Registros para Sempre - Eternas Lições - Volume 2

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VOLUME 2

REGISTROS PARA SEMPRE

Eternas lições 20 PROFESSORES QUE FIZERAM HISTÓRIA EM UBERLÂNDIA

CAPA


P

roduzir este livro que resgata valores tão marcantes na vida de nossa cidade é motivo de orgulho. De gostosas recordações de pessoas que marcaram tantas outras vidas e que contribuíram para a formação moral delas. Para quem conviveu com todas ou a maioria delas fica a alegria do registro, da lembrança de poder mantê-las vivas por meio da própria narrativa de suas histórias. Fica também a frustração de tantas outras que se foram e das quais não temos gravações. Melhor do que ficar lamentando é agir para que esse acervo continue sendo incrementado. Modestamente é o que buscamos fazer, conscientes que somos de que o registro do presente é a memória do futuro.


VOLUME 2 REGISTROS PARA SEMPRE

Eternas lições 20 PROFESSORES QUE FIZERAM HISTÓRIA EM UBERLÂNDIA


F ic h a técn ic a

I D E A L I ZA ÇÃ O E COORDE NA ÇÃO: Celso Machado

E N T RE VI S TA S : Acervo da Close Comunicação, feitas por Celso Machado, Lara Stoque, Carlos Guimarães Coelho, Hélcio Laranjo, Núbia Motta, Olivio Calábria e Sérgio Martinelli.

A G RA DE CI M E NT OS : Ady Reis, Antônio Pereira da Silva, Ademir Reis e Lucas Capra.

R E D AÇÃ O E E DI ÇÃ O DE T E XTOS: Carlos Guimarães Coelho

P E S Q UI S A E COPI A G E M DE PO IMEN TO S: Táriqui Borges de Moraes

DECUPAGEM E TRANSCRIÇÃO DEPOIMENTOS: Maria Vidal

R E V I SÃ O : Ilma de Moraes

D I A G RA M A ÇÃ O/M ONTA G E M : N ideias Comunicação

I M P RE S S Ã O: Gráfica Breda

T I RA GE M : 500 exemplares

I mp re s s o e m A g o s t o d e 2 0 2 0



Prefácio

N

ossa querida Uberlândia é o que é hoje graças à dedicação abnegada de pessoas das mais diferentes atividades. Muitas conhecidas e reconhecidas, outras praticamente anônimas. Sem desmerecer as outras classes, com certeza, uma das que marcaram muito todo o progresso de nossa cidade foi a dos professores. É para eles e sobre eles que dedicamos esta segunda edição da série “Registros para sempre”. Como na primeira edição, observamos alguns critérios na escolha dos personagens. O primeiro foi abordar apenas pessoas falecidas. O segundo, que tivessem tido uma atuação de notória contribuição no ensino local. O terceiro, que não houvesse distinção entre os mais lembrados e os menos conhecidos. O quarto, que tivessem como fonte entrevistas registradas pelos programas Close, Terra da Gente, Uberlândia de Ontem e Sempre ou que neles tivessem sido produzidas matérias sobre eles. O texto, produzido com carinho, cuidado e sensibilidade pelo jornalista Carlos Guimarães Coelho, não tem a pretensão de apresentar toda grandeza da contribuição deles. Mas, mostrar aspectos relevantes de suas jornadas e estimular o conhecimento de suas trajetórias. Relembrar personagens de uma época em que eram chamados e tratados como “mestres” pela influência e papel que tinham não só na formação intelectual, como também moral de seus alunos. Temos consciência que registrar apenas 20 professores dentre


centenas é resgatar uma parte apenas da história do ensino em nossa cidade. Mas é uma iniciativa que pode estimular outras com o mesmo objetivo, o que seria muito bom. Como grande parte do conteúdo foi extraída de registros da memória de seus personagens, está sujeita a eventuais equívocos. Antecipadamente, pedimos desculpas por eles, pois temos certeza de que não irão diminuir o valor da nossa legítima homenagem. Esta iniciativa está sendo viabilizada pelo incentivo do PMICPrograma Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Uberlândia, com patrocínio da Ética Conservação. Esperamos que este livro tenha a mesma receptividade e o prestígio que o primeiro alcançou. Convidamos a todos para acompanharem e compartilhar do nosso trabalho inteiramente voltado para a história e memória de nossa cidade através do Museu Virtual de Uberlândia, da série de TV, agora com canal próprio no Youtube, e do Almanaque Uberlândia de Ontem e Sempre. E obrigado, Uberlândia, por nos oferecer tantas e tão belas histórias para registrar e compartilhar.

Celso Machado Engenheiro de histórias


Índice

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01 A N TO N I N O

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D ONA D OM I NGAS

24 A RC EL I N O

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EDUAR D O AND R AUS

29 D . BE N EDI TA

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HOR L AND I

32

BI L Á S AL AZ AR

16 CE L S O C O R R EA

I OL AND A

37 I R I S PÓV OA


73

41 LUZ I A A LV ES

45

PE PPE

78 D ON A L I A

53 M I LTON PO R T O

59

S A I NT CL AI R

84 S T E LL A SAR AI VA

88

N E LS ON CUP ER T I N O

67 OLI V I A CA LÁB R I A

TASSO

93 VAD I CO


Introdução

N

ão há melhor caminho para conhecer a cultura de um povo do que percorrer as suas salas de aula ao longo dos anos. As janelas do tempo nos fazem compreender quando e de que forma a cidade se configurou em suas características mais fortes. Mais uma vez, o “síndico” da história local, Celso Machado, nos presenteia com a oportunidade de sistematizar e apresentar alguns casos de pessoas determinantes nos rumos tomados até aqui, agora com foco em alguns professores de Uberlândia. A viagem ao passado nos revela coisas impressionantes. Do início do século passado até os anos recentes, percebe-se que os professores, efetivamente, foram os grandes desbravadores desta cidade. Inspiraram alunos, incentivaram conquistas e, como é possível constatar em cada capítulo, com resiliência, persistiram no desejo de ensinar, muitas vezes de forma precária e improvisada. E assim escreveram seus nomes nas páginas do futuro. Para compor este segundo volume da série Registros Para Sempre, debruçamos sobre entrevistas concedidas ao programa Uberlândia de Ontem e Sempre e a outros programas da Close Comunicação, além de pesquisas e novas entrevistas com descendentes ou quem tenha sido testemunha ocular das trajetórias dos personagens enfocados na obra. É incrível olhar para o passado e ver pessoas que ocuparam o protagonismo de espaços, como o Colégio Estadual (Museu), Liceu de Uberlândia, o Brasil Central, entre outras instituiçoes locais não somente de difusão do conhecimento, mas também de grande efervescência cultural.


Nestas páginas, conviveremos com professores de todas as origens, desde aqueles que nasceram em berços privilegiados a outros que tiveram de lutar muito pela formação e pela inserção no mercado profissional. Há profissionais de todas as vertentes, dos que aderiam ao sistema para conseguir transmitir o conhecimento àqueles que o desafiavam, querendo transformá-lo, tornando-se alvos de perseguição política em vários momentos da história. Mas, todos tinham algo em comum: o amor pelo ofício e o desejo de formar pessoas mais humanas e conectadas de forma positiva com o mundo. Uma obra que mostra alguns das centenas de professores e professoras que foram exemplos e inspiraram milhares de uberlandenses. Essas histórias impressionam pela riqueza de suas lutas e conquistas. Procuramos reunir nomes que fossem representativos desse segmento e também primassem pela diversidade de suas origens e de suas linhas de atuação. Muito provavelmente, alguns leitores se identificarão em cada contexto histórico apresentado e se emocionarão no despertar da memória afetiva. Outros, mais jovens, conhecerão referência de várias lutas que vieram antes e ainda persistem até os dias de hoje. Para ambos os casos, fica a grande lição: sempre vale a pena aprender e sempre houve, há e haverá quem queira ensinar. Desejamos a todos uma boa leitura! Carlos Guimarães Coelho Jornalista e produtor cultural


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Antonino

O garoto que era professor Professor Antonino, vida de luta e conquistas

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le, Antonino Martins da Silva, foi um garoto precoce. Aos 12 anos, já estava lecionando nas fazendas vizinhas à de seus pais, Luíza Maria de Jesus e Antônio Cornélio da Silva. O pai morreu antes do seu nascimento em 1916. O pequeno órfão de pai cavalgava quase três léguas para chegar à escola de Martinópolis, atual distrito de Martinésia, onde foi alfabetizado. Seu esforço foi logo recompensado. Assim que terminou o curso primário deu aulas aos filhos de Braz Martins da Silva e, depois, aos de Orozimbo Fernandes, faturando a quantia de oito mil réis por aluno, por mês. Foi com uma bolsa de estudos cedida pelo professor Milton Porto que Antonino pode prosseguir seus estudos no famoso Colégio Liceu de Uberlândia, uma escola que abrigava os filhos das famílias mais tradicionais da cidade, mas também tinha a premissa de acolher os jovens, cujos pais não pudessem pagar a mensalidade.


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Era o início da década de 1930 e Antonino estabeleceu-se em uma pensão próxima à escola. De noite, estudava; de dia, trabalhava na Loja Glória, na avenida Afonso Pena. E assim permaneceu por dois anos, até decidir-se pelo retorno para Martinópolis. Foi lecionar numa escola pública instalada na fazenda de Orozimbo, o mesmo para cujos filhos dera aulas no início de sua trajetória como professor até ir trabalhar no cartório do distrito e, depois de algum tempo como funcionário, ganhar a titularidade. Anos depois, Antonino assumiu no Cartório de Registro Civil de Uberlândia a vaga de José Cupertino, que acabara de falecer. Na cidade ele fixou residência com a família até o fim da vida. Aposentou-se em 1987. Como tabelião, registrou momentos importantes da vida pessoal de muita gente, como casamentos de pessoas conhecidas da cidade, como Waldir Melgaço, Luiz Alberto Garcia entre outros. Naqueles tempos, o cartório era como um ponto de referência da cidade, quaisquer informações eram obtidas ali. Estava na rua Barão de Camargos, depois na avenida Cesário Alvim, número 1. Tempo em que existiam cassinos em Uberlândia, o que atraía visitantes de toda a região e até mesmo de estados vizinhos, para jogar roleta, carteado, bacarat, entre outros jogos de azar. Essas casas concentravam-se entre a ruas Santos Dumont e Goiás. Recordou em entrevista concedida ao programa Close, que

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as estradas eram muito precárias e as viagens para cidades vizinhas, às vezes, duravam o dia todo. Entre os homens mais trabalhadores da cidade, destacava Alexandrino Garcia e João Naves de Ávila. Antonino lembrou de ver Alexandrino testando os telefones por volta de 5h30. Disse que ele confundia-se aos operários. Por várias vezes presenciou João Naves de Ávila sempre tomando café às cinco horas da manhã em lanchonete no centro. Gente trabalhadora, era comum ver essas pessoas começando o dia de trabalho ainda na madrugada.

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Aprendeu música com o maestro Cássio Fuczato, organizador da “Lyra Coração de Jesus” e, um dia, assumiu a banda. Tocava baixo de chave. Além de músico, teve algumas incursões literárias publicando crônicas e poemas nos jornais locais. Antonino casou-se com a também professora Maria de Paula Silva, filha do agente do Departamento dos Correios e Telégrafos, Zacarias de Paula Silveira. A esposa de Antonino lecionou em Martinésia durante 14 anos. Faleceu com a doença de Chagas em 1967. Um de seus filhos que tem seu nome, Antonino Martins da Silva Junior foi reitor da Universidade Federal de Uberlândia. O professor foi um grande doador da escola do distrito de Martinésia, que hoje leva o seu nome. Ele faleceu em 05 de junho de 1994.


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Arcelino

Dos tempos de movimento estudantil Professor Arcelino, um educador do Liceu de Uberlândia | 03

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ra o começo de 1918. Na minúscula, nem sequer ainda emancipada cidade baiana de Jordão, posteriormente chamada de Pupiara, nascia Arcelino Pereira dos Santos, homem que, no futuro, abraçaria a mineiridade e dedicaria boa parte dos seus anos à educação em Uberlândia. Para cá veio ainda muito jovem e casou-se, em 1957, com Dorcelina de Freitas Pereira dos Santos, chamada também de Dona Fiica, tendo a conhecido no próprio colégio, onde ela era professora no pré-primário. Tiveram uma única filha, Marlene de Freitas Pereira dos Santos Ferreira.


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Formou-se em Contabilidade no próprio Liceu. Na época, o curso chamava-se “Guarda livros”. Iniciou sua docência em 1943, aos 25 anos, e a exerceu até a aposentadoria como professor em 1969. Depois da aposentadoria, Arcelino foi trabalhar na empresa CTBC, hoje Algar Telecom, e na área financeira da ABC Inco até 1989.

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Em seus tempos de aluno, o movimento estudantil, criado pelos generais do exército, com o mote “O petróleo é nosso”, teve em Arcelino uma das lideranças locais. A outra foi seu contemporâneo Rondon Pacheco, anos mais tarde galgado aos postos de governador de Minas Gerais e ex-chefe da Casa Civil do governo federal. Ambos se firmaram como peças fundamentais do universo estudantil da época. Arcelino em nome do Colégio Liceu de Uberlândia e Rondon, representando o Ginásio Mineiro, primeiro nome da Escola Estadual de Uberlândia. Arcelino relatou em entrevista que ia com frequência à praça Oswaldo Cruz, em frente ao Colégio Liceu, aguardar os jogadores que vinham de fora e chegavam pela Estação Mogiana, próxima ao local. Segundo ele, as turmas de estudantes que iam saudar os jogadores eram basicamente do Liceu, do qual fazia parte, e do Ginásio Mineiro, do qual


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Rondon era integrante. Ele contou que o ex-governador ia quase sempre acompanhado pelo tio, Juca Ribeiro. Em um período quando quase não existiam meios de comunicação, a interação entre as pessoas e as informações sobre os acontecimentos, segundo Arcelino, eram basicamente por meio de conversas e discursos em praças públicas. Ele viveu épocas de grandes tensões populares, durante e antes do regime militar no governo federal. Destacou, por exemplo, a greve dos motoristas na ponte do Val em meados do século passado. Pelo seu relato, o aumento dos impostos foi o que acabou gerando as turbulências, levando os profissionais à paralisação. Os trabalhadores se deslocavam para a antiga ponte de madeira do rio Uberabinha onde se reuniam e impediam o tráfego de carros. Outro episódio marcante foi o chamado “quebra-quebra”, no final dos anos de 1950, quando, de acordo com ele, o alto custo de vida levou os trabalhadores a um grande protesto na cidade, começando pelos cinemas e estendendo-se a outros estabelecimentos comerciais, incluindo saques, inicialmente previstos apenas para gêneros alimentícios, mas, na perda do controle, acabou incluindo até mesmo armamentos da Casa Capparelli. Segundo Arcelino, o ato não foi uma simples revolta, mas uma necessidade. “Os operários tinham necessi-

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dades, passavam fome. E, com isso, a classe se organizou para se defender. Começaram pelos cinemas, depois se dirigiram para os armazéns do Messias Pedreiro. Subiram a avenida Afonso Pena em direção à avenida João Pessoa, rumo aos armazéns de gêneros alimentícios e acabaram invadindo outros estabelecimentos”, relatou Arcelino.

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Arcelino Pereira contou como Mário Porto conseguiu sua nomeação para diretor do antigo Ginásio Mineiro, logo depois de ser um dos fundadores do Colégio Liceu, em 1928, junto a Antônio Vieira Gonçalves. Ambos também fundaram a Academia do Comércio de Uberlândia, com vistas ao oferecimento de cursos profissionalizantes. Nesse meio tempo, Mário Porto foi lecionar no Ginásio Mineiro, convidando o seu irmão, Milton Porto, para substituí-lo à frente do Liceu. Numa dessas raras ocasiões, o governador de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, viria a Uberlândia. Os coronéis e professores da época, segundo Arcelino, nomearam Mário Porto para saudar a autoridade maior do estado. Depois de proferir o discurso, Mário Porto apresentou-se ao governador de Minas como professor do Ginásio Mineiro, mas manifestando também o seu desejo de ser diretor, o que foi prontamente atendido pelo governante estadual, como contou Arcelino.


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Para o professor Arcelino, as personalidades importantes para o desenvolvimento de Uberlândia no século passado foram três prefeitos que considerava visionários: Tubal Vilela, responsável por grandes conquistas na cidade, como a primeira caixa de água elevada para abastecimento da cidade; Virgílio Galassi, igualmente empreendedor, e Renato de Freitas, também merecedor de destaque pela sua capacidade empreendedora e por ter sido, na época, o prefeito mais jovem de Uberlândia. Na década de 1950, ele graduou-se em Direito na faculdade da vizinha cidade de Uberaba e aqui também atuou no Senac, recém-implantado em Uberlândia. Arcelino Pereira dos Santos faleceu em 13 de setembro de 2010 aos 92 anos de idade.

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Dona Benedita

A professora de Rondon Pacheco Benedita Pimentel de Ulhoa, aulas na São Pedro de Uberabinha 08

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professora Benedita Pimentel de Ulhoa foi uma uberlandense nascida em julho de 1907. Era filha de Francisca Dantas Barbosa e Duarte Pimentel de Ulhoa, primeiro juiz de São Pedro de Uberabinha, arraial que viria a tornar-se Uberlândia, em 1892. O juiz exerceu o cargo até sua morte em 1928. Ela casou-se com Luiz Rocha. Benedita ingressou no magistério em 1928, quando acabara de cursar Pedagogia em Belo Horizonte. Devido a sua dedicação e ao seu esforço foi designada, em 1930, diretora do Grupo Escolar Minas Gerais. Ela soube desempenhar com muito trabalho e amor a tarefa de educadora.


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Lutou bravamente para que o estabelecimento se destacasse em todas as áreas de ensino e acabou conseguindo. A escola revolucionou os padrões da época ao oferecer aos alunos coisas inéditas, como merenda escolar, biblioteca, gabinete dentário, assistência médica, tudo graças à boa vontade de profissionais da cidade, como médicos e dentistas do período. A construção do Grupo Escolar Minas Gerais iniciou em 1926, para atender à demanda da ainda São Pedro de Uberabinha. A obra se arrastou por quatro anos e, somente dois anos mais tarde, foi inaugurada, com o nome da cidade já mudado para Uberlândia. O construtor do prédio foi Américo Zardo, que se destacou no ramo da construção civil nesse período. Como sua primeira diretora, Benedita permaneceu no cargo por 22 anos. Sem leis governamentais ou programas sociais vigentes, a escola foi pioneira em Uberlândia no fornecimento de merenda escolar para os alunos. Foi montada uma horta nos fundos do terreno, cuja produção abastecia o refeitório que produzia as merendas. Mas o Estado só arcava com as despesas referentes ao salário dos professores. Então, a comunidade se mobilizou e ajudou a escola por meio de doações e promoção de festas. Em 1934, o nome mudou para Grupo Escolar Dr. Duarte Pimentel de Ulhôa, pai de Benedita, em homenagem ao juiz de Direito da Comarca de Uberlândia.

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Entre os alunos ilustres da professora Benedita estava Rondon Pacheco, que se tornou depois governador do estado de Minas Gerais e chefe da Casa Civil da presidência da República.

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“Toda professora tinha vontade de ter um aluno como Rondon. Aplicado, culto e respeitador. Afinal de contas, não deixava de ser uma criança. Como julgar uma criança? Mas, a gente o admirava”, relatou a professora em entrevista. Uma admiração que o tempo consolidou ainda mais, diante da importância e visibilidade que o seu ex-aluno alcançou em nível nacional. Para dona Benedita Ulhoa, a criança que ela admirava, tornou-se ainda mais admirável, não pela carruagem que ele trazia, reconhecia ela, mas pela trajetória de muito trabalho e de muita luta. A professora Benedita Pimentel de Ulhoa faleceu aos 95 anos em janeiro de 2003.


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Bilá Salazar

As artes como inspiração Bilá Salazar teve carreira marcada pelo amor à cultura

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professora Bilá Salazar teve uma infância feliz no pequeno povoado de Caiapônia, onde viveu desde o seu nascimento, em 1929, até 1938, quando se mudou para Uberlândia. A leveza da infância, ela carregou a vida toda em sua personalidade delicada, envolvida até o fim com aventuras culturais que levassem mais alegria às pessoas. Com fervorosa dedicação ao ensino e à cultura, Bilá foi uma personalidade marcante para a cidade de Uberlândia, que também adotou como sua. O seu gosto pela arte nasceu na cidade natal. Sua infância foi rica de brincadeiras, contação de causos, visitas ao circo e também ao teatro , que o próprio pai “construiu “ em um galpão.

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O pai, Pedro Salazar Pessôa Filho, sempre a influenciou positivamente e é tema recorrente em suas duas obras autobiográficas. No legado familiar deixado pelo pai, houve, além de Bilá, mais descendentes em afinidades com as artes. Entre outras, o sobrinho-neto de Bilá, Wagner Salazar, falecido precocemente nos anos de 1980, teve relevantes experiências teatrais em Uberlândia e iniciara promissora carreira como ator em São Paulo. Também a sobrinha Angélica Salazar atuou por décadas a favor das artes no extinto Ministério da Cultura, em Brasília. E uma das filhas de Bilá, radicada em São Paulo, Maria Thereza, tornou-se artista visual. 12

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Bilá tinha 9 anos de idade quando veio para Uberlândia. Foi concluir o curso primário no Colégio Nossa Senhora e na Escola Bueno Brandão. Depois, fez o ginásio e o antigo curso Normal, de formação para professores, concluído em 1949, no Colégio Brasil Central, quando já estava inserida no mercado profissional. Anos mais tarde, ingressou na faculdade para cursar Letras, português-francês. Ainda como normalista, lecionava para o curso primário em uma escola pública da cidade. Depois de formada, classificou-se em primeiro lugar no concurso estadual e passou a lecionar na Escola Estadual de Uberlândia, o Colégio Museu, onde também foi auxiliar de diretoria e diretora substituta. Bilá lecionou também nos colégios Nossa Senhora e Brasil Central, , em todas as


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instituições com disciplinas voltadas para a comunicação, língua portuguesa, teoria da literatura e a história geral e do Brasil. Lecionou também na Universidade Federal de Uberlândia. Além de ter na sala de aula o seu espaço para a transmissão do conhecimento, Bilá mostrou grande desenvoltura para trabalhar nos bastidores do ensino local. Entre as décadas de 1970 e 1980, teve uma frente ampla de atuação na Delegacia Regional de Ensino, sobretudo nos assuntos ligados à Cultura. E o campo cultural era onde Bilá transitava com mais alegria. Resquícios de sua infância feliz em Caiapônia e também herança de alguns familiares envolvidos com arte. Chegou a publicar duas obras ressaltando histórias e envolvimentos com a cultura de várias vertentes, desde a infância aos tempos de juventude: “Minha infância da terra dos gigantes” e “Nessas voltas eu vou...”, ambas publicadas na década de 1980. As incursões literárias da professora se deram também por meio de várias publicações de antologias e em periódicos. Sua militância a favor da cultura local se deu de várias formas. Ela passou pela Secretaria Municipal de Cultura, como diretora do patrimônio histórico, integrou vários conselhos relacionados às mulheres e à cultura, participou de inúmeras comissões julgadoras de concursos culturais, coordenou eventos artísticos e campanhas pela arte, além de ser membro-fundadora de

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entidades, academias e ONGs, destacando aí o IAT, Instituto de Artes do Triângulo, sempre ao lado da amiga, também professora, Martha Pannunzio, além de ser membro-honorário ou correspondente de outros tantos. Defensora voraz da preservação da memória histórica, a professora também foi uma grande colaboradora do jornal Fundinho Cultural, iniciativa do artista visual Hélvio de Lima. Ali, como poeta e cronista, ela sempre marcou presença, defendendo, segundo suas próprias palavras, a premissa de que “muitas lembranças permanecem vivas quando compartilhadas”. 14

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Nos seus últimos anos, Bilá dedicou-se com fervor à sua participação no jogral Qualquer Lua, espécie de sarau poético, que se apresentava todas as noites de quintas-feiras no programa “ A Poesia nas Asas do Tempo”, pela Rádio Universitária FM. A amiga e também escritora e educadora Mariú Cerchi Borges lembrou de como a discrição e generosidade de Bilá Salazar a impressionavam, pois, segundo ela, apesar de ter feito tanto pela educação e pelas artes na cidade, nunca jogou o foco para si e estava sempre à disposição do outro. Até mesmo em seus dias finais, mesmo com a saúde já fragilizada lhe causando desconforto, Bilá estava sempre entre amigos e buscando o estado da alegria. “Nada disso tirava dela a alegria de viver. Houve um dia que lhe apareceu, sem mais nem menos, uma paralisia


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facial dificultando-lhe a fala, a alimentação e o próprio sorriso, mas nem por isso, ela deixou de cantar. Então, como costumava fazer, pediu à filha que tirasse do armário o seu caderninho de cantos e poesias -cuidadosamente manuscritos- onde estavam registrados, com uma admirável caligrafia, letras de tangos, boleros e poesias em português, francês, italiano, espanhol e, ali mesmo, formamos, ela e eu, uma dupla e começamos a cantar”, relatou Mariú. Bilá casou-se com José de Toledo Drumond e teve cinco filhos: Sérgio, André, Adriana, Maria Thereza e Fernanda. Faleceu em 9 de outubro de 2017, aos 88 anos de idade.

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Celso Corrêa

Uberlandense de coração Celso Correa foi um dos fundadores do curso de Engenharia 16

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le veio de Campos Altos, no interior de São Paulo, de onde saiu com menos de um ano de idade para Piracaciba. Na adolescência, foi para o litoral do estado, em Santos, até cursar a universidade em Campinas, vindo de lá para Uberlândia, em 1961, a convite de Osvaldo Vieira Gonçalvez, o famoso professor Vadico. Celso Correa dos Santos, casado com Cerci, também professora, aqui teve os seus filhos e netos e, na cidade, permaneceu até o fim de seus dias. Celso sempre teve a visão de professor como um artista, tendo a sala de aula como palco. E isso o atraía. Nos tempos de estudante universitário, já vislumbrava uma carreira acadêmica. E o início dela se deu em Uberlândia, com expressiva trajetória.


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Foi professor e diretor no Colégio Estadual e um dos fundadores dos cursos de Engenharia, em 1964, e de Ciências Econômicas, em 1965, na Universidade Federal de Uberlândia. Também foi professor titular na Universidade de São Paulo (USP), em 1976 e 1977, quando fez a pós-graduação. No fim da década de 1960, tornou-se diretor da Escola Estadual de Uberlândia, o Colégio Museu. Naqueles anos, para entrar na escola havia o chamado Exame de Admissão, quase um vestibular, para preencher uma das disputadas vagas. O padrão de qualidade da escola exigia isso, sempre primando pelo ensino em nível de excelência. Celso também foi o primeiro professor a dar a primeira aula do curso de Engenharia da UFU, em sua primeira turma, iniciada em 1965. Segundo ele, não foi bem uma aula inaugural, para toda a universidade, mas, sim, uma coincidência de horários, o que acabou lhe concedendo essa honra. O professor também gostava de escrever. Chegou a trabalhar nos jornais Diário de Piracicaba e A Tribuna, de Campinas. Ele também publicou livros, entre eles, além de “Sonha, menino, sonha”, se orgulhava de “O Arraial dos Vaqueiros”, lançado em 1979, ficção com foco no caipira paulista, tendo como personagem um tocador de viola e compositor, “Serena, dócil, discreta, minha sombra vai assim, à minha frente, discreta, tão diferente de mim”, é um dos trechos da poética de Celso Correa dos Santos.

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Quando chegou à bela cidade de Uberlândia, há quase meio século, encontrou-a pacata, com hábitos tradicionais das cidades interioranas, que iam desde a hora certa para comprar o pão até as opções de entretenimento voltadas quase somente para os cinemas centrais e as caminhadas pelas duas avenidas principais da cidade. Não lhe surpreendeu a transformação acelerada em metrópole. Afirmou em entrevista já sentir essa vocação progressista assim que pisou os pés em Uberlândia.

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O professor Celso não escondia o seu amor por Uberlândia. Fez questão que os quatro filhos, três homens e uma mulher, fossem uberlandenses. Poderia levar a esposa para tê-los em São Paulo, de onde veio, mas quis fincar raízes na cidade que lhe abraçou e a ela sempre dedicou grande apreço, em algumas ocasiões, traduzido em versos. Compôs, por exemplo, letra para música do compositor Pereirinha por ocasião do centenário de Uberlândia em 1988. Depois de 47 anos em Uberlândia, já aposentado, Celso dedicouse às letras. E, nelas, expressou também seu amor pela cidade. Segundo ele, o que existiu aqui foi um trinômio: talento, fé e trabalho cotidiano. Para ele, foi isso que transformou a velha Uberabinha na pujança que se viu depois. O professor Celso Corrêa dos Santos faleceu em 21 de abril de 2011.


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Dona Domingas

O anjo de Santa Maria Um distrito e a proteção de dona Domingas

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la foi a grande guardiã da igrejinha de Miraporanga, o patrimônio mais antigo de Uberlândia. A professora Domingas Santos Camin, moradora de um casarão do século XIX, que já foi mercearia, fábrica de queijos e local de reuniões de sessões espíritas, tomou para si a responsabilidade de cuidar da capela de Nossa Senhora do Rosário e foi, na verdade, quem a impediu de ruir. Como tabeliã, outra responsabilidade assumida pela professora, guardou a história de Miraporanga, também o distrito mais antigo no município, por muitos moradores ainda chamado de “Santa Maria”, nome do local até 1943. As terras eram povoadas por índios em 1807, até tornar-se um pequeno vilarejo e virar distrito em 1864.

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A capela do Rosário foi tombada como patrimônio histórico em 1968 e passou por duas restaurações, uma em 1986 e outra em 2001. Sua construção se deu entre 1850 e 1852.

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Não fosse por dona Domingas a pequena igreja já não existiria. Foi ela quem não a deixou cair. Realizava campanhas, como sorteios e quermesses para arrecadar fundos e conseguia profissionais voluntários que doassem os seus serviços para recuperação do lugar, que já estava destelhado, sem parede no lado direito, faltando janelas e portas, assoalho arrancado e sustentado por colunas improvisadas. Domingas tinha amor pelo lugar. E quem ama, cuida. Todo este apego e cuidado tinha raízes no histórico de sua família com o distrito. O primeiro a chegar a Santa Maria foi José Camim, tio de Domingas. Contratado da estrada de ferro Mogiana, ele foi primeiro para Ribeirão Preto. Ficou uns anos na Mogiana e depois veio para cá, onde existiam umas terras devolutas de sesmarias, que ele resolveu comprar. O lugar chamava Curralinho, sede da fazenda Córrego do Capim. Segundo ela, com a passagem da Mogiana por Uberlândia, Santa Maria, até então em ritmo bem progressista, acabou sendo esquecida. Domingas nasceu no início do século passado, no estado de São Paulo, e veio para Uberlândia ainda menina, em 1933, a convite do tio. Na fazenda estabeleceram a fábrica de queijos Camim, atividade que ela conduziu durante 35 anos. Os queijos


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produzidos na fazenda Córrego do Capim, como relatou dona Domingas, eram embalados em papel celofane e enviados a cavalo para o distrito de Cruzeiro dos Peixotos. Cerca de 40 unidades eram colocadas em cada animal. De lá, os queijos eram entregues de jardineira para Geraldinho Carneiro, o posto comercial da época em Uberlândia, que os entregava em domicílio, de charrete. No fim do mês, ela ia à cidade e recebia os rendimentos. Ela contou ainda que o seu tio, José Camim, era músico. O pai dela, Pedro Ângelo Camim, flautista e tinha com o irmão uma banda de música em Comendador Guimarães, onde tocava fazenda. Os músicos eram colonos, analfabetos, mas liam música. Segundo Domingas, a família tinha mania de igrejas. Construíram uma em Comendador Guimarães. Em Cruzeiro dos Peixotos, o tio também construiu outra. E em Miraporanga, ela, com a ajuda de muita gente, reconstruiu a histórica capela. Domingas Camin começou a lecionar no Quilombo onde morava. As moças a procuravam pra ensinar. Essas aulas, segundo ela, começaram em 1957. Chegou a construir um barracão para isso e já somava mais de 25 alunas. Foi assim até 1959, quando Afrânio Rodrigues da Cunha a convidou para ser efetiva no quadro de professores. Foi quando ela comprou casa em Santa Maria, prosseguindo por lá no seu magistério onde implantou a

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primeira escolinha do distrito, trabalhando como voluntária, sob a supervisão do inspetor escolar Jerônimo Arantes. “Não tinha escola. Tinha umas casas velhas e nelas lecionei uma porção de anos, para o primeiro, segundo e terceiro anos e lecionei até 1971, quando me aposentei”, contou Domingas, relatando também as relações de amizades que surgiram a partir de seu ofício.

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Paralelamente, a professora Domingas encontrava tempo para cuidar da igreja. Segundo ela, era difícil arrumar colaboradores, pois o local estava muito estragado. Ela ia lá todos os dias e os ajudantes colocavam esteios onde fosse necessário. Nunca desanimou com a empreitada. Contou que foi tudo muito difícil, pois alguns esteios tinham dois metros de profundidade. “Foi precisa tirar o antigo e colocar outro com emenda, com as braçadeiras. Era muito alto. Difícil de achar um pau que correspondesse àquele”, contou. A professora relatou que, quando chegou a Santa Maria, a igrejinha estava abandonada e nem assoalho tinha. Dom Almir aparecia esporadicamente no vilarejo para celebrar missa e sugeriu que se construísse outra igreja em local mais movimentado. E assim foi feito, muito com empenho dela própria, que não se conformava com o abandono da outra igreja. Uma das alas já tinha caído. Dona Domingas, então, arranjou alguns pedreiros e começou a reconstrução, na segunda metade


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da década de 1960, recuperando a estrutura e mantendo-a até a restauração realizada nos anos de 1980. O seu casarão foi adquirido na metade do século e, em Miraporanga, ela também se estabeleceu como responsável pelo cartório. Em princípio, quando convidada para a função, relutou, pela ausência de conhecimento das leis, e fez a contraproposta que ela ficasse responsável apenas pela emissão de certidões de nascimento e casamento, o que foi prontamente acatado pelo juiz Waldemar Ferreira. A professora tinha em casa um precioso acervo de obras e documentos, boa parte deles oriunda do século XVIII, alguns registrando eleições dos tempos de coronéis e currais eleitorais, permuta de animais e terras e até mesmo registros de venda e troca de escravos, cartas de liberação e libertação de escravos. No acervo, constavam também “aforamentos” de escravos, que era a aplicação da chamada “Lei do ventre livre”. Das lembranças encantadoras que dona Domingas guardou de Santa Maria, ficou marcada a passagem semanal de uma jardineira pela região. Segundo ela, o veículo vinha do Prata e passava por lá rumo a Uberlândia e, embora pequena, era uma condução para os moradores. Dona Domingas faleceu em 10 de dezembro de 2002. A escola do distrito hoje leva o seu nome.

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Eduardo Andraus

A era dos pré-vestibulares Eduardo Andraus inaugurou cursos preparatórios para a UFU 24

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ascido em Uberlândia em 1948, o professor Eduardo Andraus Gassani viu no fechamento do Liceu de Uberlândia uma oportunidade para investir em educação em um momento estratégico para o desenvolvimento da cidade. Na contramão da história, com escolas de qualidade fechando suas portas em uma época quando o ensino universitário em Uberlândia ainda estava engatinhando, o professor Andraus, já com o capital do respeito e da credibilidade por sua trajetória e pelas aulas particulares, decidiu montar o curso pré-vestibulares Galileu, logo transformado em colégio. Isso na tenra idade de 20 anos.


Eduardo contou que foi convidado a criar este curso em um contexto no qual existia essa lacuna e ele, estando em evidência para a comunidade estudantil, era a pessoa mais indicada para isso. Ao lado do pai, Rezek Andraus Gassani, que também era professor, e do irmão Ibrain, abraçou o desafio. O pai foi diretor de uma usina hidrelétrica no Líbano, cursou engenharia na França e acabou em Uberlândia porque um irmão vivia na cidade. Aqui tornou-se professor e foi a grande inspiração do filho Eduardo. O Galileu começou sua atuação em cursinhos para as faculdades de Medicina e Engenharia. Durante muitos anos, seus alunos se destacaram nos vestibulares para a Universidade Federal de Uberlândia. O colégio funcionou durante oito anos, surpreendendo a cidade com o índice de aprovações, quase sempre em primeiro lugar. Na política interna do Colégio, havia também a preocupação social. A escola ficou famosa por promover o acesso de estudantes com baixo poder aquisitivo. Mas, não foi isso que comprometeu a continuidade da escola. Andraus contou que sofreu um infarto aos 31 anos e, por recomendação médica, deveria se afastar das tensões naturais do ambiente estudantil. Ele e o irmão também foram responsáveis por trazer para a cidade o Colégio Objetivo. O professor tinha, portanto, duas razões para encerrar as atividades do Galileu, a saúde e a concorrência desleal com a outra escola que ele próprio trouxe para Uberlândia.

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Eduardo contou que foi convidado a criar este curso em um contexto no qual existia essa lacuna e ele, estando em evidência para a comunidade estudantil, era a pessoa mais indicada para isso. Ao lado do pai, Rezek Andraus Gassani, que também era professor, e do irmão Ibrain, abraçou o desafio. O pai foi diretor de uma usina hidrelétrica no Líbano, cursou engenharia na França e acabou em Uberlândia porque um irmão vivia na cidade. Aqui tornou-se professor e foi a grande inspiração do filho Eduardo.

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O Galileu começou sua atuação em cursinhos para as faculdades de Medicina e Engenharia. Durante muitos anos, seus alunos se destacaram nos vestibulares para a Universidade Federal de Uberlândia. O colégio funcionou durante oito anos, surpreendendo a cidade com o índice de aprovações, quase sempre em primeiro lugar. Na política interna do Colégio, havia também a preocupação social. A escola ficou famosa por promover o acesso de estudantes com baixo poder aquisitivo. Mas, não foi isso que comprometeu a continuidade da escola. Andraus contou que sofreu um infarto aos 31 anos e, por recomendação médica, deveria se afastar das tensões naturais do ambiente estudantil. Ele e o irmão também foram responsáveis por trazer para a cidade o Colégio Objetivo. O professor tinha, portanto, duas razões para encerrar as atividades do Galileu, a saúde e a concorrência desleal com a


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outra escola que ele próprio trouxe para Uberlândia. Andraus relatou como era o ambiente universitário da época, quando, basicamente, os cursos de maior visibilidade eram os de Medicina e Engenharia, que se impunham como adversários, não só no campo do conhecimento, mas também nos setores de esportes e cultura. Além dos times que se empenhavam ao máximo para firmar os seus respectivos cursos como vencedores, ambos possuíam sedes socioculturais que fizeram história, a Engenharia com o Dagemp, e a Medicina, com o Med’s. Os dois espaços marcaram época na cidade, em um tempo quando Uberlândia era bem menor e usufruir das atrações noturnas por aqui não representava nenhum risco. Além dos festivais culturais, principalmente na área de música, promovidos pelos dois diretórios acadêmicos. O professor Eduardo tinha orgulho de sua terra natal, mas lamentava o fato de ela ter se “despersonalizado” ao longo do anos. Em sua opinião, por um lado, havia a pujança do progresso e o desenvolvimento se dando de forma bonita e bem pensada, por outro despertava o saudosismo de uma cidade pacata, já quase esquecida, com espaços e personalidades que fizeram história, citando como exemplo o Colégio Liceu de Uberlândia, onde estudou, e o professor Vadico, lendário mestre da cidade que esteve por décadas à frente do Colégio Estadual de Uberlândia.

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A vocação para o magistério, Andraus afirmava ter recebido do pai, que também era professor. Ele nutria enorme admiração pela figura paterna, expressa até o fim da vida, e decidiu, desde muito cedo, seguir os passos do pai. Antes mesmo de fazer faculdade, Eduardo já era professor e acabou ensinando várias gerações das famílias de Uberlândia. E assim foi até os seus últimos dias. Há quem relate que ele, mesmo com complicações de saúde e dificuldades para andar, lecionava em casas aulas particulares de Física.

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Eduardo Andraus Gassani faleceu em 18 de dezembro de 2010, aos 62 anos, de problemas cardíacos. Não deixou filhos.


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Horlandi

Um matemático humanitário Professor Horlandi, a dicotomia entre o afeto e a austeridade

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os últimos anos de sua vida, o professor Horlandi Violatti deixava em sua árvore genealógica sete filhos, 23 netos e quatro bisnetos. Uma composição familiar iniciada cedo, em um casamento para toda a vida, contraído com pouco mais de 20 anos, já precedido pelo exercício profissional de seu ofício de professor, desde os 15 anos, na vizinha cidade de Araguari. Violatti lecionou Matemática, Ciências, História e Desenho na Escola Estadual de Uberlândia, carinhosamente também apelidada de Museu, onde chegou ao posto de diretor. Foram 38 anos dedicados àquela escola. Ele lembrou da amizade que permaneceu com os professores e alunos da escola nos anos em que lá esteve.

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E também do respeito que impunha entre os alunos, que não ousavam desafiar sua autoridade. Além desse respeito, Horlandi mencionou também a consideração recíproca com os alunos. Ele trabalhava até aos domingos, apenas para auxiliar os alunos que tivessem dificuldades em suas disciplinas.

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Antes de todo esse tempo dedicado ao Museu, o professor Horlandi passou também por uma das escolas mais emblemáticas da cidade, o Liceu de Uberlândia, onde lecionou por 19 anos. Guardou boas lembranças das pessoas com quem conviveu, como Eudócio Casasanta, Tasso de Abreu, Milton Porto, sendo este último diretor com grande admiração por Violatti, chegando a convidá-lo para substituições à frente da diretoria da escola, mesmo tendo seu filho entre os professores. Ele lembrou também de uma ocasião quando o diretor foi para ele avalista de um empréstimo sem questionar valores e condições. O professor Violatti lamentou a mudança do sistema de ensino ao longo dos anos. Para ele, a hierarquia e respeito existentes antes eram também a premissa para a boa educação. A alcunha de mestre, assim como a posição de referência do professor, mesmo fora da sala da aula, perdeu para um modelo no qual o aluno ganhou autonomia em detrimento da hierarquia. Para Violatti, houve uma queda de prestígio na imagem dos professores para o aluno e o estudante passou a “mandar” mais na sala de aula.


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Outro lamento do professor foi cair em desuso os famosos desfiles estudantis em datas comemorativas, o que mobilizava toda a escola dentro de um espírito cívico e colaborativo. Ele recordou também o hábito de os alunos cantarem diariamente o Hino Nacional e o Hino da Bandeira. Depois de aposentado, Horlandi Violatti pensou que ficaria bastante dedicado à pescaria, hábito que sempre alimentou em seus anos de magistério em toda ocasião que lhe sobrasse uma folga. Mas, não o fez. Ficou décadas com varas, linha e anzóis guardados sem uso. Sobraram-lhe as lembranças de uma época, em que ele próprio viveu muito bem, quando a relação entre alunos e professores era de intensa cordialidade e confiança. O professor, segundo lembrou Violatti, orientava o aluno não somente no sentido do conhecimento, mas também da vida e de valores. Para ele, a melhor recompensa que um professor pode receber é o carinho, consideração e admiração que ficam da parte dos ex-alunos, o que se orgulhava de ter recebido, inclusive daqueles com os quais tenha sido eventualmente severo e, anos depois o agradeceram pela rigidez na disciplina. Foram 57 anos lecionando para várias gerações e, em nenhum momento, arrependimento por seguir o ofício que tanto amava. Horlandi Violatti faleceu em 12 de outubro de 2017 aos 96 anos de idade.

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Iolanda

A dama da cultura uberlandense Iolanda, a professora que transformou a cena cultural da cidade 32

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m meados de 1980, eram poucos os trabalhadores da cultura em Uberlândia que conheciam o seu nome, quando a Secretaria Municipal de Cultura foi criada. Mas, com certeza, depois de sua lendária gestão à frente da pasta, ela não somente entrou para a história como uma grande benfeitora das artes na cidade, como conquistou corações e mentes daqueles que a conheceram. A professora Iolanda Lima Freitas teve esse mérito e foi reconhecidamente uma grande gestora da Cultura em nosso município. Antes de assumir o desafio proposto pelo então prefeito Zaire Rezende, Iolanda compunha o quadro docente do departamento de Línguas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e,


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muito provavelmente, sua afinidade com um dos fatores determinantes para que Além disso, como foi mostrado depois, e sensibilidade artística estabeleciam a ocupação do novo cargo.

a cultura francesa foi o convite fosse feito. sua notável erudição competência para a

Iolanda nasceu em Bom Jesus, na época Distrito de Goiatuba, antiga Bananeiras em setembro de 1932. Filha mais velha de sete irmãos, de José Cândido de Paiva e Maria Lima de Paiva, veio estudar em Uberlândia, no Colégio Nossa Senhora das Lágrimas onde concluiu o ginásio e o que na época era chamado de “primeiro científico”, concluindo o segundo grau no Colégio Estadual de Uberlândia e, em seguida, cursando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em 1971, ela se casou com João Rodrigues de Freitas, ficando viúva cinco anos depois. Foi um casamento curto, mas intenso, muito rico e feliz, segundo as pessoas que conheceram o casal. O amor às artes, declarado e comprovado por Iolanda, a acompanhou até seus últimos dias. Não raras vezes, era vista, mesmo em cadeira de rodas, frequentando apresentações do Teatro Municipal de Uberlândia. Em uma delas, feita pelo Grupo Galpão, de Belo Horizonte, grupo cultuado e reconhecido em nível internacional, houve o agradecimento público dos artistas pela presença da professora.

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Nas artes cênicas, visuais, musicais ou alusivas ao patrimônio histórico da cidade, Iolanda não só demonstrava comprometimento em nível de excelência, mas também se revelava conhecedora de todos os assuntos inerentes à cultura. Quando não os dominava com a profundidade necessária, era aberta aos diálogos e à participação de profissionais especializados de cada setor. Aliás, essa abertura foi marcante em sua gestão. Muito marcante foi a autonomia que dava aos seus colaboradores para criar e desenvolver projetos pertinentes à cidade. O resultado: muito do que se vê hoje na cultura material e imaterial da cidade se deu por conta por disso. 34

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O seu apreço às pessoas que colaboraram com sua gestão também esteve com ela até o fim da vida. Frequentemente, ela as reunia em sua casa para um chá da tarde, assim como para se atualizar sobre a cena cultural de Uberlândia. Tais colaboradores, até hoje, carregam a certeza de que muito do que se pensou e se plantou na cena cultural de Uberlândia, com projetos ainda existentes até os dias de hoje, tiveram o incentivo e a assinatura de Iolanda, deixando claro, de uma vez por todas, para todos aqueles que tinham dúvidas antes de 1984, a importância de uma Secretaria de Cultura em nosso município, o que nunca mais, depois dela, seria colocado em dúvida e discussão. A primeira secretária de Cultura da cidade veio do distrito Bom Jesus, município de Goiatuba – GO , onde nasceu, em 1932.


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Aqui ela estudou na Escola Estadual de Uberlândia, o Colégio Museu, onde cursou o chamado Científico na época. Licenciada em Letras e Pedagogia, especializou-se em Metodologia do Ensino Superior na Universidade Estadual de Londrina – Paraná e em Língua Francesa, em Paris. Como professora, Iolanda atuou em todos os níveis do ensino na rede pública e privada. Fez parte da equipe de Supervisão da 26ª Delegacia Regional de Ensino e integrou o corpo docente do curso de Letras da UFU. Na mesma instituição, foi a fundadora e primeira coordenadora do Centro Franco Brasileiro de Cultura. Mas, sua militância por um mundo mais solidário ia além dos muros acadêmicos. Ela também foi uma das criadoras da ONG Grupo Luta Pela Vida, que deu origem ao Hospital do Câncer de Uberlândia, hoje um dos seus principais mantenedores. Foi ela quem coordenou as atividades culturais do Grupo, o que acabou também compondo importante acervo de artes visuais que humanizam aquele espaço. Como secretária de Cultura, Iolanda não mediu esforços para o desenvolvimento e valorização da cultura em Uberlândia, tendo como marcas de sua gestão o diálogo e a participação, construiu com os diversos segmentos e instituições uma ponte que tornou possível a valorização das várias manifestações

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culturais existentes, bem como a criação de novas expressões que surgiram por meio do apoio e incentivo dado pela secretária aos movimentos culturais da cidade. Sob sua batuta, as artes e suas diversas manifestações tiveram chão propício para crescer.

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Segundo sua amiga e durante muito tempo colaboradora, a escritora Myrian Lucy Rezende, “muitas ações revitalizaram, criaram e incluíram pessoas, entidades, segmentos no importante contexto da cultura do município: a Congada, o Arquivo Público, o Museu Histórico, a Banda de Música, o Festival de Dança do Triângulo são apenas alguns exemplos de trabalhos concretizados sob sua gestão”. O seu mandato deixou muitas sementes e elas se multiplicaram em outras ações nas décadas seguintes. O legado de Iolanda está na plateia e no espetáculo, na fala e na memória de um povo, na história e sua cultura, elementos que se misturam à vida e à trajetória da secretária de Cultura entre 1984 e 1988, que faleceu em 2 de setembro de 2017, mesmo dia em que completaria 85 anos.


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Iris Póvoa

O Sesc no coração da arte Os sonhos realizados da professora Iris Póvoa

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unte numa mesma pessoa a alma caridosa, a delicadeza dos afetos, o comprometimento com a educação e o espírito empreendedor. Certamente será encontrado alguém como foi a professora Iris Lisboa Costa Póvoa, cujo pioneirismo e dedicação trouxeram novos paradigmas para o ensino e a cena cultural em Uberlândia. Iris Póvoa e a amiga Lourdes Carvalho foram as responsáveis por trazer uma unidade do Sesc para Uberlândia. E por quase toda a história da instituição na cidade, incluindo aí gestos pioneiros como a criação do Grupo Teatro do Sesc, um divisor da história das artes cênicas em Uberlândia, assim como do grupo Os Mais Vividos do Sesc, destinado aos acima de 60 anos, com atividades de artes integradas.

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A professora era natural de Morrinhos, no vizinho estado de Goiás. Sua mãe também lecionava no grupo escolar da cidade goiana. Um belo dia, Iris conheceu o comerciante Mário Marques Póvoa, que viajava profissionalmente pela região. Engatilharam um namoro, que acabou desencadeando em casamento e ela veio com ele para Uberlândia. Mário Póvoa era dono de uma loja bem conhecida na época, a Casa Póvoa.

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Quando chegou a Uberlândia, Iris foi lecionar no Colégio Brasil Central, aproximadamente no final dos anos de 1950 até quase meados da década de 1960. E ali permaneceu até a vinda do Sesc, quando ela tornou-se diretora, primeiro no bairro Fundinho, depois no centro, na avenida João Pinheiro e, por fim, na sede própria, onde está localizado até hoje, na rua Benjamin Constant, no bairro Aparecida, antigo bairro Operário, sede aliás que foi também a concretização de um sonho, pelo qual ela muito batalhou. A professora Iris trabalhou até os 75 anos, quando se aposentou, apenas porque era uma aposentadoria compulsória. Foi mais de meio século dedicado a este ofício. Além dele, ela também se dedicava a atividades manuais, como o bordado. Excelente bordadeira, ensinava a arte a quem tivesse interesse. Também bordou inúmeros vestidos de noiva para as mulheres da cidade. Nessa época, Iris morava na rua Bernardo Guimarães, no bairro Fundinho. Com a transferência do Sesc para a sua sede própria, mudou-se para o conjunto Bandeirantes,


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para ficar mais próxima do trabalho. Iris também tinha apego à religiosidade. Muito amiga do Monsenhor Afonso, era atração musical com destaque nas procissões.Foi também de dona Iris a ideia de formar um grupo de artes integradas com as pessoas mais maduras, para o qual ela dispensou qualquer nomenclatura de senso comum , chamando-o de Os Mais Vividos do Sesc. Apesar de muito bem relacionada com todos e avessa a conflitos de qualquer ordem, Iris Póvoa era destemida e não impunha censuras ideológicas aos conteúdos do Sesc. Abrigou durante muitos anos o grupo teatral que marcou a história de Uberlândia. Dele surgiram pessoas como o ator, carnavalesco e cantor lírico Flávio Arciole, o produtor cultural Guilherme Ribeiro Abrahão de grande destaque no eixo Rio-São Paulo, ambos convidados ainda adolescentes pela própria dona Iris, entre outros com proeminentes trajetórias profissionais nos tempos pós-juventude. O grupo era dirigido por Maria Inês Galvão Lima, que posteriormente teria importante atuação nos tempos embrionários da Secretaria Municipal de Cultura de Uberlândia. O GTS durou de 1968 a 1975 e trouxe no repertório montagens lítero-musicais como um movimento de resistência poética ao regime ditatorial da época, o que, muito provavelmente, pelo caráter de desafiar a censura ou pelo menos driblá-la com metáforas artísticas e questionar o cerceamento à liberdade na época, trouxe alguns problemas para a diretora da instituição. Mas, foi um projeto de grande sucesso do Sesc, balizado por dona Íris.

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Ela própria, com algumas colaborações externas à instituição, encarregou-se em alguns momentos de buscar patrocínios para as montagens. E foram espetáculos emblemáticos para a época, como Zumbi, Reconstrução e Cadeira de Balanço. Por meio deles, o grupo acabou tendo contato com ícones da cultura brasileira, como o encenador Augusto Boal e o escritor Carlos Drummond de Andrade.

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E, cada vez mais, jovens e adolescentes se integravam ao grupo, não raras vezes em núcleos familiares de dois ou três irmãos. O Sesc chegou a adquirir um pequeno palco-móvel para apresentações itinerantes. Foi quando os integrantes do grupo perceberam a precariedade das escolas para receberem atividades culturais. Um episódio foi marcante para os integrantes do grupo, incluindo a própria Iris. Em 1971, no aniversário da cidade, houve uma gincana, patrocinada por uma empresa multinacional. Na brincadeira, houve um acidente e duas pessoas faleceram. Uma delas, Dóris Cunha Melgaço, além de uma das principais integrantes do grupo, era filha de um casal muito íntimo de dona Iris. No ano seguinte, em homenagem a ela, o grupo mudou o nome de GTS para Grupo Teatral Dóris Cunha Melgaço. A professora Iris Lisboa Costa Póvoa faleceu em junho de 2001 aos 85 anos de idade.


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Luzia Alves

A guardiã de Martinópolis Luzia Alves, a professora que resgatou as histórias do distrito

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m um casarão centenário no distrito de Martinésia, a 22 quilômetros do centro da cidade, onde nasceu, Luzia Alves Borges viveu por toda a sua vida. À época de seu nascimento, o lugar ainda era chamado de Martinópolis. Ali, cresceu, estudou e tornou-se professora, carregando em si todas as deferências do ofício. Ela própria disse, em entrevista, que todo professor é meio médico, meio padre, cantineiro, faxineiro, psicólogo e todas as funções que lhe forem apresentadas como desafio no exercício de transmitir o conhecimento. Luzia tornou-se uma espécie de guardiã do distrito de Martinésia, um dos quatro de Uberlândia, ao ponto de registrar em livro toda a história do local e lançá-lo depois de aposentada, em 2014. A obra “Martinésia também tem história” é resultado de tudo

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que a professora presenciou ou pesquisou durante toda a sua vida. Na obra, a tradição da fé é mostrada com protagonismo, seja pelos hábitos religiosos que ela própria sempre professou ou pelas manifestações culturais com grande força no lugar, como é o caso das Folias de Reis.

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A professora foi motivo de orgulho para os moradores do distrito, por ser uma das grandes referências de Martinésia, à qual ela se referiu como Martinópolis, primeira nomenclatura do vilarejo. Em 1926, foi criado o distrito de Martinópolis e, em 1943, o estado mudou o nome do distrito para Martinésia, que significa “gente bonita”. Na obra de Luzia, figuram histórias do surgimento de vários ícones do distrito, que ela fez questão de perpetuar na memória dos moradores, como a Igreja São João Batista, construída a partir do voto de dona Isabel, pela cura do filho, Joaquim Mariano da Silva, com uma doença rara em uma época de pouco acesso à Medicina; assim como as Folias de Reis, referência na região, surgidas a partir da promessa de Maria Antônia, cuja família veio de Araxá já com a missão de celebrar a folia. A tradição fincou raízes e tornou-se orgulho dos moradores do distrito. A própria Luzia ressaltava isso! “Onde vou, a festa é reconhecida. Quando digo que sou de Martinésia, as pessoas já perguntam: ‘é lá que tem uma festa muito boa?’. Fico muito orgulhosa, porque sou daqui”, afirmava a professora.


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Dona Luzia passou 50 anos de sua vida como professora e coordenadora da escola de Martinésia. De todos os moradores do Distrito 80%, como alunos, passaram por suas salas de aula. A vontade de conhecer a história, ela trouxe de sua mais tenra infância. Das lembranças que Luzia tinha em Martinópolis, recordou-se de dona Ambrosina. Ela ia com a mãe ajudá-la a desencaroçar algodão e a enchia de perguntas sobre o local e os seus habitantes. Percebendo que muitas das respostas vinham por educação e gentileza, decidiu começar a perguntar para outras pessoas a fim de satisfazer a sua curiosidade infantil. A vida de dona Luzia confunde-se à história do próprio vilarejo de Martinópolis, surgido por volta de 1919, um ano antes do seu nascimento. O lugar elevou-se a distrito em maio de 1927, com Luzia aos 7 anos de idade. Foi quando houve a mudança do nome para Martinésia. Último distrito a ser fundado em Uberlândia, tudo começou com o comerciante Sírio José Jacob, que tinha fazenda nos arredores do distrito. Foi quem construiu a primeira casa de Martinésia. Ali havia também a fazenda da família Martins, o que justifica o nome do local. Terrenos foram doados para a prefeitura e, na virada entre as décadas de 1919 e 1920, vários casarões foram erguidos no local. E ali o progresso foi se instalando até os anos de 1930.

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O distrito hoje tem pouco mais de 1.000 habitantes. No período das Folias de Reis, essa população multiplica-se, ao menos, por dez. Uma das moradoras mais conhecidas em Martinésia é a dona Negrinha, que ficou famosa com a confecção de bonecas pretas. A artesã aprendeu a costurar ainda na infância, mas somente décadas depois, quando fez um curso com a técnica para confeccionar bonecas, é que surgiu a ideia de fazer algo bastante personalizado. Decidiu, portanto, trazer para a infância a representatividade das pessoas pretas, o que reverberou para todo o país e até em nível internacional. 44

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E assim como dona Negrinha, há no distrito, o mesmo amado, defendido e registrado em vida pela professora Luzia Alves Borges, outras personagens raras de se encontrar, presentes quase que somente nestes pequenos vilarejos onde ainda se preservam tradições seculares. Foi nesse ambiente bucólico e repleto de manifestações das culturas populares que nasceu, cresceu e viveu por toda a sua vida dona Luzia Alves Borges, atravessando tempos, como ela mesma relatou, quando nem havia energia elétrica e a iluminação era feita por lampiões e lamparinas. A professora tinha fascínio por todas as histórias relativas à sua terra natal. A cidade hoje honra a sua existência e, em memória dela, dá o seu nome a uma das ruas do distrito, acentuando a sua importância na preservação e perpetuação da história local, assumida publicamente por meio de seu livro. Luzia Alves Borges faleceu em 29 de setembro de 2015.


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Dona Lia

Com carinho e resistência Dona Lia, dos tempos gloriosos do Brasil Central à perseguição política

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om o Ginário Mineiro transformando-se em escola pública estadual, em 1929, o professor José Ignácio de Souza criou o Instituto Brasil Central, posteriormente transformado em colégio, onde também estudaria sua futura nora, Maria Conceição Barbosa, que também figuraria não somente no corpo docente da escola, mas na história da educação em Uberlândia. O Instituto Brasil Central funcionava com os cursos Normal e Ginasial, porém o curso Normal acabava tendo mais alcance por possuir um internato. Maria Conceição viera da cidade de Pequi, Minas Gerais, onde os avós maternos possuíam um engenho de cana. Um dia, o avô José Melgaço estava trabalhando no engenho movido por

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tração animal e, por um descuido do funcionário ajudante, houve um arranque e o batente da engrenagem acertou em cheio a cabeça, matando-o na hora. Como era praxe naqueles tempos, as decisões eram do patriarcado e o pai, Fernando Barbosa, decidiu por eles o destino da família. Deveriam vender a parte da herança que cabia à mãe de Maria Conceição, Izaura Melgaço Barbosa, e mudarem-se para Goiás.

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Pequi era uma cidadezinha mineira, onde sequer havia luz elétrica, um vilarejo mesmo. No início da década de 1930, a família mudou para o distrito de Tupaciguara, chamado Barra da Confusão. O avô conseguiu um posto de trabalho para seu pai na administração das balsas que atravessavam o Rio Paranaíba levando pessoas e todo tipo de mercadorias para Goiás. E a ida para o estado de Goiás, na cidade de Buriti Alegre, se deu em 1932, quando o pai de Maria Conceição conseguiu uma nomeação para os cartórios daquela comunidade. Até então, não era uma época muito tranquila para dona Izaura. A mudança tinha sido com a companhia dos avós paternos de Maria Conceição e a sua avó, Maria do Carmo, interferia muito na vida da nora Izaura. A avó costurava e deixava toda a responsabilidade da casa para a mãe de Maria Conceição, que nem podia reclamar do cansaço e quase não lhe sobrava tempo para rever a família. A mudança para Buriti Alegre seria um recomeço para eles, já que os sogros não estariam a tiracolo.


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Nesse período, Maria Conceição estudava no internato Brasil Central em Uberlândia, e só retornava para casa no período de férias. Sempre que ela ia visitar a família em Buriti Alegre, o pai se esforçava para que ela não retornasse ao internato. A mãe é que tinha sempre de convencê-lo e tentava criar condições, a fim de que a Maria Conceição voltasse para a escola. Inclusive escrevia para o professor José Ignácio, implorando ajuda. Foi assim até a sua formatura. A mãe não era o tipo que criava as filhas mulheres para serem rainhas do lar. Prezava a independência delas e todos os afazeres domésticos ficavam mais por conta dos quatro irmãos homens do que das meninas, incluindo a arrumação da casa, as quitandas feitas todas as semanas, a arrumação da cozinha, fazer café, etc. A mãe dizia que precisava descansar as filhas, pois, depois do casamento, elas assumiriam essas responsabilidades. A irmã de Lia, Normy Barbosa, afirma que aconteceu o contrário do que a mãe previa, pois nenhuma delas, mesmo depois de casadas, foi demasiadamente dedicada aos trabalhos domésticos. No internato, a normalista Maria Conceição conheceu, apaixonou-se e casou com o médico Manuel Teixeira de Sousa, o filho do diretor José Ignácio de Sousa. Maria Conceição e Manoel sempre iam passar as férias em Buriti Alegre. As irmãs Normy e Ivone ficavam muito felizes com os presentes que Maria Conceição levava. Os primeiros vestidos de seda e as primeiras

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bonecas de Normy e de Ivone, por exemplo, foram presentes da Maria Conceição e do cunhado. Os pais, por uma questão de princípios, não tinham por hábito dar presentes caros aos filhos.

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A família Barbosa Firmino era composta por Maria Conceição, José, (Zé), Orcalino (Nino), Valter (Nenzico), Fernando(Nem), Normy e Ivone. A irmã mais velha era admirada por todos. Ela era acolhedora, carinhosa e cuidava de todos. Os irmãos passaram a morar com o casal para seguirem nos estudos. O encantamento e admiração foram acentuados quando nasceu primeira sobrinha, Miracy, e o lugar tornou-se ainda mais especial quando veio a outra integrante da família de Maria Conceição, Miriná. Anos mais tarde, ela ainda teria mais dois filhos, Miracema e Miratan. Como educadora, Maria Conceição era uma mulher dedicada ao ofício. Começou lecionando no curso Normal da escola do sogro. O marido, ao tornar-se venerável na Loja Maçônica Luz e Caridade, criou a escola Doutor Lacerda, destinada à população pobre de Uberlândia e entregou à esposa a direção da instituição escolar. Com ela, a professora atingiu reconhecidos resultados, tentando inclusive imprimir um cunho progressista ao projeto pedagógico. Havia, no entanto o vínculo fragilizado da escola com uma Loja Maçônica, onde disputas internas e mudanças de comando ditariam os seus rumos. No caso, a escola foi desativada. Maria Conceição retornou ao Brasil Central,


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agora um colégio, onde passou a coordenar a administração do internato feminino. Foi quando a professora recebeu carinhosamente da comunidade o apelido de Tia Lia. Tornou-se uma mulher respeitada e bondosa com as alunas e com os pais, que lhe confiavam a educação das filhas. Dona Lia era uma educadora comprometida com a formação e o futuro das jovens normalistas. Levava isso muito a sério. Tal postura a inspirou a adotar mais quatro filhos: Irene, Maria Amélia, Regina e Hélio. O mesmo cuidado que Lia tinha com a educação, também tinha em relação à sua família. Grata aos pais pela oportunidade de estudo e já com uma boa situação econômica, passou a contribuir com a educação dos irmãos. Trouxe para Uberlândia Normy e Ivone e as colocou para ajudarem na administração do internato. No início da década de 1950, faleceu o sogro de Lia, professor José Ignácio de Sousa. Ela, que, praticamente, já estava à frente do colégio e gozava de grande credibilidade em Uberlândia, passou a ser uma das proprietárias da escola e a alçou a um posto de vanguarda na cidade, em pé de igualdade com o Colégio Estadual e o Colégio Liceu de Uberlândia.

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No início dos anos de 1960, vários fatores contribuíram para que a escola, tal como havia sido conduzida até então, deixasse de existir, com esse desfecho acontecendo em 1966. Entre estes fatores estavam a popularização da escola, desencadeada por Dona Lia que, por sua generosidade, recebia matrículas de quem não podia arcar com as mensalidades, de um espírito político meio conturbado no período pré-golpe militar e pela oposição ao marido Manuel, que alimentava ideais socialistas, e, na época, era vereador e presidente da Câmara Municipal.

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Após o choque da venda do colégio, Lia teve de amargar também a perseguição política à sua família pelas forças conservadoras de Uberlândia que, obviamente, apoiavam o regime militar que acabara de se instalar. O marido e o irmão foram denunciados e presos pelos órgãos de repressão da ditadura militar. O empresário rural Virgílio Galassi assumiu o lugar de Manuel na presidência da Câmara. Virgílio seria por quatro vezes prefeito da cidade. Para livrar o irmão e o marido da prisão, Lia usou seu prestígio pessoal e recorreu aos amigos e à maçonaria. Ela conseguiu a soltura. Mas, os infortúnios, as decepções e as humilhações a deixaram doente. E ela foi diagnosticada com câncer, já em estado avançado. O seu genro, João Pedro Gustin, vereador na cidade, pediu a um candidato à prefeitura que prometesse, caso eleito, criar uma escola pública para Lia administrar, abrandando


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assim os temores da doença. A promessa foi cumprida. O candidato foi eleito. Era Renato de Freitas, no ano de 1964. Em 1967 é celebrado um convênio com o governo do estado para a implantação do Colégio Comercial Oficial de Uberlândia, do qual Lia seria diretora. Mesmo doente, Lia assumiu com potência a direção da escola e investiu esforços em sua ampliação e na mudança de nome. A escola começou dividindo espaço com a também escola pública estadual Afonso Arinos, ao lado da sede dos Correios, na rua Duque de Caxias. Mesmo lutando contra a doença e o tempo, Lia consegue, no segundo ano de funcionamento, transferir a escola para a rua Prata, no bairro Operário. E em agosto de 1967, foi aprovada a lei que transformou o Colégio Comercial Oficial de Uberlândia em Escola Estadual Professor José Ignácio de Sousa. Lia, mesmo empreendendo esforços para prosseguir em sua jornada escolar, estava cada vez mais combalida pela doença. Sua filha Miracy, esposa do então vereador João Pedro Gustin, assumiu a direção. Não oficialmente, graças à generosa “vista grossa” feita pelo inspetor escolar Saint Clair, permitindo que Lia permanecesse diretora até os seus últimos dias. Para Miracy, “ela morreu diretora. Era ela quem assinava todos os documentos”. A morte de dona Lia causou uma comoção na cidade. Foi

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tema de crônica assinada por Lycidio Paes no jornal Correio de Uberlândia e os alunos da escola, pouco tempo depois, no tradicional desfile cívico de Sete de Setembro, fariam a ela uma homenagem póstuma. Um empresário da cidade chegou a ceder seu avião particular para trazer a filha Miriná, que estava estudando na Califórnia, para participar do velório. A filha Miracy, que assumiu a direção da escola de fato e de direito depois do falecimento de Lia, disse que o caixão da mãe foi carregado em procissão pela cidade.

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A professora Maria Conceição Barbosa, a dona Lia, morreu em julho de 1970, aos 52 anos de idade. Hoje uma escola pública da cidade, no bairro Saraiva, leva o seu nome.


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Milton Porto

O desafio de um Liceu Professor Milton Porto esteve décadas à frente da escola mais emblemática da cidade

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professor Milton Porto esteve à frente de uma das escolas mais famosas de todos os tempos na cidade, o Colégio Liceu de Uberlândia. A escola foi criada pelo irmão de Milton, Mário Porto, e por Antônio Vieira Gonçalves, pai do também famoso professor Osvaldo Vieira Gonçalves, o Vadico. A escola foi criada em 1928 e durou até os anos de 1970, quando fechou definitivamente suas portas, em 1972. Milton Porto esteve na direção da escola durante ininterruptos 42 anos.

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O professor Milton dizia dever aos ex-alunos toda a amizade e carinho de sua vida, revelando ter amor paterno por cada um deles. Para ele, a contribuição da escola à cidade foi incomensurável. Ele contou que os alunos do Liceu não se sentiam coagidos. Era uma casa onde todos eles se queriam bem e a atmosfera da escola, segundo ele, era como a de uma “família maior”.

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O professor contou que o fechamento da escola se deu por cansaço mesmo de seus dirigentes, já em idade avançada, inclusive ele, e sem muita energia para prosseguir com o empreendimento, sobretudo naquele ano, quando começou uma série de exigências burocráticas do Ministério da Educação para autorizar o funcionamento das escolas . Segundo ele, a meta da escola, em se tratando de educação particular, não era o enriquecimento e, sim, a garantia de um bom futuro para os alunos. Apesar de ser uma escola particular, não visava lucro, inclusive abrindo as portas para muitos estudantes oriundos de famílias sem condições de pagar a mensalidade. Ele contou que a escola, na verdade, teve uma história vitoriosa e o seu fechamento, portanto, não se deu por questões financeiras. A forte marca Colégio Liceu de Uberlândia, na ocasião do seu fechamento, foi objetivo de interesse de muitos que queriam explorar comercialmente a sua credibilidade. Milton


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recebeu propostas para que outros prosseguissem com o nome marcante na história do ensino em Uberlândia. Mas, todas foram recusadas, por escolha da família em encerrar com ela a trajetória da escola. A razão da vinda de Milton para a cidade foi pelo fato de seu irmão, Mário, o fundador do Liceu, ter sido convidado para ocupar o cargo de reitor do Colégio Estadual, conhecido como Museu. Para se dedicar mais à reitoria, convidou o irmão Milton de Magalhães Porto para assumir o colégio. A escola, à época de sua fundação, se chamava Liceu de Uberabinha. No primeiro ano de seu funcionamento, a cidade mudou seu nome para Uberlândia e a escola fez o mesmo. O termo Liceu era usual entre colégios do país inteiro. A origem veio da Grécia clássica. Era um ginásio perto de Atenas e o termo tornou-se nomenclatura em várias cidades para colégios de ensino médio, como referência à escola filosófica fundada por Aristóteles, em 335 a.C. (a escola peripatética), cujos membros se reuniam no local. Há quem diga que o termo também faz alusão à escola encarada como uma bela diversão, já que na Grécia antiga, estudar era uma atividade possível apenas para aqueles privilegiados que não precisavam trabalhar. O irmão de Milton, Mário, por seu perfil idealista e defensor da igualdade social, era visto por muitos como uma pessoa que

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desafiava o sistema. À época da Intentona Comunista, na década de 1930, um grupo de intelectuais da cidade se afinava com alguns discursos de esquerda e, em decorrência disso, a cidade foi apelidada de a “pequena Moscou”. E o Colégio Museu chegou a ser considerado, por alguns, como um QG desse pequeno esquadrão comunista. É possível constatar a perseguição política a Mário Porto nos arquivos públicos locais e estaduais, onde existem documentos que comprovam isso, inclusive da Polícia Política, ligada ao Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, órgão do governo brasileiro utilizado como instrumento de repressão, principalmente durante o Estado Novo e mais tarde na ditadura militar. Nessa época, para não se tornar um preso político, Mário saiu às pressas de Uberlândia, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde prosseguiu em seu trabalho pela educação, até o seu falecimento, em 1950. Mas, a essa altura, era Milton Porto quem prosseguia com o sonho da escola idealizada por Mário. E tal prosseguimento fez jus a essa idealização. O Liceu de Uberlândia foi realmente um marco na cidade. Como na época não havia escolas noturnas ele abriu as portas do Liceu a noite permitindo aos trabalhadores o acesso ao ensino. Estimulava seus alunos a desenvolverem atividades artísticas e políticas sendo marcante a trajetória da orquestra que se tornou conhecida nacionalmente. Essa orquestra promovia shows e espetáculos teatrais com relativa frequência, isso em uma cidade ainda considerada pequena.


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Nos anos iniciais, oferecia apenas o curso primário, mas, depois, até incorporou à escola a Academia de Comércio, com cursos técnicos destinados ao ensino comercial. Isso em 1931, mesmo ano da chegada de Milton Porto à cidade, vindo de Caruaru, Pernambuco. A escola ficava na praça Osvaldo Cruz, em frente ao antigo Fórum Abelardo Pena, hoje Centro Municipal de Cultura. Em 1941, a escola inaugurou o primeiro ginásio coberto da cidade, o mesmo que, religiosamente, todas as sextas-feiras, se transformava em cinema e/ou espaço de apresentações. Ali se apresentaram grupos de teatro e artistas famosos, como o cantor Wanderley Cardoso, ícone da juventude dos anos 1960. Foi ali também que, em 1952, foi formada a orquestra do Liceu, pela iniciativa do aluno do curso de Contabilidade da Academia de Comércio, o húngaro Nicolau Sulzbeck. Na época, ainda não existia o Uberlândia Clube e a cidade não tinha muitos encontros sociais. No andar de cima do colégio, Milton morava com a família, a esposa Maria Fausta Gouveia Porto, as duas filhas nascidas em Uberlândia , Ana Maria e Maria Lucia e o primogênito Galba Gouveia Porto. Quando veio para a cidade, Milton havia deixado a esposa e o filho em Pernambuco. Só se encontraram novamente oito meses após a sua vinda.

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Além de administrar o Liceu de Uberlândia, Milton foi presidente da Fundação Universidade de Uberlândia, entre os anos de 1969 e 1978. Recebeu o título de Cidadão Honorário e a Medalha Augusto César. Em 1974, recebeu a Comenda Santos Dumont e, em 1980, a Assembleia Legislativa lhe concedeu o título de Cidadão Honorário de Minas Gerais. Faleceu durante as comemorações do Centenário da Emancipação de Uberlândia, em 30 de agosto de 1988. Hoje, ele dá nome a uma escola pública da cidade, no bairro Segismundo Pereira. 58

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Nelson Cupertino

Um comunista com estilo Personalidade das artes e da educação, Nelson Cupertino era admirado na cidade

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esde os 17 anos até o fim da vida, Nelson Cupertino foi professor. Dono de grande erudição, não se intimidava diante do desafio de dar aulas, mesmo que fossem de disciplinas das quais não tivesse o profundo domínio. Passou por várias escolas em Uberlândia e em outras cidades. E a sua ausência de timidez também seria uma das grandes adversidades em seu caminho. Nelson Cupertino nasceu em 29 de junho de 1902. Caçula de oito irmãos, filhos do casal Bernardo Cupertino e Julieta Ribeiro Cupertino.

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Mudou-se com um ano para São Pedro de Uberabinha. Em 1921, casou-se com Anna Gomes do Valle - que passa a assinar Anna Cupertino, casamento que durou 14 anos, quando ela faleceu.

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Nelson Cupertino viveu tragédias em sua vida romântica. Suas duas esposas foram internadas com transtornos mentais após perderem seus filhos. Com Anna, teve os filhos Norma, Douglas, Irene, Flora e Dalva. Douglas morreria ainda na infância, em decorrência de um acidente doméstico, que levou Ana para uma casa de repouso e à morte precoce em decorrência de um processo depressivo. Flora também morreria jovem, após uma crise epilética, antes dos anos de 1960. Ainda com a esposa no “sanatório”, Nelson constituiu outra família com Carolina Fernandes, tendo os três filhos Eleusa, Luís Carlos e Filon. Eleusa faleceu aos 7 anos com meningite enquanto ele estava em um de seus exílios políticos, escondendose da polícia na Amazônia em 1939. Ainda muito jovem, Nelson Cupertino foi dar aulas de Inglês no conceituado Colégio São Luiz. Morava em um hotel. À noite estudava os conteúdos que iria ministrar no dia seguinte. Nelson Cupertino, a partir de 1930, lecionou História Natural no antigo Ginásio Mineiro que, depois, tornou-se a Escola Estadual de Uberlândia. Ali permaneceu até 1955.


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Comunista assumido, quando aconteceu a “revolução”, ele, sabendo que poderia ser detido, vestia suas melhores roupas e saía pelas ruas, pelos melhores lugares de Uberlândia, dizendo: “se eu for preso, quero ser preso é aqui”. E, de fato, ele foi preso em plena avenida Afonso Pena, espaço de socialização do período. No ano anterior, Nelson passou a integrar a Aliança Nacional Libertadora (A.N.L.), participando em Uberlândia de comícios e protestos contra a guerra e o imperialismo, o que o levou a ser preso no ano seguinte. Embora subversivo ao regime de Getúlio Vargas, por sua erudição e elegância, era um homem muito respeitado em Uberlândia. Frequentava as seções do Cine-Teatro Avenida, promovia palestras sobre Biologia e Ciências Naturais aos alunos mais interessados do Ginásio, participava das reuniões de Pais e Professores e era presença garantida nos eventos culturais da cidade, para os quais ia como convidado ilustre. O pai de Nelson, Bernardo Cupertino, de origem portuguesa, veio de Araguari para a cidade ainda chamada de Uberabinha. Criou por aqui, ainda no início do século, em 1907, o jornal O Progresso. Mas, faleceu precoce e repentinamente, aos 46 anos, quando o negócio ainda estava engatilhando e Nelson tinha apenas 5 anos de idade. Um de seus irmãos, Joaquim Cupertino, teria tentado, sem sucesso, conduzir o jornal por mais alguns anos.

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Para quem olhasse de longe, parecia haver uma grande contradição entre aquele homem de família relativamente privilegiada, que dirigia o seu Fordinho 29, e o comunista que ele dizia ser. Mas, nada de contraditório, já que ele não se acomodava no conforto de sua classe social e demonstrava profunda preocupação com a formação cultural das pessoas e com a evolução da cidade dentro de um preceito de justiça social. Tanto que sua famosa obra, “M’Boitatá,” sob a égide da filosofia marxista, retrata o desbravamento dos motoristas no Brasil Central. 62

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“M’Boitatá”, aliás, como nos lembrou o pesquisador Antônio Pereira, por várias ocasiões, quase virou filme. Nelson conseguiu viabilizar sua publicação em 1941. Em 1953, o cineasta Alex Viany veio a Uberlândia para um contato com o professor. Tinha interesse em levar para as telas o romance histórico de Nelson Cupertino. A epopeia dos motoristas uberlandenses na conquista comercial do Centro Oeste para os grandes atacadistas locais daria um excelente filme. Após as conversas iniciais, no ano seguinte, Alex voltou à cidade para organizar o roteiro com o professor. Vieram também o maestro Gandelman e a estrela Dóris Monteiro, cotada para protagonizar o filme, e, que veio à cidade para se apresentar em duas sessões de seu espetáculo. Algum tempo depois, Dóris esteve aqui para participar de um baile do Colégio Brasil Central. Deixou-se fotografar ao lado do professor Nelson e, à noite, foi entrevistada pela Rádio


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Educadora, quando falou de sua satisfação em participar do filme. E foi para o baile. Depois disso, os contatos foram esfriando, as notícias escasseando e, de repente, esqueceu-se de tudo. É de se acreditar que faltou capital para a produção. Mas Nelson acabou decidindo não aguardar a transformação da obra em filme para torná-la cênica. Ele próprio providenciou que “M’Boitatá” fosse encenada, em 1954, como espetáculo teatral, no palco do Cine-Theatro Uberlândia, com um grande elenco. Ainda houve outra ocasião em que essa transposição de “M’boitatá” para a telona quase se tornou real, foi após a morte do professor Nelson. O ator Tarcísio Meira entrou em contato com a família, mostrou interesse em conhecer a obra reeditando a possibilidade de filmá-la. Foi-lhe enviado um exemplar do “M’Boitatá”, mas não houve prosseguimento nas conversações, como relatou Antônio Pereira. Através de Agenor Paes, o professor Nelson Cupertino chegou a apresentar o esboço de sua obra “M’Boitatá“ ao conhecido escritor Monteiro Lobato. A proximidade de Nelson Cupertino com as artes era estreita, principalmente as artes cênicas. No início da década de 1930, por exemplo, foi fundado um espaço musical em Uberlândia denominado Instituto Musical Santa Cecília, onde também havia um grupo dramático, ligado ao Gymnasio Mineiro, o

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Martins Penna, do qual Nélson Cupertino era orador e José Cupertino Filho, secretário. O diretor-geral era Mário Porto, a direção musical ficava a cargo de Alyrio França e a cênica de Henckmar Borges. Cupertino também era grande entendedor de Botânica e foi responsável pela primeira tentativa de se colocar uma escola superior em Uberlândia em 1936. A escola chegou a ser criada, chamava-se Faculdade Livre de Farmácia e Odontologia.

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Dono de uma genialidade pública e notória, Nelson atravessou os dois períodos mais turbulentos da repressão política de nossa cidade e teve de se defender de ambos. Acusado de participar da reorganização do Partido Comunista em Uberlândia no período anterior a março de 1964, principalmente em 1963, na companhia de Roberto Margonari, já indiciado no Departamento de Vigilância Social, ele era obrigado a andar com atestados de “bons antecedentes”, como forma de se esquivar das perseguições empreendidas durante a Ditadura Militar. Apesar de todas essas adversidades ao brilhantismo de seu intelecto e de distanciamentos como o exílio no Paraguai e uma suposta ida a Moscou, o professor Nelson Cupertino era fruto de grande admiração também de seus ex-alunos. Alguns chegaram a fazer campanha para que ele desse nome à rua XV


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de Novembro, onde Nelson morava. Nelson foi um jovem esforçado. Além de começar a lecionar aos 23 anos tornou-se dono da própria escola, a Nossa Senhora da Conceição. Era poliglota, inclusive como uma das raras pessoas que dominavam o idioma esperanto. E muito criativo, o que era perceptível até nas situações mais drásticas. Em uma de suas prisões, por exemplo, ao lado do amigo arquiteto João Jorge Cury, aproveitou o período de reclusão para dar aulas aos policiais. Também era alguém que aproveitava as oportunidades, ainda que existissem críticas a elas, como quando fundou em Uberlândia o Centro de Extensão Cultural para a Língua Inglesa, mesmo sendo crítico voraz da cultura americana, manteve os cursos de Madureza e Língua Inglesa até 1945. Com o amigo João Jorge Cury tinha proximidade e afinidades. O escritório de Coury era um dos pontos de encontro de algunsintelectuais da época, como ele próprio, além de Frei Egydio Parisi, o ator Mario Roquete e os artistas visuais Gleber Gouveia, Juarez Magno e Geraldo Queiroz, entre outros. Em 1955, aposentou-se por tempo de serviço no Colégio Estadual de Uberlândia. Nelson Cupertino também foi juiz de Paz da Comarca de Uberlândia. eleito para o quatriênio 19631966.

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Em 1963, ele e João Jorge Cury, Francisco Carneiro, Anisio Jorge Hubaide, Afrânio Francisco de Azevedo e Olívia Calábria foram considerados reorganizadores do PCB e ele é denunciado “notório comunista”, pois atuava com os demais “infringindo a Lei de Segurança Nacional”. Em 1964, é indiciado em Inquérito Policial Militar feito em Uberlândia por atividades comunistas. No final dos anos de 1960, dedicou-se a estudos e à emissão de certificados e documentos que podiam lhe resguardar de eventual repressão militar.

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Nelson possuía um enorme acervo de livros em sua biblioteca particular. Foram doados pela filha Irene para uma biblioteca do Rio de Janeiro. O professor faleceu em 1971, aos 69 anos. Hoje há uma escola pública em Uberlândia, no bairro Martha Helena, que leva o seu nome.


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Olívia Calabria

Mulher de coragem e ousadia Professora Olívia Calábria ensinou as mulheres a dizer não

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ão é muito fácil imaginar a vida das pessoas que vivem à frente do seu tempo e desafiam as convenções de toda uma geração. Assim como é difícil imaginar teorias revolucionárias e comportamento feminista em um período como meados do século passado na pacata e conservadora Uberlândia. Foi neste contexto em que viveu o ápice de seu espírito rebelde e vanguardista a professora Olívia Calábria, assumidamente comunista e defensora voraz dos direitos das mulheres.

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Gritar pela soberania feminina, naqueles tempos, era por si motivo para ser rechaçada. Se os movimentos feministas no Brasil só começaram, efetivamente, décadas depois, nos anos de 1960, dá para se imaginar o tamanho do confronto que se estabelecia ao buscar a autonomia das mulheres, em plenas décadas de 1940 e 1950, numa cidadezinha como era a Uberlândia da época. Desdizer a alcunha de “rainha do lar” naqueles tempos era um ato de grande coragem, muito mais do que apenas quebrar os paradigmas do período.

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A menina, nascida em abril de 1914, ajudou a criar os irmãos. O mais velho era o Olívio. Morreu cinco anos depois do pai. Depois veio a Sidônia, o Bruno, o Casério, o Fábio, o Neném, o Fausto e a Haidê. A verve política, ela herdou do pai, Domingos Antônio Calábria, que participou ativamente do movimento anarquista em São Paulo. Sua mãe era Corina Verzeloni Calábria. Essa precedência, aliás, em muitos momentos, é que daria guarita a Olívia, por não encontrar dentro de casa a mesma intolerância e repressão que encontraria lá fora. Olívia começou a lecionar aos 14 anos, para ajudar nas despesas de casa, onde o pai, já falecido, não estava mais presente. Começou como ajudante na Escola São José, de propriedade de Clélia Alvim e posteriormente, entre os anos de 1930 a 1932, na escola dos professores Antônio e Benedito Fonseca. Montou uma pequena escola primária, em barracão improvisado onde o pai


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trabalhava, para atender aos filhos de camponeses, comerciantes e operários. Com uma bolsa de estudos, ela conseguiu fazer o curso Técnico de Contabilidade no Colégio Liceu de Uberlândia. No período da Segunda Guerra Mundial, a família foi sacrificada com as dificuldades financeiras. Olívia ajudava a mãe com costuras para driblar tais problemas. Foi quando ela teve contato com duas obras que lhe despertaram ainda mais o senso crítico e o exercício do pensamento político: O Capital, de Karl Marx, e Um Engenheiro Brasileiro na Rússia, sobre Luís Carlos Prestes. Evoluindo nessa linha de reflexão, Olívia acabou se filiando, em 1946, ao Partido Comunista Brasileiro, chegando a residir dois anos em Belo Horizonte, para participar do Comitê Estadual do partido. Nesse ano, também começaria a repressão política que a acompanharia até o ano de 1988, posto que a onda repressora também se intensificaria nos anos de ditadura militar, período em que a casa de Olívia foi várias vezes invadida. O engajamento político de Olívia não cabia na Uberlândia daqueles tempos. Imagine em plena década de 1950, Olívia Calábria indo com os seus companheiros para o campo realizar palestras sobre a reforma agrária e os benefícios do socialismo para os produtores. Ou ainda andando a pé pela cidade e organizando movimento de mulheres da periferia e levando-as à prefeitura com uma série de reivindicações, por mais corriqueiras e justas que elas fossem. Em 1948, Olívia Calabria, Irma

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Gouveia e outras mulheres, inclusive a vereadora comunista de Araguari Hilda Ferreira, fundaram a Organização Feminina de Uberlândia, que tinha por objetivos a luta por creches, berçários e escolas, bem como pela paz. Buscava justiça e igualdade social, mas não era uma organização com o escopo comunista.

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Isso era o bastante para os governantes enxergarem a cidade sob a ameaça do comunismo e com o apelido que lhe foi dado: a “pequena Moscou”, o que fazia de Olívia e de outros intelectuais da época alvos de perseguição, com o devido enquadramento da “Polícia Política” do Departamento da Ordem Política e Social (Dops) da presidência da República. Em julho de 1951, aconteceu o I Congresso Feminino Contra a Carestia e Pela Paz, cuja realização estava proibida pela polícia. Várias lideranças foram presas, o que desencadeou um ato de protesto no dia seguinte, dissolvido a balas pela polícia e resultando em mais prisões, entre elas Olívia Calábria e a amiga militante, ex-vereadora de Campo Florido Lucília Rosa. O seu irmão, Fábio Calábria, sendo amigo do delegado, conseguiu a sua soltura. Sabendo que a amiga não seria libertada, ela se recusou a sair da prisão; o ato acabou desencadeando a libertação de ambas. No mesmo ano, Olívia foi novamente presa em uma viagem para Montes Claros. Depois de sete dias, foi transferida para Belo


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Horizonte, onde permaneceu detida por um mês. Apesar das duas prisões, Olívia afirmava jamais ter sofrido maus-tratos ou submetida a torturas. Em Uberlândia, mesmo por autoridades avessas às suas orientações políticas, sentia-se respeitada, talvez pelo seu trabalho ser visto também sob a ótica humanitária da solidariedade. Na militância partidária ou no magistério, Olívia era quase uma autodidata. Dedicava-se com afinco aos estudos políticos. Chegou a residir dois anos na Rússia, a partir de 1955, para um curso sobre Filosofia Marxista e Economia Política. Quando ela estava no chamado “partidão”, foi convocada para uma reunião do comitê central do partido. Lá foi exposta a necessidade de ter uma moça para casar com Luís Carlos Prestes, “missão” para a qual ela poderia ser a pessoa ideal. Mesmo tendo convivido e nutrido por ele admiração e respeito, com a rebeldia que lhe era inerente, ela declinou do convite, afirmando que não estava na militância para se casar e sim para trabalhar pelo povo. Não se casou, nem naquele momento, nem nunca. Dedicou sua vida à política e ao magistério. Tudo o que Olívia pregava era paz e justiça social. Como pretendeu resumir em suas próprias palavras: “Combater a guerra que nos causa tantos sofrimentos e garantir a PAZ para sempre; combater a agressão e o terrorismo; criar um sistema

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social onde não haja desemprego nem carestia, em que haja salários dignos e não exista exploração do homem pelo homem; combater o egoísmo, corrupção e falta de respeito ao ser humano; maior entendimento entre as pessoas. Estes são alguns pontos importantes para DESFAZER NÓS E AMARRAS, abrindo campo para construir ELOS favoráveis à humanidade para ser feliz, onde os direitos humanos possam prevalecer.” Olívia Calábria faleceu em 26 de setembro de 2004, com 90 anos de idade. Hoje, a professora dá nome a uma escola pública da cidade, no bairro Nova Uberlândia. 72

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Peppe

Entre a sala de aula e o cinema Professor Peppe viveu na infância os primórdios do cinema em Uberlândia

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uberlandense José Peppe Júnior, mais conhecido como professor Peppe, é um daqueles cidadãos que não somente presenciaram a mudança da velha São Pedro de Uberabinha para a progressista Uberlândia, como também tornou-se parte histórica das conquistas para que esse progresso se instalasse. Ele nasceu por aqui, na virada da primeira década do século passado, em 1920. Foi aluno do Ginásio Mineiro, hoje conhecido como Escola Estadual de Uberlândia e apelidado de Museu.

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Eternas lições

Dos seus tempos de Colégio Museu, o professor Peppe destacou nomes expressivos da história local, seus contemporâneos e colegas, como Rondon Pacheco, Ubaldo Naves, Waldemar Cupertino Bernardes, Amadeu Cury; segundo ele: “uma geração muito boa, uma plêiade de estudantes que levava as coisas a sério”.

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Neste tempo, em 1936, houve uma reforma de ensino, na qual, além dos cinco anos regulares para a conclusão do antigo ginasial, foram introduzidos mais dois anos preparatórios, dirigidos à carreira pretendida pelo aluno. Isso não era oferecido na cidade e Peppe teve de se transferir para Juiz de Fora, onde existia o curso. Fez lá o seu primeiro ano e o segundo em São Paulo, sendo esse o seu curso preparatório para Engenharia. Em São Paulo, ele iniciou o seu curso superior de Engenharia, mas, em decorrência de percalços familiares, não o concluiu por lá, retornando para a região. Concluiu seu curso na Escola de Engenharia do Triângulo Mineiro, ligada à Universidade de Uberaba, onde também trabalhou e de cuja fundação participou, colaborando ao lado do reitor Mário Palmério, também lecionando no local. Depois disso, retornou para a sua terra natal e assumiu a direção de uma escola que também ajudou a fundar, a Escola da Engenharia da Universidade Federal de Uberlândia. Isso, segundo o relato do professor Peppe, em março de 1971.


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Peppe explicou que a Escola de Engenharia da UFU foi criada a partir de um dispositivo legal alavancado pelo então deputado Rondon Pacheco como emenda a outro projeto existente, por volta de 1964, ressaltando que a Engenharia da UFU foi a primeira a já ser criada de modo federalizado, o que, segundo ele, não diminuía as dificuldades. Contou, por exemplo, que não havia recursos para a contratação de professores. Segundo ele, o desejo de ver a escola funcionar era tão grande que todo o corpo docente, durante um período de 18 meses, trabalhou sem saber ser iria ser pago por isso. Ele mencionou que havia a colaboração da Escola de Engenharia de Uberaba, que cedia parte dos professores. Peppe entre eles. Destes tempos embrionários do curso de Engenharia na UFU, Peppe relatou fatos curiosos. Ele contou que o terreno onde a escola foi montada e se localiza até hoje pertencia aos padres, liderados pelo padre Mário Florestan. Ali se instalaram, mas o padre Mário foi atropelado por um trem e morto. As obras, por falta de incentivos e liderança, ficaram paralisadas. Paralelamente, os primeiros passos para a implantação do curso de Engenharia já estavam sendo dados e os professores lecionavam em vários pontos da cidade. Daí, o industrial Genésio de Melo Pereira, entusiasta da educação e defensor do ensino público através da Carfepe e de uma ação entre amigos, conseguiu comprar o prédio e doá-lo para a Fundação Escola de Engenharia de Uberlândia. Feito isso, foram alavancadas outras

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doações para a configuração do campus Santa Mónica, durante muitos anos conhecido apenas como Engenharia.

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Mas, não somente dos cálculos e das fórmulas da Engenharia se alimentava o conhecimento do professor Peppe. Ele também era um entusiasta das artes e do entretenimento. Herdou isso da família. O pai era o dono do Cine-Theatro Avenida, que revolucionou os hábitos de cultura e entretenimento da sociedade uberlandense da época. Ele lembrou que, na época de inauguração do Avenida, os filmes ainda eram mudos, no fim da década de 1920. A elegante sala foi inaugurada com a película Ben Hur, sem falas e sincronização. Peppe contou que o seu pai tinha uma orquestra – ressaltando que não era bem uma orquestra, mas um conjunto, composto por piano, violino, flauta, saxofone e clarineta -, que tocava na sala de espera antes de começar a sessão. Segundo ele, foi assim durante um longo período, com sessões sempre muito lotadas e muito bem frequentadas. O cinema também editava um programa, um impresso no qual se falava sobre as atrações e a programação, tornando-se com o tempo uma publicação necessária para a cidade, que não contava com jornais diários. A publicação, mais frequente que os jornais do período, passou a conter também anúncios de casas comerciais e até algumas notícias factuais importantes para a cidade e entretenimentos literários e de comportamento,


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tornando-se uma atração à parte. Com a perspectiva de melhorá-la, o pai do professor Peppe chegou a adquirir uma tipografia apenas para imprimir o jornal-programa de cinema. Como Peppe recordou em entrevista, o Cine-Theatro Avenida também era palco de shows e apresentações artísticas. Ele mencionou a presença de companhias de relevante importância nacional, em algumas ocasiões até em nível internacional, que antes chegavam apenas até Ribeirão Preto e passaram a “esticar” a turnê com a abertura do Cine Theatro Avenida, responsabilidade de uma “curadoria” que o pai assumiu para si e sempre com o maior cuidado. Além de Peppe Jr, os irmãos Carlos e Helena, também se dedicaram à educação. A formação do professor era em Engenharia, Odontologia e Matemática. Também começou o curso de Direito, mas acabou se dedicando, como ele mesmo relatou, às “lides do magistério”. E afirmou jamais ter se arrependido disso. Ele parecia ter a confiança e o carinho de seus alunos, que carinhosamente o chamavam de Peppinho. Uma das frases célebres do professor, sempre repetida aos mais próximos, era que “a gratidão é irmã gêmea do amor”. Isso, certamente, foi guardado por vários de seus alunos. O professor José Peppe Júnior faleceu em 20 de fevereiro de 2009.

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Saint Clair

O inspetor de corações

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Professor Saint Clair, de grande ética e discrição, realizou sem alardear

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lgumas pessoas são tão modestas que acabam dificultando que suas relevantes histórias se perpetuem. É o caso do professor Saint Clair Netto, mais um realizador do que um teórico e por isso um tanto avesso à visibilidade. São raras as entrevistas e os destaques de promoção pessoal em sua trajetória. Mas plantou sementes na educação local, das quais até hoje boa parte da população usufrui. Saint Clair nasceu no ano de 1934, em Abaeté, interior de Minas. Sobrinho e irmão de professores, não lhe faltaram


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referências para a prática do ensino. Foi seminarista, na cidade de Santos Dumont, dos 11 aos 18 anos. Depois disso, transferiuse para Belo Horizonte, onde cursou Letras, com formação em Português, Latim e Grego, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1954. Décadas depois, já casado e vivendo em Uberlândia, ele fez o curso de Direito. Depois de graduado pela UFMG, o professor foi convidado pela Secretaria Estadual de Educação para lecionar a disciplina de Português no Colégio Estadual de Uberlândia. Ele disse lembrar claramente de quando chegou à escola e do gráfico existente na parede, apontando os dados de crescimento do lugar conhecido também como Colégio Museu. Segundo ele, de 1938 a 1952, o Museu tinha cerca de 1.000 alunos, número quase dobrado até 1966, com aproximadamente 1.900 alunos. Ele contou que o professor Osvaldo Vieira Gonçalves, o Vadico, antes, como diretor, morava na escola. Ao mudar-se foi deixando coisas dele para serem utilizadas. O professor Saint Clair contou que o nível do Colégio Estadual era de primeiríssima qualidade, destacando-se entre outros da cidade, considerados bons, como o Liceu de Uberlândia e o Colégio Nossa Senhora, o Colégio das Irmãs. Saint Clair mencionou em entrevista, que lá era o melhor salário pago aos professores na cidade. O Museu tornara-se referência nacional em Educação. As vagas

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ali eram disputadíssimas, o espaço físico da escola já não era compatível com o número crescente de matrículas e Saint Clair foi o idealizador de uma expansão inédita para a época, para atender à demanda das quatro séries do então chamado curso ginasial. Conseguiu as autorizações e os apoios necessários e assim foi feito. No começo, contou com o apoio da esposa, Neusa Barbosa, e salas de sua residência serviram para reuniões preparatórias e secretaria da escola. Começava ali o primeiro anexo do Colégio Estadual de Uberlândia, um estabelecimento de ensino antes municipal, que funcionou na rua Duque de Caxias, em prédio vizinho à sede central dos Correios. 80

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O professor Saint Clair vivia dizendo aos alunos do Museu que, em breve, eles não teriam mais que se preocuparem em sair da cidade para cursar uma Faculdade, pois logo Uberlândia teria o ensino superior. Logo depois surgiriam as faculdades de Filosofia e de Direito. Ele próprio fez parte da comissão que idealizou a criação da Faculdade de Filosofia, na qual também lecionaria. Essas iniciativas foram as primeiras bases para o surgimento, anos depois, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Boa parte de sua vida como professor, Saint Clair passou no Museu. Após a aposentadoria do professor Vadico, ele assumiu a direção da escola. Depois, foi nomeado inspetor de ensino da região do Triângulo Mineiro. Atuou também na Secretaria Municipal de Educação, junto ao secretário Afrânio Azevedo de


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Freitas. Como inspetor escolar, muitas vezes, pautava-se também pelos acordes do coração. Permitiu, por exemplo, que a pioneira educadora Maria Conceição Barbosa, a dona Lia, continuasse designada diretora da Escola Estadual Professor José Ignácio de Sousa, mesmo em casa acometida por um câncer terminal e sua filha sendo a intermediária na escola. Por compaixão, ele permitiu que ela, da cama, continuasse dirigindo a escola até os seus últimos dias. Da sala de aula, Saint Clair ganhou a sua maior conquista. O romance dele e da esposa Neusa Barbosa nasceu na sala de aula. Ela era aluna do segundo grau no Colégio Estadual de Uberlândia quando o conheceu. Casaram-se e tiveram três filhos: Maria da Graça, Maria Cristina e Saint Clair Filho. Neusa estava terminando o curso colegial e, no início, eram apenas trocas de gentilezas e algumas poucas frases sobre a disciplina de Português, que Saint Clair ministrava. Conversas sempre temperadas com sorrisos e simpatia. Ela ficou um período de três anos fora da cidade, para realizar o curso de Artes Decorativas. Quando retornou, estava apta a lecionar Desenho, mas apenas nas escolas particulares. Foi trabalhar no Liceu, Brasil Central e Colégio das Irmãs. O seu retorno acabou engatilhando também um namoro com o ex-professor. Em 1957, em um prazo de oito meses, aconteceu o noivado e o casamento. E, com o matrimônio, para ela, também veio o

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seu aprimoramento profissional, que ela atribuiu ao incentivo do marido. O professor a levou para Belo Horizonte, já com duas filhas, de 1 e 2 anos de idade, para que ela fizesse o curso que lhe daria o direito de lecionar também nas escolas estaduais. Hospedaram na casa da mãe de Saint Clair e contrataram uma babá para as crianças, de modo que Neusa pudesse concluir o curso. Quando o casal retornou a Uberlândia, ela passou a ministrar a disciplina de Desenho na Escola Estadual. 82

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Mas, Saint Clair queria que a esposa fosse ainda mais ousada em suas metas profissionais. Como ela era envolvida com esportes desde a primeira infância e quando adulta foi atleta, como nadadora e jogadora de vôlei, sempre no posto de titular, no Uberlândia Tênis Clube (UTC), ele a estimulou a fazer a Faculdade de Educação Física, que acabara de ser lançada em Uberlândia. E assim, ela foi da primeira turma do curso. Mais tarde, ele a orientou a fazer uma especialização na área e ela acabou lecionando na mesma faculdade. Sua trajetória, portanto, ela agradece à generosidade e colaboração do marido. Segundo Neusa Barbosa, Saint Clair era um homem brilhante, de muita ética e honestidade. Ela contou que ele não gostava muito de aparecer, principalmente em se tratando de entrevistas. E disse que ele foi um excelente marido e um modelo de pai,


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que se dedicava com rigor e leveza à educação dos filhos, colaborando com ela na criação. Ela o responsabiliza por sua formação superior, humana e artística e o acompanhou, olhando as crianças, em trabalhos na cidade de Ouro Preto e, bem mais tarde, em Querétaro de Arteaga, no México. O empreendedorismo de Saint Clair foi além das salas de aula. Ele tornou-se também um empresário de sucesso. Em seus últimos dez anos de vida, dedicou-se ao ramo imobiliário e foi responsável pela implantação dos bairros Chácaras Panorama e Jardim Célia, este último já surgiu como um dos mais completos da periferia de Uberlândia, com escolas de primeiro e segundo graus, posto de saúde, escola municipal de educação integral, casas com aquecimento solar e ruas asfaltadas. Saint Clair faleceu em outubro de 2014, aos 80 anos. Hoje, o professor dá nome a uma escola pública de Uberlândia, no bairro Saraiva.

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Stella Saraiva

Uma voz que não se calou Senso de justiça fez da professora Stella símbolo de resistência e luta feminina 84

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lguns educadores de Uberlândia marcaram a história por extrapolarem a sala de aula em busca de justiça e contra as desigualdades sociais. Uma luta às vezes inglória, pois, em muitas ocasiões, isso desencadeava a perseguição política a estes professores, em determinados períodos da história. Foi o caso da professora Stella Saraiva Peano, nascida na vizinha cidade de Araguari em 1916. O senso de justiça de Stella Saraiva foi precoce. Ainda muito jovem, era aluna de um internato e uma amiga lhe confessou que seria expulsa da escola por estar grávida. E que o pai da criança era o padre do colégio.


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Indignada, Stella levou o fato ao conhecimento de todos, no pátio da escola. E foi expulsa com a colega. Começava ali a batalha que ela travaria por toda a vida. Transferiu-se para São Paulo, para dar continuidade aos estudos e lá começou a participar da luta contra a ditadura de Getúlio Vargas. Foi perseguida, presa e maltratada. Nessas circunstâncias, grávida, o seu filho Rodolfo teve de ser adotado pelo médico e pela enfermeira, Guilherme e Aída. Todos conviveram bem após o retorno de Stella do exílio na Europa e na Argentina. Stella foi uma das incentivadoras da primeira turma “experimental” do então Colégio Estadual de Uberlândia, em 1959, quando várias escolas brasileiras serviram de piloto para uma metodologia melhor para o então ensino ginasial. Essa turma experimental foi resultado de uma reforma educacional levada a efeito pelo governo federal. Em Uberlândia, foram 30 alunos selecionados para integrar a turma. Ela deu aulas de Inglês e Francês para crianças entre 10 e 13 anos. Nas suas aulas, não se permitia falar Português. Em 1964, Stella seria novamente presa. Ela foi detida no Colégio Estadual e conduzida ao quartel de Uberlândia. Como ela tinha câncer nesse período, a família conseguiu evitar que ela fosse transferida para o Doi-Codi e submetida a novas torturas,

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Eternas lições retornando, então, para a família. Mas, era um recomeço da perseguição política. Ela perdeu o cargo público e, para não sofrer novas torturas, foi obrigada a sair do país.

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A família tinha uma relação bastante respeitosa com Stella. Um misto de admiração e desejo de aprender com ela. Quando ela estava no exílio, na Argentina, uma vizinha da mãe ouvia um programa de rádio, transmitido da Argentina, em que a locutora sempre dizia poemas com o trecho “a rua da minha casa” ou “o quintal da minha casa”, e, a partir daí, por metáforas, descrevia as situações que estavam sendo vividas no exílio. Pelo tom da voz e pela descrição do jardim da casa materna, os familiares entenderam que era Stella e, dessa forma, obtinham informações sobre ela no país vizinho, o que trouxe calma à família. No retorno para Uberlândia, após o exílio, ela dedicou-se ainda mais ao ensino, abriu escola e focou sua luta política na defesa dos direitos das mulheres, trazendo inclusive, uma contribuição com técnicas de parto sem dor, assunto sobre o qual estudara no exterior. A professora Stella foi à frente de seu tempo em vários aspectos. Naqueles anos, por exemplo, ela já discorria sobre Ecologia e ministrava aulas no campo, realizando piquenique e estimulando os alunos a andar com pé no chão. Levava os alunos do antigo ensino Clássico, em viagens ao Rio de Janeiro, para assistir às


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peças teatrais e conhecer o Rio histórico. As sobrinhas disseram terem aprendido muito com a tia rígida e amorosa sobre consciência e preservação ambiental. E também sobre respeito e generosidade. Relataram que, na casa dela, em uma época quando havia distanciamento entre os empregados domésticos e seus empregadores Stella fazia questão que sua funcionária se sentasse à mesa, com a família, para as refeições. O conceito de igualdade, fraternidade e generosidade acompanhou Stella por toda a sua vida, como relatou a amiga Mírian Queiroz. “Ela era uma mulher forte, não se deixava abater. A gente viu isso na doença dela. Ela se manteve forte até os últimos momentos”, disse em entrevista. Entender que toda a sua história aconteceu basicamente do início até meados do século passado, surpreende ainda mais pela coragem e ousadia de uma mulher, no contexto de uma sociedade ainda muito patriarcal e conservadora. Dos tempos de estudante à experiência do magistério, Stella gritou a favor dos oprimidos. E morreu dizendo: “eu perdi um seio, eu perdi um dedo, eu perdi um olho e eu perdi o fígado, mas que não me tirem a minha voz”. Stella Saraiva Peano faleceu em Uberlândia, em 1974, aos 58 anos de idade. Hoje, ela dá nome a uma escola pública municipal, no bairro Guarani, em Uberlândia.

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Tasso

Alegria e literatura no leito de morte

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Ex-padre, de contagiante energia, Tasso lançou livro pouco antes do falecimento

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á pessoas que se despedem da vida em alto estilo, quase de modo festivo. Não por encontrarem alegria na morte, mas sim por terem tido plenitude na vida. Assim foi a despedida do professor Tasso de Abreu, aos 87 anos, em setembro de 2016. A família tinha receio de que ele partisse sem ver pronto o seu segundo e último livro, “O despertar da consciência cósmica”. O primeiro, “Gramática da Língua Portuguesa”, foi lançado em 2000. Felizmente, deu tempo. No Dia dos Pais, a filha, Lunamaris Salum de Abreu, levou a obra para ele na UTI cardiológica. Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas compraram o livro e levaram para ele autografar. Foi quase uma festa!


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Tasso Melo Gonçalves de Abreu, também autor de crônicas e contos, nasceu em São João del Rei, em 1929. Segundo de três irmãos, tornou-se órfão de pai ainda criança. A mãe o colocou no seminário aos 11 anos, onde ele estudou Teologia, Filosofia, Pedagogia, tudo direcionado a ser padre e professor. Chegou a ser ordenado padre e, logo depois, recebeu um convite para dar aulas em Uberlândia, no Colégio Brasil Central, em que por um semestre lecionou Português e Latim. Foi, nesse início de magistério, que ele conheceu sua futura esposa, Martha Salum, cursando o seu primeiro ano do chamado curso Normal. Ele tinha vindo para a cidade com a mãe, Luzia, e seu irmão mais novo, Alfredo. O primogênito da família, Hélio, já havia se casado e estabelecido residência no Rio de Janeiro. Conhecer e apaixonar-se pela linda normalista o fez, pouco tempo depois, enviar um comunicado oficial ao seminário, abrindo mão da carreira religiosa. Em 1952, ele estaria trocando alianças com Martha, pouco menos de dois anos depois de tê-la conhecido. Mesmo sendo um ex-sacerdote católico, a cerimônia religiosa para celebrar o matrimônio foi na Igreja Presbiteriana, religião da família de sua esposa. Ele tinha apenas 23 anos e a esposa 17, razão pela qual esperaram alguns anos para ter os filhos, Lunamaris e Tássio de Abreu Júnior.

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À época de sua carreira ainda iniciando, sua competência e conhecimento chamou a atenção de Milton Porto, sócio-diretor do Colégio Liceu de Uberlândia, que imediatamente o convidou para lecionar na escola, considerada a melhor de Uberlândia. Ele ali permaneceria até o fechamento da escola, tornandose também amigo íntimo do casal Milton e Faustina Porto e participando ativamente da organização e coordenação do Liceu por aproximadamente 30 anos.

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No Liceu, Tasso começou lecionando Português, Latim, Francês e Matemática, em dois turnos. Algum tempo depois, a Matemática ficou com o professor Horlandi Violatti, Latim saiu do currículo e ele ficou só com Português. Paralelamente, passou a dar aulas também no Colégio Anchieta, do professor Euler Bernardes, também um ex-padre. Quando o Liceu encerrou suas atividades, Abreu retornou ao colégio onde começara a sua trajetória acadêmica, o Brasil Central, que pertencia aos seus amigos Jairo Fonseca e Antônio Macedo. O colégio já tinha uma faculdade, a Abracec – que depois ser tornaria FIT, Unit e, por fim, a atual Unitri. Lá, ele deu aulas de Português, Didática e Literatura. Também atuou em cursinhos preparatórios para o vestibular. A filha Lunamaris lembrou que o pai tinha um rigor técnico em sua pedagogia, sendo muito exigente com o saber e rígido com a


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disciplina. Ela disse que impressionava o controle que ele tinha sobre a sala de aula, onde imperava o silencio absoluto, mesmo em se tratando de turmas com a energia juvenil dos cursinhos pré-vestibulares. Tasso ganhou fama por sua observação sobre as notas, dizendo que 10 era só para Deus. 9 era para o autor do livro, 8 era para o professor e 7 o máximo que um aluno merecia. Segundo ela, essa teoria, no entanto, foi abandonada quando foi aluna dele, porque ela quase não errava. Como relatou Lunamaris, esse alto padrão de exigência não existia em casa, ao menos não de maneira tão explícita. Ela considera que eles foram contagiados pelo exemplo e incorporando naturalmente o bem falar, desde a mais tenra infância. O bom aprendizado da língua também se dava pelas brincadeiras. Era comum o pai brincar com o casal de filhos ensinando-os coletivo, sinônimos e antônimos. E funcionou tão bem que a própria filha o ajudava a corrigir provas ainda com 14 anos. Segundo ela, Tasso era uma alegria só. Estava sempre muito bem-humorado e, quando os filhos eram crianças, brincava com eles como se também fosse uma criança, hábito que se repetiu com os netos, rolando no chão, fazendo arte; enfim, nada em comum com a imagem que construiu de um professor rigoroso e austero. “A principal característica do meu pai, além da grande inteligência, era a vivacidade. Ele era intenso e transmitia força

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e alegria por onde andava.”, contou Lunamaris em entrevista. Essa alegria e vivacidade toda, segundo ela, não foi pela ausência de momentos dramáticos em sua vida. Nela existiram tristezas e tensões, como a morte precoce de um filho, ainda bebê, e algumas dificuldades financeiras que existiram ao longo da vida, já que, desde sempre a profissão de professor nunca foi remunerada à altura do merecimento e da dedicação profissional. Ainda assim, Tasso jamais perdeu o entusiasmo, a alegria e a força que transmitiu à família e aos amigos. 92

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Outra forte característica de Tasso de Abreu, como narrou a filha, era a vontade genuína de ajudar. Quem quer que fosse. Ele sempre se preocupava com os outros e pensava em ajudar as pessoas e isso fazia parte de sua natureza. ’Um parente, um vizinho, o porteiro, um pedinte... sem distinção, se preocupava com eles de maneira natural”, lembrou Lunamaris, contando também que, após a sua morte, conheceu pessoas que o pai ajudou de forma anônima. Ninguém sabia disso. Lúcido até o último minuto, Tasso de Abreu morreu em decorrência de problemas cardíacos, em 20 de setembro de 2016, aos 87 anos.


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Vadico

O lendário professor Vadico Um dos principais diretores do Museu, Oswaldo Vieira Gonçalves foi pioneiro no ensino local

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á pessoas que perpetuam o nome da história da cidade, mesmo que de uma forma quase anônima. Farmacêutico por formação, filho de alguém com o mesmo ofício, Oswaldo Vieira Gonçaves, o professor Vadico, tornou-se uma figura lendária na educação em Uberlândia. Foi um dos grandes guerreiros para fazer da Escola Estadual de Uberlândia, o Colégio Museu, uma das referências em ensino de toda a região. Na primeira metade do século passado, era praxe que o diretor de colégio do estado fosse morar na escola. Quando o professor Vadico foi escalado à direção do Colégio Estadual de Uberlândia, passou então a residir na escola com sua família. E lá permaneceu por 23 anos. Sua família em peso também

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traçou histórias de devoção ao ensino na cidade. Oswaldo era casado com Demetildes Miranda Vieira, que detestava o seu nome e era por todos conhecida como dona Tilinha. Ela lecionou na Escola Bueno Brandão e também manteve uma pequena escola de curso primário. As filhas Ione e Sônia seguiram os passos dos pais e tornaram-se respeitáveis professoras na cidade, ambas lecionando também no Colégio Museu.

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Professor Vadico estabelecia para os filhos uma rotina de usufruto da infância intercalado com o tempo de busca do aprendizado. Estimulava neles o hábito da leitura e, de acordo com a evolução cognitiva e a idade de cada um, lhes apresentava obras literárias, definia um horário específico para as leituras e, depois, debatia com eles os conteúdos, não os privando de lazer e das brincadeiras de crianças. Foi um homem de grande erudição. Adepto de muitas leituras, incentivava nos filhos o mesmo hábito. Além de ler muito, também escrevia poesias e chegou a publicar um livro sobre a influência do árabe na língua portuguesa. Quem o conheceu, afirma também que era um homem que respeitava muito o direito do próximo e ajudava as pessoas. Sua filha Ione lembrou que o seu hobby predileto era fotografar.


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E, em se tratando de uma época quando as fotos tinham de ser “reveladas”, também gostava de revelar os seus próprios filmes. Segundo ela, o seu companheiro nessa aventura com as imagens era Mário Terra. Ambos saíam pela cidade para fotografar cenas do cotidiano. O educador fez de tudo para que a educação em Uberlândia evoluísse. Nessa perspectiva foi um dos principais diretores do Museu. Embora a sua militância de vida inteira tenha sido em prol da educação, o seu amor pela cidade o fez pensá-la em todos os aspectos para justificar a sua vocação progressista. Ou seja, além de um intelectual atento às questões alusivas ao ensino, prestava muita atenção no progresso da cidade, tornando-se um importante depoente de como ele se deu. Para Vadico, um dos fatores mais importantes para essa característica é a sua localização geográfica. Para ele, uma cidade num altiplano de 800 a 1000m de altitude já é favorável para o cenário de progresso. Isso em uma região, na sua época ainda com poucas estradas para escoar os produtos de primeira necessidade, mas propícia à construção de rodovias interligando todo o país. Outro fator que ele considerava importante foi a natureza empreendedora do uberlandense. Ele mencionou que não havia espera. Apesar das estradas precárias da época, se levavam e

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buscavam mercadorias em outras localidades. Para ele, embora a estrada de ferro Mogiana tenha sido importante mola propulsora ao desenvolvimento da região, foram os desbravadores da logística que promoveram de fato o progresso.

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Vadico mencionou a construção da hidrelétrica Carneiro. Relatou que Carneiro foi a Uberaba, assistir à inauguração de uma usina e trouxe a ideia para cá. Comprou uma cachoeira no Rio Uberabinha e também construiu uma usina, segundo Vadico, naquela época de 1.500 cavalos, o que correspondia a 1.000 quilowats. Segundo ele, Uberlândia gastava de 60 a 80 quilowats. Carneiro chamou especialista de outras cidades que o desaconselharam da ideia. Mas, ele insistiu nela, como relatou professor Vadico. E assim surgiu a primeira usina hidrelétrica de Uberlândia, com dois geradores, um de 500 e outro de 1.000 quilowats, o que abasteceu a cidade de energia até os anos de 1930. Depois veio a Companhia Prada que a comprou e ampliou esse abastecimento. A ida do professor Vadico para a direção do Museu foi algo que provocou celeuma na época. Alguns professores mais antigos almejavam o cargo. A vaga, poucos anos antes, era de Mário Porto, que se desligou do Colégio Liceu para assumi-la. Por questões políticas, Mário acabou saindo de Uberlândia e foi substituído por Luiz Rocha, que permaneceu pouco tempo no cargo. Seu sucessor foi Aniceto Maccheroni, que logo também


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deu lugar a João Gonzaga Siqueira. Após pouco mais de três anos na diretoria, em 1940, surgiu para Gonzaga a oportunidade de mudar-se para Belo Horizonte. Confidenciou a decisão ao professor Oswaldo Vieira Gonçalves, que trabalhava na capital como assistente técnico da Secretaria de Educação. Vadico imediatamente pleiteou o cargo. O secretário de Educação orientou Siqueira a lhe passar o cargo provisoriamente. Apesar da resistência de outros, o professor Vadico assumiu com muita personalidade a direção provisória. Quatro meses depois, saiu sua nomeação definitiva e ele só deixou o “Museu” 26 anos mais tarde, quando se aposentou. Na verdade, isso foi um baque para o professor Vadico, como relatou uma de suas filhas. Não foi algo planejado. No alto de seus 87 anos, recebeu o comunicado de sua aposentadoria compulsória. Mas, pelo menos, ela veio com muitos méritos, em fevereiro de 1967. Oswaldo Vieira Gonçalves, o professor Vadico, faleceu em 05 de maio de 1997 próximo de completar 93 anos de idade. Hoje, uma escola pública leva seu nome no bairro Custódio Pereira.

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egundo o dicionário, mestre é uma pessoa dotada de excepcional saber, competência, talento em qualquer ciência ou arte. Os 20 personagens que fazem parte desta segunda edição da série “Registros para sempre” atendem plenamente a esses requisitos. E mais, além do conhecimento que transmitiram, foram referências de caráter e comportamento. O legado que deixaram para Uberlândia, estas “eternas lições”, transmitem exemplos inspiradores para serem relembrados, preservados com todo carinho e respeito. Feliz da cidade que tem personagens como estes, cujas trajetórias, de forma bastante suscinta, estamos registrando e compartilhando. Para quem quiser aprender mais, muito mais em todos os sentidos, fica o convite para aprofundar na pesquisa sobre a trajetória desses mestres notáveis. Eles não estão mais entre nós, mas continuam vivos pelo legado que produziram. Tão inesquecíveis quanto as eternas lições que nos deixaram.



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“Uberlândia de Ontem e Sempre” é uma iniciativa dedicada a resgatar, registrar e divulgar a memória e a história de nossa cidade. Começou em maio de 2005 com um programa de TV, que atualmente é exibido aos domingos, às 8h30, pela TV Paranaíba, Rede Record. Este ano alcançou a marca de 700 programas produzidos mantendo esse propósito de valorizar a identidade e o jeito de ser de Uberlândia. Em agosto de 2011, foi lançada sua versão impressa, o Almanaque “Uberlândia de Ontem e Sempre”, que está na sua 18ª edição. Uma publicação que, além de lida, é colecionada por quem ama nossa cidade. A partir de 2016, acrescentou o “museu virtual de uberlândia”, plataforma digital que contém os acervos dos programas e outros preservados pela produtora Close Comunicação. Em 2018, passou também a produzir uma versão impressa focada na memória empresarial de Uberlândia. Tem desenvolvido projetos e estimulado instituições e empresas a criar e manter memoriais sobre suas próprias trajetórias.


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