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15, 16 e 17 de março de 2019
reportagem cultural
Reedições e raridades a caminho
ACERVO DA FAMÍLIA/DIVULGAÇÃO
Uma figura peculiar Antonio Hohlfeldt, que viveu proximamente a Dyonélio (e também de escritores como Cyro Martins), diz que, ao longo de anos, teve a disciplina de ler toda a obra de Dyonélio Machado – “até as coisas que ele não tinha coragem de publicar”, sublinha o professor. Para Hohlfeldt, Dyonélio, por muitas razões, é uma figura muito peculiar. Em primeiro lugar, pontua, porque somava à sua literatura o pendor de médico psiquiatra e, sobretudo, o espírito altruísta. Os contos reunidos em Um pobre homem, exemplifica ele, possuem um teor eminentemente psicanalítico. “E, por outro lado, também havia o escritor político-partidário, que precisou pagar suas convicções expiando dois anos de encarceramento. E que, depois disso, optou por trancar-se em seu apartamento. Acuado, passou a considerar-se um perseguido político. De certa forma, Dyonélio assumiu a figura do personagem sem nome de O louco do Cati”, relata Hohlfeldt. A arquiteta Andrea Soler Machado, neta de Dyonélio, conta que só ao longo da vida foi compreendendo a dor e a delícia dessa genealogia: “Escritor maldito, político importante, presidiário comunista, maldito, amado, odiado e sempre verdadeiro”. Ela segreda que a amizade entre os dois, antes de tudo, surgiu na vivência – e não na literatura. “Meu avô [Dyonélio] foi o primeiro a ver meus desenhos, a me oferecer um copo de vinho, a me indicar os clássicos da literatura e, mesmo hesitante, a me emprestar um livro de orientação sexual”, ela relembra afetuosamente.
Dyonélio Machado chegou a ficar preso por dois anos devido a suas convicções políticas
Cristiano Bastos
Os ratos: marco literário gaúcho Indiscutivelmente, Dyonélio Machado é o grande escritor gaúcho – quiçá brasileiro – que dominou com maestria a difícil habilidade de contar uma história passada em 24 horas do mesmo modo como, por exemplo, o irlandês James Joyce cerziu Ulisses e a britânica Virginia Woolf realizou Mrs Dalloway. As 24 horas de Os ratos – romance mentalmente gestado ao longo de 10 anos e redigido no frêmito de 20 corridas noites, num sistema “torrente de pensamentos” –, são ficcionalmente cronometradas à perfeição. “Se fosse ‘lá fora’”, critica Antonio Hohlfeldt, “Dyonélio já estaria no panteão dos maiores escritores que um dia existiram”. A despeito das comparações que teciam a ele, costuEDITORA SIGLA VIVA/DIVULGAÇÃO/JC
Nem só de perseguição, proscrição, indevidos reconhecimentos e tortuosas vias a estrada literária de Dyonélio Machado é eivada. Em 2019, ano que marca as quatro décadas de seu reconhecimento regional e nacional, estão a caminho regalos que abrilhantarão, ainda mais, o conjunto de sua obra. Uma das boas-novas é a reedição de Os ratos (que já passou da trigésima impressão) pela editora brasiliense SiglaViva. O clássico dyoneliano virá embalado por “extras” resgatados do fundo de empoeirados baús. Num dos textos que acompanharão o livro, uma raridade: Erico Verissimo (que tinha, na opinião de Dyonélio, “termômetro” para seus escritos) entrevista a si mesmo sobre o amigo. Em 2017, a SiglaViva também lançou dois outros livros que, até então, jaziam esquecidos: o romance Proscritos, parido em 1964 (em pleno estopim do golpe militar), e Um pobre homem, em comemoração aos 90 anos de sua publicação, contendo robusta fortuna crítica. Ambos os relançamentos tiveram expressiva contribuição de Camilo Mattar Raabe, pesquisador e doutorando em Teoria da Literatura pela Pucrs, um dos maiores especialistas na obra de Dyonélio no Rio Grande do Sul. Radicado em Brasília e confesso “fissurado” pela literatura de Dyonélio, o carioca Renato Nunes, editor da SiglaViva, conta que, há 10 anos, vem trabalhando numa adaptação cinematográfica de Os ratos. O filme será rodado na capital gaúcha (e parcialmente em Brasília) e, atualmente, encontra-se em pré-produção. Escrito por Nunes, o roteiro será rigorosamente fiel aos caminhos zanzados pelo personagem Naziazeno em sua caça andarilha em busca dos 53 mil réis de que necessita para saldar a dívida com o leiteiro. “Será um filme de época”, adianta Nunes. Esta deverá ser a terceira adaptação cinematográfica baseada na obra do escritor. Em 2013, o diretor Jaime Lerner, juntando ficção e documentário, lançou, nos cinemas e em DVD, Dyonélio, o filme. E, em 2011, o diretor Fabiano de Souza realizou seu primeiro longa-metragem adaptando, com certas liberdades poéticas, o romance O louco do Cati, que virou o elogiado A última estrada da praia. Outra novidade do pacote, também para este ano, é o relançamento do romance Fada, publicado uma única vez, em 1982, pela editora Moderna. A edição do livro (leia um trecho com exclusividade na página ao lado) vem sendo trabalhada por Camilo Raabe. O volume terá prefácio assinado pelo jornalista, escritor e professor universitário Antonio Hohlfeldt, posfácio do escritor Altair Martins, uma contribuição em anexo do jornalista Marco Túlio de Rose (ao qual Dyonélio faz referência em Fada por conta de uma entrevista a ele concedida nos anos 1970) e, ainda, notas do escritor e tradutor José Francisco Botelho sobre as mitologias aludidas no livro. A grande “gema”, porém, será a publicação – inédita – do início de um romance começado por Dyonélio, que tinha em mente fazer uma espécie de continuação de Fada.
meiramente, sobre Joyce e Virginia, em relação a Os ratos, Dyonélio gostava de ironizar que a ideia “tomara de empréstimo”, na verdade, da obra 24 horas na vida de uma mulher, de Stefan Zweig, também de 1935. Em diversas ocasiões, Dyonélio revelou que o insight para Os ratos acometeu-lhe um dia em que a mãe fora lhe visitar e ele contara que tivera um pesadelo em que ratos roíam-lhe o dinheiro parcamente alcançado para pagar as dívidas. É quando o escritor então se isola, idealiza um conto, mas sente que não há espaço, nesse formato, para idealização do tema que pressentira. Levaria 10 anos idealizando o texto que irromperia em vinte madrugadas, sobre
um dia na vida de Naziazeno Barbosa, um cidadão comum que, certo dia, acorda com um sério problema: o leiteiro ameaça lhe cortar o fornecimento de leite caso ele não salde, na manhã seguinte, a dívida de 53 mil réis. Traduzido para o francês, italiano e espanhol, Os ratos possui, até hoje, uma entrada de mercado bastante grande. Uma explicação para o fenômeno – tendo em vista a crise atravessada pelo setor editorial nacional – é já ter sido obra cobrada no Ensino Médio e vestibulares Brasil afora. Fora que, atualmente, faz parte de provas de avaliação seriada nas universidades. Camilo Raabe classifica Os ratos como um marco da literatura brasileira – e mundial: “É (Os ratos) um livro muito complexo. E, apesar de leituras muito importantes já feitas sobre ele, ainda pouco explorado”, pondera.
Cristiano Bastos é jornalista, autor de Júpiter Maçã: A efervescente vida & obra (Plus Editora). Atualmente, prepara uma biografia sobre Nelson Gonçalves, que deve ser lançada neste ano.