Brasil na Guerra

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Brasil na Guerra Os jornais e o rádio anunciam: estoura a guerra na Europa Dia 1º. de setembro de 1939: “Começou a Guerra”, anunciavam as manchetes dos jornais. Hitler invadira a Polônia. A Europa dividia-se: de um lado, as nações totalitárias, lideradas pela Alemanha e pela Itália; de outro, as democracias liberais comandadas pela França e pela Inglaterra. A Argentina se recusava a envolverse pois seu governo tinha boas relações com a Alemanha. E o Brasil chamava seus reservistas, preparava sua defesa, procurava armar-se, tudo isso, em princípio, sem comprometer-se. Havia uma guerra, talvez fôssemos envolvidos. Mas de que lado estávamos?

O Governo brasileiro está numa gangorra: entre os países aliados e o Eixo, quem dá mais?

Ideologicamente, o Estado Novo achava-se muito mais próximo do fascismo italiano do que dos regimes liberais, e além disso havia uma certa dependência da aviação comercial brasileira em relação aos países do Eixo. Por outro lado, relações econômicas colocavam o país na órbita dos Estados Unidos. Nada mais adequado, parecia, do que um neutralismo equidistante. O Ministério se dividia: Oswaldo Aranha (Exterior) era favorável aos EUA, enquanto Francisco Campos (Justiça) e Góis Monteiro (Guerra) pendiam para os alemães. Em 1938, os produtos americanos constituíam 24,2% do total das importações brasileiras; e os alemães, quase 25%. Getúlio aparentemente aceitava a tese norte-americana de defesa conjunta do continente, mas recusava-se a cortar laços com a Alemanha, em especial com a empresa aérea Condor (subsidiária da Lufthansa), que, além

de deter o controle das linhas internacionais brasileiras, tinha contratos com a VASP e a Varig para reposição de peças. Quanto aos EUA, o Brasil aceitou a oferta de fornecimento de 100 milhões de dólares em armamentos. A proposta americana de instalar uma base militar no nordeste brasileiro soava como tentativa de ocupação do país. Os ataques germânicos a países neutros demonstravam que não se podia confiar nos alemães.

Conferência dos Chanceleres: representado por Oswaldo Aranha, o Brasil rompe com o Eixo. A Alemanha reage. O bombardeio japonês à base norte-americana de Pearl Harbor mostrou que a América estava ameaçada. As ideias de solidariedade continental ganham novas forças. Representado por Oswaldo Aranha, o Brasil propôs a ruptura, unânime, de todas as relações comerciais, políticas, militares e diplomáticas entre as nações da União Pan-Americana e o Eixo. O México concordava. Os EUA preferiam declaração de guerra, mas aceitavam essa posição. Outras nações, como Argentina e Chile, recusavam-se a romper com o Eixo, preocupadas com um possível ataque a seu território.

“É quando o chanceler brasileiro [Oswaldo Aranha] se agiganta à estatura dos grandes estadistas do século. Mas, importante que era a ruptura imediata. Não era o princípio em causa, o principal. Este era a unidade continental, a


solidariedade entre as nações americanas, a reação unânime à agressão. Porque, firmado esse princípio, tudo o mais seria atraído por ele. A Europa ocupada, a Inglaterra subjugada, a Rússia invadida, não precisariam os Exércitos nazistas atravessar os oceanos. As quintas-colunas se aprestariam em tomar conta dos governos americanos. Pela primeira vez todo um continente se declarou unido para uma ação comum, em defesa de um ideal comum, a Liberdade”. (Hélio Silva)

A quinta-coluna do Eixo: espiões e sabotadores, uma nova ameaça à segurança brasileira

Até 1942, a polícia política do Estado Novo considerava inimigos do Estado os comunistas e democratas contrários ao regime. Depois da Conferência dos Chanceleres e dos primeiros torpedeamentos de navios brasileiros, a opinião pública passou a exigir o desmantelamento da rede nazista de espionagem, e a polícia começou a se movimentar. Os espiões transmitiam os movimentos dos navios, orientando a ação dos submarinos alemães. O centro das operações de espionagem estava nas empresas aéreas. Condor (alemã) e LATI (italiana), e só com o estado de beligerância e a consequente interdição dessas companhias é que a espionagem declinou, substituída, no entanto, por outra atividade ainda mais danosa, a sabotagem. A 7 de setembro de 1942, os jornais do Rio anunciavam em primeira página que “bombas-tempo” (bombas-relógio) haviam sido espalhadas pelas ruas da cidade. A polícia deteve centenas de súditos do Eixo e integralistas notórios, entre os quais Raimundo Padilha, Marcos de Sousa Dantas e Gustavo Barroso, conforme informou a Folha da Noite (7/9/42).

Ainda não é a guerra, dizem. Mas como, se já estamos sendo bombardeados? Em maio de 1942, a FAB [Força Aérea Brasileira] iniciava missões de patrulhamento das águas territoriais, bombardeando submarinos alemães. Intensificavam-se as defesas costeiras e a mobilização dos civis. A população exercitava-se no uso de máscaras contra gases, no blackout e na defesa civil contra a eventualidade de bombardeios aéreos. O alistamento voluntário crescia, e, desde os primeiros dias de 1943, já estava decidido que o Brasil enviaria contingentes próprios para participar dos combates na Europa. Restava treiná-los e equipá-los.

A 4 de julho de 1942, a União Nacional dos Estudantes (UNE, fundada em 1937) lidera uma passeata de milhares de pessoas no Rio, com carros alegóricos simbolizando o repúdio ao nazismo. A 18 de agosto, milhares de pessoas saem às ruas nas principais cidades do país, exigindo represálias contra os alemães. Há distúrbios e saques de lojas no Recife, no Rio e em Porto Alegre. Em junho, começa o recrutamento de voluntários para lutar na Europa.


Na farsa estudantil, um negro esgana o “Führer”. O país se prepara para a defesa da democracia.

O rompimento de relações diplomáticas com os países do Eixo, em janeiro de 1942, não significava necessariamente que o Brasil entrava na guerra. Mas a reação da Alemanha foi imediata. Em fevereiro, começaram os torpedeamentos de navios brasileiros. Em Vitória [Espírito Santo], uma multidão depredou um bar alemão e a agência da Bayer. Em Florianópolis, foram atacadas residências e os habitantes obrigados a dar vivas ao Brasil. No Recife, uma passeata de repúdio aos países do Eixo terminou em depredação. No Rio, o povo reuniu-se em frente ao Palácio Guanabara, aos gritos de “guerra” e “vingança, enquanto a UNE ocupava a sede do Clube Germânia, na praia do Flamengo, organizando um QG da luta antifascista. O povo fazia passeatas de protesto e seria precisamente uma manifestação de massas que iria precipitar a primeira crise de gabinete do Estado Novo. A 4 de julho de 1942, Filinto Müller [chefe de polícia de Vargas] tentou impedir que a UNE realizasse uma passeata antinazista. Favorável aos estudantes, Vasco Leitão da Cunha – ministro interino da Justiça – entrou em choque com o chefe de polícia. Müller interpelou-o rudemente e foi preso “por desacato à autoridade”. O Ministério entrou em crise. E Oswaldo Aranha, pró-Aliados, via fortalecida sua posição no Ministério.

O Brasil entra na guerra. “A democracia vencerá!” A Comissão Mista de Defesa BrasilEstados Unidos acertara, em novembro de 1942, as bases para a defesa do estratégico

Nordeste brasileiro. O Brasil, rejeitando de vez a proposta dos EUA de enviar tropas americanas ao Rio Grande do Norte, assumia a defesa do território e das instalações militares. Os Estados Unidos construiriam uma base aérea em Natal e teriam liberdade para operar em todos os aeroportos do Nordeste.

Em janeiro de 1943, Roosevelt sugeriu e Vargas aceitou que o Brasil fosse um dos membros fundadores das futuras Nações Unidas. Por outro lado, o governante brasileiro solicitou mais equipamento militar e revelou sua disposição de enviar um contingente para a guerra. Em junho, abria-se o voluntariado. No mês seguinte, o general Dutra seguia para os Estados Unidos, para cuidar do equipamento necessário para as tropas de treinamento. De volta de sua viagem, propôs também a criação de uma Força Aérea Expedicionária. A FAB também iria à guerra. A derrota alemã no continente africano alterou o projeto inicial de enviar tropas brasileiras à África. O objetivo passou a ser a Itália. Em maio de 1944, 25.000 homens estavam prontos para partir.


O presidente Roosevelt visita o Brasil. Walt Disney cria o Zé Carioca. É a “política de boa vizinhança”.

No seu comércio com os EUA, o Brasil exportava café e recebia dólares, que eram trocados por libras para pagar a dívida com a Inglaterra. Esta última, por sua vez, importava algodão dos EUA. E os dólares acabavam voltando para lá. O comércio com a Alemanha quebrava esse círculo vicioso: ao comprar café do Brasil, os alemães pagavam em “marcos de compensação”, espécie de vales que davam direito a mercadorias alemãs. Quando o Brasil encontrava comprador interessado nessas mercadorias, recebia dinheiro desse comprador. A “política de boa vizinhança” empenhou-se em romper os laços econômicos com a Alemanha. Em vez de mandar tropas, os americanos passaram a intervir diplomaticamente. Em 1942, as teses da “boa vizinhança” foram reforçadas na Conferência dos Chanceleres, no Rio. Os Estados Unidos concediam bolsas de estudos para brasileiros. Walt Disney criava personagens promotores da “boa vizinhança”, como o Zé Carioca, que apareceu pela primeira vez no Brasil no filme Saludos, Amigos, de enorme sucesso. Em contrapartida, o Brasil exportava Carmem Miranda.

Os pracinhas se despedem. A guerra os espera na Itália. Em 16 de julho de 1944, desembarcava o primeiro escalão da Força Expedicionária Brasileira – FEB. Mais quatro escalões viriam, completando uma divisão de infantaria, incluindo todas as unidades de apoio, congregando as demais armas do Exército e a Força Aérea. Eram 25.334 homens. Ainda no Brasil, tinham sido grandes as dificuldades de recrutamento de pessoal – entre homens que vinham, em sua maioria, de regiões agrícolas – para lutar numa guerra em que as operações dependiam de um elevado grau de mecanização. Ao desembarcar na Itália, os pracinhas do primeiro escalão chegavam desarmados. Só entre 5 e 18 de agosto, em Tarqüínia, cerca de 60km a noroeste de Roma, é que receberiam seu armamento e equipamento. O primeiro contato dos brasileiros com o inimigo foi em 16/9/44, [quando] o I e o II Batalhões do 6º. Regimento de Infantaria tomaram Massarosa, a oeste de Lucca. Dois dias depois, os pracinhas ocuparam Camaiore, pouco mais ao norte. A tomada de Monte Prano, a nordeste dessa posição, exigiu seis dias de esforços, sendo afinal realizada em 26 de setembro.

Os dois últimos escalões aportariam em Nápoles em 7/12/44 e 22/1/45. No início de novembro, o quartel-general avançado brasileiro estava instalado em Porretta Terme, aos pés do local onde se desenrolaria a epopeia de Monte Castelo, situado na região dos Apeninos que


fechava o vale do Reno, eixo de comunicação e abastecimento dos Aliados. Com poucos dias de instrução na neve, os brasileiros já se mostravam exímios no uso de esquis. Além do inimigo, os brasileiros tinham ainda que enfrentar problemas de equipamento e munição, de insuficiência de treinamento, de estilo de mando do general Crittenberg [general estadunidense], comandante do IV Corpo do Exército. A isso tudo somava-se o frio – às vezes até de 20ºC abaixo de zero. Coube novamente aos brasileiros atacar Monte Castelo. Depois de doze horas de combate, foi, afinal, conquistada a posição que custara a vida de centenas de brasileiros. Depois daquela vitória, outras viriam: em 5/3/45, a última posição elevada da região, Castelnuovo, era tomada pelos pracinhas. No início de abril, as forças aliadas começaram a arrancada final na Itália. Os brasileiros teriam seu mais duro combate, que resultou na conquista de Montese e das alturas circunvizinhas (14/17 de abril). Prosseguindo par norte-nordeste, a FEB tomou Zocca (21/4/45). No mesmo dia, tropas aliadas entravam em Bolonha. Mais dois dias e os brasileiros entravam na planície do Pó, ocupando Marano e Vignola. Mudando para a direção noroeste, a FEB conseguiu nas proximidades de Parma, a rendição de uma divisão alemã inteira. Prosseguindo para o norte, os pracinhas tomaram Alessandria (30 de abril), a 60km de Turim. Da capital piemontesa, já liberada pelos partigiani, os brasileiros estabeleceram contato com os franceses, em Susa, próximo à fronteira ítalofrancesa. Em 2 de maio, o comando do V Exército deu por encerrada a campanha.

Os pracinhas estão voltando. Nas ruas do Rio de Janeiro, o desfile da vitória. O Brasil festeja a paz. Em 18 de julho de 1945, aportava no Rio de Janeiro o General Meighs, o mesmo naviotransporte norte-americano que levara para a Itália o 3º., o 4º e o 5º. escalões da FEB. Os

pracinhas haviam enfrentado 239 dias de guerra na Itália. Além do inimigo, tinham dominado o terreno inóspito e os rigores do clima. O preço foi caro: centenas de mortos e mutilados. Houve vários casos de neurose, que necessitaram tratamento psiquiátrico. (E na guerra nem os internados descansam – o hospital neuropsiquiátrico de Porretta Terme chegou a ser incendiado pela artilharia alemã, instalada nas montanhas vizinhas.) Entre os rostos dos veteranos, muitos negros. Em geral, gente vinda das camadas mais humildes. Conta [o historiador] Hélio Silva: “o Regimento Andrade Neves tinha em sua formação mais de trezentos soldados recrutados nas favelas, oriundos do antigo SAM (Serviço de Amparo ao Menor)”.

Alguns recrutados desertaram, ainda em território brasileiro. O valor das pracinhas, no entanto, era reconhecido pelo próprio adversário. Em Castelnuovo foi encontrado um túmulo onde os alemães escreveram “3 Tapfere [3 valentes] – Brasil – 24/1/1945”. Outro, em Montese, trazia a


inscrição “Drei brasilianische Helden” (“três heróis brasileiros”). O embate havia sido sobretudo de ideologias, cada uma delas com o sólido respaldo de uma imensa organização industrial-militar. Na Europa, caíra o totalitarismo nazifascista. Quando a FEB regressou, o Estado Novo brasileiro enfrentava seu dilema.


Créditos das imagens em ordem de aparição (1) O Estado de S. Paulo | 1º. set.1939. Disponível em: https://img.estadao.com.br/thumbs/640/resource s/jpg/5/1/1567448359115.jpg?xcd_image_optimiza tion=false (2) Oswaldo Aranha na Conferência dos Chanceleres de janeiro de 1942. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/oafoto256_ 5_0.jpg (3) Folheto de orientação para defesa antiaérea. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/vlc_s41-0325_1_0.jpg (4) Manifestação contra o Eixo, 1942. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/cda_vargas (gov30-45)ebn_22_1.jpg (5) Encenação de estudantes contra o Eixo, 1942. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/1942brasil-declarava-guerra-%C3%A0-alemanha/a40193784 . (6) Cartaz de convocação, 1942. Disponível em: https://i.pinimg.com/736x/c0/11/8f/c0118f36f516f c22f908f7bf44d7ac7a.jpg (7) Cartaz do filme Saludos, Amigos, 1942. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/media/upl oads/gettyimages-1137230615.jpg (8) Estampas Eucalol sobre Monte Castelo. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/61354514921936606 0/?nic_v2=1a5VHBxNI (9) Pracinha brasileiro guarda campo de prisioneiros alemães da 148ª Divisão. Disponível em: http://www.mauxhomepage.net/geraldomota/feb0 81.htm (10) Neurose de guerra: jovem oficial no desembarque da FEB, 1945. Disponível em: https://idd.org.br/acervo/neurose-de-guerra-umareportagem-aprovada-pela-censura-militar/ (11) Mapa do roteiro da FEB na Itália. Disponível em: https://live.staticflickr.com/4366/35530982903_b 5f84375d3_b.jpg Acessos em: out. 2020

Origem dos trechos transcritos

NOSSO SÉCULO: Brasil. São Paulo: Abril Cultural, 1985. v. 6 (1930/1945 – II). p.80-107.


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