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Esta história, narrada em texto e artes, está profundamente impregnada de ideias advindas de um trabalho de pesquisa que tomou seis anos dedicados à pós-graduação. No final da tese de doutorado em 2011, eu me comprometia em produzir, após analisar inúmeras edições de Peter Pan e Wendy, de James Matthew Barrie, uma versão ilustrada de minha autoria. Essa versão foi imaginada de mil maneiras, e acabou tomando o formato de uma narrativa em quadrinhos. Contudo, ainda que fruto de pesquisa acadêmica, o que aqui segue jamais poderia concretizarse se não fosse uma paixão particular pelo universo ficcional criado pelo autor escocês e seu protagonista, despertada ao assistir à animação da Disney por volta dos seis ou sete anos de idade. Desde então, a sombra de Peter Pan tem me perseguido, assumindo diversas formas, ao longo da vida. Essa paixão deve ser considerada tão ou mais séria do que todos os estudos científicos realizados por mim na universidade. Trata-se de uma homenagem à criança que eu fui e aos sonhos que eu vivi na companhia de um menino imaginário que jamais crescerá. Apesar de já ter escrito e publicado, desde 1995, inúmeros livros cujas histórias têm por base outras histórias, assumo abertamente, pela primeira vez, que o que aqui segue é uma fan-fiction. Ouso dizer que sou uma de suas precursoras no Brasil, pelo menos em termos de legitimação do gênero. Publicada por editoras, retorno por via alternativa e insiro-me, definitivamente, na comunidade fandom de Peter Pan ao qual sempre pertenci, muito antes de o fenômeno consagra-se via comunidades online. Os conceitos gráficos e narrativos elaborados foram muito pensados. Optei por uma formatação gráfica tradicional e pelo desenho clássico, elaborado com o uso de ferramentas digitais. Porém, revesti, tanto o roteiro, quanto as artes, de algumas camadas significantes; certamente nem todas serão visíveis ao leitor que desconhece o original profundamente. Isso, porém, não é importante. Recomendo que leia o texto literário integral assim que puder, que fique longe das traduções e adaptações irresponsáveis, as quais destituem o texto de Barrie de toda a sua riqueza simbólica. Aqui vocês não terão mais uma delas, mas uma outra história, uma continuação alternativa. O próprio autor, ao concluir, deixou a narrativa em aberto, pronta a ser apropriada por qualquer um que desejasse seguir seu rumo. Foi o que eu fiz. Em geral, prefácios escrevem-se após o término do texto principal. Contudo, embora eu tenha o argumento em mãos e um roteiro pré-esquematizado, entenda-o em seu sentido literal de prae fatio, pois, no momento em que anuncio esta obra, mal vislumbro o que se seguirá. Sei que quero, através deste trabalho, voar com Peter Pan, mas sei também que quero voltar para casa, como Wendy. E, sobretudo, desejo encerrar de vez minha história com esse personagem. Basta que eu e você saibamos disso, por enquanto. E se meu convite agradar, aceite-o. Um pouco de pó das fadas, um pensamento positivo e lá vamos nós. Ao contrário de Peter, porém, prometo o retorno e - quem sabe? - algum crescimento mútuo.
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VESTIDA COM CAMISETA E MEIA-CALÇA APENAS, saia voando pela casa até o quintal. Levantava bastante poeira com os pés, para que fagulhassem à luz solar: pó-das-fadas. Do cinto que transformava a camiseta verde em túnica, desprendia a espada — um pedaço de pau, sobra da oficina de carpintaria do meu pai. Ninguém podia vê-las, às minhas companheiras, a não ser através dos meus olhos infantis: Sininho e Wendy. Ambas surgiam ao meu lado sempre que eu me tornava Peter Pan. Tinha assistido à animação de Walt Disney no cinema. Não era uma estreia: fazia mais de quinze anos que o filme fora lançado. Imaginar-se voando através da janela em direção a uma ilha de fantasia até era empolgante. Mas outra emoção, mais delicada e difícil de explicar, me seduzia: o desejo de conhecer, de ser ou de pertencer ao garoto de orelhas pontudas, vestido com túnica e meia-calça verdes. Como muitas crianças de todo o mundo que, desde a estreia da pantomima em 1904, vinham conhecendo Peter Pan também através do desenho animado ou dos livros, quis muito — e durante anos seguidos — que Peter entrasse pela janela do seu quarto e me convidasse a visitar a Terra do Nunca. Nunca aconteceu: o menino veio ao Brasil trazido por Monteiro Lobato apenas para visitar o Sítio do Pica-pau Amarelo, para sorte de Narizinho e inveja minha. Não podendo aguardar por Peter indefinidamente, contentei-me em sê-lo eu mesma. Qual o problema? Sabia como, mesmo sendo menina. Em tempos de raras heroínas ousadas e valentes, fosse na literatura ou nos filmes infantis — estamos falando do final dos anos 1960 —, seriam sempre os piratas e os cavaleiros capa-e-espada os modelos protagonizados em minhas aventuras imaginárias. Meus cabelos curtos e as sobrancelhas grossas, unidas sobre o nariz, não colaboravam com a imagem usual de menina-princesa. Peter Pan foi a mais importante aquisição para o meu acervo íntimo de personagens: um (anti?) herói, agindo contra o relógio ajustado para valorizar apenas o período da maturidade. Numa época em que a criança era quase sempre uma personagem menor, incapaz de sobreviver sem apoio ou orientação dos mais velhos, ser como Peter, ou incorporá-lo, significava muito mais do que um simples câmbio imaginativo de identidade. Significava reconhecer em si uma força não outorgada por adultos, subversiva e de exclusiva propriedade infantil, inacessível a todos que já cresceram, esquecidos de como é ser criança. Contudo, para ser plenamente Peter, era preciso também ser Wendy. Algum tipo de vínculo os unia, gerando uma energia erótica. Eu ainda não tinha condição de dar o nome certo ao sentimento que a animação da Disney suavizou cuidadosamente, mas a imaginação infantil sempre pode escapar espontânea e livre pelas entrelinhas. E ela inclui uma ideia de sexo — ainda que muitos adultos prefiram associar o corpo imaturo ao dos anjos. 7
O indissolúvel par Peter/Wendy formado em minha mente possibilitou, assim, inúmeras variações narrativas tanto em direção a natural disputa entre meninos e meninas, quanto na formação de próprio desejo: o de querer possuir Peter sendo Wendy. Nenhum personagem de contos de fadas — pelo menos não em versão pasteurizada para a leitura infantil —ofereceria vislumbre similar. Admitir-se um corpo sexuado, ainda que infante, era, pois, uma das exigências para amar e ser amado por Peter Pan, ainda que ele o negasse o tempo todo. Sim, é fato que o menino-que-não-quer-crescer também foge do desejo de Wendy como o diabo fugiria da cruz (Peter Pan é uma espécie de demônio). Porém, negar-se à sexualidade — como qualquer criança poderia facilmente perceber até mesmo através do superficial desenho animado de 1953 — não significa ser indiferente. Assim, mesmo incapaz de compreender ou expressar claramente minhas paixões, eu podia reconhecê-las e explorá-las através do par. Infelizmente, o filme da Disney omite a delicada metáfora que Barrie depositou sobre os lábios da Sra. Darling na versão literária: a imagem gerada pela expressão “beijo escondido” poderia ter me ajudado a significar um sentimento tão forte e prematuro. Um dia eu descobriria que, tal como ocorre na história, Peter Pan seria o único a ter direito a receber a misteriosa prova de amor incondicional que é o amor materno. Pois bem: um dia tornei-me adulta, seguindo os passos da Sra. Darling, de Wendy e de todas as demais crianças (principalmente meninas) que vieram depois e cujo coração Peter, desalmado, roubou. Uma adulta razoavelmente séria e razoavelmente bem sucedida. Escrevi e ilustrei algumas histórias (ansiando secretamente que Peter as lesse). Casei-me e tive uma filha. Por alguns anos, Peter Pan me deixou em paz em meu inexorável destino de adulta. Em algum recanto do espírito, entretanto, eu ainda o acalentava com meus beijos escondidos. Sua figura evoluíra para fantásticas outras formas: ele escapara à corrosão venenosa que a adolescência exerce sobre os ídolos de infância. Eu podia enxergá-lo até mesmo em alguns garotos e homens ao longo da vida. Não como um diagnóstico da tal síndrome psicológica amplamente divulgada pelo livro do Dr. Dan Kiley nos anos de 1980, mas de atração estética por uma certa compleição masculina delicada, sobretudo quando aliada à ambiguidade de caráter, resultando num sujeito frágil e ao mesmo tempo fanfarrão, num espírito sensível combinado a um comportamento patético e cativante — um tragicômico. Peter Pan, trágico? Peter Pan, cômico? Aproximadamente trinta anos depois do encontro infantil, comprei uma edição integral de Peter Pan e Wendy, querendo comprovar - ou recuperar - um sentimento despertado pela novidade de ser mãe da uma menina. Entre uma atenção e outra ao bebê, reencontrei intacto o meu herói. A lembrança de Peter, tão presente em minha vida infantil, tornou-se mais nítida do que a de qualquer amigo ou amiga desses tempos. Cada palavra da versão literária em inglês reacendeu em meu imaginário inúmeras fagulhas e foi como Wendy, uma mulher adulta e mãe, que chorei ao concluir a leitura. Paula Mastroberti, 2018.
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Este volume foi composto no In Design a partir de pĂĄginas montadas no Adobe Photoshop com artes produzidas no Sketchbook Pro e Adobe Sketch. A fonte utilizada nos quadrinhos, A Year Without Rain, ĂŠ de propriedade de Kimberley Geswein, de uso livre somente para fins nĂŁo comerciais. Para os demais textos, foi usada a fonte Kohinoor Bangla. Todos os direitos reservados a PaulaMastroberti. Site da autora: www.mastroberti.art.br Porto Alegre, 2018.
Janice Darling, uma brasileira, designer de moda e tataraneta de Wendy Darling, está grávida de uma menina.. Tal como aconteceu com ela própria, com sua mãe, Clara, com sua avó Margaret e com sua bisavó Jane, Janice sabe que a menina que está por nascer viverá o mesmo ritual pelo qual passaram todas as mães da família. Também o quarto dela será invadido pelo estranho menino que jamais cresce, por não pertencer nem ao mundo dos vivos, nem ao mundo dos mortos. Contudo, algo diferente está acontecendo, dessa vez. Será um sonho ou um pesadelo? A sombra de Peter surgiu cedo demais! Enquanto recorda seu próprio encontro com Peter Pan, Janice tenta garantir que a filha não será levada para Neverland antes da hora, pois isso significaria perdê-la para sempre. Portadoras do sedutor “beijo escondido”, as meninas Darling são, para mim, as verdadeiras heroínas do universo conjurado pelo escritor e dramaturgo escocês James Matthew Barrie, em sua obra publicada em 1911, a partir da peça teatral que também é de sua autoria. Este é o primeiro volume de uma narrativa gráfica cuja inspiração é uma das minhas obras preferidas desde a infância..
PAULA MASTROBERTI