Fotos: Divulgação
música
C
inco frases enunciadas pelo cantor Nelson Gonçalves, na abertura do espetáculo Eternamente Nelson, resumem os desígnios – trágicos e redentores – de
sua trajetória nos palcos e na vida. O ano é 1981. Soa o gongo. O Metralha, apelido decorrente da fala rápida e entrecortada, galga a trote as escadarias que conduzem ao galante palco iluminado, sobre o qual cantará nos festejos de 40 anos de uma carreira brilhante. Atrás de si, a metáfora grafada em maiúscula: RING – palavra que, a vida toda, foi uma espécie de amuleto para o astro, boxer, e dos bons, na juventude. Com seu timbre de veludo, ele dá a ficha: “Meu nome é Antônio Gonçalves Sobral. Gaúcho de Livramento. Minha vida sempre foi uma luta. Minha arma, minha voz. Meu destino: cantar”. Dez anos se passaram desde que o destemido boêmio morreu, aos 78 anos de idade, vítima de um fulminante ataque cardíaco. Mas, felizmente, a data não passará em branco. Lançamentos à altura de Nelson vão presentear seus fãs, velhos e novos, com o talento daquela que, provavelmente, foi a maior voz que já cantou no Brasil. No DVD
TRÊS TRAÇOS
Gaúcho, pugilista e gigolô, não necessariamente nessa ordem, formaram o caráter de Nelson Gonçalves, segundo o roqueiro Lobão
A via-sacra do
BOÊMIO
Sangüíneo, mulherengo e cantor genial são só alguns dos adjetivos utilizados para classificar Nelson Gonçalves. Morto há dez anos, DVD e CD relembram a carreira atribulada da última voz potente do Brasil
ra de Nelson Gonçalves, o show captado e exibido pela
superou, com suas cerca de 1,6 mil canções e 63 álbuns. De
Rede Globo em 1981, a Sony&BMG reavivou som e imagem
afinidade, entretanto, os “reis” têm apenas o prêmio Nipper,
do espetáculo que marcou quatro décadas de carreira do
deferência dada aos bastiões da gravadora – no mundo,
valentão. A gravadora também vai relançar o debut do
apenas Presley e Nelson receberam a honraria.
cantor em LP (long-play), Nelson Interpreta Noel, de 1954.
Gaúcho por acaso, a origem caiu como uma luva ao tipo
A novidade principal, contudo, deve ser O Canto Que Me
falastrão e superlativo construído por Nelson. Em 1919, os
Embalou – Poemas para Meu Pai, Nelson Gonçalves, livro da
pais, imigrantes portugueses de Vizeu que ganhavam a vida
filha Marilene Gonçalves, a primogênita, que deve atrair gran-
como artistas mambembes, tiveram o varão na cidade
de número de admiradores interessados na face humana
fronteiriça com o Uruguai. E pouco tempo depois (as versões
do ídolo. Nelson, revela Marilene, em nada era convencio-
variam de dez dias a dois anos) partiram definitivamente
nal. “Não procurei falar do artista que todos conheceram,
para São Paulo. O cantor, em que pese esse acidente, sem-
mas da pessoa que se escondia nele. Uma pessoa inocen-
pre valorizou suas raízes gauchescas.
te, sensível, inteligente”, diz a filha. Famoso de dar inveja,
“O Nelson era gaudério mesmo”, diz o roqueiro Lobão,
Nelson tratava o sujeito do elevador, o garagista ou a cele-
que durante os anos 80 conviveu e gravou com o cantor. Se-
bridade da mesma maneira simples. “Agora, era ma-
gundo Lobão, três coisas formavam a personalidade sangüínea
chão.Tinha personalidade forte. Sempre foi teimoso, mas
do artista: a ascendência gaúcha, a experiência semi-profissi-
também sempre foi um menino”, revela.
onal como pugilista, em São Paulo, e a atividade de gigolô na
Nelson Gonçalves foi um dos maiores cantores do Brasil,
Lapa carioca. Lobão diz que nunca vai esquecer o dia em que
como prova sua trajetória. Até hoje, a marca que atingiu é
conheceu o astro. “Cheio de deferência, fui me apresentar:
altíssima: 70 milhões de discos vendidos, média espetacular
‘Como vai, Seu Nelson?’ O malandro emendou: ‘Seu Nelson é o
de mais de 1 milhão anuais – embora o copioso numerário
caralho! Sou você amanhã”, lembra o roqueiro, numa menção
tenha minguado ao extremo na infernal temporada aos con-
à dependência de cocaína que ambos amargaram – Lobão, no
fins da droga que fazem parte de sua biografia. Nos cálculos
caso, ainda amargava. O músico continua a se deliciar com o
do próprio cantor, da gravação de estréia – a valsa Se Eu
lema do amigo: “Onde houver botequim, puteiro e violão, have-
Pudesse um Dia (outubro de 1941) – ao derradeiro CD Ainda É
rá Nelson Gonçalves cantando uma canção”, recita.
Cedo (1997), são mais de 2 mil registros fonográficos. No Brasil, só perde para o mitólogico Roberto Carlos.
CRISTIANO BASTOS, do Rio de Janeiro Jornalista
6
NA LUTA
Eternamente Nelson – Especial e Registros Raros da Carrei-
Pugilista em São Paulo, Nelson recebeu de Ary Barroso uma sentença que o desafiou: “Você não canta nada”
Depois que deixou Santana do Livramento, Nelson Gonçalves esteve na cidade apenas duas vezes: uma em 1972,
Cancioneiro sulcado em 183 discos de 78 rotações, 100
para fazer um show no Ginásio Coronel Mallet lotado; outra
compactos, 200 fitas K-7 e 127 long-plays, só o registro da
em 1978, para receber uma homenagem da Câmara de
indefectível A Volta do Boêmio, que marcou justamente o fim
Vereadores. Na primeira vez, Nelson vinha de um período
de seu casamento com a cocaína, vendeu 2 milhões de exem-
de três anos sem gravar – o artista recém tinha superado
plares. Algarismos que nem o colega de RCA Elvis Presley
sua relação com a cocaína e tentava reestruturar a carrei7