Homilia do Trânsito de São Francisco Convento São Francisco, São Paulo – SP, 4/10/2018
Francisco e a paz que buscamos Caros irmãos e irmãs, o Senhor lhes dê a paz! É com essa saudação utilizada por São Francisco que inicio essa singela reflexão nessa noite em que fazemos memória daquele dia 3 de outubro de 1226, quando o pobrezinho de Assis, o santo da paz e o modelo de reconciliação entrega seu espírito nos braços do Pai e faz as pazes com aquela que era tida por inimiga e que então passava a ser acolhida como sendo sua irmã, a Irmã Morte. Nesse ano, ao longo dessa novena que hoje estamos encerrando aqui em nosso Largo São Francisco, refetimos, rezamos, cantamos e celebramos sobre a temática: Francisco e a paz que buscamos. Se olharmos o texto dos Fioretti que foi lido hoje, e que apresenta a legenda do lobo de Gubbio, talvez possamos nos identificar rapidamente com essa história. De um lado vemos um povo amedrontado, armado, cheio de ódio e desejoso de vingança. De outro, um lobo faminto, feroz, violento, assassino e assustador. Mais do que uma história interessante com um final feliz para contarmos às nossas crianças da catequese, essa legenda nos apresenta profundas lições acerca da paz que Francisco nos propõe. Trata-se, no fundo, de uma metáfora do verdadeiro caminho da paz e da reconciliação humana. Pois bem, embora Francisco não justifique ou encoberte as maldades e as violências cometidas pelo lobo, ele não cede à tentação dos julgamentos e conclusões rápidas e superficiais, tão comuns em nossos tempos de condenações e linchamentos virtuais. São Francisco, ao analisar com cuidado a situação, descobre que o lobo agia daquela forma violenta levado pela falta de alimentos e pela fome que lhe castigava. Mais do que isso, Francisco descobre que era por causa da própria ação humana sobre a floresta que os alimentos daquele lobo tinham desaparecido. Sem se preocupar com aqueles que iriam dizer que ele estava defendendo um lobo bandido e que a única solução era a sua morte ou extinção, afinal, há quem diga que bandido bom é bandido morto, Francisco se aproxima daquele lobo, descobre a causa do problema, realiza um encontro entre ambas as partes e conclui um pacto de paz, que incluía o compromisso da aldeia em garantir comida para aquele animal e a certeza de que o lobo passaria a agir sem maldade e agressividade. Trata-se de um pacto de paz diferente daquele que estamos acostumados a ver, em que políticos e poderosos aproveitam-se das feridas e do medo implantados no coração do nosso povo para dar vasão aos seus interesses econômicos e às suas perversidades, ainda que a custo do incentivo ao ódio, ao armamento, ao preconceito, à violência, à exclusão e à indiferença frente aos mais pobres e às minorias. O pacto de paz que Francisco sela entre o lobo e a cidade de Gubbio tem como base a erradicação da desigualdade, a garantia das condições básicas de vida, a capacidade do perdão e o rompimento da lógica simplista que divide o mundo entre bons e maus, vilões e mocinhos, certos e errados, puros e impuros. Esse pacto alcançado por Francisco é fruto de uma presença pacificadora capaz de desarmar espíritos, superar preconceitos, construir novas relações e novos compromissos de ambas as partes, superando, assim, a verdadeira causa do conflito. Entre o lobo e a cidade de Gubbio se dá um processo de conversão, de mudança de mentalidade, de atitudes e de visão. Assim, diferentemente da lógica neofascista daqueles que fazem apologia à violência, à tortura e ao terror, Francisco não acirrou as contradições nem remexeu a dimensão sombria onde se escondem os ódios, mas, ao contrário, confiou na capacidade humanizadora da bondade, do diálogo, da acolhida do diferente, da empatia e da mútua confiança. E aqui é preciso dizer que a sua paz não tem nada de
ingenuidade ou de um mero sentimentalismo barato. Tampouco é sinônimo de conivência ou indiferença com as situações de erro, de injustiça ou pecado. A Paz de Francisco é audaciosa, é criativa, é baseada na certeza que só o amor é capaz de desarmar os corações. A paz de Francisco insiste em resgatar a bondade original de cada ser humano. Sua paz não é a simples vitória de um dos lados, mas é a superação dos lados e dos partidos. É fruto de uma construção coletiva entre os cidadãos e o lobo, é fruto de uma sociedade que se concebe como uma grande fraternidade. Essa Paz proposta por Francisco é diferente daquela pregada pelo mundo, que ultimamente tem até usurpado a própria Palavra de Deus para tenta justificar a violência em nome de um Senhor que foi o verdadeiro Príncipe da Paz. Jesus mesmo adverte sobre a diferença entre essa paz do mundo e a paz que Ele nos oferece. Essa paz de Francisco é aquela que é fruto de uma experiência anterior da bondade e do perdão de Deus. É uma paz oferecida porque foi antes concebida no interior do próprio coração. Para ele, a paz é um dom do céu, ligado essencialmente a Jesus Cristo (cf. Ef 2), “no qual foram pacificadas todas as coisas, assim as da terra como as do céu, e reconciliadas com o Deus onipotente” (cf. Adm 15; Cant 11). A verdadeira paz é experimentada por quem vive para Deus e por quem experimentou a força do Seu amor. Assim, caros irmãos e irmãs, para que essa nossa noite não sirva apenas para anestesiar as nossas consciências com uma recordação tranquilizante de um mero acontecimento do passado protegido por um filtro de certa inofensividade, precisamos transformá-la em atitudes e opções coerentes, principalmente nesse momento decisivo em que estamos vivendo em nosso país. A celebração desse trânsito de São Francisco nos ensina que só pode morrer tranquilo e pacificamente quem soube fazer da sua vida também uma promoção da verdadeira Paz que o Senhor nos dá. Em um mundo marcado por preconceitos, ódios e divisões, Francisco nos ensina que para acolher a morte como irmã é necessário, antes de tudo, ser irmão de toda a criatura, superando essas divisões ideológicas, religiosas ou partidárias que tem transformado a nossa nação, as nossas redes sociais, as nossas comunidades eclesiais e os nossos relacionamentos em uma verdadeira guerra e disputa, onde o diferente se torna inimigo a ser combatido e eliminado. Que nessa noite façamos da celebração do ocaso desse grandioso sol de Assis também um apelo à nossa própria conversão e uma releitura crítica do momento em que estamos vivendo e das nossas reais opções de paz. Que assim como ele optou em viver a sua vida a partir da lógica pacífica de Jesus e, consequentemente, encontrou-se com a morte com alegria e desprendimento, que nós também possamos viver a nossa vida de acordo com a proposta do Reino de Deus, fazendo opções realmente evangélicas e pacíficas, de modo que ao chegarmos ao termo de nossa existência também possamos acolher a morte não como inimiga, mas como irmã e como porta de acesso à vida. Por fim, recordemos as últimas palavras de Francisco, que depois de ter restabelecido a paz entre o Bispo e o prefeito de Assis, assim se despede dos seus: “Eu fiz a minha parte. Que Cristo vos ensine a cumprir a vossa!”. Que como franciscanos e franciscanas, possamos assumir a nossa missão de sermos promotores da verdade, da justiça e da concórdia, na certeza da bem-aventurança e da felicidade do pacíficos, porque um dia serão chamados filhos de Deus (Mt 5,9). Paz e bem! Frei Diego Atalino de Melo
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