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Cristiano Bastos
Ariel Fagundes
Ivan Cardoso
Rafa Rocha
noize.com.br
Retrospectivamente, Raul vinha de uma sequência de álbuns de grande sucesso popular pela major Phillips: Raul Rock Seixas (1977), Há Dez Mil Anos Atrás (1976), Novo Aeon (1975), Gita (1974) – e sua estrepitosa estreia discográfica solo: Krig-Ha, Bandolo! (1973). E não se pode esquecer: antes de tornar-se o “ator” Raul Seixas, Raulzito concebeu, ainda, um disco que, até hoje, é absolutamente vanguardista: A Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10 (1971). Detalhe: a gravação do LP (que também conta com Edy Star, Miriam Batucada e Sérgio Sampaio) deu-se em uma época difícil, após a decepção que Raul teve com seu grupo Raulzito & Os Panteras, que não deu em nada, embora tivesse gravado um disco em 1968.
Em tempos de obscurantismo, a verve desafiadora de Raulzito faz uma falta danada. Sua obra e mensagem, porém, sobreviverão até o dia em que a Terra parar. Não resta dúvida: no Brasil e no mundo, o ano de 1977 foi o mais movimentado da década de 1970. Em vários segmentos da sociedade. De largada, no dia primeiro de abril (“Dia dos Bobos”), o militar Ernesto Geisel fechava o Congresso Nacional. A Ditadura chegava no seu auge. Na música jovem mundial, por sua vez, uma banda inglesa abria as portas da percepção (e do inferno) para um bando de garotos entediados, empobrecidos e oprimidos na Inglaterra com o lançamento do álbum Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols. Surgia o “punk”, embora, esteticamente, tal “vírus” tenha sido inoculado anos antes, nos porões nova iorquinos, com bandas como New York Dolls, Ramones, The Stooges, Dead Boys e muitas outras. Anacrônica em relação às revoluções artísticas e sonoras com as quais o restante do Planeta Terra comungava, naqueles dias, a música brasileira (obliterada pela censura) – tendo passado tanto o tropicalismo, o pós-tropicalismo quanto a jovem guarda – não renovara sua esquadra de artistas. Ou seja, a geração de músicos dominantes ainda era remanescente da anterior, advinda dos anos 1960. Medalhões como Roberto Carlos, Rita Lee, Moraes Moreira, Elis Regina – e, sim, após um período longe dos holofotes, também ele: Raul Seixas. Artista que, nem é preciso dizer, desde nascença fora um “animal punk”. Se o punk não explodiu aqui (na época), pelo menos sempre tivemos o desafiador Raulzito. No ano de 1977, Raul voltava às paradas de sucesso com “Maluco Beleza”, hit propulsionado pelo “a little help” de sua nova gravadora, a WEA. De teor mais “existencialista”, a canção nada tinha de punk na acepção mais ortodoxa da palavra. Mas essa condição de “punkster” ou “outsider” – ainda que não aceitasse qualquer pecha que fosse –, no que ela tinha de mais transgressora, Raul já havia sulcado em incontáveis mensagens embutidas nos discos que concebera antes de O Dia em que a Terra Parou.
De 1969 a 1973, o “retado” baiano, para sustentar sua primeira esposa, a norte-americana Edith Weisner, e a filha Simone, aceitou o emprego de produtor e compositor na CBS brasileira. Foi aí que se revelou prolífico compositor, capaz de produzir, em série, sucessos pós-jovenguardianos para uma miríade de artistas como, por exemplo, Jerry Adriani (a inflamada soul music “Seu Táxi Está Esperando”), Renato & Seus Blue Caps (a udigrudi “Playboy”), Diana (a romântica “Ainda Queima a Esperança”), entre muitos outros. Em um espaço de quatro anos, Raulzito pariu mais de 80 canções, todas elas com acento pop e para lá de comerciais. Era uma verdadeira “máquina de hits”. A CBS o adorava. Saltando no tempo, no final de 1976, Tania Barreto, que havia acabado de conhecer Raul, conversou muito com ele sobre como seria seu próximo disco. Ela lembra como se fosse ontem da primeira vez que ele lhe falou sobre o conceito que nortearia seu novo álbum. - Um dia ele chegou lá em casa e me contou que tinha tido um sonho muito louco em que a Terra tinha parado. Tudo parado, nada funcionava. E aí ele acordou. Ele me falou: “Pô, esse sonho foi muito forte! Foi uma coisa fantástica!”. Eu me lembro bem disso, quando ele falou do dia em que a Terra parou. Aí depois ele fez a música - conta Tania, que teve um caso de amor com Raul que se estendeu oficial e extraoficialmente até 1984. Gravado nos estúdios Level e Haway (ambos no Rio) e Vice Versa (em São Paulo), sob a direção e coordenação de Mazzola, mas com direção musical do próprio Raul, O Dia em que a Terra Parou foi um álbum único na discografia do Raulzito. Dentre o time de músicos que estavam nas suas gravações, constam gigantes como Gilberto Gil (que arranjou e tocou violão em “Que Luz é Essa?”), o percussionista Djalma Correa, o baterista e tecladista do Azymuth Ivan “Mamão” Conti e José Roberto Bertrami, o violonista de jazz Hélio Delmiro, o gaitista Maurício Einhorn, o maestro Miguel Cidras e os membros da banda Black Rio Luiz Carlos Batera, Jamil Joanes e Cláudio Stevenson. Esse disco traz outra relevante peculiaridade: nele, Raul, pela primeira vez, adota como único parceiro seu velho amigo Cláudio Roberto. O
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carioca conta que conheceu Raul quando tinha 11 anos de idade e, por influência dele, tornou-se compositor. Desde 1977, ele vive retirado em um sítio na zona rural de Miguel Pereira (RJ). “Quando conheci o Raul, eu era um adolescente imbecil, como, na verdade, é todo adolescente. Só que eu era muito imbecil”, faz questão de frisar. E exemplifica: “Eu só achava legal Beatles. Só ouvia isso, só falava nisso. Um porre. E daí, rapaz, um dia o Raul me deu um esporro que não esqueço até hoje. Ele tinha a coleção completa do Luiz Gonzaga e disse que eu deveria largar os Beatles de mão e ouvir aquilo. Lembro-me que a primeira música do ‘Lua’ que gostei foi ‘Cintura Fina’: ‘Vem cá, cintura fina, cintura de pilão / Cintura de menina, vem cá meu coração’”, Cláudio canta ao telefone. O compositor concorda que Raul foi o artista brasileiro, juntamente com Os Novos Baianos, que melhor “amalgamou” a música brasileira com o rock ‘n’ roll que ele tanto amava. “A gente [Cláudio e Raul] sempre dizia que o rock nada mais era que o ‘baião norte-americano’. Pois, nesses tipos de música, está em jogo a mesma malícia, algo meio sensual, sexual, fora da lei”, reflete. Roberto também acredita ter sido o único parceiro de Raul que conseguiu interferir musicalmente – não apenas nas letras, ele frisa – em um disco seu. No caso de O Dia em que a Terra Parou, ele cita, as músicas têm como característica serem mais melódicas. “Se você reparar, em algumas partes há melodias, inclusive, que remetem à [compositora] Dolores Duran”. “Além da nossa amizade que tínhamos”, explica Cláudio, “a ‘comunicação melódica’ que tínhamos foi um dos motivos pelos quais Raul me chamou para fazer esse disco com ele”. Quando o espetáculo de O Dia em que a Terra Parou estreou, em novembro de 1977, o ano coincidiria (ou melhor, cingiria) com a morte do ídolo máximo de Raul Seixas – o “Rei do Rock” Elvis Aaron Presley, que faleceria em 16 de agosto. Alheio a todas as confusões do mundo do rock (exceto da bebida) e de forma bem mais tranquila do que em entrevistas anteriores, Raul definia, para o jornal Correio Braziliense, o show de lançamento do novo disco como uma “divina comédia” – “uma peça teatral e não apenas um show”. O jornal descrevia o Maluco Beleza em sua nova fase: cabelos curtos, barba raspada, roupa caqui (visual, aliás, que desagradou muitos fãs adeptos do Raul cabeludo e barbudo). “Raul reconhece que seu trabalho passou por mudanças radicais”, reportava o jornal, enquanto o sempre eloquente Raul cerebralmente justificava: “A vida é uma coleção de momentos, e o meu momento atual é de muitas mudanças. Estou mais plácido, mais ameno. Mas essa placidez, antes de tudo, é uma placidez de jogo de xadrez, com objetivos tangíveis, palpáveis”, não perdendo a chance de aproveitar para lançar mais uma de suas charadas. Na opinião do jornalista, pesquisador e colecionador de discos Zeca Azevedo, a gravadora WEA, que desembarcou no Brasil em grande estilo em 1976, não estava tão preocupada em investir muito em O Dia em que a Terra Parou. “A WEA chegou contratando grandes nomes da música brasileira. Pegou Gil, Belchior, Black Rio, Baby Consuelo e Pe-
peu Gomes – todos eles artistas com um perfil pop – e mandou alguns desses para gravar seus discos nos Estados Unidos. Era, assim como foi com as Frenéticas, um projeto de ‘internacionalização’ dos artistas brasileiros que o chefão da gravadora, André Midani, tinha em mente”. Azevedo atenta para o fato de que um dos “problemas” de Raul que não ajudava em sua relação com a gravadora é que ele fazia questão de não ter um comportamento dócil e disposto a colaborar com os interesses comerciais da empresa. Para os ouvidos de Zeca, algumas faixas de O Dia em que a Terra Parou soam como se fossem uma continuação do projeto estético definido por Raul na primeira metade dos anos 1970: “A música ‘O dia em que a terra parou’, por exemplo, tranquilamente poderia estar no Há Dez Mil Anos Atrás, o último álbum autoral gravado por Raul para a Philips”. Mas O Dia em que a Terra Parou, o álbum, desvenda Azevedo, possui detalhes que poucos conhecem. Um deles pode ser decepcionante para fãs mais fervorosos, mas era prática recorrente de meio mundo do rock: o hino “Maluco Beleza” apresenta algumas semelhanças melódicas com a canção “Aline”, do francês Christophe, de 1965, produzida pelo mago dos teclados Jean Michel Jarre. Talvez caiba mais uma pergunta: Raul encontra pares hoje em dia? E ainda: como preencher a monstruosa lacuna deixada por seu desaparecimento? Para Zeca Azevedo, Raul Seixas é “peça sem reposição”. Conforme ele é por isso que ele continua tão popular, sobretudo entre os excluídos e aqueles que não se encaixam na sociedade. Além de tudo, pontua, quando se fala em Raul Seixas um importante fator não pode ser esquecido: “Raul foi um grande alquimista musical. Os cantores de rua, de todas as cidades do país, o tem na ponta da língua. Foi um dos poucos artistas de rock a impor-se no Brasil dos anos 1970, inclusive comercialmente. Raul tornou-se um signo incontornável de rebeldia”. Não há substitutos para Raul Seixas, certamente, assim como não há para nenhum grande artista que tenha ousado encarar de frente o “monstro sist”. Mas sua mensagem continua reverberando, e ainda reverberará por imemoriais tempos, tamanha é, ainda hoje, sua adesão no inconsciente coletivo do povo brasileiro. Para ter ideia do local que Raulzito ocupa no coração do público, no dia 21 de agosto de 2019, quando completam-se 30 anos da sua morte, haverá diversos eventos em sua homenagem, incluindo um encontro de fãs na Flórida, nos EUA, e passeatas em Dublin, na Irlanda, Rio de Janeiro, Brasília, Paraná e São Paulo. Serão oportunidades de ouro para apreciar o maior tesouro deixado pelo grande missivista do rock nacional. Ou seja, sua mais valiosa herança, que é sua imensa fortuna musical. Décadas após sua morte, Raulzito vem para mostrar que “nunca é tarde” e para provar que é “sempre cedo”. E, sobretudo, o testemunho: para todo pecado sempre existe perdão. Que não há certo nem errado, e todo mundo tem razão. Afinal, todo ponto de vista é uma bala de canhão. E a música, essa arma indomável, a força da revolução.
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