Introdução No ano de 1517, Martinho Lutero fez estremecer a Cristandade do seu tempo ao publicar as célebres 95 Teses, com as quais ele apenas pretendia iniciar um debate escolástico sobre a graça de Deus e o uso de indulgências. Foi o começo do cisma, de uma rotura até então inconcebível com a Igreja Católica que deu lugar à Reforma Protestante e que marcou a História para sempre. Porém nos dois anos seguintes, as obras de Lutero limitaram-se a comentários de livros e epístolas bíblicas. Nesse período de tempo, a sua atividade consistiu sobretudo da defesa das suas ideias em debates e convenções, perante estudiosos e embaixadores de Roma. Um dos debates mais ilustres em que Lutero participou foi o de Leipzig, em 1519, ao apoiar o seu antigo professor de teo-
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logia Andreas Karlstadt em oposição a João Eck, o mais afamado (e persistente) opositor de Lutero. Aí Lutero foi forçado a tomar uma posição considerada herética, semelhante à de João Huss, que confirmou o seu destino. Em Julho de 1520, a bula Exsurge Domine do Papa Leão X proibia a mera existência das obras de Lutero e ordenava que o monge se retratasse num prazo de sessenta dias. A resposta de Lutero, no entanto, foi bem diferente da pretendida por Roma. No mês seguinte, o monge alemão criticou veementemente a doutrina católica e o clero de Roma com a sua obra polémica À Nobreza Cristã da Nação Alemã, seguida por outra tese ainda mais controversa, Prelúdio no Cativeiro Babilónico da Igreja, publicada em Outubro do mesmo ano. O terceiro tratado em reposta à bula – o último antes da sua excomunhão efetiva – foi De Libertate Christiana, ou A Liberdade Cristã. Publicada em Novembro de 1520, A Liberdade Cristã foi a gota de água. Mais do que apenas criticar a Igreja e os seus costumes, Lutero afirmava a sua perspetiva reformadora de forma aberta nesta obra magnífica. De acordo com o livro de Jack D. Kilcrease e Erwin W. Lutzer, Martin Luther In His
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Own Words, Lutero escreve este tratado para “explicar o seu novo entendimento da justificação do pecador perante Deus”. O monge já não se limitava a contestar os erros da Igreja de Roma, mas propunha agora uma nova forma de encarar a própria fé Cristã. Depois de anos de debates e comentários bíblicos, a sua visão passava agora para a escrita – uma visão de liberdade dos costumes e das leis de Roma; “uma liberdade”, como Jorge Pinheiro explica, “cujas raízes e fundamentos se encontram apenas na Palavra da promessa, único garante do motor que deve fazer avançar o Cristão – a fé.” Depois de A Liberdade Cristã ter sido publicada, não havia como voltar atrás. No final desse mesmo ano, Lutero queimou a bula do Papa; no ano seguinte, o monge foi excomungado da Igreja Católica. A reforma que ele começara em 1517, com um simples convite de debate para os estudiosos da sua região, era agora um movimento distinto e independente de Roma. Mal sabia Lutero que, quinhentos anos depois de afixar as suas 95 Teses, milhões de Cristãos espalhados por todo o mundo celebrariam este ato de coragem e fé pelo qual eles são hoje verdadeiramente livres.
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I A fé cristã parece ser algo fácil para muitos; aliás, não são poucos os que a reconhecem apenas como uma virtude social, isto porque eles nunca experienciaram a fé nem obtiveram provas dela, não tendo nunca provado da sua eficácia. Pois não é possível para homem algum poder escrever bem sobre ela, ou compreender na íntegra o que está escrito na íntegra, sem ter em tempo algum provado do seu espírito mediante a pressão das tribulações; enquanto que aquele que a provou, mesmo que tenha sido o mínimo dos mínimos, nunca poderá escrever, falar, pensar ou ouvir o suficiente dela. Ela é uma fonte viva que jorra para a eternidade, como Cristo lhe chama em João 4.
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Agora, embora não me possa orgulhar da minha abundância e embora eu saiba o quão desprovido eu me encontro, ainda assim eu espero que, depois de ter sido envergonhado por várias tentações, eu tenha obtido uma gota de fé e possa assim falar deste assunto – certamente com mais solidez, se não com mais elegância, do que aqueles opositores demasiado literais e subtis que até agora têm falado sobre isto sem entenderem as suas próprias palavras. De modo a abrir um caminho mais fácil aos ignorantes – pois são estes quem eu tento servir – deixo estas duas afirmações sobre a liberdade e servidão espirituais: “O Cristão é o mais livre de todos os senhores, e sujeito a nenhum outro; o Cristão é o mais obediente de todos os servos, e sujeito a todos os outros.” Embora estas afirmações pareçam contraditórias, elas satisfazem perfeitamente o meu propósito quando se juntam. Foram estas as palavras de Paulo, que diz, “Porque, sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos, para ganhar ainda
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mais,” (1 Cor. 9:19) e “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei” (Rom. 13:8). O amor é por sua natureza obediente e submisso ao que é amado. Desta forma Cristo, ainda que Senhor de todas as coisas, nasceu de uma mulher, sujeito à lei; ao mesmo tempo livre e submisso, tal como Deus e tal como um servo. Examinemos este ponto de uma forma mais complexa e aprofundada. O homem é composto por uma natureza dupla, a espiritual e a física. Referente à sua natureza espiritual, cujo nome é a alma, ele é chamado de novo homem, interior e espiritual; e à sua natureza física, cujo nome é a carne, é chamado de velho homem, exterior e carnal. O Apóstolo fala disto: “mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia” (2 Cor. 4:16) O resultado desta diversidade é que nas Escrituras são feitas afirmações contrárias em relação ao mesmo homem, pois no mesmo homem estes dois se opõem; a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne (Gal. 5:17). Nós abordamos o homem interior em primeiro lugar para que possamos ver como alguém
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se torna num verdadeiro Cristão, livre e justificado; isto é, num novo homem, interior e espiritual. É certo que não existe absolutamente nada do que é exterior, seja qual for o seu nome, que tenha alguma influência em produzir liberdade ou justificação Cristãs, nem maldade ou escravidão. Isto pode ser facilmente demonstrado com o seguinte argumento. Que benefício tem a alma pelo corpo estar em boas condições, livre e cheio de vida, e que coma, beba e faça como bem lhe aprouver, quando até o mais ímpio dos escravos de todo o tipo de vícios goza da mesma situação? E que dano pode causar à alma a enfermidade, o cativeiro, a fome, a sede ou qualquer outro mal exterior, quando até o mais pio de todos os homens e os mais livres na pureza de consciência são fustigados por estas coisas? Nenhuma das duas situações tem a ver com liberdade ou escravidão da alma. Assim de nada serve que o corpo esteja aproado com vestes sagradas, ou que habite em lugares santos, ou que se ocupe com ofícios veneráveis, ou que ore, jejue e se abstenha de certas carnes, ou que faça quaisquer obras realizadas na carne e pela
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carne. Algo bastante diferente será necessário para a justificação e liberdade da alma, visto que todas as coisas que mencionei podem ser feitas por qualquer pessoa ímpia, e que a devoção a estas coisas só produz hipócritas. Por outro lado, não afligirá a alma de todo que o corpo se vista com indumentárias profanas, que habite em lugares ímpios, que coma e beba de maneira vulgar, que não ore em voz alta, e que deixe de lado todas as coisas anteriormente mencionadas e que podem ser feitas por hipócritas. De nada serve também a especulação, as meditações, e quaisquer coisas que possam ser realizadas unicamente pelo esforço da própria alma. Uma coisa, e apenas uma, é necessária à vida, à justificação e à liberdade Cristã, e ela é a palavra de Deus, o Evangelho de Cristo, que como Ele diz, “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (João 11:25) e “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente, sereis livres” (João 8:36) e ainda “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mat. 4:4). Assim que nos fique assegurado e estabele-
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cido de que a alma de nada precisa senão da palavra de Deus, sem a qual nenhuma das suas carências seria satisfeita. Mas tendo a palavra, a alma é rica e não carece de nada, pois esta é a palavra da vida, da verdade, da luz, da paz, da justificação, da salvação, da alegria, da liberdade, da sabedoria, da virtude, da graça, da glória e de tudo o que é bom. É assim que o profeta suspira e clama pela palavra de Deus num Salmo inteiro (Salmo 119) – assim como noutros lugares – com tantas palavras e gemidos. Não há um golpe mais cruel da ira de Deus do que quando Ele nos dá uma fome de ouvir as Suas palavras (Amós 8:11), assim como não há maior bênção d’Ele do que o receber as Suas palavras, como fora dito, “Enviou a sua palavra, e os sarou, e os livrou da sua destruição” (Salmo 107:20). Cristo não foi enviado para nenhum outro trabalho a não ser o da palavra; e a ordem dos Apóstolos, dos bispos e de todo o clero foi chamada e instituída para nenhum outro propósito que não fosse o ministério da palavra. Mas você pode perguntar, “O que é esta palavra e como é que ela é usada, visto que há tantas
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palavras de Deus?” Ao passo que eu respondo, “O Apóstolo Paulo (Rom. 1) explica o que é nomeadamente o Evangelho de Deus, relativo ao seu Filho incarnado, que sofreu, ressuscitou e foi glorificado através do Espírito, o Santificador. Pregar sobre Cristo é alimentar a alma, justificá-la, libertá-la e salvá-la, caso ela creia no que é pregado. Só a fé e o uso eficaz da palavra de Deus trazem salvação. “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Rom. 10:9) e também, “Porque o fim da Lei é Cristo, para a justificação de todo o que crê” (Rom 10:4) e “O justo viverá pela fé” (Rom. 1:17). Pois a palavra de Deus não pode ser recebida e honrada pelas obras, mas somente pela fé. Assim torna-se claro de que a alma precisa apenas da palavra para ter vida e justificação, visto que a alma só é justificada pela fé e não por quaisquer obras; pois se fosse possível ser-se justificado por quaisquer outros meios, não seria necessária a palavra e consequentemente, nem a fé. Mas esta fé não consiste de todo com as obras, caso você imagine que pode ser justificado pelas obras juntamente com a fé, quaisquer que se-
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jam essas obras; pois isso seria oscilar entre duas opiniões, adorar a Baal e beijar a própria mão, o que seria um pecado merecedor de condenação, como diria Jó (Jó 31:27-28 NVI-PT). Portanto quando você começar a crer, aprenderá ao mesmo tempo que tudo o que existe dentro de si é completamente culpado, pecaminoso e amaldiçoado, de acordo com o que foi dito: “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rom. 3:23) e também “Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” (Rom. 3:10-12). Quando tiver aprendido isto você ficará a saber que precisa de Cristo, visto que Ele sofreu e ressuscitou por si para que, crendo n’Ele, você possa por esta fé tornar-se noutro homem, todos os seus pecados sendo remitidos e você sendo justificado pelos méritos de outro, nomeadamente Cristo e somente Ele. A partir daí esta fé reina somente no homem interior, como está escrito “com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação” (Rom. 10:10), e como só ela justifica, é
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evidente que por nenhuma obra exterior pode o homem interior ser justificado, livre e salvo; nenhuma obra tem qualquer relação com ele. Por outro lado, é apenas pela impiedade e incredulidade do coração que ele se torna culpado e um escravo do pecado merecedor de condenação, não por nenhuma obra ou pecado exterior. Portanto o primeiro cuidado que o Cristão deve ter é o de deixar totalmente de depender das obras, fortalecendo exclusivamente a sua fé mais e mais para que cresça não nas obras, mas no conhecimento de Cristo Jesus, que sofreu e ressuscitou para o homem, como Pedro ensina (1 Pedro 5) quando ele não faz Cristã nenhuma obra. Foi assim que Cristo, quando os Judeus O questionaram acerca do que fazer para poderem realizar as obras de Deus, rejeitou a variedade de obras que os tornavam altivos aos Seus olhos, e comandou -os a fazerem apenas uma coisa, dizendo: “A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação” (João 6:27,29 NIV-PT). A fé certa em Cristo é portanto um tesouro incomparável, que traz salvação universal e que preserva de todo o mal, como está escrito, “Quem
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crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado” (Marcos 16:16) Na sua busca por este tesouro, Isaías previu que “uma destruição está determinada, transbordando de justiça. Porque determinada já a destruição, o Senhor Jeová dos Exércitos a executará no meio de toda esta terra” (Isa. 10:22-23), como se tivesse dito: “a fé, que é o breve e total cumprimento da lei, encherá os que crerem com tal justiça que de nada mais irão precisar para serem justificados.” Daí que Paulo também diz: “com o coração se crê para a justiça” (Rom. 10:10). Mas você pode perguntar, “como é que de facto só a fé nos justifica e nos brinda com tão grande tesouro de coisas boas na ausência de obras, quando nos são prescritas nas Escrituras tantas obras, leis e cerimónias?” Ao passo que eu respondo, “Antes de mais tenham em mente o que tenho dito: que só a fé justifica, livra e salva”, como vos mostrarei de forma mais clara em seguida.
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