Nosso Eremitério de Rodeio

Page 1

Nosso Eremitério de Rodeio

redimensionamento e revitalização

redimensionamento e revitalização

1



Nosso Eremitério de Rodeio – redimensionamento e revitalização

Decisão capitular

Caros confrades! O nosso Capítulo Provincial de novembro de 2018, entre as indicações de redimensionamento de nossa vida pessoal e fraterna, e de nossas presenças, decidiu pela recomposição de uma pequena fraternidade no Eremitério Beato Egídio de Assis, de Rodeio, considerando-o lugar de acolhida para confrades e outros grupos que buscam dedicar-se, por um determinado período, ao cultivo mais intenso da dimensão contemplativa do nosso carisma. A proposta aprovada pelo Capítulo intui que a dedicação de frades e de leigos(as) que se disponham ao cultivo da vida de oração e de retiro no Eremitério dará novo vigor à nossa própria evangelização, na busca de se fazer com que nossas presenças sejam “fraternidades contemplativas em missão”1. Em vista de se constituir tal fraternidade nos altos do Ipiranga, em Rodeio, durante o atual triênio, o Definitório Provincial recentemente nomeou uma comissão para ajudar a refletir a questão, a motivar os confrades e a dar os encaminhamentos necessários.

Insistência recente da Ordem...

A decisão de nosso Capítulo pelo Eremitério não se mostra isolada e sem contexto. Vem no embalo de indicações da própria Ordem expressas nos últimos Capítulos Gerais. O último, de 2015, em sua decisão n. 7, determinou que, com a publicação de linhas-guia e a indicação de vias concretas, se encorajasse cada Entidade, ou ao menos cada Conferência, a constituir uma fraternidade de eremitério ou casa de oração, favorecendo inclusive aos frades a formação para um estilo de oração franciscana que possa ser útil também para outras fraternidades. O Capítulo Geral de 2009 já havia pedido, em sua decisão n. 9, que se estabelecesse, ao menos em nível interprovincial, casa de acolhimento e de partilha, na qual a vida de oração fosse vivida como manifesta prioridade, em modo de “escola de oração” para frades e leigos, e como forma de evangelização. Em 2017, atendendo às orientações capitulares, o Definitório Geral publicou as citadas linhas-guia no subsídio intitulado “Escutai e vivereis... inclinai o ouvido do vosso coração”. O documento foi enviado no mesmo ano a cada confrade da Província. 1 - Cf. Documento do Conselho Plenário da Ordem, de 2018, p. 34.

... mas o apelo para a oração já vem há tempos

Basta correr os olhos pelos documentos lançados no período pós CCGG de 1986, para darmonos conta de como o tema “espírito de oração e devoção” retomou centralidade em nossa vida. Assim, pode-se dizer que a insistência atual em torno do eremitério e da casa de oração é fruto de reflexão e tomada de consciência que vêm de mais longe, e que colocam “o espírito de oração e devoção”, ou a chamada dimensão contemplativa, como prioridade de nossa vida evangélica e de nosso carisma. Elencamos sumariamente alguns documentos: 1985 O Capítulo Geral elege a dimensão contemplativa como uma das três prioridades do Plano Sexenal. Ela ocupa significativamente o primeiro lugar; 1985 Nosso Capítulo Provincial, nos seus objetivos do sexênio, institui como primeiro deles: cultivar o espírito franciscano de oração e contemplação; 1987 A Formação Permanente da Província compõe três cadernos de estudo intitulados: “Na procura do espírito de contemplação”, “A contemplação franciscana”, “Textos contemplativos franciscanos”; 1990 É publicado pelo Secretariado Geral para a Formação e os Estudos o documento “Nossa Identidade Franciscana” (para uma leitura das CCGG). O tema 5, sobre “o espírito de oração e devoção”, abre-se com a afirmação: “Com este título as CCGG sublinham a centralidade que tem Deus na vocação evangélica do irmão menor, e, como consequência, a importância da oração no nosso projeto de vida”, que se fundamenta e se edifica sobre a experiência de Deus, a exemplo do Poverello, do qual Celano diz que não era tanto um orante, mas totalmente feito oração2. E o documento pergunta se não está nisso o segredo de nossa vida: nessa dinâmica totalizadora própria da adoração de Deus “em espírito e verdade”, que fez de Francisco um verdadeiro contemplativo; 1991 Na Província, o Capítulo elabora um Programa Trienal, com 4 prioridades; uma delas é justamente “oração e contemplação; 2 - Cf. 2Cel 95.

3


Nosso Eremitério de Rodeio

4

1994 É publicado “O coração voltado para o Senhor” – recomendações da comissão OFM para a dimensão contemplativa. Segundo o texto, Francisco e Clara mostram com decisão que o coração da vida dos frades e das irmãs pobres consiste em “desejar o espírito do Senhor e seu santo modo de operar e rezar sempre a Deus com coração puro” (RB 10,9-10; RSC 10,9-10). 1996 O Secretariado Geral para a Formação e os Estudos publica o subsídio “O espírito de oração e devoção”, com 118 páginas. Entre os temas abordados: vocabulário franciscano da contemplação, liturgia das horas, a oração pessoal, eremitério e solidão. 1997 Prioridade primeira da Ordem, estabelecida pelo Capítulo Geral: o espírito de oração e devoção. “Em todas as suas manifestações, a nossa vocação franciscana não encontra a sua razão de ser naquilo que fazemos, mas naquilo que somos: seguindo os passos e os ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo, somos chamados a construir uma Fraternidade na qual se busque e se ame a Deus sobre todas as coisas. Assim, é fundamental que cada irmão e toda a Fraternidade tenha o ‘espírito do Senhor e seu santo modo de operar’... A dimensão contemplativa deve ser a prioridade que orienta e anima a nossa vida: a maneira pela qual procuramos e vivemos a presença de Deus no dia a dia e que determina também o nosso concreto estilo de vida e a nossa prática evangelizadora em fraternidade”. 2000 As várias versões do Plano de Evangelização da Província, a partir de 2000, trazem o “espírito de oração e devoção” como elementar entre os nossos princípios ou como dimensão transversal do nosso carisma. Anterior ao Plano de Evangelização, o Plano de Ação (triênio 1998-2000) já trazia a oração e a contemplação como primeira prioridade na vida dos irmãos. 2003 “O caminho que leva ao lugar do coração” – achegas para descobrir a interioridade e o silêncio na vida franciscana. O livreto afirma que no espaço da interioridade, o silêncio pede a escuta de nós mesmos, dos outros e da realidade, nesse tempo de mudanças, rico

de sinais, com uma sociedade secularizada, focada no indivíduo muitas vezes fragmentado e com identidade fluida. A Ordem também enviou a todos os frades um folder com proposta de itinerário para a leitura orante da Palavra de Deus na vida franciscana.

Eremitério de Rodeio – inícios

O Eremitério Beato Egídio de Assis, de Rodeio, foi concebido nos anos em que na Ordem e na Província a dimensão da oração e da contemplação ganhava impulso de prioridade. Nas Comunicações de fevereiro de 1988, o então ministro provincial Frei Estêvão Ottenbreit relata como foram surgindo as primeiras intuições em torno da instauração de um eremitério na Província e como foi-nos doado o terreno para isso, pelo sr. Paulo Notari: “Achamos que o eremitério, como experiência e realidade, devia fazer parte do programa da Formação Inicial. Aos poucos, a escolha, ainda muito tímida, foi recaindo sobre o Noviciado, em Rodeio. A região montanhosa, com vegetação exuberante, configurava-se numa ‘pequena Úmbria brasileira’. Houve momentos em que tudo parecia apenas mais um sonho, mas, de repente, apareceu uma solução: a doação de um topo de montanha com um grande número de cavernas. Não podia haver local mais adequado. No dia da profissão dos noviços, fomos ver o local com o proprietário e, no final da visita, ele acertou a doação do nosso ‘Monte Alverne’ de Rodeio, dos noviços, dos irmãos da Província”. No mesmo texto das Comunicações, Frei Estêvão destaca a motivação principal de os frades da Província contarem com um eremitério: “A dimensão contemplativa é fonte e mar, começo e retorno da caminhada franciscana. Quer-se buscar o constante espírito de oração e devoção que não nos afasta das realidades humanas, mas nos ajuda a penetrar mais profundamente em nossa situação históricacultural-social”. Recorrendo ao Poverello, Frei Estêvão assegura que “Francisco é um homem que se solidariza. Mas trata-se de uma solidariedade que não se resume em espalhafato. É solidariedade que brota do silêncio amoroso, da oração contemplativa, da meditação reveladora. Apenas aquele que souber viver a solidão será capaz da solidariedade franciscana. O mero ativismo, com facilidade, nos cega e cansa, deixando, muitas vezes, como resultado, apenas ruínas”.


redimensionamento e revitalização

Breve histórico do eremitério

06/03/1988 - Bênção do Cruzeiro pelo ministro geral Frei John Vaughn. A imagem do Cristo (2,5m de altura) foi esculpida por Frei José Rochinski, falecido em 1998. Na fala aos noviços, no mesmo dia, Frei John ressalta que o noviciado tem o mesmo escopo que o eremitério: onde se tem mais espírito e liberdade de ouvir, escutar e ver. “Temos na vida a tentação de sempre escapar. Para conhecer a Deus é preciso ver o que não tem forma e ouvir o que não tem som. Requer-se uma disciplina interior, pessoal, para poder ouvir bem e ver bem. O noviciado é só o começo, mas o fundamento de toda a vida. O sentido de nossa oração, do nosso escutar e ver melhor é o reino de Deus e a sua justiça, como diz a Regra para os Eremitérios”. É importante recordar que Frei Ari do Amaral Praxedes, desde a bênção do Cruzeiro, assumiu a vida eremítica no local até o início de 1994, tendo como abrigo um barraco onde se guardava material de construção. Ali permanecia sozinho de segunda a sexta, e ajudava nos finais de semana na paróquia. Nos dois primeiros anos, não havia água nem luz no rancho. Os noviços e também outros confrades faziam experiência de eremitério ali. Frei Ari nos relata: “Eu queria viver na solidão para compreender-me no Natal, na Ceia e na Cruz; para compreender como Deus é Deus-em-nós”. 15/02/1991 - Bênção do Eremitério em construção (que durou de 1990 a 1993), também pelo ministro geral Frei John Vaughn, inclusive com o lançamento e bênção da pedra fundamental da capela. Na homilia, Frei John deixa claro que “o eremitério de Rodeio, por um lado, é um marco de chegada: os cem anos de vida franciscana na restauração desta Província; e, por outro lado, é um reinício, junto com toda a Ordem, para se viver com maior evidência e vigor a missão própria da Ordem, conforme o estilo de São Francisco: seguir a Jesus Cristo pobre e humilde. É muito significativo que a celebração do centenário da restauração tenha incluído, no seu programa, um dos aspectos mais característicos e fundamentais da vida de São Francisco e dos primórdios de nossa Fraternidade: oração, contemplação, eremitério... no sentido de uma solidão fecunda, de encontro profundo e decisivo com o Pai, na redescoberta da verdadeira força interior das nossas orações e meditações diárias, com a busca contínua de nos dispormos à vontade do Pai, como fez Jesus Cristo, o Filho dileto e nosso irmão” (Comunicações, março/1991). 20/02/1994 - I nauguração e bênção do Eremitério pronto, e instauração da primeira fraternidade, composta por Frei Celso Feldkircher, Frei Eduardo Schuster e Frei José Bertoldi. É Frei Estêvão que mais uma vez traz à tona o sentido do eremitério: “Ele não será garantia ou solução milagrosa para tudo, mas quer contribuir, como uma modalidade, para conseguirmos a ‘restauração’ do homem feito religioso franciscano e, como tal, ser um marco eloquente e convocatório para a contemplação

5


Nosso Eremitério de Rodeio

6

de Deus em toda a nossa vida, em nosso ser e em nosso fazer. Ele quer proporcionar uma experiência de Deus e de solidária fraternidade na busca de novas relações”. Para fundamentar ainda mais a face contemplativa do nosso carisma, Frei Estêvão faz alusão ao próprio Jesus, frisando que “sua missão, sem dúvida alguma, foi a implantação do Reino de Deus. Mas, chama a atenção o fato de ele, no início e no decorrer da missão, ser conduzido pelo Espírito ao deserto e ao alto da montanha. Deserto e montanha, dois aspectos que ultrapassam na vida de Jesus o mero significado geográfico. Parece-me que o ‘conduzir ao deserto’ significa concentrar-se no essencial da missão. Longe dos múltiplos aspectos secundários, que não poucas vezes deturpam a percepção e visão das coisas, importa enxergar o principal. E a ‘transfiguração’ no alto da montanha serve primordialmente para fortalecer os discípulos na sua missão nem sempre fácil” (Comunicações, janeiro-fevereiro/1994). Situação atual - A ideia inicial era manter dois ou três irmãos em caráter mais permanente no eremitério (por um, dois, três anos) e possibilitar a acolhida de outros irmãos que para lá fossem por alguns dias, semanas ou meses. Partia-se do princípio de que o Eremitério de Rodeio deveria ser um marco da dimensão contemplativa, componente do carisma franciscano de cada irmão, onde quer que ele se encontrasse ou no que estivesse fazendo. Porém, por razões diversas, a primeira fraternidade no alto da montanha durou apenas um ano. E desde 1995, o eremitério tornou-se casa para retiros de pequenos grupos de frades, religiosos, religiosas e leigos, assim como para as experiências eremíticas dos noviços, que continuam até hoje. Deste modo, a casa passou a ser usada esporadicamente. Os Governos Provinciais não insistiram mais em manter uma fraternidade permanente no Eremitério, mas propuseramse, sobretudo a partir do empenho e generosidade da fraternidade do Noviciado, a criar as condições de infraestrutura para que pessoas, individualmente ou em grupos, pudessem realizar experiências de oração e contemplação no ermo. Por causa disso, no ano 2000, foram acrescentados mais alguns quartos à casa.

Entendimento da dimensão contemplativa – possíveis riscos

Parece não haver dúvida sobre a relevância da dimensão contemplativa em nossa vida de irmãos menores. Porém, antes de nos aproximarmos dessa perspectiva determinante do nosso carisma, ao tratar de contemplação, é preciso tomar alguns cuidados. Há riscos a serem evitados. O primeiro deles é achar que ela possa ser ensinada ou que seja resultado de um curso, da assimilação de um método, da aprendizagem de uma série de técnicas, da adesão a uma escola. Depois, falar e ouvir a respeito de contemplação pode deixar de ser atraente por apresentar supostos ares de “outrora”, de algo dos eremitas dos primeiros séculos do Cristianismo, ou dos padres do deserto, ou mesmo dos monges e frades medievais; algo, portanto, anacrônico, fora do contexto de nossos dias. Outro risco ainda é alimentar a dicotomia que vigora, não em pequena escala, entre evangelização-contemplação, ação-oração, que tende a ser resolvida com o abandono

do elemento contemplativo, pelo nivelamento: tudo é oração3.

O dom e a novidade da contemplação

É importante ter em conta que a contemplação se origina de um apelo divino, que nos coloca em busca e num trabalho empenhado de nos dispormos justamente a tal dom. A “ambição” suprema do(a) religioso(a) consiste na “conquista” desse dom. A graça da convocação divina nos leva a uma grande disponibilidade de fazer, com inteligência, cordialidade e vontade, tudo o que podemos para corresponder ao apelo que vem de Deus. A contemplação acontece na pessoa, porém não é possibilidade que compete ao fazer humano. Ela é obra de Deus. É por graça absolutamente gratuita e incondicional que Deus se comunica a nós, fazse conhecer assim como é e nos convida a sermos participantes de sua vida. Para Francisco e Clara, como para toda a tradição cristã genuína, o olhar contemplativo é a capacidade que Deus dá ao ser humano de perceber em 3 - Cf. Na procura do espírito de contemplação, p. 3 e 4.


redimensionamento e revitalização

tudo o que existe o seu mistério último, para além daquilo que é imediatamente acessível, utilizável e superficial4. É acolher o dom inaudito de Deus, oferecido a cada um de nós, custodiá-lo na interioridade, penetrar-lhe o sentido com a profunda reverência de um coração aberto e humilde, ou, na linguagem de Francisco, de coração reto e mente pura (RnB 22,26). Assim, é o dom de Deus que pode nos dispor e abrir nosso coração, voltá-lo para Si e, por seu Espírito, manifestar-nos “o santo amor com que nos amou” (RnB 23,3). Em outras palavras, o contemplativo é o homem que se sabe amado por Deus. Sua tarefa resumese no dizer “sim”. No acolher. No deixar-se ser amado por Ele. E no desejo de participar deste amor. Daí, o espaço das descobertas. Da possibilidade de amar com o mesmo amor de Deus. Tudo é sempre novo. Tudo é a primeira vez5. O impulso da bondade em nós tem sua fonte no Espírito Santo. Nossas várias ações, queiramos ou não, são respostas a ele. Mas o início do processo, quem faz a proposta é sempre Deus em seu amor.

Sentido da palavra contemplação

Diante da palavra contemplação, descobrimos nela uma composição onde figura o termo “templum”, que sempre designou o local ou espaço físico onde o ser humano, de modo especial, procura entrar em contato com Deus. Segundo estudo de Frei José C. Pedroso, na era pré-cristã, no tempo dos romanos, os sacerdotes se colocavam dentro do templo, numa situação de envolvimento com (cum) o seu ambiente, para descobrir a vontade dos deuses nos seus auspícios ou augúrios, relacionados com o voo dos pássaros (auis, mais tarde lido avis) que conseguiam observar pela abertura no teto do templo. Isso pressupunha e favorecia um olhar concentrado e uma busca do sentido divino. Até hoje usamos o termo contemplar para significar um olhar concentrado, por exemplo, na observação de uma flor6. Templo e morada de Deus se conotam. Talvez pudéssemos dizer que templo é o espaço no qual Deus dá audiência ao ser humano. Ora, entrar na contemplação é entrar no templo. É deixar-se envolver por esta realidade. É perceber a presença 4 - Cf. O coração voltado para o Senhor, p. 5. 5 - Cf. Na procura do espírito de contemplação, p. 14. 6 - Cf. Abrace o Cristo pobre, de Frei José C. Pedroso, p. 94 a 98.

de Deus não somente como “algo” majestosamente sublime e distante, acima dos coros angélicos, mas uma presença encarnada na realidade de nossa vida de cada dia7. Então, contemplar não se esgota no entrar no templo ou na sombra de uma cela, ou no oco de um rochedo, ou no coração da floresta. Antes de tudo, é entrar no fundo do próprio ser, onde se encontra, a pleno vigor, a capacidade de ver e escutar. Como diz São Bernardo de Claraval, o “coração se põe à escuta; torna-se orelha”, linguagem presente nas Escrituras, particularmente nos Salmos e no Cântico dos Cânticos. É sempre a voz; para o místico, a voz revela a presença divina. E escutar significa abrir a porta, levantar o ferrolho, destrancar o coração. Assim a voz divina fecunda o coração8. Maria é ícone desta escuta. Um coração capaz de acolher a palavra, que passou pelos ouvidos, e tornou-se Verbo-carne em seu ventre.

Contemplação: um modo peculiar de ver, ouvir, admirar

Pensar a contemplação nos remete à naturalidade, inocência e pureza com que as crianças veem as coisas e se admiram. Tudo lhes fica mais próximo, mais direto, sem intermediações ou suposições, sem interpretações ou adaptações. Tudo lhes é mais “real”. Quando tentamos interpretar, de certo modo, queremos nos apossar de algo. Atraímos e não nos deixamos atrair. O olhar contemplativo não é incisivo, não se impõe; antes, é acolhedor e perscrutador, com a reverência de quem se admira e não busca possuir. É o olhar que vai bem além das aparências. Tal olhar nos faz lembrar Saint-Exupéry, no seu Pequeno Príncipe: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer”. Há um filão importante aqui a ser considerado: o olhar contemplativo nos levaria a simplificar nossas relações com as pessoas e com os outros seres, admirados pela profundidade abissal que envolve cada criatura: uma pedra, uma nascente d’água, uma estrela que fulge no céu, um leproso em farrapos, como Francisco nos ensina. O doutor seráfico São Boaventura convoca a esse modo de 7 - Cf. Na procura do espírito de contemplação, p. 12. 8 - Cf. Na procura do espírito de contemplação, p. 14.

7


Nosso Eremitério de Rodeio

ver de forma lapidar: “É realmente cego quem não vê tantos esplendores que, em profusão, emanam da criação. É surdo quem não desperta ante o concerto de tantas vozes. É mudo quem não louva a Deus diante de todas essas obras. É tolo quem, diante disso tudo, não reconhece o primeiro princípio. Abre, pois, os olhos, utiliza os ouvidos de tua alma, solta os teus lábios, aplica o teu coração a ver, compreender, louvar, venerar, honrar e glorificar o teu Deus em todas as coisas”9.

A contemplação nos escritos de Francisco e Clara

8

Embora muito empregada nas biografias, nos Escritos de São Francisco, porém, a palavra contemplação aparece apenas uma vez. É na 1ª Admoestação (20), no contexto eucarístico: “E assim como eles (os apóstolos) com a visão do seu corpo só viam a carne dele (do Cristo), mas contemplando-o com olhos espirituais criam que ele é Deus, do mesmo modo também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos do corpo, vejamos e creiamos firmemente que é vivo e verdadeiro o seu santíssimo corpo e sangue”(20). Trata-se de um modo singular de ver, de observar e de reconhecer. A única premissa para a contemplação são os olhos espirituais, ou seja, a capacidade de ver tudo com os olhos do Espírito10. Mas Francisco serve-se de outras expressões que remetem para esta mesma dimensão contemplativa: 1. Na 16ª Admoestação, por exemplo, ele cita a bem-aventurança dos puros de coração, que verão a Deus (Mt 5,8), e elucida que estes puros de coração são “os que nunca desistem de adorar e procurar o Deus vivo e verdadeiro com o coração e mente puros”. O coração é o centro de unidade da pessoa. E é a partir dele que o frade menor procura o mistério que se esconde nos seres humanos, nos acontecimentos, na história e na natureza, e que apontam para o Deus vivo11. 2. Expressão muito próxima disso aparece na Regra não Bulada, cap. 22, 26-27. Numa perspectiva trinitária, Francisco pede que os irmãos “esforcem-se por servir, amar, honrar e ado9 - Itinerarium mentis in Deum, c. 1, n. 15. 10 - C f. Escutai e vivereis, p. 10. 11 - C f. O coração voltado para o Senhor, p. 5.

rar o Senhor Deus com o coração reto e com a mente pura, pois é isto que ele deseja acima de tudo, e façamos sempre aí uma habitação e um lugar de repouso para ele que é o Senhor Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo”. 3. Quando na Regra Bulada, cap. 10, 9-10, Francisco admoesta seus frades a desejarem possuir o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar e a rezarem sempre a ele com o coração puro, ele os convoca a viver aquela relação com Deus que é “unidade simples e trindade perfeita”, a tal ponto que essa relação se exprima em boas obras, operadas pelo mesmo Espírito do Senhor, na vida dos irmãos. 4. Já ao tratar do modo de trabalhar, na Regra Bulada, cap. 5, 2-3, Francisco exorta a que os irmãos “trabalhem fiel e devotamente, de modo que, afastado o ócio, que é inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e devoção, ao qual devem servir as demais coisas temporais”. A mesma expressão se encontra na Carta a Antônio, em referência ao ensino da Teologia aos frades. O espírito de oração e devoção assegura a continuidade do seguimento de Cristo, procurando em todo lugar e em todo momento, com todo o coração e todas as forças, o altíssimo, sumo e eterno Deus, que nos criou e remiu, para agradecer-lhe e para adorá -lo (cf. RnB 23, 8). 5. Santa Clara, nas Cartas a Inês de Praga, usa o termo contemplação mais vezes que São Francisco. “Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o coração na figura da substância divina e transforme-se inteiramente, pela contemplação, na imagem da divindade. (3In 12-13). (...) “Pois é claro que, pela graça de Deus, a mais digna das criaturas, a alma do homem fiel, é maior do que o céu. Pois os céus, com as outras criaturas, não podem conter o Criador: só a alma fiel é sua mansão e sede” (3In 21-22). Ou ainda: “Veja como por você ele se fez desprezível e siga-o, sendo desprezível por ele neste mundo. Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens, feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz” (2In 19-20).


redimensionamento e revitalização

Assim, sobretudo nas Cartas a Inês, sob a mística esponsal, Clara exprime o modo de viver em íntima relação com os mistérios da vida humana de Jesus, considerando-os e imitando-os, para ser memória viva de Sua presença. Nisso ela se aproxima estritamente de Francisco. Ambos, no caminho contemplativo, colocam o acento no mistério de Cristo, feito pobre, humilhado, crucificado por nosso amor, sempre em unidade com seu Pai e o Espírito. Em outras palavras, a dimensão contemplativa que, segundo outra expressão de Clara, consiste essencialmente no abraço ao Cristo para identificar-se com Ele, tanto em Clara como em Francisco nasce de um olhar atento e cheio de admiração e de gratidão pelo mistério da encarnação. Aquele “que os céus não podiam conter” abaixou-se até fixar morada “no pequeno claustro” do “santo seio” da jovem de Nazaré (cf. 3In 1819). O “Senhor dos senhores”, “tão digno, tão santo e glorioso”, ao receber “a carne de nossa humanidade e fragilidade” (2Fi4), “quis aparecer no mundo desprezado, indigente e pobre” (1In19); “de rico que era”(2Cor 8,9), “quis neste mundo, com a beatíssima Virgem, sua Mãe, escolher a pobreza” (2Fi 5). Vemos que tanto em Clara como em Francisco, a contemplação não se reduz a uma mera consideração intelectual, mas é envolvente e integral; em consequência, abraça a pessoa nas suas várias dimensões: espiritual, intelectual, afetiva. O amor do Senhor “apaixona”, nos torna apaixonados (4In11), é totalizante. Assim, mente, alma e coração estão constantemente voltados para o Senhor (cf. RnB 22,19)12. Estamos tratando da lógica do amor que, por sua natureza, leva à transformação e à ação. Deste modo, a contemplação é seguimento e o seguimento leva novamente à contemplação. Em Clara e em Francisco, seguimento e contemplação coincidem, até o ponto em que a contemplação os leva a identificarem-se plenamente com Jesus pobre, casto e obediente por amor.

A contemplação em Francisco

Tudo leva a crer que Francisco não queria outra coisa senão ser um contemplativo. Olhando para 12 - Cf. Clara de Assis e de hoje, de Frei José Rodríguez Carballo, 2004, p. 9.

sua biografia, percebemos que, de certa forma, ele retirou-se do mundo, embora não da Criação, à qual sentia-se muito unido. No encontro com Cristo (nas diversas formas: crucifixo, leproso, etc.), descobriu que a contemplação traz consigo a ação. Talvez até, num primeiro momento, não lhe tenha parecido muito claro este casamento13. Francisco descobre a sua vocação auscultando com insistência a vontade de Deus. Busca refúgio nas “grutas” para conhecer o desejo do Senhor. Vive com os primeiros companheiros longos períodos contemplativos, nos Carceri, por exemplo, unindo a contemplação à extrema pobreza e aos encontros fraternos. Envia Frei Masseo ao contemplativo eremita Frei Silvestre e à Irmã Clara, para que procurassem ajudá-lo a descobrir o querer de Deus quanto a consagrar-se à vida eremítica e contemplativa ou também à pregação e à evangelização (cf. LM 12,2). Mesmo escolhendo, com Cristo e como Cristo, a missão apostólica, não renuncia, todavia, a longas horas de solidão e oração, e insiste com os companheiros na importância da contemplação. Forma-os a partir do “livro da Cruz”, louva a fecundidade da oração solitária de seus irmãos simples, destacando-se, dentre eles, Frei Egídio14. Na oração de Francisco, tão assídua e intensa a ponto de fazê-lo parecer a oração personificada, é difícil separar a oração e a contemplação. Dado que é fundamentalmente um contemplativo, a sua oração, caracterizada pelo louvor, adoração e ação de graças, é trinitária-cristológica-marianacósmica, como nos atestam os exemplares que nos chegaram no conjunto dos seus escritos. Basta lembrar a “Saudação à bem-aventurada Virgem Maria, ou o “Cântico do irmão sol”. Natureza e graça colocam Francisco na atitude de maravilhamento e admiração diante de Deus, que se lhe revela como sumo Bem e Beleza infinita (cf. RnB 23,27-29), resplandecendo, inclusive, em todas as coisas criadas. Natureza e graça transformam-no num contemplativo para o qual tudo é solicitação a buscar aquele que é todo Bondade e Beleza e a caminhar com ele. Reconhecendo a iniciativa de Deus em cada coisa, Francisco sente a necessidade de despojar-se de tudo, de não reter nada para si, e de restituir tudo ao próprio Deus 13 - Cf. A contemplação Franciscana, p. 6. 14 - Cf. Dicionário Franciscano, 1993, p. 818.

9


Nosso Eremitério de Rodeio

com o louvor e com a vida. Francisco experimenta que Deus é essencialmente dom, que se entrega a nós gratuitamente, inserindo-se na nossa história pelo seu Filho, que se revestiu de nossa fragilidade. Assim Francisco contempla a humildade-pobreza-caridade de Cristo na encarnação-paixão -eucaristia, para conformar-se a ele15.

Francisco eremita

10

As fontes biográficas mostram que, nos primeiros anos de sua conversão, Francisco vive à maneira dos eremitas medievais, seja nos seus traços externos (veste, trabalho, lugares solitários, cavernas), seja nos traços espirituais (oração, silêncio, lutas ascéticas, lágrimas, penitência). Em São Damião, por exemplo, num primeiro momento vivendo escondidamente e depois iniciando a restauração da capelinha, ele aprofunda o colóquio de amor que o Cristo iniciara com ele ali. No terceiro ano, restaura a Porciúncula e então conhece, através do Evangelho do envio dos discípulos, qual deveria ser sua vocação-missão. Mesmo depois, ao receber companheiros e obter dos beneditinos do Subásio a “Pequena Porção” como sua morada, a vida ali conservará aquela atmosfera de eremitério: silêncio, contemplação, pobreza16. Desse modo, não causa estranheza o fato de Francisco ser um homem sempre em busca da solidão; e as cavernas, os bosques, as florestas, o alto dos montes se tornarem os lugares preferidos dele, onde se abisma para estar com o seu Senhor, adorá-lo, cantar-lhe os louvores. E aí já não contam mais os fatores tempo e linguagem: importa unicamente o encontro pessoal inebriante17. No decorrer dos anos, os momentos de vida eremítica mais intensos para Francisco são as quaresmas solitárias celebradas por ele para mergulhar mais a fundo no mistério da salvação. Temos relatos de ao menos cinco delas. São famosas as quaresmas vividas na ilha do lago Trasimeno, em Greccio, em Fonte Colombo, no Alverne. Vemos que não havia tensão entre a contemplação e a pregação na experiência de Francisco. Na verdade, a questão da dúvida de Francisco se deveria “viver entre os homens ou retirar-se nos eremité15 - C f. Dicionário Franciscano, p. 818 e 819. 16 - Cf. Dicionário Franciscano, p. 837. 17 - Cf. Dicionário Franciscano, p. 837.

rios”18, colocada por Celano e Boaventura e reelaborada posteriormente nos Fioretti e nos Atos do Bem-aventurado Francisco19, reflete mais as tensões vividas pela Ordem, quando tais textos foram escritos, do que aquelas vividas por Francisco e a primitiva fraternidade. Daí porque, de acordo com o minucioso estudo realizado por Pietro Messa20, a tradição mais confiável sobre esse episódio é aquela reportada pelo Anonimo Perusino e pela Legenda dos Três Companheiros21 e confirmada pelo testemunho do cardeal Jacques de Vitry22, segundo a qual, na experiência Francisco e seus companheiros, não aconteceu uma alternativa entre “conviver no meio dos homens ou recolherse em lugares solitários”23, mas, uma verdadeira e própria alternância entre tempos de busca de Deus na solidão e de apostolado itinerante, entre eremitério e cidade24. Na verdade, como conclui Messa, “o ideal de vida segundo a forma do santo Evangelho era o que animava os primeiros frades, o que comportava seja a busca de uma maior santidade na oração, seja um testemunho simples em meio aos homens, exortando-os à penitência e ao louvor do Senhor”25. De fato, como o próprio Celano atesta, havia uma espécie de alternância ou de composição entre as duas dimensões: “Por conseguinte, escolhia frequentemente lugares solitários para poder dirigir totalmente o espírito a Deus, mas não hesitava, quando via o tempo oportuno, em lançar-se às atividades e aplicar-se de boa vontade à salvação do próximo” (cf. 1Cel 71). Além disso, já na RnB 22,27, Francisco exorta seus irmãos a construírem dentro de si um “eremitério para o Senhor”, expressão crucial de sua aspiração à solidão contemplativa e adorante: “E façamos sempre aí uma morada e um lugar de repouso para ele que é o Senhor Deus onipotente, Pai, e Filho e Espírito Santo”. 18 - Cf. 1Cel 35,5. 19 - Cf. 1Cel 35; LM 12,2; Fior XVI. 20 - P. Messa, Frate Francesco: tra vita eremitica e predicazine, Ed. Porziuncola, Assisi, 2001. 21 - Cf. AP 18,1-4; LTC 36,1-2. 22 - Cf. Jacques de Vitry, Carta de Gênova, 1216. 23 - 1Cel 35,5. 24 - A propósito, veja-se o interessante estudo de G.G. Merlo que leva justamente este título: Tra eremo e città, E. Porziuncola, Assisi, 1991. 25 - P. Messa, Frate Francesco: tra vita eremitica e predicazine, p.141.


redimensionamento e revitalização

O eremitério franciscano

É certo que quando o Senhor lhe dá irmãos, Francisco com frequência os conduz a lugares de solidão. Foi assim que nasceram os eremitérios franciscanos, que terão tanto peso espiritual na vida e história da Ordem. A sede de solidão e contemplação que caracterizava a vida de Francisco se torna paixão também dos seus companheiros, mesmo tendo sido convocados à evangelização. Através dos eremitérios geográficos, o que Francisco busca realmente é o eremitério interior, como aparece bem evidente nas metáforas empregadas pelo autor da Compilação de Assis, n. 108, ao apresentar a seguinte exortação do santo: “Em nome do Senhor, ide dois a dois honestamente pelo caminho e principalmente em silêncio, desde o amanhecer até depois de Terça, rezando ao Senhor em vossos corações. E não mencioneis entre vós palavras ociosas. Pois, embora estejais a caminho, seja, no entanto, vossa convivência tão honesta, como se estivésseis no eremitério ou na cela; pois o irmão corpo é a nossa cela, e a alma é o eremitério que mora dentro da cela para rezar a Deus e meditar. Por isso, se a alma não permanecer na tranquilidade e na solidão em sua cela, pouco serve ao religioso a cela feita pela mão”. (É interessante recolher a observação de Jacques de Vitry, testemunho não-franciscano, de 1216: “O gênero de vida destes irmãos é igual ao da comunidade primitiva... Durante o dia entram nas cidades e vilas, dedicando-se à vida ativa do apostolado, e à noite, regressam ao eremitério, ou qualquer lugar solitário, onde levam vida contemplativa”). Além disso, em dois textos dos Escritos de Francisco encontramos a pressuposição da existência de vida eremítica assumida pela fraternidade primitiva dos Menores. Na RnB 7,13, lê-se: “Cuidem os irmãos, onde quer que estiverem, nos eremitérios ou em outros lugares, para não se apropriarem de nenhum lugar nem o reivindicarem de ninguém”. E na Carta a um Ministro 6-8, ao tratar da verdadeira obediência, encontramos a interpelação de Francisco: “Não queiras da parte deles (dos irmãos que causam aborrecimento) outra coisa, a não ser o quanto o Senhor te conceder. E ama-os em tudo isto; e não queiras que sejam cristãos melhores. Considera isto mais que um eremitério”. Também depois de Francisco a presença dos irmãos nos eremitérios continua. Basta pensarmos num Egídio de Assis que cultiva vida eremítica

quase que permanentemente, num Antônio de Pádua que intercala sua intensa atividade missionária com prolongados tempos de oração26, ou num Boaventura que, dois anos depois de eleito Ministro Geral, sobe ao Monte Alverne “com o desejo de degustar lá a paz do coração”27, onde compõe um dos textos mais significativos da mística ocidental, o “Itinerário da mente para Deus”. Além, disso, ao longo da história franciscana, os grandes movimentos de renovação tiveram como ponto de partida e de referência os eremitérios. A começar pelo movimento da observância franciscana, no século XIV, iniciado justamente a partir da solicitação de Frei Paoluccio Trinci de retirarse, com alguns companheiros, no convento de São Bartolomeu de Brogliano, a fim de observar a Regra e o Testamento ad litteram et sine glossa28. E mesmo quando tal movimento cresceu de tal modo a se tornar majoritário dentro da Ordem e encaminhar-se sempre mais para uma atuação dentro das cidades, os maiores dos seus expoentes, como Bernardino de Siena e João de Capistrano, gigantes da pregação, irão retornar constantemente à experiência eremítica na qual tinham sido formados29. Também outra grande reforma franciscana, a capuchinha, no século XVI, origina-se da experiência eremítica, tanto que, inicialmente, foram chamados de Frades Menores da vida eremítica, pois alternavam entre a solidão do eremitério e a atividade de pregação30. Isso sem falar em Pedro de Alcântara que, tendo se tornado frade, permaneceu por um longo período em Portugal assumindo vida eremítica sobre as montanhas da Arábida e, depois, retornando à Espanha, retirou-se em so26 - Exemplo disso, enquanto custódio de Limoges no sul da França, foi a fundação de um conventinho em Brives, que ele promoveu, onde escolhera uma gruta como sua cela eremítica, e onde se retirava com frequência. 27 - Boaventura, Itinerário da mente para Deus, prólogo n.2. 28 - M. Sensi, Dal movimento eremitico alla regolare osservanza franciscana: l’opera di fra Paoluccio Trinci, Ed. Porziouncola, 1992, p.22. 29 - Basta pensar que Bernardino, tendo ingressado na Ordem já com uma sólida formação intelectual, fez seu noviciado no eremitério de Colombaio, ligado à reforma da Observância. 30 - Cf. G.G. Merlo, Em nome de São Francisco, p. 248257.

11


Nosso Eremitério de Rodeio

lidão em uma pequena Igreja de Cáceres, onde deu início à reforma posteriormente chamada de alcantarina. Portanto, nossa história demonstra que as grandes reformas do franciscanismo solicitam e pressupõem a experiência eremítica. Não seria também esse um pressuposto fundamental para um autêntico processo de redimensionamento de nossa vida e missão?

Regra para os eremitérios – aspectos originais

12

Aqueles que querem viver religiosamente nos eremitérios sejam três irmãos ou no máximo quatro; dois deles sejam as mães e tenham dois filhos, ou um pelo menos. Esses dois, que são as mães, levem a vida de Marta, e os dois filhos levem a vida de Maria (cf. Lc 10,38-42) e tenham um claustro em que cada um tenha sua pequena cela para rezar e dormir. E rezem sempre as Completas do dia logo após o pôr-do-sol; e esforcem-se por manter o silêncio; e rezem suas horas (canônicas); e levantem-se na hora das Matinas e procurem primeiro o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33; Lc 12,31). E rezem a Prima na hora conveniente e, depois da Terça, podem romper o silêncio e falar e dirigir-se às suas mães. E, quando lhes aprouver, podem pedir-lhes esmola, como os pobrezinhos, por amor do Senhor Deus. E, depois, rezem a Sexta e a Noa; e rezem as Vésperas na hora conveniente. E não permitam que alguma pessoa entre no claustro onde moram nem que coma aí. Os irmãos que são mães esforcem-se por ficar longe de qualquer pessoa; e por obediência a seu ministro, guardem seus filhos de toda pessoa, para que ninguém possa falar com eles. E os filhos não falem com ninguém, a não ser com suas mães e com o seu ministro e custódio, quando lhe aprouver visitá-los com a bênção do Senhor Deus. Os filhos, no entanto, assumam de vez em quando o ofício das mães, em revezamento, pelo tempo como lhes parecer melhor estabelecer; e esforcem-se por observar com solicitude e empenho todas as referidas coisas. (Regra para os Eremitérios) Frei Fidêncio Vanboemmel, no seu artigo para a

Vida Franciscana de 1992, p. 55, intitulado “Eremitério e experiências eremíticas nas origens da Ordem dos Frades Menores” (que resume sua tese de mestrado em Espiritualidade Franciscana, junto ao Antonianum, em Roma), recolhe e comenta as peculiaridades que a Regra para os Eremitérios (RE) apresenta e que são fundamentos do eremitismo propriamente franciscano: “A RE nos deixa entrever, primeiramente, que Francisco teve conhecimento do movimento eremítico, em particular no que se refere à sistematização de um eremitério, ou seja, a cela para orar e dormir e uma separada da outra, o claustro e a lei da clausura, a ruptura com o mundo, o cronograma diário a partir da organização do Ofício Divino, as imagens bíblicas de Marta e Maria, a lei do silêncio vocal absoluto em determinadas horas, etc. Em segundo lugar, Francisco transmite à história da espiritualidade cristã e eremítica elementos originais, próprios do seu carisma: a liberdade de opção eremítica expressa no ‘aqueles que querem’; o clima de fraternidade entre os que desejam viver a vida eremítica; a não-distinção entre frade leigo e frade clérigo; o revezamento das funções de Marta e Maria; a pobreza radical expressa no trabalho e na mendicância; o relacionamento familiar-espiritual entre ‘mãe’ e ‘filho’; o eremitismo temporário; o pequeno número de irmãos no eremitério; as funções diferentes (mãe e filho) devem criar um clima favorável à contemplação”. Percebemos assim que a RE está repleta de temas espirituais que se conjugam e se completam: a caridade materna e filial; a pobreza e a minoridade; a oração e a contemplação; o silêncio e o diálogo; o trabalho e o Ofício Divino; a centralidade do Reino de Deus e sua justiça. Pontuamos algumas intuições que sobressaem na RE: 1. O acento recai mais uma vez no viver em fraternidade. Parece até contraditório: o eremita franciscano busca a solidão mas não sozinho. Também as demais fontes biográficas sublinham este aspecto fraterno: quando Francisco se dirige a determinados lugares solitários, sempre o encontramos acompanhado de um ou mais companheiros. Não cabe, portanto, o individualismo na experiência eremítica franciscana. O irmão menor, assim como todo ser humano, é simultaneamente um “cenobita” e um eremita, ou seja, alguém


redimensionamento e revitalização

2.

3.

4.

5.

6.

7.

que necessita, de alguma forma, da fraternidade a fim de ser verdadeiramente humano, e é alguém que precisa, em alguma medida, da solidão, pelo mesmo motivo. Comunhão e solitude. Juntas elas levam o frade ao cultivo da oração, ao encontro com Deus, algumas vezes na companhia dos seus irmãos, outras vezes solus cum Solo. A cela é o grande convite para o trabalho pessoal. Entrar no interior da cela é possibilidade de voltar-se para a própria interioridade (trabalho nem sempre fácil). O silêncio, no pensamento de Francisco, não é absoluto e perpétuo como acontecia em certos grupos monacais. Mas há o silêncio vocal que começa com a recitação das Completas e termina com a hora Terça. Visa garantir a quietude que deve reinar no eremitério para que cada irmão possa se entregar total e livremente a Deus. O Ofício Divino é o centro vital pois remete ao escopo primeiro do eremitério, isto é, a busca do Reino de Deus e sua justiça. A Liturgia das Horas dá o ritmo e a cadência do dia, e nos abre constantemente à admoestação paulina: “Tende em vós os mesmos sentimentos presentes em Cristo Jesus” (Gl 2,5). O eremitismo franciscano difere do eremitismo no sentido tradicional. Os eremitérios, sempre que aparecem mencionados nas Fontes Franciscanas, possuem a nítida função de oferecer uma experiência transitória, por um determinado tempo. Em geral, os frades não são eremitas permanentemente. O eremitério é lugar de contemplação e de encontro com o Senhor e os irmãos. É lugar de purificação da poeira que nos pode cobrir na itinerância apostólica. É lugar de recobrar as energias para a pregação e a evangelização. É lugar onde o irmão menor se deixa seduzir pelo “altíssimo e glorioso Deus” à maneira de Francisco e do profeta: “Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir” (Jr 20,7)31. A RE é uma inovação no eremitismo cristão, devido ao estilo proposto: vida retirada em pequena fraternidade; fundado num duplo modelo: o evangélico (Marta e Maria) e o familiar (mães e filhos); alternância dos papéis e das 31 - Cf. Comunicações da Província, dezembro de 1992, p. 71.

responsabilidades, numa espécie de custódia recíproca; prioridade do Ofício e da busca das coisas de Deus; contexto pobre (mendicância) e solitário (clausura)32. A vida de solidão de que fala Francisco na RE não é a mesma do eremita no deserto, mas é um convite à solidão custodiada pela presença dos irmãos, pela fraternidade, o que implica numa linguagem e comunicação mais profunda, na qual os “filhos” oram em silêncio, sabendo estarem sendo silenciosamente custodiados pelas “mães”33. É possível afirmar que a RE é um convite a viver na fraternidade a experiência espiritual de Betânia. Francisco sublinha o papel importantíssimo de Marta, a mãe que favorece ao filho a solidão e a oração para receber a vida. A mãe sempre doa a vida: é sua vocação; ela é consagrada a essa oferta viva. Assim, o verdadeiro amor fraterno contém em si a delicadeza confidente e a efetiva generosidade do amor materno. Aqui vale a pena revisitar a Regra Bulada 6, 8: “E onde estão e onde quer que se encontrem os irmãos, mostrem-se mutuamente familiares entre si. E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade, porque, se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligentemente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?”. E a Regra não Bulada 9, 11 é ainda mais contundente ao insistir no papel materno na vida dos irmãos: “Cada qual ame e nutra a seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho”. Os papéis de Marta e Maria são coessenciais: um não exclui o outro. É em tal relação de custódia materna e respeitosa que se busca espiritualmente o lugar “Betânia”, onde acontece o acolhimento e onde se senta aos pés do Mestre34. Também a intuição de Francisco quanto à alternância dos papéis é única e original. Evoca inclusive a minoridade. Não há posse em jogo. A alternância garante uma relação livre, fraterna e materna, que é comprometedora: a mãe não domina, mas serve; o filho não entra numa dependência infantil e sem responsabilidade. Na dinâmica do eremitério proposta por Francisco, temos também forte indicação da complementariedade dos papéis de Marta e Maria. A alter32 - Cf. O Espírito de oração e devoção, p. 92. 33 - Cf. Escutai e vivereis, p. 25. 34 - Cf. Escutai e vivereis, p. 24.

13


Nosso Eremitério de Rodeio

14

nância entre as duas nos faz perceber que uma conduz à outra. A capacidade da mãe de gestar e dar à luz, assumida simbolicamente por Marta, é também assumida por Maria, na medida em que, dedicada à contemplação, gera em si a mesma capacidade de ação e serviço. Vale destacar ainda que a RE, em suas diferentes articulações, tem como ponto nevrálgico a experiência do encontro com o Senhor, com seu Reino e sua justiça: fonte de toda beleza e bem maior. É o caminho dinâmico da alteridade, não isento do sofrimento, mas que, por fim, nos leva à consciência de que nada podemos fazer sozinhos. Um caminho, portanto, de liberdade, deixando de lado nossa ilusão de autonomia que, muitas vezes, nos afasta de nossa vocação primeira: estar com o Senhor35. Por fim, é bom frisar que o eremitismo em geral – e o eremitismo franciscano, em particular -, ao longo da história, jamais foram espaço de alienação, de fuga dos compromissos cristãos. Antes, apresentaram-se como força de renovação e revigoramento a partir dos valores do Evangelho, nossa verdadeira forma vitae.

A importância da contemplação para nós hoje

Diante da experiência de Francisco e Clara, damo-nos conta da premência de reencontrarmos a prioridade que nos unifica, que nos dá entusiasmo e preenche a nossa vida. O decisivo para o revigoramento de nossa vida evangélica, de nossa vocação e missão, é justamente unificar nossa existência em Deus. E, nele, reunificar nosso desejo, senão qualquer obstáculo facilmente nos desencoraja. Dividido e fragmentado, nosso desejo nos leva para longe de nós mesmos. Dispersa-nos nas buscas de prazer, posses, poder... Essa dinâmica do desejo, sob uma análise de nossos tempos, nos traz com precisão José Tolentino Mendonça: “A sociedade de consumo, com as suas ficções e vertigens, promete satisfazer tudo a todos, e, falaciosamente, identifica a felicidade com o estar saciado. Saciados, cheios, preenchidos, domesticados - assim estão resolvidas, na festa do consumo, as nossas necessidades (ou o que pensamos que sejam). A saciedade que se obtém pelo consumo é uma prisão do desejo, reduzido 35 - C f. Escutai e vivereis, p. 27.

ao impulso de uma satisfação imediata. O verdadeiro desejo é estruturalmente marcado por uma falta, por uma insatisfação, que se torna princípio dinâmico e projetivo. O desejo é literalmente insaciável porque aspira àquilo que não se pode possuir: o sentido. Nessa linha, o desejo não se sacia, mas aprofunda-se”36. Para recentrarmo-nos no Senhor é preciso que fujamos de contrapor ser/fazer, ação/contemplação. É preciso reconstruir em nós aquela unidade harmônica pela qual diariamente e sempre “levamos” a Deus aquilo que somos e fazemos, o que desejamos e projetamos: considerar nossa vida e nossa história em diálogo com ele e não em chave autorreferencial. Trata-se de deixar que nossa existência seja orientada e plasmada pelo Senhor, por sua Palavra, pelo seu Corpo e Sangue. O frade menor é pessoa “ferida” pelo profundo desejo de permanecer no Senhor. Nessa compreensão nos ajuda o ex-Ministro Geral já falecido Frei Giacomo Bini: “Gosto do termo ‘ferido’, porque creio que quando a ferida permanece aberta e é autêntica, não se tem medo dos próprios pecados, das faltas, das fraquezas, da indignidade. Eu pessoalmente prefiro uma pessoa frágil e ferida, a uma pessoa in regola que não é quente nem fria (cf. Ap 3,16). É uma pessoa que não caminha, que mantém-se em pé pela estrutura, mas é incapaz de autonomia. Para mim, a ferida é algo de profundo, é presença do Espírito que nós, não raro, sufocamos com tantas coisas. Para mim, ‘estar ferido’ significa deixar espaço ao Espírito que habita em nós, para sermos dele e por ele nos movermos”37. Fazer do Evangelho a única regra de vida, como acontece em Francisco e Clara, implica ter descoberto o primado de Deus e de sua Palavra na vida de cada dia. Este primado não é um princípio geral, mas o núcleo primordial de nossa vocação. Por isso, a dimensão contemplativa deve ser considerada como a primeira e fundamental expressão de nosso seguimento de Cristo38. A brochura com as prioridades da Ordem para o sexênio 1997-2003 já sinalizava: “Existe a necessidade de revitalizarmos constantemente nossa experiência espiritual como primeira expressão do seguimento de Cris36 - Libertar o tempo, de José Tolentino Mendonça, p. 70. 37 - A identidade da Clarissa, de Frei Giacomo Bini, p. 4. 38 - Cf. Clara de Assis e de hoje, p. 9.


redimensionamento e revitalização

to, prestando atenção à densidade que alguns lugares e momentos possuem no nosso dia-a-dia”. Ao tratarmos da dimensão contemplativa de nossa vida, embora tenhamos como pano de fundo a revitalização de nosso eremitério, convém lembrar que a contemplação, em princípio, não depende de claustros silenciosos, de rubricas e regras apropriadas. É fruto de uma relação de amor que supõe entrega, risco, confiança. É evidente que certos fatores podem auxiliar no melhor desenvolvimento da vida espiritual, mas o essencial, afirmou Jesus, é que “se alguém me ama, guarda minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e estabeleceremos nele a nossa morada” (Jo 14,23). Por fim, queremos dar ouvidos à fala do filósofo sul-coreano Byung-Clul Han, que escreveu “Sociedade do cansaço”, livro traduzido para mais de dez línguas. Na última página de sua obra “O perfume do tempo”, sustenta que se tirarmos da vida todo elemento contemplativo, ela vai se transformar em hiperatividade mortal. O homem acaba sufocado no próprio fazer. Uma revitalização da vida contemplativa é necessária para abrir espaços de respiração. O espírito nasce de um ‘excedente’ de tempo, de um ‘ócio’, de uma maior lentidão na respiração39.

Desafios para o cultivo de nossa dimensão contemplativa

Embora a contemplação em si seja o que de mais belo e sublime possamos experimentar, ela não é uma prática fácil de se alcançar. E isto por duas razões: primeiro, porque é algo que necessita ser cultivado com empenho; segundo, porque a realidade a ser contemplada ou que nos serve de apoio para a contemplação é feita de presença e de ausência, ou, segundo São Boaventura, de “retraimento”, já que nunca se trata de uma ausência de Deus. Neste caso, caímos, com frequência, no puramente periférico e superficial das coisas. É necessário aliar o desejo da vontade ao impulso da inteligência, e que estes sejam coadjuvados pelo silenciar de si mesmo, para que o olhar vá além do superficial: das pessoas, da natureza, dos sinais dos tempos40. As inúmeras possibilidades que nosso tempo nos apresenta, se, por um lado, facilitam e favorecem 39 - Cf. O Perfume do tempo, de Byung-Chul Han. 40 - Encher a terra com o Evangelho de Cristo, de Frei Herman Schalück, 1996, p. 33.

nossa vida em tantos aspectos, por outro lado, podem nos oprimir, e, muito facilmente limitam nossa capacidade de cultivo da contemplação. Pela ansiedade que caracteriza nossa sociedade, todo o lado interior da pessoa humana – reflexão, pensamento, solidão, silêncio, contemplação da beleza da arte e da poesia – de alguma forma, se tornou mais difícil. Em geral, não temos paciência para isso. Instintivamente, procuramos conversas, barulhos e entretenimentos. Vivemos um tipo de ambiguidade. Sentimos nostalgia do nosso mundo interior tantas vezes desconhecido, de nosso coração, da interioridade que em nós habita. Mas, ao mesmo tempo, seguidamente nos franqueamos, nos dispersamos a partir das múltiplas interpelações publicitárias e tecnológicas que invadem nosso dia a dia. Há muitos fenômenos sócio-culturais que caracterizam nossos tempos que poderiam ser analisados e considerados como promotores dessa nossa dificuldade. Recolhemos apenas dois, que têm por contexto a revolução tecnológica e comunicacional que estamos vivendo, e damos voz, primeiramente, a Frei Betto: “A simples pronúncia ou leitura da palavra silêncio causa espanto hoje em dia. Quem busca silêncio? Quem sabe fazê-lo? Sintoma que evidencia quão ruidosa é a sociedade pós-moderna. Vivemos numa era em que é difícil escapar de assédios alheios na forma de ruídos. Ruídos que não se resumem a sons captados pela audição. Nossos cinco sentidos são permanentemente afetados pela avalanche de informações, imagens, apelos publicitários, etc. E a voracidade de querer fazer tudo ao mesmo tempo e estar em permanente conexão digital nos faz experimentar como frustração nossos próprios limites. Estar só se tornou uma experiência ameaçadora. Tememos a solidão, talvez pelo medo de encontro com nós mesmos. Náufragos sem boia em pleno mar revolto, urge nos apegar a algo, encontrar urgentemente uma alteridade virtual. Pode ser a TV, o rádio, a internet, alguém no facebook, no whatsapp, no instagram, ou alguma coisa que nos entretenha e impeça que o silêncio se instaure. Em matéria de dependência, a predominância é o do celular. Repare no metrô, no ônibus, no aeroporto, em restaurantes (e acrescentamos: em nossos conventos e reuniões). Ninguém está consigo mesmo. Quase todos surfam nas redes digitais, muitas vezes envolvidos em contatos desprovidos de afeto e

15


Nosso Eremitério de Rodeio

16

empatia. Pessoas que se tornam objetos de seus objetos, impossibilitadas de se assumirem como sujeitos, incapazes de repetir com Cecília Meireles em ‘Serenata’: Permita que agora emudeça: que me conforme em ser sozinha”41. Uma abordagem sobre o tempo (em nossos tempos de hoje) é brilhantemente apresentada por José Tolentino Mendonça: “Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informações que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efêmero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora, isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos projeta das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno”42.

Contemplação e missão

Numa ocasião, o bem-aventurado e venerável pai Francisco, tendo deixado as multidões dos seculares que acorriam mui devotamente a cada dia para ouvi-lo e vê-lo, dirigiu-se a um lugar de quietude, retirado e solitário, desejando dedicar-se a Deus... Costumava dividir o tempo que tinha recebido para merecer a graça e, conforme a oportunidade, consagrar uma parte ao auxílio do próximo e outra à contemplação no recolhimento. (1Cel 91) A dimensão contemplativa de nossa vida não é um elemento secundário, um adereço ou um meio, mas é antes a fonte profunda de onde jorra nosso dinamismo de vida e ação. Na versão franciscana, a contemplação leva ao apostolado. O caderno “Na procura do espírito de contemplação”, de 1987, lançado pela Formação e Estudos da Província, assegura que a oração não é um usufruir tranquilo e desligado, mas um “laboratório” onde as ideias se põem em ordem, os afetos se subordinam, o zelo se educa e o amor atinge a maturidade de Cristo, 41 - F é e afeto – espiritualidade em tempos de crise, de Frei Betto, 2019, p. 18. 42 - Libertar o tempo, p. 20.

ou, no dizer de Santo Agostinho, alargam-se os espaços da caridade. A pessoa desocupada e ociosa, por estranho que pareça, não tem tempo de contemplar, pois, se a contemplação é primeiramente dom, ela é também uma conquista. Evangelizar-evangelizar-se é o binômio que se sinonimiza com ação-contemplação. Não são dois compromissos espirituais que se excluem, ou diante dos quais somos desafiados a fazer uma opção, segundo as afinidades com um deles. Nem são águas-divisórias que estabelecem dentro do franciscanismo dois grupos: os contemplativos e os ativos. São, porém, termos dialéticos do círculo da caridade: Deus – ser humano – Deus. Assim, a dor que Francisco vislumbrou no Cristo o levou a todas as dores das pessoas e à própria dor pela qual se apaixonou, acabando por pedi-la como uma graça. Viu as cruzes das pessoas como reflexos da grande Cruz que um dia foi erguida no Calvário. Daí quis amar os “crucificados” de seu tempo. Mas tudo isso o levou também à solidão, ao ermo, ao deserto, ao bosque cerrado, à noite, ao silêncio. Ali temperava o olhar para ver e o coração para ser43. Nunca é demais lembrar que precisamos silenciar, escutar, fazer-nos ressonância da fala dos outros seres; esvaziarmo-nos dos muitos ruídos – de fora e de dentro que nos povoam -, para termos condições de escutar, descobrir e admirar as maravilhas e os sinais de Deus. Assim, a própria leitura dos sinais dos tempos será uma viva experiência de fé e uma eloquente escuta dos apelos de Deus no coração de nossa história. De fato, não existe renovação, mesmo social, que não parta da contemplação44. Nossa vocação cristã e nosso ser franciscano nos convidam a ter para com este mundo “que Deus tanto ama” (Jo 3,16) um olhar positivo e de bemquerer, de reconhecimento e de admiração. Ele é o espaço abençoado onde a onipotência de Deus age, derrama suas belezas, onde ele se encarna. É ali que ele marcou um encontro com as suas criaturas e, portanto, é nele que estão os caminhos pelos quais seguimos “as pegadas de nosso Senhor Jesus Cristo”. Este mundo é o nosso mundo e é a partir daquilo que ele é e daquilo que nós somos nele, que devemos procurar situar-nos em 43 - Cf. A contemplação franciscana, p. 15. 44 - Cf. Encher a terra com o Evangelho de Cristo, p. 33.


redimensionamento e revitalização

nossa identidade e evangelização franciscanas45. Um olhar superficial tende por vezes a opor contemplação e ação, como se se tratasse de duas vocações diferentes, em que uma poderia atravancar a outra. São, porém, duas faces da mesma moeda. A referência ao Evangelho mostra que, se Cristo se dá plenamente às multidões que o procuram, curando os doentes, aliviando as suas enfermidades, sem poupar tempo nem trabalho, ele passa também longas horas em lugares solitários onde se dedica à oração ao Pai. Para nós, o eremitério é sim o lugar por excelência do exercício da contemplação. Nele fazemos o “treino” de sempre voltar ao “lugar do coração”, tomando contato com as raízes de nossa vida e de nossa fé, aprofundando o dinamismo que existe entre interioridade-silêncio e missão evangelizadora, como parte essencial do carisma. Mas, para Francisco, o mundo é o nosso convento, ou seja, nosso espaço vital é mais vasto do que as paredes de um eremitério. E a proteção a este espaço não advém de um muro ou de uma clausura, mas a pessoa a traz em si ou não a possui. Desse modo, a dedicação a Deus e a doação às pessoas constituem uma só unidade. A conclusão é clara: contemplação não é questão de estrutura. O lugar da contemplação é aquele em que a pessoa se encontra46. Consequentemente, não existem contemplativos apenas no isolamento dos mosteiros ou dos eremitérios, mas também nos campos de terra arada, nos escritórios agitados, nas fábricas ruidosas, na pesquisa desvendadora dos mistérios e das possibilidades, na criação do poeta e na reflexão do teólogo. No nosso caso franciscano, o eremitério da montanha nos exercita e nos predispõe para a contemplação a ser experimentada não somente nele, mas no eremitério da paróquia, do colégio, da administração, da portaria, das missões, ou seja, no lugar em que o Cristo nos desafia a encontrá-lo, afeiçoados por Ele, antes de tudo, e também a convivermos em harmonia reverencial com as suas criaturas. Assim, poderíamos talvez falar da importância ecológica do nosso eremitério, tanto enquanto lugar de cultivo daquela que o Papa Francisco chama de educação e espiritualidade ecológicas47, como num 45 - Cf. O coração voltado para o Senhor, p. 4. 46 - Cf. A contemplação franciscana, p. 6. 47 - Cf. Laudato Si’, c. 6.

lugar onde o cuidado pela biodiversidade daquela porção de mata atlântica é realizado. Quem sabe também aí não resida uma missão importante do nosso eremitério? Além disso, talvez pudéssemos falar de um significado ecumênico e inter-religioso do eremitério, uma vez que tal diálogo torna-se possível sobretudo no nível da experiência místico/ contemplativa presente em todas as grandes tradições cristãs e religiosas, a exemplo do que aconteceu com Francisco e o Sultão Malek el-Kamel em 1219. Portanto, a experiência eremítica, antes que anacrônica, aponta para questões que, hoje, percebemos como extremamente relevantes.

Meios para o cultivo da dimensão contemplativa: 1. Silêncio e solitude

Uma riqueza inestimável que ora facilmente se perde é o silêncio. O silêncio e a solitude são dois meios que favorecem nosso caminho contemplativo, especialmente no eremitério. Mas não é fácil silenciar. O silêncio perturba porque nos remete ao desafiador mergulho em nós mesmos. Trata-se do desnudar-se frente ao espelho da subjetividade. Desprover-se dos artifícios que nos convocam à permanente exposição. Ousar viajar para a morada interior na qual habita aquele que não sou eu, e, no entanto, é Ele quem revela minha verdadeira identidade. Então, o silêncio se faz epifania. Saber calar-se é sabedoria. Só quem conhece a beleza do silêncio, dentro e fora de si, é capaz de viajar por seu próprio mundo interior. Mergulhar no próprio poço e beber da fonte de água viva. Porém, desaprendemos a fechar os olhos para ver melhor. Curvamo-nos sem reverência. Não auscultamos o Invisível. “O silêncio é a linguagem de quem ama. É a atmosfera em que podemos reconhecer que o Pai está presente e dá sentido à vida humana de cada um. No Evangelho, Jesus recomenda não multiplicarmos as palavras na oração. O Pai nos ama e sabe de que necessitamos. Todavia, somos desatentos ao conselho. No Ocidente, falamos de Deus, a Deus, sobre Deus. Quase nunca deixamos Deus falar em nós48. Dom Bernardo Bonowitz, trapista, explica que nossos esforços para fazer silêncio exterior se 48 - Cf. Fé e afeto – espiritualidade em tempos de crise, p. 18 e 23.

17


Nosso Eremitério de Rodeio

18

deparam com um monólogo incontrolável. Interiormente, cada um descobre que fala, e fala muito. Perseverando na limitação de nossa fala exterior ao verdadeiramente necessário, precisamos suportar os assaltos do barulho próprio, sem deixar de lado o desejo de ouvir a Deus. Aos poucos, o silêncio exterior não mais estimulará a cacofonia interior. Pelo contrário, ele se tornará reflexo do silêncio e de uma tranquilidade interior. O silêncio exterior não mais será um meio para alcançar a harmonia interior e a graça de escutar a Deus, mas será o eco do silêncio interior: atmosfera e “lugar” da voz de Deus. Com outras palavras, Dom Bernardo mostra que, muito provavelmente, a dedicação ao silêncio exterior terá seu lado doloroso: o encontro com a dissonância interior, com o conflito dos impulsos e com as aspirações desafinadas dentro de nós mesmos. Mas, como sempre, o caminho da sabedoria consiste em perseverar num espírito de fé. Do outro lado do ruído e dos conflitos interiores, estão as melodias inauditas que Deus toca em sua flauta de pastor, à espera de serem ouvidas. Ou então, se revive o tempo maravilhoso em que o ser humano caminhava habitualmente com Deus no jardim do paraíso, em comunicação total, sem palavras49. O caminho para a interioridade não significa uma evasão da vida cotidiana e seus desafios. Mas, é essencial habituar-se a viver consigo mesmo, valorizando a solidão pessoal, dispondo de tempo suficiente para buscar e experimentar a liberdade interior, procurando “um certo peso do ser”, fugindo da dispersão e da curiosidade inútil. Mas o silêncio não é mutismo. O que conta no silêncio não é a simples ausência de palavras, mas sim a presença de Alguém. O silêncio, se não é presença, não tem significado. Não existe o silêncio vazio. A solitude, por sua vez, quando não é isolamento, ela é habitada pacificamente por mim, pelos outros e, sobretudo, por Deus50. A interioridade e o silêncio levam-nos ao reconhecimento de que somos criaturas que tudo recebem. Levam-nos à gratidão e à restituição de tudo o que somos Àquele que é o Bem, o sumo Bem, na linguagem de Francisco, que nos convida a “conservar no coração os segredos do Senhor” (Adm 49 - C f. Buscando verdadeiramente a Deus, de Dom Bernardo Bonowitz, 2013, p. 28 e 29. 50 - C f. A identidade da Clarissa, p. 8.

28,2), através da paz e da meditação, sem nervosismos nem dissipação (Adm 27,4). Construir o silêncio interior é um empreendimento e uma arte que não terminamos nunca de aprender. Trata-se de um silêncio que se fundamenta na pobreza, na humildade, o que implica na capacidade de aceitar-nos como somos, sempre em direção ao melhor. Conhecer-nos e aceitar-nos como somos é o primeiro grande passo de um caminho espiritual. Nesse sentido, o silêncio nos ajuda a reconciliarmo-nos com nosso passado e a irmos ao encontro Daquele que nos espera sempre, dentro de nós: “Estou à porta e bato” (cf. Ap 3,20). E nos espera como Pai misericordioso. O conhecimento de si favorecido pelo silêncio nunca gera um conformismo. Além de nos revelar o que somos diante de Deus, aponta-nos também o que somos chamados a ser. O encontro com Deus revela-nos como somos vistos por ele. Pelo silêncio, Deus nos revela como ele nos vê. É nesse encontro marcado pelo silêncio que nos sentimos chamados a ser quem Deus deseja que sejamos: filhos amados de um Pai misericordioso. Já Thomas Merton mostrava com lucidez que “conhecemos a Deus na medida em que nos tornamos conscientes de nós mesmos como conhecidos a fundo por ele. Nós o ‘possuímos’ na proporção em que percebemos que somos possuídos por ele nas mais íntimas profundezas de nosso ser. Nosso conhecimento de Deus é, paradoxalmente, um conhecimento, não dele como objeto de nossa observação, mas de nós mesmos como inteiramente dependentes de seu conhecimento salvífico e misericordioso em relação a nós”51. Por fim, o silêncio favorece e facilita nossas relações, no eremitério e para além dele. Pois, saborear o silêncio, a solidão habitada e prolongada, significa inserir-se, com abertura, no diálogo que já está em ato. O colóquio melhor alcançado é aquele que tem os fundamentos firmados no silêncio, pois não há necessidade de muitas palavras para entrar em relação. Sem o silêncio não há diálogo. Só através do silêncio ouço e sou ouvido52.

2. O Ofício Divino

A nossa Liturgia das Horas, nosso Ofício, traz o qualificativo “divino” porque, na verdade, nossa 51 - A oração contemplativa, de Thomas Merton, p. 126. 52 - Cf. A identidade da Clarissa, p. 8.


redimensionamento e revitalização

oração se junta à do Cristo ao Pai. Como Igreja, nós participamos da oração de Jesus, que, em nós, pelo Espírito, reza ao Pai. E isso justifica inclusive o fato de a Liturgia das Horas, na história da Igreja, sempre ter sido celebrada, de modo especial, pelas pessoas dedicadas à vida contemplativa. O Ofício Divino dita o ritmo diário de oração. A partir dele se programam as outras atividades de cada dia. Ele é o exercício ritmado pelo qual se suplica o dom da contemplação, ou seja, a graça de permanecer junto ao Senhor. Cada hora litúrgica traz um matiz diferente. As Laudes, por exemplo, coincidem com o nascer do sol, e nos abrem para a revelação, com o movimento do incolor para o multicolorido. Quando o sol nasce, nós vemos o mundo de Deus. O ritmo dos hinos, nesta hora, passa de lento (próprio das Vigílias noturnas) para o allegro. As Laudes evocam assim a ressurreição do Senhor, que é “a luz da verdade que ilumina todo ser humano” (cf. Jo 1,9). As Vésperas, por sua vez, nos recolhem para o final do dia, sob o pôr-do-sol. Tal hora nos propicia o retorno a nós mesmos, e entramos “na casa de nosso coração”, onde Deus está sempre à nossa espera. O Deus das Vésperas é um Deus afável. É verdade que ele nos acompanha com sua luz no decorrer de todo o dia, mas nas Vésperas ele mostra-se a nós como uma luz suave e amorosa – a luz da ceia vespertina -, e nos traz para mais perto dele. Já as Completas são o momento de entrega, de abandono confiante. O dia deu novamente lugar à noite. E assim, as sete horas canônicas nos convidam, cada uma a seu modo, à contemplação dos mistérios do Senhor e, por isso, do nosso mistério também.

3. A leitura orante da Palavra (lectio divina)

São Paulo, na carta aos Hebreus, nos assegura que a Palavra de Deus é viva e eficaz (3,12). Não é, portanto, letra morta. Nossa tarefa é permitir que a Palavra nos fale. Sua intenção é nos recriar. Assim como no princípio Deus criou o Universo pela sua Palavra onipotente, da mesma forma ele pretende nos recriar, e recriar para uma vida plena, pelo poder da sua Palavra. A Palavra infunde em nós o ser e o amor de Deus e, pouco a pouco, nos transforma em novas criaturas. A lectio divina é esse exercício do “pouco a pouco”, discreto, silencioso, perseverante. Jesus, a Palavra de Deus, vem ao mundo sem fazer alarde. As Escrituras são a revelação de Deus em veste humana, em linguagem humana.

A lectio divina é Deus agindo dentro da minha escuta, de modo que eu possa captar e assimilar e, de certa forma, “tornar-me aquilo que estou lendo”. Também na lectio divina, o adjetivo “divina” não é periférico, mas é sua essência. “Divino” indica que Deus é o sujeito principal da lectio, ele é quem age em primeiro lugar. Nós apenas nos dispomos ao trabalho amoroso e iluminador que ele quer realizar em nós pelo exercício da leitura. De certo modo, pela lectio, deixamo-nos ser lidos pela Palavra. Na divisão clássica da leitura orante de Palavra – lectio, meditatio, oratio -, o quarto momento é chamado de contemplatio, que, segundo Dom Bernardo B., não acontece a cada lectio. Aliás, dáse poucas vezes. “O leitor, não por seu esforço, nem pela imaginação, nem por pedido, mas simplesmente no decorrer da meditação da Palavra, vem a experimentar em seu interior a habitação do Pai e do Filho – toda a vida trinitária agindo dentro dele, e tudo isso como fruto e graça de seu contato com a Palavra viva e eficaz53.

4. A oração pessoal

Empenhava-se portanto em manter sempre ao menos seu espírito na presença do Senhor por uma oração ininterrupta, para não ficar sem o conforto do Bem-Amado. A oração era também uma defesa ao se entregar à ação, pois persistindo nela, fugia de confiar em suas próprias capacidades, e punha toda a sua confiança na bondade divina, lançando no Senhor os seus cuidados. Quer andasse ou parasse, viajando ou residindo no convento, trabalhando ou repousando, entregava-se à oração, de modo que parecia ter consagrado a ele todo seu coração e todo seu corpo, toda a sua atividade e todo seu tempo. (LM 10,1) Com o título “Espírito de oração e devoção”, o capítulo II das CCGG sublinham a centralidade e o primado que Deus tem na vocação evangélica do irmão menor (cf. RB 5,2), ou, em outras palavras, podemos dizer que nossa forma de vida se fundamenta e se edifica sobre a experiência de Deus. “Seguindo os passos de São Francisco, que se transformou ‘não só em orante, mas na própria oração’, removendo a todos os obstáculos e re53 - Buscando verdadeiramente a Deus, p. 47.

19


Nosso Eremitério de Rodeio

20

jeitando todos os cuidados e preocupações, os irmãos sirvam, amem, honrem e adorem o Senhor Deus de coração limpo e mente pura, porquanto, ‘é necessário orar sempre sem nunca esmorecer’, pois tais são os adoradores que o Pai procura”. (CCGG Art. 19, §2º) Desse modo, resulta claro que a oração ocupa o lugar mais importante no nosso projeto de vida. Ela nasce da vocação em si. Deus é o fundamento, a origem e a meta de nossa vocação. E a fraternidade expressa sua identidade mais profunda quando reza54. Sem a oração pessoal, nossa vida em Deus se esvai. Só ela nos dá a real dimensão de interioridade. Desejando abismar-se e interiorizar-se, o indivíduo esbarra com toda uma situação atual que o afasta de si mesmo, dificultando-lhe assim o acesso ao seu coração. A oração bem feita e mesmo a meditação que de fato satisfaçam as aspirações íntimas e as necessidades secretas do coração humano, exigem treino, exigem disciplina, exigem ascese. É através da disciplina e do treinamento que a pessoa consegue trazer silêncio a si mesma, que ela adquire a capacidade de parar e de assumir a atitude contemplativa, atitude de recolhimento interior, que a põe em relação com o fundo numinoso e divino que nela existe55. Mas, requer-se uma distinção entre vida de oração e simples “recitação” de orações – um cumprimento quase maquinal, que não nasce de uma experiência interior -, e que não é suficiente para sustentar a fé e a vocação do frade56. Daí, a importância vital da experiência de encontro pessoal com o Cristo. A fé nasce da adesão a ele, que nos chamou e nos amou por primeiro. O apóstolo Paulo afirma que “a fé vem da pregação” (Rm 10,17), ou seja, chega a nós pelo ouvido. Todavia, é necessário o encontro pessoal com o Senhor, no sentido da experiência de Jó: “Eu te conhecia só de ouvir dizer. Agora, porém, os meus olhos te veem” (Jó 42,5). Ou então como vem descrito em Ex 33,11: “Deus falou a Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo”. Urge voltar onde tudo começou. Se nos deparamos com uma fé precária, centrada no dogma ou em outros artifícios, e 54 - C f. Nossa identidade franciscana, p. 29. 55 - C f. Texto de Frei Ademar Spindeldreier, recolhido em “Textos contemplativos franciscanos”, p. 20 56 - C f. Relatório do Ministro Geral Frei Giacomo Bini ao Capítulo Geral 2003, p. 52

não no Senhor vivo e ressuscitado, a única solução será pormo-nos a buscá-lo com sinceridade, até encontrá-lo. Nisso cremos: ele jamais esconde a face a quem o busca sinceramente. Dom Bernardo B. mais uma vez nos ajuda a conferir a relevância da oração para nossa vida de fé. Ele ressalta que a oração pessoal é ser tratado por Deus como um amigo; é escuta atenta a ele, que nos convida para uma conversa. Como vemos em Gn 3,9, mostrando que todas as tardes Deus passeava pelo Éden à procura de seu “companheiro de conversa” Adão, para com ele falar e passear por algum tempo. A oração significa nos deixarmos encontrar por Deus, a fim de que ele possa nos falar, e, obviamente, a fim de que nós possamos lhe falar, um contando ao outro aquilo que lhe é mais importante, um dizendo ao outro por trás de cada palavra: “Eu te amo”. É a experiência descrita no Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry: a profunda relação com um amigo traduz-se no aparecer para um encontro todos os dias à mesma hora. E isto não é somente um sinal de fidelidade, pois possibilita uma das grandes alegrias do encontro: a antecipação – “se você vier às quatro horas da tarde, desde as três eu começarei a ficar feliz”. Se realmente desejamos ser encontrados por Deus, precisamos escolher certo período em nossa rotina diária e reservá-lo permanentemente para a oração. “Eu o esperarei aqui”. Como aprenderemos a deixarmo-nos ser encontrados por Deus? Como podemos aprender a escutá-lo? Basicamente a resposta é: pela prática e pela perseverança... e pelo desejo. Quem quiser ser encontrado por Deus, será encontrado; quem quiser escutar a sua voz, desenvolverá uma capacidade de ouvi-la, por meio de palavras ou sem elas. É preciso que amemos a espera e cultivemos a paciência. Só assim aprenderemos a escutar Deus falando conosco. Segundo Anthony Bloom, Deus pode nos deixar esperando e não se nos mostrar no modo como gostaríamos. Estamos lá no momento da oração. Ele optará por parecer ausente. Trata-se de um encontro de duas pessoas livres: Deus e nós mesmos. Ele é livre inclusive para mostrar-se e revelar-se quando quiser. Maravilhoso é, porém, quando ele escolhe revelar-se a nós e falar a nosso coração. Aquilo que o Senhor diz em tais momentos é inesquecível, é vida e luz e remédio e alimento57. 57 - Cf. Buscando verdadeiramente a Deus, p. 50 a 53.


redimensionamento e revitalização

Sabemos que desde os inícios de seu caminho vocacional, Francisco retirava-se para o silêncio a fim de falar com Deus e meditar a Palavra que ouvia. Os primeiros biógrafos nos contam que ele se esforçava por guardar Cristo no íntimo do coração (LTC 8; 11), sentia-se atraído pela irrupção de uma misteriosa doçura e assim, conhecendo a vontade de Deus através da meditação, fortificava-se no Senhor. Inclusive os lugares preferidos por ele, como os Carceri, o vale de Rieti, o Monte Alverne, nos falam da experiência de meditação e da oração pessoal na vida de Francisco. Ele meditava e se comovia com a obra da salvação realizada por

Deus (cf. RnB 23), com preferência pelos mistérios da Encarnação e da Cruz. Temos dificuldade em seguir esse caminho percorrido por Francisco. Quanto à meditação, por exemplo, acostumamo-nos facilmente à correria, ao atropelo, à dispersão, e achamos que “parar” é perder tempo. E com isso afastamo-nos do encontro sereno com nós mesmos e com Deus no silêncio. Permanece o desafio: oração, fraternidade e missão exigem um discernimento criterioso, a fim de alcançarmos uma forma de vida coerente, que não olvide o primado de Deus em nós, em nossos gestos e opções.

Convite e apelo aos confrades Por trás do convite do Definitório Provincial para que confrades se disponham a compor uma pequena Fraternidade no Eremitério de Rodeio (por um, dois ou três anos), há, sem dúvida, o apelo a que a dimensão contemplativa de nosso carisma - o “espírito de oração e devoção”-, se revigore na vida de cada fraternidade e de cada irmão. Certamente isso não é circunstancial. É antes decisivo. Karl Rahner, conhecido teólogo alemão falecido em 1984, teria dito que o cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão. Talvez, na sua esteira, pudéssemos dizer algo semelhante a respeito dos irmãos menores, no que se refere à contemplação. Este é um grande desafio que temos pela frente: fazer com que nosso eremitério (e nossas fraternidades) sejam “escolas” da busca de Deus, “mesas” onde diariamente partilhamos o pão da Palavra e da Eucaristia, “lugares” de espiritualidade, de oração, de contemplação; e evitar que o ativismo, a superficialidade, a negligência ou a ociosidade comprometam o nosso futuro e tornem inócuas nossas presenças e ações. Na experiência de contemplação “deve repousar toda a nossa existência”, já dizia-nos o documento O coração voltado para o Senhor, de 1994, pois ela é eixo central de nossa forma de vida. Por ela, auscultamos a revelação de Deus no “espelho” das criaturas e nos seus desígnios e sinais

presentes na nossa vida e em nossos tempos. Assim, somos chamados a testemunhar, profeticamente, a presença e a ação de Deus na história, e a reafirmar, como primeira tarefa humana, o louvor, a gratidão, o reconhecimento pela obra de Deus, pois fomos criados à sua imagem e semelhança e fomos remidos com a superabundância de sua misericórdia. Francisco, após uma experiência inicial toda eremítica, propôs a seus irmãos que, indo pelo mundo, levassem consigo o eremitério, entendido não como lugar geográfico, mas como um modo de ser-frade-oração, neste peregrinar espiritual e de seguimento de Jesus Cristo, pobre e crucificado. Aparentemente, uma forma de vida que privilegia hoje a dimensão contemplativa, e que procura cultivá-la inclusive em eremitérios, não produz nada de “concreto” para as urgências e os problemas de nossas sociedades atuais. Assim, sucumbimos ante a miragem da produtividade das nossas ações (ministérios, compromissos...). Quando a eficiência se torna o critério de verdade e de consistência, resta pouco espaço para a fraternidade, para o que é gratuito, para a oração. Por outro lado, o tempo dedicado ao silêncio e à solidão não é para contrabalançar o ativismo; oferece, no entanto, uma distância e um afastamento das atividades cotidianas para melhor nutri-las, reintegrá-las, transfigurá-las.

21


Nosso Eremitério de Rodeio

22

Em nosso caso, na nossa Província, temos uma casa de eremitério, e isso é, sem dúvida, um privilégio. Não são muitas entidades da Ordem que dele desfrutam. Porém, acolher tal dom impõe-nos uma responsabilidade. Esta não vem da necessidade de povoar uma casa desabitada cuja construção demandou considerável soma de dinheiro; mas é uma responsabilidade moral, que se confunde, afinal, com o dom: por que não nos arriscarmos em um cultivo maior de nossa dimensão contemplativa? Por que não no eremitério? Por que não tentarmos? Não seria bom? Não nos traria alegria? Não nos favoreceria novo vigor? O Senhor não nos abençoaria nessa tentativa? A resposta para isso vai na linha da minoridade: se não der certo, humildemente, retomamos nossos propósitos e empenhos em outra seara. Outra pergunta que poderia ser levantada é em torno do próprio processo de redimensionamento: Em tempos de diminuição numérica dos confrades da Província, em tempos de falta de vocações, em tempos de “entrega” de trabalhos pastorais, faz sentido pensar em uma reconfiguração de nosso eremitério em Rodeio? A que poderíamos responder com uma outra pergunta: Não seria o tempo ideal e necessário de voltarmos aos altos do Ipiranga em Rodeio? Será que a oferta que mais agrada a Deus não continua sendo aquela da viúva (cf. Mc 12,41-44), ou seja, daqueles que doam da própria carência?

Algumas indicações para a recomposição do Eremitério

1. Seguindo a indicação do Capítulo Provincial, o Definitório pensa em fraternidade de 2 ou 3 frades que se estabeleçam no Eremitério por um, dois ou três anos, vivendo sob a inspiração da Regra para os Eremitérios; portanto, não literalmente falando. 2. Diariamente haveria a oração da Liturgia das Horas, a leitura orante individual da Palavra, um breve capítulo de partilha espiritual e para organização do dia. Haveria também tempo de trabalho manual. 3. Os irmãos, individualmente, em períodos mais

prolongados durante o dia, ou mesmo durante o dia todo, poderiam fazer “deserto”, privilegiando a oração e o estar-sozinho. 4. As refeições seriam momentos de fala natural, reservando-se o tempo restante ao recolhimento. 5. O uso de internet e celular seria restrito a breve período diário. 6. Ad experimentum, para conviver com os confrades da casa de Noviciado, com exceção do 3º final de semana de cada mês, os irmãos desceriam para lá no sábado à tarde, para as vésperas, e retornariam ao Eremitério após as vésperas do domingo. 7. Ad experimentum, no 3º domingo de cada mês, haveria – como já há – missa no próprio Eremitério aberta às pessoas de fora. 8. Considerando o número de lugares na capela, e para não se perder o clima de recolhimento e oração, e mesmo os momentos de solidão, os irmãos receberiam até 6 confrades e/ou leigos(as) que se dispusessem ao cultivo do silêncio e do retiro, por alguns dias, semanas, meses. 9. Não haveria, assim, clausura, no sentido estrito. O importante, no caso, seria a observância dos meios necessários para o caminho contemplativo. 10. Os outros confrades e/ou leigos(as) que fossem acolhidos pelos irmãos do eremitério poderiam assumir integralmente o horário da fraternidade, ou apenas parte dele, caso, inclusive, quisessem dedicar mais tempo ao “deserto”. 11. Os irmãos do eremitério procurariam favorecer o quanto possível a experiência de oração e contemplação dos irmãos(ãs) acolhidos(as), acompanhando-os(as), inclusive com diálogos, caso houvesse interesse. São Paulo, 31 de julho de 2019. Comissão: Frei Fabio César Gomes Frei Valdir Laurentino Frei Walter de Carvalho Júnior


redimensionamento e revitalização

23


Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

Nosso Eremitério de Rodeio

24


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.