O Rebelde dos Pampas - 3

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Jornal do Comércio - Porto Alegre

O caminho de Os ratos

Cais do Porto Prefeitura Rio Guaíba

Voluntários da Pátria Mercado Público

Centro

Rua da Praia

Bairro Independência

Rua Dr. Flores

7

Impressões sobre Dyonélio

Rua Vigário José Inácio

Rua Andrade Neves

Paulo Scott (poeta, escritor, autor de O ano em que vivi de literatura)

Confira no mapa os percursos pelos quais Naziazeno Barbosa move-se no circuito de uma Porto Alegre que recémurbanizava-se, em meados dos anos 1930, para arranjar os 53 mil réis que deve a seu fornecedor de leite.

Edição de imagem de Juliano Bruni sobre arte de Giovanna Tonello

Li Os Ratos quando tinha 15 anos. A tragédia do protagonista grudou em mim, a narrativa inteira, a linguagem; a mitologia em torno do autor também. Pouca coisa me impressionava naquele início de anos mil novecentos e oitenta, pouca coisa aderia. A densidade do livro, a angústia nele retratada, marcou minha maneira de ler, de buscar o que ler e, mais tarde, de escrever ficção. Durante muito tempo eu quis ter uma camiseta, do tipo daquelas com estampas das bandas Replicantes, Ratos de Porão, Detrito Federal, Inocentes, com o rosto daquele gaúcho, que não era apenas romancista, era poeta, médico psicanalista, militante do partido comunista. Nunca me agilizei para comprar uma Hering branca e imprimir a estampa. Acho que nunca disse publicamente o quanto aquele livro foi importante, o quanto o que escrevo até hoje dialoga com seu autor – imensa figura que sempre estará comigo.

Bairro Partenon

1 Após a contenda com o leiteiro, Naziazeno, funcionário público do baixo escalão, toma o bonde do local onde morava – nas imediações do “arrabalde” (onde hoje fica o bairro Partenon) – para o Centro da cidade. Salta no fim da linha, na Praça XV, que, naqueles dias, era apenas recente edificação. É neste ponto da trama que começa sua saga “láctea”.

gravuras”, narra Dyonélio.

2 Vagando pelo Centro, Naziazeno passa inúmeras vezes pelo Mercado Público. Em dado momento, espia pelo portão central: “Abre-se-lhe, lá dentro, uma perspectiva de rua oriental, cheia de bazares, miragem remota de certas

4 Desorientado, Naziazeno perambula pelas bandas do Cais do Porto para fazer hora. A área, então em obras à época, ainda possuía acesso livre.

3 Afoito, Naziazeno confere as horas no relógio da prefeitura várias vezes. “Esse relógio, lá no alto, na torre, parece-lhe uma cara redonda e impassível”. O relógio, construído em 1901, para demarcar a sede da Intendência de Porto Alegre, hoje prefeitura municipal, segue, até hoje, marcando as horas para os transeuntes.

5 Na parte central do enredo,

a antiga Rua da Praia abrolha como cenário da odisseia financeira empreendida por Naziazeno Barbosa. Nos arredores (Rua da Ladeira, João Manoel e Bento Martins), desesperado, com o tempo esvaindo-se para arrumar os 53 mil réis, Naziazeno sai à caça de conhecidos e agiotas. Num entra e sai de cafés, arrisca a sorte em roletas. E, sem sucesso, vai à repartição na qual trabalha chorar um adiantamento, que não consegue. 6 Na Andrade Neves, antiga “Rua Nova”, Naziazeno encontra-se com um agiota, mas o negócio vê-se malfadado. Foi nesta mesma

rua que, durante anos, o Dr. Dyonélio Machado manteve seu consultório de psiquiatria.

Altair Martins (escritor, coordena na Pucrs o grupo de estudos “Leituras Críticas da Literatura – Relendo Dyonélio Machado”)

7 Sem sorte, Naziazeno dirige-se ao bairro Independência, um dos mais nobres da capital gaúcha, a fim de cobrar uma dívida para um amigo, o qual lhe emprestaria o capital para saldar o débito com o seu leiteiro. A ida é em vão.

Do que é feito o romance Fada? Em primeiro lugar, de um escritor absolutamente diferente daquele a quem Os ratos construíram autoria. Fada é, antes de tudo, uma narrativa de fantasia: basta que olhemos as inúmeras citações e alusões, tanto à literatura, quanto à matéria mitológica (desde a Antiguidade, uma predileção de Dyonélio, percorrendo os nórdicos e a Idade Média, focando no ciclo das novelas de cavalaria arturianas). Daí o aspecto claro de estarmos lendo uma aventura infantojuvenil, apesar de toda a carga erudita que os mitos trazem às conversas dos personagens D’Artagnan, Lucas e o Escritor Maldito. No fundo, lemos uma narrativa de aventura, com o mistério necessário a ser desvelado.

8, 9 e 10 Antes de conseguir os extenuantes 53 mil réis, Naziazeno percorre (na tresloucada tentativa de empenhar um anel) inúmeras vezes as atuais ruas Voluntários da Pátria, Doutor Flores, Vigário José Inácio e Otávio Rocha.

José Francisco Botelho (escritor, tradutor e jornalista. É autor de Cavalos de Cronos)

Trecho inédito de A fada Fada é a obra derradeira de Dyonélio Machado. O enredo centra-se numa história de amor entre jovens ambientada nas bandas do Cerro do Jarau, nas proximidades de Quaraí e, de outro flanco, num panorama de cunho urbano-universitário. “A construção do romance vale-se do recurso ‘meta-ficcional’”, avisa Camilo Raabe. Ele explica: “Na história, o enamorado D’Artagnan, usa de escrita para transpor-

ta à paisagem dos Pampas a figura lendária de Parsifal (cavaleiro da Távola Redonda, que, segundo a lenda, teria avistado, na corte do Rei Arthur, o Santo Graal)”. Uma das tônicas de Fada, acrescenta Raabe, é a inserção de um dos alteregos (existiam outros) de Dyonélio, o personagem “Dionísios Madureira”. A seguir, trecho inédito do livro que será publicado pela editora Zouk:

– Topo! – É a palavra relâmpago do advogado. Lucas, que acompanhou o amigo ao escritório do profissional, tem a sua piada, dirigida a D’Artagnan e antevendo o que pode sair daí: – Nicanor é de briga... Nicanor porém defende-se: não merece tamanho elogio... – Sou humano, no meio de tanta injustiça. Mesmo de

tanta canalhice! Lucas sorri. – És um subversivo... – Periga! É o que está acontecendo com toda a classe culta. Um horror o que vive, nasce (e não vive) na vigência de um Estado arbitrário! Apelar para um estado de direito é votar-se a uma ilusão, desconhecida da atual coletividade, que só arrostou a invasão dos régulos.

A literatura de Dyonélio Machado sempre me transmitiu uma sensação intensa de estranheza e familiaridade. O Louco do Cati é um de meus romances favoritos: nele, reencontro-me com um secreto veio literário que muito me interessa, o do “pampa noir”, representado também pelos contos de Alcides Maya. Na obra de Dyonélio, os campos de Livramento não são paragem idílica, mas um limbo de fantasmagorias. E sempre me encantou que Dyonélio pudesse saltar desses rincões para o mundo da antiguidade clássica: me refiro à trilogia formada por Deuses econômicos, O sol subterrâneo e Prodígios, cuja ação se passa na Grécia e na Roma dos tempos de Nero. Absurdamente esquecidas, essas obras constituem uma das criações mais originais e peculiares da literatura brasileira.


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