorre um confronto simbólico entre as duas principais culturas de seu momento, a Grega e a Romana. Este autor, nascido em torno do ano de 46 em Queronéia e sua principal obra, Vidas Paralelas, acabou ficando conhecido pela pluralidade de personagens analisados, incluindo, nestes, homens públicos reconhecidos, na época, por sua maldade, uma inovação para o modelo5. Associando o público com o privado, sua linguagem possui um pleno sentido dramático que acaba por conduzir sua narratividade. Tal característica fazia-se necessária para os anseios biográficos do contexto, bem como a junção da ética com a verdade e com a política. Esta modalidade de escrita, no entanto, encontrou certa resistência e não era tida como algo próximo à História desde seu surgimento. Tucídides em sua obra A Guerra do Peloponeso já percebe problemas nesta modalidade, assim como Tito Lívio. Políbio, em suas Histórias, já demonstra, por sua vez, a distinção entre História e Biografia e o próprio Plutarco, que além de marcar que escreve suas obras por puro prazer, marca que seus personagens devem ser compreendidos enquanto humanos. A partir disto, o próprio autor demonstra que percebe diferenças entre a biografia e a História ao longo de sua obra. A época seguinte, a Idade Média manterá a principal característica das biografias da Antiguidade: o cunho pedagógico. As biografias, nesta época, ainda servem para demonstrar à população como viver, mas com uma diferença: se na Antiguidade grega e romana a vida estava atrelada à prática política, na Idade Média passa a estar presa à moralidade religiosa cristã que se reafirmava cada vez mais em território europeu. Durante o medievo reina, então, as hagiografias já que a figura da santidade e do próprio santo, representativa do Bem numa visão maniqueísta, deve ser lembrada por ter vencido alguma adversidade. Este também é o momento das crônicas e já no século XIV, o escritor italiano Giovanni Boccaccio escreveu uma biografia de Dante Alighieri, Trattatello in laude di Dante6. Dante, morto há pouco, teve seu texto biográfico baseado, em grande parte, em documentos, uma característica inovadora da época, já que a Antiguidade tendia à analisar os relatos orais e mitológicos com mais influências de veracidade. 5

Plutarco chega a marcar determinadas curiosidades dos indivíduos já que, segundo ele, estas também vão construindo os atores, seu pensamento e seu espaço de atuação. 6 Tratado em louvor de Dante

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Ocorre, então, com a ascensão do Renascimento italiano uma modificação no padrão da escrita das histórias de vidas: surgem as primeiras biografias anedóticas, satíricas sem, contudo, perderem determinadas características educacionais, assim como as modelagens anteriores (BURKE, 1997). No renascimento, marcado, entre outros, pela impressão em série de textos, proporcionada pela imprensa de Gutenberg e a ‘redescoberta’ da Antiguidade, o indivíduo começa a ter e perceber sua importância fazendo com que os textos de memória ganhem relevância. Desta forma, as escritas acerca da vida de determinados indivíduos começam a se colocar como fonte para a História. Já no século XVI, Giorgiu Vasari escreveu seu texto Delle Vitae de’ più eccelelenti pittoti, scultori ed architettori7, demonstrando que as mais plurais personagens agora eram biografadas e mais, nestes textos, Vasari marca uma retomada da preocupação com as vidas particulares de seus atores. Por último, podemos marcar que, com o processo de individualização ocorrido na Europa durante o Renascimento, uma das práticas que se transformaram em comum foi a produção de autobiografias, ou seja, os indivíduos, sabendo de sua relevância, começam a produzir sobre si. Esta característica de produção autobiográfica acabaria se transformando em uma tônica para os estudos históricos das vidas privadas, principalmente no século XIX e final do XX. Após estas, o gênero biográfico não sofre profundas modificações até sua próxima guinada ocorrida apenas no processo de instauração de uma mentalidade iluminista nos produtores destes textos. Quanto a este momento, podemos lembrar da tentativa de reescrita da história de determinado personagem anulando, assim, seus defeitos, como fez o teólogo e bispo francês Jacques Bossuet, um dos primeiros a defender a teoria do absolutismo político, com suas Orações fúnebres. É um pouco após este contexto sociocultural, no ano de 1721, que ocorre a dicionarização da palavra ‘biografia’, designando, à época, “um gênero que tinha por objetivo a vida dos indivíduos” (DEL PRIORE, p.8). Neste século XVIII o herói político e ético antigo ou o mártir e santo medieval são substituídos pela figura dos grandes homens – aqueles que prestaram ou prestariam algum serviço para o seu grupo. Esta figura de grande homem reinará na historiografia até o gênero biográfico sofrer um interdito na passagem do século XIX para o XX. O século XVIII, porém, ainda veria uma grande inovação em nível de pensamento e de interpretação das existências: o Iluminismo. Este movimento em busca 7

Sobre a vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos.

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de uma racionalização do mundo modificou a estrutura das escritas biográficas existentes até então e se até o século XVIII as biografias da Antiguidade demonstram modelos de vida a serem seguidos, a partir do Iluminismo, elas se transformam num modelo narrativo a ser seguido (BARROS, 2010). Neste momento, iluministas como Voltaire e David Hume escrevem seus textos biográficos ou com aproximações biográficas8. Contudo não ocorre uma plena unidade nestas escritas: enquanto Hume, acreditando que a biografia cria uma possibilidade de auxílio para a compreensão total da História, escrevendo sua obra acerca de Carlos I da Inglaterra com uma caracterização heroica, Voltaire analisa Luís XIV e Carlos XII da Suécia de forma díspar (LORIGA, 1998). Ainda ocorriam, porém, divergências: enquanto Jean Jacques Rousseau acreditou na possibilidade e relevância do gênero escrevendo, por fim, sua autobiografia (Confissões); Diderot, por sua vez, afirmava que uma biografia nunca captará a essência de um indivíduo, ou seja, nunca será afirmada numa forma estritamente científica. O que, contudo, não necessariamente exclui a possibilidade de se biografar determinado indivíduo – ambos, Rousseau e Diderot, acreditam que o diálogo com o método é o melhor caminho para a pesquisa Histórica e para a execução das narrativas de vida (LEVI, 2008). Esta pretensão de rigor metodológico, começada tempos antes, já no início da Idade Moderna, faz com que, em 1791, James Boswell publique a sua Life of Samuel Johnson LL.D.9, texto este que possuía plenas pretensões de contar apenas a verdade evitando as adulações, tão comuns nesta época – para isso, por exemplo, o autor recorreu a entrevistas. Logo, ao contar a vida de Samuel Johnson, também autor de biografias, Boswell passou a ser um dos primeiros a se preocupar com sua personagem integralmente, buscando a exemplificação de qualidades e defeitos. Este momento, a transição entre o XVIII e o XIX, marcado pelo aprofundamento das relações individuais iniciadas com o Renascimento, seguido pela ascensão da burguesia é o momento no qual ocorre o surgimento do biógrafo profissional, aquele indivíduo que se dedica à análise da vida de outro. É chegado então o século XIX, aquele que ficou conhecido como sendo ‘o século da História’, o momento no qual a História ganhou ampla relevância. Este contexto que presenciou profundas mudanças em todos os segmentos da vida humana acabou influenciando toda a historiografia bem como a teoria (e, porque não, a filosofia) 8 9

São representativos, neste sentido, o História de Carlos II de Voltaire e a autobiografia de Hume. Vida do Dr. Samuel Johnson.

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e a metodologia da História. Neste século, no que tange à escrita biográfica, ocorrem duas posições díspares: a princípio, ocorre certa superestimação deste gênero, logo a produção em determinados núcleos amplia-se pelos mais diferentes motivos; em segundo lugar ocorre, em núcleos específicos, uma subestimação da escrita biográfica, processo este que acaba afastando este tipo de produção. Estas contradições de núcleos historiográficos acabam sendo, na verdade, as próprias contradições que a sociedade européia do ‘século romântico’ percebe. O prisma analítico da História se configurou em uma pluralidade de possibilidades que, em certa medida, foram responsáveis por determinada relativização e hiperespecialização desta disciplina. Para o primeiro grupo de historiadores, a produção biográfica do século XIX faz a união entre a relevância do indivíduo e a importância das histórias nacionais. É o momento do enfoque heróico do indivíduo biografado, tão popularizado por Thomas Carlyle10, mesmo que não seja o único modelo a dominar dentre aqueles autores que permanecem fiéis à escritas de vidas11. Neste sentido, alguns autores acabaram se tornando famosos ao longo de suas vidas por sua quantidade e qualidade de produção, entre eles destacam-se: o historiador e filósofo da história e da cultura Jacob Burckhardt e seu método patológico, baseado no sofrimento dos homens demonstrando, assim, que a ideia de progresso histórico é equivocada (BURCKHARDT, 1971)12; o crítico e historiador francês Hippolyte Taine, que procurou uma psicologia que afastasse as contradições entre o particular e o geral – além de ambos, tanto Burckhardt quanto Taine serem reconhecidos por buscarem uma dimensão antianedótica na escrita biográfica (LORIGA, 1998) –; e o filósofo e historiador francês Jules Michelet que, escrevendo textos acerca de Dante e de Napoleão Bonaparte buscou fazer com que a História (biografada) servisse à construção de determinada ideia de nação.

10

A consolidação do modelo biográfico heroico deve-se, em certa medida, às formulações individualistas pelas quais o século XIX passou. Ocorre, destarte, o privilégio do ‘eu’ (indivíduo) sobre o ‘nós’ (grupo). Esse fenômeno se iniciou no contexto da Revolução Francesa com a consolidação da burguesia na Europa. O problema de se privilegiar apenas os indivíduos é esquecer-se que ele apenas pode ser compreendido numa configuração social. Ainda são características deste processo, no caso da arte o Romantismo e, no caso da historiografia, o Historicismo (BARROS, 2010). 11 Devemos levar em conta que, neste mesmo momento, existem, também, a prática biográfica nãoheróica, que acaba focando nos sentimentos humanos, seara antes mais resguardada mesmo que já demonstradas em outros momentos históricos. Foca-se a biografia, então, no personagem de tipo médio, no geral, o mesmo tipo do biógrafo, como é o caso da biografia que o pianista Franz Liszt escreveu para seu amigo Frederic Chopin após a morte deste. (MADÉLENAT, Op. Cit.) 12 Jacob Burckhardt buscou, também, aspectos emocionais resgatando aquilo que é durável através de seu indivíduo patológico.

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Ainda no século XIX, encontramos as biografias vitorianas, caso extremamente singular na produção deste gênero. Neste contexto social, político e cultural as biografia são de extrema importância. Basta lembrarmos, por exemplo, do Dictionary of National Biography13 que, coordenado pelo historiador e biógrafo Leslie Stephen 14, foi lançado em 63 volumes, contando com mais de 600 colaboradores em um extenso agrupamento de pequenos artigos biográficos. Esse é o momento em que a fundamentação da história nacional ocorre através das vidas pessoais incluindo nestas o modelo heroico proposto por Thomas Carlyle. Essas biografias, possuindo claras características de exaltação da vida do biografado e sendo muitas vezes encomendadas por herdeiros, eram importantes para a constituição da própria percepção por parte da burguesia enquanto classe ligada diretamente à manutenção da política econômica do período vitoriano (TOSH, 2010. GAY, 1999). Leopold von Ranke, um dos autores mais relevantes do cenário da produção historiográfica do século XIX, percebia, na biografia, um complemento ao trabalho do historiador, chegando a escrever, na década da Unificação Alemã os textos biográficos sobre Albrecht von Wallenstein, militar e político boêmio, e do barão Karl August von Hardenberg, estadista prussiano. Todavia este mesmo autor acabou encontrando dificuldades em compensar a neutralidade objetiva que ele mesmo outrora propunha, uma vez que o biografado, pelo simples fato de ser humano, desperta as mais variadas sensações na narrativa do biógrafo (ALVES DE ALMEIDA, 2008). Vale lembrarmos, também, que Wilhelm Dilthey também lança mão de estudos biográficos percebendo, nestes, validade heurística, como é o caso, por exemplo, de seus estudos acerca do filósofo Gottfried Leibniz, do escritores Friedrich Schiller e Wolfgang von Goethe, nos quais procura explicitar suas concepções psicológicas e epistemológicas. A partir da leitura das obras biográficas de Dilthey, notamos que para este pensador, o estudo biográfico existe já que a relação entre a parte (indivíduo) e o todo (sociedade) forma o que é chamado de “teatro da História” (AMARAL, 1987). Para o segundo grupo de historiadores do século XIX as biografias eram consideradas naturalmente a-históricas. Assim sendo, reduzindo o lugar dos indivíduos, este acabou sendo “esmagado pela lei” (LORIGA, 1998, p.230). Ou seja, a busca por leis gerais que explicariam amplamente a dinâmica social dificultam e, em alguns núcleos, inviabilizam a prática biográfica nos centros historiográficos. A partir daí, a 13 14

Dicionário de Biografia Nacional. Pai da escritora e, também, biógrafa inglesa Virginia Woolf.

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pequena gama de autores que ainda praticavam este gênero, passam a se preocupar com dois temas: inicialmente o indivíduo biografado passa a ser compreendido como um ser social, influência direta da gênese da sociologia e, em segundo lugar, passa a ser necessário levar em conta o lado psíquico do indivíduo e da cultura social, clara influência da formação dos estudos acerca da psicologia e da psicanálise que que começam a ganhar força vertiginosamente durante a transição do século XIX para o século XX. Dessa forma, ocorre um afastamento do gênero biográfico da possibilidade epistemológica da História, possibilidade esta tão procurada no século XIX, se aproximando, portanto, de uma narratividade não-problematizadora. É aí que as biografias passam a ser produzidas por literatos, como a Maria Antonieta e o Erasmo do austríaco Stefan Zweig e a sequência de narrativas de vidas de compositores da música dita erudita realizada pelo suíço Guy de Portalès. Logo, podemos perceber que, apesar de mudar de foco, o interesse pelas biografias ainda persistia dentre leitores e autores. Após este historiograficamente conturbado ‘século da História’ a biografia começa a ser questionada nos meios acadêmicos como gênero menor. Somou-se a esse fato a larga produção que entregava importância exacerbada às curiosidades das vidas ilustres. É o contexto de Andrés Maurois e Emil Ludwig que acabam criando personagens,

por

isso,

amputados

(LORIGA,

1998),

afastados

de

suas

contextualizações. Todavia, o costume historiográfico contemporâneo de se afastar a prática biográfica deste período deve ser relativizada. Já Bloch demonstra a importância do homem ao afirmar que a “História é a ciência dos homens no tempo” (BLOCH, 2001). Assim, percebemos que, apesar dos questionamentos afirmados neste momento, o gênero continuou a ser produzido, atingindo as possibilidades de feitura em outros núcleos intelectuais, como o jornalismo e a sociologia que cada vez mais se reafirmariam. É chegada a vez, então, do escasseamento biográfico dentro da produção historiográfica. Alguns pontos marcam este período ocorrido aproximadamente entre a década de 1920 e a década de 1960, momento da ampliação de outras formas de produção historiográfica, como a História Econômica e o estruturalismo. Durante este momento, mesmo assim, certos estudos biográficos dentro dos núcleos historiográficos continuaram sendo feitos, dos quais vale destacarmos a tentativa de renovação do gênero, buscando a relação entre o indivíduo e a sociedade, proposta, por exemplo, pelo 78 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


historiador francês Lucien Febvre com seus Un destin, Martin Luthere e Le problème de l'incroyance au XVIIe siècle, la religion de Rabelais15. Mesmo com certas críticas até mesmo Fernand Braudel, conhecido por seus estudos de ‘História de longa duração’, ou seja, uma história mais focada nas permanências, se enveredou por este ramo, escrevendo textos sobre Carlos V e Felipe II. Contudo, mesmo com estas tímidas defesas de significativos historiadores, o gênero biográfico acabou em segundo plano sufocado, principalmente, por outras abordagens epistemológicas, como é o caso das análises marxistas focadas na análise econômica e, quando usada por historiadores, passam apenas a servir para ilustrar determinado fato16. Após os historiadores abandonarem este gênero ele começa a ser utilizado principalmente por jornalistas e literatos de forma não-problematizada. A biografia como modalidade histórica tinha se transformado na biografia romanceada, aquela que acabou por se preocupar apenas com a narratividade esquecendo, assim, as possibilidades de problematização. A partir daí, a plena publicação de textos acerca de vidas ilustres ganharia força17 e acaba alcançando as salas de cinema durante o século XX atingindo, assim, uma maior parte da população que já começava a ficar interessada em consumir a vida de outros indivíduos. Mesclando seus períodos perenes e de intermitências as escritas biográficas são retomadas na escrita da História entre os anos de 1960 e 1980 fazendo, hoje, sucesso no mundo inteiro. Um dos motivos desta retomada neste momento é a relevância que os estudos acerca da relação indivíduo e sociedade ganham. Outro motivo, como dito anteriormente, é a necessidade de se consumir as vidas alheias, tanto as fictícias, como no caso dos filmes e das novelas, quanto aquelas que são criadas como que em laboratório, como é o caso dos reality shows sem esquecermos, também, das vidas ilustres, como no caso da biografia (SENNET, 1998). No mais, a volta dos indivíduos para o palco da História teve o próprio apoio de determinados historiadores preocupados com certas abordagens sociais. Todavia, os historiadores de nosso tempo presente ainda ficam preocupados com o afastamento que os problemas – a ideia de história-problema 15

Respectivamente: (1) Martinho Lutero, um destino; e (2) O problema da incredulidade no século XVI, a religião de Rabelais. Para mais debates feitos por Febvre, cf: Combats pour l’histoire. Paris: Armand Collin, 1953. 16 Vale marcarmos, porém, que, mesmo sem a biografia estar inserida nos estudos históricos, o estudo de cartas e autobiografias ainda era fonte para uma escrita da História. 17 Vale notar que as biografias ganham tanto interesse popular ao longo do século XX que até mesmo Winston Churchill (1941) publicou ensaios biográficos – incluindo personagens como o próprio Adolf Hitler, seu futuro inimigo durante a Segunda Guerra Mundial. Este também é o contexto de autores como Emil Ludwig e André Maurois.

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– tiveram no modelo biográfico, ficando apenas com a narratividade cronológica (LE GOFF, 1989). Destarte, autores plurais passam a escrever sobre determinados personagens nas formas narrativas mais variantes, como é o caso de Christopher Hill em sua O eleito de Deus: Oliver Cromnwell e a Revolução Inglesa e Jean-Paul Sartre que, publicando seu L’idiot de la familie: Gustave Flaubert18, acabou fundamentando a possibilidade de uma escrita biográfica existencialista e não-causalista. Então, neste contexto de crise da cientificidade historiográfica e sua tendência globalizante, representada no surgimento da nova historiografia (STONE, 1979), singular é o caso do medievalista francês Jacques Le Goff, da chamada Escola dos Annales. Este autor organizou, em conjunto com Pierre Norra, uma série de textos acerca das novas possibilidades historiográficas correntes nas décadas de 1970 e 1980. Todavia, em momento algum surge a retomada do gênero biográfico como campo epistemológico na prática da História (LE GOFF; NORA, 1988). Singular também é a postura dos micro-historiadores, principalmente, os italianos. Acerca da História política de pequena escala, podemos perceber a relevância do estudo das biografias segundo estas observações de Philippe Levillain: sem dúvida, pode-se falar da interação entre o movimento das forças profundas e os personagens históricos que sabem exprimir, em termos de conduta, curta ou longa, as aspirações de um povo, de uma nação, e se impõem como ‘protagonistas' (2003, p.160).

Dentro desses estudos de micro-história que são utilizados como, seguindo Jacques Revel, Jogos de Escalas, podemos perceber a dinâmica social, cultural, política e econômica de determinado quadro e certo território. No âmbito dos microhistoriadores com textos biográficos ou com esta aproximação relevantes para a historiografia contemporânea encontramos Carlo Ginzburg com seu O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, no qual analisa a trajetória de um herege, Menocchio, do século XVI buscando compreender a cultura popular do momento; Natalie Zemon Davis, com seu O retorno de Martin Guerre, em que é contada a vida de Martin Guerre, um camponês usurpado de sua vida; Judith C. Brown, com seu Atos Impuros: a vida de uma freira lésbica na Itália da renascença, no qual analisa a percepção da sociedade renascentista perante a sexualidade lésbica da abadessa Benedetta Carlini de Vellano das Teatinas de Pescia durante o século XVI; e Giovanni Levi com o seu A herança imaterial: trajetória de um 18

O idiota da família: Gustave Flaubert.

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exorcista no Piemonte do século XVII, livro no qual o autor, a partir da cruzada exorcista do padre Giovan Batista Chiesa, analisa a hierarquia política da região. O grupo dos Annales, representado aqui por Jacques Le Goff, percebe que a biografia é um instrumento à História, principalmente aquela de modelo Cultural, porém, em nossa visão, essa utilidade ultrapassa os estudos culturalistas. Neste sentido, Le Goff escreve, por exemplo, duas obras biográficas. Na biografia de São Francisco de Assis, o medievalista problematiza a urbanização e o enriquecimento das cidadesEstado italianas. Já em São Luís, pensou sobre a existência e a relação entre a existência-individual e a existência-coletiva. Neste autor e em outros historiadores dos Annales deste momento, a duração de uma vida passa a ser significativa para a história, diferentemente do que foi pregado pela geração anterior de Fernand Braudel e sua longa duração19. Desta forma, podemos perceber as diferenças dessas obras de micro-história se comparadas àquelas de História Cultural ou das Mentalidades: essa abordagem se preocupa com os conflitos sociais, negando, porém, as características totalizantes. E, enquanto os historiadores filiados aos Analles, como é o caso de Le Goff, decidiram pela necessidade de um novo modelo metodológico para a narrativa biográfica. A partir da década de 1980, os micro-historiadores procuraram por um quadro teóricometodológico que os permitisse destacar o valor heurístico das escalas surgindo, assim, os protagonistas anônimos da história20. O já citado François Dosse (2009), com uma erudição ímpar apresenta um panorama geral da produção biográfica ao longo da História e demonstra que os próprios historiadores vinculados aos Annales afastaram as possibilidades surgidas com a narrativa das trajetórias de vida para utilizar o indivíduo apenas dentro dos estudos da sociedade. Para tal empreendimento Dosse, assim como Madélenat divide as biografias em três tipos: de início encontramos as biografias heroicas: aquelas que tinham a função de educar através dos exemplos de vidas; em segundo lugar encontramos as biografias modais, que partem de concepções generalizantes buscando nos indivíduos traços que expliquem a dinâmica da sociedade na qual este está inserido; por último encontramos

19

Lembremos, no entanto, que o próprio Braudel teve estudos acerca da prática biográfica. Como crítica consolidada pela historiografia contemporânea a essa micro-história italiana lembramos que pode ocorrer um interpretativismo exacerbado e pode-se, também, cair na supervalorização das exceções, na análise de quesitos insignificantes e na busca pelos indivíduos comuns o que inviabiliza ou, ao menos, dificulta a perspectiva de estudos mais amplos e estruturais ou mesmo comparativos. Cf. PALLARES-BURKE, 2000. 20

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as biografias hermenêuticas, aquelas que buscaram romper com o modelo estrutural da historiografia francesa. A renovação que as biografias tiveram nos últimos anos deve-se, portanto, à inversão do procedimento historiográfico. Logo, o interdito do século XX, ocorrente a nível estritamente historiográfico, não atingindo também todos os territórios21, já que as biografias continuam existindo e mantendo seu sucesso de venda neste momento, é perceptível como uma crítica às modalidades de produção históricas do século anterior. Estes modelos mais antigos adaptavam a sociedade às possibilidades do indivíduo biografado não demonstrando, nesta maneira, as contradições e subordinações mútuas entre os sujeitos e os meios nos quais estão inseridos. O mundo moderno, no entanto, ainda subordina a biografia à História ou ainda as separa completamente esquecendo-se dos relacionamentos entre este gênero e esta disciplina. Há, portanto, uma percepção lógica: é imprecisa a fronteira entre biografia e História enquanto possibilidade epistemológica (LORIGA, 1998). Ponto importante é marcar, mais uma vez, que as biografias são retomadas especialmente nos núcleos historiográficos e não nos ambientes literários gerais já que nestes, sempre estiveram presentes sendo apenas renovadas no que tange a sua escrita – o que acaba por transformá-las em um gênero dentro da História (CANDAR, 2000). Desta forma, mesmo no momento do interdito as biografias continuam existindo, todavia, eram estritamente literárias. No nosso tempo presente percebemos que ocorreu uma epidemia biográfica influenciada diretamente por certa guinada subjetiva no interior das ciências humanas (GUIMARÃES, 2008. SCHMIDT, 1997). Logo, conforme disse Daniel Madélenat (1984, p.32) “a história da biografia é a história de seus recomeços seguidos de sua adaptação a novas percepções do homem”. Hoje, o principal polo de debate acerca desta modalidade de escrita está nas características metodológicas das abordagens biográficas. Em primeiro lugar, devemos perceber que não existe um método definitivo para a biografia. Dessa forma, o método deve ser sempre adaptável à necessidade da pesquisa (ORIEUX, s/d). Assim sendo, ainda hoje as escritas biográficas acabam misturando métodos criticados, inovadores e/ou aceitos ocorrendo, portando, uma incerteza metodológica. Incerteza essa que faz com que variados pensadores ainda critiquem esta forma de pesquisa. O resultado do estudo, ou seja, o texto biográfico, sempre possuirá problemas uma vez que o critério de 21

Podemos lembrar que em determinados países da América Latina, como o México e a Argentina, a produção biográfica continuou sendo uma das principais características da historiografia.

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seleção é o pesquisador o que faz com que os fatos selecionados como relevantes sejam assim escolhidos a partir do tempo presente do próprio historiador (LEVILLAIN, 2003) e, já que o filtro para as fontes e para os fatos apresentados é sempre o historiador há, logicamente, uma dificuldade de seleção para as narrativas (TUCHMAN, 1995; BORGES, 2010). Pontos adicionais de problematização das metodologias apresentadas nas obras biográficas contemporâneas são, entre outros, a localização da identidade, a complexidade da existência humana no tempo, a questão do inconsciente e a nãolinearidade da vida. Esta última circunstância acabou se transformando em uma das principais questões para os opositores do gênero biográfico já que devemos lembrar que as vidas humanas são vividas em curvas (ROJAS, 2000). Acerca desta crítica metodológica e de sua respectiva construção narrativa, se fundamentou toda a análise proposta por pensadores como Pierre Bourdieu, Giovanni Levi e Sabina Loriga. Para Pierre Bourdieu (2008) o principal problema da escrita biográfica é a condução – encaminhamento – a um final já concebido. Desta forma, continuará afirmando que Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar (p.185).

Assim, segundo o sociólogo francês, ocorre a ilusão biográfica, já que é necessário reconstruir o contexto em que o indivíduo age. E continua, afirmando que “o real é descontinuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório” (idem). Percebemos que para o sociólogo francês as análises biográficas são ilusões uma vez que a subjetividade do estudo apenas reconstrói a vida de forma artificial22. Seguindo essas problematizações expostas por Bourdieu, Jacques Le Goff, buscando escapar das 'Ilusões Biográficas', demonstrou a dificuldade do experimento biográfico e partiu, por exemplo, para a lógica do ‘sujeito globalizante’, ou seja, aquele sujeito que é considerado apenas em uma perspectiva

22

Vale lembrarmos que o debate iniciado por Bourdieu, apesar de extremamente relevante para a produção historiográfica contemporânea é iniciado ainda na década de 1980, momento no qual, como vimos, ocorre ainda uma série de questionamentos acerca da abordagem biográfica enquanto gênero histórico.

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global. Este sujeito, portanto, serve para as análises de todas as características do contexto já que nele estas mesmas características se encerram (LE GOFF, 1999). A partir do exposto até agora, principalmente acerca da incerteza metodológica que o gênero biográfico carrega em seu interior, conseguimos perceber que um dos principais problemas desta forma de escrita é mesclar a pluralidade e a erudição documental acerca de determinado personagem com a problematização que a escrita histórica exige sem, contudo, criar apenas uma narratividade fechada23. Assim, o gênero histórico-biográfico passa a estar no interior da História enquanto campo de saber seguindo, também, procedimentos específicos. Notamos que o autor dos textos biográficos acaba conhecendo sua personagem, muitas vezes, de forma mais ampla do que aqueles indivíduos que com este conviveram, Acerca deste ponto, o historiador francês Jean Orieux (s/d) afirma: O autor, dois séculos após a morte desses personagens, está talvez mais bem informado das suas diversas facetas do que as pessoas que os conheceram. Isto não é nada paradoxal. Os homens, ou as mulheres, apenas mostram, àqueles que lhes estão próximos, uma determinada faceta (p.41)

E continua: A partir de cem testemunhos diferentes e até contraditórios, o biógrafo acaba por elaborar uma face compósita, na qual há algumas probabilidades de podermos encontrar o personagem integral, que os seus contemporâneos provavelmente não conhecem. (p.42)

Logo, uma vez conhecendo amplamente as fontes documentais acerca de determinada vida, o historiador deve cuidar para não se colocar mais do que a necessidade exige, completando situações e criando falsidades24. Notamos, então, a necessidade de se respeitar o personagem na integridade. Incluindo no estudo, por exemplo, analises de psicologia, seguindo as sugestões da professora Vavy Pacheco Borges da UNICAMP em seu texto Grandes e misérias da biografia:

23

Devemos notar que a utilização de uma pluralidade de documentos explorados com ampla erudição somados a uma problematização errônea e uma narrativa mal construída, no geral aquela que busca uma linearidade desmedida – a vida humana raramente é linear – acabam gerando finalismos históricos que impossibilitam a classificação deste gênero como História. 24 O já mencionado Oireux (s/d) afirmou, acerca desta lógica: “Processo de reanimação de um testemunho só tem valor com a condição de jamais nos abandonarmos ‘àquilo que poderia ou deveria ter sido’. É preciso respeitar o personagem tal e qual ele nos surge nos fatos” (p.44). Assim sendo, é necessário, acima de tudo o afastamento de uma pedestalização do indivíduo biografo.

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A psicanálise é um aparato útil, ensinando aos historiadores, por exemplo, a importância do inconsciente, a pluralidade do indivíduo, a importância das origens e do início da vida, entre outros – todavia a biografia não pode se esgotar nessa possibilidade de análise (2010, p.219)25.

Outro ponto metodológico relevante na escrita histórico-biográfica é a percepção de que a vida do indivíduo não começa no nascimento deste nem termina com sua morte. Destarte, o pesquisador deve buscar, também, as origens e as influências que marcam a vida do indivíduo, bem como os influenciados e a memória construída acerca deste sujeito (BORGES, 2010). Logo, é função do autor da análise biográfica, em sua escrita, notar que, muitas vezes, as ausências de fatos são tão ou mais significativas do que os fatos ocorridos em si. Em suas pesquisas para a elaboração da biografia de um indivíduo já conhecido o historiador, provavelmente, se deparará com variados textos biográficos escritos anteriormente acerca desta personagem. Essas outras biografias escritas previamente devem, portanto, serem analisadas e problematizadas para a construção de um novo estudo: analisando, por exemplo, o lugar de fala dos antigos biógrafos de determinados sujeitos. O motivo de se analisar a biografia-fonte reside no fato de que os personagens – principalmente os célebres – já entraram, direta ou indiretamente, no imaginário das sociedades. E mais, estes personagens já foram apropriados e reapropriados repetidas vezes (BARROS, 2010). Um último ponto é relevante para a escrita da biografia: como lidar com os textos biográficos produzidos pelo próprio sujeito, ou seja, como lidar com autobiografia. Em primeiro lugar, deve ocorrer uma dúvida autobiográfica: quando o sujeito falar acerca de sua trajetória, é função do historiador questionar, problematizar e duvidar deste discurso, assim, resta ao pesquisador comprovar quaisquer relatos cruzando os relatos com outras fontes, seguindo critérios metodológicos previamente determinados (ROSENTHAL, 2008). Esta necessidade de averiguação – esta dúvida – baseia-se na percepção de memória dos sujeitos. O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) a quem, diga-se de passagem, não agradava a possibilidade da escrita biográfica, já demonstrou que a própria percepção de memória é um ato reiterado de interpretações (BERGSON, 1990). 25

Acerca das análises que sugerem a utilização de abordagens psicológicas em conjunto com as históricas, podemos citar as proposições do historiador Peter Gay em seu célebre texto Freud para historiadores.

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Logo, recontamos ou reconstruímos o passado com nossas ideias atuais sobre aquilo que julgamos ser importante – na psicologia essa característica da memória é chamada de percepção seletiva. Do ponto de vista do presente, o passado é mutável, maleável, ou seja, apenas reinterpretamos aqueles momentos que são lidos como relevantes e necessários para o nosso ‘eu’ presente, contemporâneo. Mais do que um gênero meramente literário, mais do que uma redução à historiografia, a biografia está localizada em uma área de intersecções amplas que viabilizam ao historiador do tempo presente uma análise mais profunda não só da vida do biografado como, também, do contexto no qual este indivíduo estava inserido além, é claro de possibilitar ao historiador problematizar o tempo da própria escrita. Por estes motivos, devemos ultrapassar os limites da solidão, aqui identificado com as perspectivas de análises de indivíduos isolados em, para utilizar uma expressão do século XIX, torres de marfim. A partir do momento no qual, se ultrapassando o indivíduo, chegamos a um prisma socialmente problematizado e as trajetórias de vida ganham nova relevância nos estudos históricos se afastando da narrativa determinista outrora empregada. Gênero antigo e amplo que caminha desde a antiguidade até nosso tempo presente, com escritas de vida de personagens históricos e mesmo de pessoas comuns até às trajetórias coletivas26, as biografias, hoje, são uma forma direta e acessível do conhecimento histórico, desde que feita com todo o rigor metodológico evitando, assim, o risco de perder-se em uma narrativa infrutífera, aos mais variados públicos.

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Chamada de prosopografia nos estudos históricos, esse gênero considera alguns dados variáveis para a reconstituição do perfil de determinado grupo.

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UM PARAÍSO TERRESTRE: OS AMERÍNDIOS E AS DOENÇAS ANTES DE 1492 Danilo de Lima Nunes* RESUMO: Ao analisarmos o processo da conquista espanhola da América e os mecanismos que o possibilitaram, através das historiografias clássica e revisionista sobre o tema, assim como das fontes textuais e pictográficas hispânicas e ameríndias, um questionamento pode surgir: antes de 1492 – ou seja, antes da chegada dos conquistadores, colonizadores e microrganismos do Velho Mundo ao continente americano – os ameríndios eram ou não assolados por doenças epidêmicas? Nesse artigo, procuraremos desconstruir o chamado “mito do paraíso terrestre”, no qual se afirma que, antes da chegada dos europeus e de sua “biota portátil” ao Novo Mundo, os ameríndios não eram assolados por doenças epidêmicas. Para isso, apresentaremos e discutiremos uma série de fontes textuais nativas, evidências arqueológicas e estudos de paleopaleontólogos e paleodemógrafos que acabam por derrubar esse mito. PALAVRAS-CHAVE: América Pré-Colombiana; doenças epidêmicas; mito do paraíso terrestre. ABSTRACT: By analyzing the process of the Spanish Conquest of America and the mechanisms that made it possible, through classical and revisionist historiography on the subject, as well as Hispanic and Native textual and pictographic sources, a dispute may arise: before 1492 – i.e., before the arrival of the conquerors, colonizers and microorganisms from the Old World to the American continent – were or weren’t Amerindians plagued by epidemic diseases? In this paper, we will try to deconstruct the so-called “myth of the earthly paradise”, which states that before the arrival of Europeans and their “portable biota” to the New World, the Native Americans were not hit by epidemic diseases. For this, we present and discuss a number of native textual sources, archaeological evidence and paleopathologist and paleodemographic studies that ultimately overthrow this myth. KEY-WORDS: Pre-Columbian America; epidemic diseases; myth of the earthly paradise. ***

*

Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IH/UFRJ). Pesquisador do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE), participando do projeto “Política, Cultura e Comunicação nas Américas e na Europa Contemporâneas: Circulação de Ideias, Imagens e Práticas Políticas (Sécs. XX-XXI)”, coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira. Atualmente desenvolve sua pesquisa com a bolsa oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Ao analisarmos o processo da conquista1 espanhola da América, há um verso de Pablo Neruda, presente no poema Oda a la araucaria araucana, que sintetizam os “mecanismos” – utilizando-nos das palavras do historiador italiano Ruggiero Romano em Os Mecanismos da Conquista Colonial: Os Conquistadores, obra originalmente publicada em francês em 1972 – que possibilitaram esse empreendimento no continente por nós assinalado: “a espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem” (apud ROMANO, 1995, p. 12, tradução nossa). Esses “mecanismos”, destacados historicamente por Romano e poeticamente por Neruda, encontram-se reproduzidos em uma vasta historiografia clássica sobre o tema, que busca refletir o seguinte (e outros) questionamento(s): como foi possível o êxito da conquista espanhola da América por “um punhado de homens” (ELLIOTT, 1963, p. 51) e que elementos tornaram-na realizável? Como possíveis respostas, podemos encontrar: o poderio bélico e as inovações tecnológicas trazidas pelos europeus a essa porção continental, conforme apontou William Prescott em The Conquest of Mexico (1843); a submissão nativa pelos conquistadores, sendo esses vistos como deuses ou agentes da Providência; a inadaptabilidade das culturas nativas para a tarefa de rechaçar a invasão espanhola, como podemos conferir nas obras de Jacques Soustelle, La Vie Quotidiene des Aztèques à la Veille de la Conquête Espagnole (1955), de J. H. Elliott, Imperial Spain, 1469-1716 (1963) e de Charles E. Dibble, The Conquest Through Aztec Eyes (1978); e a superioridade hispânica em termos linguísticos, de alfabetização e na leitura de 1

Sobre o termo “conquista”, Ruggiero Romano lembra-nos das disposições reais publicadas em 1556 que proibiam seu uso, assim como o termo “conquistadores”, devendo ser substituídos por “descobrimento” e “colonos”. Além disso, o autor busca compreender o porquê dessas interdições, afirmando, dentre outras motivações, que “o essencial da América está ocupado, inserido num sistema. A partir desse momento, não há mais nada para conquistar, apenas terras descobertas para colonizar. A pax hispanica triunfa” (ROMANO, 1995, p. 54). Contudo, ressalta Romano, o estabelecimento dessa data pode ser criticado, uma vez que esse processo não se encerrara por completo: o autor cita, por exemplo, os casos argentino e chileno para comprovar a sua tese (Ibidem, p. 55) e chega a afirmar que a conquista estendeu-se ao longo do século XX. Matthew Restall, em Sete Mitos da Conquista Espanhola, retorna a tese de Romano, denominando-a de “o mito da conclusão” (cf. RESTALL, 2006, pp. 125-146) e, após apresentar as sete dimensões que compõem o quadro geral da incompletude da conquista, sentencia: “[...] a Conquista das regiões cruciais dos Andes e da Mesoamérica foi mais prolongada do que asseveraram a princípio e mais tarde vieram a crer os espanhóis; quando os conflitos chegavam efetivamente a um fim nessas áreas, eram tão-somente deslocados para as fronteiras da América espanhola, jamais pacificadas e em permanente expansão. No âmbito interno, a violência da Conquista também sofreu uma transposição, assumindo uma miríade de formas de dominação e repressão; nem por isso, entretanto, deixou de enfrentar, em caráter permanente, um conjunto de métodos também diversificado de resistência nativa. As conquistas espiritual e cultural foram igualmente complexas e prolongadas, desafiando seu resultado a ponto de o próprio conceito de conclusão tornar-se irrelevante” (Ibidem, p. 145). Por fim, gostaríamos de destacar o artigo de Richard N. Adams, “The Conquest Tradition of Mesoamerica”, publicado na revista The Americas, no qual afirma que “a conquista psicológica da Mesoamérica ainda prevalece, e continua sendo reproduzida hoje na área onde as altas culturas pré-colombianas tiveram domínio” (ADAMS, 1989, p. 129, tradução nossa).

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“signos”, fatores esses amplamente trabalhados por Tzvetan Todorov em The Conquest of America (1982). Contudo, uma historiografia revisionista sobre esse processo tem apontado novos elementos que o possibilitaram e que também, ao lado dos fatores mencionados anteriormente, são importantes e precisam não ser mais negligenciados. Matthew Restall, em Sete mitos da conquista espanhola (Seven Myths of the Spanish Conquest), por exemplo, afirma que foram as doenças, as quais os indígenas não possuíam a mínima imunidade, a desunião interna entre os diversos grupos nativos, impedindo um levante geral, e a preocupação dos indígenas em manter o seu habitat frente os transtornos das guerras, que tornaram decisiva a expansão colonial hispânica em solo americano (cf. RESTALL, 2006, pp. 221-243). Detendo-nos no papel das doenças infectocontagiosas eurasianas no processo da conquista espanhola, ao realizarmos uma rápida pesquisa sobre a produção historiográfica acerca do seu desempenho, notamos que a maioria dos autores trata-as en passant, ou seja, dedica a elas poucas linhas de suas obras ou um único capítulo, e em outros em uma série de artigos, por vezes, repetitivos. A tarefa de se analisar a importância das doenças eurasianas na conquista espanhola acaba recaindo aos epidemiologistas e biólogos, produzindo, alguns desses, uma espécie de história das doenças voltada para o mercado editorial, tendo por público-alvo pessoas que possuem certa “curiosidade” por essa abordagem, utilizando-se em suas narrativas de uma linguagem leve, de menor reflexão teórica e chamando a atenção para temas polêmicos. Em nosso trabalho de conclusão de curso2, orientado pelo Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, procuramos, com base na historiografia revisionista e nas fontes textuais e pictográficas espanholas e nahuas, realizar uma análise sobre as doenças e os medos gerados na sociedade pelos discursos produzidos sobre essas no processo da conquista espanhola da Mesoamérica3. Com isso, pudemos demonstrar que uma 2

Cf. NUNES, Danilo de Lima. A conquista epidemiológica: as doenças e os medos sociais no processo da conquista espanhola da Mesoamérica (1492-1650). Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. 3 Ao início do século XX, antes da criação desse termo, estudiosos alemães, particularmente Eduard Seler (1849-1922), em Eine archaölogische Forschungsreise in Süd-und Mittelamerika (1910), cunharam a expressão Mittelamerika para designar a região onde floresceu uma alta cultura ameríndia no México central e meridional e no território contíguo dos países do norte da América Central. Em 1943, o filósofo e antropólogo alemão Paul Kirchhoff (1900-1972), em seu texto “Mesoamérica: seus limites geográficos, composição étnica e caracteres culturais”, desenvolveu, com base nas reflexões de outros estudiosos que desde o século XIX se dedicavam aos estudos das antigas civilizações do México e da América Central, o conceito de Mesoamérica, para designar as áreas de agricultura estável situadas no México – ao sul dos desertos setentrionais –, Guatemala, Belize, oeste de Honduras, sudoeste da Nicarágua, e a península de Nicoya na Costa Rica. Em “A Mesoamérica antes de 1519”, publicada no primeiro volume da coletânea

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abordagem sócio-histórica do impacto das doenças e dos consequentes medos sociais nesses processos de conquista é possível e fundamental, uma vez que as fontes apresentam ricas informações textuais e visuais sobre as enfermidades, que precisam ser mais e melhor estudadas, não se atendo unicamente a poucos parágrafos ou páginas e aos aspectos epidemiológicos e demográficos. Ademais, analisamos de que modos os discursos dos conquistadores, dos cronistas e dos membros da Cristandade foram utilizados para gerar o medo sobre os povos nativos conquistados e justificar a empreitada conquistatória e debatemos sobre o uso metafórico das doenças epidemiológicas e de seus sintomas nos discursos realizados pelos conquistadores, cronistas e membros da Cristandade. Não quisemos e não pudemos findar o debate sobre o processo da conquista espanhola da Mesoamérica, até porque se trata de um debate que já se arrasta por mais de quinhentos anos, sendo impossível de ser explicado sob uma única perspectiva. Inclusive, atualmente temos desenvolvido uma pesquisa de Mestrado4 que se trata de uma continuidade e aprofundamento do tema trabalhado por nós no TCC mencionado, na qual visamos analisar, através de um estudo sócio histórico comparado, como os surtos epidêmicos possibilitaram as conquistas do Império Asteca (Mesoamérica) e do Império Tawantinsuyu (América Andina) e os seus impactos nessas regiões da América. Entretanto, ao olhar atento do leitor, pode surgir um questionamento: e antes de 1492 – ou seja, antes da chegada dos conquistadores, colonizadores e microrganismos do Velho Mundo ao continente americano – os ameríndios eram ou não assolados por doenças epidêmicas? Há um mito5, ao qual denominaremos de “o mito do paraíso terrestre”, que afirma que esses ameríndios não eram assolados por tais enfermidades antes da chegada da frota de Cristóvão Colombo. Desse modo, torna-se fundamental verificar a procedência desse mito e, ao mesmo tempo, recorrendo e discutindo uma série

de

fontes

textuais

nativas,

evidências

arqueológicas

e

estudos

de

História da América Latina (The Cambridge History of Latin America), organizada por Leslie Bethell, Miguel León-Portilla apresenta-nos uma longa descrição geográfica dessa região (cf. LEÓN-PORTILLA, 2005, pp. 26-27). 4 O Reino da Morte: uma história comparada das doenças e dos medos sociais na conquista espanhola da Mesoamérica e da América Andina (1492-1590), desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História Comparada, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IH/UFRJ), tendo por orientação o Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira. 5 Para a discussão sobre o conceito de “mito”, torna-se interessante citar a obra do francês Mircea Eliade, Mito e realidade (Myth and Reality). O autor atenta-nos para o fato desse termo se encontrar atualmente sendo utilizado em duas acepções, tornando-o dúbio e ambíguo: “ficção” ou “invenção” e “uma história sagrada, portanto uma história verdadeira, porque sempre se refere a realidades” (ELIADE, 1991, p. 12). Em nosso artigo, ao nos referirmos a “mito”, estamo-nos utilizando da primeira acepção.

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paleopaleontólogos e paleodemógrafos, desconstruí-lo: esses serão, pois, os alvos de nosso artigo. Antes de prosseguirmos, faz-se necessário respondermos a um (novo) questionamento que talvez o leitor possa levantar: as doenças podem também pertencer ao domínio do campo historiográfico? Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, em “O Corpo: o homem doente e sua história”, capítulo publicado em História: novos objetos (1976), lembra-nos que “desde a origem da crônica, o historiador fez da doença uma das passagens obrigatórias de sua narrativa” (REVEL; PETER, 1976, p. 142). Ricardo Augusto dos Santos, em capítulo publicado na obra Uma história brasileira das doenças (2004), aponta que nos últimos anos uma historiografia mais tradicional vem sendo desafiada por novos paradigmas que passam a considerar a inclusão de outros saberes. “Estas relevantes contribuições”, afirma o autor, “trazem à tona aspectos antes negligenciados por uma historiografia mais tradicional” (SANTOS, 2004, p.128). O surgimento desses novos paradigmas pode ser buscado, por exemplo, no advento da corrente historiográfica da Nouvelle Histoire [Nova História], na qual houve a busca por novos problemas, abordagens e objetos (cf. LE GOFF; NORA, 1976; BURKE, 1992, pp.7-38). Analisando o interesse despertado entre os historiadores sobre a história da sexualidade, da doença e, mais recentemente, do corpo, Mary Del Priore, no artigo “A história do corpo e a Nova História: uma autópsia”, publicado em 1994 na Revista USP, afirma: Reflexões [...] têm trazido à tona o interesse dos historiadores sobre a história da sexualidade, da doença e, mais recentemente, do corpo. Mas a inscrição deste objeto de estudos no universo de pesquisas do historiador deve muito à dinâmica do que se convencionou chamar de Nova História [...] Constituída contra o romance histórico e a história tradicional, a Nova História procurou tornar-se mais científica, aprendendo as lições de geografia, da demografia, da antropologia e da etnologia. Ao renovar a curiosidade história, especificando-a, acabou por renovar, também, problemas. Ela é feita por historiadores que emprestam modelos de análise de outras ciências humanas, fazendo emergir novos objetos de estudo no seio das questões históricas, e “constituindo novos territórios, pela anexação de territórios de outros” (DEL PRIORE, op. cit., pp. 49-50).

Sob essa nova perspectiva historiográfica, a categoria “doença” passou a ser aproximada mais apropriadamente com a sociedade, como um sistema vivo, isto é, a doença não passou simplesmente a ser quantificada e descrita epidemiológica e 95 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


demograficamente, porém, sim, passou-se a buscar as construções sociais – a partir das representações imagéticas, discursivas, dentre outras – que eram feitas a partir da doença (cf. NUNES, op. cit., pp.18-22). Nara A. Brito, em “La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro”, ressalta os desdobramentos das reflexões a esse respeito, nas quais outros saberes se juntam para lançar um novo olhar sobre os fatos sociais, políticos e econômicos, combinando-se com a História das Doenças (cf. BRITO, 1997, p.13). Charles E. Rosenberg, no livro Explaining Epidemics and other studies in History of Medicine (1995), aponta que a partir da observação de uma determinada epidemia, torna-se possível apreender o contexto sócio-histórico-cultural de uma determinada sociedade. A doença também pode ser entendida enquanto um elemento de desorganização e de reorganização social, tornando, segundo Jacques Revel e JeanPierre Peter, [...] frequentemente mais visíveis as articulações essenciais do grupo, as linhas de força e as tensões que o traspassam. O acontecimento mórbido pode, pois, ser o lugar privilegiado de onde melhor observar a significação real de mecanismos administrativos ou de práticas religiosas, as relações entre os poderes, ou a imagem que uma sociedade tem de si mesma (REVEL; PETER, op. cit., p. 144).

Conforme salientamos anteriormente, dentre outros meios, para alcançarmos os objetivos traçados para esse artigo, recorreremos às fontes textuais nativas que, muitas das vezes, são renegados pelos historiadores. Eduardo Natalino dos Santos, em Deuses do México Indígena: Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas (2002), aponta que: [...] não é muito comum à tradição histórico-filosófica ocidental admitir a existência de um pensamento indígena de uma determinada região. No máximo se fala em um pensamento mítico que, independentemente do grupo ou época, teria sempre uma mesma estrutura de funcionamento. Essa forma de o mundo ocidental olhar as civilizações americanas tende a desqualificar qualquer outra explicação do mundo que rivalize com a sua (SANTOS, 2002, p. 79).

Essa desqualificação, segundo o autor, possui duas vertentes: 1) a naturalização das outras culturas; 2) o lançamento de toda a produção intelectual de explicações e reflexões sobre o funcionamento do mundo e sobre a condição humana no campo das fábulas ou da imaginação. Porém esse universo documental ameríndio, como os 96 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


códices6, deveria ser explorado com mais frequência nos estudos historiográficos sobre a Mesoamérica ao lado das já conhecidas documentações espanholas, evitando-se gradativamente o que o Eduardo Natalino afirma mais adiante em seu livro: [...] optamos pela narrativa espanhola em detrimento de uma enorme pluralidade de vozes e testemunhos, ou seja, selecionamos os relatos que se encaixam na construção da história do moderno império espanhol e nas teorias explicativas cristãs ocidentais (Ibidem, p. 89).

Federico Navarrete Linares, no artigo “Las fuentes indígenas más allá de la dicotomía entre historia e mito”, publicado na revista Estudios de Cultura Náhuatl (1990), reafirma e amplia o alerta feito por Eduardo Natalino, ao criticar a separação academicista construída ao se analisar as fontes textuais e pictográficas tidas simplesmente como mitos (geralmente proveniente de relatos orais dos povos nativos) e as tidas como “históricas”, ou seja, os relatos hispânicos, cabendo aos antropólogos e mitólogos as análises das primeiras, por serem consideradas fontes “não históricas”, e aos historiadores as análises das segundas: Parece-me que um fator que tem impedido a necessária cooperação entre os defensores da explicação histórica e mítica tem sido a brecha entre suas respectivas especialidades acadêmicas. Desde o século passado, uma das premissas do etnocentrismo ocidental tem sido a contraposição entre a sociedade moderna, plenamente histórica, e as outras sociedades, que se consideram não históricas. Uma é o campo de estudo dos historiadores, as outras, dos antropólogos e dos mitólogos. Uma é o terreno da diacronia, a outra, o da sincronia (NAVARRETE LINARES, 1999, pp. 250-251, tradução nossa).

O autor defende que, para compreender de maneira mais plena as tradições históricas ameríndias, é necessário romper com a dicotomia ainda existente entre história e mito e utilizar as ferramentas de análise de ambas às disciplinas. Para isso, citando o historiador Kerwin Lee Klein, Navarrete Linares destaca que necessitamos considerar o que ocorre com a historicidade quando imaginamos todos os povos, 6

Sobre os códices, no artigo “Un trayecto por los signos de escritura”, publicado na revista eletrônica Destiempos.com, afirmam Maria del Carmen Herrera M., Perla Valle P., Bertina Olmedo V. e Tomás Jalpa Flores: “Os códices elaborados pelos povos que habitavam o centro do México nos séculos XVI e XVII são manifestações tardias dos sistemas de escrita desenvolvidos na Mesoamérica. Para entender a lógica que organiza a textualidade dessa documentação é preciso identificar, descrever e ler em náhuatl os signos empregados na maior parte dos códices que chegaram até nós, assim como entender as normas que ordenavam o discurso, dependendo do gênero em que se encontra escrito o documento” (HERRERA M. et al., 2009, p. 361, tradução nossa).

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independentemente de sua etnia, religião ou alfabetização, como históricos e pensarmos suas narrativas como diferentes variedades do discurso histórico mais que como alternativas românticas a esse discurso (cf. KLEIN, 1995, p. 298 apud. Ibidem, p. 251). De pronto, analisemos duas fontes textuais ameríndias: Los libros de Chilam Balam de Chumayel, coletânea de relatos escritos por anônimos nos séculos XVI e XVII, que narram sobre os fatos e as circunstâncias históricas da civilização maia, e La nueva corónica y buen gobierno, de Felipe Guamán Poma de Ayala (1556-1644), cronista inca do século XVII. De acordo com a primeira fonte: Nesse tempo [antes do início da conquista espanhola] não havia enfermidade: não tinham ossos doloridos; não tinham febre alta; nesse tempo não tinham varíola; não tinham a queimação no peito; eles não tinham dor no ventre; eles não tinham tísica; eles nesse tempo não tinham dor de cabeça; nesse tempo o curso da humanidade era ordenado. Os estrangeiros mudaram [esse quadro] quando chegaram aqui (ROYS, 1967, p. 83, tradução nossa).

Felipe Guamán Poma de Ayala, por seu turno, afirma: Os incas, seus monarcas, seus povos, tanto como a gente antiga destes reinos, viviam vidas longas e sãs, e muitos deles chegavam a idade de 150 e 200 anos porque tinham um regime de vida e de nutrição bem ordenado e metódico (POMA DE AYALA, [1615] 1956, v. 1, p. 89, tradução nossa).

À primeira vista, ao lermos os excertos acima, notamos que, aparentemente, os ameríndios que nesse continente viviam antes da chegada de Colombo em 1492 gozavam de plena saúde, não sendo assolados por alguma enfermidade endêmica ou epidêmica e, com isso, tendo vidas longas e sãs. Os tempos pré-coloniais eram marcados por dias aprazíveis, em que a vida era mais longa e feliz (cf. NABOKOV, 1991). Esse “paraíso terrestre”, contudo, se encerrou, segundo esses e outros relatos nativos, a partir de 1492, com a chegada dos conquistadores, colonizadores e microrganismos do Velho Mundo. Essas descrições continuaram sendo repetidas por alguns historiadores do século XX (cf. SALE, 1990, p. 160; ORTIZ DE MONTELLANO, 1990, p. 120; DOBYNS, 1983, p. 34; THORNTON, 1987, p. 39), perpetuando-se o que estamos aqui chamando de “o mito do paraíso terrestre”. Um olhar atento sobre esses relatos aponta que essas narrativas visavam provocar um grande contraste com a realidade com a qual os ameríndios foram 98 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


submetidos a partir do processo da conquista espanhola da América, comparando-a de forma romantizada com a realidade de antes de 1492. Entretanto, os avanços nos campos da paleopatologia e da paleodemografia, além do acesso e da tradução de novas fontes pré-colombianas, permite-nos uma aproximação com a realidade desse continente de antes da chegada dos europeus, tornando-a reveladora: de “paraíso terrestre” nada se havia aqui; guerras, fomes e epidemias eram comuns, “assim, longe de ser um paraíso terrestre, o perfil de vida e morte que emerge no Novo Mundo se parece ao do Velho Mundo em vários aspectos importantes” (ALCHON, 1999, p. 201, tradução nossa). As doenças estiveram presentes nesse continente desde a chegada dos primeiros ameríndios. Quando e por aonde eles chegaram? Trata-se, todavia, de uma grande dúvida que ainda não foi completamente elucidada. Os arqueólogos e outros estudiosos sempre estão em busca de novas evidências que possam esclarecer, por fim, esse vácuo na história do nosso continente. Porém, paleopatologistas apontam que o estudo dos parasitas intestinais presentes nos coprólitos (pedras de fezes) dos primeiros habitantes da América pode solucionar essa questão. Segundo o médico infectologista Stefan Cunha Ujvari, em A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e outros microrganismos..., Há um parasita que contribuiu para esclarecer nossa rota de entrada na América, o Ancylostoma duodenale presente em coprólitos de índios americanos. [...] O amarelão em múmias americanas contribuiu para solucionarmos parte do mistério das rotas de entrada humana na América. [...] Simulação computadorizada remontou o clima do estreito de Bering à época da chegada dos primeiros americanos. A longa faixa de terra que emergiu pela Era Glacial não foi suficientemente quente para ovos e larvas do ancilóstomo sobreviverem. Os ovos eliminados pelas fezes não encontraram solo favorável para eclodirem em larvas. [...] Os ovos encontrariam solo ideal caso os humanos viessem pelas embarcações no litoral. Nesse caso, os primeiros americanos trariam o ancilóstomo do continente asiático para a América. O litoral quente e úmido não barraria a entrada do parasita que acompanharia os humanos. Seu encontro em coprólitos indica entrada humana por via marítima, que chegou com o parasita e evacuou no litoral da América do Norte, onde colonizou. Isso não elimina a clássica entrada pela ponte terrestre do estreito de Bering. Apenas acrescenta outras rotas marítimas (UJVARI, 2009, pp. 71-73).

O ancilóstomo, contudo, não veio sozinho. Acompanhando os primeiros homens americanos também veio a bactéria da tuberculose, microrganismo que ceifaria os 99 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


enfraquecidos nessa jornada. Os estudos de restos ósseos presentes em sítios mortuários pré-históricos, a despeito de seus problemas de análise (cf. ALCHON, op. cit., p. 203), demonstraram a sua presença nos ossos desses homens. Dissipando-se pela América do Norte, a doença provavelmente alcançou a América Central (apesar de não termos múmias suficientes para comprovarmos a sua presença), aproveitando-se do surgimento de aglomerados populacionais e do processo de urbanização, além das guerras (que acabavam por aumentar o número de desabrigados, debilitados e famintos, grupos suscetíveis a serem acometidos por essa moléstia) e das mudanças climáticas, como a grande seca ocorrida nos séculos VIII e IX d.C. que, segundo Jared Diamond, em Collapse: how societies choose to fail or succeed (2005), contribuiu para o colapso das cidades maias clássicas e o surgimento de uma epidemia geral7. Do mesmo modo sucedeu-se na América do Sul, em cidades como Tiahuanaco, Pucara e Huari, aproveitando-se da expansão de aglomerados humanos e de períodos de guerra. “Grandes impérios com grandes cidades, comércio, guerras e fome aliaram-se à tuberculose” (UJVARI, op. cit., p. 75). À espera dos nossos primeiros habitantes americanos, encontravam-se as doenças autóctones, ou seja, nativas do hemisfério: leishmaniose, doença de Chagas, febre maculosa, bartonelose – doenças crônicas e raramente mortais, porém fatais quando desenvolvidas junto de outras enfermidades ou deficiências nutricionais –, pinta (treponematose não venérea), leptospirose e febres endêmicas e epidêmicas. Os primeiros ameríndios eram nômades, andavam em pequenos grupos e se dedicavam à caça de animais de grande porte (mamutes, preguiças-gigantes, bisões, tigres dentes de sabre e tatus gigantes), à pesca e à coleta de frutos. A variedade de suas dietas alimentares fazia com que eles raramente fossem acometidos por doenças relacionadas a deficiências nutricionais, além da pouca frequência de períodos de fome. O simples fato deles não se concentrarem em grandes conglomerados populacionais permitia com que raramente ocorressem epidemias. A estimativa de vida desses habitantes girava em torno de 16 a 22 anos para os homens e de 14 a 18 anos para as mulheres (cf. JAFFEE, 1991, p. 58; CASSIDY, 1984, p. 320), dando poucas chances para

o

desenvolvimento

de

doenças

degenerativas

crônicas

associadas

ao

7

Miguel León-Portilla discorda dessa tese, afirmando que “[...] as velhas cidades [maias] começaram a ser gradativamente abandonadas. Não se encontraram vestígios de ataques externos, nem de destruição por fogo. Os centros foram apenas abandonados, quando seus habitantes procuraram outros locais onde se fixar. E seria difícil provar que foi isso o resultado de uma mudança climática violenta e generalizada, de uma catástrofe agrícola ou de uma epidemia geral” (LEÓN-PORTILLA, op. cit., p. 32.).

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envelhecimento. As principais causa mortis era a complicação no parto no caso das mulheres, e as lesões traumáticas como resultado de violência ou de acidente (cf. JAFFEE, op. cit., p. 60) no caso dos homens, além do canibalismo, infanticídio, sacrifício, gerontocídio e outras formas de guerra. Os caçadores-coletores eram acometidos, em sua maioria, por doenças gastrointestinais, que também os acompanharam na travessia para a América, como a disenteria bacteriana (shigelose), salmonelose, teníase, tricuríase, oxiuríase, amebíase, giardíase, toxoplasmose, dentre outras, e por doenças respiratórias, como a (citada) tuberculose, pneumonia, blastomicose e coccidioidomicose (cf. ALCHON, 2003, pp. 39-45). Com o término da última glaciação (há cerca de 10 mil anos atrás) e as consequentes mudanças climáticas (aumento de temperatura e de umidade), de fauna e da flora, os grupos nômades passaram a caçar animais menores (raposas do deserto, linces, coiotes e diversos roedores), iniciaram o cultivo de plantas e, embora em menor escala, a domesticação de animais, como o peru e o cachorro. Aos poucos, a partir de meados do quinto milênio a.C., houve a diminuição do nomadismo e, em contrapartida, o predomínio do sedentarismo: essa mudança permitiu com que a agricultura se tornasse a principal atividade de sobrevivência dos grupos humanos aqui estabelecidos, a implantação de novas técnicas de plantio (seleção e o cruzamento de plantas, a construção de canais de irrigação etc.), a formação de grandes aldeias e o aumento populacional

(cf.

SANTOS,

2002,

pp.

47-49).

“Segundo

arqueólogos

e

paleopaleontólogos”, afirma Alchon, “a transição para uma forma de vida agrícola e sedentária teve um impacto negativo na saúde das populações humanas em todo o mundo” (ALCHON, 1999, p. 208, tradução nossa). Esse impacto não foi diferente entre os ameríndios, uma vez que se aumentaram os níveis de desnutrição e, concomitantemente, com a baixa resistência aos patogênicos, eles tornaram-se mais propícios a adquirir doenças infectocontagiosas. Por exemplo, populações que tinham por base alimentar exclusivamente ou na maior parte das vezes o milho, tornavam-se deficientes em ferro e niacina (vitamina B3, vitamina PP ou ácido nicotínico) e, consequentemente, estavam mais suscetíveis a adquirir anemia e/ou pelagra, doenças provocadas, respectivamente, pelas deficiências desses nutrientes. Apesar da pobre nutrição e das altas taxas de infecção, as populações sedentárias se expandiram com o tempo através das Américas. Além disso, as populações sedentário-agrícolas viviam, em média, de dois a quatro anos a mais que as de caçadores-coletores (cf. JAFFEE, op. cit., 101 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


p. 58)8. A sedentarização, a introdução de práticas agrícolas e o aumento populacional permitiram com que fossem constituídos grandes aldeias e conglomerados populacionais, havendo um maior contato entre as pessoas e, com isso, o aumento das doenças infectocontagiosas e o aparecimento das epidemias. As doenças relacionadas ao conglomerado de pessoas e à falta de higiene tornaram-se comuns, além do aumento de pessoas infectadas pelas doenças gastrointestinais e respiratórias que já afetavam as populações caçador-coletoras, inclusive as que eram raras ou que não as conheciam previamente. Aumentaram-se os índices de tuberculose vertebral e pulmonar, como provam os restos ósseos provenientes da América do Norte (cf. BUIKSTRA, 1991, p. 165), além da pneumonia e da blastomicose. Apareceram, pela primeira vez, o tifo endêmico e o tifo epidêmico (cf. ALCHON, 2003, pp. 45-59). Essas doenças foram registradas por Guamán Poma de Ayala, em Historia de los Incas, ao narrar sobre os êxitos militares de Pachuti Inca Yupanqui (1438-1471): A derrota do Chile foi possível pelos estragos da praga, a qual durou dez anos. A enfermidade e a fome, mais que a força dar armas, levou à queda dos chilenos, do mesmo modo que a guerra civil entre Huáscar e Atahualpa facilitou mais tarde a conquista espanhola. Peru também sofreu terrivelmente pela praga, a fome e a seca. Por uma década, não caiu chuva, e a erva murchou-se e morreu. As pessoas chegaram a devorar seus próprios filhos, e quando os estômagos dos pobres foram abertos às vezes os encontrou [e viram] que haviam sobrevivido comendo ervas (POMA DE AYALA, 1978, p. 42 Apud. ALCHON, 1999, pp. 212-213, tradução nossa).

Mais adiante, Poma de Ayala escreveu que os incas associavam “a praga das pulgas” com a morte, indicando que talvez houvessem associado estes ectoparasitas com a aparição do tifo (cf. POMA DE AYALA, Op. cit., p. 77. Apud. ALCHON, Op. cit., p. 213). Dois elementos são interessantes de se destacar no relato de Poma de Ayala: primeiro, as epidemias ajudaram os próprios incas na conquista de novos territórios na América do Sul; mais tarde, eles sofreriam do mesmo golpe pelas mãos dos espanhóis. Segundo, a eclosão do tifo deu-se em um cenário de guerra e fome, confirmando-se a mesma tese descrita por nós para o caso da disseminação da tuberculose no solo americano. Essa associação fez-se também presente no território mesoamericano 8

Essa estimativa de vida acaba por desmentir a afirmação de Felipe Guamán Poma de Ayala que apresentamos anteriormente, ao escrever que os seus ancestrais, antes da conquista espanhola, chegavam a viver por mais de 150 anos.

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durante o século XV, conforme exemplificam os autores Angélica Mandujano Sánchez, Luis Camarillo Solache e Mario A. Mandujano, no artigo “Historia de las epidemias en el México antiguo: algunos aspectos biológicos y sociales”, divulgado pela Revista Casa del Tiempo: Os cronistas mencionam a aparição de vários fenômenos fora de ordem natural até 1446, quando sobreveio a grande inundação que motivou a construção de um dique que separara as águas salgadas e doces da lagoa. Chimalpahin reporta uma praga de lagostas e Veytia assinala que desde 1448 surgiram problemas pela falta de chuvas e a escassez nas colheitas. De 1450 a 1454 a seca e as geadas extemporâneas levaram os povos de Anáhuac a uma crise catastrófica de fome e enfermidade (MANDUJANO SÁNCHEZ; CAMARILLO SOLACHE; A. MANDUJANO, 2003, p. 10, tradução nossa).

A exemplo do excerto destacado acima, os relatos históricos dos maias e astecas fazem referências a períodos de enfermidade relacionados com desastres naturais e períodos de fome. Acompanhando e analisando-os, notamos que a década de 1450 foi caracterizada por uma série de epidemias na Mesoamérica relacionadas a mudanças climáticas (marcadas por um inverno rigoroso entre 1450-1452 ou 1453-1454, seguido por uma seca de três anos) e períodos de fome, tornando as suas populações vulneráveis às doenças epidêmicas. A alta mortalidade assistida por essas populações nessa década também está relacionada ao consumo de plantas prejudiciais à saúde (talvez uma tentativa desesperadora de se driblar a escassez de alimentos) e, ao mesmo tempo, a deficiência de nutrientes, como podemos ver no Códice Chimalpopoca: No ano 3 técpatl [1456], neste ano se deram os bredos [carurus], que era tudo o que se comia e por isso houve mortandade. Foi o terceiro ano que houve fome. Estão pintadas as figuras das pessoas, a quem comem as auras e os coiotes (CÓDICE CHIMALPOPOCA, 1975, p. 52, tradução nossa).

Os ameríndios consideravam as enfermidades como produtos da vontade dos deuses, um castigo, uma maldição. Tezcatlipoca, por exemplo, o deus asteca que encarnava a destruição, o castigo e a bruxaria, era capaz de enviar castigos como as epidemias (cf. DUVERGER, 1983). Guilhelm Olivier, em Tezcatlipoca: burlas y metamorfosis de un dios azteca, originalmente publicado em francês, em 1997, escreve: Também lhe atribuíam [a Tezcatlipoca], como a maioria das divindades mesoamericanas, enfermidades como a lepra, o câncer, as 103 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


hemorroidas, pruridos, pústulas, etc., que afetavam os indivíduos negligentes ou não respeitosos [...]. De fato, em caso de epidemia, [os mesoamericanos] dirigiam fervorosas preces a Tezcatlipoca – tanto como o responsável por esses males como a entidade capaz de remediá-los – que recebia, entre outros, o título de Yohualli Ehécatl [...] (OLIVIER, 2004, pp. 53-54, tradução nossa).

Torna-se interessante destacar a relação que a religião possuía, ao lado da magia (os ameríndios também acreditavam que as doenças eram causadas por encantamento de povos inimigos, devendo ser medicadas por meios mágicos) e do empirismo (uso de plantas, minerais e técnicas como medicamentos), com a cura das enfermidades, uma vez que os homens pré-colombianos tinham também de recorrer, através das preces, aos seus deuses em seus combates contra os microrganismos. Em síntese, segundo Sánchez, Solache e Mandujano, A intervenção do fator psíquico na concepção das enfermidades teve um papel importante, para os povos indígenas, pois qualquer alteração da ordem cósmica o do humano era considerada realizada pelos deuses. Assim, estes povos tributavam adoração especial aos astros e procuravam comprazer em tudo aos seus deuses para evitar com que as calamidades caíssem sobre eles (MANDUJANO SÁNCHEZ; CAMARILLO SOLACHE; A. MANDUJANO, Op. cit., p. 11, tradução nossa).

Essa concepção foi retratada por Juan de Torquemada, em sua obra Primeira parte de los veintiún libros rituales y monarquia indígena, con el origen y guerras, de los índios occidentales, de sus poblaciones, descubrimiento, conquista, conversión y otras cosas maravillosas de la misma tierra, ao dizer que: Contam as histórias, que poucos dias antes da guerra, apareceu no céu um grande cometa... o qual durou até o fim da batalha. Este sinal tiveram por mau agouro; porque estes índios (também como nós, os castelhanos) conhecem delas significar fomes, pestilências, e guerras como nesta ocasião se verificou (DE TORQUEMADA, 1723, p. 85. Apud. Ibidem, p. 11, tradução nossa).

Ao início da década de 1480, a região mesoamericana presenciou uma nova epidemia, marcada por doenças gastrointestinais, mais uma vez relacionada a fome e a seca. No katún9 4 Ahua (1480-1485), 9

Trata-se de uma unidade de contagem empregada no sistema calendário maia, equivalente a 20 tunes ou 7.200 dias, contados até 20 (cf. SANTOS, Op. cit., p. 84).

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O rosto de [o senhor do katún] está coberta; seu rosto está morto. Há luto pela água; há luto pelo pão. Seu tapete e seu trono olharão até o oeste. Vômito de sangue à sua custa [do katún] (ROYS, op. cit., p. 133, tradução nossa).

A partir desses exemplos, portanto, podemos notar que a América PréColombiana estava longe de ser um paraíso terrestre, tal como algumas fontes e historiadores do século XX10 buscaram demarcar. Obviamente que as fontes que descreveram esse cenário como “paraíso terrestre”, apesar de se tratar meramente de um mito, precisam ser contextualizadas: suas produções se deram no momento da conquista espanhola da América e buscavam contrastar o cenário brutal ao qual os ameríndios se encontravam submetidos com o de antes das chegadas dos conquistadores, dos colonizadores e das doenças infectocontagiosas eurasianas, forjando um cenário pacífico, feliz, de longas e sãs vidas e livres de microrganismos. Até o final do século XV, não possuímos evidências ou relatos de populações de qualquer parte do mundo que tenha sido atingida simultaneamente por três grandes patógenos virulentos, como veio a ocorrer no continente americano e, a posteriori, na Oceania. “Nem sequer a Peste Negra, símbolo da enfermidade virulenta, foi tão mortífera como se sustenta estas epidemias” (MANN, 2006, p. 143), escreve Charles Mann em 1491: New Revelations of the Americas Before Columbus (2006), concluindo que “nem sequer naquela ocasião a enfermidade acabou com mais de um terço de suas vítimas”.

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10

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Artigo recebido em: 25 de setembro de 2013 Aprovado em: 14 de novembro de 2013

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O TEATRO DO PROGRESSO: DOM PEDRO II - O IMPERADOR ILUSTRADO, O MUSEU REAL E UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO. Beatriz Moreira da Costa*

RESUMO: A prática do Colecionismo é antiga na nossa sociedade e ao longo dos séculos deu-se um processo paulatino de mudança das concepções sobre Colecionismo e Museu, estabelecendo-se definições de acordo com a ressignificação conveniente ao seu tempo. À partir da chegada da corte portuguesa no Brasil, em 1808, inaugurou-se a preocupação com a criação de instituições culturais e científicas, abarcando a formação do Museu Real. A proposta desse artigo é demonstrar sob quais intenções e como o colecionismo se desenvolveu no Brasil sob o Regime Monárquico. PALAVRAS-CHAVE: Brasil Império; Museu Real; Colecionismo. ABSTRACT: The practice of collectionism is old in our society over the centuries there has been a gradual process of change in conceptions of Collectionism and Museum, settling settings according to resignification convenient to their time. At the arrival of the Portuguese court in Brazil, in 1808, inaugurated the concern with the creation of cultural and scientific institutions, covering the formation of the Museu Real. The purpose of this article is to demonstrate under what intentions and how the collectionism developed in Brazil under the Monarchy. KEY-WORDS: Brazil Empire; Museu Real; Collectionism.

***

*

Graduanda do curso de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Profª. Drª. Regina Maria da Cunha Bustamante (LHIA-UFRJ) e membro do Grupo de Estudos Kemet (GEKemet/CEIAUFF).

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Introdução O século XIX foi tempo de um processo difícil: a criação ou redefinição dos Estados nacionais latino-americanos, processo conturbado em todos os países recémcriados. A partir da formação dos Estados-Nações durante o século XIX, a legitimação do poder do governante e a necessidade de criar, além de uma história comum, uma identidade comum, passaram a ser uma questão política importante, gerando inúmeros projetos que abarcassem soluções para essas demandas. (SANTOS, 2002) Dentre os projetos de consolidação da nação estavam a criação de escolas públicas, que conseguiam abarcar com uma parte das crianças; as forças armadas as quais agora tinham regras claras para filtrar futuros interessados na adesão, tais como língua comum e aliança com países. Além dessas formas de difusão dos ideais vigentes, os governantes ainda contavam com a ajuda de diversos homens da arte, os quais produziam obras mais acessíveis à população, como músicas, pinturas e livros. Instituições essas criadas pelos novos Estados-Nacionais que visavam à definição de patrimônio nacional e moderno, os quais garantiam a representação do Estado Nacional que se formava, através de novas concepções de arte, cultura e civilização. (SANTOS, 2002) Além das instituições públicas mais comuns, uma instituição que cumpriu igual função para o império brasileiro em seu projeto de consolidação de uma nação foi o Museu Real, atual Museu Nacional, não somente pelo contexto histórico da construção do Museu, mas pelo processo de mudança, ao longo do tempo, da concepção de “Museu” em todo o mundo; e pelo particular significado de um Museu do século XIX no Brasil, os quais partilhavam da prática da conceptualização de um mundo civilizado e em ascensão por ser uma instituição científica chave. (LOPES e MURRIELLO, 2005) A proposta desse artigo é demonstrar, com base em uma bibliografia correspondente, o processo de mudança das concepções sobre colecionismo e museu ao longo dos séculos, assim como o significado e a importância do cientificismo para a Europa e para o Brasil em pleno século da Segunda Revolução Industrial (ALMEIDA, 2001; LEITE, 2011; LOPES e MURRIELLO, 2005; SANTOS, 2000 e 2002; SCHWARCZ e DANTAS, 2008; SOUZA, 2009; TRIGGER, 2004). Autoras como Lilia Mortiz Schwarcz e Regina Dantas defendem que a prática do colecionismo da monarquia brasileira se resumia a duas hipóteses: uma questão de alteridade, a qual 114 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


definiria “o outro” – aquelas sociedades as quais estavam sendo postas, perpassando outros significados e valores, dentro de um espaço museal como mera exposição e declaração de finitude – e o “eu”; e, por outro lado, tal prática poderia sinalizar a vontade ocidental de se possuir vestígios de todos os estágios civilizacionais para preservá-los. (SCHWARCZ e DANTAS, 2008) As origens do museu A prática do colecionismo é antiga na nossa sociedade, visto que desde a antiguidade é um ato recorrente. Porém colecionar comporta significados diferentes ao longo do tempo, e nem sempre associado a um espaço museológico, mas quase sempre cumprindo a função de poder simbólico, uma vez que cada civilização que pratica o ato de colecionar, ressignifica o objeto da forma que mais for útil a ela. Na antiguidade, era comum saquear os locais conquistados, transformando as riquezas materiais em espólios de guerras, dessa forma, tira-se o objeto do seu uso cotidiano, leva-o para outro espaço e ressignifica-o como um troféu de conquista. (TRIGGER, 2004) Mouseion, vocábulo grego que designa “lugar sagrado dedicado às musas”, deu origem ao termo “Museu”, pois na Grécia Antiga esse espaço era dedicado à contemplação do pensamento, um lugar para o indivíduo poder se dedicar às ciências e às artes. Havia diversas obras – originárias de doações ou ex-votos - em exposição no ambiente, porém não eram para apreciação dos homens, e sim das divindades. O conceito “Mouseion” tomou diversos moldes de acordo com o tempo-espaço, por exemplo, no Egito Ptolomaico, significava algo próximo à universidade moderna, um espaço para a aprendizagem. Na Idade Média, o Museu está diretamente ligado ao contexto religioso, pois quem obtém a maioria das obras de artes é a Igreja, tendo ela o maior acervo em suas mãos. Na Igreja e nos monastérios havia diversas relíquias de santos e outras relíquias doadas por fiéis e pela realeza. (TRIGGER, 2004) A mudança das práticas colecionistas é presenciada em um momento onde tais objetos teriam outras funções para cumprir, funções essas ligadas aos valores históricos. Mais especificamente no século XV, criavam-se os Gabinetes de Curiosidades, lugares aonde a aptidão colecionista da elite, e patrocinados por ela, mostra-se notável, compostos por coleções de extremos exotismos, incluindo fauna e flora. Os Gabinetes foram os lugares que inauguraram a intenção de se ter um único 115 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


espaço para amontoar as coleções da época, porém sem nenhum tipo de organização ao qual se conhece nos museus modernos, pois o objetivo era exatamente ter um espaço para depositar as curiosidades recolhidas pelo mundo, curiosidade essa propícia do homem renascentista, que buscava uma realidade antropocêntrica nos ideais da antiguidade clássica em contraposição ao teocentrismo exacerbado presente na Idade Média. (SOUZA, 2009) Ao final do século XV, há o resgate da palavra “Museu” em homenagem à antiguidade clássica, tipicamente uma ação do ideal renascentista. No entanto, a preocupação em organizar e separar as curiosidades mostra-se presente, ao longo do tempo, quando há a divisão entre artes e curiosidades. As galerias, espaços maiores, sendo as responsáveis pela exposição de obras-primas e os gabinetes, espaços pequenos e particulares, que abarcavam as curiosidades. (SOUZA, 2009). O museu como concebemos hoje é a junção dos ideais Renascentistas com os ideais Iluministas do século XVIII. É, portanto, o resultado de um processo histórico que vai desencadear, cada vez mais, na associação do museu como um espaço de preservação da nação, para suprir as necessidades tais dos estados nacionais europeus. Até o século XVIII, os estados eram monárquicos, religiosos, e a nação era identificada com a realeza, de forma que não havia cidadãos e sim súditos da monarquia específica, e o direito de sucessão ao trono era puramente divino e religioso, sendo, assim, dispensável a preocupação com a legitimidade que o povo haveria de dar. (ALMEIDA, 2001) A Revolução Francesa desorganizou o cenário, principalmente em relação à legitimidade do governo, o qual não haveria mais sentido ser o divino. Os bens da Igreja Católica passam para a mão do Estado e então, na França, o Louvre é convertido em museu, difundindo, assim, princípios como a instrução da Nação e história. No século XIX, o colecionismo andava de mãos dadas com o racionalismo vigente, tendo, obviamente, um caráter cientifico e mais especializado do que os anteriores, substituindo uma cultura de curiosidade por uma preocupação em organizar os artefatos por período históricos. (ALMEIDA, 2001) O espaço do Museu é um objeto de legitimação ideológica dos novos Estados Nacionais, pois a institucionalização do museu o torna “patrimônio nacional”. 116 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


O museu é um espaço propício para a construção de um passado nacional comum, por conter fragmentos de cultura material da maioria dos estágios da civilização e mais especificamente, da nação a qual se quer legitimar. A fabricação de lugares de memória está presente em Napoleão, o qual, em 1803, rebatizou o Museu do Louvre como Museu Napoleão, administrado pelo barão Dominique Vivant Denon, arqueólogo que aconselhou Napoleão a escolher quais obras de artes, oriundas dos países conquistados, deveria levar à Paris. Para Napoleão, havia a necessidade de glorificação não só do presente, mas também dos “grandes vultos”, procurando na exaltação do passado a sede de legitimidade nacional. A legitimidade nacional se dava em diversos âmbitos, como por exemplo, a criação de bandeiras nacionais e hinos nacionais. A construção da nação contava com diversos artistas, pintores e musicistas, todos trabalhando juntos para a promulgação dos símbolos da nação no imaginário nacional através dos valores os quais se queria difundir: civilização, progresso, ordem, urbanismo, conhecimento, entre outros. (LEITE, 2011) O Museu Real À partir da chegada da corte portuguesa no Brasil, em 1808, inaugurou-se a preocupação com a criação de instituições culturais e científicas, iniciativa própria para o novo contexto de inserção na “modernidade” - ser moderna, fazer parte da corrida pelo progresso, transformar-se em uma grande nação, desconstruir a imagem do exotismo tropical, do atraso e da inércia -, que abarcou a formação do Museu Real, Colégio Pedro II e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (PESAVENTO, 1997) O Museu Real, fundado em 1818, localizado em uma casa adquirida pela Corte Real no Campo de Santana no Rio de Janeiro, inicialmente, contou com a direção de um professor da Academia Real Militar, José da Costa Azevedo. O Museu Real continha diversas coleções, desde um acervo mineralógico até numismático, adquiridos através do incentivo a expedições naturalistas estrangeiras e por algumas peças que a Imperatriz Maria Leopoldina trouxe ao vir residir no Brasil ao casar-se com Dom Pedro I.

Leopoldina tinha aptidão para o colecionismo, propício para o século, trouxe

consigo Karl Friedrich von Martius e Johann Baptist von Spix, dois naturalistas famosos, os quais promoveram diversas incursões no país. (MUSEU Real, 2014)

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Além da coleção em questão, dada a Independência em 1822, Dom Pedro I ainda teve a oportunidade de adquirir o maior acervo egípcio da América Latina, em 1824, aonde um certo Nicolau Fiengo desembarcou no Brasil trazendo consigo diversas peças egípcias, dentre elas estelas, estatuetas, papiros, múmias, amuletos, mobiliário, entre outras. Dom Pedro I comprou tais relíquias pelo valor de cinco contos de réis, posteriormente doadas ao Museu Real. Interesse esse pelo Egito Antigo o qual não se limita somente ao primeiro reinado, pois Dom Pedro II, além de fazer viagens ao Egito – escrevendo inclusive um diário sobre a viagem – ainda trouxe consigo, em 1876, um presente do soberano local, Quediva Ismail: um esquife contendo a múmia da ShaAmun-Em-Su, uma cantora-sacerdotisa do templo de Amon, nomeada posteriormente como “A Favorita do Imperador”. O presente não foi doado para o Museu Real, somente faria parte do acervo após a transferência do Museu para o Palácio da Quinta da Boa Vista. Até esse dia, a múmia fez parte da coleção particular do Imperador de pé no seu gabinete. Entenda-se “gabinete” por “Gabinete de Curiosidades”, que consistia em coleções particulares as quais eram abertas à elite para apreciação e estudo. (BRANCAGLION JR, 2004) A antiguidade clássica também teve espaço nesse cenário com a Imperatriz Maria Thereza Christina, esposa de Dom Pedro II, a qual subsidiou diversas escavações arqueológicas em Pompéia e Herculano, sítios arqueológicos recém-descoberto de colônias romanas soterradas pelas larvas do Monte Vesúvio. A partir do dote trazido por Thereza Christina e seus financiamentos arqueológicos, deu-se o atual acervo de antiguidade clássica do Museu Nacional. (AVELLA, 2010) Febre do momento, as duas colônias romanas, riquíssimas em esculturas, afrescos, artefatos, mobiliários, entre outros objetos, foram utilizadas para basear o estilo neoclássico europeu e, consequentemente, o brasileiro, vide os atuais patrimônios tombados construídos no século XIX no Rio de Janeiro como o Hospício Dom Pedro II – atual Instituto Philippe Pinel, erigido para ser um emblema da razão e da ciência, no caso, da ciência médica – e o prédio da Academia Real Militar – atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro -, os quais funcionavam como uma reação a situações novas, mas agindo como referência a situações anteriores numa continuidade artificial (a antiguidade clássica), além de também ressaltarem a ideia de civilização e ordem através da recorrência à arquitetura 118 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


que fazia referência ao classicismo, que, desde meados do século XVIII, foi relacionado a virtudes morais e cívicas calcadas na razão e no equilíbrio, bases para a consolidação da civilização europeia, que o Brasil Império se via como herdeiro e continuador na América. (LEITE, 2011) Com a proclamação da República, o Museu Real passou para o Paço de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista, antiga residência da família real, tornando-se o Museu Nacional em 1892. Todo o acervo do Museu Real, assim como os pesquisadores, foi transferido para o novo local, sendo também incorporado à coleção o acervo particular do antigo imperador. (MUSEU Real, 2014) Dom Pedro II: “A Ciência sou eu” O Imperador Dom Pedro II, definitivamente um homem ilustrado, promoveu a criação de diversas instituições públicas ligadas à educação, arte e ciência no Brasil durante o seu reinado, seguindo o processo do que era ser uma sociedade civilizada no século XIX. Houve a criação do Colégio Pedro II, a faculdade de Medicina, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Museu Nacional que funcionava como local de pesquisa e estudo de diversas pessoas, sendo a principal instituição cientifica do século XIX no Brasil -, ou seja, não só houve a consolidação de instituições existentes, como a fundação de uma ciência nacional. (SCHARWCZ, 1998) Entre inúmeras fontes documentais, encontra-se um artigo nomeado de D. Pedro II no Egypto resultado de uma conferência dada por Nicolas Debanné, que na época ocupava o cargo secretário da Embaixada do Brasil no Egito, no Instituto Egípcio, situado no Cairo. Esse artigo foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro n. 75 de 1912 e demonstra muito sobre a personalidade do imperador envolta de cientificismo e racionalidade: Fallando-vos de d. Pedro, não é de um extrangeiro que me occuparei, mas sim de um dos vossos: por isso, exprimo-vos o meu reconhecimento pela prova de confiança e amizade [...]. D. Pedro II foi o grande soberano de um grande Estado; presidiu brilhantemente por mais de meio século aos destinos de um paiz por si tão extenso quanto toda a Europa; foi o educador de um povo que elle formou desde a infancia como nação, para deixa-lo, em plena edade viril e em plena força, preparado para tornar-se o grande povo, que hoje conhemos. Mas d. Pedro também foi o “imperador homem de sciencias”, como o denominava o seu amigo Pasteur; o “príncipe philosopho”, como appellidava Lamartine; o neto de Marco Aurelio, como o chamava Victor Hugo, 119 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


Membro de diversas sociedades scientificas, do Instituto da Franã e do Instituto Egypcio, foi vosso colega ou de vossos predecessores; e, embora a sua modéstia procurasse ocultar seustitulos, para ele era especial prazer ostentar o ultimo; [...].1

Um homem que afirmava ser a ciência, não era menos do que um simpatizante das ciências. Como um imperador itinerante, realizou múltiplas incursões no Brasil e excursões pelo o mundo - tais visitas se inserem no contexto de construção de uma identidade nacional -: ainda em 1840, explorou o território brasileiro com o objetivo de conhecê-lo e fazer-se conhecer por seus súditos; já a partir de 1870, D. Pedro II visita países no exterior, tais como a Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Egito, Palestina e a Ásia Menor. Conhecido também por sua habilidade em tradução era de fato um linguista de grande porte. D. Pedro II não era somente um imperador ilustrado que se limitava à prática erudita de acumulação de conhecimento, ele estava comprometido em produzir soluções para os problemas internos do Brasil, visando o progresso. (SANTOS, 2002) Através da participação direta ou do financiamento a expedições, pintores, escultores, músicos, cientistas, D. Pedro II incentivou um projeto que lembrava muito o vigente na Europa, com algumas exceções, o Imperador desejava o fortalecimento do regime monárquico e do Estado por intermédio da unificação nacional, que também seria uma unificação cultural. D. Pedro II e a elite política preocupavam-se com a criação de uma memória nacional e a afirmação do sentimento de pertencimento a uma nação comum. (SCHARWCZ, 1998) E a função do Museu Real não foi diferente, pois colecionar objetos significa – consequentemente – ressignificar, e foi exatamente isso que ocorreu com o acervo do museu em questão. Ter artefatos tanto do território brasileiro, como de civilizações antigas, reafirmava a concepção de que o museu era um espaço de representação do passado como símbolo do poder, seja por assimilação do progresso de tais civilizações, seja por imposição de conquista, ou seja, é uma fatídica “musealização” da história – inventada ou não - do país. A afirmação de elementos de glorificação da nação ou do Estado resgatando o passado para legitimá-la foi uma característica vigente do século XIX europeu, copiado por D. Pedro II, porém com 1

Fragmento extraído de: DEBANNÉ, Nicolas. D. Pedro II no Egypto. Revista do Instituto Historico e Geographico brasileiro, v. 75. 1912. p. [131]-157.

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algumas particularidades, como, por exemplo, a escola romântica presente no Brasil destoante do puro neoclassicismo europeu – apesar da escola neoclássica estar extremamente presente em edifícios para promulgar as concepções de ordem e legitimação. (LEITE, 2011) Como afirma Schwarcz e Dantas, o Museu possuía a função de reafirmar a identidade de D. Pedro II como um homem das ciências, visto que o próprio tinha o projeto pessoal de ser o exemplo de cientista e mecenas, considerando que se o país não é configurado dentro as grandes civilizações, ao menos as possui, conseguindo receber um lugar paralelo a elas e se igualando ao projeto Europeu de nação. Dessa forma, as autoras concordam que o museu servia como espelho para D. Pedro II, pois reproduzia e invertia sua imagem: reproduzia, pois de fato lhe fez igual ao estereótipo civilizacional europeu o qual visava parecer; mas também invertia, de modo que dentro do museu o que mais havia era representação. Entretanto, com sua imagem refletida ou invertida, o imperador fazia de sua coleção uma espécie de teatro do seu poder. (SCHWARCZ e DANTAS, 2008) Considerações Finais Os monarcas do século XIX foram grandes colecionadores e grande parte de suas coleções particulares se reverteram em Museus Nacionais. Dom Pedro II, um visível observador da Europa, não fez menos do que ser um grande colecionador de artefatos tribais e outras curiosidades, de acordo com os estereótipos oitocentistas. Colecionar e dar um novo significado aos objetos, no Brasil, demonstrou a aptidão pela criação de identidades particulares e coletivas, assim como baseou o projeto de nação pautado na alteridade do “eu” – civilizado e, portanto, igualado à Europa e – em contraposição ao “outro” – não-civilizado ou bárbaro –. Houve limites nessa pesquisa, de forma que se podem explorar outros campos, como os ideais positivistas e românticos – a necessidade de preservar vestígios do passado para o futuro, completando o processo histórico da humanidade - presentes no Brasil no século XIX e uma discussão mais profunda sobre como as elites brasileiras participavam do espaço museal e como contribuíam para o projeto nacional. Um tema que poderá ser desenvolvido posteriormente gira em torno da influência positivista para

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a organização do museu, de modo que a vontade de colecionar diversos estágios da civilização é impulsionada pelo mito do progresso. BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de. O “Colecionismo Ilustrado” na Gênese dos Museus Contemporâneos. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 33, 2001. AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina Maria de Bourbon, uma imperatriz silenciada. In: Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade – ANPUH/SP. 2010. BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. London: Routledge, 1995. BRANCAGLION JR., Antonio. As Coleções Egípcias no Brasil. In: BAKOS, Margaret (org.). Egiptomania – O Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004. DANTAS, Regina Maria Macedo Costa. A Casa do Imperador: Do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional. Dissertação (Mestrado em Memória Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Memória Social, 2007. DEBANNÉ, Nicolas. D. Pedro II no Egypto. Revista do Instituto Historico e Geographico brasileiro, v. 75. 1912. p. [131]-157. LEITE, Beatriz. A arte como expressão da glória: Napoleão Bonaparte. São Paulo: Altamira editorial, 2011. LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997. __________________ Museu, História, Educação, e Ciências – Contradições e Exclusões. Ciências e Ensino, São Paulo, n. 10, Junho de 2001. LOPES, Maria Margaret e MURRIELLO, Sandra Elena. Ciências e educação em museus no final do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12 (suplemento), p. 13-30, 2005. MUSEU Real. In: Dicionário histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/musnac.htmAcesso em: 12 de maio 2014. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Políticas da memória na criação dos museus brasileiros. Cadernos de Sociomuseologia - Lisboa, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, n. 19, 2002. 122 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


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Artigo recebido em: 9 de agosto de 2013 Aprovado em: 11 de setembro de 2013

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NEONAZISMO ONLINE: VALHALLA88 E CIUDAD LIBERTAD DE OPINIÓN, ESTRATÉGIAS E APROPRIAÇÕES DO CIBERESPAÇO (2000-2005) Monica da Costa Santana* RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as principais estratégias de atuação feitas pelos sítios eletrônicosValhalla88 (http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm) do Brasil e o Ciudad Libertad de Opinión (www.libreopinion.com), da Argentina, durante os anos de 2000 a 2005. Estes sítios, criados respectivamente em 1997 e 1999, enquanto estiveram em atividade difundiram por meio do ciberespaço diversas mensagens de conteúdo intolerante e preconceituoso e incitaram direta ou indiretamente a prática de ações violentas. Desta maneira, investigamos como grupos neonazistas têm se apropriado do ciberespaço para divulgarem suas ideias políticas. Nosso estudo será realizado tomando como referência a análise comparativa, partindo das reflexões produzidas por Marc Bloch. Desta forma, buscaremos problematizar as realidades estudadas a partir das semelhanças e diferenças percebidas em cada um dos grupos analisados. Assim, ao tentarmos traçar um perfil desses grupos na tentativa de entender como se comportam e atuam no ciberespaço esperamos contribuir para os estudos sobre a atuação dos grupos neonazistas no século XXI. PALAVRAS-CHAVE: ciberespaço; neonazismo; História Comparada ABSTRACT: This study aims to analyze the main action strategies made by electronic sites Valhalla88 (http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm) of Brazil and Ciudad Libertad Opinión (www.libreopinion.com) of Argentina, during the years 2000-2005. These sites, created respectively in 1997 and 1999, while they were in activity spread through cyberspace several messages intolerant and bigoted content, and directly or indirectly incited the commission of violent acts. Thus, we investigated how neo-Nazi groups have appropriated the cyberspace to disseminate their political ideas.Our study will be conducted with reference to comparative analysis, departing from the reflections produced by Marc Bloch . Thus, we will seek to problematize the realities studied from perceived similarities and differences in each of the groups. Thus, when we try to draw a profile of these groups in an attempt to understand how they behave and act in cyberspace hope to contribute to the studies on the role of neo-Nazi groups in the XXI century. KEYWORDS: cyberspace; neo-Nazism; Comparative History

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Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Integrante do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE). E-mail: monica.ifcs@gmail.com. Orientador: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira (UFRJ).

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Introdução Se antes havia alguma dúvida a respeito das possibilidades oferecidas pela Internet para o estabelecimento da comunicação, hoje em pleno século XXI parece cada vez mais consolidada a ideia de que ela revolucionou não só as formas de comunicação como também de informação. “As sociedades e culturas diferentes, que haviam começado suas jornadas históricas separadamente, [agora estão] viajando juntas na mesma ‘via expressa deinformação’” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 267). Esta informação tem sido um dos principais elementos da era digital. O sucesso da Internet talvez possa ser explicado através das suas características, esta ferramenta de comunicação que teve suas “origens na física e nas políticas de defesa durante o período da Guerra Fria” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 300) permite àqueles que têm acesso aos seus serviços utilizá-las de diversificadas maneiras. A versatilidade e as facilidades de uso oferecidas pela internet a transformaram em uma ferramenta indispensável para o homem no século XXI. De acordo com Manuel Castells, “a Internet, [...] tornou-se a alavanca na transição para uma nova forma de sociedade – a sociedade de rede –, e com ela para uma nova economia” (CASTELLS, 2003, p. 08). A web inova as maneiras de relacionamentos estabelecidas entre os homens e a comunicação passa a adquirir aspectos peculiares. A vida humana parece estar sendo gerenciada pelos novos instrumentos de telecomunicação e informação: As relações entre os homens, o trabalho, a própria inteligência dependem, na verdade, da metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. Escrita, leitura, visão, audição, criação, aprendizagem são capturados por uma informática cada vez mais avançada. (LEVY, 1993, p. 07)

Assim, cada vez mais entramos no ambiente virtual estabelecemos relacionamentos, negócios, construímos perfis, buscamos informações ou participamos da informação quando opinamos sobre determinada matéria ou tema nas redes sociais. O ciberespaço1 tem possibilitado diversas formas de atuação humana. Sendo conhecida por não possuir proprietários ela está aberta para qualquer tipo de usuário. Este aspecto faz do ciberespaço um ambiente propício para a ação de grupos extremistas. 1

De acordo com Pierre Levy, o ciberespaço é “o novo meio de comunicação que surge da interconexão de mundial de computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ele abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”. Cf. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 17.

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A popularização da internet a partir da década de 1990, associada à falta de uma legislação mais rígida para impedir que qualquer mensagem seja divulgada através da web transformou este ambiente em um dos principais meios de difusão de ideias extremistas por grupos identificados como neonazistas. O baixo custo de manutenção, a aparente facilidade de uso e o benefício do anonimato que a Internet oferece aos seus usuários podem ser alguns dos fatores que transformaram esse espaço virtual numa alternativa para esses grupos organizarem seus movimentos. Neste trabalho analisaremos dois sítios eletrônicos que durante o período em que estiveram em atividade no ciberespaço, além de difundirem mensagens de conteúdo intolerante e preconceituoso incitando direta e/ou indiretamente a prática de atos violentos também ofereceram diversos materiais (textos, imagens, cartazes, postagens e símbolos) que se configuraram como verdadeiros instrumentos de doutrinação. Nesse estudo analisaremos os sítiosValhalla88 e o Ciudad Libertad de Opinión. Para tanto, fazemos uso da metodologia comparativa por considerarmos esta uma proposta metodológica que nos proporciona a investigação simultânea de um mesmo fenômeno que atravessa duas realidades nacionais distintas abrindo espaço para a formulação de questões e problemas resultantes desta comparação.

História Comparada: limites e possibilidades metodológicas

A História Comparada se apresenta como um novo campo histórico em contraposição a velha historiografia nacionalista que esteve bem acomodada ao contexto nacional dos Estados-nações até, aproximadamente, meados do século XX. Sendo vista inicialmente com desconfiança pelos historiadores profissionais acostumados com as tradicionais práticas historiográficas, a História Comparada vem aos poucos ganhando espaço no ambiente acadêmico. As discussões em torno do texto intitulado “Por uma história comparada das sociedades europeias”, escrito por Marc Bloch em 1928, expõem as preocupações voltadas para uma possível reformulação nos trabalhos historiográficos. A proposta seria levar para o ambiente acadêmico o debate sobre uma nova maneira de olhar as pesquisas de História. Desse modo, a História Comparada é apresentada como alternativa para libertar as análises históricas dos limites nacionais, abrindo, de acordo

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com José D’Assunção Barros, um mundo de possibilidades para as investigações nesta área. Contemporânea de um contexto social e político em que os nacionalismos exacerbados direcionam as nações para o interior de seus territórios, a História Comparada se apresenta como uma oportunidade ímpar para redirecionar o olhar sobre outras realidades e ajudar a estabelecer diálogos entre sociedades distintas. Cientes que “comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenças de modo a se alcançar determinados objetivos intelectuais” (KOCKA, 2003, p. 01) utilizamos a metodologia comparativa em nosso trabalho de acordo com o que Marc Bloch chama de “História Comparada Problema”, sendo assim “uma história que se constrói em torno de problematizações específicas, e não de curiosidades ou meras factualidades” (BARROS, 2007, p. 06). Partindo do princípio que a comparação amplia o campo de visão do pesquisador e o ajuda na construção de problemas bem como em soluções criativas para os questionamentos levantados, a análise comparativa nos permite pensar questões ligadas às singularidades e similaridades como também nos proporciona estudá-las de forma conjunta, percebendo as possíveis ligações estabelecidas entre elas. Desta maneira, de acordo com José D’Assunção Barros, a comparação como método historiográfico oferece: [...] àquele que a utiliza determinadas potencialidades e certos limites, forçando-o antes de mais nada a definir o que pode e o que não pode ser comparado, a refletir sobre as condições em que esta comparação pode se estabelecer, a formular estratégias e modos específicos para a observação mais sistematizada das diferenças e variações, acrescentando-se ainda a necessária reflexão de que alguns tipos de objetos permitem este ou aquele modo de observação e de análise, e não outro. (BARROS, 2007, pp. 5-6)

Dessa maneira, torna-se imprescindível para a realização da análise comparativa a definição sobre “o que comparar” e “como comparar”. Para Marc Bloch há dois caminhos que podem ser percorridos pelos historiadores que adotarem o método comparativo em seus estudos. O primeiro caminho, mais abrangente ocorre quando:

[...] se eligen sociedades separadas en el tiempo y el espacio por distancias tales que las analogias observadas en uma e outra parte, entre un fenómeno e otro, no puedan explicarse, evidentemente, ni por 127 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


influencias mutuas ni por comunidad de origen. (BLOCH, 1963, p. 65)

Neste caso, não havendo elementos que simultaneamente influencie as sociedades examinadas o que se busca com este tipo de comparação é a observar as analogias feitas através da formulação de hipóteses. No entanto, este tipo de análise está sujeito a alguns riscos, entre eles podemos citar as falsas analogias e o anacronismo. Ou seja, o transplante “de um modelo válido para uma época ou espacialidade social para um outro contexto histórico onde o modelo não tenha sentido real” (BARROS, 2007, p. 11) poderá corresponder apenas a uma ficção construído pelo próprio historiador. Outro caminho apontado por Bloch para a realização da análise comparativa refere-se ao estudo feito paralelamente entre sociedades próximas no tempo e no espaço, no qual estão “constantemente influídas unas por las otras, y su sincronismo, a la acción de las mismas grandes causas, provenientes, almenos parcialmente, de un origen común (1963, p. 66). Através deste caminho é possível analisarmos duas realidades por meio da iluminação recíproca e chegarmos a conclusões menos hipotéticas e mais precisas sobre as questões levantadas (BLOCH, 1963). É evidente que o método comparativo não exime o historiador de cometer equívocos como também não deve ser entendido como a única fórmula para a realização do trabalho histórico. No entanto, a comparação se apresenta como uma alternativa interessante para a análise historiográfica ao ajudar o historiado a sair de sua zona de conforto à medida que torna a pesquisa menos provincial “abrindo perspectivas com consequências para a atmosfera e estilo da profissão” (KOCKA, 2003, pp. 39-44) e desta maneira, lhe permite enxergar problemas e formular questionamentos de outro modo não percebido.

Valhalla88 e Ciudad Libertad de Opinión: estratégias de atuação

Criados respectivamente em 1997 e 1999 os sítios Valhalla88 e Ciudad Libertad de Opinión durante o período em que estiveram em atividade mantiveram uma intensa relação de cooperativismo estabelecida através de links que ambos mantinham em suas principais páginas virtuais. O intuito era promover a divulgação simultânea de seus serviços tanto para os internautas que visitassem o Valhalla quanto o Libertad de Opinión. 128 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


Estes sítios chamam atenção pelos serviços e materiais que disponibilizaram no ciberespaço. Entre esses materiais foi possível encontrar diversas postagens (mensagens) com referências claras ao antissemitismo, o preconceito racial e a xenofobia. Ao longo desse estudo analisaremos algumas dessas postagens. O portal argentino Libertad de Opinión criado por Alejandro Carlos Biondini sob os princípios de Deus, Pátria, Justiça Social e Família se define como uma “Ciudad Nacionalista” e, de acordo com seu idealizador, sua criação tem como finalidade defender a liberdade de expressão na Internet, abrindo suas portas e oferecendo hospedagem gratuita a camaradas e organizações que têm seus sites ou atividades barradas pelo que eles denominam de pressão mafiosa desempenhada por determinados grupos contrários as suas ideias políticas.2 A hospedagem gratuita oferecida pelo servidor argentino ocorreu de maneira intensa entre os anos de 2000 a 2005. Entre os sites hospedados pelo Libertad de Opinión podemos citar: Catalunya NS –http://www.libreopinion.com/members/jomp/, Movimiento Nacionalista de Venezuela–http://www.libreopinion.com/members/145/, Movimiento

Nacional

Socialista

http://www.libreopinion.com/members/mnsdp, http://libreopinion.com/members/ordemlusa/,

Despierta Orden Racial

Perú

Lusa Pride

http://www.libreopinion.com/members/racialpride/usa.htmle Valhallahttp://libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm,

o

(USA) sítio

brasileiro

posteriormente

conhecido por Valhalla88. O principal lema usado no Ciudad Libertad de Opinión era a defesa pela liberdade de expressão. Registrado no próprio nome do servidor argentino, estas palavras frequentemente evocadas por Biondini em seus textos, discursos e editoriais também se transformaram em sua bandeira de luta política e encontraram no ambiente virtual espaço para serem difundidas: Que nadie se espante por esta ola de pensamientos libre que comieza a surcar la red. O mejor dicho, que sólo se espante los represores del pensamiento y de las libertades ajenas, pues seremos, pese a quien pese, un verdadero factor de poder en la lucha contra la intolerancia y el terrorismo sionista, y a favor de la independencia definitiva de nuestro Pueblo.3

2

A declaração dos princípios divulgada pelo Libertad de Opinión pode ser encontrada através do link: http://web.archive.org/web/20000305233327/http://libreopinion.com acesso em 11 de abril de 2012. 3 Ciudad Libertad/Libre Opinión – Inauguración. Disponível em: http://web.archive.org/web/20000126105831/http://libreopinion.com acesso em 11 de abril de 2012.

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Se pautando em princípios democráticos, Biondini utilizou a web para propagar suas ideias políticas de caráter duvidoso. Durante os anos de 200 a 2005 manteve uma intensa e articulada rede de contatos com sítios que pregavam a violência e intolerância ao outro (este outro era representado na figura do judeu, estrangeiro ou negro). No universo virtual, um território sem donos e sem fronteiras, no qual as informações e as pessoas que navegam neste espaço se tornam uma só coisa, a liberdade de expressão/pensamento atinge seu ponto máximo. É neste lugar sem caminhos fixos que “os transgressores não deixam pegadas [...] e, cada um é uma realidade tão verdadeira como as sombras da caverna de Platão” (ALEXANDRE apud GIBSON, 2002, p. 259). Ao lançar-se no ciberespaço, Alejandro Biondini mostrava conhecer os benefícios de estar neste ambiente. Segundo ele, “querer prohibir definitivamente algo en Internet, es como querer teñir el océano con un frasco de tinta, es un acto de soberba y majestuosa imbelicidad”.4 A clareza de que o ciberespaço possui dimensões infinitas possibilitou a Biondini construir uma verdadeira cidade virtual à serviço da extrema-direita neonazista. O Valhalla88, um dos sítios hospedados pelo portal argentino, por aproximadamente uma década de atividade na web disponibilizou uma grande quantidade de materiais que ajudaram a alimentar o ódio e a violência entre seus simpatizantes. Denominando-se como “o mais ativo site NS da América do Sul” o sítio brasileiro incentivou jovens a organizarem grupos de militância denominados por eles como “células NS”, no intuito de difundirem as ideias políticas e ampliarem seu o espaço de atuação. Uma das estratégias utilizadas pelo Valhalla era a divulgação de materiais com instruções de como organizar grupos extremistas em diferentes cidades brasileiras. Tendo em vista as possíveis dificuldades encontradas pelos jovens para efetivarem sua militância, eles eram instruídos desde o que fazer para consolidar o grupo até como se comportar diante de uma possível abordagem policial. O primeiro passo sugerido pelo Valhalla para a consolidação de células de militância era a “organização de um grupo de discussão [que a princípio, de acordo com os idealizadores do sítio], não se trata de fazer política, somente estabelecer um

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KALKI (Alejandro Biondini). Sólo prohíben los débiles. Revista Libertad de Opinión. Ano I, nº 5 – dezembro de 1997. Disponível em: http://web.archive.org/web/20010219003143/http://www.libreopinion.com acesso em 17 de junho de 2013.

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ambiente em que as ideias se mantenham”.5 A célula deveria ter no máximo 05 membros ou, se preferisse, o indivíduo poderia agir sozinho se tornando o que eles denominavam de “lobo solitário”. Assim, caso fossem pegos não comprometeriam a ação do movimento. Para o Valhalla88 “o futuro do movimento depende do fanatismo, mesmo da intolerância, com a qual seus adeptos o defenderem como a únicacausa justa”.6 Diferentemente do Valhalla, o Ciudad Libertad de Opinión além de servir como um ambiente de busca e divulgação de sítios neonazistas também se configurou como um portal informativo. Por meio do Libertad de Opinión, Alejandro Biondini publicou informações ligadas ao contexto político da Argentina e, fazendo uso do ambiente virtual vociferava suas críticas às lideranças, não apenas da Argentina, como também de outros países latino-americanos, a exemplo de Brasil, Venezuela e Bolívia. Alejandro Carlos Biondini um antissemita declarado, desde sua juventude participou de movimentos políticos, sendo membro da juventude peronista e posteriormente do Partido Justicialista. Biondini nunca escondeu sua simpatia pelo nazismo e não foi responsável apenas por idealizar o portal Ciudad Libertad de Opinión, mas também pelo Partido Nuevo Triunfo (P.N.T).7 Por meio desse partido tentou, sem sucesso, concorrer nas eleições para a presidência do ano de 2003. Ao criar o portal Biondini tinha entre outras pretensões divulgar seu partido político. Apesar de apresentarem estratégias de abordagem diferenciadas tanto o sítio brasileiro quanto o argentino mantinham um espaço de contato com seus membros e

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As instruções de como organizar uma célula de militância estão disponível através do link: http://web.archive.org/web/20020221142208/http://www.libreopinion.com acesso em 06 de setembro de 2012. 6 As formas de atuação foram disponibilizadas pelo Valhalla88 através do link: http://web.archive.org/web/20031028073727/http://libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm acesso em 06 de setembro de 2012. 7 A criação do Partido Nuevo Triunfo teve como motivação o rompimento de Biondini com o Partido Justicialista (Peronista) em 1989. Neste ano, Carlos Menem o representante do peronismo, assume o poder na Casa Rosada e, de acordo com Alejandro Biondini, “[...] ya en el discurso de la victoria hace un giro de 180 grados. Cuando asume, se transforma en el Judas del Peronismo [...]”. A divergência de ideais leva Kalki a criar em 1990 o Partido Nacionalista de los Trabajadores (P.N.T.). No ano de 1991 é acrescentado o termo Socialista ao nome do Partido que passa a ser identificado por Partido Nacionalista Socialista de los Trabajadores. A base política que originou o Partido dos Trabalhadores surgiu em 04 de julho de 1983 com a criação da revista “Alerta Nacional”. Mas, seria em 02 de abril de 1984 que a “Agrupación Justicialista Alerta Nacional” faria sua apresentação oficial. Nos anos seguintes o partido mudou de nome e passou a se chamar Partido Nuevo Triunfo. Cf. SANTANA, Monica da Costa. Intolerância digital: Cibercultura e extrema-direita no site argentino Ciudad Libre Opinión (1999-2009). (Monografia). Universidade Federal de Sergipe (UFS) – São Cristóvão, 2011, p. 28.

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simpatizantes. O Valhall88 estabelecia contato por meio da Voz de Odin8 já o Libertad de Opinión realizava este contato através do Libro de Visitas. A seguir apresentamos uma postagem feita através da Voz de Odin por um simpatizante do Valhalla:

Sou decendente de duas famílias tradicionais europeias, uma portuguesa por parte paterna à qual possui um festival anual e uma árvore genealógica atualizada; e a outra italiana e austríaca por parte materna à qual possui um livro que foi lançado esse ano sobre o desbravamento brasileiro à partir de meu patriarca europeu. Meu tio foi o primeiro a quebrar nossa linhagem pura, loiro de olhos azuis casou-se com uma negra (todas suas irmãs também casaram-se com brancos) e teve duas filhas mestiças que passaram a pertencem à nossa família e acabaram com um ramo da família. Meu primo largou sua namorada, nascida na Alemanha e que passou sua infância na Itália antes de vir para o Brasil, para trocá-la por uma mestiça. Minha irmã de pele muito branca e olhos claros já namorou um mestiço, um amarelo e agora um mulato. Estou presenciando a decadência de minha família, já cansei de argumentar sobre os males disso, o que ainda posso fazer para preservar nossa linhagem caucasiana? Resposta: Lamentavelmente o plano judaico de "miscigenar e conquistar" parece estar funcionando muito bem, as pessoas já não possuem um mínimo senso de identidade racial. A única coisa que você pode fazer para preservar sua linhagem é jamais se misturar com outras raças e educar seus filhos desde cedo para que eles possuam orgulho de sua raça e saibam que tem um dever para com a preservação desta.9

Nesta postagem, publicada em 2004, podemos perceber a indignação de um jovem com os relacionamentos estabelecidos por seus familiares. Sua maior preocupação é preservar a “linhagem caucasiana” da qual diz ser descendente, sua fala pode ser identificada com as ideias de purificação racial difundidas pelo nazismo (19331945). Este jovem demostra uma clara decepção ao ver seus parentes próximos se relacionarem com pessoas que, segundo ele, são “mestiço, amarelo e mulato” e se

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O nome Odin faz referência a um Deus mitológico – mitologia germânica. “Deus incansável que sempre que mais combates, mais força, mais prazeres, mais mulheres; quer impor a todos e a tudo a lei de sua vontade; à procura do poder absoluto; o arquétipo de um Fausto. É também o deus dos mortos, que percorre os campos de batalha as vítimas às Valquírias. Símbolo da violência cega: viaja nas dobras de um manto azul-noite, com um grande chapéu escondendo o seu rosto; só tem um olho e aparece inesperadamente”. Cf. CHEVALIER, Jean et al. Dicionários de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 18 ed. Trad de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 9 Esta postagem está disponível no link: http://web.archive.org/web/20040603041404/http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla.htm acesso em 08 de novembro de 2012.

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mostra determinado a fazer o que for preciso para evitar que sua família perca a sua “linhagem caucasiana”. Esta postagem nos mostra um explícito posicionamento intolerante e preconceituoso em relação a pessoas que por não possuírem determinadas características físicas (loiras, olhos azuis, pela clara) são vistas com indiferença e, em alguns casos, com hostilidade. As ideias do jovem responsável pela postagem são alimentadas pelo webmaster do Valhalla que responde a sua mensagem. Para este, a preservação racial é algo que deve ser ensinado desde a primeira infância e incentiva o jovem a não se relacionar com pessoas que não possuam as mesmas características físicas que as suas. Aqui podemos perceber uma clara aprovação e estímulo a um comportamento preconceituoso e intolerante. Esta postagem foi disponibilizada no sítio brasileiro podendo ser acessada por qualquer pessoa que visitasse o sua página virtual. Deste modo, não só este jovem como outros (que possivelmente leram a postagem) foram induzidos e estimulados a praticarem a intolerância racial. Em outra postagem, desta vez feita no Libro de Visitas do Libertad de Opinión, um jovem entusiasmado com a criação do portal argentino, expressa sua satisfação com a possibilidade de eliminar o que ele denomina de “inimigos”: Saludos Camaradas: En esta, la más trágica hora una sola consigna se alza para indicarnos el camino: el judaismo y la izquierda son el enemigo. Judaísmo+izquierdismo=degradación social y droga. La lucha es dura pero si todos nos congregamos en torno al PNT nuestra lucha se hara sentir. Sieg heil, mein Führer!10

Durante o período em que os regimes totalitários estiveram no poder a comunidade internacional foi testemunha de uma das mais violentas perseguições realizadas sobre o povo judeu. Apesar de não terem sidos os únicos as sofrerem com as perversidades desses regimes (principalmente no caso alemão onde a perseguição aos judeus ocorreu com maior intensidade) os judeus receberam o desagradável título de “inimigos da nação”. Nesta postagem podemos perceber que a ideia de “inimigos da nação” relacionada aos judeus continua sendo propagada e sua imagem vinculada de forma

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Esta postagem está disponível no link: http://web.archive.org/web/20001021162927/http://libreopinion.com/ acesso em 08 de novembro de 2012.

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pejorativa à decadência da sociedade. O entusiasmo apresentado pelo jovem com o Partido Nuevo Triunfo mostra que apesar de não obter os resultados satisfatórios nas disputas eleitorais, Alejandro Biondini conseguiu atrair jovens dispostos a lutarem por sua causa política, mesmo que esta tenha sido construída a partir de práticas de intolerância, antissemitismo e violência. Em ambos os sítios eletrônicos pudemos encontrar referência ao judeu. No sítio brasileiro,ele aparece não apenas referenciado em textos revisionistas como também representado em diferentes tipos de imagens. Em uma das charges publicadas pelo Valhalla em 2005, encontrada através do link Cartoons, um homem branco, conforme visualizado na própria imagem, é subornado por um judeu:

Figura 1: Charge disponível publicada no Valhalla88 através do link cartoons em 2005. Disponível em http://web.archive.org/web/20061108142941/http://www.valhalla88.com/cartoons/ acesso em 22 de setembro de 2011.

Sempre com aparência deformada e em busca de dinheiro o judeu é apresentado como o mal que oprime o homem branco. Para tanto, se utiliza da “farsa do holocausto” para justificar suas ações. No texto Os mentirosos números de Auschwitz encontrado no sítio em 2005 por meio do link Artigo, o holocausto é descrito como uma farsa/mentira que foi inventada no intuito de extorquir o povo alemão:

A exploração dessa farsa/mentira, por incrível que pareça, rende bilhões de dólares, até hoje, aos criadores/inventores/exploradores do chamado ‘holocausto judeu’, pagos pela Alemanha - sob ameaças de boicotes comerciais e outras punições, por parte e outras punições, por parte dos vencedores - pois nenhum dos 68 países que estiveram em guerra com a mesma assinou qualquer tratado de Paz até agora, fato

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que a torna totalmente submissa e que nos leva a taxa-la de ser uma Colônia Sionista.11

Descritos como mentirosos, oportunistas e trapaceiros, os judeus são mostrados pelo Valhalla88 como uma ameaça a supremacia branca, sendo eles responsáveis por um grande plano de dominação mundial. Desta forma, eles se utilizam o holocausto (também chamado de “holoconto” pelos membros do site) que, segundo os criadores do Valhalla, é uma grande invenção criada com o objetivo de coagir a sociedade para conseguirem o que desejam. No Libertad de Opinión, a postagem de imagensfazendo alusão a judeus, também eram uma prática comum. Além disso, Alejandro Biondini frequentemente fazia referência ao judeu para expressar sua indignação a respeito dos abusos que, segundo ele, o povo judaico tem cometido sobre os direitos humanos. De acordo com Biondini: Los judíos cuentan con el curioso diploma de tener el único Estado en el mundo que ha legalizado la tortura, que ha sido condenado por genocidio en numerosas oportunidades por las Naciones Unidas, y que no obstante, sigue cobrando millonarias indenizaciones por otro genocidio que nunca existió.12

Desta maneira, Alejandro Biondini alicerçava seus discursos, a partir de um antissemitismo que ele buscava justificar por meio de uma inversão dos elementos vítima – carrasco, colocando o povo judaico como representante do segundo elemento. Ao terminar sua declaração com a frase: “sigue cobrando millonarias indenizaciones por otro genocidio que nunca existió”, podemos perceber as inclinações de Biondini às teorias defendidas pelo revisionismo histórico. Ambos os sítios encontraram caminhos distintos para lançarem-se no universo digital, em cada um desses ambientes encontramos estruturas bem organizadas e serviços variados que permitiam a qualquer pessoa ou grupo as utilizarem para a construção de seus próprios movimentos. Fica evidente que as novas tecnologias da informação, principalmente a Internet, têm se transformado em um dos principais espaços de reorganização da extrema direita neonazistas no século XXI. 11

“Os mentirosos números de Auschwitz”. Texto encontrado no site Valhalla88 através do link artigos. Disponível em: http://web.archive.org/web/20050516002940/http://www.valhalla88.com acesso em 26 de junho de 2012. 12 BIONDINI, Alejandro Carlos. “Sólo prohíben los débiles”, 1997. Libertad de Opinión. Disponível em: http://web.archive.org/web/20010219003143/http://www.libreopinion.com acesso em 17 de junho de 2013.

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Conclusão

Desde a criação da Internet e sua consequente popularização, presenciamos seu desenvolvimento até o momento em que ela se tornou praticamente o tecido de nossas vidas (CASTELLS, 2003, p. 07). As possibilidades de uso desta ferramenta parecem não ter limites e abrem espaço para a atuação de diversas pessoas, grupos ou movimentos políticos/sociais com diversas finalidades. É nesta seara de possibilidades que grupos neonazistas têm agido com aparente sucesso na construção de ambientes virtuais nos quais podem organizar seus eventos e difundir mensagens diversas. A partir dos anos de 1990 grupos neonazistas intensificaram suas ações em diversos países por todo o mundo. O caráter racista e xenofóbico desses movimentos constitui, conforme Flávio Koutzii, uma ameaça para as sociedades multiétnicas (KOUTZII, 2000, p. 07). Protegidos por trás de seus computadores, sendo que o formato apresentado pelo ciberespaço “garante o anonimato, enquanto que a extensão permite alcançar milhares de pessoas ao mesmo tempo, num tempo menor do que o necessário com outro veículo o que exponencializa esta forma de socialização” (DIAS, 2007, p. 37), os neonazistas, apesar de não contarem com um grupo numeroso de seguidores, são significativamente ativos. Livres nas ruas e anônimos no ciberespaço os neonazistas navegam pelas ondas ópticas da Internet reorganizando seus movimentos e disseminando o ódio. O crescente uso das tecnologias da informação à serviço de grupos extremistas tem sido cada vez mais comum e, como aponta Manuel Castells, sendo a Internet “a extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas modalidades” (2003, p. 100), é preciso estar atentos as silenciosas, no entanto, perigosas manifestações desses grupos.

FONTES: Ciudad Libertad de Opinión (www.libreopinion.com) Valhalla88 (http://www.libreopinion.com/members/sul88/valhalla88.htm) Links acessados http://web.archive.org/web/20000305233327/http://libreopinion.com acesso em 11 de abril de 2012. 136 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


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Artigo recebido em: 20 de agosto de 2013 Aprovado em: 07 de outubro de 2013 139 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


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RESENHA DE: ROBERTS, Andrew. A tempestade da guerra: uma nova história da Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Record, 2012, 814 p. João Arthur Ciciliato Franzolin*

Não são poucos os historiadores que consideram os eventos da Segunda Guerra Mundial, além de suas causas, como suficientemente estudados. De fato, a quantidade de trabalhos sobre o tema, acadêmicos ou não, cresce a cada ano. No entanto, poucos são aqueles que distinguem-se do conjunto, o que não é o caso do livro de Andrew Roberts, “A tempestade da guerra”. Fruto de ampla pesquisa bibliográfica, suas mais de 800 páginas pretendem estabelecer, como afirma o subtítulo, uma nova compreensão a respeito do conflito de 1939-1945, mas graves falhas acometem a obra como um todo. Escrito por Andrew Roberts, historiador formado pela Universidade de Cambridge e publicado originalmente em 2009, pela Penguin inglesa e em 2012 no Brasil pela Record, o livro foi largamente aplaudido por especialistas importantes como Michael Burleigh e Richard Overy como uma nova contribuição para a já extensa bibliografia sobre o assunto, o que é passível de contestação. Com o nome retirado de discurso de Winston Churchill datado de 1940, a obra encontra-se repartida de maneira tradicional, ou seja, em ordem cronológica aos eventos do conflito global. Tal divisão já reflete a estrutura do texto vindouro, apoiado em maciça descrição de eventos e batalhas. Por sinal, este é um dos muitos defeitos da obra de Roberts: procurou-se dar atenção demasiada a aspectos militares e políticos em detrimento de tantos outros igualmente importantes, como questões sociais e propagandísticas, dentre outras, como havia feito em 2006 seu compatriota Norman Davies (2009). Depois de um prefácio com os agradecimentos e a listagem de museus e instituições visitadas por Roberts em toda a Europa (nos quais não houve qualquer contato do historiador com fontes primárias em língua alemã, russa, italiana, japonesa ou francesa, salvo as escritas em inglês) inicia-se o texto principal composto de três partes, intituladas “Ataque”, “Virada” e “Desforra”, cada uma delas composta de seis capítulos, contabilizando dezoito, além de um prelúdio e uma conclusão. Procurou-se estabelecer a cronologia de forma a abarcar os acontecimentos de acordo com a ascensão, apogeu e queda da Alemanha e Japão, provocadores do conflito. *

Mestre em História - Doutorando – Instituto de História e Pós-Graduação em História Comparada. Email: joaoarthurfranz@gmail.com

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No prelúdio, intitulado “O Pacto”, cujo título provém da assinatura do pacto de não-agressão nazi-soviético de 1939, Roberts escreve a respeito dos antecedentes da Segunda Guerra Mundial na Europa, focando exclusivamente as ações da Alemanha, tais como a ocupação da Renânia, o Anschluss (união) com a Áustria e a ocupação dos Sudetos tchecoslovacos. Não são trazidos novos fatos sobre tais episódios. Além disso, fica aparente no prelúdio tendência de Roberts para a simplificação e o reducionismo de fatos importantes a casos anedóticos. Assinalando em certo ponto que a decisão de Hitler de afastar os generais Blomberg e Fritsch e assumir o comando supremo das Forças Armadas se deu unicamente por escândalos causados pelo envolvimento destes militares com “uma ex-prostituta e de um ardiloso garoto de programa” (p. 44), em vez de equacionar outros motivos para o fato, dá exemplo de tal prática, que se repete com frequência em outras partes da obra. Abrindo a primeira parte, “Ataque”, “Quatro Invasões” narra a invasão da Polônia, Noruega e Dinamarca pelos alemães e a da Finlândia pelos soviéticos. Neste capítulo observa-se a obsessão de Roberts pela ideia da tática militar da “Blitzkrieg” (guerra-relâmpago) como fundamental para a vitória alemã principalmente na Polônia, já que o país supostamente possuía condições ideais estratégicas para tanto (p.55). Muito pelo fato de apenas citar livros escritos por anglo-saxões ou traduzidos para o inglês, o autor desconhece pesquisas recentes na área, tal como a do historiador alemão Karl-Heinz Frieser, o qual considera a ideia da Blitzkrieg um mito criado particularmente após a queda da França e empregado a partir daí nas campanhas dos Bálcãs e URSS (FRIESER, 1996). “Führer, o imperador”, coloca em questão a vitoriosa campanha alemã de 1940, quando foram derrotadas Holanda, Bélgica, Luxemburgo e, finalmente, França. Tal como já acontecia no primeiro capítulo, apenas são narrados fatos e acontecimentos, bem ao gosto da história militar, com abundância de dados sobre movimentação de tropas. Mais uma vez, o completo desconhecimento de obras historiográficas alemãs e outras empobrece o texto, o que leva Roberts a repetir e citar incessantemente dados conhecidos e questões já lançadas por autores como Richard Evans, Ian Kershaw, Richard Overy, dentre outros. Atividades importantes para a condução da guerra no período são completamente ignoradas, como a propaganda, justamente alvo da produção historiográfica recente (VOLKMANN; MÜLLER, 1999).

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O terceiro capítulo, “A ilha da última esperança”, traz novos problemas. O autor revela uma postura apologética para com a Inglaterra (o que já demonstra o título) e Winston Churchill, primeiro-ministro inglês, aos quais lança infindáveis elogios. Tal questão lança dúvidas sobre a atuação de Roberts enquanto historiador, haja vista sua completa parcialidade em relação aos acontecimentos. Assim, na página 148, a respeito dos comentários de Churchill sobre os pilotos que lutaram na chamada “Batalha da Inglaterra”, lê-se: “Naturalmente, o primeiro-ministro exaltou a bravura dos jovens pilotos e lhes ofertou seu mais precioso presente: uma frase imortal.” As exaltações à Grã-Bretanha e ao premiê continuam por todo o volume. Curiosa ainda é a assertiva de que a batalha aérea sobre os céus ingleses teria resultado no “[...] primeiro embate em que os Aliados saíram vitoriosos contra os germânicos.” (p. 147), sendo que pesquisas recentes como a de Richard Overy (a qual inclusive consta da bibliografia do autor) apontam para o fato de que o combate teria sido apenas um empate entre as duas forças, já que nem os germânicos poderiam invadir a Inglaterra, nem os britânicos atacar a Europa ocupada (OVERY, 2000). A contenda entre ingleses e alemães no norte da África, bem como as operações nos Bálcãs é o tema do quarto capítulo, “Lutando pelo litoral”, que ressalta os feitos do general Rommel contra as forças do Commonwealth britânico, que sofreram pesados revezes. Mais uma vez, a descrição de fatos e batalhas domina a narrativa. Mas é no capítulo subsequente que surgem renovadas dificuldades. “Chutando a porta”, dedicado à chamada Operação Barbarossa, a invasão da URSS, é pontilhado por afirmações extraídas do Mein Kampf (Minha Luta), mistura de autobiografia e programa político escrito por Hitler nos anos 1920, que afirmava ser a conquista da Rússia objetivo principal para a sobrevivência do povo alemão no futuro (p. 187, 188). Embora Hitler realmente tenha expressado tais desejos em seus escritos, não se pode simplesmente condicionar toda a estratégia do exército alemão de 1941 a partir das afirmações do livro programático do ditador, o que mais uma vez demonstra a tendência de Roberts para a simplificação e reducionismo históricos. Deslocando-se da Europa para o conflito no Extremo Oriente, “O Tufão de Tóquio” relata como os japoneses atacaram Pearl Harbor e obtiveram supremacia nas águas do Pacífico, chegando a ameaçar possessões americanas e inglesas. Como já se afirmou, falta bibliografia de historiadores japoneses, o que coloca o escopo do texto ao lado dos Aliados e, principalmente, da sempre louvada Inglaterra. 143 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


A segunda parte, “Virada”, se inicia com uma explanação detalhada dos horrores cometidos por unidades de extermínio da SS no leste, bem como detalha passo-a-passo a idealização e construção do cruel sistema de extermínio da população judaica e o porquê dos Aliados terem se omitido do bombardeamento dos campos de concentração quando era possível fazê-lo, em “Vergonha eterna da humanidade”. Muito embora se utilize de bibliografia já conhecida, como a obra de Saul Friedländer (2007), Roberts consegue trazer para o leitor comum um resumo da aniquilação sofrida por judeus e outros grupos nas mãos dos nazistas. Já “Cinco Minutos em Midway” retoma acontecimentos que levaram à destruição de boa parte da frota japonesa de porta-aviões pelos norte-americanos na citada ilha do título, dando a estes últimos a primazia no Oceano Pacífico. “Meia-noite nos Jardins do Diabo” refere-se à batalha de El Alamein e à primeira vitória inglesa conquistada na guerra, quando o Afrika Korps de Rommel foi derrotado e forçado a recuar até a Tunísia, onde foi enfim capturado por tropas angloamericanas. A batalha de Stalingrado sempre cativou a imaginação de historiadores e do público leigo como o combate decisivo da guerra, na qual a Alemanha perdeu grande quantidade de materiais e soldados. Ela é o tema de “A mãe-pátria sobrepuja a pátria prometida”. Juntamente à descrição do andamento da batalha, chama a atenção dois problemas principais na composição do texto: o primeiro deles refere-se ao excessivo valor dado a generais como articuladores dos acontecimentos, como se dependesse somente deles a vitória ou derrota em batalha, algo que também permeia toda a obra. O segundo é precisamente o fato desta abordagem estar na contramão da pesquisa mais recente sobre a peleja, que tende a enfatizar o estudo da correspondência de guerra para entender como pensava e agia o soldado comum diante de tal situação (WETTE; UEBERSCHÄR, 2003). O próximo capítulo, “As ondas no mar e no ar” trata não apenas da difícil batalha do Atlântico, na qual o emprego de submarinos pelos alemães tornou a luta ainda mais renhida, como também da eficácia do sistema inglês de informações Ultra, o qual decifrou com sucesso o código de criptografia Enigma, usado pelo estado-maior das Forças Armadas do Reich. “Virada” termina com o capítulo “Galgando a península com cintura de vespa” que relata a abertura da segunda frente na Itália pelos anglo-americanos e as 144 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


dificuldades logísticas e militares para conquistar as posições alemãs na península em forma de bota. Vale ressaltar mais uma vez a abundância de fatos e informações militares, que acaba tornando a leitura por vezes enfadonha. A ofensiva final das Nações Unidas contra Japão e Alemanha ocupa os seis capítulos restantes componentes de “Desforra”. O primeiro deles, “A inversão de salientes”, aponta a chamada “Batalha de Kursk” como ponto de inflexão para o Exército Vermelho, pois foi a partir dela que a URSS passou à ofensiva, em um avanço que só terminou com a conquista de Berlim, em 1945. Uma das abordagens mais interessantes de Roberts em todo o livro é o capítulo 14, “A cruel realidade”, que relata os bombardeios indiscriminados perpetrados pelos alemães, ingleses e americanos em estágios diferentes da guerra. De fato, o autor discute a culpa de ambos os lados no conflito, embora acredite que pesados ataques como o de Dresden em 1945 sejam justificáveis, pois impediu revanchismo alemão no pós-guerra. Além disso, mais uma vez o autor se apressa em louvar a capacidade britânica de resistir, pois o ataque alemão à Ilha, conhecido como Blitz, não teria “[...] alquebrado o moral da população como pretendia – na realidade, chegou a fortalecê-lo” (p. 526-527), ao passo que sobre a Alemanha “foram despejadas 955.044 toneladas de bombas pelo Comando de Bombardeiros durante a guerra e, decerto, elas tiveram efeito desmoralizador” (p.527), quando na verdade os ataques também não tiveram tal efeito entre a população germânica, que teve uma reação próxima da inglesa (SÜSS, 2011). O Dia-D e a invasão da Normandia pelos Aliados ocupa papel central em “Conquista normanda”, que continua a apresentar dados militares e acentuar o papel de generais e políticos no resultado da batalha. O texto segue com o capítulo “Abordagens pelo Oeste”, que descreve o avanço final dos Aliados ocidentais Alemanha adentro, enquanto “Abordagens pelo Leste” demonstra o lado soviético, novamente sem acrescentar nada que já não se saiba a respeito. Por fim, “A terra do sol poente” apresenta as condições em que o Japão foi finalmente derrotado em batalhas como Iwo Jima e Okinawa e enfim prostrado com o lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. A conclusão de Roberts, “Por que o Eixo perdeu a Segunda Guerra Mundial?” é o ponto mais fraco de toda a obra, por um motivo simples. Roberts passa a se basear em conjecturas e na chamada “História Contrafactual”, que nada tem de histórica, 145 Revista Poder & Cultura. Ano I. Vol. 1. Março/2014|www.poderecultura.com


afirmando que caso Hitler tivesse escutado seus generais e não ter travado uma guerra ideológica, a Segunda Guerra Mundial teria tido outro rumo. Sua conclusão, dessa forma, se apoia tão somente em especulações, algo que escapa ao ofício de historiador. No cômputo final, a obra de Roberts tem muito pouco ou quase nulo valor historiográfico. Seus problemas, aqui já apontados, são diversos: gosto pelo anedótico; nenhum uso de fontes ou bibliografia em outras línguas que não o inglês; mera miscelânea bibliográfica; exaltação constante da Inglaterra; utilização de memórias de generais e líderes políticos de forma indiscriminada, sem problematização; descrição enfadonha de batalhas e equipamentos militares sem qualquer fim específico; apelo ao uso da chamada “História Contrafactual”, que não possui nenhum valor histórico por se tratar de mera conjectura. Seria portanto o livro de Roberts “uma nova história da Segunda Guerra Mundial” como apregoa seu subtítulo? A não ser que levemos em consideração sua data de publicação, a resposta é um sonoro não.

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WETTE, Wolfram; UEBERSCHร R, Gerd R. (Orgs.). Stalingrad. Mythos und Wirklichkeit einer Schlacht. Frankfurt: Fischer, 2003.

Resenha recebida em: 13 de agosto de 2013. Aprovado em: 25 de setembro de 2013.

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