CAPA
Registros para sempre
F i c h a té cnica
IDE ALI Z A ÇÃ O E CO O R D E N A ÇÃ O Celso Machado
E NT RE V I S T A S Acervo da Close Comunicação feito por Celso Machado, Lara Stoque, Carlos Guimarães Coelho e Núbia Motta
RE DA ÇÃ O E E D I ÇÃ O D E T E X T O S Carlos Guimarães Coelho
RE V IS Ã O Ilma de Moraes
DIAGR A M A ÇÃ O / M O N T A G E M N Idéias Comunicação
IMP RE S S Ã O Gráfica RB Digital
T IRAG E M 500 exemplares
Impresso em fevereiro de 2019
Prefácio
Celso Machado
Engenheiro de histórias
L
ivros impressos, mesmo com o extraordinário avanço das mídias digitais não perderam sua relevância. Pelo contrário, em muitos casos se tornam ainda mais relevantes porque são o registro da memória. Podem ser levados para todo lugar, lidos e apreciados onde até mesmo a internet não consegue chegar. Companheiros, amigos que relatam histórias e relembram personagens e passagens curiosos, interessantes, inspiradores. Isto foi o que nos motivou a publicar este modesto livro com 20 personagens dessa encantadora jornada de Uberlândia e sua memória. Projeto que está sendo possível de viabilizar pela aprovação do PMIC-Programa Municipal de Incentivo a Cultura da Prefeitura de Uberlândia, patrocínio da Ética Conservação e Hotéis Executive. O mais difícil foi selecionar, dentre tantas centenas de personagens, apenas aqueles 20 que seriam destaque nesta publicação. Decidimos por 4 critérios básicos. O primeiro foi abordar apenas pessoas já falecidas. Fizemos apenas uma exceção, porque a entrevista foi com uma dupla marcante do carnaval uberlandense, um dos quais está vivo. O segundo, que tivessem tido atuação
predominantemente ligadas às artes, mídia e história locais. O terceiro, que fossem personagens conhecidos e outros menos, mas todos de alguma forma ligados aos hábitos, costumes, folclore de uma cidade bem diferente da atual. E o quarto que os textos tivessem como fonte entrevistas documentadas pelos programas Terra da Gente, Close e Uberlândia de Ontem e Sempre. Isto explica algumas ausências como, por exemplo dos saudosos Dantas Ruas, Marçal Costa, Luiz Fernando Quirino dentre outros, que lamentavelmente não foram entrevistados ao longo da existência desses programas. Registramos agradecimento especial ao jornalista e produtor cultural Carlos Guimarães Coelho, que, com muita sensibilidade e talento, conseguiu produzir, em texto, um rico conteúdo a partir de valioso acervo videográfico. Pedimos desculpas antecipadamente à família dos entrevistados por eventuais equívocos nas informações. Ficamos na torcida e na expectativa de como esta nova publicação será acolhida. Tomara que, a exemplo de tudo que está ligado a iniciativa do “Uberlândia de Ontem e Sempre” possa ter continuidade. Porque personagens e histórias não vão faltar. Boa leitura a todos.
Obs.: As entrevistas de onde foi extraído o conteúdo deste livro podem ser acessadas por este QR code.
Índice
01 AGENOR SIMÃO
(Capitão Charqueada)
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03 AL FRE DINH O R ADIAL IST A
11 ARGENTINO DE SOUZA
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15 CH IC O DA T UBA
27 C ÔNE GO DURV AL GARC IA
C ATI TO
22 CLA R I M U N D O CA M PO S
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C L AYTON S I L VA
34 GANGA
I ONEI S I L VA
37 J U LI E T A CU PE R T I N O
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41 M ARIA INÊ S M E NDONÇ A
M E S T R E CA PE LA E M E S T R E LO T I N H O
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55 PROFE SSOR L UC INDO
71 SÉR GIO MART INE L L I
ROBERTO VIEIRA
76 V A LD I R M E LG A ÇO
50 NI NI NHA ROC HA
67 S ÉRG I O FI NZER
80 VOVÔ C HARQUEADA
Introdução
Q
uem dera todas as cidades brasileiras tivessem os seus “guardiões da memória” como os temos em Uberlândia. Celso Machado é um deles. Com garra e determinação, recolhe os “causos” de anônimos e famosos da cidade e os sistematiza em linhas de produção cultural, que vão dos formatos impressos como essa obra `a revista semestral Almanaque Uberlândia de Ontem e Sempre e a programas televisivos veiculados em emissoras de TV abertas e por assinatura, além do Museu Virtual de Uberlândia. Não tem preço o que faz este pesquisador nato, “pescador” da oralidade que merece que ser registrada e, acima de tudo, um apaixonado pelas histórias que nos antecederam.
Essa obra faz uma pequena compilação de 20 pessoas que viveram na cidade, a maioria do século passado. Foram depoimentos recolhidos de entrevistas dadas à Close, quase todas à versão televisiva do Uberlândia de Ontem e Sempre, assim como à homônima publicaçao impressa. Não foi difícil garimpar essas preciosidades. O acervo da Close Comunicação, graças aos cuidados de Celso em sua labuta por registrar cada história interessante de nossa cidade, acabou por constituir um riquíssimo acervo documental. Grande
parte dele disponibilizado no Museu Virtual de Uberlândia. Difícil mesmo foi selecionar apenas 20 histórias. A iniciativa merece uma série. São centenas de pessoas que enriqueceram a vida em nossa urbe. Alguns populares, outros quase desconhecidos, mas cada um, a seu modo, transformando a realidade e dando a sua contribuição para a história local. Fica aqui o registro dessas passagens. Todas as personagens já se foram. Nessas páginas estão vivas. São exemplos de determinação e coragem, de amor ao ofício e à cidade. E, por isso, mereciam ser eternizadas. Algumas talvez não fossem, se não existisse uma pessoa como Celso Machado, que tivesse um olhar sensível e o desejo de tirá-las do ostracismo e do anonimato, ressaltando a contribuição delas dada à história. Ele nos prova que cada história merece um olhar especial e, por meio dele, ser (re)contada à população uberlandense, revelando também que o passado e o presente nos constroem, nos moldam em atitudes e caráter até a diversidade cultural que merece ser conhecida e contemplada. E essas histórias acabam por arquitetar uma cidade mais humana e solidária para as próximas gerações. O futuro agradece! Carlos Guimarães Coelho Jornalista e produtor cultural
Agenor Simão
REGISTROS PARA SEMPRE
Capitão Charqueada
Personagem emblemático da imprensa uberlandense
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berlandino de origem baiana, o alfaiate, radialista e jornalista Agenor Simão de Santana, conhecido também como Capitão Charqueada, trabalhou em todas as emissoras de rádios AM de Uberlândia e ficou por anos na Rádio Cultura. Foi o primeiro redator da TV Triângulo (TV Integração), há 53 anos.
Adotou o apelido de Capitão Charqueada e usava termos e bordões como “tchaca, tchaca na butchaca”, “tapa no escutador de candonga e lorota”, “cochilou, o cachimbo cai”. Nos jornais impressos, trabalhou nos extintos A Notícia, Tribuna de Minas, Cidade e O Triângulo. Também foi redator do Jornal Correio de Uberlândia e colunista na Gazeta de Uberlândia, em que adotou o pseudônimo de Pataxó. Aposentou-se aos 65 anos.
Sua vinda para Uberlândia se deu por intermédio do radialista Aluísio Silva Araújo, um dos grandes nomes do humorismo nacional que o encontrou em visita à emissora e acabou convidando-o a permanecer. Outro radialista, Coronel Hipopóta, tinha um programa de auditório, no estilo Chacrinha, e um de seus hábitos era “apelidar” as pessoas que o cercavam, de modo que Agenor passou a ser chamado por ele e conhecido por todos, como Capitão Charqueada. Da mesma forma que outros se tornaram em Zé do Bode, Nhô Cumprido, Juca 38 e por aí afora. Capitão Charqueada também passou a ser o nome do programa policial que manteve na rádio Cultura nos anos de 1970. Agenor também foi colunista policial no extinto jornal Correio de Uberlândia, a partir de meados da década de 1960, no qual, entre idas e vindas, atuou também como chefe de reportagem. Nesse período, o jornal matutino circulava três vezes por semana, às terças, quintas e sábados. Além de repórter, escrevia uma coluna de contos que fazia muito sucesso e que tinha uma característica bastante pessoal: o final nunca era conclusivo, deixava isso por conta do leitor. Como repórter policial, não teve muitos problemas, a não ser quando escreveu sobre um delegado envolvido em política, o que acabou acarretando sua saída do jornal. Foi então que retornou à rádio, na qual permaneceu atuando até o fim da década de 1980.
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REGISTROS PARA SEMPRE
Na imprensa escrita atuou ao lado de grandes nomes da história local, como Licydio Paes e Marçal Costa. Afastado do Correio e de volta às rádios, Agenor trabalhou também em uma emissora de Araguari, na qual o jornalista Alaor Barbosa Júnior foi buscá-lo para que assumisse a crônica policial no jornal O Triângulo. Agenor Simão passou a ter duas páginas no jornal e de lá saiu somente após 10 anos de atuação, para se aposentar.
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Na cidade, o Capitão Charqueada tinha fortes vínculos com o bairro Luizote de Freitas, onde morou por cerca de três décadas, desde a sua formação. Lutou junto a Alceu Santos para que o bairro tivesse água encanada compatível com a demanda dos habitantes. Agenor também ajudou a salvar um morador que se afogou na lagoa do Luizote, levando-o para socorro no Hospital Santa Genoveva, dentro do carro de Alceu Santos, um Maverick com “colchonile” branco. Agenor Simão não somente viu o bairro Luizote crescer e prosperar, como acompanhou também o desenvolvimento da cidade. Tinha grande amor por Uberlândia, ao ponto de brincar, em tom de exagero, e dizer que a considerava uma das sete maravilhas do mundo, de povo exageradamente acolhedor. Agenor Simão faleceu, aos 83 anos, em 19 de setembro de 2015.
Alfredinho Radialista
Alfredinho
REGISTROS PARA SEMPRE
O “deputado do sertão”
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m nome que merece destaque na história do rádio e da música em Uberlândia é Alfredo Paniago Rodrigues, o Alfredinho Radialista, também conhecido como “deputado do sertão”, apelido dado pelo proprietário da emissora de rádio por conta da quantidade de cartas e pedidos de favores que recebia. Alfredinho permaneceu mais de quatro décadas no ar na Rádio Educadora. Embora ainda não atuasse como radialista à época de sua fundação, deixou o seu relato sobre o dia 16 de junho de 1953, quando a cantora Ângela Maria inaugurou oficialmente a emissora.
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“Lembro perfeitamente da inauguração oficial da Rádio Educadora de Uberlândia com a presença da Ângela Maria. O senhor Moacir Lopes de Carvalho, o diretor na ocasião, a contratou para que viesse fazer o show no auditório da rádio”, relatou Alfredinho em 2015. Antes de ser radialista, Alfredinho foi funcionário da Mogiana e motorista em carro de praça, como se chamava táxi antigamente. O radialista teve de deixar a profissão de motorista para dedicar-se apenas à rádio, uma vez que o funcionário, para ser registrado, deveria trabalhar pelo menos oito horas diárias. 04
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Antes de dedicar-se integralmente à emissora, Alfredinho também apresentava-se como cantor, formando uma dupla com Toinzinho. Chegou a compor e gravar quatro canções. Duas com o Creone e Barrerito: “Vida perdida” e “Quando recordar o passado”. “Essa, eu vou te falar, o disco furou na Rádio Educadora, várias vezes. E não só lá, foi sucesso em vários lugares”, contou Alfredinho, que também deixou as músicas “Menino da minha rua” e “A grande viagem”. Nesse período, a Rádio Educadora era sediada na avenida Afonso Pena, no centro da cidade, em cima da famosa Confeitaria na Hora, onde, anos depois, também funcionou o Banco Mercantil do Brasil. “Da avenida Afonso Pena, onde ficamos uns 13 anos, passamos
para a Bernardo Guimarães, 340. Ficamos por lá por sete ou oito anos. Eu apresentava o programa das 5h às 7h e das 16h às 19h, então eram cinco horas de programa por dia, duas de manhã e três à tarde. Durante a tarde, eu recebia uma média de 30 telefonemas por programa”, lembrou Alfredinho. Segundo o radialista, naquela época, eram pouquíssimas as pessoas que tinham telefone. A pessoa telefonava para pedir música e ele próprio ia à discoteca e pegava o disco. “Então, a gente fazia aquele programa com tanto carinho, amor e eu tinha muita liberdade de ir à discoteca, pegar o disco que queria e tocar o que eu quisesse, claro que dentro das normas da rádio. E fui tomando gosto e o pessoal achando bom e foi e a audiência só aumentando”, contou o radialista. A popularidade de Alfredinho foi crescendo tanto que ele chegou a receber 590 cartas. O diretor Moacir Lopes de Carvalho logo o apelidou de deputado. E o apelido pegou. Mas, a política não ficou somente na brincadeira. Alfredinho candidatou-se a vereador em 1964 e venceu o pleito. A vocação política muito provavelmente veio com sua verve de prestador de serviços como radialista. Uma sensível experiência vivida por ele foi quando uma senhora o procurou na rádio, já sediada na rua Bernardo Guimarães, no bairro Fundinho, em meados da década de 1980, pedindo-lhe ajuda para localizar a filha que não via há cerca de 15 anos, desde quando mudou de
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cidade. Ele anunciou o pedido várias vezes no programa. A filha não somente reapareceu, como trouxe o filho adolescente para que a avó o conhecesse.
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Estamos falando de uma época que as atuais gerações talvez nem consigam imaginar. Ondas curtas, ondas médias, ondas tropicais. Discos de vinis foram um luxo trazido pela modernidade. Antes, eles eram de carvão, os chamados 78 RPM, somente depois vieram os LP´s. Primeiro veio o 45 RPM, depois apareceu o 33. “Eram muitas dificuldades. Para gravar o disco era a coisa mais difícil. Eles sempre contavam as suas histórias no microfone, quando eu fazia a entrevista com eles. Contavam sobre a dificuldade que era chegar lá sem material”, lembrou Alfredinho, exemplificando com a história do LP de Creone e Barrerito, gravado em 1970, que tinha sua composição “Quando recordar o passado”. Alfredinho relatou que Barrerito foi falar com Mário Vieira, diretor de gravadora Chantecler. A resposta foi que não havia matéria-prima e já havia muitos artistas aguardando. Retornou sem nenhuma promessa e pediu ajuda a Alfredinho e a outro radialista, Zé do Bode, pois ambos eram amigos do diretor Mário Vieira. Foi em troca desse favor que Creone e Barrerito gravaram a música de Alfredinho. A dupla se transformou no famoso Trio Parada Dura. Nessa época, a rádio tinha grande influência sobre a população,
pois ainda não existia a televisão. O rádio era absoluto na sua comunicação. “Novela, por exemplo, era na rádio, antes da televisão. ‘O direito de nascer’ passou anos no rádio”, lembrou Alfredinho. Em 2015, Alfredinho estava no ar, das 5 às 6 da manhã, de segunda a sexta, e sábado das 5h às 7h. Para ele, o trabalho era como “um vício, uma cachaça”. “Além do tempo que eu trabalho em rádio, além do costume que eu tenho de microfone, o costume que eu tenho com o público, atender um telefone, atender um pedido, seja o pedido do jeito que for, documento perdido, pessoa desaparecida, um recado para a fazenda, qualquer um, eu atendo com aquela beleza, com aquela atenção toda especial, porque aquilo faz parte da minha vida”, contou Alfredinho. Alfredinho tinha detalhes marcantes em sua forma de comunicar. Abria e encerrava sua programação com dizeres do tipo: “..um abraço do Deputado Sertão Perdido, do lado direito, do lado esquerdo...”. Entre os orgulhos que tinha, estava o fato de ser persistente e conseguir tudo o que queria e o título que recebeu de “melhor comunicador de rádio em 1985”.
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Argentino de Souza
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Argentino
O garçon cantor
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rgentino de Souza, apesar do nome, foi bem brasileiro. É mineiro. Filho de Uberlândia, foi um profissional conhecidíssimo e amigo, com uma popularidade adquirida, sobretudo, em suas mais de duas décadas de atividades em um dos espaços mais emblemáticos da cidade, a Churrascaria do Becão. Também como cantor, era dono de uma voz forte e marcante e apresentava em diversas formações musicais. Do seu nome de nascimento, Argentino não sabia dar explicações. “Isso foi coisa do meu pai. Não sei por que ele me deu esse nome. Não tinha nenhum vínculo com a Argentina, nada que justificasse”. Explicou.
Dos tempos de Becão, Argentino mencionou a maior parte dos momentos com alegria e descontração. Relatou também algumas situações inusitadas, como o episódio do coelho, que deixou o proprietário, cujo apelido dava nome à Churrascaria, extremamente irritado. Ele contou que um dos pratos mais solicitados na casa era o Coelho Assado ao molho. Mas, por ali também existiam muitos gatos. Daí, os clientes brincavam com o fato, como se estivessem vendendo “gato por lebre”, o que, definitivamente, não era o caso. Mas, por azar, houve uma noite em que, por alguma razão, os gatos saíram do telhado salão adentro. Daí, por brincadeira, alguns clientes começaram a gritar: “Becão, os coelhos estão fugindo... Becão, salve os coelhos”. A casa estava cheia e o Becão ficou muito bravo com a situação. Argentino, ao ser questionado se o uberlandense é bom de gorjeta, confessou que não. “Muito difícil de os uberlandenses darem gorjetas. Quando dão, é aquela moedinha que vem como troco. Muita sorte quando são R$2,00 e, mais ainda, quando são R$5,00”, disse o ex-garçon. Mas, Argentino, além de garçon, também era cantor. Ele contou que foi para São Paulo e, lá, o primeiro programa no qual se apresentou foi o da Hebe Camargo, no qual ela apresentava novos artistas e novos cantores. “Fui convidado pelo Walter Clark a participar do programa e foi um dos primeiros programas onde cantei, um momento marcante para mim”, relatou.
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No fim de sua vida, integrava a Banda Municipal de Uberlândia, instituição que prezava muito. “É o aconchego da cidade de Uberlândia, pois ela é solicitada em quase todos os eventos. E agora tem a Banda Mirim, uma evolução”, falou Argentino. Argentino lembrava muito dos tempos das serenatas, de bater na janela e cantar ao vivo, algo que ficou no passado. “Quem faz serenata hoje é com som mecânico no carro. Não é a mesma coisa”, lamentou o músico.
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Argentino dizia que a melhor receita para ser feliz e ter jovialidade é “ter um bom coração, ter boas amizades, fazer boas amizades e estar sempre com atenção para todas as pessoas que te rodeiam.” Argentino de Souza faleceu em setembro de 2008.
Catito
Catito
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O radialista versátil, talentoso e amigo
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egundo a literatura antiga, Catito era pessoa alinhada e bem arrumada. Ou seja, era uma forma carinhosa de se referir a uma pessoa. O radialista Maurílio foi uma das pessoas que mereceram essa tratamento. Por seu carisma entre os colegas de profissão, ainda em início de carreira, na adolescência, o garoto pequeno e meio gordinho foi mais um que recebeu o apelido do colega e chefe Maximiliano Carneiro, o Coronel Hipopóta, da Rádio Educadora, onde começou a carreira de radialista que exerceu por mais de quatro décadas. Maurílio Catito entrou na Rádio Educadora aos 12 anos. Como de praxe, ficou em caráter experimental pelo período de três meses. Naquela época, menores de 14 anos não podiam trabalhar.
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Quando o diretor Moacir Lopes Carvalho soube de sua admissão, o dispensou. O garoto saiu em lágrimas da rádio, pois já tinha feito bons trabalhos e demonstrado sua competência e aptidão para a área. Em dois dias, lhe chamaram de volta. Catito contou que, uma ocasião, o próprio Moacir o chamou à sala, para lhe orientar sobre os rumos de sua carreira, uma vez que ele estava ganhando projeção na cidade e tornando-se bastante conhecido pela população. Apesar desse reconhecimento público, ao contrário de boa parte dos radialistas locais, ele não seguiu uma paralela carreira política. “ Cheguei a ser convidado várias vezes, mas eu nunca gostei desse meio político. Parece que eu já antevia o que poderia ocorrer. Fui convidado umas quatro vezes para me candidatar ao cargo de vereador, mas preferi ouvir minha voz interior, que dizia: ‘não entre nessa’. “, contou Maurílio. Era o início dos anos de 1960. Catito apegou-se ao Hipopóta, a quem considerava seu segundo pai e por ele nutria grande admiração. “Ele tinha muito talento. Era o Rei Momo, o Papai Noel, o apresentador sertanejo...E o programa dele era o mais difícil que tinha. Eu herdei esse programa”, contou Catito. Ele lembrou também de seus tempos como técnico de som. “Os programas eram realizados no auditório. No começo, eu ficava na técnica, apenas um vidro separando. Como técnico, cheguei a fazer sonoplastia para rádio novelas. A gente copiava muito o que acontecia na Rádio Nacional, do Rio de Janeiro”, relatou o radialista, ressaltando dois nomes importantes nessa era de ouro
da rádio uberlandense: Dantas Ruas e Magda Santos. Na Rádio Educadora, Catito também foi discotecário. Era esse o profissional que fazia toda a programação da rádio. Muitas vezes, essa programação era feita ao vivo, atendendo aos pedidos dos ouvintes. “Os discos eram em 78 rotações. Quebravam muito. A gente os organizava em ordem alfabética”, contou Catito. Ele lembrou que um dos momentos de maior sucesso na sua carreira foi quando levou ao ar o “Paradão do Sucesso”. “O programa entrava entre 18 e 19 horas. Naquela época, a cidade estava começando a receber os universitários. Eu fazia a pesquisa, produzia, redigia e apresentava”, orgulhou-se Maurílio, que, no programa, adotou o escalonamento dos sucessos de 10º ao 1º lugar e também introduziu o hábito de dizer as horas de modo diferenciado, como “sétimo minuto da hora 18”, em vez de 18h07. Catito lembrou de programas de auditório que eram de absoluto sucesso na cidade, naqueles tempos. Citou, entre eles, o “Sábado Milionário”, de José Arantes, assumido depois pelo Coronel Hipopóta. “Teve uma época em que os calouros eram gongados (sinal sonoro ou luminoso para interromper uma apresentação competitiva). Uma vez me deram essa função de ir lá gongar. O candidato ficou bravo e saiu correndo atrás de mim. E eu correndo dentro do estúdio. Foi muito engraçado. São fatos pitorescos que a gente lembra. E que aconteceram”, contou o radialista.
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Em suas lembranças, Maurílio Catito fez verdadeiras declarações de amor ao rádio. Ele dizia que não usou o rádio, mas sim o serviu. Contou que o seu trabalho em rádio durou 40 anos e 19 dias. Confessou também que após encerrar suas atividades, deixou de ouvir rádio. “Não é a mesma coisa de antigamente. Caiu muito o nível. Não me refiro ao material humano, às pessoas envolvidas. Devem ter ótimos profissionais, mas não existem mais o mesmo envolvimento e a mesma dedicação, inclusive de proprietários de rádios, como existiam antigamente”, lamentou Catito.
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Maurílio Catito não trabalhou apenas na Rádio Educadora. Ele relembrou seus tempos em outras rádios, como a Cultura, onde permaneceu por nove anos, exatamente quando os mesmos empresários donos da rádio estavam construindo a TV Triângulo, atual Integração. De lá, saiu para trabalhar em uma nova rádio em Uberlândia, a Rádio Visão, na qual iniciou em setembro de 1980. Ele lembrou que o prédio era novo e a rádio ficava no 12º andar. Os elevadores demoraram a ser instalados e, durante muito tempo, ele subia os 12 andares de escadas. Catito disse que o melhor legado que a rádio lhe deixou foi a quantidade de amigos. “Como eu consegui amigos através do rádio. São amizades que existem até hoje. A gente reencontra as pessoas, elas perguntam por que não faço mais rádio”, contou o radialista, lembrando, nostálgico, dos tempos de radialista. Catito faleceu em 24 de dezembro de 2016.
Chico da Tuba
Chico da Tuba
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O mecânico que tocava na banda
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951. Este foi o ano em que a música passou a ter ressonância oficial na cidade. Estava sendo criada, em Uberlândia, uma escola pública exclusivamente de música com o propósito de formar instrumentistas para a criação de uma Banda Municipal. E a escola funcionaria no Mercado Municipal. Assim foi feito, surgiu a escola e, como previsto, originou a banda, na época com cerca de 30 integrantes. Entre eles, o multi-instrumentista Francisco de Assis Fernandes, o Seu Chico da Tuba. “Estudar um instrumento mantém a mente sempre ativa, além de também exercitar o corpo”, afirmava o fundador da Banda Municipal. A estreia da banda foi em 1º de maio de 1952, quando se apresentou pela primeira vez para o público, na praça da República,
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local que recebeu, seis anos depois, o nome do criador da banda e ex-prefeito de Uberlândia. “Saímos da Praça Tubal Vilela e marchamos pelas avenidas Afonso Pena e Floriano Peixoto. Depois ganhamos um almoço no bar da Mineira, que ficava ali na Afonso Pena. Fiquei tão eufórico em me apresentar em uma cidade como Uberlândia. Ainda mais eu, vindo do interior”, disse Chico.
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No fim de sua vida, após ficar viúvo, Chico foi morar em Belo Horizonte. Mesmo com a idade avançada, ele retornou à cidade algumas vezes e chegou a visitar a banda que ajudou a criar e nela permaneceu por 40 anos, que passou a ter sede própria e mais do que o dobro de integrantes da formação original. Chico nasceu em um distrito da histórica cidade mineira de Mariana em outubro de 1917. Ele veio para Uberlândia em 1946, a convite do irmão, para trabalhar na empresa Irmãos Garcia, uma das mais proeminentes na época, na qual permaneceu por 20 anos. Na bagagem, trouxe sua experiência musical, iniciada aos 10 anos de idade. Já tocava vários instrumentos. Das lembranças da banda que Chico ajudou a fundar, ele citou a alegria com a qual viajavam pelas cidades da região para levar a música. “Quando viajávamos, a gente se desdobrava para poder tocar melhor. E éramos muito bem recebidos, sempre bastante aplaudidos, então a gente tocava com bastante alegria”, lembrou Chico da Tuba.
Ele contou que a banda costumava sair do Mercado, onde era a sede e ir até a praça Tubal Vilela, aos sábados e domingos `a noite. Segundo ele, naquele tempo, não tinha televisão e esse era um excelente programa para as famílias. “As pessoas ficavam lá esperando a apresentação. E muitas delas acompanhavam a banda. Literalmente, desciam atrás da banda, ‘pra para ver a banda tocar’.” Chico contou também que a banda chegou a tocar para presidentes e governadores. Mas, nem tudo era só trabalho. Havia também diversão. Entre as histórias que Chico contou, houve o relato de um músico que também era bombeiro e costumava trazer situações divertidas para a banda. Como era costume da banda tocar em quase todos os eventos, lá foram eles para um jogo beneficente de futebol em Itumbiara. O bombeiro ia no último lugar da fila e do lado esquerdo da banda. No cortejo, após uma caminhada de três quarteirões, a banda deveria virar à direita, e o músico, muito brincalhão, virava à esquerda. “Era um músico muito engraçado, isso fazia a gente rir.” Quando concedeu a entrevista, Chico da Tuba estava com 88 anos. “Eu já passei por muita coisa ruim, mas nunca passei por fome e por frio, graças a Deus. Sou de família pobre, pouco estudo ou quase nenhum, mas a gente viveu bem. Só tenho muita saudade da minha infância e da cidadezinha onde eu vivi.” Francisco de Assis, o Chico da Tuba faleceu em 11 de setembro de 2017.
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Clarimundo Campos
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Clarimundo Campos
O cronista apaixonado pela vida
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ifícil explicar como alguém pode manter elevado bom humor mesmo carregando no corpo o peso de uma idade quase centenária. Assim foi Clarimundo Campos, divertido cronista que se mostrava constantemente bem-humorado em qualquer situação. E não perdia a piada, sempre brincando com a beleza feminina, objeto de contemplação ao longo de toda a sua vida. Clarimundo começou a escrever muito cedo em Cachoeira do Itapemirim. Isso em decorrência do hábito de ler. “Enquanto o pessoal ia jogar baralho, eu estava lendo. Só ia para a mesa quando era para sentar perto da minha prima, para correr as mãos nas coxas dela (risos). Fora disso não, enquanto o pessoal estava jogando, eu estava lendo”, disse o escritor.
Formado engenheiro agrônomo, Clarimundo Campos veio para Uberlândia para trabalhar na Sotreq, empresa de equipamentos agrícolas. Como de praxe, impressionou-se com a beleza das mulheres da cidade. E, segundo ele, foram bons tempos. “A minha mulher sabe. Eu era bem apanhado. Tinha um bigodinho de Clark Gable. Fazia sucesso”, confessou sem modéstia. Em Uberlândia, ele conheceu a esposa, Dalva Campos, com quem teve três filhos. Apaixonado por ela até o fim da vida, ele recusou-se a ir ao lançamento da revista Almanaque Uberlândia de Ontem e Sempre, quando receberia uma homenagem e conheceria a publicação que estampava uma matéria sobre sua trajetória. A negativa era pelo fato de a esposa não ter condições físicas para ir. Apenas disse: “Era muito mais importante ela estar lá do que eu. Não gostaria de ir sem ela. Ela nem sabe que não irei por causa dela”. Com a esposa, ele morou na casa do bairro Lídice por mais de 60 anos. Antes disso, quando chegou à cidade, em 1948, instalou-se no antigo Hotel Colombo, onde viveu por cinco anos. Clarimundo não teve dificuldades de se adaptar em Uberlândia. Logo conheceu seus hábitos e habitantes. Apesar de brincar muito sobre a zona boêmia daqueles tempos, confessou nunca ter sido muito boêmio. “Nunca fui de gastar. Estudei às custas do meu pai. Depois que me formei, comecei a trabalhar e a mandar dinheiro pra ele”, contou Clarimundo.
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Para enturmar-se na cidade aproximou-se do “footing” no qual conheceu a futura esposa, logo já se integrando no grupo ao qual ela pertencia, do empresariado,da classe política, dos clientes do setor de agronegócios, rapidamente se sentindo em casa. Quando chegou, o prefeito era José Fonseca, cuja lembrança é de uma pessoa sossegada e calma. Lembrava bem de Tubal Vilela e Renato de Freitas, sendo o último um grande amigo.
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Quando questionado sobre a receita para o bom humor, no alto de quase cem anos, ele simplesmente respondeu: “sei lá, acho que sem-vergonhice mesmo. Esse meu modo de ver, soltar piadinhas, eu me divertia bastante”. Clarimundo, na verdade, sob a aura daquele homem sempre se divertindo e divertindo as pessoas, tinha grande sensibilidade. Ao ponto de trair-se pela expressão de tristeza ao mencionar o passado. “Agora pra mim, é tempo de ter saudades. Tanta coisa ficou. Meus amigos, melhores amigos, já se foram, só ficou a saudade”, disse ele. Sobre conselhos para novos escritores, Campos disse que o pai recomendava muita leitura. Ele próprio, embora tivesse o hábito de ler muito, afirmava não conseguir ler livros muito longos. Entre suas obras prediletas, destacou o livro “Um Boêmio no Céu”, de Catulo da Paixão Cearense. O escritor era um autor sem grandes pretensões, talvez se justifique por isso as suas bem traçadas linhas. Ele escreveu suas crônicas desde agosto de 1940. E, desde 1988, semanalmente,
tornou-se um dos melhores cronistas do extinto jornal Correio de Uberlândia. Apesar do sucesso de reconhecimento público nunca se permitiu pautar pela vaidade. “Não tenho a pretensão de ser aquele ‘formador de opinião’. Formador de opinião, nem sei o que é isso”, falou Clarimundo. Ele também publicou três livros: “As Graças da Terra - a fazenda biodinâmica e as moitas ecológicas”, “A Heroína do Socó Só” e “A Receita de Esposa e Outras Crônicas”. Sobre ser quase centenário, Clarimundo, quase prevendo a proximidade do desfecho de sua história, afirmou: “estou com uma doença incurável chamada ‘veiera’. Mas é uma coisa natural da vida. A morte é uma coisa ruim de pensar, por que deixamos tudo aí, mas, depois que morremos, acabou. Viramos pó e não pensamos mais em nada. Duvido até que alguém vá querer ler o que eu escrevo depois que eu morrer”. Clarimundo Campos faleceu em 29 de junho de 2014, aos 98 anos de idade.
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Clayton Silva
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Clayton Silva
O criador do “Tô de olho no sinhô!” 22
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comediante Clayton da Silva, reconhecido em todo o país como comediante de programas de televisão, nasceu na vizinha Carmo do Paranaíba, mas se tornou oficialmente da cidade ao receber, há alguns anos, o seu Título de Cidadão Uberlandense.
Silva veio logo na infância para Uberlândia, pois o pai, pedreiro, não tinha por lá muitas oportunidades de trabalho. Antes de fincarem raízes na cidade, passaram por Patos de Minas, foram para Goiás Velho, na época capital de Goiás, voltaram para Patos de Minas e, após a guerra, retornaram para Uberlândia. Clayton permaneceu aqui até 15 dias antes de fazer 20 anos, quando se mudou para São Paulo, uma viagem que, na época, durava três dias.
Com uma carta de recomendação dada pelo amigo e padrinho de casamento Ari Novaes, que fora seu chefe na Rádio Difusora de Uberlândia, foi procurar emprego numa emissora de rádio em São Paulo. Lá foi morar na pensão da Dona Maria, que também era de Uberlândia. O ônibus passava em frente à pensão e descia próximo ao Viaduto do Chá. Na rua Direita, a dois quarteirões, na esquina com a rua Quintino Bocaiuva, estava a Rádio Record. Entrou e perguntou pelo diretor artístico. Soube que era Oswaldo Moles, ele escrevia na época o programa História das Malocas, que lançou Adoniran Barbosa. Decidido, Clayton foi falar com o diretor. Entrou e disse: “Eu sou de Uberlândia, trabalho há quatro anos no rádio e vim para cá porque eu quero saber se eu sirvo para isso. Lá eu não tenho referencial”. O interlocutor foi categórico ao afirmar que o diretor, Paulinho Machado de Carvalho, não queria contratar ninguém. Não adiantou a insistência de Clayton afirmando que não queria ser contratado, mas apenas testado, Oswaldo não cedeu aos apelos. Clayton saiu da rádio desolado, mas o seu transtorno era tão grande que não conseguiu sair da porta do edifício. Foi quando apareceu alguém e perguntou-lhe o que estava acontecendo. Ele contou toda a história e o senhor de nome Vicente Leporace o levou ao secretário do Armando Rosas, outro autor da rádio, que escrevia naquela época “Enquanto o Fantasma Não Vem”, programa veiculado à meia-noite. Ele foi encaminhado para Alfredo Gramani, um uberlandense
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que também trabalhava na rádio. Alfredo ligou para Armando Rosas e disse de um menino que queria fazer um teste, a mando de Vicente, que depois ele soube ser um dos astros da TV Record, onde fazia “A Grande Gincana Kibon”, transferindo-se depois para a Bandeirantes onde comandou um dos mais marcantes programas do rádio brasileiro, “O trabuco”. No dia seguinte, conforme agendado, Clayton foi até Armando para o teste. Quando entrou na grande sala, avistou uma mesa grande cheia de pessoas e o Armando na cabeceira. Quando Armando o viu, acenou para que entrasse e o apresentou como Clayton Silva, novo integrante do elenco, dizendo os nomes de todos que estavam ali, entre eles Adoniran Barbosa e outros famosos da época. Já existia um script com o nome de Clayton e suas falas. Isso foi em 1959. Da rádio para a TV foi um pulo. Encontrou com Aloísio, que lhe perguntou o que estava fazendo. Ele disse que estava na Record, na rádio, não na TV. Daí, imediatamente, o convidou para atuar junto dele na Televisão, na OVC, fazendo o programa “Drops do Dia”, uma piada encenada diariamente, patrocinada pelo Drops Dulcora. Foi quando Clayton começou a fazer Televisão. OVC era a sigla para Organização Vitor Costa , TV Paulista, que depois virou Globo, a Rede Globo de hoje. Em 1968, Clayton virou jornalista. Passou a fazer jornalismo na Jovem Pan e também humor no programa “A Praça”, que já fazia na TV Paulista, além de “Largo do Arroz” e “Miss Campeonato”.
Um dos personagens mais emblemáticos e de maior sucesso do comediante foi o “Tô de Olho no Senhor”, com características bem sinistras de azar e feiura. “Eu era tão feio, mas tão feio, que, quando a minha mãe me levou para batizar, o padre falou: ‘leva pra casa, espera três dias. Se não latir traz que eu batizo’, então era esse tipo, sempre ...a namorada era a mais feia, o macaco ganhou a namorada dele, eu fui no zoológico com ela e o macaco se apaixonou e ela se apaixonou pelo macaco, esse tipo de coisa, bem pra baixo e engraçada”, explicou o humorista. Clayton criou esse personagem a pedido do Manuel de Nóbrega. Segundo ele, para fazer a praça de novo, precisava criar um novo personagem. Dai, se inspirou em Chico Tutu, de Uberlândia, um velhinho que a molecada vivia enchendo a paciência e ele fingia que ia correr para pegar a molecada. “Quando eu fui fazer , na hora, não sei por que, olhei para o Nóbrega, ele olhou para mim e ficou um vazio. Aí, eu falei: ‘tô de olho no senhor’. Foi uma risada geral e, na semana seguinte, já veio no texto”, contou Clayton. Clayton contou também de sua admiração por comediantes como Chico Anísio e Ronald Golias, entre outros. Ressaltou a alegria de ter convivido com alguns deles. “A maioria já morreu, né? Na terça feira é o nosso dia de brincar, a gente fica no camarim dos antigos na Praça e existe também o camarim dos novos. Foi naturalmente dividido porque os novos vão chegando e nós, os velhos, morremos de rir, sai muita coisa engraçada. O
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Moacir é o rei de contar histórias, o Golias é que falava toda semana a hora que a gente gravava o Bronco. Eu era o produtor do Bronco na Bandeirantes, então, toda semana chegava, todo mundo, ele chamava para o palco e ia fazer a preleção dele: ‘gente, vocês têm que entender que a gente veio aqui para brincar, não quero ver ninguém nervoso, ninguém preocupado, vamos brincar, você tá decorado, não tá? Você tá decorado, você tá decorado, então é brincar...então vamos nós, aí’. E começava o ensaio. E ele era o rei do improviso”, disse Clayton.
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Desde que foi para São Paulo, Clayton Silva manteve o seu vínculo com Uberlândia. A família toda do pai permaneceu na cidade. E nela, a família cresceu, os sobrinhos tiveram filhos e netos. Para ele, portanto, foi como um prêmio receber o título de cidadão uberlandense, apenas para oficializar um sentimento que sempre lhe acompanhou. “ É a maior glória que eu tenho, o maior troféu que eu consegui nesses 55 anos de profissão, passar a ser, ter a escritura, porque, `as vezes, você tem uma casa e não tem escritura”, explicou Clayton. “São momentos felizes, que depois de um certo tempo você começa a lembrar e vai juntando. Não é que eu fui feliz, rapaz? Fui não, eu sou feliz. Como falava um amigo: ‘quem não tem dinheiro, conta história”, brincou o artista. “Tô de olho no cêis tudo”, encerrou. Clayton Silva faleceu em 15 de janeiro de 2013.
Cônego Durval Garcia
O padre político e historiador
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ma história de fé, amor e militância política em seu melhor sentido léxico. Assim, foi a vida de Durval Garcia, sacerdote católico por 20 anos, marido e pai por mais 28, retornando à igreja aos 82. Após ficar viúvo, levou a vida no paradigma da alteridade, colocando-se sempre no lugar do outro e no desejo de servir a Deus e à comunidade. Garcia foi o primogênito entre sete irmãos. Carregou afeto pela cidade que viu crescer. E que cresceu junto com ela. Quando criança brincava com os amigos da vizinhança nas vias de terra, na rua Duque de Caxias e na avenida Cesário Alvim, descalço, embaixo de uma mangueira que havia nas imediações.
Cônego Durval Garcia
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Na época, na década de 1920, em Uberlândia, tinha água encanada de forma precária, vinda de um córrego onde hoje é a avenida Rondon Pacheco e a luz elétrica era de duas formas: contrato de 24h ou contrato de 12h. Neste último, o morador ficava sem energia durante o dia e a rede era ligada às 19h. Na casa de Garcia era assim.
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“Nesse tempo, só havia oito carros na cidade. A gente andava muito a pé ou de bicicleta. Quem tinha carro usava só para dar uma volta na cidade com a família em dia de domingo.”, relembrou Durval. Nos anos de 1920, a cidade tinha uma população em torno de 18 mil pessoas. As crianças da época, assim como Durval, presenciaram a chegada do rádio, instrumento de luxo ao qual tinham acesso somente as famílias mais abastadas. Nessa época, até quase meados do século passado, entendia-se por “cidade” somente o trecho entre a praça Clarimundo Carneiro e as imediações do antigo fórum, na hoje avenida João Pessoa. Dali adiante, havia “a estrada de ferro que chegava até o estado de São Paulo. O trânsito de cargas era intenso”, como o próprio Durval relatou. Em sua adolescência, Durval Garcia foi coroinha nas missas, o que lhe suscitou o desejo de ser padre. Em busca desta formação, ele ficou 14 anos fora de Uberlândia para estudar. Contou que, antes da Igreja Matriz de Santa Teresinha, hoje catedral, só existia a Igreja de Nossa Senhora do Carmo e São Pedro. Mas, o piso foi infestado por um formigueiro de saúvas e ficou comprometido a ponto de uma das torres sofrer uma inclinação. “Monsenhor
Eduardo, vigário aqui por 20 anos, foi quem decidiu, com o prefeito nomeado da época, Vasconcelos Costa, a desmancharem a igreja e construírem a Matriz de Santa Teresinha, na década de 1930, em um terreno comprado por um grupo de mulheres devotas”, contou Garcia. A igreja demolida ficava onde hoje é a Biblioteca Municipal, no Fundinho. O local, antes de ser a biblioteca, foi estação rodoviária e também delegacia de polícia. Os 14 anos que Durval passou fora se preparando para o ministério católico foram em Uberaba e depois em Belo Horizonte. Retornando à cidade, foi ordenado sacerdote na Igreja Matriz de Santa Teresinha, Paróquia de Nossa Senhora do Carmo e São Pedro, onde foi padre por 20 anos. Em Uberlândia, além das atividades de sacerdote, foi professor de diversas disciplinas que estudou, como Filosofia e Teologia. Foi também professor-fundador da Escola de Medicina, curso da atual Universidade Federal de Uberlândia (UFU). “Exerci a atividade de professor 50 anos e tenho verdadeira paixão por esta profissão”, disse o cônego. Durval Garcia foi colaborador do Correio de Uberlândia com artigos opinativos sobre assuntos diversos. “Não me lembro bem a data, mas foi na época em que a impressão era feita com a técnica de linotipia [uma máquina que funde em bloco cada linha de caracteres tipográficos, composta de um teclado]”, lembrou ele.
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Embora com talento para professar a fé cristã, sua missão sucumbiu aos valores terrenos ao apaixonar-se pela mulher com quem se casou depois de mais de 20 anos exercendo as atividades do sacerdócio. “Ela era minha aluna na Faculdade de Pedagogia e, depois de oito anos que não nos víamos, ela me enviou um cartão-postal e aí tudo começou. Foi uma história de muito amor”, explicou Garcia. Aos 50 anos de idade, Garcia pediu desligamento do ministério, concedido pelo então Papa Paulo VI. O seu casamento com a pedagoga Maria de Lurdes de Miranda Garcia, com quem teve um casal de filhos, Mariane de Miranda Garcia e Pedro Paulo de Miranda Garcia, durou 28 anos, quando então ficou viúvo. 30
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Aos 82 anos de idade, ele pediu ao Vaticano para retornar às atividades de padre, o que foi aceito pelo Papa João Paulo II. Durval Garcia atuou em duas paróquias e obteve licença por idade. “Fui padre por 61 anos e passei a ajudar a Igreja naquilo que podia. Gosto muito de servir e tenho amor pelo sacerdócio”, relatou o padre à época. Na política, cônego Durval Garcia foi eleito vice-prefeito em 1982, na primeira gestão do prefeito Zaire Rezende. Entre 1983 e 1988 foi diretor-geral do Dmae. O cônego Durval Garcia faleceu em 16 de setembro de 2017.
Ganga
Ganga
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O goleiro bom de samba
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arlos Eurípedes Souza, conhecido como Ganga, foi jogador de futebol, atuando como goleiro em diferentes clubes de Minas Gerais e São Paulo. Chegou a jogar fora do Brasil.
Quando parou de jogar, na década de 1980, passou a dedicar-se à música. Foi filho de músicos e começou a tocar em família. Formou um grupo chamado Tempero de Quintal, que contribuiu para a profissionalização de uma geração de músicos da cidade. Em entrevista ao programa “Uberlândia de Ontem e Sempre”, Ganga contou a origem de seu apelido.
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Vindo de uma época quando não se ganhava dinheiro com futebol, Ganga disse ter aprendido muito com o ofício, em suas andanças vestindo a camisa de vários times brasileiros e até mesmo de outros países. “O futebol me deu muita base para chegar aonde estou (na época com o grupo Tempero de Quintal). As amizades foram ótimas, o violãozinho nas horas das concentrações, tudo isso me deu a base que eu precisava para prosseguir na música”, contou o músico e esportista.
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Das lembranças pitorescas relatadas por Ganga, há um episódio meio assustador. Ele estava junto de outras pessoas na sauna do Praia Clube, quando começaram a ouvir ruídos estranhos na parede. Quando abriram a porta, havia uma enchente e a água já estava na canela. Saíram correndo, mas estava tudo inundado. Quando saiu, viu seu carro, um fusquinha antigo, 1963, sendo arrastado pela correnteza. Tentou trazê-lo de volta. Entrou no carro, mas pancadas de água começaram a surgir de todos os lados, do lado do bairro Patrimônio e do lado do centro. O carro subiu, emergiu e ele ficou apavorado. Abriu a porta, saiu e se agarrou nas vidraças da sauna do lado de fora, com água até o pescoço. O fusca acabou sendo salvo pela rede de uma obra que estava sendo feita no clube. Ganga salvou-se quando quase foi atropelado por uma caminhonete que estava sendo levada pelas águas e decidiu soltar-se da vidraça e jogar-se para a divisa com a área de serviço, onde abraçou um coqueiro. Vendo uma área não inundada, lembrou dos tempos de goleiro, soltou-se do coqueiro e arremessou-se para a grade, de onde outros o
seguraram e o puxaram para cima. Vindo de uma família musical, portanto com a música presente em sua vida desde a infância, estava decidido a seguir a carreira na área assim que encerrou a sua trajetória como jogador de futebol. Isso foi em 1982. Do início, lembrou do apoio de amigos, como Celso Machado, da ABC Propaganda, e Peninha, da GBM Promoções, que o auxiliaram a divulgar o trabalho e até mesmo alavancaram participações em programas televisivos com audiência em nível nacional, como o “Programa do Bolinha” e o “Programa do Faustão”, entre outros. O grupo Tempero de Quintal teve importante papel na profissionalização dos músicos locais. Vários nomes de prestígio na área passaram pelo grupo. E até mesmo Alexandre Pires e o seu grupo Só Pra Contrariar, ainda não tão reconhecidos em nível nacional, tiveram participações em shows do Tempero de Quintal. Ele também ventilou uma tentativa de ingresso na política. Candidatou-se ao cargo de vereador no pleito de 2012. Ganga faleceu em 17 de julho de 2014.
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Ionei Silva
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Ionei Silva
A voz do “mestre dos Magos” 34
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voz ficou conhecida em todo o país. Poucos, no entanto, sabiam que o dono dela nasceu aqui mesmo em Uberlândia, na esquina da avenida Cesário Alvim com a rua Duque de Caxias. Esse era Ionei Silva, filho do tintureiro Sebastião José da Silva e Izabel Marques Silva. Ionei foi um dos dubladores mais atuantes do país, emprestando sua voz para estúdios como a Herbert Richers, Pery Filmes e Delart. Antes, porém, de conquistar esse espaço em São Paulo, Ionei Silva deu em Uberlândia seus primeiros passos profissionais. Já aos 8 anos, aprendeu com o pai o senso de responsabilidade aos fazer buscas e entregas de roupas para a tinturaria.
Aos 10 anos iniciou a sua carreira artística, ao apresentar, em 1952, um programa infantil na Rádio Difusora. O programa era executado ao vivo, todas as manhãs de domingo, no auditório da emissora, auditório esse fundado por Remi França, um dos autores do Hino de Uberlândia. Ionei Silva era o “spica” do programa, nome dado ao primeiro locutor, atração principal. Ionei disse que não ganhava nada pelo programa, era mais pelo prazer de fazer. “Eu cantava também. Ia pra lá cantar. Todo domingo, eu terminava o programa cantando, porque só tinha a Rádio Difusora na época. Depois que veio a Educadora, onde também trabalhei. Daí, fui fazer novela na rádio em São Paulo. Lá, eu ganhava por capítulo, 12 pratas o capítulo. Juntava um dinheirinho daqui outro dali, fui vivendo, até que em 1964 mudei para o Rio de Janeiro. Em 1965, retornei a Uberlândia, fui convidado a dirigir a Rádio Educadora, cargo no qual permaneci por pouco mais de três anos, até começo de 1968, quando foi inaugurada a Rádio Bela Vista.. Em 1969, voltei para São Paulo. Lá, em 1973, me tornei diretor do Cine Castro. Quando fecharam o cinema, eu fui para a Herbert Richards, onde fiquei até o fim da carreira. Ali, dublei todos os desenhos que vocês possam imaginar”, relatou Ionei. Ionei passou dificuldades em São Paulo, onde iniciou sua carreira de dublador em 1958, aos 16 anos. Antes de conseguir se estabelecer como dublador em São Paulo, trabalhou como tintureiro, feirante e vendedor de enciclopédias. E foi o primeiro
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diretor de dublagem de carteira assinada do país.
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Como dublador, Ionei Silva atuou em desenhos e séries, como Arquivo Confidencial, Bareta, Chumbo Grosso, Devlin o Motoqueiro, Missão Mágica, Godzila, Os Smurfs, Tu Tu Barão, Patrulha Estelar, Novos Centuriões, Chumbo Grosso, Caverna do Dragão, O Mestre dos Magos, entre dezenas de outros. Entre tantas personagens, Ionei considerava mais difíceis as de desenhos e filmes japoneses. “Eu fiz uma série chamada Ultraman, pelo amor de Deus, aquilo foi uma loucura! Na última hora, o diretor não quis fazer e eu, que era a voz protagonista da série, tive que também dirigir o trabalho”, contou Silva, que, além de desenhos e seriados, chegou a dublar filmes como Star Wars, O Retorno de Jedi, O Imperador Palpatine, e até mesmo novelas. “Vivi tudo o que quis, trabalhei muito com amor, mas já foi. Não me arrependo de nada, mas não vivo de saudosismo”, disse Ionei Silva. Morreu em Uberlândia no dia 22 de julho de 2013, aos 71 anos
Julieta Cupertino
Exemplo de superação e de gente
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omente após mais de meio século de vida, é que Julieta Cupertino começou a trabalhar, como professora e tradutora literária. Procurou compensar isso da melhor forma possível e prosseguiu trabalhando por mais de cinco décadas, até próximo de seu falecimento. Ela entrou, tardiamente, no mercado de trabalho simplesmente por ter priorizado a educação de seus filhos. Criou nove crianças e só se sentiu `a vontade para realizar-se profissionalmente quando todos já haviam saído de casa. Como professora de inglês, Julieta trabalhou mais de duas décadas na rede estadual, na Escola Estadual Américo Rene Giannetti. Após aposentar-se pelo Estado, ficou cuidando de sua mãe, já bastante idosa.
Julieta Cupertino
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“Ela era velhinha. Velhinha não, ela era como eu”, brincou Julieta Cupertino. Após o falecimento de sua mãe, sentiu-se só e ociosa. Sua filha Isolina tinha feito o curso de tradutora. “Dei o braço a ela e fomos traduzir nós duas”, contou a professora.
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Isolina e dona Julieta se dedicaram a traduzir aqueles romances açucarados para mocinhas, que são vendidos nas bancas de revistas. Outra filha tradutora, Maria Cristina, de forma amena, classificava essas obras como “subliteratura”. Isso até outro filho também ligado à área, dono de editora, dar-lhe a chance de entrar no mundo da “boa literatura”. Entregou para a mãe traduzir a obra da escritora neozelandesa Katherine Mansfield, autora de quem traduziu várias obras, mais a edição de seu diário e cartas, o que foi o bastante para alcançar a responsabilidade de outros autores, como Joseph Conrad, de quem também traduziu vários livros, um deles, “Coração das Trevas”, com tradução feita aos 103 anos. Julieta Cupertino também editou uma obra, “Chego aos 100 anos de bem com a vida”, que, segundo a editora, “ joga luz sobre 150 anos da sua história familiar. Não tem pretensão de fazer um livro de história, mas junta memórias sobre a vida no Triângulo Mineiro desde meados do século XIX. Mais especialmente, ao fundo, se vê desenrolar o cotidiano da história de Uberlândia, desde os primórdios de Uberabinha até a metrópole em que ela se transformou”. Das Viagens a Cavalo à Navegação Virtual é o subtítulo do livro, exatamente para mostrar a trajetória pessoal da autora, de criança pobre, mas inteligente e esperta, no início
do século XX, até a mulher-mito vivida até o fim de sua vida, idosa mas sempre ativa e curiosa, que navegava na internet e usava o computador como instrumento de trabalho diário. Os percalços da vida não a fizeram esmorecer. Além de ficar viúva, também enterrou três de seus filhos. Nada disso a fez perder a contemplação da vida. Revelou-se uma pessoa muito interessada em tudo que represente alegria e arte, principalmente dança, teatro e concertos, eventos que lhe foram surgindo a partir da passagem dos anos, com as viagens para fora ou com o crescimento da cidade que um dia ela conheceu bastante pacata. Uma infância reclusa, uma cidade pequena, calma e diferente da que Julieta presenciou nos seus últimos anos de vida. Nada que a assustasse ou a fizesse ficar arredia. Ela era do tipo de mulher que se adequava aos novos tempos. Quase centenária, ainda lidava com computadores e entrava em “salas de batepapo” para fazer novos amigos. Ela ria: “Eu usava meu nome mesmo nos ‘chats’, mas começou a chover Romeu e eu tive que mudar para Luísa. Agora estou usando Julieta novamente”, contou a tradutora quando já tinha mais de 100 anos. O movimento gerado pela modernidade fascinava Juileta. Ela disse que gostava de tudo isso. “Eu gosto desse movimento. Esse movimento em busca de educação, procurando a arte, todo esse movimento eu sigo com muito interesse. Eu queria ver a cidade bem colocada nesse sentido”, afirmou a tradutora.
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Julieta Cupertino, em seus últimos anos, dizia-se impressionada com a emancipação feminina, mesmo vindo de uma época quando as mulheres, em maioria, dedicavam-se ao lar. Um conflito de gerações que não a impedia de ver as mudanças nesse sentido como uma evolução. “Para mim, a tarefa de mãe foi primordial. A formação da família é muito importante. E exige aporte. A vida profissional não pode prejudicar as tarefas de mãe de família, o que é muito difícil”, opinou. E também valorizava a vaidade nas pessoas. “Eu gosto de luxo, de ver uma pessoa bem posta. Acho muito mais interessante do que o contrário”, afirmou Julieta. 40
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Apesar de ter se mostrado muito vigorosa no alto de seus mais de 100 anos de idade, Julieta Cupertino desconstruiu a visão romântica de um envelhecimento tranquilo. “ Não é muito fácil não. É preciso ter muito cuidado quando se está velha. Há muito choque de gerações. Isso é uma coisa séria. Você não consegue impor e nem ser imposta. Mas, a gente leva, a gente leva”, revelou. Meio desapontada com a política, Julieta preferia falar de cultura. E de relembrar os tempos em que viajava a São Paulo para ir ao teatro. “Vou vivendo a vida, olhando o quê e como eu devo fazer. Tem de viver. Viver em paz. Viver satisfeita e causando satisfação. Aí tudo dá certo”, concluiu. Julieta Cupertino faleceu em 21 de maio de 2016.
Maria Inês Mendonça
A querida inesquecível Vovó Caximbó
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la sempre tinha memória para recontar histórias. Só não sabia que isso mudaria o seu destino. Foi embora precocemente, mas deixou impressa na história uma vida dedicada aos palcos e à arte de contação de histórias. Maria Inês Mendonça, que se consagrou com sua personagem Vovó Caximbó, era uma simples dona de casa, até participar de um concurso no “Projeto Circo, lona itinerante” da Secretaria Municipal de Cultura que revelou muitos artistas para a cidade. Assim nasceu a artista dentro de Maria Inês e dali até o fim da vida, foi bastante atuante nas várias esferas culturais de Uberlândia. “Algumas pessoas nascem com dons de Deus, outros vão fortalecendo no decorrer da vida. Sempre tive o dom da memória.
Maria Inês Mendonça
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Por volta de 1988 houve um concurso para que se descobrisse um contador de história. Como eu adoro contar histórias e guardo muitas que os pais e os avós contavam, ganhei o concurso e criei a personagem da Vovó Caximbó. A partir daí, eu vim contando histórias, fazendo a minha alegria e a alegria de quem gosta de ouvir”, relatou Maria Inês.
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Desde então, a vovó Caximbó se apresentava onde fosse chamada, bibliotecas, escolas, hospitais, teatros, sendo inclusive requisitada para apresentações também em outros municípios e estados. A oportunidade para Maria Inês tornar-se ainda mais conhecida, em nível nacional, com o seu trabalho foi com o projeto “História Contada Porta Aberta Semente Plantada”, aprovado em uma das leis de incentivo à Cultura, que fez com ela resgatasse “causos” que ainda sobrevivem na região do Triângulo Mineiro. Descobriu, então, muitos contadores de história com memória excelente, apesar da idade. “Em Ituiutaba, nós entrevistamos uma senhorinha de 99 anos, que nos contava casos enquanto fumava um cachimbão. Disso resultou uma peça de teatro, com a participação de vários músicos da cidade, como Luiz Salgado, Dedé Aires, entre outros”, contou. Na contação de histórias de Maria Inês, sobretudo nesse resgaste via projeto incentivado, predominavam as histórias de assombração. “Impressionante como mineiro gosta de histórias de assombração. Tem muita história engraçada, muita história de amor, muita história quase inacreditável que juram ter acontecido de verdade, história de pescador, mas têm mais histórias de
assombração, de lobisomem, de mula-sem-cabeça. E eles também juram que é verdade (risos)”, contou a atriz. Segundo Maria Inês, para se tornar uma boa contadora de história, a pessoa tem primeiro de aprender a ouvir, para depois se expressar. “O ouvido é essencial, aí depois vêm algumas coisas assim: o prazer de contar, saber preparar um espaço, no caso quando você vai trabalhar com crianças, e ter a disposição pra pagar mico também (risos)”, explicou. Embora o trabalho de Maria Inês fosse voltado para crianças, ela contou que sempre houve grande envolvimento dos adultos. “Jovens e adultos. É impressionante. Quando fazemos sessão à noite, os pais vão levar as crianças e, aparentemente, saem dali renovados e motivados. Todo mundo também tem um caso para contar. Alguns vão ao palco e contam outra história”, disse. Além de Vovô Caximbó, Maria Inês, com o seu grupo Faz de Conta, criou várias outras personagens e peças teatrais. E era sempre convidada para participar de palestras de Workshops. Nos últimos anos de sua vida, chegou a manter na cidade um Museu do Boneco, onde ficavam permanentemente expostos os bonecos que fizeram parte do repertório criado por ela e seu grupo. Foi, a partir do ano de 1993, que começou a acontecer essa expansão das atividades do grupo. Maria Inês e alguns amigos começaram a confeccionar bonecos de papel machê. Daí sur-
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giu o grupo Faz de Conta. Com o tempo, passaram a utilizar também outros materiais e a atriz começou a aprimorar a linguagem, tornando-se uma das referências em nível nacional. Maria Inês explicou seu ponto de vista na diferença entre história e “causo”. “A história é mais abrangente. Eu posso contar uma história europeia, história dos contos clássicos, contos de fada como a “Rapunzel”, uma fábula onde os bichos falam ou posso contar também uma história passada na nossa região. Posso ainda contar uma história onde eu introduza ali noções de literatura, de história do Brasil, de história mundial. E isso passado de uma forma muito gostosa”, disse. 44
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Das histórias que trouxe da infância, a atriz, além do clássico “A Bela Adormecida”, que considerava uma boa metáfora sobre o tempo de espera de maturação da mulher, também tinha predileção pela “História da Moça Tecelã”, um conto contemporâneo em que a mulher tece o seu dia a dia. A tecelã foi muito apresentada por Maria Inês em palcos e casas noturnas de Uberlândia. Além dessas, trouxe também em sua memória afetiva, uma história muito contada pelo pai, segundo ela uma história bem nordestina, de cangaceiro, em que o homem desceu ao inferno para peitar o diabo. Maria Inês não considerava o advento da internet uma ameaça às tradições da oralidade. Para ela, quanto mais as pessoas avançam nas tecnologias da modernidade, mais elas sentem ne-
cessidade do “olho no olho”. “As pessoas sentem falta disso, do momento do aconchego. Contar história remonta os tempos primórdios, em que o homem ficava em volta da fogueira, lá na sua caverna, talvez se escondendo da chuva e, ali, ele ia contando os fatos, as narrativas dos acontecimentos. Até fazia gravuras na parede. Então, eu acho que o homem hoje sente muita falta disso, do aconchego desta palavra oral”, traduziu Maria Inês, Para a atriz, as pessoas vão passando e as suas histórias continuam. “E como a gente muda, a história vai mudando também. Somos a soma da nossa história e das histórias dos que passam por nós. Para o final de vida, eu quero ter um lugar onde eu possa contar história, até enquanto eu conseguir ter memória para isso. E enquanto as pessoas tiverem paciência para me ouvir (risos)”, disse Maria Inês, sendo esse último sonho um dos únicos que não conseguiu ver realizado, pois partiu, precocemente, após lutar cerca de quatro anos contra um tumor no cérebro. Maria Inês Mendonça faleceu no dia 10 de julho de 2016, aos 56 anos.
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Mestre Capela e Mestre Lotinho
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Os mestres do Carnaval uberlandense
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Carnaval sempre rende boas histórias em qualquer cidade do país. Em Uberlândia não poderia ser diferente. O protagonismo de algumas personagens seguirá imbatível. Eles fizeram história. E contam a história de nosso Carnaval, permeada de várias outras histórias pessoais, de protagonistas que desafiaram o tempo, a ausência de recursos e declararam, desde sempre, amor ao samba e à festa da avenida. Mestre Capela foi uma dessas pessoas. Hoje ele é bem mais do que um nome de praça. É alguém que imprimiu o seu nome na história local da maior festa do Brasil. Até o fim da década de 1950, o Carnaval de Uberlândia se caracterizava basicamente pelos bailes de salão e por uma “família imperial” de foliões, capitaneada pelo lendário Coronel
Hipopóta, responsável também pela dissolução desse núcleo de rei, rainha, principado e bobo da corte, quando foi convidado a transferir sua atuação de radialista para Goiânia. Nessa época, a tradição é que os blocos descessem da Estação Mogiana, percorressem a cidade e recebessem a chave das mãos do prefeito. O Coronel Hipopóta lia a fala do trono, cheia de despropósitos e coisas engraçadas. Se dizia também presidente da Academia de Letras Protestadas e que, no Carnaval, era proibido cobrar as contas dos outros. E Mestre Capela estava sempre nesse cortejo. “O comércio é que procurava o pessoal que tinha aqueles blocos porque não tinha uma escola de samba formada, mas sim aquela força de vontade. Me sinto muito privilegiado em saber que pertenci àquele Carnaval, ao início deste Carnaval temos hoje”, afirmou Capela ao programa “Close”, que antecedeu o “Uberlândia de Ontem e Sempre”. Ele contou que, a partir daí, surgiram quatro escolas, a Princesa Isabel, a Tabajara, o Pavão Dourado, e uma outra escola da qual não lembrou o nome, formada pelo Antonio de Melo, uma pessoa influente que destoava das formações populares das demais escolas. Mestre Capela relatou ao programa que, como os tempos eram de ingenuidade e respeito, sempre portavam lança-perfume nos bolsos, para arremessarem nas costas uns dos outros, em uma
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época em que isso não tinha conotação de droga e não era uma apologia ao consumo de substâncias viciantes. “Era um Carnaval belo, cheiroso. Depois de meses, aquela camisa que você usou ainda estava cheirando o perfume da lança-perfume. Era maravilhoso”, contou o carnavalesco. Outra pessoa que foi personagem ímpar na história do Carnaval de Uberlândia foi Mestre Lotinho, o fundador da Escola de Samba Tabajara, a primeira da cidade.
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O tio de Lotinho, Anísio Luiz Camilo, tinha um Clube chamado José do Patrocínio, apelidado de Caba Roupa. Anualmente, a orquestra do clube ia para a avenida, durante todo o Carnaval, puxando o povo para o Carnaval do Clube. Na avenida Afonso Pena desfilava a orquestra do Caba Roupa com a orquestra do Zanzibar, cruzando uma com a outra. Zanzibar era o clube de um senhor chamado Eugênio Silva, que mais tarde criaria a Escola de Samba Pavão Dourado, como concorrente direta da Tabajara. A Escola Tabajara vem grafada sem o “s” em homenagem à Orquestra de Severino Araújo. Em 1956, por iniciativa da Rádio Educadora, através de Moacir Lopes e Maximiliano Carneiro, foi realizado o 1º Concurso de Escolas de Samba de Uberlândia. O resultado foi a vitória da Tabajara sobre Aymorés, Pavão Dourado - Zanzibar e Coqueiro. Tabajara também foi a vencedora do primeiro concurso oficial realizado em 1957, ten-
do, desde essa época, conquistado por diversas vezes o Carnaval de Uberlândia, tornando-se a escola com mais títulos conquistados na cidade. Mestre Lotinho comandou a escola até o fim da década de 1970. Logo em seguida, seu filho Passarinho assumiu a direção e permaneceu até meados dos anos de 1980. Depois, Gilson coordenou a escola até o ano de 1994. Em 1995, foi montada uma comissão de moradores do bairro Patrimônio, coordenada por Almir José de Souza e Carmen Lúcia Costa (Nuna), para manter a escola funcionando. Em entrevista ao programa “Close” (antecessor do “Uberlândia de Ontem e Sempre”), Mestre Lotinho confessou que sua melhor lembrança carnavalesca é do ano de 1968. Para ele, foi a ideia mais brilhante e uma das melhores apresentações da escola. Com o tema “A chegada de Dom Pedro”, Lotinho afirmou ter acontecido um dos melhores desfiles da escola, comparável somente ao que se faz no cinema e no teatro. Mestre Capela faleceu 27 de fevereiro de 1996.
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Nininha Rocha
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Nininha Rocha
A pianista dos “pés descalços” 50
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uando a estrela de Nininha Rocha se apagou em 2018, foram muitas as manifestações de carinho postadas na internet, a maioria delas comentando não somente de seus reconhecidos dotes musicais, mas também de como ela era carismática e atenciosa. Com a mais absoluta certeza, foi um dos expoentes artísticos da cidade e, como ninguém, soube cultivar os bons momentos e fazer amigos. Nininha nasceu Maria Constança da Rocha e, desde muito cedo, já iniciou a história musical que encantou tanta gente por mais de oito décadas. A pianista nasceu em novembro de 1933 e faleceu três dias antes de completar 85 anos.
Além de se dedicar à música, ela também lançou obras próprias, como os livros “Pés no Chão”, “Procissão de Velas”, “Desarrumaram a Casa de Maria”, “Escorregaram no Mercado Municipal”, “A Pianista Amou Sem Medo”, “Não Toquem na Banda”, “Um Piano de Uberlândia” e “Não Sou Uma Revelação - Ando Descalço com os Pés no Chão”. A pianista foi tema de um documentário, dirigido por Dyego Póvoa, lançado em 2016 e exibido no cinema local. O filme “A Condessa dos Pés Descalços” registrou a história e carreira artística de Nininha com depoimentos de amigos, companheiros de trabalho, autoridades, agentes culturais e artistas da região. Nininha nasceu no coração da cidade, na rua Machado de Assis, 274 e, como ela própria contou, teve uma infância maravilhosa, ao lado de seu único e primogênito irmão. Essa infância foi na primeira metade do século passado, quando as crianças ainda tinham a liberdade de brincar de velocípede nas ruas. Da infância para a vida adulta, Nininha nunca abandonou o seu grande companheiro, o piano. Dedicou-se diariamente a ele até poucos dias antes de seu falecimento. Nininha era a única uberlandense de sua família. Sua mãe, Maria Tereza Scarpini, era italiana e o pai o baiano de Santo Amaro da Purificação, Inocêncio Rocha, maestro e professor de piano, um dos primeiros a dar aulas para a também pianista Cora Pavan Capparelli, que hoje dá nome ao conservatório es-
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tadual de música da cidade. O gosto de Nininha pela música aconteceu, na prática, aos 5 anos. O pai comprou um piano e, com vistas à pouca idade da filha e à preservação do instrumento – um Gebr.Zimemermann Leipizig que ela manteve até o final de sua vida -, não gostava que ela tocasse. Contrariando a autoridade paterna, a mãe permitia à filha descobrir os teclados até o coração do pai ser quebrantado pelo talento nato da garota. A performance de Nininha, uma criança sem conhecimento teórico nenhum a respeito de piano, fez com que o pai a deixasse tocar. Chegou a acompanhá-la ao Rio de Janeiro, para uma apresentação a Getúlio Vargas no programa “A Voz do Brasil”. O pai só presenciou esse início da carreira de Nininha, pois viria a falecer cerca de dois anos depois, deixando para a mãe a incumbência de incentivar a filha em seu percurso musical. A música parecia estar no DNA da família. Segundo Nininha, a avó paterna, também baiana, era uma grande pianista. Ernestina Rocha veio à cidade para duas récitas no antigo Uberlândia Clube, que ficava na Praça da República, hoje Tubal Vilela. O irmão engenheiro também tocava violino. Chegou a apresentar-se várias vezes com a Orquestra Michele Virno, grupo titular no mesmo Uberlândia Clube. Quando criança, Nininha tocava intuitivamente. Não gostava da expressão “de ouvido”. Considerava o termo pejorativo e equivocado. O primeiro professor da menina prodígio foi, para ela, inesquecível. Era Salvatore de Lucca, que vinha de Uberaba lecionar para ape-
nas cinco alunos. Nininha era um deles. Depois de sua infância, a carreira de Nininha Rocha foi marcada por apresentações em rádios e TVs de todo o país, pela publicação de alguns livros e presença histórica em espaços tradicionais da cidade, como a Churrascaria Becão, o restaurante Kabana, não raramente acompanhando nomes famosos como, entre dezenas de outros, Altemar Dutra, Benito de Paula e o conterrâneo Grande Otelo. Nos últimos anos de sua vida, tocou bastante no Clementina Bar e Restaurante, anexo ao Mercure Hotel. Em 2015, Nininha Rocha realizou um sonho antigo. No mês de aniversário da cidade, ela gravou o Hino de Uberlândia ao lado da Banda Municipal, tendo ela como solista. A gravação foi viabilizada pela Secretaria de Cultura e aconteceu no Teatro Municipal, transformada em DVD. Para Nininha, este era um sonho acalentado há anos e que provocava nela uma inquietude enorme, com medo que ele não se realizasse. “Fiquei muito emocionada com essa realização. A gente sonha sempre, né? E esse era um sonho antigo. Queria deixar para a cidade o hino gravado por mim, ao lado da Banda Municipal, cuja história conheço bem”, afirmou a pianista. Toda semana, ela tinha sua rotina musical. Às segundas e sextas abria e fechava a jornada semanal de um dos maiores grupos empresariais da cidade, o Grupo Algar. Às quartas, ela se dirigia
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para a Rádio Universitária, onde tinha um programa com enfoque na música instrumental. Os ouvintes se conectavam a ela, dando a volta ao mundo por meio da música, aos domingos, das 8 às 9h. Nos demais dias da semana, ela atendia às solicitações que surgiam para eventos, shoppings, bares e restaurantes. Essa foi, durante décadas, a vida da musicista Nininha Rocha, sempre conectada ao piano e que tinha como marca registrada tocar sem sapatos, daí a denominação carinhosa de “pianista dos pés descalços”.
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Professor Lucindo
O “Posto Ipiranga”do nosso Legislativo
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as décadas de 1980 e 1990 era impossível falar em Câmara dos Vereadores de Uberlândia sem relacionar a presença do professor José Lucindo Pinheiro, o seu baluarte no período, ao qual os próprios legisladores que passaram pela Casa nesses cerca de 20 anos, se referiam como “a verdadeira enciclopédia da história do Legislativo local”. A frase mais comum ouvida no período era “pergunte ao professor Lucindo”. Sinônimo de confiança e respeitabilidade, ele foi uma espécie de conselheiro político na cidade, um mestre observador e sensível de constante presença na vida pública municipal. A Casa não funcionava sem ele. Em sua simplicidade, dava “aulas” diárias de legislação e justiça.
Professor Lucindo
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Dedicou 25 anos de sua vida à Câmara Municipal, 20 deles como secretário geral e os demais como assessor parlamentar de um vereador. “Nesse tempo todo, a gente pesquisou e aprendeu o que é a essência do poder Legislativo e, principalmente, o que é o Legislativo Municipal”, disse Lucindo. Sobre o aprendizado no ofício, sobretudo em tempos quando o nível de confiança nos políticos está altamente comprometido, Pinheiro se posicionava com firmeza frente à situação embaraçosa. “Diante do que estamos vivendo, a gente generaliza e acha que todos os políticos são pessoas sem ética. Entretanto, nesses 25 anos, eu posso garantir que uma boa parte destes vereadores que eu conheci foi de pessoas de rigorosa ética e que trabalharam realmente no interesse da cidade”, disse. O professor chegou a concorrer ao cargo de vereador. Mas, era pouco conhecido. “E naquele tempo, ainda era pela cédula. E a cédula facilmente escapava da mão da gente para a de outro. Era um método de apuração realmente muito questionável”, sugeriu Lucindo. Lucindo Pinheiro afirmou que não se lembrava de projeto de lei que causasse estranhamento por ser inusitado. Segundo ele, havia muito rigor por parte da mesa em não permitir que projetos de leis esdrúxulos passassem pela casa. Já requerimentos, havia alguns realmente muito estranhos. Do período vivido na Câmara, destacou requerimentos cômicos e absurdos, como um para redigir correspondência ao presidente Figueiredo proibin-
do a caça às baleias na região. E ainda outro em que se pedia para colocar uma locomotiva na praça Sérgio Pacheco, representando a presença da Estação Mogiana na vida da cidade. Destacou também algumas divergências conflituosas entre vereadores, sobretudo em torno do tempo disponível de fala, naquele tempo cronometrado rigorosamente. Citou casos em que o tempo da fala não foi respeitado, causando tumulto na sessão plenária. Lucindo lembrou de um tempo que as sessões não eram transmitidas ao vivo e, portanto, assistidas somente pelas pessoas que tinham o interesse e a curiosidade e se deslocavam até o plenário. Era o caso do folclórico Astolfo. O professor contou que era comum a chegada de novos vereadores sem muita noção do universo legislativo. “A maioria dos novatos que chegavam não tinha conhecimento do que é um projeto de lei, da tramitação desse projeto, as funções dentro da Câmara Municipal, isso, de certa forma, inibia a participação dos novatos no começo. Depois de um certo tempo, conseguiam se integrar ao meio”, explicou. O professor se dizia impressionado com o poder de oratória de alguns vereadores que passaram pela Câmara. Citou como exemplo Jeová Abrão, que considerava um grande orador. “Era uma pessoa que sabia usar a argumentação, muitas vezes eu assisti isso, um projeto de lei estava para ser aprovado pela maioria. O Jeová subia à tribuna e, com sua argumentação,
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mudava todo o ambiente e o projeto passava a ser rejeitado”, relatou Lucindo. Segundo ele, o mais belo gesto que presenciou na Câmara foi por ocasião da enchente de dezembro de 1986, quando a avenida Rondon Pacheco foi inundada. “Quando chegou a notícia, a Casa suspendeu os trabalhos e todos os vereadores desceram para ajudar aqueles que estavam sendo carregados pela enchente. Neste trabalho, quem se distinguiu mais foi o presidente da Câmara na época, o Antônio Jorge Neto”, contou.
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Para a surpresa de muitos, Lucindo não era uberlandense. Nasceu em Ponte Nova, na Zona da Mata, em um bairro repleto de palmeiras, não por acaso chamado de São Pedro das Palmeiras. Ali viveu toda a sua infância junto a mais 10 irmãos. O pai era engenheiro e a mãe professora. Deste tempo, na formação escolar, ele destacou a obrigatoriedade do aprendizado entre professores dóceis e outros severos, mas com o aluno sempre estimulado pela palmatória a dar o melhor de si. Sua adolescência já foi distante dos rompantes juvenis. Ele a passou no seminário. Por influência da família mesmo, pois, naquele tempo, se dizia que era bom todo núcleo familiar ter um padre. “Então naturalmente, recaiu sobre mim”, contou o professor, revelando que, apesar de frequentar as missas e até ter sido coroinha, não tinha uma firme vocação sacerdotal.
Lucindo foi estudar no seminário de Lavrinhas, em São Paulo, onde permaneceu, em regime fechado, sem contato inclusive com familiares, entre os anos de 1941 e 1949. Das vantagens trazidas por este período, permaneceu principalmente o hábito da leitura. O professor, obviamente, não sucumbiu à missão sacerdotal. Segundo ele, além da ausência de vocação para o clero, sempre foi considerado uma pessoa rebelde, o que levava a questões existenciais de desentendimento entre os membros da congregação. Mas, chegou a assumir a igreja, em Uberlândia mesmo, junto ao Padre Antônio dos Santos na Paróquia Aparecida, durante dois anos, além de outros lugares, como Paraguaçu de Minas, Vitória do Espírito Santo e Santa Bárbara do Oeste. Quando deixou de ser padre, foi embora para São Paulo. Passou a dar aulas em colégios. Nesse período, ele já estava casado, mas apenas no civil. Portanto, teve de continuar, em São Paulo, o processo de sacerdote na diocese e na congregação, até receber a dispensa de Roma do Ministério Sacerdotal e do celibato. Casou-se, então, na Cúria em São Paulo. Como a família da esposa era toda de Uberlândia, Lucindo, então, retornou à cidade, onde foi lecionar a disciplina de História no colégio Rotary Clube e na rede estadual de ensino. Ele começou a trabalhar também no Jornal Triângulo, vendendo anúncios e escrevendo uma coluna chamada “O Quadro
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Negro”. Nesta época, na condição de colunista amigo dos repórteres, frequentava a Câmara Municipal dos Vereadores. O diretor executivo achou que ele podia fazer as anotações da Ata. Ele, então, passou a ter essa função. Coincidentemente, esse mesmo diretor que lhe deu atribuição, desapareceu durante um mês. O presidente da casa, na época, Eudécio Casassanta, convidou então Lucindo para ser o novo diretor executivo, dando início a um longo período de atuação na Câmara local.
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Lucindo tinha posições muito embasadas sobre a estrutura do Legislativo. Elogiou o tempo em que a Câmara era uma espécie de conselho municipal, não havendo salário para o vereador e, portanto, composto por pessoas respeitáveis da cidade, geralmente médicos, empresários e professores, o que dava um certo “ar de intelectualidade” ao ofício. “Não havia remuneração. Então por isso criou-se a ideia que aquele tipo de câmara era uma câmara intelectualizada, era de grandes astros, mas o que acontece é que a Democracia tem este inconveniente, quer dizer a Democracia se fundamenta na vontade popular e na representação popular; então’ a mentalidade do povo foi aos poucos mudando e no processo eleitoral surgiram também pessoas simples que não tinham estudo”, explicou. Entre os homens públicos da cidade, o professor Lucindo destacou alguns que considerava verdadeiros exemplos e dignos de admiração. “No passado, eu admiro o Renato de Freitas, que foi um homem corretíssimo, uma pessoa que deu
exemplo de política e de exercício de administração. Eu respeito muito José Espíndola, como secretário e como alguém ativo em favor da cidade, pelo que ele realizou em favor do abastecimento de água na cidade. Virgílio Galassi, durante todos os seus mandatos, demonstrou ser um homem que amava a cidade e pensava 20 anos à frente. Na Câmara Municipal, vi presidentes que deram exemplo, como Eudécio Casassanta, Antônio Jorge Neto, Dorivaldo, Aristides de Freitas. Foram pessoas justas e respeitáveis”, opinou Lucindo. Professor Lucindo faleceu em maio de 2015.
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Roberto Vieira
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Roberto Vieira
Um poeta da fotografia 62
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le nasceu no primeiro ano da década de 1930. Teve uma infância e adolescência focadas nos estudos e no trabalho. Paralelamente, alimentava o amor à arte da fotografia. Essa foi a história de Roberto Vieira, fotógrafo do século passado em Uberlândia. Da infância na primeira metade do século passado, Roberto lembrava ter morado em uma casa grande, com um quintal também muito grande, com diversos pés de manga. Era uma casa térrea, com as dependências normais. Posteriormente, a família montou uma casa de autopeças. Daí, o pai construiu um pavimento superior para abrigar a residência da família, dividindo-a com os fundos da loja.
Roberto não se lembra de ter sido uma criança que brincava muito. Mas estudava e trabalhava. “Jogava uma bola de gude, mas sem dizer que realmente eu fui de muita brincadeira, não me lembro disso. E como o meu pai não podia pegar peso, por recomendações médicas, era eu quem fazia o serviço”, relatou. Roberto lembrou também que, na porta da casa de peças do pai, no passeio, havia uma bomba de gasolina. Segundo ele, naquele tempo, a gasolina vinha em tambor. Um tambor de aço que pesava 100 quilos, mais 100 quilos da gasolina. “Então, a gente rolava aquele tambor e punha lá. No tanque parece que cabiam 2 mil litros, 20 tambores, não é? Então, eu fiquei também com aquela responsabilidade. Sou o mais velho”, contou Vieira, justificando o seu senso de responsabilidade em relação aos irmãos que ainda eram crianças quando o pai faleceu. Na casa do pai, o fotógrafo viveu até quando se casou. “Posteriormente, em 1964, eu me mudei para a avenida Nicomedes Alves dos Santos, onde residi por 38 anos. Construí uma casa lá. Fui o terceiro ou quarto morador daquela região, hoje o bairro Lídice. Havia as mangueiras. Tinha uma parreira de uva”, descreveu o fotógrafo, Casou-se com Valderez e teve quatro filhos. Dois faleceram. O primeiro emprego de Roberto foi aos 10 anos de idade. Trabalhou no armazém de seu tio, Manoel Morais. Aos 11 anos, foi
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para o posto, onde trabalhava com o pai. De lá, acompanhou o pai para a casa de peças. O pai faleceu em 1950, com 44 anos. Ele continuou na loja de peças, até optar definitivamente pela fotografia. Das lembranças que Vieira trouxe como profissional, surgiram várias histórias sobre famílias e empresas locais. Entre elas, destacou os serviços que prestava à empresa CTBC, atual Algar Telecom, e sua amizade íntima e especial com dois integrantes da família Garcia, Walter e Alexandrino.
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O trem da Mogiana era outra boa recordação que ele trazia dos velhos tempos. “O trem de primeira classe era bem confortável. Lembro dos bancos com vime. Os de segunda eram madeira pura. E as cabines, como a gente chamava, eram duas camas, uma embaixo, a outra em cima, tipo beliche. E havia o carro-restaurante, começava a funcionar em Uberaba e parava em Campinas. A única coisa preocupante era queimar a roupa. Viajávamos muito com o chamado guarda-pó (jaleco). Porque você punha o braço na janela, vinha a brasa da Maria-Fumaça e te queimava a roupa”, relatou o fotógrafo. Roberto Vieira começou a lidar com a fotografia por volta de 14 anos. No tempo de sobra, dedicava-se aos esportes.. Anos depois, acabou comprando uma loja de fotografia, de um primo que não entendia nada do ramo. Então, todo mundo di-
zia: “Você mexia com automóvel, vai mexer com fotografia? O que você entende disso?”. Roberto trabalhava com isso há 10 anos. Já tinha um laboratório amador junto à casa de peças, era um hobby. “Eu frequentei as casas de dois grandes fotógrafos de Uberlândia, o Naghettini e o Cardoso. Estava sempre por ali. Fui até o extremo, eu construí o meu primeiro ampliador. Construí a minha caixa de luz, caixa de segurança. Construí minha copiadeira. Comprei uma máquina, fiz a adaptação para colocar a lâmpada, o porta-negativos, meus acessórios, tudo. E aí não parei mais”, disse o empreendedor. O nome da loja era Foto Ferrania, dado pelo primo em alusão à marca de um material fotográfico italiano. Ali, a atividade era só laboratório de revelação e venda de materiais. Roberto Vieira expandiu os serviços, montando também o estúdio, quando o levou para onde funcionava a loja de autopeças, imóvel da família. “A grande atividade que eu sempre tive foi a fotografia externa, como casamentos e aniversários.” A cidade era muito pequena. E a câmera fotográfica usada naquele tempo, de um modo geral, era Rolleiflex. “Eu fotografava cerca de 30 a 40 eventos por mês. Tinha dias em que fazia duas ou três inaugurações em Uberlândia. O Uberlândia Clube foi inaugurado no mesmo dia que o aeroporto em 1957”, contou Vieira, que também foi professor na universidade, na UFU, por 22 anos. “Me aposentei lecionando, mas não dei conta de ficar parado. Passei a fazer restauração de fotografias pelo com-
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putador. Ele foi também um dos fundadores do Lyons Clube Uberlândia Centro. Os relatos de Roberto Vieira sobre a fotografia foram quase todos poéticos, incluindo poética até mesmo na atividade de restauração, que vigorou em seus últimos anos. “Sempre tem uma história atrás de uma fotografia recuperada. É um parente que se foi, cada uma tem sua história. A história é feita de palavras e eu vou defender, de fotografias, de imagens. Então, é um trabalho ao qual reputo muita importância”, argumentou sobre a preservação da memória. 66
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O depoimento de Roberto Vieira foi registrado por ocasião do cinquentenário da CTBC (atual Algar Telecom) no final do ano de 1953. Roberto Vieira faleceu em 17 de fevereiro de 2004.
Sérgio Finzer
Sérgio Finzer
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De pioneiro da informática a colecionador de antiguidades
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érgio Antônio Delalibera Finzer, mais conhecido como Sérgio Finzer, nasceu na vizinha cidade Araguari, mas transferiu-se para Uberlândia ainda aos 7 anos. Sua primeira profissão na cidade que ele viu crescer foi aos 14 anos, em ofício que aprendeu com o pai desde os seus 10 anos, como telegrafista da famosa Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, que passava também por Uberlândia. Sérgio contou que, nesse tempo, o trem era o principal meio de transporte e a estação ferroviária tinha mais movimento do que a rodoviária local. Segundo ele, o telégrafo era operado pelos Correios via ferrovias. Ele lembrou também que até os salários eram feitos pelo “trem pagador”.
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O trem que conduzia os salários saía de Campinas, sede da companhia, e ia até Araguari. O trajeto com a carga de salários levava cerca de dez dias para chegar, pois ia parando em todas as cidades onde existia Estação Mogiana para efetuar os pagamentos dos salários, feitos em espécie, mediante a apresentação do holerite.
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Da operação de telégrafo, Sérgio Finzer deu um salto para a alta tecnologia da época. Foi um dos primeiros a trabalhar com computação em Uberlândia. Quando a IBM veio para a cidade, foi um dos 20 selecionados para atuar no Centro de Processamento de Dados que a empresa montou na cidade. Isso na primeira metade da década de 1970, quando computador ainda estava bem distante de ser algo popular. Finzer contou que a capacidade destes equipamentos, embora surpreendente para os padrões daquele tempo, hoje seria considerada insignificante. “Pra se ter uma ideia, a primeira máquina que chegou era uma 360, cuja memória era de 126 K, depois passou para 256, ou seja ¼ de mega era a capacidade da memória principal”, lembrou Sérgio, ressaltando ainda a grande área que o equipamento ocupava. Segundo ele, o sistema 360 ocupava quase todo um andar. Lembrou ainda que não existiam discos, mas fitas. “Cada unidade de fita tinha cerca de 2m de altura e mais de 1m de largura. Com seis a oito unidades destas, o funcionário parecia até em um parque de diversões”, brincou Sérgio.
Como era um setor novo, havia certo rigor na apresentação das pessoas que trabalhavam na área. Na IBM, por exemplo, como relatou Finzer, não era permitido o uso de calças jeans e a empresa prezava muito pelo modo de vestir de seus funcionários, quase todos também envaidecidos pelo diferencial da profissão. Depois de toda essa experiência com as tecnologias de comunicação, Sérgio Finzer alimentou um hábito no extremo oposto da atividade, hábito este que o perseguia desde criança: o colecionismo de antiguidades. “Não sei de quem herdei isso. Eu era um ‘juntador’. Gostava de guardar tudo”, contou. Um hábito que ele passou a cultivar profissionalmente mesmo como empresário de informática, sendo proprietário da empresa Real Time (de artigos para informática). Ele confessou que na loja a maioria dos cômodos era para antiguidade. De 10, apenas quatro estavam destinados à tecnologia. Como essa atividade chamou a atenção do mercado, sendo inclusive convidado a montar loja no shopping da cidade, ele deixou a informática e passou a dedicar-se exclusivamente às antiguidades. Entre as preciosidades históricas que já apareceram para ele, Finzer destacou um bandolim de 1825 e até mesmo peças da época de Cristo, como pregos e luminárias de óleo, toca fio (lançado antes dos conhecidos toca-fitas), livros do século 17 e outros objetos raros.
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O colecionador enfatizava que embora existisse literatura de referência para atestar a originalidade das peças, o que valia mesmo era a vivência na área e o “olhômetro”. “Convivendo diariamente com isso, você passa a identificar as peças e a diferenciar o que é bom, o que tem restauro e o que não tem”, afirmou.
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Segundo Finzer, o interesse pelas antiguidades acaba levando as pessoas, a partir da aquisição das peças, a novos círculos de amigos. Ele contou que, entre os consumidores de antiguidades, a proporção de homens e mulheres é igual, mesmo acreditando que as mulheres têm mais potencial de compra. Supreendentemente, mencionou o grande interesse de muita gente jovem, que gosta das peças e desperta a curiosidade sobre elas. Sérgio Finzer dizia que o retorno da atividade era mais de satisfação pessoal do que financeiro. “Vivo do antiquário. Dá pra viver. Está bom. Entro na loja feliz. E saio feliz. Eu gosto do que eu faço”, disse ele. Casou-se com Carmen Maria Tavares, com quem teve os filhos Lia, Ivan e Lígia e o neto Lucas. Sérgio Finzer faleceu dia 7 de setembro de 2010, aos 62 anos de idade.
Sérgio Martinelli
O homem do “Correio de Uberlândia”
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oi em uma quermesse que Sérgio Borelli Martinelli encontrou o seu destino como jornalista. As portas da rádio se abriram para ele, por uma feliz coincidência, quando ele tinha apenas 16 anos. Apresentador oficial da quermesse em sua cidade de origem, Ribeirão Preto, Sérgio não sabia que o dono da rádio, que morava em frente à igreja, estava presente ao evento. Impressionado com o desempenho do garoto, o empresário o chamou e disse que ele iria trabalhar na rádio e deveria começar no dia seguinte, às 8 horas. E nem sequer deu espaço para a surpresa do adolescente nem para o seu alerta de inexperiência, afirmando que só sabia falar no autofalante, ao qual apenas relutou: “é a mesma coisa que você está fazendo aqui”.
Sérgio Martinelli
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Na rádio, Martinelli permaneceu por 10 anos. Para complementar o salário, ele passou a escrever para os jornais da cidade paulista. Além dessa jornada dupla, ele também foi revendedor de pneus para um tio, gerente da Ford. E se deu bem o garoto. ”Fui o maior vendedor da América Latina. Como eu vendia pneus? Eu gravava o spot, um jingle e levava para anunciar na rádio. Eu vendi tanto pneu, que, com pouco tempo de casa, a empresa concorrente me tirou de lá” , contou Sérgio.
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Daí, ele recebeu uma proposta de ir para Uberaba. Lá, viu os negócios prejudicados por outro vendedor, filho do dono, e desistiu, transferindo-se para Uberlândia. Isso em 1962. Foi quando encontrou Moacir Lopes de Carvalho, proprietário da Rádio Educadora. Foi trabalhar com ele na rádio e lá ficou até 1965. Junto a Moacir, Martinelli promoveu a reestruturação da rádio. Com uma equipe vigorosa, composta por Luiz Cesar e José Roberto, ambos de Ribeirão Preto, trouxe de volta o Zé do Bode, que estava na Difusora e o Alfredinho Radialista, que já era da casa, e conseguiu, em três meses, ganhar todo o Ibope. “Para alavancar ainda mais o sucesso, foi contratado um grande empresário do ramo publicitário de São Paulo. E a rádio triplicou o seu faturamento, com aquele prestígio que ela já tinha como queridinha da cidade. A Rádio Educadora sempre foi uma grande emissora”, disse. Segundo Martinelli, a rádio representava tudo naquela época.
“era formadora de opinião. Qualquer locutor tinha prestígio, era querido. Os auditórios ficavam lotados nos programas ao vivo. O prestígio era imenso”, relatou. E isso resultante de muito trabalho e dedicação. Ele contou, por exemplo, que a rádio transmitia até procissão da Sexta-feira Santa. “Tínhamos monitores volantes, que pesavam uns três quilos cada um. Depois de transmitirmos a ‘Madalena’ cantando, um deles acompanhava a procissão. O povo chegou a bater palmas”, contou o radialista. Dos tempos de rádio, ele lembrou muito de Ribeirão, onde trabalhou em uma equipe de 140 pessoas. “O Bueno fez um prédio, três andares só pra rádio. Contratou orquestras e humoristas como Rogério Cardoso, Silvério Neto, Silveira Lima. A gente fazia programas que nos deixavam muito felizes, de tão lindo que eram. O elenco da rádio era tão bom que a agência Lintas, que tinha como mídias o Walter Clark e o Boni, com 22 anos de idade cada um, passou a gravar todos os programas da Gessy Lever em Ribeirão Preto. O casting da rádio era fantástico. A Terezinha, do Luiz Fernando, era uma das principais atrizes. Cantava bem. Ela tinha um programa que chamava “Pezinho de Fada”, que recebia mais de mil cartas por semana”, relatou o jornalista. “ O jornalista também falou sobre sua atuação no jornalismo impresso de Uberlândia. Era um tempo em que produzir um jor-
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nal não era uma tarefa fácil. Entre linotipos e clichês, Martinelli viveu uma época em que o jornal era um produto manufaturado. “A chapa pesava 65 quilos. Tudo era feito manualmente, dos caracteres à paginação e à impressão”, explicou Sérgio Martinelli. Ele contou também que o empresariado local apoiava bastante o setor. “Nessa época, tínhamos contatos. Os milionários de hoje eram pessoas simples. Para conversar com Alair Martins, por exemplo, às vezes sentávamos em um saco de batatas, para conversarmos, porque não tinha lugar mesmo. O Dilson tinha um escritório bacana, mas pequeno, aconchegante. Hoje vivem, com merecimento, outra realidade”, contou Sérgio. 74
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Sobre o jornal Correio de Uberlândia, Sérgio Martinelli, que esteve muito tempo à frente da publicação, dizia que “no Correio você paga anúncio, notícia não”. Assim foi a sua linha de direção. Na época, ele próprio era encarregado de criar os anúncios, com o amigo Luiz Fernando Quirino, que também veio de Ribeirão Preto compor a equipe de Martinelli. “Ele chegou aqui em 1971, no dia 31 de agosto. Avisaram para ele: ‘olha, o Marti tá lá. É pra lá que você tem de ir’. E ele veio. E foi muito feliz aqui”, relatou. Martinelli e Quirino formavam uma boa dupla. E foram os colunistas mais lidos no Correio de Uberlândia. Quirino teve as crônicas e as colunas “O Infernando” e “Mídia” e Martinelli teve a “Mini News”. Nós éramos em três na redação, eu, o Luiz
Fernando e o José Expedito no esporte. O jornalista contou que, no âmbito político, relação sempre crítica, o jornal sempre teve muito respeito. “Todos os prefeitos ajudaram muito o jornal. Por que o jornal era bem-feito. Como jornal linotipado e impressão em máquina, era muito bem-feito. Martinelli quando dirigia o jornal dava noticia de tudo que acontecia na cidade e sua coluna “Mini-News” era lida por todos. Nessa época, além de redigir, vender e criar anúncios, também cuidava da revisão e venda de assinaturas. Atuou na assessoria de imprensa de diversas empresas locais e na Camara Municipal. Era muito requisitado como cerimonialista pela sua fluência verbal, voz forte e empostada, que eram suas marcas registradas. Sérgio Martinelli faleceu em 22 de fevereiro de 2013.
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Valdir Melgaço
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Valdir Melgaço
O jornalista que virou político 76
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aldir Melgaço foi uma dessas personagens locais que deram sua contribuição ao desenvolvimento da cidade e imprimiram o nome nas páginas da história. Ele chegou por aqui no início da década de 1950. Formado em Direito, tinha sido nomeado promotor de Justiça da cidade de Pompeu, mas não se identificou com o local. Pediu um empréstimo ao pai para se deslocar para Uberlândia, onde começaria a advogar. Em 1951, não conhecia ninguém na cidade e resolveu procurar o prefeito Tubal Vilela e pedir ajuda. “Falei com o prefeito. Fui para o Fórum, onde o juiz era Alair Santos, pedi que me nomeasse defensor público dos pobres, porque, naquela época, não tinha defensoria nomeada pelo governo, quem nomeava o
advogado para defender o pobre era o próprio juiz. Então, entrei para o júri. O júri de Uberlândia era dominado e eu era o defensor dos pobres. Por causa disso, me tornei vereador, logo no ano seguinte à minha chegada”, relatou Melgaço. Naquela época, o cargo de vereador não era remunerado. No segundo mandato de Valdir Melgaço, já existia a remuneração. Entre os colegas políticos dos quais Valdir Melgaço lembrava estavam nomes como Juquita, Raul Pereira de Resende, Homero Santos, com o qual dividiu um escritório, Cleto Vieira Gonçalves, Edson de Melo, com quem também dividiu escritório. Depois de algum tempo, Melgaço saiu candidato a deputado, assim como Homero. Foram eleitos. Valdir Melgaço lembra que quando chegou a Uberlândia, a cidade tinha 60.000 habitantes. Foi ele, como vereador, que sugeriu o nome de Tubal Vilela à praça central da cidade. O diretor do seu partido, UDN, era também um dos proprietários do jornal Correio de Uberlândia. Valdir foi convidado a ser o coordenador do jornal. Uma vez na função, foi adquirindo as ações de todos os sócios. Permaneceu como vereador e foi diretor do Correio por 15 anos. Da redação, ele destacou o fato de ter trabalhado com jornalistas como Marçal Costa e a redatora-chefe Ruth Assis. O concorrente na época era o jornal O Triângulo, de propriedade do Renato de Freitas, além de concorrente, adversário político.
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Segundo Melgaço, algumas edições importantes do jornal Correio de Uberlândia naquela época foram a cobertura do caso do João Relojoeiro e a morte de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. Por conta disso, alguns adeptos do partido político PTB manifestaram a intenção de quebrar o jornal. Foram recebidos com o revólver na mão. Isso pela relação que se fazia do jornal com a UDN, sendo a UDN opositora de Getúlio.
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Valdir Melgaço casou-se em Uberlândia com Eleuza Garcia. Ele já era vereador e pode se dizer que o casamento ajudou-o a alavancar seu segundo mandato. O sogro, Alexandrino Garcia, era dono dos Irmãos Garcia e, portanto, figura de grande respeitabilidade e prestígio em Uberlândia. Muito em função disso, teve expressiva votação nos pleitos que disputou. Como deputado estadual, Melgaço foi vice-presidente da Assembleia. “Fui vice-presidente da Assembleia e vice-líder da Arena; o líder da Arena na época era o governador Aureliano Chaves e eu era vice. Fui também presidente da Comissão de Justiça. Exerci o mandato por três legislaturas, disputei a última eleição em 1975, como candidato a deputado federal. Perdi a eleição por 700 votos, o último eleito foi o Ibrahim Abi-Ackel e eu fui o primeiro suplente. Como não tinha jeito de convocar ninguém naquela época, não entrei. Abandonei a vida pública.. Valdir foi trabalhar em empresas do Grupo Algar, na época conhecido como ABC. Depois, transferiu-se para Belo Horizonte, onde
trabalhou por muitos anos na Italtel, no Táxi-Aéreo ABC e lá permaneceu o resto de sua vida. Na capital mineira, como deputado aposentado, mantinha também um escritório, onde prestava serviços. Nas proximidades de Belo Horizonte, manteve um fazenda, onde criava gado Nelore. Era para onde ia, como trabalho e como lazer, todos os fins de semana ao lado da esposa Eleusa. Valdir se orgulhava da família que constituiu. Sentia-se realizado em presenciar as 3 filhas bem-sucedidas, pessoal e profissionalmente. Sua esposa também atuava no ramo de turismo na capital mineira. “Ela manda no Valdir, domina, domina totalmente”, disse Melgaço. Valdir Melgaço faleceu em 31 de julho de 2012, aos 84 anos
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Vovô Charqueada
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Vovô Charqueada
O escravo que gostava de Congada
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té há bem poucos anos, era possível encontrar em Uberlândia alguém que tivesse vivido nos tempos da escravidão. Assim foi com o Sr. Geraldo Miguel, Vovô Charqueada, emblemática figura do bairro Patrimônio, que guardava, em sua memória, a riqueza de histórias inimagináveis. Ex-escravo, pai de 43 filhos, avô de 104 netos, bisavô de 51 bisnetos e tataravô de 19 tataranetos. Charqueada nasceu em Cruzeiro da Fortaleza, mudou-se para Ibiá e, depois, quando se casou, veio para Uberlândia. Na chegada, o seu primeiro emprego foi no Frigorífico Omega, devido à experiência que adquirira em Ibiá.
Mesmo aos 105 anos, quando concedeu a entrevista, o ex-escravo mostrava grande lucidez no resgate de sua memória, inclusive dos tempos de escravidão ao lado dos pais e dos avós. “Não ganhava nada e trabalhava até escurecer. Roupa tudo mal arrumada de algodão, pé no chão, não tinha calçado. Na senzala, a gente dormia amontoado no chão, igual porco, cachorro ou galinha. Mas Deus deu força, o negro queria ajudar o branco como ajudava, trabalhava de graça, não ganhava dinheiro, comida era o pé de porco, o feijão preto, a farinha de mandioca. Não tinha outra comida melhor pra nós, a não ser a pele do porco, a suã. O sinhô e a sinhazinha até nos davam comida, aquelas panelonas de barro, não tinha ferro não, cozinhava as carnes com feijão, abóbora, tudo misturado. Daí, veio a feijoada, que todo mundo hoje gosta. No tempo do sinhozinho e da sinhá, eles achavam que aquilo era o pior. E era o melhor”, lembrou Charqueada. Esse tempo de escravidão, Charqueada viveu em Ibiá, onde foi criado. Ele contou que era comum, na senzala, as cobras passarem por eles, nos pés, no chão. “Como é que não picava? Até hoje não sei dizer. Aqueles rolos de cobra e Deus nos abençoava. A gente rezava. Tem que rezar. Hoje, o povo não quer rezar, não quer ir na Igreja. Mas vai ao futebol. Tem de ir na Igreja, seja que religião for. Ele considerava que foi um bom pai, apesar do grande número
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de filhos. “Sou um bom pai, porque criar um amontoado de gente desse não é brinquedo. Dei educação, tem uns errados, mas Deus já abençoou, porque eu falo com Deus mesmo, não brinco não, eu falo mesmo. Estou aqui nesta chácara, o homem é muito bom, a patroa é muito boa, mas eu quero um trem para eu ficar livre, pra eu criar uns bichinhos e dar para os meus filhos comer, dar para qualquer um, ovos, comida, leitão essas coisas. Eu não faço conta não, eu quero que nosso país tenha fartura. E o povo só quer plantar cana, já viu só que coisa engraçada, a cana tem que plantar, mas tem que plantar arroz, milho, feijão, abóbora, cenoura, beterraba. 82
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Mesmo liberto, Charqueada demonstrava muita disposição ao trabalho. “Uai, eu tô aqui preparado, já arrumei minhas criações, a menina tá aqui, o repórter no meio dos cachorros, galinha, a cerca de taboca de bambu. Aí, ó, para quem vê quem é que faz isso aí. Não tinha arame no meu tempo não, o mundo era aberto. Cada um tinha sua liberdade. A gente tinha os bois. Eu andava com a varinha de ferrão chamando os bois, moendo a cana, fazendo rapadura, melado. Hoje é de ferro, tudo arrumadinho, liga lá e fica olhando a garapa sair... Agora se aproveita até o bagaço aproveita. Agora, nós temos o papelão, minha menina cata papelão, eu cato papelão, eu capino roça, eu faço cerca de arame, eu tiro leite, eu colho algodão, eu corto cana, café. A riqueza é nossa. Agora, a maioria dos brancos está vendo que os negros têm valor”, falou Charqueada.
Sobre as mudanças nas relações entre brancos e negros, Charqueada quase não acredita no tamanho da transformação. “Antes, não podia a gente sentar aqui não, conversar com essa liberdade numa cadeira. Era uma cabana com trilhos e com pau atravessado, a cama era de forquilha, agora vai lá ver minha cama que trem bacana, tudo arrumadinho. Eu deito e durmo. Dos remotos tempos de Uberlândia, Charqueada mencionou as famílias que lhe eram conhecidas. “O povo de Uberlândia, os Carrijo, Messias Pedreiro, João Naves e a Usina Ribeiro, Frigorífico Omega, Caiapó, Zeca Tomaz. Ih, Nossa Senhora, os matadores de porco eu conheço tudo, a graxeira, a gente passava na pinguela, não tinha ponte no Martins, você tinha que passar na pinguela dentro d’água, como os carros de boi passavam vindos de Goiás, levavam sal, querosene e arame, não tinha luz elétrica não”, recordou ele. Charqueada é de uma época em que a cidade era conhecida como Sertão da Farinha Podre, depois chamada de São Pedro de Uberabinha até tornar-se Uberlândia. Aos 105 anos, ele considerava-se saudável e pronto para viver quantos mais fossem necessários. Contentava com pouco e se considerava um sujeito rico. “Sou folgado, rico, ó sou ricaço e ó o que quero mais, só o tempo de tornar milionário, né? Pra saber como consigo ter saúde, tem de falar com Deus. Comida, ninguém quer comer toucinho mais. Eu fui criado com toucinho e rapadura, gente. Ah, dá colesterol? Uai, então era já para eu estar debaixo do
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chão, com esta idade deste jeito aí.” Ele nunca temeu a morte, apesar de agarrado à vida. Dizia que sempre falava com Deus e pedia mais tempo. Sua mãe morreu aos 120 anos, uma tia aos 129.
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Quando questionado sobre o acelerado progresso da cidade em relação à sua pacata vida passada, Charqueada não titubeou em dizer o que deve ser considerado prioridade. “Tá um progresso assim, esfarinhado, sem a gente, onde é que está o final. Nós, seres humanos temos que amar uns aos outros. Se não for para amar, dá um jeito. Ninguém precisa roubar, ninguém precisa matar, ninguém precisa brigar. Nunca pus arma na cintura, nunca desejei o que é dos outros, as minhas galinhas botam aqui, tem as do moço que mora aqui. De uma, o ovo é azul, da minha galinha é tudo roxo, vermelhinho”, explicou. Mesmo falando muito, Charqueada não se cansava, tinha muita energia. Inclusive para ser namorador. Se dizia apaixonado pela esposa de 77 anos e ele aos 105. “A gente casava dez vezes. No meu tempo, não tinha casamento. Se a moça não prestasse ou o moço não prestasse, podia ir embora para a sua casa”, relatou, galanteador, se dizendo também muito festeiro. “Uai, eu sou músico, eu gosto muito de pagode, as cordas eram feitas de folha de banana de coqueiro, aquele pagodão, a mesa cheinha de biscoito, bolo, pão de queijo...”
Charqueada lembrou dos tempos em que a comunicação não era tão instantânea, quando as mensagens iam a cavalo e demoravam dias para chegar ao destinatário, quando não tinha tantos remédios e tantas farmácias e os melhores medicamentos eram “arrancados de raízes do mato”. A sua tranquilidade, memória afetiva e preocupação com o próximo, ele afirma ter herdado da mãe. “Eu amo o povo. Minha mãe mandou olhar uns aos outros, quer dizer que, se você adoecer aqui, eu te coloco na cacunda e levo de carro, a pé, como for. Se não tiver jeito, corro lá na horta, eu sei o ramo que dá um chá, a pessoa fica boa e logo me agradece.” Ele lembrou que andava de a pé com um saco atrelado pra ir trabalhar, pra ganhar o pão de cada dia, 15 dias para trazer dinheiro e alimento para as crianças. “Agora, não anda a pé mais, nem de cavalo, você custa a ver um cavaleiro, carro de boi não tem mais. A gente faz e Deus dá força para fazer. Os meus meninos estavam na bagunça, bebendo aquela pingaiada, aquela coiseira, falei para Deus me mostrar um lugar. E ele mostrou”, contou Charqueada. Nos seus 105 anos, Charqueada considerava apenas um o momento mais difícil de sua vida, quando se sentiu desanimado. “Foi quando eu perdi minha mãe. Porque minha mãe ficou, o pai não deu certo, nos soltou no mundo, nós quatro. Dos quatro, resta eu. Esse um tem que fazer pelos que deixaram saudade.”
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Da alegria da vida, ele se encantava e celebrava a evolução dos tempos. “Uai, o momento mais alegre é de eu ver as coisas aí, telefone, carro, avião, até máquina de tirar leite, liga lá no peito da vaca e tira o leite.”
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Charqueada, no alto dos seus 105 anos, se dizia um homem feliz. Dizia fechar os olhos e olhar o tempo, “avoava” para Romaria, e lembrava da sopa e do chá de canela, que o ajudava a não ficar doente. Lembra dos governantes e de suas promessas, de Getúlio Vargas, Juscelino Kubistcheck, até os contemporâneos. “Cadê meu voto que eu dei para o senhor? O senhor não me deu uma resposta, lá vou eu de novo”, revelava-se um indignado senhor. “Não somos velhos não, nós somos usados onde é que já se viu um velho com 105 anos, toco marreta de 15kg no braço. Quero que todo mundo veja a cerca de bambu, gastei uma semana para fazer isso, só eu e Deus, cortar o bambu é perigoso, cobra, marimbondo, tudo, mas Deus tá comigo”, disse. Charqueada também era fascinado pela Congada que ajudou a manter viva em Uberlândia e na região. Geraldo Miguel, o Vovô Charqueada faleceu em 19 de agosto de 2007 aos 106 anos.
“Uberlândia de Ontem e Sempre” é uma iniciativa dedicada a resgatar, registrar e divulgar a memória e a história de nossa cidade. Começou em maio de 2005 com um programa de TV, que atualmente é exibido aos domingos, às 10h30, pela TV Paranaíba, Rede Record. Em agosto de 2011, foi lançada sua versão impressa, o Almanaque “Uberlândia de Ontem e Sempre”, com periodicidade semestral. A partir de 2016, acrescentou o Museu Virtual “Uberlândia de Ontem e Sempre”, plataforma digital que contém os acervos dos programas e outros preservados pela produtora Close Comunicação. Em 2018, passou também a produzir uma versão impressa semestral focada na memória empresarial de Uberlândia. O site www.uberlandiadeontemesempre.com.br disponibiliza o acesso a todos esses conteúdos.