Maycol Mundoca VOLUME 4. 1ª EDIÇÃO. 03/2017 ANO III
POEZ I N E-SE O 4º volume do Poezine-se reflete a superação dos medos e das inseguranças de um ser com atitude, alma e personalidade de artista.
sobre o escritor: Maycol Mundoca, o menino do mato e dos rios que um dia se viu em Minas Gerais, onde começou a escrever poesias, poemas e crônicas aos 14 anos é nascido em Santana do Araguaia, no Pará. Aos 17 anos, de volta ao Pará onde escreve o seu primeiro livro "Delírios", escritos que guardou consigo por mais de 10 anos e que espera finalmente publicar. A crônica é sua paixão, sentese fortemente influenciado por Luís Fernando Veríssimo, fonte de inspiração e, na opinião do escritor, um grande mestre da escrita.
Volume 4. 1. ed. Ano III. mar. 2017. Tiragem: 100 unidades
Leia as edições anteriores em: www.issuu.com/poezine-se
Crônicas de: Maycol Mundoca
PO E S I A OR U T U F EN S I NA Z I R T OM I MA GEM NA T I V A E - SE .
Capa, diagramação, imagens impressão e montagem: Lucas Vieira Revisão e correção: Thaís Ribeiro Apoio: Ong ‘Cultura Roulets’, Blog ‘Roulets’ ‘Desculpe o Trasnstorno’ zine, EMABEM. O Poezine-se é um projeto dedicado à circulação da literatura produzida por escritores nascidos ou residentes na cidade de Uberaba/MG.
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Contato: vulvandreamentos@gmail.com CULTURA ROULETS
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Índice
1 NOTA DO AUTOR 2 SOBRE O ESCREVER 4 SOBRE TEORIAS CONSPIRATÓRIAS, POKEMON GO E ILUMINATTI 5 PODE ACONTECER COM VOCÊ 7 TEXTÃO, TEXTINHO, TEXTINHOZINHO 8 BALBEC E A PROMESSA 10 LUAN SANTANA E A CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO 13 O CAFÉ, A VALESKA E O ENQUADRAMENTO SOCIAL 14 TEMPOS DIFÍCEIS NA CASA 37 16 DE JERUSALÉM À IGREJA DA ABADIA 18 DEPOIS DA VERA FISCHER
NOTA DO AUTOR Grande parte das crônicas neste espaço apresentadas já foram publicadas anteriormente em minha página pessoal no Facebook. No entanto, algumas sofreram modificações e/ou adequações para este projeto. As crônicas não possuem ordem temática, cronológica ou a prevalência de temas específicos, sendo, portanto, de teor livre.
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SOBRE O ESCREVER Não sei foi a música Hotel Califórnia e todos os cenários que ela desenrolava na minha imaginação ou as repetidas vezes que assisti Falcão – O Campeão dos Campeões com Sylvester Stallone na sessão da tarde. O fato é que eu sempre tive um sonho secreto de ser um caminhoneiro. Tinha, é claro, povoando meu imaginário, toda a poética de sair por aí cortando o país e até continentes inteiros sozinho, levando coisas de um lado a outro e tendo contato com os mais diversos tipos de gente. O rádio e seus códigos. QRD Qual a sua localização? QSM Repita a última mensagem. QUF Recebi seu sinal de perigo. Os caminhoneiros pertencem a uma raça livre; se um caminhoneiro usa camisa de botão desabotoada até o umbigo, shorts jeans, chinelo Ryder com meia cano longo, enfim, ninguém questiona. Se um caminhoneiro muda habilidosamente um palito de dente de um canto a outro na boca enquanto fala com você, o máximo que te ocorre é “como este cara faz isso? ” Quando eu tinha 14 anos meu pai sabendo desse meu sonho deixou que eu viajasse com um amigo dele caminhoneiro até Goiânia, numa clara tentativa de me dissuadir. No caminho, num determinado trecho, o amigo do meu pai do qual eu não me recordo o nome perguntou se eu não queria dirigir o caminhão. Perguntou já encostando no acostamento e me garantindo que era fácil. Eu não tive coragem e por muito tempo supus que aquele meu medo era uma covardia imperdoável. A verdade é que até atingir a idade adulta, que nada mais é do que atingir o medo pleno, eu acreditava que a minha recusa era uma covardia. No mundo dos caminhoneiros não há covardia, nem receio, nem medo. Depois de muita terapia já consigo me perdoar e hoje acredito que eu só não estava
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preparado para realizar meu sonho. Com o “escrever” não é diferente, por muito tempo recusei o título de escritor por achar que sobre ele pesa a responsabilidade da perfeição. Como posso eu, Maycol Mundoca, ser um escritor depois de tantos nomes que falaram de absolutamente todas as coisas antes de mim e que o fizeram com maestria. Como é ser um poeta depois de Carlos Drummond de Andrade ou um cronista depois de Luís Fernando Veríssimo, um compositor depois de Chico Buarque. Nos meus sonhos essas perguntas me atormentam enquanto estaciono meu caminhão imaginário num posto de combustível e peço um conhaque no balcão do terapeuta. Escrevo, simplesmente! Se ao fato de escrever está atrelado o peso do título, pois bem. Enrolei por quase dois anos no convite do meu amigo Lucas para participar desse projeto que tanto admiro. Não achava que estava pronto, encontrava todos os defeitos nos meus textos, e me esquivava argumentando como podia que eles não eram bons o suficiente para publicalos. Mas o que é o bom? O que é a perfeição? Meu amigo Lucas me interrogava. Escreva! Simplesmente escreva. E eu escrevi e escrevo. Deixei de escrever para as gavetas e agora passo a escrever para os amigos. Obrigado por este espaço, Lucas, e por me ajudar a romper mais um dos meus muitos medos. Resta agora o caminhão...
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SOBRE TEORIAS CONSPIRATÓRIAS, POKEMON GO E ILUMINATTI É fato que eu não acredite muito em teorias da conspiração, porém me lembro de uma que diz sobre os supostos planos dos Illuminati de chiparem todos os povos da terra, onde através desse chip seria possível o controle uniforme das massas. Enfim, era um horror qualquer ideia, por mais benéfica que ela pudesse ser, envolvendo um microchip na pele, dificilmente tal proposta ganharia adeptos. Esse fim de semana fiquei em casa e não fiz absolutamente nada, o sábado e o domingo para pensar em coisas importantes como: teoria da conspiração. E então, bimba! Formulei minha própria teoria, que se segue: Após terem seus planos do microchip descobertos, os Illuminatis teriam resolvido seguir por outros caminhos menos invasivos. O protótipo inicial desse plano talvez tenha sido o brinquedo "Tamagotchi". Todo mundo se lembra deles, foi lançado nos anos 90 e bastante difundido nos anos 2000. Era aquele bichinho virtual que a gente alimentava, dava banho, atenção e carinho ... enquanto nossos cachorros morriam de depressão. Pouco a pouco os Illuminati foram se tornando mais audaciosos e chegaram finalmente na tecnologia "android" (android: coincidência? Talvez). Usando de sutileza, eles pouco a pouco fizeram o povo abdicar da sua individualidade. Isso explicaria esse tanto de gente na minha timeline usando guirlandas virtuais e olhos bonitinhos de zumbi. Seu último grande teste de controle foi um sucesso: consiste em fazer as pessoas largarem todos os seus afazeres e saírem por aí em estações de metrô, becos, penhascos e usinas nucleares atrás de um pokemon. Os aplicativos, segundo minha teoria, é uma forma sutil de controlar as massas dando a elas uma falsa impressão de liberdade. Você pode
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escolher entre esse ou aquele aplicativo mas escolher não ter nenhum aplicativo no nosso tempo é um absurdo, é a sua morte social. E o futuro? Bem, não sei se os Illuminatis são uma organização secreta e agem de forma misteriosa, eu só queria compartilhar com vocês minhas aflições. E como ainda é domingo, agora volto a dormir!
PODE ACONTECER COM VOCÊ Seu nome é Dilmar. Não, seu nome é Robervar. Rober, do pai Roberto; Var de Varilda, a mãe. Depois de um fim de semana na esbórnia, fazendo coisas que até Deus duvida, Robervar resolve voltar para casa. Na cabeça, a nítida certeza que não devia ter bebido tanto naquele fatídico domingo. A mulher, que assiste do sofá a luta do marido para fechar o portão com a chave, suspira. Robervar sobe o passeio que o leva até a sala ainda cambaleante. Com um olho totalmente fechado e o outro levemente aberto, ele parece cochilar enquanto caminha. Robervar se joga no sofá como um trapezista experiente que sabe que uma rede segurança o espera. A mulher, que esperou o marido se sentar, começa sua ladainha interminável: Bonito. Muito bonito isso... Ele tentar balbuciar algumas palavras, mas elas soam incompreensíveis. A mulher continua falando. Depois de muito esforço, fala meio inseguro: "Só fui comprar cigarros...” Ah é? Robervar conhecia a mulher a sua frente o suficiente para saber que aquele “Ah é? ” era o fim da diplomacia. O próximo passo seria jogar em sua cabeça o que ela encontrasse pela frente. Resolveu ficar calado. Ele estava bêbado, mas não era louco. Segurando as pernas da mãe, o filho mais novo, de uns quatro anos, talvez cinco, olhava curioso aquele estranho maltrapilho que parecia seu pai.
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Vem cá no papai, Varzinho. O menino se escondeu assustado. Robervar agora tinha os dois olhos cerrados. A voz da mulher estava longe, mas o sermão era denso. Volta e meia nosso personagem abria o olho e via aquela mulher gesticulando e se esgoelando: Seu filho não te conhece. Trabalha a semana inteira e chega tarde. Quando chega o menino tá dormindo, quando sai é a mesma coisa, fim de semana é na cachaça. É minha mãe? Pensou. “Não pode ser. Aquele menino é meu filho. É minha mulher mesmo, eu amava ela”. Robervar começou a se levantar e seguiu em direção ao quarto, mas a mulher foi rápida, entrou no quarto e trancou a porta: “Durma no sofá! ” Toda aquela situação faz você ou o Dilmar ou então o Robervar recobrar ligeiramente os sentidos. De volta ao sofá, só restava a televisão. Na TV um homem engravatado. Quando Robervar pegou o controle o homem gritou: Não muda o canal, não! Deus tem uma mensagem para você. Robervar põe o controle cuidadosamente no sofá: Você, que está embriagado, endividado, afundado na própria lama da perdição humana. Brigado com seus filhos, brigado com sua mulher, problemas na sua família, problemas no seu trabalho... Só pode tá falando comigo. Você não encontra a saída. Meu irmão, nesse dia eu venho te dar a vitória. Deus tem um propósito para a sua vida. Levanta, vai na geladeira, pega um copo d'agua, põe em cima da televisão. Eu vou ungir e vou orar por você. Ele se levantou rapidamente e fez tudo que o homem mandou. O homem o conhecia. Ajoelha e repita comigo: Eu sou um vencedor. Eu sou um vencedor! Deus vai me dar a prosperidade! Deus vai me dar...
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Era o programa "318 Pastores da Universal do Reino de Deus"; Aquele era o nono pastor, ainda faltava 309. Pobre Robervar, não devia ter bebido tanto naquele domingo.
TEXTÃO, TEXTINHO, TEXTINHOZINHO Ontem uma amiga da minha irmã me abordou incisiva: Tio, porque o senhor gosta tanto de postar “TEXTÃO”? Eu perguntei como assim e ela me explicou: “TEXTÃO”, é isso aí que o senhor faz, você faz um protesto, com muitas palavras, por exemplo, esse negócio da Balbec é um TEXTÃO. Eu expliquei a ela que não fazia TEXTÃO. TEXTÃO é o Capital do Marx ou Guerra e Paz do Tolstói, um Textão grandão e arrematei: “Eu faço textinho, na verdade, “textinhozinho”. E não é protesto, é uma crônica, gosto de escrever sobre coisas cotidianas, coisas corriqueiras. Ela me perguntou o que era "corriqueira" e eu expliquei que eram coisas que acontecem no diaa dia. Ou não, as vezes não precisa ter acontecido. Por exemplo, se a crônica tivesse a obrigação de ser verdadeira seria um relato, e se fosse um relato o final da minha história da Balbec seria diferente, seria: “Então eu fui até ao banco, saquei o dinheiro, comi não cinco, mais seis salgados e fui para casa me arrastando." A menininha me fulminou com um olhar de decepção: Então os TEXTÃOS do senhor são de mentira. Eu disse: “Não, não! Veja bem... não necessariamente. Escrevo sobre coisas que vejo, sobre coisas que escuto, escrevo sobre coisas que leio. 'Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome.' Se, por alguma tipologia, a minha crônica esbarrar em um TEXTÃO é mero acaso. Se da crônica sair alguma reclamação, algum protesto ou algum lamento, não é culpa minha. É culpa do Eu lírico. Eu lírico é...” Eu sei o que é Eu lírico Ela me interrompeu secamente. Eu fui embora deixando a menina com um olhar meio curioso.
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Achei engraçado aquela situação. Me fez lembrar de uma velha máxima teatral que diz: "Fazemos apenas teatro, não nos responsabilizamos pelo seu efeito na plateia. A aranha tece a sua teia porque é o ofício das suas glândulas, se ela pega moscas tanto melhor".
BALBEC E A PROMESSA A manhã começou a mil, tinha três compromissos em lugares opostos na cidade. Esses compromissos me impediram de tomar café, já era 12:00h quando saí do Manhattan. Sentia as paredes do meu estômago se comprimindo. Não precisei colocar os dois pés para fora do Manhattan para sentir o cheiro inebriante de coxinhas, esfirras, salgados e todas as outras tentações que fazem qualquer cristão mandar a dieta para o inferno. A Balbec esconde algum feitiço diabólico no seu tempero. Recentes estudos detectaram que 70% dos acidentes envolvendo veículos automotores na Rua São Benedito são em decorrência do cheiro das coxinhas. Estranho, mas verídico. Ninguém resiste aquele cheiro, nem mesmo motoristas prudentes ou pedestres famintos. E lá estava eu, um pedestre faminto, pensando naquela esfirra recheada de carne levemente cozida, levemente frita... impossível determinar. Eu dava um passo e pensava em quantos quibes de queijo devoraria, no catupiry com azeitona derretendo e trazendo para fora daquele salgado redondinho pequenos cubos de presunto. Um pensamento me ocorreu, lembrei que fazia anos que não ia naquele lugar, me lembrei também de uma vaga promessa que tinha feito a mim mesmo sobre nunca mais voltar ao Balbec. Não consegui me lembrar os motivos, por isso eu mesmo me absolvi da promessa prestes a ser quebrada. E depois, a moralidade é posterior à fome. E isso não sou eu quem diz, é Brecht. Ninguém pode ser julgado pela fome. A fome deve ser a primeira lei do
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homem, é a única lei capaz de quebrar todas as outras, todos os códigos de conduta e toda e qualquer promessa. Enquanto eu aguardava na fila enorme a minha frente, tentava aliviar minha consciência pela promessa quebrada. Me ocorreu que só mesmo homens bem alimentados seriam capazes de criar códigos morais, códigos de honra, leis e constituições. Famintos somos animais. Pensei em comer quatro salgados. Quatro não, cinco. Tinha que provar a esfirra de bacalhau. Três salgados me saciariam, mas cinco era a felicidade plena. Deve ter sido fácil para o Papa Gregório Magno criar os sete pecados capitais. Pode inclusive ter tido a ideia de tornar a gula um pecado enquanto devorava um pernil de cordeiro coberto com molho de menta e as mais refinadas iguarias. Não sei ao certo as medidas físicas do papa, mas ele não devia se chamar “O Grande” à toa. Destrinchando as costelas de um coelho deve ter sido fácil falar: “Põe aí: Gula, desejo insaciável, além do necessário”. Chegou a minha vez na fila, fiz o meu pedido sob o olhar assustado da moça do caixa, ela me falou o total, eu tirei o cartão dizendo “no débito por fav...”. Ela me interrompeu: "não passava cartão", foi aí que me lembrei porque prometi nunca mais voltar naquele antro de perdição. Sai de lá xingando silenciosamente e sem olhar para os lados.
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LUAN SANTANA E A CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO Sábado aconteceu algo inusitado, eu estava passando pelo corredor quando ouvi na televisão o Luan Santana anunciando que cantaria na abertura do Criança Esperança uma música inédita e política. Não é que eu estivesse desconfiando da sua capacidade intelectual, mas era... o Luan Santana. Tenho um grande respeito pelos cantores sertanejos porque acredito que eles cumpram direitinho o seu papel de entreter. Há um público imenso em busca de puro e simples entretenimento e distração. E há também um verdadeiro cabedal de opções. Para ficar claro o quero dizer, basta analisar uma música como Meteoro da Paixão para entender que versos como "Explosão de sentimentos que eu não pude acreditar. Ah, como é bom poder te amar" não tem outra finalidade ou mesmo pretensão a não ser o divertimento. Acredito que nessa relação artista/povo há um movimento duplo de permuta, troca. Um artista só é capaz de arrastar uma multidão uma vez que seja capaz de dar voz a essa multidão. O artista traduz, de alguma forma, os sentimentos ou pensamentos do público que o acompanha. É nesse sentido que caminha a composição com forte apelo popular. As letras são repletas de frases e expressões que estão na boca do povo. No livro A Civilização do Espetáculo, Mario Vargas Llosa lembra que no passado a cultura era uma espécie de consciência que impedia que virássemos as costas para a realidade. Era como se a cultura estivesse a serviço da sociedade, como elemento de coesão social e unificador. Nesse contexto, não seria impensada nem tampouco assustadora a ideia de um artista de sucesso que acumulasse a dupla função de artista e intelectual, e que, invariavelmente, trouxesse consigo todo uma bagagem de engajamento político.
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Lembremos, por exemplo, de Elis Regina, na década de 70, considerada por muitos a maior intérprete brasileira. Elis sempre teve posições claras e definidas sobre o país. O Brasil, como bem sabemos, sofria os pesares de uma ditadura militar. Elis, que certa vez chegara a afirmar que “o Brasil era governado por gorilas”, havia feito uma apresentação nas Olimpíadas do Exército, sendo, por esse motivo, vaiada dias depois por uma plateia enfurecida ao pisar no palco do festival Phono73. E, obviamente, a sua “incoerência” (uso aspas por não sabermos, ainda hoje, se essa apresentação se deu por coação do governo, já que a Elis sempre foi uma pedra no sapato da ditadura) na tal apresentação não passou desapercebido. Observando a atualidade, vemos o fenômeno inverso do que ocorria no tempo de Elis. Hoje, a cultura – ou o que se apropria de seu nome – tem como intenção, justamente, proporcionar a fuga e o esquecimento às questões sérias, difíceis, inquietantes. Tantos os artistas quanto a massa que o segue tende a se distanciar do comprometimento político e social. A ordem agora é distrairse, entregarse ao deleite do que em nada faz pensar ou que exija o mínimo de reflexão possível, renderse a superficialidade acima de qualquer outro meio de conhecimento ou ideal. O rapaz dos meteoros apresentou a música " Uma Nova Canção" que entre seus versos falava de gente que não fura sinal, jogadores que dão exemplo, gari que acha carteira e devolve dinheiro... Era quase que impossível ouvir a letra no meio da dos gritos histéricos das Luanetes, mas a letra continuava com vários “bons exemplos”. Falava, eu acho, de “motorista que respeita vaga de cachorro”, “menina que cata o cocô do seu idoso... e bla, bla, bla”. Sim! Na letra da música tinha "bla, bla, bla..." Enfim, assistir até o final a apresentação serviu para compreender melhor esse processo de separação do ser intelectual, que hoje em dia povoa os centros acadêmicos e outros espaços num silencio seguro, da figura caricata do artista de entretenimento. Serviu para reafirmar as minhas convicções: Estamos 11
perdidos! Apesar de respeitar um artista que arrasta multidões ou que é arrastado por ela , não dar para criar grandes expectativas. Também não vejo grandes soluções para esse problema já que carga intelectual como diz um professor e amigo... se adquire com tempo, com leitura e com vivência. Nossas multidões apressadas que correm de um lado a outro penduradas em seus celulares não dispõem desse tempo. Nossos artistas que fazem 30 shows por mês muito menos. Aqui usamos o exemplo da música, mas a deterioração cultural é sistêmica e generalizada. Não quero ser pessimista, mas só mesmo um meteoro para resolver.
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O CAFÉ, A VALESKA E O ENQUADRAMENTO SOCIAL Lembrome da primeira vez que vi uma embalagem de café descafeinado na prateleira do mercado. Senti um frio na espinha, uma espécie de presságio. Fui consumido por uma extrema preocupação. Aquele produto aparentemente inofensivo tinha uma grande representação. Descafeinar o café é roubar a sua alma. O que viria a seguir? Numa seção, não muito distante, encontrei o leite desnatado. Era o fim! Tudo estava perdido. O processo de roubar a essência das coisas já estava num estágio avançado e eu não podia fazer nada. Até tentei avisar alguns amigos: Viram o absurdo que fizeram com o café? Mas ninguém me deu atenção. Pouco a pouco foram lançando no mundo paródias, réplicas melhoradas de produtos originais. Lançaram o ovo artificial, cerraram os dentinhos da Dilma, "emagreceram" o Faustão, “Desbuarquezaram” o Chico e como se não bastasse todos esses absurdos mexeram na Valeska Popozuda, o ultimo ícone de uma sociedade livre, autêntica e original. Dona de sucessos como “Minha boceta é o poder”, lançou seu último álbum como se lançasse no mundo sua própria contrição. Um álbum contido, que não tem se quer um “cu” como título de música. Li uma entrevista em que a cantora disse que “precisou se enquadrar para ficar mais elegante”. Quem enquadrou a Valeska? Quem são esses sujeitos invisíveis movidos por essa necessidade cega de mudar a essência das coisas? Será que também vão “enquadrar” o Bacon? Há um livro que me foge o título que dizia que certa vez cortaram um pedaço da mais célebre pintura do mundo, A Monalisa, para “enquadrar” a coitada numa moldura bonita. Percebem?
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Ora, o café é café por causa da cafeína, o leite não é leite sem a sua nata. Não sei o que vem a seguir, sei que não se cria pinturas pensando em molduras, se cria molduras pensando em pinturas.
TEMPOS DIFÍCEIS NA CASA 37 O agente da companhia elétrica não poderia ter escolhido um pior dia para cortar a energia da casa 37. Essa não é uma história de um agente e sua difícil tarefa de espalhar a escuridão pelo mundo. Essa é a história do Cícero, dono da casa 37, que aliás não era sua... E que entre trancos e barrancos levava sua vida revezando os pagamentos das contas do mês. Cícero era um homem comum, desses que passam pela vida deixando poucos vestígios de sua existência. Posso lhes assegurar que não haverá ruas ou escolas com o nome de Cícero no futuro. Cícero vivia num casamento infeliz, num emprego infeliz, numa cidade infeliz, num estado infeliz. Já havia desistido de os seus sonhos extravagantes e, depois que perdera um bilhete de loteria premiado com os números que jogava semanalmente há 17 anos, desistira de falar com Deus. Naquela estranha terçafeira o patrão da empresa de transportes o chamara em sua sala e foi logo dizendo: Cicero, meu amigo, não me leve a mal, mas os tempos estão difíceis, a empresa tá que não se aguenta e eu terei que o demitir. Pegando suas poucas coisas, Cícero se despediu daquela empresa onde ele desperdiçara os últimos 24 anos de sua vida e que agora sem nenhuma compaixão lhe sentara um pé na bunda Alguém que por tanto tempo se dedicara ao crescimento de algo que não é seu, não há nada que console um homem dessa humilhação. Cícero chegou no seu carro e não estranhou o pneu traseiro furado. E enquanto trocava o pneu na porta da empresa que acabara de demitilo Cícero suspirava: Que mais senhor?!
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Ao chegar em casa fora do horário surpreendeu sua esposa que arrumava uma mala. Com a voz mais amistosa que conseguiu, Cicero balbuciou: Tenho uma novidade, mulher! Eu também tenho! – Respondeu a mulher com truculência. E antes que Cicero pudesse dizer qualquer coisa ela retrucou: Estou te deixando para viver com o Hernandes do mototaxi. Disse isso já na porta da rua. Foi nesse momento que o agente da companhia elétrica cortara a luz da casa 37. Prostrado numa cadeira, num canto da sala, Cícero permaneceu por algumas horas refletindo. E depois de muito pensar só conseguiu encontrar uma saída para sua pobre vida: Vou fazer um pacto com capeta. Bom, eu não sei muito bem como proceder, mas se o senhor estiver querendo uma alma seminova com poucos anos... E antes que pudesse terminar sua frase, Cícero sentiu um frio arrebatador na espinha, e diante dos seus olhos se materializou um homem com mais ou menos a sua idade e aparência, um pouquinho mais bronzeado. O senhor é o capeta? – Disse Cícero. Posso ser. “Que diabos de resposta é essa? ” pensou a pobre alma. Preciso de uma solução para a minha vida. E preciso mais que nunca de dinheiro. Dou – lhe minha alma em troca de uma solução. Meu pobre Cícero, eu não dou soluções, doulhe desejos, direções, você constrói e pavimenta seu destino. Ok, o senhor me dá vara e ensina a pescar, correto? Falando desse jeito não tem glamour. Todos pensam que Eva abriuse para o mundo no momento em que comeu a maçã, mas ela o fez no momento em que a desejou. Doulhe o desejo, a gana, a vontade. Potencializo as forças que estão dentro de você. Vivo dentro de você na medida certa em que a balança se equilibra...
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Se eu for ganhar dinheiro, eu topo. Onde eu assino? Não há contrato nem assinatura a sangue. O contrato é teu corpo e a caneta é a tua consciência. Lembrese, há uma parte de ti que também é feita a minha imagem e semelhança! Disse o capeta sumindo misteriosamente em uma nuvem de fumaça. Cícero que era um homem prático e simples, que acreditava apenas em crime e castigo, e que só queria uma solução... suspirou no escuro da sua sala: Um capeta filósofo, nem pra esconjurar o demônio eu sirvo!
DE JERUSALÉM A IGREJA DA ABADIA Um dos lugares que mais me chama atenção em Uberaba é o santuário de nossa senhora da Abadia. Tudo me cativa; carga histórica, a diversidade, que não só naquela igreja como naquele bairro, parece ser mais acentuada que em qualquer outro canto desta cidade. Nesse domingo estive lá. Eu sempre tive uma grande dificuldade de manter atenção, especialmente no que diz respeito a coisas repetitivas. Vou me perdendo na expressão das pessoas, nos espirros, nos olhares, no choro dos bebês até ficar o vazio. Quando toda presença humana não passa de um borrão sonoro ao longe. Quando me encontro assim, meio absorto, meus últimos lampejos de consciência trazem à tona a advertência da minha avó: Cabeça vazia é oficina do Diabo. Daí eu volto. Nesse domingo eu estava num desses momentos. A missa transcorria normalmente, uma senhorinha cantava o salmo com tanto ardor que me tirou da minha viagem mental me deixando impressionado com a sua emoção. Na igreja reinava o silencio absoluto. Quando ela terminou uma menina de mais ou menos uns 6 anos aplaudiu. A mãe rapidamente segurou as mãos da menina advertindo que não podia. A criança entendeu que tinha feito algo de errado e ficou quietinha. Pouco tempo depois na homilia. 16
Depois de sua fala o padre levantou a bíblia e todos aplaudiram fortemente, a menina meio confusa e insegura acompanhou as palmas olhando para a mãe. Esse acontecido me fez pensar em como as religiões necessitam de seus protocolos para a sua manutenção. Sem a organização empreendida por Constantino e pelos que o sucederam, talvez o cristianismo, o catolicismo dificilmente chegasse aos nossos tempos com a força que chegou. Apoiado nas tradições como quase todas as religiões, o catolicismo segue com seus protocolos, suas regras, que ao mesmo tempo que são responsáveis pela sua longevidade e manutenção, também são responsáveis pelo abafamento da espontaneidade e sentimentos genuínos. Aplaudese o que é belo, o que é tocante. No livro de Samuel, na bíblia, o profeta relata que Davi dançou tão grande foi sua alegria com o retorno da Arca da Aliança à Jerusalém. O rei, quebrando os protocolos, dançou diante de Deus. Não contente, tomado por sentimentos de exultação, tomou o lugar de um escravo que ajudava a carregar a arca. A espontaneidade de Davi lhe rendeu a recriminação de sua esposa Mical. É claro que da chegada da arca da aliança em Jerusalém até a missa de domingo passado no bairro Abadia muitas mudanças foram empreendidas. O Judaísmo de Davi por exemplo deu origem ao Cristianismo e tantos novos protocolos foram criados que o Rei Davi se tivesse numa das nossas missas atuais provavelmente não dançaria. Correria. Mas uma coisa não muda: o gosto das religiões monoteístas pela sua ideia de "Certo". Também não muda a forma como defendem tal ideia de “Certo”.
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DEPOIS DA VERA FISCHER Quando Adalberto e Lúcia Maria se conheceram, se apaixonaram perdidamente. “Foi paixão à primeira cerveja!” Ele costumava relatar aos amigos. Poucos encontros depois ela se mudara para a casa dele. No primeiro dia de Lúcia Maria em sua nova casa sem a presença do Adalberto, ela se deu conta que nunca tinha reparado direito naquele estranho lugar, e depois de uma inspeção detalhada por todos os cômodos ela entendeu o que ele queria dizer com: “Eu preciso de você”. A casa de Adalberto era uma casa sóbria e sem frescuras, como ele dizia aos amigos. Ele amava aquele paraíso particular, amava suas panelas de barro e sua mesa de sinuca na sala de jantar onde fazia suas refeições. Amava sua poltrona de couro rachado exatamente no cantinho onde ela sempre ficara, sua coleção de vinil que tomava conta de todo o quarto de hóspedes. Mas nada dava mais orgulho para o Adalberto o pôster da Vera Fisher em tamanho real que ele arrematou em um leilão virtual. Adalberto costumava parar diante do quadro emoldurado e refletir longamente a respeito do que via. Dizia que os pelos pubianos da Vera Fisher no primeiro mês do século 21 era antes de tudo uma provocação para as futuras gerações. “Tratase de uma demarcação territorial da minha geração, a última geração com profundidade suficiente para apreciar uma mulher peluda. Vera Fisher sentada naquela cadeira de veludo dourado sintetiza tudo de bom que o mundo tivera um dia. É um relato perfeito para as novas gerações sobre os mistérios que habitavam a terra antes da internet tornar tudo tão chato e a depilação tornar a vida pálida e sem graça. Os longos pelos da Vera fugiam do escopo sexual porque eles falavam aos homens sobre o tempo e sobre eles mesmos. Para entender isso, antes de tudo você precisa ter nascido nos anos 80.” O corredor central era sua parte favorita da casa por causa daquele quadro. Quando Adalberto entrou pelo portão da casa naquela segundafeira fria, foi recebido por Lúcia
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Maria. “Fecha os olhos que eu tenho uma surpresa”, disse ela segurando sua mão. Ela tratou de conduzilo pela casa. Com aflição no coração e o melhor sorriso que conseguiu esboçar a Adalberto, disse um “muito bom” ao ver sua poltrona em um outro canto da sala. Não acabou ainda – Disse ela transbordando de empolgação. Adalberto começou a suar frio quando viu sua mesa de sinuca coberto por um pano de mesa e não avistou no balcão suas panelas de barro: Onde vamos cozinhar, amorzinho? – Ele sussurrou com a voz embargada. Nessas belezuras aqui, meu amor! – Disse ela segurando panelas novas e antiaderentes. Mas as outras tão... – Amor – Ela o interrompeu –, tive o maior trabalho para encaixotar todos aqueles discos. Agora podemos receber gente em casa. E o quarto de hóspedes um dia pode ser o quarto do bebê... Suas pernas fraquejaram e ele deu as costas silenciosamente caminhando aflito em passos lentos rumo ao corredor central. Amor... Tá me ouvindo? A Vera Fisher não estava lá. Lúcia Maria relatou ao médico que o marido desmaiou ao ver uma foto do casal numa viagem ao Guarujá. O médico constatou que não fora nada demais, mas Adalberto insiste em continuar internado por precaução.
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é greve agora é greve ocupem os seus espaços mesmo que seja tarde antes que tudo se agrave antes que a tudo segregue a bola do jogo é a bola na trave é grave o agora é grave é PAC e é PEC, é PUC o público a ser particular? reflita, não desista se assuste, não releve se informe ou se ferre... ...pois quando essa dança parar, o mundo pode não acabar. Lucas Vieira
POEZINE-SE volume 1
volume 2
volume 3
Lucas Vieira maio/2015
Jamila Costa agosto/2015
Rebeca Canhestro e Carolina Figueiredo junho/2016 Apoio
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