Transcendente

Page 1

Transcendente



Transcendente #00

Transcendente

Editorial Os artigos que compõem a publicação transcorrem sobre a Teoria Queer e suas influências sociais, culturais e artísticas na construção histórica do pensamento contemporâneo. A Teoria Queer é caracterizada como uma corrente de estudos centralizada na representação dos conceitos de diversidade sexual. Oriundo da década de 80 do século XX, os estudos queer são provenientes do encontro entre pesquisas culturais e o pós estruturalismo francês, munidos conceitualmente dos movimentos de libertação feministas e gays, e da chamada Revolução Sexual.

Capa: Arthur Cardoso facebook.com/arthurcardpagina Contra-capa: Carol Rossetti facebook.com/carolrossettidesign Redação: Ana Luiza Borelli; Carolina Andrade; Gabriella Bernardes; Nathália Pereira; Patrícia da Cruz; Rafael Polcaro; Rafaella Rodinistzky Diagramação: Patrícia da Cruz; Rafaella Rodinistzky Agradecimentos: Aline Lemos; Ana Júlia Gomes; Arthur Cardoso; Carol Rossetti; Juliana Calambau; Laerte Coutinho; Linn Alves

Com o intuito de problematizar e ativar uma minoria excluída da sociedade heteronormativa, a Teoria Queer desafia os códigos tradicionais de comportamentos relativos à sexualidade humana. Fazendo uso de uma concepção ideologicamente inovadora, a Teoria busca cada vez mais englobar física e conceitualmente todos os grupos sexuais e suas respectivas peculiaridades ao convívio social. Respeitando diferenças históricas, etárias, socioeconômicas e culturais, o pensamento queer contemporâneo propõe a quebra de diversos paradigmas de gênero. Além disso, procura fundamentar a diferenciação entre orientação sexual, que engloba todo o espectro entre homossexualidade, bissexualidade, heterossexualidade, e identidade de gênero, que engloba as identidades cis e transexuais. Com o maior debate sobre inclusão social e o amadurecimento dos estudos Queer, a evolução do pensamento inclusivo cresceu significativamente ao longo dos anos, especialmente no campo das artes. A influência e o apoio de áreas como o cinema, a literatura, a música, a moda, a televisão e as produções gráficas na tentativa de construir debates sobre o tema, são de suma importância para a quebra de tabus sociais e para construção de um pensamento pós-indenitário. Pensando na construção de uma publicação linear e inclusiva, os artigosencontrados ao longo da revista são uma junção de teorias sociais, peças gráficas e entrevistas pesquisadas e colhidas em prol de fomentar e enriquecer os estudos da Teoria Queer.

Transcendente, página 03


Encontre-se 06 Normas quebrantadas Nathรกlia Pereira

14 Nรณs sempre teremos Paris, ou nรฃo Rafael Polcaro

20

(Des)enquadradx Rafaella Rodinistzky


38 Descosturando paradigmas Carolina Andrade

44

Born This Way Patrícia da Cruz

50

Além do arco-íris Ana Luiza Borelli

56

O feminismo e a convergência de ideias Gabriella Bernardes



Nathรกlia Pereira


Transcendente, página 08 Normas Quebrantadas A Teoria Queer é considerada como um campo da teoria crítica pós-estruturalista, e sua denominação formal é atribuída à feminista e crítica de cinema italiana Teresa de Lauretis, que usou o termo “Teoria Queer” uma palestra na Universidade da California em 1990. Porém, ao assumirmos uma postura analítica também pós-estruturalista, é possível ver a Teoria Queer como um amalgama, ou uma consequencia ainda mais transgressora dos estudos LGBT e dos estudos de gênero que a antecederam. Os estudos queer trazem para análise os espaços indefinidos da sexualidade, da identidade de gênero, de tudo que faça parte do espectro não dominante, que se desencaixe da heteronorma. Subjetiva a identidade ao máximo e trata a construção do feminino e do masculino como mecanismo de controle, de poder.

Acervo Exeter Centre

Um dos autores mais comentados nos trabalhos da teoria,Michel Foucault

A partir disso, traça seu primeiro grande elo com a literatura antecessora à gênese do seu nome. Entender a Teoria Queer demanda, portanto, uma quebra temporal. Antes mesmo de ser oficialmente instaurada como campo científico, sua bibliografia fundamental já estava sendo escrita, entre ensaios e obras de ficção. Desconstrução Aliada aos seus ideais de quebra em relação ao poder vigente e às normatizações, é natural que os teóricos queer tenham criado uma rede teórica tão diversa que descenda dos estudos de gênero, da psicanálise, da filosofia existencialista, da ficção modernista, e outros inúmeros sub-gêneros literários. Um dos autores mais comentados nos trabalhos da teoria é Michel Foucault. Sua obra foi resgatada para oferecer uma

lente teórica que seja capaz de analisar a natureza do poder ao qual a Teoria Queer se refere. Assim como descrito no primeiro volume de “A História da Sexualidade”, o poder não é o que está concentrado nas mãos de um único homem, nem mesmo de um único Estado ou aparelho Legislativo. Ele é, na verdade, toda a rede cuja “cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (História da Sexualidade, 1976). Assim, entende-se a opressão das sexualidades periféricas como resultado de um processo histórico de sufocamento e assepsia – que culminou no período vitoriano, segundo Foucault – e de um costume social disseminado em diversos níveis, do núcleo familiar à escola infantil. Além de Foucault, os estudos de gênero formam outro pilar da Teoria Queer. Grandes rupturas, como a diferenciação entre sexo e gênero no livro Orlando (1929), de Virginia Woolf, trouxeram à ficção consumida pelas massas, assuntos que até então estavam circunscritos ao ambiente acadêmico e aos estudos da psicanálise. Enquanto a vida de Orlando atravessa mais de 400 séculos, mudando repentinamente de sexo diversas vezes, sem que sejam dadas maiores explicações aos leitores, Virginia


Sony Pictures Classics

George C. Beresford

Tilda Swinton como Orlando, na adaptacao cinematografica do livro de Virginia Woolf, lancada am 1992

Woolf desconstrói o gênero, e o expõe como nada mais que uma alegoria social. Orlando, em essência e caráter, está presente durante toda a narrativa, quer seja como homem ou mulher, quer seja servindo à Rainha Elizabeth I ou espantando-se com os horrores da 1a Guerra Mundial. Consequentemente, a busca pela igualdade de gêneros, os questionamentos feministas sobre a despolitização dos corpos, e a plenitude de decisão das mulheres sobre os mesmos, trazem Simone de Beauvoir em sua vanguarda. No clássico da literatura feminista “O Segundo Sexo” (1949), Beauvoir

explora a formação do gênero, valendo-se também de tendências existencialistas. Beauvoir cunhou a célebre frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, novamente demonstrando o gênero como uma criação, e não uma definição congênita. Em outra de suas citações, diz: “Os termos masculino e feminino são usados simetricamente apenas como uma questão de formalidade. Na realidade, a relação dos dois sexos não é bem como a de dois pólos elétricos, pois o homem representa tanto o positivo e o neutro, como é indicado pelo uso comum de homem para designar seres humanos

em geral; enquanto que a mulher aparece somente como o negativo, definido por critérios de limitação, sem reciprocidade.” Com esses questionamentos, foi possível que a Teoria Queer expusesse as identidades intermediárias, como a androginia, e os intercâmbios de expressão que podem haver entre os dois sexos. Fala-se aqui da libertação das limitações impostas pelo gênero. A filósofa e teórica de gênero Judith Butler fez contribuições definitivas à Teoria Queer. Atualmente, Butler é docente e co-diretora do Programa de Te-

Transcendente, página 09


Transcendente, página 10 Normas Quebrantadas

Simone de Beauvoir (acima) cunhou a celebre frase “nao se nasce mulher, torna-se mulher”

Universidade de Berkeley

Divulgação

oria Crítica da Universidade da Califórnia, e em “Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “sex”” (1993), desafiou não apenas noções de gênero, como também do próprio sexo. Em sua discussão sobre a sociedade, no livro “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” (1990), descreve uma “ordem compulsória” que demanda uma linearidade heterossexual entre sexo, gênero, desejo e prática.

Filosofa e teorica de genero, Judith Butler fez contribuicoes definitivas para a Teoria Queer

Divulgação

Patricia Highsmith (ao lado) produziu classicos da literatura queer, como “The Price of Salt”

Finalmente, introduz a questão da performatividade. Segundo esse conceito, o gênero não é um conjunto de regras, expectativas ou taxações sobre um determinado “eu” ou determinado sexo, é apenas uma reprodução de normas que se impõem como naturais. Assim, o gênero não tem sujeito preexistente, não tem um “eu” por trás de sua manifestação. Com esse embasamento literário, os teóricos queer buscam quebrar a dicotomia entre o feminino e o masculino, admitindo tratar-se de uma construção social. Propuseram também o reconhecimento de sexualidades periféricas ao heteronormativo, propuseram dar espaço de enunciação àqueles que se identificam em outros pontos do espectro de sexualidade e do espectro de identidade de gênero. Propuseram seguir os ideais de Foucault, que identifica uma polimorfia sobre o discurso da sexualidade. Ou seja, várias vozes discursam sobre um mesmo tema, e ainda assim podem servir tanto para perpetuar uma normatização vigente, ou para quebrá-la. Enunciação Na ficção do século XX, novas vozes foram acrescidas ao cenário literário, com tramas especificamente desenvolvidas sobre personagens queer. Essas vozes que até então haviam sido caladas pela criminalização da homossexualidade e pelos pre-


Weinstein Company

conceitos sociais passaram a ser enunciadores proeminentes na literatura. Esse nicho não ficou restrito a um público de pequeno número. Bem sucedidas autoras como Patricia Highsmith produziram clássicos da literatura queer, como “The Price of Salt” (1952), além de alcançar sucesso comercial com “O Talentoso Ripley” (1955). “The Price of Salt” - ou “Carol” na versão traduzida ao português - gerou intensos debates nos Estados Unidos. Publicado por Highsmith sob o pseudônimo de Claire Morgan, a história de uma mãe de família que abandona seu marido para viver um romance com uma mulher mais jovem gerou reprimenda de conservadores. As personagens principais, Therese Belivet e Carol Aird também desafiam estereótipos de homossexualidade. Ainda assim, um dos maiores pioneirismos de Highsmith foi a inclusão do primeiro final potencialmente feliz para protagonistas lésbicas, o que até então nunca havia sido registrado na literatura queer. Historicamente, o primeiro romance a ser categorizado como “ficção lésbica” foi “The Well of Loneliness” (1928), da autora britânica Radclyffe Hall. Banido da Grã-Bretanha por retratar “práticas não naturais”, o livro foi um marco no incipiente ativismo pelos direitos

A adaptacao de “The Price of Salt”, baseada no romance de Patricia Highsmith, chegara aos cinemas em 2015, com Cate Blanchett e Rooney Mara dos “sexualmente invertidos” - denominação de homossexualidade comum à época -. O romance entre uma inglesa de classe elevada e uma motorista de ambulância, durante a Primeira Guerra Mundial, não expõe nenhuma cena explícita, e trata a “inversão” como estado congênito e natural, dado por Deus, pedindo ainda: “Dênos também o direito à nossa existência”. Já a Algustus, Duque de SaxeGotha-Altenburg, é atribuída a primeira obra de ficção moderna a descrever um casal de homens. No livro de poesias “Kyllenion Ein Jahr in Arkdien”, ou “Cyllenion A year in Arcadia”,

publicado anonimamente em 1805, diversos casais se apaixonam e têm finais felizes. Um casal de dois homens é representado, e tratado igualmente aos outros casais. A representatividade trans, no entanto, ainda é ínfima no conjunto da produção literária. Um dos primeiros registros da inserção de uma personagem trans está no livro juvenil “Luna” (2004), da autora Julie Anne Peters, sobre a vida da transexual Luna/Liam sob a perspectiva de sua irmã, Regan. A obra venceu prêmios literários como o Lambda, na categoria infanto-juvenil.

Transcendente, página 11


Transcendente, página 12

Linha do tempo, bibliografia queer 1805 - 2004 1805

Autor Desconhecido

Ludwig Doell Herzogs

“Cyllenion A year in Arcadia” - Algustus, Duque de Saxe-GothaAltenburg.

1928

Divulgação

“The Well of Loneliness” Radclyffe Hall

1929

National Portrait Gallery

Divulgação

“Orlando” - Virginia Woolf


2004 "Luna" - Julie Anne Peters Acervo pessoal

1993

Divulgação

“Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “sex”- Judith Butler

“A História da Sexualidade” Michel Foucault

1952 Divulgação

Divulgação

1976

1949 Divulgação

“O Segundo Sexo” Simone de Beauvoir

Divulgação

“The Price of Salt” Patricia Highsmith

Transcendente, página 13


nos s teremos ou n


sempre paris, nao Rafael Polcaro


Transcendente, página 16

Se hoje não há mais tabus na indústria cinematográfica quanto a filmes centrados em questões de gênero, em seu início e consolidação, até mesmo as histórias de amor entre casais formados por homens e mulheres tinham barreiras que demoraram um certo tempo a serem quebradas. Se compararmos produções como “Casablanca” (1942) e “Azul é a Cor Mais Quente” (2013), obras com 71 anos de diferença e apenas uma coisa em comum, a retratação de uma paixão arrebatadora. A mais antiga tinha o lendárioHumphrey Bogart e Ingrid Bergman apenas trocando abraços e beijos que definiam seu amor. Sete décadas depois uma história de um relacionamento entre duas mulheres é retratada, com cenas de sexo explícito, sem nenhum medo de chocar o grande público. Dessa maneira, podemos perceber que não apenas a retratação da sexualidade evoluiu, mas o entendimento do amor, que é algo livre e individual. O primeiro beijo gay entre pessoas do mesmo sexo foi no primeiro filme mudo a ganhar um Oscar de melhor filme. Em “Asas” (1927), Buddy Rog-

ers e Richard Arlen são os astros, interpretando dois pilotos de combate que disputam a afeição de uma mesma mulher. Mas apesar do enredo colocálos em posições antagônicas, eles constroem uma bela amizade e quando um está à beira da morte, a afeição é demonstrada com um tímido beijo, sem nenhuma carga erótica, porém suficientemente ousado para causar espanto nos espectadores da época. Na década seguinte, a liberdade artística foi prejudicada no cinema americano, quando o chamado “código de Hayes” foi implantado. Criado pela Associação Americana de Produtores Cinematográficos dos Estados Unidos (MPAA), o código consistia em uma série de regras morais a serem seguidas nos filmes. A associação decidiu que beijos de língua, cenas de sexo, sedução, estupro, aborto, prostituição, nudez, obscenidade e profanação não eram práticas moralmente aceitáveis para serem retratadas no cinema. A partir da implantação dessa censura a figura do homossexual foi muito afetada, já que finais trágicos e o papel do vilão eram destinados muitas vezes a personagens com “tendências homossexuais”. Billy Wilder por exemplo, escreveu “Farrapo Humano” (1945), com a ideia de que o personagem principal seria um escritor alcoólatra e sexualmente confuso, mas devido à censura,essa questão

Buddy Roggers e Richard Arlen em Wings (Asas) de 1972

Divulgação

Como importante mediador da cultura, o cinema é capaz de discutir todas as questões sociais possíveis. Utilizando de signos que usados por ele permitem sentidos e compartilhamento de significados. Dessa maneira, ele possui uma representatividade imensa para o estudo da teoria queer.

Divulgação

nos sempre teremos paris, ou nao

Ray Milland em Farrapo Humano de Billy Wilder (1945)

sexual foi trocada e o personagem passou a sofrer de um “bloqueio criativo”. Algo bem interessante, pois essa mudança escolhida para seguir as regras do código funcionou como uma resposta irônica. Porque a censura nada mais é, que literalmente, um bloqueio criativo.


Apesar dessa imposição muitos filmes foram produzidos fora do circuito comercial. O mais notável deles foi “Glen ou Glenda” (1953), do diretor Ed Wood, amplamente conhecido como o pior diretor de todos os tempos. O filme inicialmente deveria contar a história real da primeira mulher a fazer uma cirurgia de troca de sexo, porém o diretor acabou utilizando o filme para representar um dilema que ele mesmo possuía, o de se vestir como uma mulher. Apesar de propor uma discussão importante, o filme, assim como Wood, é considerado por muitos o pior de todos os tempos. Pois, como era comum em todas as produções do diretor, o filme apresenta narrativas orais que tentavam amarrar diversas imagens e fragmentos sem conexão entre eles.

Divulgação

Divulgação

Mas em 1959, Billy Wilder conseguiu abordar a sexualidade no circuito mainstream,driblando a censura em uma comédia aparentemente inocente. Em “Quanto Mais Quente Melhor”, toda a sensualidade de Marylin Monroe é colocada em destaque, e ao colocar as curvas, o andar e o olhar da atriz em evidência, colocando o corpo de uma mulher como figura central no filme, Wilder pôde discutir livremente em tom cômico a homossexualidade e até o travestismo, ao colocar Tony Curtis e Jack Lemmon em situações que precisavam se vestir e agir como mulheres.

“Glen ou Glenda” (1953), do diretor Ed Wood, amplamente conhecido como o pior diretor de todos os tempos

Tony Curtis e Jack Lemmon

Transcendente, página 17


Transcendente, página 18

nos sempre teremos paris, ou nao em que Al Pacino se infiltra na comunidade gay de Nova York para tentar encontrar um assassino em série que ataca somente homossexuais. A produção sofreu protestos da comunidade LGBT na época, por ser considerada anti-gay e teve dificuldade nas gravações de cenas ao ar livre, em que os manifestantes tentavam de várias formas atrapalhar o andamento das filmagens. Com o crescimento na produção de filmes que colocavam a sexualidade como discussão, uma nova barreira surgiu contra a produção deles.

Movimentos“políticos cristãos” ganharam força como opositores dos grupos que defendiam os direitos LGBT’s. Esses movimentos políticos conservadores organizavam uma série de protestos e boicotes a produções musicais, televisivas, literárias e cinematográficas que ofendiam os valores do cristianismo. Como resultado disso produções com temáticas homossexuais começaram a perder força e só ressurgiram com o auge da AIDS, mas tratando a doença de uma maneira homofóbica, colocando assim como na época do “código Hayes”, o

Divulgação

O código foi abandonado apenas em 1968, quando foi estabelecida a censura de idade para as produções artísticas. Porém o gay apenas ganhou força nas produções cinematográficas quando Hollywood viu um possível mercado para filmes com temáticas LGBT, depois de que uma série de protestos contra a violência policial com homossexuais tomou grandes proporções em Nova York. Conhecido como Stonewall Riot, o movimento surgiu quando uma mulher foi retirada com brutalidade por policiais de um bar gay. Cansados de ações violentas como essa, o movimento LGBT organizou uma série de protestos por três noites, que ajudaram na briga por discussões de igualdade, alavancando uma revolução sexual. O filme “Os Rapazes da Banda” (1970), foi a primeira tentativa hollywoodiana de produzir um filme para o público homossexual. Adaptada de uma peça de circuito Off – Broadway, narrava os dilemas de oito amigos que se reúnem numa noite chuvosa para uma comemoração de aniversário, que se transforma num retrato das angustias do mundo gay, que marcaram um período préliberal dos anos 80. O filme foi dirigido pelo renomado William Friedkin, mais conhecido por “O Exorcista” e “Operação França”, que curiosamente em 1980 realizou mais um filme com temática gay, dessa vez o policial “Parceiros da Noite”,

Divulgação


gay como uma espécie de vilão. No começo dos anos 90, o movimento conservador cultural e político entrou em declínio, influenciando na maneira como o cinema americano tratava a questão sexual. O movimento LGBT ganhou mais força quando celebridades conhecidas assumiram sua homossexualidade e se infectaram com o vírus da AIDS, fazendo com que a comunidade americana passasse a discutir mais abertamente essa temática. Com esse maior apoio cultural, membros da comunidade gay viram a necessidade de se expressarem no mundo artístico, criando o que viria a ser chamado de “New Queer Cinema”, que representou uma nova era nos filmes independentes. Geralmente retratando personagens que falavam abertamente sobre suas orientações sexuais e questões de identidade, eles começaram a ser retratados de uma maneira positiva, o que não acontecia na maioria das produções de circuito comercial.

teceuapenas em 2005 quando Ang Lee dirigiu,“O Segredo de Brokeback Mountain”, ganhador de três oscars, que se tornou um marco no cinema gay. Pois foi uma das primeiras grandes produções que tratavam de uma história de amor homossexual, tendo dois personagens gays nos papéis principais. O sucesso da produção promoveu uma nova perspectiva sobre o homossexualismo para circuito cinematográfico mainstream e para o público geral. Tendo em vista que nos anos seguintes outros filmes como “Milk” (2008) e “Cisne Negro” (2010) tiveram em seus papéis principais astros conhecidos que interpretaram personagens homossexuais, algo bem raro nas décadas anteriores. Por isso, o movimento ganhou mais força ainda quando celebridades conhecidas o apoiaram de alguma forma, como é o caso dos antes conhecidos como “Wachowski Brothers”, que dirigiram a franquia “Matrix” se tornaram “The Wachowski Starship”, pelo fato de que um dos irmãos, Larry, se

transformou em Lana. Portanto o cinema evolui muito na maneira como trata a sexualidade, não há mais barreiras criativas para se expressar e nem questões morais que atrapalhem a produção de uma história. A maior preocupação ainda continua em relação à aceitação do público geral com histórias que tratem dessa temática. Apesar de avanços nunca antes pensados como a integraçãode um personagem abertamente gay em um grande filme infantil de animação, que aconteceu em “Paranorman” (2012), ainda há muito a ser feito para que possamos ver histórias de amor em sua forma mais pura sendo retratadas e aceitadas pelo grande público sem preconceitos. Por isso, esperamos pelo dia em que possamos assistir a uma produção que seja uma espécie de Casablanca que tenha como personagens centrais um casal gay, que consiga ficar marcado na história do cinema, mas não por ser uma obra sobre homossexuais, mas por ser um filme que trate do amor em sua mais perfeita e pura forma.

Com a força desse movimento independente, o cinema hollywoodiano começou a tratar os personagens gays com mais respeito e igualdade. Apesar disso, na maioria das vezes eles eram tratados como personagens cômicos, em filmes de comédia e nem sempre como personagens principais. A mudança mais significativa fora do circuito independente acon-

Transcendente, página 19


(Des)enq

Identidade de gĂŞn sexual nos Rafaella Rodinistzky


quadradx

nero e orientacão quadrinhos “O gênero passará não só a construir e simultaneamente a desconstruir as categorias de homem e de mulher, mas também a estudar aqueles que estão fora do sistema sexo/gênero.” Donna Haraway


Transcendente, página 22 (Des)enquadradx As tensões entre sexo e gênero são igualmente úteis para se pensar sobre o modo como a própria constituição do campo queer corresponde à opção por um modelo não-identitário tanto no plano de gênero quanto no plano da sexualidade, marcada principalmente pela recusa do binarismo sexual.

Imagem de guiadosquadrinhos.com

O sexo é apresentado como uma realidade imutável e não sujeita a alterações históricas e culturais. O gênero opera em um sistema de normas, e suas performances partaem dessas regras para se cristalizarem em concordância ou para as atribuírem um novo significado, como nas performances de gênero, drag queen/king, ou nas afirmações queer.

A nona arte quer desenquadrar o gênero. O quadrinho mainstream e as questões LGBT* Os quadrinhos mainstream têm presença de gays e lésbicas desde Watchmen (1986) e Sandman (1988-1996), duas das maiores referências da nona arte. Porém, a partir dos anos 2000 que o cenário ganha uma guinada com a revelação da orientação sexual de heróis e heroínas estimados pelo público como Lanterna Verde (DC Comics) e Batwoman (Marvel). Em diversos âmbitos da mídia e da cultura, nota-se uma abertura lenta e gradual às questões LGBT* e no mainstream dos

quadrinhos de super-heróis não é diferente. A ideia de uma abertura aos LGBT* gera ambição nas grandes editoras, além de levá-las ao topo dos veículos de comunicação em instantes, porém deve-se observar se a mensagem dessas grandes companhias é a mesma e de interesse dos LGBT*. O número de mulheres abertamente homossexuais nas HQ’s é consideravelmente superior ao de homens, isso se dá pelo fato da fetichização criada pelos leitores masculinos de duas mulheres de collant se beijando aliada ao estereótipo de que os heróis nas histórias em quadrinhos devem ser masculinizados ao extremo para defenderem o mundo, opondo-se ao estereótipo de que os gays são frágeis e delicados.


Homossexuais, mutantes?

os

novos

Imagem de guiadosquadrinhos.com

Os quadrinhos mainstream ainda têm presença de um grande número de leitores homofóbicos que gostariam que seus gibis nem mencionassem a existência de homossexuais, quanto mais que aparecessem neles personagens em relações homoafetivas. Criados em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby, os X-Men formam uma equipe de heróis sob o mote “destinados a salvar um mundo que os teme e os odeia”. Durante quase duas décadas a criação da Marvel Comics foi uma febre nos Estados Unidos, seres considerados diferentes dos humanos que não eram respeitados pelo seu modo de vida e que lutavam para ganhar o reconhecimento de que são tão humanos quanto aqueles que os julgam de maneira errônea. Parece apenas ficção, mas na “vida real” as pessoas vistas

Imagem de gayleague.com

como diferentes, aberrações, disfuncionais, erradas apenas por apresentarem orientação sexual fora do padrão normativo da sociedade e que buscam uma identidade de gênero que se sintam confortáveis são tão criticadas quanto os mutantes das HQ’s, que também eram submetidos à “cura” de uma doença que na verdade nunca existiu. A mente doentia é daquele que não sabe conviver com a diversidade. Radical? Substitua a palavra “mutantes” por “gays” no quadrinho acima.

Homossexuais nas HQ’s Casamento de Apollo e Midnighter na revista Authority em 2002. Os personagens são referências, respectivamente, a Superman e Batman. Renee Montoya, detetive da série Gotham City, assume sua homossexualidade após ser chantageada pelo vilão Duas-Caras. Kathy Kane, socialite de Gotham, luta contra o crime como a Batwoman. Em 2006 aparece como ex-namorada de Renee Montoya. Na revista X-Factor número 45 os personagens masculinos Rictor e Shatterstar protagonizaram um beijo gay. Casamento entre o herói Estrela-Polar e seu namorado Kyle Jinadu em Astonishing X-Men #51. O Lanterna Verde original, Allan Scott, foi escolhido pela DC em 2012 como novo herói gay para a série Earth 2. Transcendente, página 23


Transcendente, página 24 (Des)enquadradx

“Marginal” pode soar de maneira pejorativa no primeiro momento. Luiz Beltrão, um dos pioneiros no estudo científico da Comunicação no Brasil, classifica marginal em três categorias: rurais marginalizados, urbanos marginalizados e culturalmente marginalizados. O conceito de marginal no contexto dos fanzines se encaixa na última categoria, culturalmente marginalizados, que “contesta a cultura e a organização social estabelecida, adotando uma política ou filosofia contraposta à que está em vigência”, segundo Fábio Corniani no artigo Afinal, o que é folkcomunicação? Por ser um meio de comunicação alternativo, há divergências quanto ao seu surgimento. Acredita-se que o termo fanzine foi utilizado pela primeira vez em 1941 por Louis Russ Chauvenet, fã de ficção científica e editor de fanzines, para nomear as publicações alternativas que surgiam nos Estados Unidos, com textos de ficção científica e curiosidades. A outra versão da história conta que o fanzine, no formato como se conhece hoje, surgiu no final da década 70, junto com o movimento punk na Inglaterra. Define-se fanzine como abreviação de fanatic magazine, em tradução livre, revista feita por fã. O fanzine é fruto de uma mídia artesanal e pode ser elaborado sem conhecimentos profissionais de arte. Pode-se considerá-lo como uma im-

prensa alternativa feita para divulgar todo tipo de tema, geralmente com uma postura política ou crítica em relação ao assunto escolhido que varia de música, cinema, feminismo, sentimentos, questões sociais, poesia, games, estilo de vida, vegetarianismo ao preconceito. A perspectiva “do it yourself”, em tradução livre “faça você mesmo”, quebra os paradigmas da grande mídia nos espaços urbanos e possibilita aos indivíduos o deslocamento de sua condição de espectador/leitor para a de produtor/autor de conteúdo da cultura que adveio dessa mudança. Empoderado de tais conhecimentos, o próximo passo é colocar a ideia no papel e para isso não é necessário ser um desenhista profissional. Na década de 1990 surgia nos EUA o movimento Riot Grrrl que deu origem às “garotas rebeladas” que lutavam contra o machismo na cena punk através da produção de fanzines, montagem de bandas e apresentações de músicas com instrumentos pesados. O primeiro fanzine feminista de que se tem notícia é o “Riot Grrrl”, produzido por Molly Neuman, da banda punk Bratmobile, responsável por nomear o movimento. No Brasil, o Riot Grrrl surtiu efeito a partir da metade dos anos 1990, sob a influência da banda Dominatrix, principal representante da cena punkfeminista no país desde 1996, responsável pela produção do zine KAÓSTICA.

Imagem de acervofanzines.tumblr.com

Fanzine, o lado marginal dos quadrinhos


A (des)construcão publicacões femininas

das

O maniqueísmo entre o cenário feminista brasileiro e internacional é evidente. Enquanto o mundo vivia, durante os anos 60, a segunda onda do movimento com Simone de Beauvoir lutando pela descriminalização do aborto e pela abolição da dupla jornada de trabalho, no Brasil as principais publicações voltadas para o público feminino retratavam temas relacionados às obrigações domésticas, família, moda e dicas de beleza. Até a década de 70, o movimento feminista quase não tinha representação na mídia tupiniquim. O jornal “Brasil Mulher” foi a primeira publicação brasileira

de cunho feminista. Criado por Joana Lopes, o “Brasil Mulher” tinha a marca de ser esquerdista e abordava temas como prostituição infantil e aborto, principalmente denunciando mortes causadas por abortos clandestinos no país. Outro jornal importante foi o “Mulherio” lançado em 1981 e que sobreviveu à Ditadura Militar até 1990. Essas primeiras publicações pretendiam organizar as trabalhadoras e subsidiar suas lutas. Com a criação das associações de mulheres, o foco muda para o associativismo e para a busca por mudanças nos hábitos de vida, como a divisão do trabalho familiar. Entretanto, os impressos ficaram restritos ao ambiente acadêmico.

Publicacões femininas atuais Revista Inverna, ficcão gráfica brasileira de autoria feminina. facebook.com /revistainverna Zine XXX, minas iradas fazendo desenhos irados. Apenas para meninas cis/trans. facebook.com/zine-xxx Grupo do Zine XXX, espaço voltado para divulgação de eventos sobre quadrinhos no Brasil, além da difusão de trabalhos das minas (cis ou trans). Lady’s Comics, HQ não é só pro seu namorado. facebook.com/ladyscomics

Transcendente, página 25


Transcendente, página 26 (Des)enquadradx Quem faz fanzine hoje Desalineada Aline Lemos nasceu em Belo Horizonte no ano de 1989 e morou na cidade boa parte da vida. Ela define sua adolescência como “nerd, tomboy e meio-revoltada-meio-recatada”. Aline cursou licenciatura em História “pelo amor às ciências humanas e pelo ódio à instituição escolar, mas queria mesmo era fazer quadrinhos”. Durante dois anos e meio (2012-2014) conciliou o mestrado em História, pesquisando literatura de ficção científica e representações de gênero, e o curso de Design Gráfico. Agora, está abandonando o curso para fazer Artes Plásticas. Seu primeiro quadrinho, como aspirante a quadrinista, foi selecionado em 2013 para participar

da “Revista Inverna – Ficção Gráfica de Autoria Feminina”, a ser publicada. Após isso, criou a página “Desalineada”, participou do “Zine XXX” e publicou dois zines recentemente, “Vênus” e “Liturgia das Bruxas”. “Parece confuso, mas nesse período já perdi o medo de dançar, de ser bissexual e de me dedicar à arte, então sinto que estou em um bom caminho”, completa. Como começou seu interesse por ilustração? Desenhar sempre foi para mim uma forma muito prazerosa de me expressar. Eu tinha uma ideia vaga de que gostaria de ser quadrinista ou ilustradora, mas isso nunca esteve muito claro para mim como uma possibilidade real, por falta de conhecimento da área e de confiança em mim mesma. Os estereótipos de que a arte era uma coisa

distante da minha realidade e que não era uma profissão viável pesaram muito. Eu tentei ser outras coisas (um pouco) mais seguras, mas não estava feliz. Cheguei à conclusão de que se não estava feliz, não eram opções realistas para mim. Só há pouco tempo consegui romper essas barreiras e decidi me dedicar à área. Quais são suas influências? Os e as quadrinistas e ilustradores jovens que estão crescendo atualmente são os que mais me influenciam diretamente, seja na arte, no tema, na criatividade, na linguagem: Carol Rossetti, Ryot, Lovelove6, Diego Sanchez, Manzanna, Tailor, Cynthia Bonacossa, Pedro Cobiaco. Outros quadrinistas que me influenciaram foram Laerte, Neil Gaiman, Cyril Pedrosa, CLAMP, Marjane Satrapi, Gipi e Katie Skelly. Saindo dos quad-

Ilustração Aline Lemos


Como surgiu o nome “Desalineada”? Queria um trocadilho tosco com o meu nome, Aline. “Desalineada” em catalão e espanhol significa desalinhada. Achei perfeito, porque pode ser desarrumada, torta, desorientada. Quando eu faço quadrinhos, estou também me des-fazendo nessa coisa meio caótica e desviada. O que você pretende com o seu trabalho? Eu trabalho muito como uma forma de extravasar e refletir sobre o que sinto e penso, então nesse sentido tem uma função bem pessoal. Mas também desejo comunicar às pessoas, fazê-las sentir e pensar também. E eu ficaria muito feliz se meu trabalho contribuísse para a existência de representações mais diversas e críticas. Atualmente você possui quase 7.500 curtidas em sua página “Desalineada”, a Internet proporciona maior acesso ao seu trabalho do que em relação aos zines impressos. O que você considera positivo e negativo na publicação de zines; ilustrações; quadrinhos na rede? Se não fosse a rede, eu sequer teria começado a fazer quadrin-

hos. Foi lá que eu tive acesso ao trabalho de pessoas iniciantes como eu e foi por lá que comprei meu primeiro fanzine, do Ryot, que mora na minha cidade. Então acredito que essa explosão do acesso é muito interessante. Como dificuldade, talvez possamos pensar a efemeridade desse acesso – likes nem sempre medem o impacto que seu trabalho teve sobre as pessoas. Mas muitas pessoas continuam gostando do impresso, e posso vender ou trocar zines com muito mais delas por causa da internet. Acho que não se trata mais de comparar as formas de circulação, mas de nos adaptarmos à nossa situação. O feminismo te levou aos quadrinhos ou foi o contrário? Como aconteceu? Os quadrinhos vieram antes de tudo, porque vieram muito cedo na minha vida. Quando fui crescendo um pouco, passei a enfrentar de forma bem dolorosa certas convenções de gênero. A partir daí a minha vivência feminista, em um sentido de contestar tais convenções, e a minha relação com os quadrinhos se misturavam. Quando era adolescente, eu lia principalmente mangás shonen, de ação voltados para meninos. Não entendia porque aquele tipo de histórias tinha que pertencer ao público masculino. Eu me identificava também com os protagonistas masculinos, por que não? Me sentia tão Kenshin quanto qualquer um. Com o tempo,

Acervo pessoal de Aline Lemos

rinhos, também gosto muito de pesquisar artistas e ilustradores de outras épocas, como o J. Carlos. E, é claro, o feminismo é uma influência forte.

porém, fui percebendo duas coisas: primeiro, que aquele heroísmo e protagonismo que eu admirava e queria para mim estava presente na esmagadora maioria das vezes nos personagens homens, não nas mulheres. Gostava muito das personagens guerreiras e fortes de um jeito supostamente masculino, mas ficava muito chateada quando elas eram colocadas em segundo plano ou nem existiam. Eu tinha certeza de que as mulheres podiam fazer tudo que os homens podiam, e que eu podia também. A segunda coisa que percebi foi mais difícil e veio só depois de conhecer o feminismo como um movimento. Foi que as personagens mulheres que não sabiam usar uma espada e que eram sensíveis ou meigas só eram tratadas nesses quadrinhos como subalternas, fracas e até mesmo patéticas porque a sociedade despreza essas características consideradas femininas. Eu já sabia que não precisava ser sensível e meiga, mas foi importante e difícil perceber que eu podia se quisesse, e não tinha nada de errado nisso. “Sailor Moon” e “Sakura Card Captors” também

Transcendente, página 27


Transcendente, página 28 (Des)enquadradx estiveram lá pra me mostrar que a feminilidade podia ser heroica também. Como você nota a retratação das minorias no quadrinho mainstream? Ainda é muito problemática, mas vejo mudanças positivas. O esforço em alguns comics norte-americanos, por exemplo, para colocar em protagonismo mulheres, personagens não brancos e LGBT*, é um dado importante. Por mais que haja limites para a representatividade em empresas como essas, esse esforço não deixa de ser uma resposta aos movimentos de reivindicação por essa representação – e é preciso valorizar esses movimentos. É um assunto que está sendo discutido, incomodando e gerando reações, e acredito que podemos nos aproveitar positivamente dele. Eu gostaria muito que crescesse a produção de quadrinhos por essas pessoas, também.

O fato de você ser mulher interfere de alguma forma no seu trabalho? Há algumas artistas que marcam o gênero em suas ilustrações, e outras que não gostam de serem determinadas por ele. Como é

para você? Isso vai da experiência de cada uma, mas tem momentos em que eu acho importante demarcar o gênero, quando é preciso afirmar um lugar de fala. Seja para dizer de uma experiência, conquistar um espaço ou visibilidade. Quando falo como mulher, isso não deveria me limitar. O fato de ser mulher interfere em meu trabalho, pois eu vivo minhas experiências como mulher. Mas também interferem ser branca, cissexual, mineira, canhota. Quais são seus ideais em relação à questão de gênero? Acredito que as identidades de gênero e as orientações sexuais, que entendo como coisas diferentes, devem ser autodetermi-

Ilustração Aline Lemos

E no quadrinho independente? O quadrinho independente tem mais espaço para contestação, mas só por ser independente não quer dizer que vá fugir das representações estereotipadas de minorias, que tem esse interesse. Muitos quadrinhos independentes nem sequer contam com minorias representadas. Acredito que para fugir disso é preciso um esforço ativo, principalmente se não se faz parte dessa minoria. Afinal, estamos em uma sociedade desigual,

racista, machista, fóbica e muitas vezes essas coisas passam despercebidas. Uma coisa que me incomoda, por exemplo, é quando pensam que, simplesmente porque sexo é um tabu na nossa sociedade, basta falar de sexo para ser revolucionário. Não adianta falar de escatologia, drogas, palavrão e sexo casual se só se representam homens brancos cissexuais realizando suas fantasias com mulheres que são colocadas apenas como objeto de seus desejos.


Você pensa que o Brasil está pronto para respeitar e discutir a identidade de gênero? Certamente a identidade de gênero não é respeitada e discutida suficientemente no Brasil, mas não acho que se trate exatamente de “estar pronto”. As pessoas LGBT* que têm a sua existência negada, que são discriminadas, rejeitadas, agre-

didas e até mesmo assassinadas não podem esperar a bancada evangélica “estar pronta” para discutir seus direitos. É justamente por causa da disseminação do preconceito e fundamentalismo, do alcance que obtiveram no poder, que temos que respeitar e discutir agora. E fazer isso internamente também, porque a opressão internalizada é muito sofrida.

Ilustração Aline Lemos

nadas e vividas com liberdade. Em subverter as relações de poder que conferem privilégio a homens, cissexuais, heterossexuais, brancos e ricos. E que falando assim parece jargão, mas que essas relações estão todas interligadas e permeiam os nossos cotidianos, e que somos capazes de transformá-las.

Transcendente, página 29


Transcendente, página 30 (Des)enquadradx Zine XXX Em outubro de 2013, Beatriz Lopes, única integrante mulher do Coletivo Libre de quadrinhos, teve a ideia de produzir cinco fanzines com 24 páginas cada a partir da plataforma de financiamento colaborativo Catarse. O diferencial desse projeto é sua equipe, constituída apenas por mulheres cis ou trans com o objetivo de dar maior visibilidade às quadrinistas e às novas artistas que ainda não tinham espaço para divulgar seus trabalhos. A campanha se iniciou em 15 de outubro e terminou em 14 de novembro acima da meta de arrecadação de 11 mil reais. Em um mês o Zine XXX arrecadou R$ 20.649,00 com o apoio de 489 pessoas sob o mote “zines com qualidade e diversidade”.

Para participar do Zine XXX

O Zine XXX não ficou apenas no papel. Hoje existe um grupo no Facebook com mais de 2.500 membros, mulheres, responsável pela divulgação de eventos relacionados aos quadrinhos; oportunidades de trabalho na área das artes visuais; dicas e tutoriais de desenho e claro, ilustrações de “minas iradas, fazendo desenhos irados”.

Aline Lemos, a Desalineada, participou do projeto e afirma que a partir do grupo no Facebook ganhou confiança para publicar seus quadrinhos e vive em aprendizado constante. “Fico muito feliz porque a relação entre mulheres e o mundo dos quadrinhos é um assunto que está ganhando bastante repercussão. Iniciativas como o Zine XXX e outros projetos como a Revista Inverna e o Lady’s Comics são importantes não só porque, digamos, suprem uma lacuna no mercado. Não se trata simplesmente de criar ou seguir um nicho mercadológico, mas de possibilitar espaços para incentivar e fortalecer autoras mulheres”, afirma.

Ilustração Betatriz Lopes

O fato de haver um baixo número de publicações assinadas por mulheres foi uma das motivações de Beatriz para desenvolver o Zine XXX. O “x” repetido três vezes é uma alusão a uma mutação genética que ocorre em mulheres também conhecidas como “superfêmeas” e também uma apropriação do termo usado nas produções pornográficas que objetificam a mulher. Para que as mulheres, cis e trans, tenham visibilidade é necessário estimular a produção e dar espaço para que seus quadrinhos cheguem às pessoas, juntamente com o aumento da produção vem novxs leitores e artistas.

bastava enviar o material até cinco de novembro por e-mail para ser avaliado por Beatriz e outros quadrinistas, homens e mulheres. Nomes como Morgana Mastrianni; Sirlanney; Mazô, Aline Lemos; Lovelove6 e a própria Beatriz Lopes fizeram parte do projeto ao lado de aproximadamente 70 mulheres que tiveram espaço para divulgar sua arte.


Sapatoons Queerdrinhos Com Nathália Pereira “Sapatoons Queerdrinhos” é um projeto colaborativo e autônomo, ou seja, não possui donos. Linn e Caro o iniciaram e agora recebem contribuições de outrxs amigxs, de pessoas que conheceram em encontros feministas e que participaram das oficinas de quadrinhos para lésbicas que ambos oferecem. A segunda edição do fanzine, de circulação restrita, foi mais colaborativa e contou com contribuições dxs amigxs dos criadores do Sapatoons, Sabrina Lopes, Michel (Coletivo Mujeres al borde), Joyce (Lesbianarte) e de outras pessoas que compõem o ciclo afetivo -político de Linn e Caro. Como surgiu o nome “Sapatoons Queerdrinhos”? Inventamos o nome Sapatoons Queerdrinhos simplesmente porque adoramos trocadilhos. Sapatão + cartoons = sapatoons e queer + quadrinhos = queerdrinhos. Há certo empoderamento na apropriação de termos como sapatão e queer, comumente usados pejorativamente? Acho que esse tipo de apropriação sempre foi uma estratégia das comunidades marginais para resignificar os termos originalmente utilizados para deslegitimá-las. Hoje em muitos fanzines tenho observado uma identificação das dissidências com termos pejorativos e também com estéticas abjetas

e marginais (como exemplo poderia citar o fanzine MONSTRANS: experimentando horrormônios). Ao mesmo tempo hoje acho que cada vez mais pessoas se identificam como “sapatão”, inclusive muitas pessoas que não são lésbicas: acredito que o termo “lésbica política” foi o que introduziu essa espécie de transposição fetichizada da experiência lésbica a corpos que não possuem trajetórias e subjetivações que passam pela lesbiandade (no Sapatoons #2 fiz um quadrinho sobre esse tema). Esse tem sido um veículo para mulheres heterossexuais ocuparem lugares de fala privilegiados e terem autorizadas as suas palavras em meios predominantemente lésbicos, privando-se, entretanto, de analises criticas acerca das posições privilegiadas que ocupam nos sistemas imperantes da instituição heterossexual. Na minha época a gente costumava assumir os nossos privilégios e aprender através desse processo. É interessante que “lésbica política” é um canal de transposição de experiência que só foi instaurado para a sexualidade: não ouvimos falar, por exemplo, de “negras políticas” porque as premissas racistas dessa colocação são rapidamente identificadas. Então atualmente quando vou em algum show lesbofeminista e vejo muitas mulheres heterossexuais se identificando como sapatões (e gritando “eu sou sapatão”) me sinto desidentificada de uma categoria que eu ajudei a construir e que me

acolheu e amparou por muitos anos. Até hoje temos políticas ativistas que apagam as diferenças com os slogans “todas somos trans” ou “todas somos guarani kaiowá” sem se dar conta dos efeitos perversos detrás desse conceito: metaforicamente falando é como se a identidade “sapatão” fosse um trem que transportasse os sujeitos que precisam dela para transitar pelo mundo, entretanto, em determinado momento muitas outras subjetividades entram no trem e empurram para fora todxs xs passageirxs que o construíram para poder sobreviver, eu ilustraria assim o processo contemporâneo de desidentificação com o termo “sapatão” à raiz das ações de lésbicas políticas. O que você pretende com o seu trabalho? O Sapatoons para mim não é um trabalho. Como lésbica separatista anarquista entendo o trabalho como algo exaurido de prazer e criatividade, então é difícil situar um projeto afetivo como o Sapatoons nessa área capitalista. Na verdade é um projeto totalmente despretensioso que surgiu quando eu e Caro nos encontramos em Curitiba para passar um tempo juntxs e formar uma banda, mas em vez disso acabamos fazendo piadas e brincadeiras e eventualmente começamos a ilustrar as piadas. Organizamos tudo, fizemos fotocopias e lançamos o fanzine para trocar dentro do nosso grupo micropolitico de afinidades. Na verdade com-

Transcendente, página 31


Transcendente, página 32 (Des)enquadradx ecei esse projeto quando senti a necessidade de me afastar de coletivos políticos feministas e comecei a dar mais importância para as amizades e as trocas afetivas dentro da comunidade dissidente – faço essa diferenciação baseada nas minhas vivências com coletivas feministas de São Paulo. Você vê a proposta pós-identitária e não normativa da Teoria Queer como um academicismo, ou seria uma forma possível de burlar as fobias atuais? No meio que eu freqüentava a teoria queer chegou em 2010 como um recurso dos anarcomachos e das mulheres anarquistas heterossexuais para aplanarem as questões de gênero e de sexualidade. Um quadrinho que comunica sobre esse assunto é o “falcatruas de gênero” presente na primeira edição. Acredito que desde então a teoria queer tomou várias formas e adentrou muitos campos de

produção de conhecimento no Brasil, e é difícil designar um único uso ou significado ao que chamamos de “teoria queer”. Então só posso falar das minhas escolhas terminológicas em relação à forma como elas se constituíram fora dos livros (onde elas são muito interessantes) e dentro de coletivos e manadas afetivas, onde elas se complexificam bastante. Acho que a estratégia identitária é muito eficiente, senão o único recurso em alguns casos (para o sistema judiciário, para a criação de leis por exemplo criminalizando a homofobia, etc) mas que tem como efeito truculento a reificação da categoria que evoca. No caso do projeto sapatoons tentamos corromper o olhar e as estruturas heterocêntricas propondo representações não estereotípicas de lésbicas, trans e outras subjetividades dissidentes, ao mesmo tempo trabalhamos com os limites que a figuração humana traz.

Sapatoons Queerdrinhos

“Sapatoons Queerdrinhos #1”

Os “Sapatoons Queerdrinhos #1” se apresentam como quadrinhos feministas. Há uma convergência entre feminismo e teoria queer a partir da relativização do gênero? Eu acho que a maioria das políticas feministas brasileiras são bastante identitárias e tendem a preservar a categoria “mulher”, ao passo que a teoria queer promove a substituição das políticas identitárias pela estratégia da coalisão. Não sei muito bem como aplicar isso aos quadrinhos, temos representações que são identitárias (especialmente nas historias de minha autoria trabalho com autorrepresentação) e outras que são mais mosntruosas, abjetas ou dissidentes. Como foi a recepção dos “Sapatoons Queerdrinhos”? O compartilhamento livre de copyright ajudou efetivamente na sua difusão? A recepção do projeto foi muito satisfatória, fizemos lançamentos em São Paulo, Belo Horizonte, Sorocaba, São José dos Campos, Curitiba, Florianópolis, Brasília, Rio de Janeiro e até Valparaíso no Chile. Sempre que fazemos um lançamento propomos uma roda de conversa em primeira pessoa sobre lesbiandade e masculinidades anti-normativas. De forma geral esse projeto ajudou a expandir a minha manada afetivo política e tem o efeito de formação de comunidade, principalmente porque dividimos histórias pessoais, o que requer muita confi-


Sapatoons Queerdrinhos

ança e sensação de segurança. O copyleft do primeiro fanzine deve ter facilitado a difusão do projeto, mas todo o feedback que recebo está de alguma forma conectado com a rede de amigxs que possuo. De todas as maneiras difundir amplamente o projeto ou populariza-lo não é a nossa prioridade, caso contrario buscaríamos outros meios e suportes (como a internet ou editoras): como todo o fanzine, a estratégia da circulação é condicionada pelo entorno político-afetivo e escolhemos dialogar dentro de uma comunidade limitada para ajudar a construí-la seguindo uma lógica separatista. Como você nota a retratação das minorias no quadrinho mainstream? E no quadrinho independente? Não sei dizer assim de uma forma ampla até porque conheço tão poucos quadrinhos. Achei por exemplo aquele quadrinho que originou o filme “Azul é a

cor mais quente” meio chato, achei as personagens desinteressantes e tristes, nada representativas dos lugares que constituem a minha lesbiandade. Acho que esse e os do Laerte são os mais mainstream que eu consigo pensar, mas de maneira geral não me interessa muito pela cultura mainstream justamente porque tem um potencial reiterador e assimilacionista. Eu gosto de projetos autorias que são autorrepresentativos ou autobiográficos, pois acredito que essas vias desestruturam as engrenagens do estereotipo e do simulacro e ampliam as categorias. Além disso na minha opinião é importante que as subjetividades dissidentes sejam representadas de forma excêntrica (fora do centro e à margem, conforme referenciado por Teresa de Lauretis e Monique Wittig), para além das estruturas e sistemas heterocapitalistas: “a ‘lésbica’ formulada por Wit-

tig não é simplesmente um indivíduo com uma ‘preferência sexual’ pessoal ou um sujeito social com uma prioridade ‘política’, mas um sujeito excêntrico constituído num processo de luta e interpenetração, uma reescrita do ser […] em relação a uma nova compreensão de comunidade, de história, de cultura.” Acredito que as representações que vislumbram o mainstream (ou que estão nele inscritas) são aquelas que mais bem se adéquam aos sistemas vigorantes e mais se afastam das brechas e deslizamentos desestabilizantes daquilo que é marginal e dissidente, ou seja, são muitas vezes meras inclusões de lésbicas, gays e trans em narrativas, desejos e motivações heterossexuais. Lesbiandade adentra a representação manistrem contemporânea reduzindo-se a uma preferência sexual e, dessa forma, é totalmente despotencializada.

Transcendente, página 33


Retirado de Manual do Minotauro

Transcendente, página 34

Expoentes Laerte Coutinho Laerte Coutinho nasceu em São Paulo no ano de 1951 e é uma das principais quadrinistas do Brasil. Entrou na Universidade de São Paulo (USP) para cursar a Escola de Comunicação e Artes, por lá iniciou-se em Música e Jornalismo. Porém, não concluiu nenhuma das graduações. Seu primeiro trabalho profissional foi a participação na revista SIBLA com a personagem Leão em 1970. Entre as principais publicações que participou, destacam-se “O Pasquim” e a “Balão”. Laerte foi colaboradora de veículos conhecidos, como os jornais “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”. Algumas de suas personagens mais populares são: Overman, Piratas do Tietê e Muriel. Em 2010, Laerte se auto-percebeu transgênera e passou a se vestir publicamente com roupas e acessórios que, tradicionalmente, só são utilizados no Brasil pelas mulheres. Em 2012 fundou a ABRAT, Associação Brasileira de Transgêneros, or-

ganização que busca auxiliar pessoas transgêneras, seus familiares e amigos. A ABRAT também fornece ações profissionais como a TransEmpregos. Em 2013 a artista foi homenageada no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) sediado em Belo Horizonte. Você chegou a cursar jornalismo, mas largou o curso. Durante o período em que estudou na faculdade de comunicação, como você notava as discussões de gênero, direitos das mulheres, representatividade das minorias? Chegou a participar de algum movimento estudantil? Entrei em 69, fiz música, saí, entrei de novo em 70 e tantos, fiz mais 3 anos de jornalismo e desisti. Naquela época minha preocupação e percepção se dava sobre a orientação sexual. Havia começado minha vida sexual um pouco antes - com homens, o que me enchia de pânico, porque me fazia vislumbrar um destino de estigma e vergonha. Convivi por algum tempo com uma comunidade de estudantes bastante diversa gente gay, lésbica, hippie, anarquistas de vários contornos. Acabei indo para uma turma

mais - vamos dizer - conservadora, do ponto de vista de “costumes”, embora com uma visão transformadora da sociedade. Por algum motivo, essa forma me pareceu acolhedora. Dentro dela - o PCB, Partido Comunista Brasileiro - participei da vida estudantil, em muitas atividades. Quanto às discussões que você menciona, acho que o feminismo era bastante claro já as demandas LGBT* e a discussão sobre drogas eram considerados tópicos secundários, face às urgências da luta por democracia política. É o que me parece, visto com os olhos que tenho hoje. A partir de 2010, você começou a se vestir publicamente com roupas e acessórios que, tradicionalmente, só são utilizados no Brasil pelas mulheres, e um dos casos de repercussão da mídia foi por você ter usado o banheiro feminino e uma cliente de um restaurante se sentir incomodada por isso. O brasileiro está pronto para discutir a identidade de gênero, já que cria uma muralha em situações tão pequenas? Essas muralhas existem pra serem derrubadas, mesmo. Pra


Após se transformar publicamente você mudou algo na sua expressão artística, na forma de pensar os desenhos, no processo de criação? Você se sentiu mais livre? Eu me sinto mais livre, sim

Acervo pessoal de Laerte Coutinho

não sair da história do banheiro, veja a quantidade de movimentos e ações no país todo, buscando o direito de pessoas trans de usarem o espaço que lhes pareça mais adequado. Mesmo sob bombardeio incessante de colunistas de direita, esse direito vem sendo reconhecido em toda parte. Não me sinto bem em análises genéricas, mas vejo o Brasil como uma cultura cheia de contradições e “bi-polaridades”, se posso usar esse termo. Grandes contravenções e transgressões convivendo com estruturas repressivas e cruéis. No Brasil pratica-se alguma forma de transgeneridade desde a colônia, pelo que sei. Claro - “discutir” o tema são outros quinhentos! Mas não acho que as discussões devam ser encetadas só depois que as pessoas estiveram prontas. Ou elas já estão prontas ou nunca estarão.

- mais perto daquilo que provavelmente sou (como saber?). Mais preocupada também. Mudanças não só abrem portas, elas também descortinam novos cenários, às vezes inquietantes. Você compara a luta das travestis de hoje com a luta histórica dos negros americanos por direitos civis. Como você vê o desfecho da luta atual e a situação dos negros? A luta das travestis, transexuais, de todas as pessoas transgênero tem relação com a luta dos negros por direitos civis, assim como tem a ver com as lutas do feminismo através da história. Na defesa do projeto de lei que criminaliza a homotransfobia, inclusive, evoca-se a luta contra o racismo e a necessidade que houve de elaborar leis específicas para este tipo de agressão. Isso não tem desfecho, tem rearranjos. Conflitos exigem acertos, mas não “terminam”, vão mudando. A população negra alcançou o gozo de direitos que antes lhe eram negados, mas isso não quer dizer que tudo virou harmonia e paz. Veja o que rolou em Ferguson, no Missouri.

Os quadrinhos de “Muriel” refletem suas experiências diárias de alguma forma? Como foi seu processo de criação de Hugo/Muriel? Refletem e não refletem. Muriel tem vida própria, também. Tento não fazer dela apenas um boneco para uso de mensagens ativistas. Não é muito fácil pra mim. Você pensa que a sua transgeneridade atrai maior curiosidade do que seu trabalho à primeira vista? Como você costuma lidar com a situação? Às vezes atrai, sim (a transgeneridade mais do que meu trabalho) - e isso não me incomoda. Sinto que há uma inquietação sobre o tema e partilho dela. Também me inquieta, alvoroça,

Retirado de Manual do Minotauro

Transcendente, página 35


Transcendente, página 36 (Des)enquadradx traz perguntas. Por outro lado, entendo que esse meu movimento vem sendo visto à luz da profissional por que sou conhecida há décadas. São coisas que não estão divididas.

que perceber, mesmo, a maioria percebe desde criança. Eu também fui muitíssimo ajudada no meu processo por outras pessoas e experiências.

Quais quadrinhos você destaca como defensores da libertação de gênero? Gosto muito do trabalho da Alison Bechdel, particularmente a série terminada “Dykes to Watch Out For” - que se debruça mais sobre a população lésbica, mas também contempla todo o universo queer americano. Tem o excelente MALU, de Cordeiro de Sá, história baseada na experiência pessoal de Agatha Lima.

Como você vê a problematização sobre gênero no cenário político? É a primeira vez em que vejo serem colocadas as questões de gênero no debate político, seja como necessidade de uma legislação anti-homotransfobia, seja na discussão sobre o projeto de lei João W. Nery, do deputado Jean Wyllys, seja nos direitos da população trans no que se refere a saúde, trabalho, moradia etc. Isso é muito saudável e promissor.

Há algum admirador de seu trabalho que se tornou adepto do crossdressing por causa de você? Não gosto muito da expressão “adepto do crossdressing” porque fecha o entendimento. Faz supor um esporte, um hobby ou coisa assim. Pelo que algumas pessoas me relatam, acho que posso, sim, ter ajudado na auto-percepção da transgeneridade ou na possibilidade de sua vivência pública. Já

O termo queer não tem tradução para a língua portuguesa. Você gostaria de sugerir alguma ou prefere que ele permaneça em inglês? Eu prefiro que as elaborações que fazemos no Brasil sejam fecundas e que a discussão dê bons frutos, em termos de consciência grupal e de conquista de direitos de cidadania plena. Acho que o fato de ser um termo em inglês não tem muita importância. “Greve” tampou-

co era um termo em português. O que não tem tradução, traduzido está. A série de tiras “Pequeno Travesti” terá continuação? Foi inspirada em algum acontecimento? Essa série já aproveitava uma personagem anterior, que eu tinha trabalhado de forma “solta”. Não tenho planos de continuar, aquele é um bom final. É inspirada em inúmeros relatos que me fizeram sobre a percepção do sentimento transgênero durante a infância. Como fundadora da Associação Brasileira de Transgêneros (ABRAT), quais são os projetos para a causa? Pensa na publicação de materiais didáticos informativos sobre a questão da transgeneridade? E em formato de quadrinhos? Sim, pensamos em ações desse tipo - bem como integrar e agitar o debate sobre a transgeneridade e ações como o TransEmprego (www.transempregos. com.br). Em termos de luta por legislação, nosso principal interesse é na aprovação da lei João W. Nery.


Retirado de Manual do Minotauro

Transcendente, pรกgina 37



Carolina Andrade


Transcendente, página 40

Descosturando paradigmas Desde os primeiros registros humanos, os mais diversos relatos e expressões artísticas demarcam a importância da indumentária na história social e cultural da humanidade. A moda transita entre tempos históricos, revelando parâmetros que discursam sobre a construção moral e ética de seu tempo. A palavra moda,remete em suas raízes aos costumes predominantes de determinados grupos sociais. Apesar de não estar necessariamente vinculado ao universo fashion, o termo moda, quando usado no século XXI, é amplamente associado ao vestuário e aos hábitos de consumo contemporâneo. Em contrapartida, feita uma analise abrangente, quando englobamos à sociedade contemporânea o termo e os sujeitosQueer, podemos encontrar em sua recusa de classificar indivíduos em categorias universais, uma forte tentativa de quebrar paradigmas. A evolução no pensamento humano e a tentativa de quebra de tabus sociais implicaram em subdivisões e aprimoramento de diversas áreas.Movimentos de libertação feministas, movimentos em prol da diversidade de gêneros e opções sexuais, e momentos históricos no qual as minorias conseguiram ampliar seu espaço, são alguns dos re-

sponsáveis pela estética encontrada atualmente,tanto nas passarelas quanto nas ruas. A teoria queer e sua natureza abrangente reverberam em diversos campos da arte, influenciando e questionando principalmente a cultura das aparências. Segundo a escritora eteórica social Diana Crane, a moda se caracteriza como um elemento fundamental na construção de identidades, pois organiza, “posições nas estruturas sociais e negociam fronteiras de status (Crane, 2006, p.21)”. O guarda-roupa tem sido por séculos, um divisor de gêneros e classes. Contudo, este cenário tem mudado em alguns segmentos específicos, e a indústria do design de moda atual tem explorado cada vez mais a diversidade e as especificidades sexuais. A abertura do mercado para novos públicos, como por exemplo, os transexuais, os travestis e as Drag Queens,propiciou ao mercado da moda um novo nicho. Porém, o crescimento da difusão da cultura andrógina nas passarelas é o segmento que mais chama atenção atualmente. Diversas grifes encontraram na androginia um modelo de indumentária unissex e padrão, que agrada diferentes tipos de públicos através de sua estética minimalista e clean.

A estudante de Design de Moda Juliana Calambau, acredita que no mercado atual, a moda inclusiva é uma necessidade crescente. Em sua visão, “os clientes estão mais exigentes, e desejam que a moda acompanhe suas demandas específicas (de corpo, tamanho, cor, modelagem e estampa)”.Juliana acrescenta ainda, que com vários tabus de gêneros já quebrados, o mercadounissex ganha destaque nas escolas de moda. Pois, segundo ela,“consegue englobar distinções de gênero, sem massificar, já que cada um imprime seu estilo próprio na maneira com que veste, combina e customiza uma mesma peça”. A roupa em si, é considerada apenas a parte tangível da moda, pois apenas por trás de sua construção é quese consegue imprimir o intangível. São as tendências impalpáveis, e as ideias que antecipam a criação em si, os verdadeiros termômetros sociais que regulam a moda e ditam tendências. A ressignificação da maneira com que vestimos e interpretamos o corpo humano, aos poucos começa a encontrar similaridades com as bases da teoria queer. Com a ampliação das discussões sobre os conceitos de gênero e a maior aceitação do mercado de moda, o sujeito queer que anteriormente era colocado sem questionamento


prévio à margem da sociedade, consegue cada vez mais espaço para questionar sua posição como sujeito social. Rompendo por assim, espaços da identidade, como a teoria se propõe a priori. O movimento de inclusão das diferenças sexuais é um processo que vem acontecendo gradualmente, e possui apoio teórico e prático especialmente no campo das artes. A moda se faz essencial para a construção de um pensamento pós-indenitário, em que o sujeito possa se expressar livremente através da maneira em que se veste.

A androginia na moda A moda inspira e se inspira no múltiplo mundo dos gêneros, prova maior de tal afirmação, foi à apropriação de atributos oriundos da androginia no vestuário contemporâneo. Historicamente, o termo andrógino refere-se à mistura de características físicas e comportamentais femininas e masculinas em um mesmo ser. Dificultando a definição do gênero por sua aparência, o individuo andrógino adquiriu ao longo do tempo especificidades que atraem visualmente atenção para seu vestuário. A primeira manifestação do estilo andrógino na moda apareceu na década de 20 fomentada pela estilista francesa Coco Chanel.Ela propôs as peças uma silhueta enxuta e sem curvas, incorporou socialmente a calça ao vestuário feminino e lançou na alta sociedade o famoso corte de cabelo curto “à la garçonne”, que mais tarde ficou mundialmente conhecido apenas como Chanel. A proposta que claramente sugeria igualdade entre os sexos fez história e foi seguida por grandes grifes tais quais Yves Saint Laurent, Givenchy, Marc Jacobs, Jean Paul Gaultier, Versace e tantas outras que ainda hoje se apropriam de características comuns ao androginismo como o minimalismo, os cortes simples e as cores sóbrias para compor suas coleções. Com o passar do tempo às tendências andróginas das passarelas foram adaptadas para o vestuário cotidiano, e a ascendência de modelos andróginos desfilando para grifes tanto de roupas femininas quanto masculinas demonstra o quão presente e marcante é esta quebra de tabus de gêneros para a sociedade do século XXI.

Divulgação

Andreja Pejic, foto ao lado, modelo transexual e andrógino mundialmente conhecido por desfilar em passarelas de grifes femininas e masculinas.


Transcendente, página 42

Exposição Queer History of Fashion marca a primeira mostra lgbt no mundo A participação da comunidade LGBT na construção estética da moda como conhecemos hoje, é milenar e importantíssima para entendermos concretamente a história do vestuário. Prova maior de tal afirmação, foi à inauguração em setembro de 2013 da primeira grande exposição voltada para a evolução do universo LGBT na moda. Nomeada como Queer Historyof Fashion: From The Closet totheCatwalk, em tradução livre, A História Queer na Moda: Dos armários para as passarelas, a exposição entrou em cartaz no museu FIT (Fashion Instituteof Technology), um dos mais importantes centros de curadoria e pesquisas no ramo da moda mundial. Com um acervo de mais de cem peças, e focando nas contribuições da diversidade de gêneros ao longo dos três últimos séculos, a exposição reuniu cronologicamente temas da cultura homossexual e estilos transgressores que ajudaram a repaginar o vestuário. Os curadores Fred Dennis e ValerieSteele, responsáveis pela mostra, passaram dois anos reunindo pesquisas de estudiosos da teoria queer, assim como peças de famosos estilistas que ajudaram a fortalecer as bases da diversidade de gêneros no universo fashion, como: Jean Paul Gautier, Yves Saint Laurent, Gianni Versace, Alexander McQueen, Balenciaga e Christian Dior.

Com a expectativa de mudar o entendimento da história do vestuário, e a percepção da centralidade da cultura gay na elaboração da moda contemporânea, a exposição usou de artifícios de cunho politico, como camisetas ativistas relacionadas aos direitos homossexuais, referencias a temas como a AIDS, e fortificou a importância da contribuição

de estilistas gays para o mundo da moda. Apesar de seu curto período de exibição, a mostra ficou em exposição em Nova York de setembro de 2013 à janeiro de 2014, o evento fomentou e deu espaço a diversos debates nos veículos de comunicação sobre a importância da valorização da contribuição dos sujeitos queer para o comportamento e as tendências atuais.


Importantes contribuições de grifes para a história queer na moda mundial

Chanel Uma das primeiras manifestações do estilo andrógino na moda apareceu na década de 20 fomentada pela estilista vanguardista francesa Coco Channel, que propôs as peças uma silhueta enxuta e sem curvas, incorporou socialmente a calça ao vestuário feminino e lançou na alta sociedade o famoso corte de cabelo “à lagarçonne”.

Jean Paul Gaultier Um dos mais polêmicos estilistas da história da moda, Jean Paul Gaultier foi o primeiro a trazer abertamente para a passarela modelos transgêneros. Com forte discurso de cunho social, o estilista sempre produziu peças pensando em valorizar movimentos, como a independência da mulher e a valorização da diversidade de gêneros.

Alexandre Herchcovitch Um dos mais fortes nomes da moda brasileira e mundial, Alexandre Herchcovitch sempre se preocupou com a inclusão dos gêneros em suas coleções. Desde seu primeiro desfile, o estilista diferenciou seu casting, colocando travestis, transexuais e andróginos nas passarelas, além de já ter feito diversas coleções e colaborações em prol da igualdade de gêneros.

Transcendente, página 43


A teoria queer enqu


Born this way Patrícia da Cruz

uadrada na música


Transcendente, página 46

“A música é a arma do futuro”. Essa frase, sentenciada pelo multi-instrumentalista nigeriano e pai do afrobeat Fela Kuti, apresenta a música como uma forma de resistência e combate, comunicando transversalmente com os ideais da teoria queer. Se, de uma forma geral, seus militantes querem ser ouvidos, as expressões artísticas se abrem como uma possibilidade totalmente tangível para alcançar tal objetivo. A música, de maneira específica, muitas vezes apresenta essa característica delatora, de expressão e crítica social.

época. Compositores como Chico Buarque, Geraldo Vandré e Sérgio Sampaio se posicionaram contra a ditadura através de canções de sucesso, que subliminarmente criticavam o regime em que viviam. O movimento de contracultura estadounidense também teve seu auge na década de 60, e encontrou na música um forte instrumento de contestação social, que abrangia temas como Direitos Civis, beligerâncias orientais e repressões governamentais. O folk, o rock’n’roll e o blues na maioria das vezes estavam diretamente ligados às críticas sociais, firmadas em músicos como Bob Dylan, Joan Baez, John Lennon e Jimi Hendrix.

Desde os primórdios da repressão ditatorial no Brasil, na década de 60, a música foi amplamente utilizada como ferramenta de repúdio à opressão e ao cerceamento da liberdade de expressão implantados na Na década de 70, tivemos o in-

O grupo de punk rock feminista Pussy Riot ganhou a atenção da mídia em 2012, quando três integrantes da banda foram presas acusadas de vandalismo motivado por intolerância religiosa. As russas realizavam um concerto improvisado e não-autorizado na Catedral de Cristo Salvador de Moscovo, entoando uma oração punk contra o presidente Vladimir Putin, e

Pussy Riot foram condenadas a dois anos de prisão, tendo sido liberadas antes de cumprir a pena em virtude da anistia geral que entrou em vigor na Rússia. As integrantes já chegaram a declarar que “O que temos em comum [com o movimento riotgrrrl] é a imprudência, letras politicamente carregadas, a importância do discurso feminista e uma imagem feminina fora do padrão”.

teresse político do punk rock, que procurava chocar e pregava ideais anarquistas e revolucionários através de suas letras. É nessa vertente que surge, no ínicio dos anos 90, o movimento contestador feminista riotgrrrl, que prega a defesa e reivin-


Há quem acredite até que essa vertente do funk cantado por mulheres, que prega a independência e a libertação sexual, tenha surgido como um ataque direto ao funk tradicional, conhecido por seus fortes elementos machistas e a objetificação da mulher em suas letras. As relações entre a teoria queer e a música

Kathleen Hannah, do Bikini Kill

Linda Rosier

dicação dos direitos feministas. enas alguns dos nomes da O feminismo na música cena musical punk riotgrrrl. Segundo Camargo (2011, p. 155), “a cena do rock de mina surge enquanto oposição ao sexismo presente no rock e no punk (...) a partir de práticas como a elaboração de fanzines e letras de músicas feministas”. Para as adeptas do movimento, a música foi uma importante forma de protesto, já que ela era utilizada para contestar a afirmação de que “mulheres não sabem tocar instrumentos musicais tão bem quanto os homens”. Além disso, os ritmos das bandas de punk inscritas nesse movimento eram pesados e distorcidos, características usualmente consideradas masculinas no meio musical. Bandas integrantes do movimento riotgrrrl trabalham a independência da mulher e o combate ao machismo de maneira crítica. Bikini Kill, Bratmobile, Pussy Riot, Hole e Voodoo Queens são ap-

Saindo da sonoridade abstrata do punk rock oitentista e pulando para a música brasileira atual, encontramos nas funkeiras das periferias do Rio de Janeiro uma espécie de desejo libertador. Muitas vezes alvo de críticas da grande mídia por uma suposta “vulgarização” da mulher, Valesca Popozuda transmite seu recado de maneira clara e mostra a que veio através das letras de suas músicas, que defendem o empoderamento feminino e a libertação sexual. Hits como “Agora Virei P*ta” e “My Pussy é o Poder” repudiam a violência contra a mulher e o machismo em geral. Outras artistas conhecidas nessa área também lutam pela independência da mulher; é o caso das cantoras Anitta e Mc Beyoncé, que emplacaram hits considerados feministas por suas letras que exaltam o poder feminino, o famoso “girl Power”.

O queer, de maneira geral, busca subverter e transgredir as normas impostas pela sociedade no que se refere à sexualidade, mesmo que somente pela aparência. Um exemplo são as drags, que recorrem à desnaturalização dos corpos e à performatização exagerada através das vestimentas e maquiagem. É possível enquadrar alguns artistas do ramo musical dentro da temática da teoria queer, que critica qualquer forma de heternormatividade e exalta a realidade social e cultural das minorias sexuais. Na maioria das vezes, existe uma relação mútua entre os elementos da

Transcendente, página 47


Transcendente, página 48

formático e o real. O que alguns artistas fazem é levar os questionamentos e a defesa dessas minorias para o âmbito musical, através de letras que defendem as singularidades de gênero e visuais que parecem afrontar os preconceitos da sociedade. O cantor inglês David Bowie ganhou ampla notoriedade na década de 70, em parte graças a seu visual andrógino. Com roupas e maquiagens excêntricas, as apresentações do ícone do glam rock chocavam as parcelas mais conservadoras da época. O músico também chegou a declarar sua bissexualidade a uma revista britânica, além de ser foco de um boato que afirma que ele teria tido um caso com Mick Jagger, dos Rolling Stones. Um de seus hits, Rebel Rebel, traz na letra o trecho sugestivo

“You’ve got your mother in a whirl/ She’s not sure if you’re a boy or a girl”, que pode ser traduzido como “Você confunde a sua mãe/ Ela não tem certeza se você é um menino ou uma menina”, que comprova o gosto do músico pela androginia. Todo esse mistério e brincadeira com as identidades de gênero buscava nada menos que instigar e provocar a sociedade, numa tentativa de trazer à tona a questão das minorias sexuais, muito repreendidas e mal vistas à época. Um outro exemplo que enquadra a teoria queer na música pop é Lady Gaga, que para muitos é considerada a rainha das minorias. A cantora de 28 anos possui um exército de fãs que se autointitulam “Little Monsters”, ou “monstrinhos”. Em sua maioria, a trupe é formada por jovens que encontraram nas batidas pop e letras de afirmação social da cantora um consolo ou forma de libertação. Um de seus hinos é a música “Born This Way”, que nega qualquer possibilidade de preconceito

ao declarar “I’m beautiful in my way/ ‘cause God makes no mistakes/ I’m on the right track, baby/ I was Born this way”, que se traduz como “Eu sou bonitx do meu jeito/ porque Deus não comete erros/ Estou no caminho certo/ Eu nasci desse jeito”. Outros trechos motivacionais dizem coisas como “não há nada de errado em amar quem você é” e “um amor diferente não é pecado”. Mais à frente, Lady Gaga canta que não importa sua raça ou orientação sexual, você nasceu desse jeito e não há nada de errado nisso. Também se encaixa perfeitamente no léxico da teoria queer a cantora Conchita Wurst, persona do austríaco Thomas Neuwirth. Vencedora do festival Eurovision 2014, que reúne artistas ícones de cada país da Europa para concorrer com a música do ano, Conchita infelizmente fez mais sucesso pelo fato de ostentar uma barba farta do que por seu talento para a música. Thomas, que usa pronomes femininos enquanto se apresenta como Conchita,


afirma: “dois corações batem em meu peito. Eles são um time trabalhando em sincronia. Embora, nunca tenham se encontrado antes, sentem a falta um do outro constantemente no espelho. A pessoa privada Tom Neuwirth e a figura artística Conchita Wurst respeitam-se do fundo de seus corações. São dois personagens individuais, com suas próprias histórias individuais, mas com uma mensagem essencial pela tolerância e contra a discriminação”. A transgeneridade de Thomas chocou até mesmo portais de notícia de renome, que se referiam à Conchita com expressões denegridoras, como “mulher barbada” e “travesti barbudo”. De qualquer maneira, a intenção da cantora de trazer à tona

um assunto que ainda é tão estigmatizado funcionou, pois ela conseguiu amplo destaque na mídia. Até mesmo seu nome drag remete à dualidade de gênero, já que “conchita” é uma alteração do termo “concha”, que pode significar “vagina” em espanhol, e “wurst” significa “salsichão” em alemão, termo que também é utilizado para se referir ao pênis. Através desses exemplos, é fácil perceber a relação direta que a música pode ter com a defesa de minorias. Com seu caráter de expressão e crítica, grupos que são de alguma forma excluídos pela sociedade encontram uma zona de conforto, onde é possível gritar para o mundo que tudo o que eles querem é pertencer aonde vivem.

Para ouvir • Bikini Kill - Rebel Girl • The Runaways - Cherry Bomb • Lady Gaga - Born This Way • David Bowie - Rebel Rebel • Beyoncé - Run The World (Girls) • Pussy Riot - Virgin Mary • Aretha Franklin - Respect • Beyoncé - Grown Woman • Madonna - Express Yourself

Transcendente, página 49




Transcendente, página 52

Questões relacionadas ao gênero são praticamente sinônimo de polêmica em se tratando de Brasil, um país de ampla maioria cristã. Isso implica em uma população pouco simpática às relações fora dos padrões chamados heteronormativos, baseados nas relações homem x mulher, no casamento e no sexo para procriação. Nos últimos anos, devido à presença cada vez maior do tema, a polêmica parece ter crescido. Tendo em vista que polêmica é sinônimo de audiência, a televisão brasileira vem tirando ótimo proveito disso, em especial por meio do seu principal produto interno e para exportação, a telenovela. No horário das 21h, considerado o mais nobre da televisão, as novelas da Rede Globo tem batido recordes de personagens homoafetivos na trama, com pelos menos um em cada trama. Até a TV Record, que tem como proprietário o bispo e

líder da Igreja Universal do Reino Deus Edir Macedo, já tem personagens gays em suas novelas, mesmo com o fundamentalismo rígido em relação às questões homossexuais apresentado pela Igreja. Mas a pergunta é: de que forma esses personagens são apresentados? A reprodução de gays estereotipados, afeminados, com cabelos de chapinha, roupas cor de rosa, vozes finas e de caprichos femininos reforça um modelo padrão errôneo, que promove

a estigmatização e o preconceito de que todo homossexual é uma “bicha louca”, como eles mesmo preferem chamar estes personagens. Quando as pessoas assistem a esses programas e vêem a caricatura ridícula do homossexual, a imagem pejorativa é reforçada, já que o que é passado na TV mostra que todo homossexual é aquela “criatura afeminada”. Mas afinal, será que esses programas ajudam ou prejudicam a formação de uma identidade sexual ao colocar em público sua homossexualidade? Em um país como este, onde a educação é frágil e com uma série de problemas, e onde uma grande parcela da população aprende tudo com a TV e com o vizinho, que também aprende com a TV, quais os impactos desses programas na mente desta gente?


família”, na qual Clara e Marina (Thainá Muller e Giovanna Antonelli respectivamente) protagonizaram o também considerado “primeiro” beijo lésbico, da emissora global.

transexuais. Ano passado, o Brasil parou para assistir ao que até então, dizia-se ser o primeiro beijo gay em horário nobre global, protagonizado por Niko e Félix (Thiago Fragoso e Matheus Solano respectivamente) na novela “Amor à vida”. Mas revirando o baú da teledramaturgia brasileira, descobre-se que demonstrações homoafetivas começaram a ser

inseridas na telinha há uma década. Na novela “Senhora do Destino” (2004), da Globo, as personagens Jennifer (Bárbara Borges) e Eleonora (Mylla Christie) adotaram uma criança, tiveram cenas juntas na cama e chegaram a dar o famoso “selinho” na trama. Além dessas novelas, temos também “Amor e revolução” da Record, a minissérie global “Doce de mãe” e a última, “Em

Apesar de toda essa evolução, em pleno século XXI, manifestações de afeto ainda são raras e cenas com conteúdo sexual explícito ainda ficam de fora das cenas envolvendo as personagens homossexuais nas telenovelas brasileiras. Os valores religiosos conservadores ainda seriam o principal mo tivo para a ausência de manifestações de afeto e de desejo sexual. Em 2014, a Rede Globo inseriu em duas novelas - Geração Brasil e Império -, personagens transgênero e travesti - Dorothy Benson e Shana Summer respectivamente -, que apesar de fazerem parte do núcleo de humor da trama, tem

Recado da Dorothy “Desde que me entendo por gente, eu me acho linda, elegante, chiquérrima, e essencialmente, mulher. Mas eu nasci pobre, ignorante e menino. Mas o tempo todo, eu não me identificava com aquilo que eu via no espelho. Eu ainda não era eu. Foi um longo caminho para eu chegar até mim. Sobre as pessoas que dizem que ser assim, é errado, é pecado, é contra a natureza, eu acho que Deus nos fez à sua imagem e semelhança. Seres únicos como ele, e diferentes entre nós, como mostram as nossas digitais. Mas acho que em cada um deles, colocou um coração. Sinal de que pra ele, esse era o órgão que verdadeiramente importa. As pessoas devem se guiar pelos seus afetos. Amar o semelhante e também o diferente. Porque na verdade, não existe homem, mulher, gay, lésbica, transgênero. Existe gente.”

Transcendente, página 53


Transcendente, página 54

rendido ao público uma melhor aceitação desse gênero. Sendo assim, podemos dizer que a telenovela vem contribuindo para uma maior discussão e aceitação da homossexualidade na sociedade. Sabe-se, porém, que a intolerância alimentada durante séculos não será dissolvida tão rapidamente. Pelo contrário, assim como o preconceito racial, a negação do amor entre iguais permanecerá internalizada por mais algum tempo.

zer um BBB cearense, mas apenas com trans, travestis e drags “ disse Lena em entrevista ao blog “blogay” da Folha de S. Paulo.

burburinho começou a se formar no Ceará e tomou conta da Internet. Em comentários nos links de textos e vídeos sobre o programa, é perceptível Ela admite que o nordestino é que a maioria das pessoas estão muito homofóbico e preconcei- adorando, torcendo e se divertuoso, para eles, gay é “uma cria- tindo muito com os bordões tura anormal”. Porém, a ideia de utilizados pelas participantes. um reality show LGBT teve uma São dez sexodiversos que parenorme receptividade por parte ticipam do reality e a cada de Ênio Carlos e sua equipe. semana, um é eliminado. Já com o programa no ar, um

O prêmio é a realização de

Contudo, a nova inserção dos mesmos na mídia, serve para mostrar que novos olhares estão sendo construídos. A iwdeia de “anormal, doente e pecador” passa a ceder ou dividir o lugar à de seres humanos com direito à igualdade e respeito como todos os outros. TRANS(em)formação No ano passado, estreou o primeiro reality show feito no país apenas com gays, travestis e drag. E se engana quem acha que é algo que foi criado no “moderninho” eixo Rio-São Paulo. “Glitter: em busca de um sonho” acontece dentro do programa do apresentador Ênio Carlos, na TV Diário, em Fortaleza e também é apresentado pela travesti Lena Oxa. A ideia do reality que é sucesso local e também na internet, surgiu no ano de 2005, quando Oxa percebeu que o mundo das transformistas estava parado em Fortaleza. “Pensei na ideia de fa-

um sonho, tem desde fazer um cruzeiro, reformar a casa, ter um imóvel próprio, mas a grande maioria quer abrir um salão de beleza.

familiares das competidoras, para que o estigma de que gay é sempre rejeitado pelos parentes seja destruído, e para mostrar que apesar de toda a loucura que elas fazem, elas têm uma faO sucesso está tão grande que mília que as apoia e incentivam. o programa terá uma segun- Outro reality com apelo LGBT da temporada, prevista para que estreou no Brasil é o “Acair ao ar no fim de outubro. demia de Drags”, uma versão claramente inspirada no formaUma possível mudança para to do reality show americano a nova temporada é de que ao “RuPaul’s Drag Race”. O programenos um dos quadros do pro- ma é exibido direto na internet grama seja com a presença dos e é basicamente o mesmo pro-


subversão da identidade (2010), publicada originalmente em 1990, ela partilha de certos referenciais foucaultianos e se pergunta se o “sexo” teria uma história ou se é uma estrutura dada, isenta de questionamentos em vista de sua indiscutível materialidade. Butler discorda da ideia de que só poderíamos fazer teoria social sobre o gênero, enquanto o sexo pertenceria ao corpo e à natureza. duto do reality cearense, só que ainda, com menos visibilidade. Mas apesar de toda essa diversão trazida por esses programas, vem juntamente uma questão muito polêmica: Qual é o verdadeiro objetivo da realização desse programa para com a população? Será que tudo gira em torno de um interesse pela audiência, por risadas do publico, em debochar da “situação” das participantes ou realmente essa exposição toda tem um cunho social, de mostrar a realidade desse grupo e dar o “pontapé” inicial para a inclusão deles na sociedade? A princípio, as intenções para com os realitys são as melhores: Inserir, aceitar e quebrar tabus. Inicialmente, está havendo uma melhor inserção, maior aceitação, e consequentemente, tal assunto vem aos poucos, deixando de ser um tabu para a sociedade. Entretanto, não é correto deixar de citar o outro lado de toda essa exposição: a ridicularização das mesmas.

Fato, que, por si só, as participantes de ambos os programas divertem os telespectadores, com seus bordões e trejeitos, mas há na sociedade aquela parcela, ainda que pequena, que acredita que elas estão ali para os fazerem dar risadas, que elas não possuem outros objetivos além de proporcionar o humor. Por isso, ainda é preciso maiores esclarecimentos sobre essas questões. A filósofa estadunidense Judith Butler, tem se tornado uma unanimidade nos estudos e esclarecimentos sobre transexuais e travestis. Em sua obra Problemas de gênero: feminismo e

Butler pretende historicizar o corpo e o sexo, dissolvendo a dicotomia sexo X gênero. Em outras palavras: a criança está na barriga da mãe; se o órgão genital for masculino, é um menino, o qual será condicionado a sentir atração por meninas. Para dar um fim a essa lógica que tende à reprodução, Butler destaca a necessidade de subverter a ordem compulsória, desmontando a obrigatoriedade entre sexo, gênero e desejo. Ela defende que “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado”.

Transcendente, página 55


Gabriella Bernardes

O feminismo e a con


Passeata feminista em Washington, 1970

nvergĂŞncia de ideias


Transcendente, página 58

Os movimentos sociais e principalmente o movimento feminista tiveram grande contribuição para que a desigualdade de gênero pudesse ser questionada, discutida e transformada na sociedade. O feminismo modificou significadamente as perspectivas predominantes em diversas áreas da sociedade ocidental. É nesse contexto que os estudos de gênero e as teorias feministas colaboram com a “Teoria Queer”. Em destaque, Angela Davis, feminista e ativista Black Panther, presa em 1970 Com raízes na Revolução Francesa, o movimento femini- grandioso em suas conquistas. O MOVIMENTO SOCIAL sta, ao longo dos últimos anos, Com destaque nos anos 70, com O feminismo se expressa em vem se configurando como uma nova versão da mulher bra- ações coletivas, individuais, uma das principais manifes- sileira, que vai às ruas em defesa existenciais, na política, na tações sociais de caráter trans- de seus direitos e necessidades, arte, e abrange um grande formador, buscando a garantia que realiza manifestações de número de grupos diverside direitos iguais para homens denúncia contra a desigual- ficados, com metodologias e mulheres, estas que são sub- dade é inegável notar sua im- próprias, mas que compartilmetidas às vontades masculinas portância enquanto movimento ham de um mesmo princípio. e inferiorizadas pela sociedade, social brasileiro, porém essas Como exemplo, citamos os que em sua maioria é patriarcal. conquistas não colocaram fim grupos FEMEN e Marcha No início do século XIX, a luta na grande opressão feminina. das Vadias, que se destacam feminista deu um importante e ilustram bem este cenário. salto. Na Inglaterra as mulheres lutaram por seus direitos, sendo eles um dos mais importantes que acabou se tornando um dos maiores representantes dessa causa: o direito de voCom sede em Kiev, na Ucrânia, do grupo na frase abaixo: tar. Logo depois, a ideologia o Femen é um grupo feminista “Nossa ideologia é o sextremfeminista ganha espaço dende protesto, fundado em 2008 ismo, uma forma de oposição tro de outras esferas da sociepor Anna Hutsol. Após realiza- ao machismo. E a nudez é usada dade, aumentando o número rem protestos de topless, o pela sociedade patriarcal desde grupo se tornou conhecido. A sempre, a mulher nua ou não de adeptas e unindo-se a outorganização luta contra o turis- vende todo tipo de produto. Já ros movimentos, lutando por mo sexual, racismo, homofobia, que somos mulheres, ao invés de uma série de causas, como o sexismo e outras causas sociais. vender produtos, vendemos idracismo contra negros e o preO movimento no Brasil con- eias sociais. Como todo mundo conceito com homossexuais. tava no início de 2013 com gosta de olhar o corpo de uma No Brasil, o feminismo teve alquinze mulheres no ativismo mulher, usamos o nosso corpo gumas características dos move era liderado por Sara Win- para passar uma mensagem esimentos que surgiram na Euter, que define a proposta crita no peito, um protesto.” ropa e nos Estados Unidos e foi

FEMEN


MARCHA

DAS

VADIAS

Após diversos casos de abuso sexual em mulheres na Universidade de Toronto e uma declaração do policial Michael Sanguinetti, dizendo para as mulheres evitarem de se vestir como vadias para não serem vítimas, mulheres foram às ruas do Canadá protestar contra a crença de que as mulheres que são vítimas de estupro são as culpadas pela ação. Por isso, marcham contra o machismo, contando seus próprios casos de estupro e usando roupas consideradas inadequadas e provocantes, como lingerie, saias e salto alto. Logo em seguida, o movimento tomou grande proporção e ocorreu em outros lugares, sendo alguns deles Los Ange-

les, Buenos Aires e Brasil, onde o evento em junho de 2011 foi organizado pela publicitária curitibana Madô Lopez, e pela escritora paraguaia Solange Deré, contando com a presença de trezentas pessoas. Infelizmente, as mulheres ainda são vistas com inferioridade no exercício profissional. A diferença de salários entre homens e mulheres é um exemplo prático deste preconceito, que deixa claro o aspecto cultural preconceituoso do brasileiro. O movimento feminista passa, então, a exercer um fator determinante no processo de busca de obtenção de maiores espaços para as mulheres e o rompimento da tradição que coloca a mulher como o sexo frágil.

Conversando com a feminista Ana Júlia Gomes O que é ser uma feminista e quais foram as influências que a levaram para o feminismo? O feminismo é um movimento criado POR mulheres e PARA mulheres. Sua importância é irrefutável, uma vez que vivemos em uma sociedade patriarcal, em outras palavras em uma sociedade onde o gênero masculino tem dominância e soberanidade sobre o gênero feminino. Isso fica claro quando vemos que as mulheres são a todo momento assediadas nas ruas através de cantadas (quando não é algo pior), sofrem com toda uma ditadura da beleza

Primeira Marcha das Vadias, em Toronto, Canadá

Transcendente, página 59


Transcendente, página 60

que constantemente as dizem que seus corpos estão errados, são as principais vítimas de estupro (dentro do matrimônio, por familiares, por conhecidos e desconhecidos, sofrem estupro corretivo...), muitas vezes sofrem menosprezo dentro de um ambiente de trabalho quando são colocadas como incompetentes perante os homens (isso quando seus salários não são inferiores)... Fora aqueles “conhecimentos” gerais de que “Ah, mulher não dirige bem mesmo”, “Mulher é sentimental demais”, “Tem mulher bonita e mulher inteligente” e tantos outros. Não é a toa que eles existem: eles existem porque a mulher é sempre colocada em um patamar inferior e é aí que o feminismo surge, para dar voz às mulheres quando elas não a tem em nenhum outro lugar. Eu entrei em contato com o feminismo pela primeira vez em 2011, quando conheci uma ami-

ga minha, a Rebeca, que participa da militância lá em São Paulo. Ela que me introduziu aos conceitos básicos e me explicou um pouco sobre o movimento. Quais as correntes do feminismo e qual delas você segue? Apesar de o feminismo ser visto pela maior parte das pessoas que não têm contato com ele como um movimento único, ele é na realidade dividido em várias correntes (como são a maioria dos movimentos sociais). Elas são várias: Feminismo Liberal, Feminismo Queer, Transfeminismo, Feminismo Socialista, Anarcofeminismo, Feminismo Radical, Feminismo Interseccional, Lesbofeminismo, Feminismo Negro... Muitas vezes, apesar de estarem dentro do mesmo movimento – o Movimento Feminista – elas, em sua ideologia, acabam por “bater de frente” uma com a outra por acredi-

tarem em coisas distintas ou formas de militância diferentes. Isso claramente não faz de uma corrente certa e outra errada, há a corrente certa para mim e a corrente certa para você, dependendo da visão de mundo que cada uma criou a partir de uma vivência pessoal. Considero importante a curiosidade de entrar em contato com cada uma delas, aprendendo-as tanto na teoria como na prática e, assim, encontrando àquela com a qual você se identifica mais. Explico por cima os seus funcionamentos: há as teorias de cunho liberal (que não consistem apenas no Feminismo Liberal, apesar do nome no caso ser autoexplicativo) e as de cunho radical. Coloco agora no papel não apenas sobre o feminismo, mas sobre qualquer tipo de ativismo: o liberal em sua teoria foca no individual, ou seja, para ele a unidade social básica é formada por indivíduos. Além disso, a revolução para os liberais é feita através de ideias, ou seja, através da mudança no pensamento das pessoas, uma a uma, individualmente – motivo pelo qual coloca-se uma grande importância na educação. Já o radical vê a unidade social como um conjunto de grupos de pessoas, em outras palavras, um conjunto de classes. Fazendo um paralelo, o Socialismo Científico*, idealizado por Karl Marx, dividia as pessoas em classes, no caso econômicas. Essa foi a primeira vez que o conceito de classe apareceu. Toda e qualquer teoria radical o utiliza para se explicar, o que


qual corrente feminista me identifico. Estou há um tempo em um processo de estudo sobre cada uma delas e, como não existe um “certo” ou “errado” em meio a isso tudo, mas apenas divergências, ainda não me sinto capaz de dizer que pertenço à corrente X ou Y. Minha militância, porém, creio estar muitíssimo voltada ao Lesbofeminismo, uma vez que, como mulher lésbica, ela é àquela que se refere à minha realidade. *É importante ressaltar que o Feminismo Radical nada tem a ver com as teorias marxistas, foi feito apenas um paralelo de comparação para facilitar a compreensão da teoria. inclui, no caso, o próprio Feminismo Radical. Os radicais também analisam a sociedade por sistemas concretos de poder, fazendo da revolução uma quebra desses sistemas (que pode ser colocada em paralelo com a Luta de Classes de Marx). Sendo assim, aplicando isso ao feminismo, vemos teorias surgindo em cima dos conceitos de gênero, sexualidade, opressões e assim por diante de maneiras muito distintas, dependendo de como a corrente feminista trabalha. Devido a isso, talvez, há a ocorrência de conflitos: como uma ideia trabalha exatamente com o oposto da outra, fica difícil encontrar um consenso. Isso não significa que o diálogo seja impossível – na realidade, eu pessoalmente o considero não só importantíssimo como essencial. É difícil para mim dizer com

O que você acha da posição da atriz Emma Watson na ONU Mulheres? Então, eu acho muito bom o apoio de celebridades ao movimento feminista. Normalmente esse apoio vem de maneira bem sutil e de cunho extremamente liberal, mas já é um passo. O grande problema que eu vejo no discurso feito pela Emma Watson é que ela está pegando um movimento de mulheres, que está aí para dar voz as mulheres porque sim precisamos de direitos (coisa que ela colocou no discurso), mas colocando os homens como protagonistas da história toda. O próprio nome da campanha já não faz sentido para um movimento feminista: #HeForShe não é nome de campanha para mulheres. Não precisamos de homens, não dependemos de homens, é esse exatamente o ponto! E ela

o deturpa e o inverte. O discurso da Emma foi totalmente baseado em “iozomi” (“e os homens?”), que é o que os homens costumam dizer a nós mulheres quando começamos a falar dos nossos direitos, quando começamos a falar de nós, e não deles. O problema disso não é só o fato da campanha ter tomado esse rumo, é que muita gente vai ver esse vídeo e entender que o feminismo é um movimento que foi criado para dar direito aos homens, porque pobrezinhos, eles sofrem com o machismo tanto quanto as mulheres. Mas esse não é o ponto, o ponto é acabar com todo e qualquer estereótipo de gênero, que também afetam os homens, mas é impossível dizer que eles sofrem com o machismo tanto quanto as mulheres, é uma falácia. Estatisticamente e facilmente analisável no dia-a-dia esse é um fato completamente errôneo. É importante sim a consciência de homens e o apoio deles ao movimento. Na verdade, é essencial. Mas esse movimento NÃO é deles, é nosso, de nós, mulheres, que nada mais temos que seja só nosso, enquanto eles esbanjam abundância. Precisamos do apoio, mas a luta é nossa e a voz é nossa. Ela colocou pautas importantes, como o direito da mulher sobre o próprio corpo, a igualdade salarial de homens e mulheres. a equalidade entre homens e mulheres. A intenção dela é boa e a pauta principal de acabar com a desigualdade de gêneros é extremamente necessária, mas realmente não acho que ela escolheu o melhor viés.

Transcendente, página 61


Nao acaba aqui Fun Home de Alison Bechdel conta em quadrinhos a descorberta de sua sexualidade e a de seu pai, de maneira única o leitor revive com Bechdel suas dúvidas e fases da vida em uma narrativa não-linear.

A música “We Exist” da banda Arcade Fire é interpretada pelo ator Andrew Garfield no vídeo que mostra a história de um jovem na busca por sua indentidade de gênero. Priscilla, a Rainha do Deserto, 1994. As drag queens Anthony (Hugo Weaving) e Adam (Guy Pearce) e a transsexual Bernadette (Terence Stamp) são contratadas para realizar um show em Alice Springs, uma cidade remota localizada no deserto australiano. Elas partem de Sydney a bordo de Priscilla, um ônibus. A partir daí uma jornada de aventuras se inicia.

Livrxs Em 1966 o estilista Yves Saint Laurent, um dos pioneiros da estética minimalista na moda, estreiou a versão pioneira do smoking feminino. Hoje a grife é comandada por Hedi Slimane, profissional que tenta reforçar ainda mais a imagem andrógina da marca.

1) Os Mandarins - Simone de Beauvoir 2) Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade - Judith Butler 3) A Ordem do Discurso - Michel Foucault 4) A Epistemologia do Armário - Eve Sedgwick 5) Um Teto todo Seu - Virginia Woolf

RuPaul , a mais famosa drag queen do mundo, tem empurrado os limites da cultura popular a nível internacional e continua a fazer história com “RuPaul’s Drag Race “, o primeiro reality show com drag queens .



“Nada mudará a sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano, não forem modificados.” Michel Foucault – “A Microfísica do Poder” (1979)


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.