A Dor Que Cala - Relatos de Violência Obstétrica (modificado)

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Ana Maria Cajado

A dor que cala

Relatos de Violência Obstétrica



A dor que cala

Relatos de Violência Obstétrica


Trabalho de Conclusão de Curso 2019.2 Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza - Unifor Centro de Comunicação e Gestão (CCG) Diretora do CCG Profa. Danielle Coimbra Coordenador do Curso de Jornalismo Prof. Wagner Borges Texto Ana Maria Cajado Fotografia Lana Pereira Rayanne Aragão Roberta Martins Orientadora Profa. Dra. Adriana Santiago Projeto gráfico e diagramação Ravelle Gadelha Revisão Profa. Dra. Adriana Santiago Impressão Gráfica da Unifor


Ana Maria Cajado

A dor que cala

Relatos de Violência Obstétrica

Fortaleza 2019



“Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas”. – Audre Lorde (1981)


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Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . 9 "Na hora de fazer, não chorou" . . . . .

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"É um vazio que nunca se preenche" . . . 44 "Achava que nunca ia ver uma mulher parir sorrindo" . . . . . . . . . . . . . . . 68

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Apresentação

E

ste livro-reportagem se apresenta em um processo minucioso, detalhado e cuidadoso no estudo do tema Violência Obstétrica. O produto foi elaborado levando em consideração, especialmente, a fala de quem viveu uma experiência traumática na ambiência hospitalar durante o pré-natal, parto e pós-parto. A produção iniciou após uma inquietação pessoal e profissional ao saber da existência deste tipo de violência. Guiado pelo instinto jornalístico, de querer que as vozes dessas mulheres, mães, ganhassem o mundo, o trabalho visa a conscientização de profissionais da área da saúde, e se direciona para este público e também para mulheres a partir de 18 anos, especialmente as gestantes. A violência obstétrica ganhou os olhos da população há pouco tempo, diria que há menos de dois anos, devido à luta feminina para ganhar espaço na sociedade e quebrar tabus estabelecidos há séculos. Esta luta tem sido fortalecida diariamente com a disseminação da informação – uma mulher informada, torna-se empoderada. Descobre que pode romper com o sistema. Foi com essa missão, e acreditando na informação como instrumento, que esse livro foi produzido. Para empoderar mulheres e mostrar que o sofrimento vivido em uma sala de parto, não deveria ser prática. Para isso, o livro traz relatos de seis mulheres que sofreram violências físicas e psicológicas no atendimento médico durante a gestação, parto e pós-parto. Laura, Lizandra, Sheridan, Mariana* (nome fictício), Nayane e Manuela permitiram o olhar sobre a história de quem viveu a violência obstétrica. Ao visitar e estimular a discussão acerca do tema com uma narrativa muitas vezes mais próxima ao jornalismo literário, a produção também tem como propósito aprofundar e fomentar pesquisas que se relacionem com a violência obstétrica, tema que continua sendo um desafio para o sistema de saúde. 9




"Na hora de fazer, não chorou".

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pontos abaixo da vagina marcam a lembrança de um parto muito esperado, mas nada humanizado. Laura Araújo, estudante de Direito, tinha apenas 17 anos quando internou-se na Maternidade Menino Jesus, em Fortaleza, e sofreu violência obstétrica, fenômeno silenciado há muitos anos dentro das maternidades públicas e privadas. O relógio marcava 13h30 naquela tarde quente de 28 de julho de 2009. Dezessete anos de vida da Laura, 41 semanas de gestação da Marjorye, que parecia estar atrasada para o próprio nascimento. Pelo menos foi o que diagnosticou a obstetra da gestante. Com calma, arrumou a malinha e foi para a maternidade na companhia da tia, mesmo sem qualquer sinal de contração. Quando chegou ao hospital, logo recebeu o aviso, como uma


dura sentença: a tia deveria ir para casa. Laura, ainda que menor de idade, ficaria sozinha, com a roupa do corpo e a carteira de identidade. Sem saber, a adolescente já estava sendo violentada. Desde 2005, a Lei Federal nº 11.108 estabelece que os serviços de saúde do SUS – da rede própria ou conveniada – são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante de sua escolha durante o trabalho de parto e pós-parto. Dali em diante, foram 26h sem água e comida; bolsa rompida propositalmente pelo médico que introduziu um instrumento na vagina de Laura e duas aplicações de soro de ocitocina. Comumente chamada de ‘injeção de força’, a ocitocina sintética imita o hor-

SAIBA MAIS LEI N° 11.108, DE 7 DE ABRIL DE 2005. Mensagem de Veto: Altera a Lei n° 8080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.

"CAPÍTULO VII DO SUBSISTEMA DE ACOMPANHAMENTO DURANTE O TRABALHO DE PARTO, PARTO E PÓS-PARTO IMEDIATO Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Art. 1° O Título II "Do Sistema Único de Saúde" da Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo VII "Do Subsistema de Acompanhamento durante o trabalho de parto, parto e pós- parto imediato", e dos arts. 19-J e 19-L:

Capítulo 1

O VICE–PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício do cargo de PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

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permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. 1° O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente. 2° As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder Executivo. Art. 19-L. (VETADO)". Art. 2° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 7 de abril de 2005; 184° da Independência e 117° da República. JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto Humberto Sérgio Costa Lima.

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Fonte: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11108.htm

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mônio produzido naturalmente pelas mulheres. É a ocitocina que gera as contrações no útero. O uso dela para apressar o parto não é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que publicou em 2018 uma série de recomendações para bom parto e nascimento. “Ele não me avisava nem perguntava nada. Só fazia. Só soube da ‘injeção de força’ porque vi ele (SIC) pedindo que a enfermeira aplicasse ‘de novo’”, conta a mãe da Marjorye. “Foi aí que a tortura começou”, revela Laura, se referindo à segunda aplicação do soro de ocitocina. A dor era insuportável e ela não conseguia ficar quieta. De tudo que aconteceu, a estudante diz lembrar vividamente de chorar de dor na cama enquanto a enfermeira que a acompanhava, dormia. Na menor tentativa de ajuda, Laura recebia ofensas, que só pioravam o psicológico já fragilizado. “Ela olhava pra mim e dizia: ‘não fecha a porta do banheiro, porque se você morrer aí eu não vou me responsabilizar’”. Essa foi só uma das tantas frases


Foto: Rayanne Aragão. Capítulo 1

agressivas disparadas: “na hora de fazer não chorou”; “a sua dor ainda vai piorar muito”, ainda são expressões lembradas por Laura. Às 16h, do dia 29, na sala de parto, o médico pedia força à adolescente – exigência quase impossível para quem estava há 26h sem

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Laura Araújo sofreu violência obstétrica na rede pública de saúde de Fortaleza.

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Fotos: Rayanne Aragão.

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Laura Araújo e a filha Marjoye.

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comer e sem beber. Foi quando a Manobra de Kristeller – prática em que o profissional pressiona a barriga da parturiente, já abolida pela Organização Mundial de Saúde e pelo Ministério da Saúde – é executada. “Quando a dor vier, você faz força, ele dizia. Mas não saía de jeito nenhum. Foi quando a enfermeira subiu em cima de mim. Ela ficou em cima de mim, empurrou minha barriga, e a outra enfermeira ficou me segurando”. Marjorye nasce, mas não deu tempo de vê-la: logo foi levada pela enfermeira, sem nem mesmo ser tocada pela mãe, ainda que a recomendação da OMS seja entregar o bebê para a mãe logo ao nascer, se ambos tiverem condições.


Capítulo 1 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Laura só conseguiu ver uma linha que fluía na mão do obstetra, para cima e para baixo. “O senhor me cortou?”, “Só um pouquinho. Está moça de novo”. O corte, que resultou em 18 pontos, chama-se episiotomia, e é feito para evitar o rasgo da vagina e do ânus durante a passagem do bebê. Prática frequente no Brasil, 53,5% das mulheres brasileiras com partos naturais passam pela episiotomia, de acordo com a pesquisa realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública – Fiocruz, em 2014, ainda que a OMS recomende que não seja prática rotineira. Isso porque não há evidências científicas de que a episiotomia seja necessária; e sendo feita, a paciente deve estar ciente e autorizar. Laura, com apenas 17 anos, não tinha força para nada. Achava que tudo o que estava acontecendo era normal. Do pós-parto, só lembra de ser colocada em uma cadeira de rodas e observar o sangue escorrer pelo chão. Desmaiou e só acordou no dia seguinte procurando pela filha. Marjorye chegou e Laura não sabia amamentar. “Bota os peito pra fora e pronto, mulher”, disse a mesma enfermeira que executou a Manobra de Kristeller.

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Quando saiu do hospital, Laura ainda ouviu do médico: “ tchau, até o próximo ano”. Quando chegou em casa, ficou de cócoras e contou: 18 pontos. “Era até o meio do meu bumbum. E eu sangrava muito, muito mesmo. E, por conta dos pontos,não conseguia usar absorvente, machucava. Ficou inflamado por meses”, conta.

Quando a dor vier, você faz força, ele dizia Mas não saía de jeito nenhum Foi quando a enfermeira subiu em cima de mim. Ela ficou em cima de mim, empurrou minha barriga, e a outra enfermeira ficou me segurando”

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Laura Araújo, estudante de Direito

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Dez anos se passaram e Laura não pensa em ter filhos e confessa: “60% por medo de passar por tudo isso de novo”. Tampouco consegue ter uma relação sexual prazerosa, motivos que atribui à episiotomia. Nunca conseguiu falar ao ginecologista o que se passou: “Acho que ele vai rir de mim. Dizer que é normal”. Apesar de sentir vergonha e constrangimento pelo que viveu, até três anos atrás Laura acreditava que tudo o que tinha vivido era normal. Só descobriu que foi vítima de violência obstétrica quando viu relatos diversos de mulheres em um grupo no Facebook, onde declaram terem vivido as mesmas coisas que ela.


S

Capítulo 1 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

ão poucas as pesquisas significativas que comprovam e expõem a situação vivenciada por centenas de mulheres diariamente, como a Laura. A maior delas, foi feita há cinco anos, e revelou a urgência em reformar o modelo de atenção ao parto e ao nascimento no País. A pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”, divulgada em 2014, provou que Laura não está sozinha. Realizada entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012, a pesquisa contemplou 266 maternidades públicas, privadas e mistas (particulares conveniadas ao Sistema Único de Saúde – SUS) de 191 municípios. No total, 23.894 mulheres foram entrevistadas. O objetivo da pesquisa é melhorar a qualidade da atenção obstétrica e neonatal no Brasil. Com o estudo, foi constatado que, mesmo com a Lei do Acompanhante (nº 11108/2005), menos de 20% das mulheres foram beneficiadas com a presença de alguém escolhido por elas durante toda a internação. Além disso, 43,1% das parturientes tiveram parto vaginal com intervenção médica, como a Manobra de Kristeller (36,1%) e a episiotomia (53,5%). O contato pele a pele entre a mãe e o bebê logo após o nascimento, prática recomendada pela OMS, só aconteceu em 26% dos casos totais. Outra pesquisa considerada um dos marcos de exposição da violência sofrida pelas mulheres no ambiente hospitalar foi feita pela Fundação Perseu Abramo. Divulgada há quase uma década, em 2010, a pesquisa “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado” entrevistou 2.365 mulheres e 1.181 homens, distribuídos em 25 estados das cinco macrorregiões do Brasil. Do total, 4% das entrevistadas são do Ceará. Uma a cada quatro mulheres sofre violência obstétrica no Brasil, conforme a pesquisa da Fundação Perseu Abramo. Do total de mulheres que já tiveram filhos, 25% delas foi violentada de alguma forma no atendimento ao parto. Destas, 27% estavam sendo atendidas na rede pública de saúde. A pesquisa mostra, ainda, que 29% das violentadas não chegaram a cursar o ensino médio e são pardas. Quando se fala em violência por macrorregião brasileira, o Nordeste está em primeiro lugar: 27% das violentadas estão na região. De todas as entrevistadas que tiveram

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SAIBA MAIS

- de 20%

23.892 mulheres entrevistadas

beneficiadas pela Lei do Acompanhante

apenas 26%

tiveram contato pele a pele com o bebê imediatamente após o parto

partos vaginais, sendo

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43,1%

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destes com intervenção médica

,4%s 10outra

11.498

Intervenções médicas

36,1%

manobras de Kristeller

Fonte: Escola Nacional de Saúde Pública – Fiocruz.

53,5%

episiotomias


filhos naturais na rede pública e privada, 23% ouviu algum despropósito durante o parto. Destas, 15% ouviram “não chora não, que ano que vem você está aqui de novo”. Apesar das pesquisas provarem que parir e nascer no Brasil não tem sido, em sua maioria, uma experiência positiva, ainda não há um consenso nacional ou internacional sobre o termo Violência Obstétrica. De acordo com o documento “Violência Obstétrica e Direitos Humanos dos Pacientes”, publicado pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) em 2018, o termo surgiu na América Latina no ano de 2000, junto aos movimentos sociais em defesa do nascimento humanizado.

De acordo com a Presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (Socego) Liduina Rocha, “a violência obstétrica é uma violência sistêmica e institucional. É uma violência contra a mulher quando não se percebe a condição de sujeito dela

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

A definição de violência obstétrica de acordo com a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)

Capítulo 1

Tratamento desrespeitoso e abusivo que as mulheres podem experienciar durante a assistência à gravidez, parto e puerpério, bem como outros elementos de cuidado de má qualidade, como a não aderência às melhores práticas baseadas em evidências científicas”

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SAIBA MAIS

1 em cada 4 mulheres já foi violentada no parto

D

27%

estas, foram atendidas pelo SUS e nunca cursaram o ensino médio.

29%

A região do país com o maior número de casos de violência obstétrica é o

Nordeste, sendo seguida pelo Sul, Sudeste, Norte e Centro-Oeste. Casos de violência obstétrica no Brasil

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Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul

27%

22%

26% 26 %

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22%


23% das mulheres ouviram algum insulto durante o parto vaginal

Fonte: Fundação Perseu Abramo.

instituições de saúde incluem violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Relatos sobre desrespeito e abusos durante o parto em

Capítulo 1

na experiência da gravidez, do parto e do puerpério”, explica. A Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) publicou no site oficial, em 2016, a definição de violência obstétrica como “um construto legal que inclui o tratamento desrespeitoso e abusivo que as mulheres podem experienciar durante a assistência à gravidez, parto e puerpério, bem como outros elementos de cuidado de má qualidade, como a não aderência às melhores práticas baseadas em evidências científicas”. Em 2014, a OMS também admitiu os abusos sofridos pelas mulheres durante o parto. O documento "Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde" revela que, em todo mundo, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde e que tais condutas violam os direitos das mulheres e ameaçam o direito à vida. Nesta declaração, a OMS deixou claro que o tema precisava de mais ação, diálogo, pesquisa e mobilização.

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evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento (OMS, 2014, p. 1).

Os abusos, maus-tratos e a negligência médica durante o parto estão mais propensos a atingirem as adolescentes, mulheres solteiras, mulheres de baixo nível sócio-econômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV, conforme informou a OMS (2014). As violações vão de encontro com as normas dos Direitos Humanos fundamentais delas. Contudo, a Organização também deixa claro que não há consenso sobre como definir esses problemas. Dessa forma, centenas de parturientes, mães, grávidas, continuam a sofrer impactos em sua saúde física e mental porque os órgãos de saúde preconizam algumas medidas a serem respeitadas antes, durante e após o parto, mas não definem a violência nem dizem o que a caracteriza, sem delimitar de forma obrigatória. Apesar das evidências sugerirem que as experiências de desrespeito e maus-tratos das mulheres durante a assistência ao parto são amplamente disseminadas, atualmente não há consenso internacional sobre como esses problemas podem ser cientificamente definidos e medidos. Em consequência, sua prevalência e impacto na saúde, no bem-estar e nas escolhas das mulheres não são conhecidas. Há uma agenda de pesquisa considerável para definir, medir e compreender melhor o desrespeito e abusos das mulheres durante o parto, assim como formas de preven-

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ção e eliminação. (OMS, 2014, p. 2).

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Mas o que leva a equipe médica a não respeitarem as mulheres em um momento tão delicado de suas vidas? Liduina Rocha explica que as pessoas costumam associar o termo violência obstétrica com uma violência institucionalizada por uma classe médica, mas isso está errado. Segundo ela, este é um dos ruídos que circulam na categoria médica, como se a violência fosse necessariamente feita pelo obstetra. Contudo, a V.O se caracteriza como uma violência sistêmica.


“Ela se relaciona, inclusive, com a forma como o hospital é organizado, a forma como os partos historicamente tem sido assistidos. Historicamente, as mulheres ficavam sem acompanhante, não tinham direito à privacidade, ficavam em uma sala coletiva, não

Foto: Rayanne Aragão. Capítulo 1 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

podiam se alimentar, não eram ouvidas neste processo, não tinham suas vontades respeitadas e tudo isso se constitui de forma violenta”, explica. Compartilhando suas experiências pessoais, Liduina

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Rocha conta que durante a sua residência, esses procedimentos eram ditos como boa prática no atendimento, nenhum dos médicos percebia a violência porque foram ensinados dessa maneira. A obstetra argumenta, ainda, que a falta de cuidados e atenção à mulher no atendimento ao parto parte de uma educação secular,

Foto: Roberta Martins.

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Liduina Rocha, presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (Socego).

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com a opressão do patriarcado que a todo instante procura controlar o corpo feminino. “Se tem um sujeito que está sendo controlado pelas políticas federais hoje, é a mulher. O tempo todo as políticas


apontam que nosso lugar é dentro de casa, obedientes. Isso influi na experiência das mulheres no parto”. Não é para menos: historicamente, a mulher sempre esteve em uma posição inferior ao homem. Vista como um ser feito unicamente para procriar, cuidar da casa e dos filhos enquanto

Se tem um sujeito que está sendo controlado pelas políticas federais hoje, é a mulher O tempo todo as políticas apontam que nosso lugar é dentro de casa, obedientes Isso infui na experiência das mulheres no parto”

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

o homem trabalha, a mulher até os tempos atuais ainda é inferiorizada, inclusive com salários menores que homens, conforme afirmou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na pesquisa Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil (2018). Todo o contexto de patriarcado em que a mulher foi colocada, influencia em muitos dos tipos de violência obstétrica que acontecem hoje. Um exemplo é a episiotomia: após o corte, profissionais têm costurado mais do que deviam para deixar o órgão feminino “mais apertado” com o objetivo de proporcionar maior prazer sexual aos seus parceiros, conforme revelou a matéria “Deixei virgenzinha pra você”, publicada em 2018 pelo The Intercept Brasil.

Capítulo 1

Liduina Rocha, obstetra

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Portanto, não há como falar em violência obstétrica sem falar de política, sociedade e políticas públicas. A presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia salienta que a ambiência hospitalar, por vezes, é violenta, inclusive com os profissionais da saúde. “Combater a violência obstétrica significa mudar a cultura e a ambiência da assistência ao parto para todo mundo que está envolvido nela, inclusive nós obstetras, as enfermeiras, as famílias”, reforça. Alguns artigos científicos também atribuem a violência à gestante devido ao próprio sistema precário de saúde, que submete os profissionais a condições desfavoráveis de trabalho, como a falta de recursos, a baixa remuneração e a sobrecarga da demanda assistencial (AGUIAR, 2010). A descontinuidade entre o acompanhamento pré-natal, o parto e o pós-parto, a dificuldade de acesso aos serviços de atenção ao parto, a falta de estrutura para acolher o acompanhante no processo de parturição e a frequente indisponibilidade de medicamentos para o adequado manejo da dor são exemplos de violência institucional estrutural, apontados por profissionais de saúde. (MARRERO; BRÜ-

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GGEMANN, 2018, p. 1224).

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Foi com o objetivo de discutir as necessidades exclusivas das mulheres, adolescentes e crianças que não estavam sendo abordadas na área da saúde que, no início de 2019, um grupo de ginecologistas e obstetras se reuniu em um coletivo denominado Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras. Atualmente com 27 profissionais do Brasil, o grupo acredita que a liberdade sexual e reprodutiva é uma questão de vida e morte para muitas mulheres e adolescentes. A rede é construída por obstetras e ginecologistas mulheres que defendem a descriminalização para o aborto seguro e a garantia na qualidade de serviços reprodutivos, incluindo a qualidade na atenção pré-natal, parto e pós-parto e até mesmo na contracepção. O grupo também reconhece que a atenção à saúde não deve ser discriminatória. "A atenção à saúde deve incluir firmes disposições não discriminatórias para garantir proteção a todas


as mulheres independente de cor, idade, crença, classe social e quaisquer deficiências. Além disso, a atenção à saúde não deve discriminar pessoas com base na sua orientação sexual", diz a apresentação da rede, que se reuniu pela primeira vez em setembro de 2019, durante o congresso SiaParto. Com o intuito de trazer à tona o direito humano de autonomia e autodeterminação do próprio corpo, o trabalho ativo da rede, conforme definido pelas profissionais participantes, é ir de encontro ao sistema de opressão. "O desafio neste 'sistema' é salvar os ideais que evoluíram em nós como feministas, como tratar cada mulher com respeito; não fazer suposições sobre preferência sexual ou gênero; fornecer orientação baseada em evidências, aconselhamento e apoio emocional; e honrar cada mulher como a suprema juíza de seu próprio corpo", revela ainda o documento de apresentação. Para Liduina Rocha, é preciso que a categoria obstétrica reconheça que já foi promotora de violência em algum momento para mudar o modelo de atendimento e avançar. “Eu, certamente, já promovi bastante violência obstétrica. E, com todo desconforto, a gente precisa provocar essa discussão. Mas tem obstetra que detesta o termo e que acha que a gente falar sobre isso é não fazer uma boa defesa profissional”, conta.

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

A declaração de Liduina Rocha é ratificada: Em 2018, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu um parecer elaborado pela Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia, afirmando que “a expressão ‘violência obstétrica’ é uma agressão contra a medicina e especialidade de ginecologia e obstetrícia, contrariando conhecimentos científicos consagrados, reduzindo a segurança e a eficiência de uma boa prática assistencial e ética”. O parecer do CFM diz, ainda, que os médicos entendem que “a autonomia da mulher deve ter limites, principalmente quando existem fatores que possam colocar tanto a mãe quanto a criança em risco”. De modo geral, o parecer reafirma o que foi dito por Liduina Rocha: a violência obstétrica está dentro da violência de gênero, e é ampla, não se aplicando apenas aos obstetras e ginecologistas.

Capítulo 1

A polêmica do termo

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Assim, o CFM solicitou que o termo deveria receber outra designação, para, assim, envolver todas as inadequações – locais de atendimento e personagens envolvidos. Além disso, o Conselho chamou de "demonização progressiva" a exposição a que os obstetras estão sofrendo a partir da expressão violência obstétrica. O parecer afirmou, ainda, que 'violência obstétrica' é um termo pejorativo e que traz riscos de conflitos entre pacientes e médicos. Na verdade, a expressão “violência obstétrica” se posiciona como uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia, contra o conhecimento científico e, por conseguinte, contra a mulher na sociedade, a qual necessita de segurança e qualidade de assistência mé-

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dica. (CFM, 2018, p. 12).

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No ano de 2019, o Ministério da Saúde atendeu ao pedido do CFM. Em maio, a violência obstétrica foi mais observada e percebida pela população. Isso porque o MS emitiu um despacho que pedia para o termo “violência obstétrica” ser abolido. Em nota enviada à imprensa, o Ministério confirmou que o posicionamento foi feito a pedido de entidades médicas. Fato curioso que merece ser destacado é que, ano de 2017, foi publicado no Blog da Saúde, página inserida no site oficial do Ministério da Saúde, a matéria com o título “Você sabe o que é violência obstétrica?”. A reportagem tinha como objetivo esclarecer o que é essa violência e exemplificar como ela acontece. A matéria, que é toda feita com a entrevista da assessora técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Ana Catarine Carneiro, informa, ainda, como a mãe deve proceder após passar por essa violência; destaca a atuação do Ministério na Rede Cegonha; e fala sobre o parto humanizado. Apenas em um parágrafo o termo violência obstétrica foi colocado entre aspas. Contudo, em 2018, o Ministério declarou oficialmente por meio de uma resolução, que a expressão violência obstétrica “tem


SAIBA MAIS PARECER CFM N° 32/2018 INTERESSADO: Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal. ASSUNTO: Violência Obstétrica. RELATOR: Cons. Ademar Carlos Augusto. EMENTA: A expressão "violência obstétrica é uma agressão contra a medicina e especialidade de ginecologia e obstetrícia, contrariando conhecimentos científicos consagrados, reduzindo a segurança e a eficiência de uma boa pratica assistencial e ética. Fonte: Conselho Federal de Medicina.

A definição isolada do termo violência é assim expressa cional de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”. Essa definição associa claramente a intencionalidade com a realização do ato, independentemente do resultado produzido. (Ministério da Saúde, 2019).

Em entrevista à Folha de São Paulo, o vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologistas e Obstetras (Febrasgo), Aguinaldo Lopes da Silva, afirmou que é necessário

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

pela Organização Mundial da Saúde (OMS): “uso inten-

Capítulo 1

conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”. O órgão argumenta que “violência” diz respeito a um ato intencional, não se aplicando à situação, já que nenhum médico tem a intenção de violentar uma paciente.

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Você sabe o que é violência obstétrica? Você sabe o que é violência obstétrica? Pois saiba que até mesmo muitas vítimas desse tipo de abuso também não. Esse tipo de violência pode ser física e/ou psicológica e atinge boa parte das mulheres e bebês em todo o país. Muitas dessas vítimas acabam cando com sequelas . Algumas nem ao menos sobrevivem.

Mas o que pode ser entendido como violência obstétrica?

O

que

deve

ser

feito

para

interromper esses episódios de maus tratos ? O Blog da Saúde conversou sobre o assunto com a Ana Catarine Carneiro, assessora técnica da Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde. Con ra: 1. O que é considerado violência obstétrica? Resposta: A violência obstétrica é aquela que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pósparto, inclusive no atendimento ao abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes /

Ana Maria Cajado

Recorte da matéria "Você sabe o que é violência obstétrica?", publicada no site oficial do Ministério da Saúde.

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reconhecer a existência de problemas no atendimento às gestantes no Brasil. Contudo, segundo ele, a mudança de termo seria para desvincular a violência aos médicos obstetras. Quatro dias após o despacho do MS, o Ministério Público Federal de São Paulo, por meio da procuradora da república Ana Carolina Previtalli, emitiu uma recomendação para que o Ministério da Saúde atuasse contra a violência obstétrica ao invés de abolir o termo. A carta revela que, desde 2014, após um Inquérito Civil sobre o tema, o MPF-SP passou a receber diversas denúncias de


mulheres alegando violência física, verbal e emocional durante o parto, atos cometidos por profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento na rede pública e privada. Que, no Inquérito Civil em referência, há denúncias de mulheres que foram ofendidas verbalmente, ridicularizadas, hostilizadas, negligenciadas e até mesmo criticadas em seus aspectos corporais durante o atendimento obstétrico, em manifesta agressão verbal e emocional durante o atendimento obstétrico. (Ministério Público Federal, 2019, p. 2).

niência de quaisquer termos ou expressões utilizados pela

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Que não incumbe ao Ministério da Saúde julgar a conve-

Capítulo 1

A recomendação expõe várias agressões denunciadas por vítimas de violência obstétrica: mulheres que foram seguradas por enfermeiros contra a sua vontade; submetidas à episiotomia sem consentimento prévio; submetidas à cesarianas desnecessárias contra as suas vontades; examinadas com toques constantes e dolorosos por vários profissionais, prática em desacordo às Boas Práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento, estabelecidas desde 1996 pela Organização Mundial de Saúde. A carta diz, ainda, que a interpretação do Ministério da Saúde ao conceito de “violência”, definido pela OMS, está “flagrantemente distorcido”, conforme o documento, já que para caracterizar como violência, a OMS não exige a intenção deliberada de causar dano, mas o uso intencional da força e do poder. A procuradora reforça, ainda, que o argumento de que o profissional da saúde não tem a intenção de praticar o dolo contra as pacientes, é inconsistente. Para fortalecer seu argumento, a procuradora revela que médicos encaminham parturientes propositalmente aos partos cesariana, submetendo as pacientes a maiores riscos e que, negar o termo violência obstétrica é desconsiderar as centenas de violências já sofridas pelas mulheres. A abolição, segundo o MPF, ignoraria as orientações da OMS sobre o tema, já que o órgão reconheceu a existência de vítimas desta violência.

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sociedade civil, ainda mais pregando a "abolição do uso" do termo "violência obstétrica", pretendendo restringir a liberdade de manifestação, conhecimento e ações positivas da sociedade quanto às práticas efetivamente violentas e danosas que diariamente são impostas às mulheres em atendimentos obstétricas e que ocorrem independentemente da intenção do profissional em: causar dano. (Mi-

Ana Maria Cajado

nistério Público Federal, 2019, p.8).

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Por fim, a recomendação declara que a resolução proferida pelo Ministério da Saúde demonstra sérias violações contra os direitos fundamentais das mulheres e solicita que o Governo Federal realize ações com a finalidade de coibir a violência obstétrica e que se abstenha da intencionalidade de abolir o termo. No dia 7 de junho, exatamente um mês após a série de recomendações feitas pelo MPF, o Ministério da Saúde reconheceu a legitimidade do termo, revelando que as mulheres podem usar “violência obstétrica” para retratar maus tratos, desrespeito e abusos no momento do parto. O ofício tem como objetivo mostrar as políticas de atenção ao parto e nascimento instauradas no Brasil, como a Rede Cegonha, criada em 2011. Parece pouco, mas manter o termo foi um grande ganho, mesmo com evidências de que a violência obstétrica exista, e aconteça diariamente, não há uma notificação sequer no Ceará, segundo a Defensoria Pública do Estado. Pudera, como elas podem buscar ajuda sem saber que sofreram uma violência? De acordo com a defensora supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Ceará, Jeritza Lopes, o grande desafio dos órgãos de Justiça é fazer com que as mulheres procurem ajuda. “As mulheres não sabem que sofreram violência até que alguém diga a elas”, revela Jeritza Lopes. Em 2017, o Nudem realizou uma campanha contra a violência obstétrica em Fortaleza. A ação de maior impacto nas mulheres foi uma série de palestras, que aconteceu nas comunidades do Genibaú, Jangurussu e Pirambu. Cerca de 60 mulheres participaram, no


total. De acordo com Jeritza Lopes, as palestras tinham o objetivo de dizer o que caracteriza a violência e como elas podem buscar ajuda. “Ao fim, perguntávamos: alguma de vocês já passou por isso? E era unânime: todas elas diziam que sim”, ressalta. Entretanto, a campanha durou menos de um ano e, atualmente, não há nenhuma programação fixa que trate o assunto. Também não há, até o momento, um lugar especializado para acolher essa demanda.

SAIBA MAIS OFÍCIO N° 296/2019/COSMU/CGCIVI/ DAPES/ SAPS/ MS Ministério da Saúde Secretaria de Atenção Primária à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Coordenação-Geral de Ciclos da Vida Coordenação de Saúde das Mulheres

Fonte: Ministério da Saúde.

Jeritza Lopes explica que o primeiro passo para uma mulher que quer denunciar é se munir de provas. É preciso a comprovação de que a mulher fez o parto naquele hospital. “O documento de entrada no hospital, certidão de nascimento da criança nas-

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Brasília, 07 de junho de 2019.

Capítulo 1

Nesse sentido, o MS reconhece o direito legítimo das mulheres em usar o termo que melhor represente suas experiências vivenciadas em situações de atenção ao parto e nascimento que configuram maus tratos, desrespeito, abusos e uso de práticas não baseadas em evidências científicas, assim como demonstrado nos estudos científicos e produções acadêmicas que versam sobre o tema.

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Foto: Arquivo pessoal.

Ana Maria Cajado

Jeritza Lopes, defensora supervisora do Nudem da Defensoria Pública do Ceará.

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cido vivo, e a palavra dela”, afirma a defensora. Caso tenha lesão corporal, quanto mais rápido a mulher se dirigir à delegacia para denunciar e fazer o exame de corpo de delito, mais assertivo o resultado deve ser. Com o laudo, o delegado instaura um inquérito policial, que é a peça investigativa da lesão. A vítima vai ser ouvida, o agressor também, e o delegado vai fazer uma conclusão e enviar ao Ministério Público, que vai decidir se abre denúncia ou não. Contudo, o caso


entra para as varas criminais e não para atendimento especializado; logo, não há certeza de que a vítima vai receber o atendimento adequado para o caso. “Quando ela se reconhece vítima, em que momento ela vai procurar ajuda? Elas acham que não vai dar em nada. E em que momento ela vai conseguir largar tudo pra ver isso, quando ela nem sabe que tem direitos?”, questiona Jeritza Lopes, reconhecendo que é preciso facilitar o acesso dessas vítimas aos seus direitos. “Como ela vai se meter na delegacia após um momento desses? Tendo que se acostumar a uma nova rotina?”.

Violência Obstétrica no mundo

Capítulo 1 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Em nível global, a violência obstétrica é tipificada sob Lei na Argentina (Lei 26.485/2009 – Lei de proteção abrangente para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres nas áreas em que desenvolvem suas relações interpessoais) e Venezuela (Lei 38.668/2007 – Lei Orgânica do Direito da Mulher a uma Vida Livre de Violência), sendo este o primeiro país da América Latina a definir um conceito sobre o termo. No Brasil, a única Lei Federal que se aproxima da luta contra a violência obstétrica, se refere ao direito do acompanhante durante a internação para o parto (11.108/2005). Contudo, em pelo menos quatro estados, há leis que criminalizam a violência obstétrica utilizando este termo. Entre eles estão Mato Grosso do Sul (Lei Nº 5217/2018), Santa Catarina (Lei Nº 17.097/2017), Pernambuco (Lei Nº 16499/2018), Minas Gerais (Lei Nº 23.175/2018). As leis são praticamente iguais em todas essas localidades, diferindo poucas palavras. Alguns artigos: • “Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período puerpério; • Para efeitos da presente Lei considerar-se-á ofensa verbal ou física, dentre outras, as seguintes condutas: • I – tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva, não

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Ana Maria Cajado

empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido; • II – fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter medo, vergonha ou dúvidas; • Os hospitais, maternidades, unidades básicas de saúde, consultórios médicos e demais estabelecimentos de saúde especializados no atendimento à saúde da mulher, deverão afixar em local de fácil visualização, cartaz informando sobre violência obstétrica”. Contudo, de acordo com a supervisora do Nudem, nada adianta sancionar uma lei se ela não for amplamente discutida na sociedade. “Pode ser promulgada uma lei de violência obstétrica hoje no Congresso. Se essa lei não for debatida, ela não vai pegar. Isso porque toda mudança de cultura só vem através da educação. E só temos a mudança de educação quando temos conhecimento dos direitos e conseguimos entender porque essa Lei veio. Logo, a legislação precisaria vir acompanhada de muita conversa e de políticas públicas”, ressalta Jeritza.

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Toda mudança de cultura só vem através da educação E só temos a mudança de educação quando temos conhecimento dos direitos e conseguimos entender porque essa Lei veio Logo, a legislação precisaria vir acompanhada de muita conversa e de políticas públicas” Jeritza Lopes, defensora supervisora


Para ela, abolir o termo também não é a solução e adotar uma outra expressão, será apenas amenizar um tema complexo. O certo seria aprofundar essa discussão para que as vítimas consigam efetuar os direitos que elas têm. “Dá a impressão de que não querem reconhecer isso, que estão querendo colocar panos quentes, que é mimimi [expressão informal para designar aquele que reclama sem real motivo]. Faltam políticas públicas, interesse, para enfrentar essa questão que é complexa e precisa do olhar da sociedade como um todo”, conclui.

Foto: Rayanne Aragão. Capítulo 1 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica 39






"É um vazio que nunca se preenche".

“E

u achava que ia dar certo, que eles iam fazer um atendimento que fosse conseguir salvar o meu filho. Mas, a partir do momento em que eles não fizeram um atendimento correto, que não deram a devida importância para o que eu estava sinalizando, eles já anularam a chance de vida do meu filho”. A voz de Lizandra soou como um pedido de socorro. Tristeza, revolta. Ela mesma não consegue identificar. “É uma mistura de sentimentos. É um vazio que nunca se preenche”. 25 de dezembro. Tradicionalmente, aniversário de Cristo. Em 2018, e na vida da Lizandra Queiroz, de 37 anos, engenheira de alimentos, e do Júlio, marido dela; o dia marca o nascimento do segundo filho, Benício. Não foi planejado pelos pais, mas muito desejado,

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principalmente pelo irmão Ângelo, de cinco anos. No dia 25, pela manhã, com apenas seis meses de gestação, Lizandra sentiu cólicas leves e um pequeno sangramento. Seguindo o conselho da obstetra que a acompanhava no pré-natal, se dirigiu para um hospital de grande porte, conhecido em Fortaleza como referência no atendimento obstétrico humanizado. Convencida por sempre ouvir boas referências do hospital, Lizandra resolveu ir – sem nenhuma intenção de ficar. O objetivo era apenas conhecer o local e, caso gostasse do atendimento, se programaria para dar à luz lá. No caminho ao hospital, as cólicas intensificaram e Lizandra sentiu um desconforto, como se estivesse sangrando. Na tria-

gem realizada pelo hospital, a engenheira foi classificada como paciente sem riscos, não necessitando de atendimento de urgência. Até ser atendida pelo médico, uma hora se passou. “Foi quando começou, de fato, todo o terror que eu passei lá dentro”, revela Lizandra Queiroz.

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Lizandra Queiroz sobre a morte de Benício, apenas dois dias após o parto

Capítulo 2

A partir do momento em que eles não fizeram um atendimento correto, que não deram a devida importância para o que eu estava sinalizando, eles já anularam a chance de vida do meu filho"

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Foto: Rayanne Aragão.

Ana Maria Cajado

Lizandra e Júlio Queiroz perderam o filho Benício em decorrência da violência obstétrica.

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Na consulta, o médico não informou nada, sequer fez exame de toque para verificar a dilatação. Pediu que ela fizesse uma ultrassom pélvica – a qual ela esperou mais uma hora para ser feita, já que tinha apenas um médico realizando o procedimento. Dele, ela escutou apenas um “tá tudo bem”. Mas as dores e o sangramento intensificaram e Lizandra já precisava de cadeira de rodas, porque não conseguia andar. Quando subiu para o centro obstétrico, as atendentes disseram que para voltar a ser atendida pelo médico, a paciente deveria esperar sair o resultado do ultrassom


Capítulo 2 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

– mais 40 minutos. “Eu tô sangrando! Tenho seis meses de gestação e eu preciso de atendimento imediato, isso não é normal”, clamava a paciente. As atendentes pediram, então, que Lizandra ficasse na porta do médico e que entrasse quando a paciente anterior saísse. Chorando de dor, no corredor, Lizandra e o marido receberam a atenção de uma obstetra que estava saindo e garantiu que, na volta, os atenderia. Quando entrou na sala, foi direto para a sala de parto. “Quando eu entrei na sala de parto, onde eu seria examinada, em torno de cinco minutos meu filho nasceu. Por questão de minutos, eu não tive meu filho no corredor. Mas faziam 3 horas que eu estava no hospital!”, relembra Lizandra. Benício nasceu prematuro, com seis meses de gestação. Sem aparato nenhum, caiu na maca. No momento em que veio ao mundo, a obstetra dizia para Lizandra: “eu quero te ajudar, mas você precisa me ajudar a te ajudar”. Até hoje, a engenheira não sabe o que ela quis dizer com isso. Mas, ao ver que Benício nasceu, a médica deu um pulo – não estava preparada para segurá-lo. “Se meu filho tinha alguma chance de sobreviver, naquele momento eles acabaram. Foi um atendimento falho, eu esperei muito para ser atendida, tive meu filho sem preparo de nada. Um atendimento totalmente despreparado. Parecia que eu estava no fundo de um quintal!”, desabafa Lizandra. Também não tinha neonatologista. No corre-corre, em tamanho desespero por não estarem preparados para o nascimento do bebê, a médica tentou levá-lo quando percebeu que nem o corte do cordão umbilical tinha feito devido ao susto e ao despreparo para recebê-lo. Lizandra pariu com a roupa do corpo, só trocou após o parto, com a ajuda do marido. “Em nenhum momento teve um trabalho preventivo. Hoje existem procedimentos para retardar o trabalho de parto prematuro. Se não conseguirem evitar, pelo menos adiar. Existem medicamentos que aplicam na mãe para ajudar o amadurecimento do pulmão do bebê. Mas, eles não fizeram nada”, conta. No dia seguinte, Lizandra, com muita vontade de ver o filho, saiu do quarto e foi até a UTI Neonatal, sozinha, já que Júlio, seu

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marido, tinha ido em casa buscar alguns mantimentos. Quando estava chegando na UTI, uma psicóloga foi ao seu encontro e começou a conversar. Após a chegada de Júlio, os três foram juntos ver Benício, receberam a notícia de que o bebê teve uma parada cardíaca devido à imaturidade do pulmão e veio a óbito. A mãe não chegou a ver o filho vivo. “Às vezes a gente escuta que nós somos jovens, vamos ter outro filho. Nem que venham mais 10, o vazio do Benício nunca vai ser preenchido. Temos saudade do nosso filho que poderia estar com a gente hoje, [pensando em] como seria nossa rotina com ele. Ainda temos que aprender a conviver com a falta, mas a gente nunca esquece”. Quando foi na obstetra que a acompanhava, 15 dias após o óbito, a médica confirmou a Lizandra que a morte de Benício foi consequência de uma série de fatos sequenciais que começou no

Ana Maria Cajado

Foto: Rayanne Aragão.

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Eu queria muito ter olhado nos olhos do meu filho, ter pego nos meus braços e ter ido pra casa Mas só opeguei nos braços quando já estava morto, e fui direto para o cemitério"

Lizandra Queiroz, engenheira de alimentos

Capítulo 2 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

atendimento falho. “Ela ficou horrorizada com tudo que contei e disse que eles deveriam ter feito exame de toque, ultrassom transvaginal e conversamos também sobre a possibilidade de retardar o trabalho de parto. Nada disso foi feito”. Lizandra e Júlio acreditam que o óbito de Benício seja a consequência da negligência médica vivenciada no hospital. Por isso, decidiram contratar um advogado para processar o hospital. Por enquanto, documentos estão sendo reunidos para dar entrada ao processo. “Eu queria muito ter olhado nos olhos do meu filho, ter pego nos meus braços e ter ido pra casa. Mas só o peguei nos braços quando já estava morto, e fui direto para o cemitério. É um vazio que nunca se preenche”. Hoje, um ano após o acontecido, Lizandra diz que está bem melhor emocionalmente, mas que, no começo, foi muito difícil. “Não temos a mesma vitalidade, a mesma energia. Eu não tinha ânimo para sair, não tinha vontade de fazer nada. Eu estava me sentindo mais distante, fria, mais calada”.

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B

enício faz parte de uma estatística dolorosa, lamentável e complexa. De acordo com a Secretaria de Saúde do Ceará, a taxa de mortalidade infantil registrada em 2018, no Estado, foi de 11 mortes a cada 1000 nascidos vivos. No total, 1.470 bebês foram a óbito. Desses, 1.039 (70%) faleceram no período neonatal, nos primeiros 28 dias de vida, como Benício. Embora as mortes estejam de acordo com que a Organização Mundial de Saúde considera aceitável (12 mortes a cada mil nascidos vivos), os dados mostram falhas na assistência do pré-natal, no parto e nos cuidados ao recém-nascido. Em 2011, o Ministério da Saúde do Brasil lançou a Rede Cegonha, com o objetivo de proporcionar às mulheres saúde, qualidade de vida e bem-estar desde a gestação até o desenvolvimento das crianças até o segundo ano de vida. A Rede é definida pelo próprio Ministério como uma estratégia para assegurar os direitos das mulheres: planejamento reprodutivos (pré-natal), atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério. Para as crianças, o programa visa o direito ao nascimento seguro, assim como ao crescimento e desenvolvimento saudáveis. O intuito é reduzir a mortalidade materna e infantil e qualificar os serviços ofertados pelo SUS. Contudo, mesmo depois da introdução da Rede Cegonha, os óbitos neonatais continuam alarmantes no Ceará. De acordo com Liduína Rocha, presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia do Ceará (Socego), 93% dos óbitos neonatais de 2018, no Ceará, poderiam ter sido evitados com ações no pré-natal ou intervenção médica precoce.

Ana Maria Cajado

Violências físicas e psicológicas

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No sentido figurado, o termo “parto” é sempre usado após uma tarefa difícil e exaustiva. Na obstetrícia, é o conjunto de fenômenos mecânicos e fisiológicos que levam à expulsão do feto do corpo da mãe. Durante a gravidez, o parto é um dos momentos mais esperados e temidos. Isso porque a parturição tem sido associada à dor, obrigando a mulher suportá-la e aceitá-la. Até aqui, muito se evoluiu na área da saúde. Contudo, uma Resolução feita pelo Conselho Federal de Medicina, em setembro de 2019, considerou como “abuso de direito”, a recusa de


SAIBA MAIS Casos de mortalidade infantil no Ceará Em 2018, ocorreram 11 mortes a cada 1000 nascidos vivos.

1.109

Mortalidade neonatal precoce (até o 7º dia de vida)

Mortalidade neonatal tardia (entre o 7º e o 28º dia de vida)

1.171 1.039

487 510 431

1.596 Capítulo 2

1.681

Total 1.039

2016

500

2017

750

1.000

1.250

1.500

1.750

2.000

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Fonte: Secretaria de Saúde do Ceará.

gestantes que não aceitem realizar procedimentos médicos no atendimento mãe-bebê. A resolução enfraquece a autonomia da mulher na escolha de procedimentos durante o parto e prevê que, em casos de recusa terapêutica, o diretor técnico do esta-

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

250

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belecimento de saúde seja acionado e tome providências para assegurar o tratamento proposto pelo médico. Contudo, intervenções físicas desnecessárias, bem como a realização de procedimentos sem a autorização da parturiente, além de verbalizações agressivas por parte dos profissionais da saúde durante o trabalho de parto se configuram como violência obstétrica. De acordo com a Defensoria Pública de São Paulo (DPSP), que em 2013 divulgou uma cartilha sobre o assunto, entre as violências mais sofridas pelas mulheres, estão negligenciar o atendimento de qualidade, ofender a mulher e realizar procedimentos que causem dor ou

A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto [visando as duas partes, mãe e bebê], podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”

Ana Maria Cajado

Artigo 5 da resolução feita pelo Conselho Federal de Medicina em setembro de 2019

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dano físico sem autorização da parturiente. O quadro ao lado reúne as principais violências apontadas pela DPSP. Em artigos científicos da área de saúde, matérias jornalísticas e trabalhos acadêmicos, as violências descritas a seguir também são apontadas com frequência. Segundo Liduina Rocha, presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (Socego), durante muito tempo os médi-


cos acreditaram que utilizar a ocitocina sintética, bem como romper a bolsa durante o trabalho de parto, acelerasse o nascimento do bebê. Contudo, as evidências científicas mostraram que não há nenhuma melhora. “Não é legal o uso sistêmico da ocitocina, das episiotomias, sem indicação real. Quando uma tecnologia é usada de maneira adequada, tudo certo. Mas, quando utilizada sem indicação real, vai promover mais dor e aumenta a chance de sofrimento fetal, hemorragia, tem uma série de riscos”, alerta a obstetra. Além disso, a obstetra explica que existe uma cultura de se falar muito durante o parto e querer guiar a mulher, mas a orientação

SAIBA MAIS TIPOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA MAIS FREQUENTES

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Fonte: Defensoria Pública de São Paulo.

Capítulo 2

1. Negligenciar o atendimento de qualidade; 2. Agressões verbais e constrangimento: Toda ação verbal que cause constrangimento à mulher ou traga sentimentos de inferioridade, medo, perda de dignidade e instabilidade emocional. Ofender, humilhar ou xingar a parturiente também estão inclusos neste tópico; 3. Agendar cesariana sem recomendação baseada em evidências científicas; 4. Impedir a entrada do acompanhante, direito dado à mulher e garantido por Lei Federal; 5. Procedimentos sem a autorização da mulher que culminem dor ou dano físico; 6. Episiotomia (corte abaixo da vagina para facilitar a saída do bebê), soro de ocitocina sintética (para apressar o parto), exames de toque sucessivos e privação de alimentação; 7. Impedir o contato pele a pele da mãe com o bebê (atividade recomendada pela OMS) na primeira hora de vida sem necessidade médica.

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Quando uma tecnologia é usada de maneira adequada, tudo certo Mas, quando utilizada sem indicação real, vai promover mais dor e aumenta a chance de sofrimento fetal, hemorragia, tem uma série de riscos”

Ana Maria Cajado

Liduína Rocha, presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (Socego)

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da OMS é diferente. "A recomendação da OMS é que o ambiente seja tranquilo, sereno e pouco ruidoso. O nosso papel não é de ficar falando muito, e sim garantir o cuidado relação mãe e criança. Ninguém pode tocar o corpo de uma outra pessoa sem explicar para ela porque tá sendo feito. Não dá pra fazer uma episiotomia sem explicar e sem receber autorização para isso", explica. Quando uma mulher sofre violência obstétrica, quase nunca é uma agressão é isolada. Apenas uma episiotomia, apenas um xingamento ou apenas negligência médica. Os casos quase sempre envolvem mais de uma ação, como o parto da radióloga Mariana* (nome fictício a pedido da entrevistada). Hoje com 25 anos, relembra o dia em que deu à luz Rafael* (nome fictício a pedido da mãe), aos 17 anos. Mesmo após tanto tempo, lembra com tristeza o que viveu na sala de parto. “Parece ser algo pequeno, mas faz um grande estrago na nossa mente fragilizada”, fala Mariana, como se tentasse justificar o que viveu. A jovem sofreu constrangimento verbal e passou por uma episiotomia sem real indicação. Corte que, segundo ela, até hoje inflama. “Logo após o parto, o médico olhou pra mim e disse que ia


costurar bem a minha vagina para não estragar o ‘brinquedo do papai’”, conta Mariana. Enquanto costurava a paciente, o médico chegou a dizer que Rafael “estragou a barriga da mamãe”. As elocuções reafirmam que a violência obstétrica não se trata da formação médica, mas de um machismo estrutural da sociedade.

Consequências do trauma

De acordo com o dr. Igor Emanuel Vasconcelos, psiquiatra da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac) e membro da Comissão de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental da Mulher – Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), uma das consequências para um parto como o da Mariana, doloroso e traumático, é a

tocofobia – o medo do parto porque teve um parto traumático no passado, ou seja, consequência da violência obstétrica. Além da tocofobia, destacam-se ainda a Depressão e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept).

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Dados da pesquisa da Meac e da OMS sobre partos no Brasil

Capítulo 2

A violência durante a vida e a gravidez não desejada foram os principais fatores de risco para transtornos mentais; 55% dos partos realizados no Brasil são cesáreas O país lidera o ranking em 2º lugar

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Ana Maria Cajado 56

No caso da depressão, a doença pode ser desencadeada pelo sentir que não foi bem acolhida ou pela quebra entre o parto idealizado e o parto real. "Nessas pacientes, ocorre muito entristecimento, choro mesmo sem ter estressores, perda de prazer, falta de energia, sensação de incapacidade e culpa quanto à maternidade, como ‘ah porque eu engravidei’, ou ‘poderia ter escolhido outro tipo de parto’”, revela o dr. Igor Emanuel. Já o Tept, segundo o psiquiatra, atinge 3 a 6% das mulheres, e pode se desenvolver em três categorias: a revivência (reviver o parto o tempo todo, ter pesadelos e pensar muito no parto traumático) e a evitação (a mulher evita entrar em contato com o parto traumático de toda forma: não quer pensar em ter filhos, evita discussões a respeito e pode evitar, inclusive, o bebê. Outras categorias dentro do Tept são a hipervigilância (a mulher fica tensa com o tema, quando lembra do que viveu fica irritada) e os pensamentos ligados ao trauma. Neste último, a mulher muda sua forma de ver e sentir o mundo, o enxergando em razão dessa vivência traumática. Contudo, o psiquiatra enfatiza que a violência intradomiciliar ainda se configura como o maior gatilho das pacientes. “Fatores como ruptura de relacionamento, a saída do companheiro de casa quando descobriu a gravidez ou ter pedido para ela abortar, além de brigas dentro do relacionamento, podem precipitar, inclusive, suicídio”, alerta Igor Emanuel. Segundo uma pesquisa realizada por ele e outros médicos na Meac, a violência durante a vida e a gravidez não desejada foram os principais fatores de risco para transtornos mentais. O suporte social, segundo Igor Emanuel, é o fator que mais diferencia as mulheres que chegam a ele pelo consultório particular e pelo atendimento público. “O que eu vejo entre as mulheres que chegam ao consultório médico, vêm acompanhadas com mãe, marido, filho, pai. Às vezes nem cabe no consultório. Ou seja, tem um suporte. Já as mulheres que vêm da rede pública, é ao contrário. As pessoas falam que é normal da gestação, que a mulher fica com os hormônios alterados, tem essa minimização [com a mulher que vem pela rede pública]. Mas os problemas que elas relatam, são basicamente os mesmos”, relata o psiquiatra. Para ele, segundo própria vivência, a mulher do consultório que sofre violência obstétrica têm suporte, compartilha com alguém e busca ajuda. Já a do SUS, sempre é


minimizada. “O causador do sofrimento, da violência obstétrica, pode até ser parecido, mas a manifestação é diferente. A mulher do SUS sofre muito mais do que a de consultório", afirma.

Foto: Arquivo pessoal. Capítulo 2

Um dos casos acompanhados por Igor Emanuel reforça a necessidade de discutir a violência obstétrica juntamente com as políticas públicas. Segundo ele, a paciente foi muito mal acolhida na rede pública, o parto foi demorado e ninguém deu atenção a ela. O caso dessa mulher, segundo o psiquiatra, traz com muito sofrimento o parto vaginal. Grávida novamente, já disse que não tolera parto vagi-

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Dr. Igor Emanuel Vasconcelos, psiquiatra da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac).

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nal. Ela chegou ao psiquiatra com depressão suicida e Tept, porque, para ela, é desesperador ter que vivenciar um novo parto no futuro. "Essa paciente tem Transtorno Pós-Traumático ligado à violência obstétrica. Se ela não tem condição psicológica de ter um parto vaginal, existe indicação psiquiátrica para uma cesariana porque vai ser muito ruim para aquela mãe e para o bebê também, porque

Ana Maria Cajado

Foto: Rayanne Aragão.

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SAIBA MAIS

80-90% 35%

80-90% 35-40%

40-50%

35-40%

50

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100

90-100%

Taxa de cesariana segundo região brasileira e tipo de serviço de saúde

10

Norte

Nordeste

Setor público

Centro-Oeste

Sul

Sudeste

Setor privado

"Vai ser cesárea, né?"

O parto cesárea, com real indicação, como a apontada pelo psiquiatra Igor Emanuel, pode salvar vidas. É uma ótima aliada dos médicos e das mulheres para evitar sofrimento materno e fetal. Contudo, cesárea sem real indicação e contra a vontade da mulher, é considerada violência obstétrica, conforme informou a obstetra Liduína Rocha. 55% dos partos realizados no Brasil são cesáreas, conforme dados divulgados pela OMS. O país lidera o ranking em 2º lugar, per-

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

ela não vai conseguir evoluir no seu trabalho de parto, nas contrações, e a gente acaba indicando que aquela mulher tenha cesariana”, conta o psiquiatra, deixando claro que a decisão final é do obstetra.

Capítulo 2

Fonte: Nascer no Brasil (ENSP/ Fio Cruz).

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dendo apenas para a República Dominicana. Contudo, a indicação da Organização Mundial de Saúde é clara – somente 10 a 15% dos partos deveriam ser cesárea. Devido às taxas alarmantes no Brasil, já se fala em epidemia deste tipo de parto. Segundo a pesquisa “Nascer do Brasil”, realizada em 2012, as taxas de cesariana são mais baixas no setor público e na região Sudeste do Brasil. Quando se fala em parto no SUS, a região que mais pratica cesáreas são Norte e Centro Oeste, com 40 a 50% do total de partos, sendo cesárea. No setor privado, no entanto, 90% a 100% dos partos realizados nas regiões Nordeste e Centro Oeste, foram cesárea. As regiões Norte, Sul e Sudeste não ficam por baixo: 80 a 90% do total de partos realizados em clínicas particulares, foi cesárea.

92% das mulheres que têm ensino superior completo, tiveram parto cesárea na rede privada; Apenas 5,8% das mulheres de cor preta usam os serviços privados de saúde

Ana Maria Cajado

Dados da pesquisa “Nascer do Brasil”, realizada em 2012

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Apenas 5,8% das mulheres de cor preta usam os serviços privados de saúde, são elas as que menos utilizam. Já as que mais usam são as mulheres brancas (23%). No uso do SUS, as mulheres amarelas e orientais lideram (53,5%), seguidas das pretas (49,4%).


Capítulo 2 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

A pesquisa mostra, ainda, que quanto mais anos de estudo a mulher tem, menor é a chance de ter um parto normal: 92% das mulheres que têm ensino superior completo, tiveram parto cesárea na rede privada. Uma delas é Sheridan Poline, hoje com 34 anos, dentista. Sheridan teve Lucas em março de 2016, por meio de um parto cesárea. De antemão, já diz que não sabe se sofreu violência obstétrica, porque não negou o parto cesárea. Mas ainda na gestação, disse estar ciente de que o parto seria assim por comodidade da médica. “Em nenhum momento ela me perguntou nada. Desde a primeira consulta. ela falou: ‘vai ser cesárea, né? Vamos marcar com 38 semanas’”, conta Sheridan. O depoimento de Sheridan ratifica a pesquisa da ‘Nascer do Brasil’, que mostrou, ainda, que apenas 36% das mulheres atendidas pela rede particular desejam a cesariana no início da gestação. No entanto, ao longo do pré-natal, elas foram mudando de ideia de acordo com a assistência que vinham recebendo e, ao final da gestação, a preferência pela cesárea chegava a 67%. Mas Sheridan não recebeu informações apenas na assistência com a médica. Começou a participar de rodas de conversa, cursos, e no fim da gestação, percebeu que não tinha escolhido o parto cesárea, e, sim, foi induzida a ele. Depois de estudar e se informar, viu que queria não queria a cesárea, mas não tinha forças para ir contra toda a cultura que esse tipo de parto engloba: contra a família, o marido, e a própria obstetra. “Eu não queria ir de encontro a todas as pessoas, principalmente a uma médica que não me apoiaria. Por fim, não tinha com quem conversar para enfrentar o parto normal”, afirma a dentista. Quando fala em cultura, Sheridan é assertiva: a cesárea é uma cultura brasileira que se construiu e que, segundo a obstetra Liduína Rocha, envolve a formação do ginecologista obstetra, mas também envolve os costumes das famílias e das mulheres. Isso porque, historicamente, o modelo de assistência no atendimento privado é ter apenas um obstetra que te acompanhe no pré-natal e realize o seu parto. "Isso implica em um tipo de vida impraticável. Se você é obstetra, não trabalha em equipe e vai acompanhar parto de todas as suas pacientes, significa que você vai estar de plantão todos os dias. E, dentro desse modelo, a cesárea é a única alternativa”, explica Liduína. O medo da dor, cultivado entre mulheres de geração em ge-

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ração, fez com que o parto cesárea fosse uma alternativa para aquelas com condições financeiras, independente de riscos obstétricos. O ideal era que o costume que se construiu em torno do parto cesárea fosse trabalhado por meio de políticas públicas. É uma cirurgia de grande porte e, assim como qualquer outra desse tipo, precisaria de indicação clínica. Contudo, um projeto aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo em 2019, proposto pela deputada estadual Janaína Paschoal (PSL), garante a gestantes a possibilidade de optar pelo parto cirúrgico no SUS a partir da 39ª semana de gestação. O projeto fomenta a prática de cesáreas e vai na contramão do que é indicado pela OMS. O dia do parto chegou e diferente do que se espera, foi só calmaria. Sheridan acordou, tomou café da manhã. Pegou a malinha da maternidade e foi. Sem dor, sem cólica, sem contrações. “É um parto frio, não tem emoção. Super rápido. A gente fica muito passiva: chega, troca de roupa, vai para o centro cirúrgico e tira o bebê”, conta a dentista. O contato pele a pele e a primeira mamada não existem. Segundo Sheridan, “o contato pele a pele demora 10 segundos, para tirar a foto”. Grávida novamente, Sheridan não quer que a segunda filha, Júlia, venha ao mundo por meio da cesárea, só no caso de real indicação.

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Espero poder sentir emoção, gritar, sentir a dor, escutar o choro dela e acalentar ( ) Que eu possa ir para uma banheira, me agachar e ver a posição melhor para ela nascer Quando escolhemos passar por isso, ficamos à mercê do tempo do nosso corpo e do nosso filho" Sheridan Poline, dentista


Capítulo 2 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Continuou indo na mesma obstetra, que quando ouviu a dentista dizendo que queria parto normal, não teve uma boa reação. “Ela disse que não dava certo, que eu deveria ter me preparado antes, disse que era muito arriscado por eu ter tido outra cesárea, que meu útero estava muito fino, podia romper, que eu ia ter trombose e que minha glicemia estava alta. Ela falou muitas coisas, disse que eu não chegaria até o final e que eu tinha que fazer a cesárea. Mas meus exames não mostram isso”, argumenta Sheridan. Segundo ela, a médica ainda disse que a paciente estava “muito calma”, e que na próxima consulta, levasse um acompanhante para que ela explicasse a seriedade da situação. Para tentar o parto normal, a dentista procurou outra médica, a favor do parto vaginal. Levou todos os exames e foi informada de que está tudo normal. A chance de ruptura do útero existe, e acontece em 5% dos casos. A médica atual garantiu a Sheridan que, se tiver, ela faz as manobras para evitar. Também disse à dentista que se o parto normal ficar inviável, uma cesárea pode ser realizada. Para o nascimento de Júlia, a nova integrante da família de Sheridan, a expectativa é ter um parto com emoção e aproveitar todos os benefícios de ter esperado o tempo da filha. A dentista acredita que, por não ter tido contato com os hormônios do parto, teve muita dificuldade para amamentar o filho. "Eu espero ver meu corpo trabalhando, se contraindo para poder gerar a vida. Eu espero que, na hora que minha filha nascer, ela venha para o meu colo e eu a amamente. Eu espero ter uma luz mais escura e não aqueles holofotes da cesárea. Espero poder sentir emoção, gritar, sentir a dor, escutar o choro dela e acalentar. Espero conseguir amamentar logo, me recuperar logo e ser escutada na hora do parto. Que eu possa ir para uma banheira, me agachar e ver a posição melhor para ela nascer. Quando escolhemos passar por isso, ficamos à mercê do tempo do nosso corpo e do nosso filho", declara Sheridan. As vantagens do parto que Sheridan deseja viver são também sonhadas por outras mães, parturientes e mulheres. Para isso, um novo modelo de parto surgiu. Intitulado e comumente chamado de “parto humanizado”, no fim, o que as mulheres querem, nada mais é do que a assistência médica de qualidade para si e para o filho que há de vir.

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"Achava que nunca ia ver uma mulher parir sorrindo".

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uzes baixas, música ao fundo e dentro de uma piscina quentinha. Foi assim que Lavínia veio ao mundo diretamente para o colo da mãe Nayane Paiva, hoje com 26 anos. A menina, que atualmente têm dois anos, nasceu em um hospital comum, assim como os outros bebês relatados aqui. A diferença foi a assistência: Lavínia nasceu amparada, com uma equipe especialista em parto humanizado. Nos últimos cinco anos, este termo – parto humanizado – tem sido usado com frequência para se referir à partos que fogem do modelo convencional. Neste, a mulher se coloca em posição ginecológica para ter o bebê, caso não evolua se faz um parto cesárea. No entanto, para Silva (2016), pensar a assistência humanizada é pensar, sobretudo, no direito de liberdade de

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escolha da mulher, na integralidade de práticas benéficas à saúde da mãe e do seu bebê, e na amplitude de modalidades terapêuticas que podem ser associadas ao modelo convencional. Para a implementação de novas modalidades que auxiliem a mulher durante o trabalho de parto e à assistência gestacional, surgiram as doulas. Talvez sejam elas as grandes protagonistas quando, popularmente, o parto humanizado seja mencionado. De acordo com a doula Krys Rodrigues, profissional da área há sete anos, o intuito das doulas é claro: devolver o parto a quem é de direito – a mulher. Com origem grega, a palavra doula significa “mulher que serve”. De acordo com Krys Rodrigues, o papel dessas profissionais é prestar assistência física e emocional à mulher: conversando, fazendo massagem, se preocupando com o bem estar geral da gestante. As doulas são acompanhantes de parto treinadas para isso e são membros da equipe de parto humanizado. Para Krys, as doulas sempre existiram, levando em consideração que, nos anos passados, sempre houveram mulheres que

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Raimunda Magalhães da Silva, enfermeira e pós-doutora em Saúde Coletiva

Capítulo 3

Pensar a assistência humanizada é pensar, sobretudo, no direito de liberdade de escolha da mulher, na integralidade de práticas benéficas à saúde da mãe e do seu bebê, e na amplitude de modalidades terapêuticas que podem ser associadas ao modelo convencional"

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ajudavam parturientes na hora de dar à luz. “Parto é um evento feminino em primeiro lugar. Se a gente for conversar com nossas avós, elas vão falar que se uma pessoa engravidava, sempre tinha uma vizinha que ia para dentro da casa da pessoa, falava o que ajudava na gravidez e auxiliava nos incômodos na hora do trabalho de parto”, afirma a doula.

Foto: Arquivo pessoal.

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Krys Rodrigues, doula.

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A doulagem como profissão, no entanto, é algo novo no Brasil, e se tornou popular nos últimos cinco anos. Isso porque, segundo Krys Rodrigues, a cesárea entrou como via principal de parto. A situação só mudou quando mulheres que procuram práticas mais saudáveis para si buscaram as doulas para auxiliarem no parto e descobriram que esse momento não precisava ser de sofrimento como as pessoas sempre falavam.


“Antes do advento da cesárea, não se pensava como hoje. ‘Eu vou ter passagem? Vou aguentar a dor?’ Não se sabia, a mulher não ficava tão presa a avaliações externas para se dizer que estava bem. Tudo isso fazia com que o parto fosse mais natural”, declara a doula. O sofrimento e o medo da dor do parto vaginal são os principais fatores para as gestantes procurarem as doulas, conforme informou Krys Rodrigues. Isso porque, na nossa cultura, o parto está ligado ao sofrer. “O parto vaginal tem dor? Sim, mas é uma dor que tem hora para começar e para acabar. O neném nasceu, a dor foi embora. Assim você está bem para cuidar do seu neném e de você. A cesárea, quando bem indicada é maravilhosa, tem sido vendida como um parto seguro e indolor. Mas não é assim”, explica a doula. Para Krys Rodrigues, o parto vaginal se tornou sofrimento quando as mulheres passaram a sofrer violência obstétrica.

Atualmente, poucas mulheres têm referências de parto vaginal. Quando elas procuram a doula nesse intuito, o papel das profissionais é informar e dar segurança para que a mulher possa

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Krys Rodrigues, doula

Capítulo 3

Antes do advento da cesárea, não se pensava como hoje ‘Eu vou ter passagem? Vou aguentar a dor?’ Não se sabia, a mulher não ficava tão presa a avaliações externas para se dizer que estava bem Tudo isso fazia com que o parto fosse mais natural”

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confiar na via natural de parto. A violência obstétrica e o medo de passar por ela também são um dos principais motivos para as doulas serem buscadas, conforme informou Krys Rodrigues. Ela revela, no entanto, que atualmente os plantões obstétricos têm evoluído bastante, e que alguns hospitais oferecem o atendimento humanizado. Para assegurar às mulheres e suas famílias, o melhor instrumento é a informação – assim, elas podem ter acesso aos seus direitos. “Quando o parto deixa de ser natural, tem que ser medicamentoso, a mulher não pode se movimentar, tem que parir deitada, onde tem um homem empurrando a barriga dela, cortando a vagina dela, se torna um ambiente de sofrimento. E eu concordo que, se fosse assim, eu também ia querer a cesárea”, explica Krys. Especializadas em apoio contínuo físico e emocional para a mulher, as doulas são acompanhantes de parto treinadas. Existem cursos para a formação de doulas profissionais ou voluntárias. As entidades “Doulas do Brasil” e a “Associação Nacional de Doulas (ANDO)” são exemplos de locais que fornecem certificados e têm cadastro. Para se tornar doula, não há necessidade de atuar ou ter formação na área da saúde. “Somos profissionais não técnicos, então nenhuma doula deve fazer na mulher um exame da área médica ou da enfermagem. Nenhuma doula tem formação para isso, então o acompanhamento que uma doula vai fazer não depende de conhecimentos da área da saúde. Nosso apoio é físico e emocional para a mulher e sua família”, explica Krys Rodrigues.

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Humanização no atendimento

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A doula informa que a humanização do atendimento tem três pilares: a autonomia feminina em todas as etapas do processo, do pré natal ao pós parto – a gestante participa de todas as decisões e discute com a equipe as intervenções que podem acontecer com ela; a presença e trabalho de uma equipe multiprofissional, onde cada profissional vai atuar dentro da sua área de forma interdisciplinar (médico, enfermeira, técnico e doula); e tem à sua disposição a medicina baseada em evidências.


De fato, as evidências comprovam: segundo a presidente da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (Socego) Liduína Rocha, que trabalha com assistência ao parto humanizado, estudos clínicos apontam que o apoio contínuo durante o trabalho de parto melhora os resultados. “Diminui a incidência de cesárea e analgesia, aumenta a chance de satisfação da mulher e tem melhores resultados para a criança”, declara a obstetra.

A autonomia feminina em todas as etapas do processo, do pré-natal ao pós parto; A presença de uma equipe multiprofissional (médico, enfermeira, técnico e doula); A medicina baseada em evidências

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Diferente do que muitos pensam, o parto humanizado não significa, necessariamente, um parto vaginal. Isso porque, de acordo com a doula Flora Terrá, o objetivo final é que a mulher tenha uma boa experiência de parto, com respeito e autonomia. “O parto humanizado é muito confundido com o parto domiciliar, com o parto na água, mas não é nada disso. Um parto humanizado pode ser em qualquer lugar, uma cesárea pode ser humanizada”, explica Flora. Manuela Carvalho, advogada, é prova de que uma cesárea pode ser humanizada. Depois de 6 abortos espontâneos em dez anos de

Capítulo 3

Pilares do atendimento humanizado

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O parto humanizado é muito confundido com o parto domiciliar, com o parto na água, mas não é nada disso Um parto humanizado pode ser em qualquer lugar, uma cesárea pode ser humanizada"

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Flora Terrá, doula

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tentativa, engravidou de Marinna já esperando o pior em cada consulta. Foi quando Manuela percebeu que, apesar de ser consultada por médicos renomados e investir muito dinheiro para descobrir o diagnóstico das perdas, todos os profissionais analisavam friamente seu histórico de perdas, não levando em consideração fatores como o psicológico e histórico pessoal. Isso se torna especialmente importante porque, desde os 4 anos de idade, Manuela tem transtorno bipolar. Em 2010, aos 21 anos, engravidou do seu primeiro filho e precisou parar com a medicação que trata o transtorno. A advogada lembra que sempre quis um parto normal, o que menos queria era cesárea. Contudo, o médico insistiu que assim fosse, apesar da advogada não estar se sentindo mal e o bebê estar bem. No dia da cirurgia, após a aplicação da anestesia peridural, Manuela ficou anestesiada do pescoço para baixo. A reação é normal, e pode acontecer com qualquer paciente – mas isso não foi dito à advogada. "Para quem tem crise [de transtorno bipolar], a anestesia subir causa desespero. Achei que eu ia morrer e comecei a gritar. A anestesista olhou para mim e disse 'deixa de frescura'. Em ne-


nhum momento ninguém me disse que eu não ia morrer, ou me tranquilizaram, nada. Era o que eu esperava. Podia ter sido um dos melhores dias da minha vida, mas eu conto como um dos piores", lamenta Manuela. Para a advogada, neste momento, não só a fragilidade dela enquanto gestante deveria contar, mas também o fato de ela ser uma paciente psiquiátrica, situação que o médico já estava ciente, conforme informou. "Sabendo do meu histórico, já era esperado que eu tivesse alguma reação. Não houve conversa com a equipe, o médico poderia ter informado que eu era paciente psiquiátrica,

mas não houve essa atenção", explicou. Além disso, Manuela teve uma necrose (morte de células ou tecidos) na cicatriz da cesárea, precisando fazer uma outra cirurgia. Quando engravidou de Marinna, Manuela queria uma equipe médica que a tratasse no todo, não pensando apenas na gestação, mas em tudo o que ela tinha vivido até engravidar novamente.

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Manuela Carvalho, mãe do Luiz Henrique e da Marinna

Capítulo 3

Eu precisava de alguém que me analisasse enquanto ser humano, não apenas corpo humano A maioria dos médicos quer pular essa parte do seu histórico Eles reduzem você a números: quantas perdas, gestações, olham seus exames"

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Fotos: Lana Pereira.

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Fotos ilustrativas registradas para o Ensaio Naturalis.

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“Eu precisava de alguém que me analisasse enquanto ser humano, não apenas corpo humano. A maioria dos médicos quer pular essa parte do seu histórico. Eles reduzem você a números: quantas perdas, gestações, olham seus exames. Reduzem você àquilo, mas não querem saber como você está emocionalmente para outra gestação”, explica Manuela.


Capítulo 3 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Foi quando reconheceu a doula Flora Terrá, com quem estudou na escola por meio das redes sociais. Flora sempre publicava conteúdos falando sobre o parto humanizado e a equipe com quem trabalha. A doula indicou para Manuela a obstetra Liduína Rocha. Já na primeira consulta, a advogada se surpreendeu com o atendimento atencioso e, de fato, humanizado. "Ela se preocupou,

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Fotos: Lana Pereira.

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parou para escutar minha angústia. Falou tanto o que eu gostaria de escutar como o que eu não gostaria. Foi muito próximo, eu me sentia muito amparada”, conta Manuela. A médica estabeleceu metas a serem alcançadas para que o nascimento de Marinna fosse viável e cada meta batida era comemorada. As possibilidades de parto sempre foram muito dialogadas, segundo Manuela. Liduína deixou claro que o parto vaginal seria tentado ao máximo, mas que a cesárea poderia ser necessária mesmo não sendo o procedimento desejado pela gestante. Assim, Manuela foi preparada psicologicamente aos poucos para o que poderia vir a acontecer.


Capítulo 3

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

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"Quando eu conversei com a Liduína, eu tive noção da diferença. Estamos tão acostumados com um padrão de médico, que nos reduz a números e estão preocupados só com aquela análise 'o que você tem?', 'vamos resolver e pronto'. Mas nosso organismo é um todo", argumenta. Com 39 semanas, a bolsa estourou e veio com um líquido amarronzado. De imediato, Manuela entrou em contato com a doula Flora e com a obstetra Liduína. Ambas pediram que a gestante fosse para o hospital. Lá, Manuela começou a entrar em trabalho de parto, mas em 8 horas, não dilatou nenhum centímetro. Quem estava com ela era outro obstetra, também da equipe de Liduína. Ele informou à Manuela que a bebê não podia esperar mais – o líquido marrom poderia prejudicá-la. Manuela chorou, frustrada, por querer muito a experiência do parto vaginal. Mas a ajuda do médico foi essencial para que ela colo-

A doula vai ter o cuidado de não deixar você fazer força no momento errado, vai dar mais direcionamento no trabalho de parto para que você não se desgaste A doula tem o cuidado afetivo, mas tem o lado o técnico, direcionando tudo de forma positiva para a gestante"

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Manuela, sobre o apoio da doula Flora Terrá

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casse a cabeça no lugar. "Ele disse pra eu pensar pelo lado bom: eu entrei em trabalho de parto, não fiz a cesárea porque era desnecessária, e sim o contrário. O médico fez todo um trabalho comigo de


mostrar o quanto eu fui forte de chegar até ali. Mesmo não indo até o meu objetivo final, eu consegui bastante coisa. Foi quando ele chamou a equipe e fomos para a sala de parto e, apesar de ser também uma cesárea, foi totalmente diferente do meu primeiro parto", conta. Diferentemente da primeira vez, foi conversado com Manuela sobre a possibilidade da anestesia peridural deixá-la novamente anestesiada do pescoço para baixo. Segundo ela, o médico ficou

tranquilizando-a, conversando. Quando tomou a anestesia, Manuela sentiu falta de ar, mas logo a anestesista realizou manobras para que a parturiente se sentisse melhor. "Eles fizeram de tudo para que eu aguentasse o parto todo sem sedação. Tinha horas que eu pedia e eles sempre conversando comigo, dizendo para eu aguentar mais um pouquinho. Assim, consegui ver minha filha nascendo e meu marido cortando o cordão umbilical". Depois do parto, o médico concedeu a sedação pelo desgaste emocional que já se seguia por mais de 8 horas e Manuela temia que uma crise fosse desencadeada.

A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Liduína Rocha, obstetra

Capítulo 3

Hoje a Meac está fisicamente e culturalmente ambientada para as boas práticas O som é outro Fico perguntando se as pessoas da minha geração entendem que aquele grito que a gente ouvia antes eram gritos de dor, de desespero mesmo"

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A atenção e o cuidado desde o pré-natal, até o pós parto, são lembrados por Manuela com alegria e surpresa. A assistência da doula, segundo ela, foi essencial para todo o processo acontecer bem. "A Flora ficou comigo o tempo todo, cuidando, colocando compressa, vendo a posição mais confortável, conversando comigo, me confortando. A dor estava insuportável, mas ela cuidou bastante de mim. Para mim, a presença da doula foi essencial". A advogada destaca, também, que a doula traz vivências e um profissionalismo em apoio físico e emocional que os familiares não conseguem dar. Primeiro, porque não têm os conhecimentos da doula, segundo pelo grande envolvimento emocional. "A doula vai ter o cuidado de não deixar você fazer força no momento errado, vai dar mais direcionamento no trabalho de parto para que você não se desgaste. Ela dá aquele direcionamento que outra pessoa nao pode te dar. A doula tem o cuidado afetivo, mas tem o lado o técnico, direcionando tudo de forma positiva para a gestante", opina a advogada.

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85,6% dos partos utilizaram métodos não farmacológicos para alívio da dor; Em apenas 3,8% dos partos foi realizada episiotomia; 86,9% dos partos com contato pele a pele imediato

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Indicadores da Meac em 2018 Todos os partos foram realizados fora da posição convencional


Papéis que se complementam

Capítulo 3 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Alguns profissionais, no entanto, não gostam da atuação da doula. Liduína Rocha, obstetra, explica que isso acontece porque algumas doulas passaram a atuar como auxiliares de parto – o que, além de incomodar a comunidade médica, está errado. A obstetra revela que já viu doulas realizando procedimentos médicos, mas elas não têm formação para isso. No cenário da assistência, o papel delas é de apoio. Krys Rodrigues reafirma o que foi dito por Liduína, declarando que doula e obstetra tem papéis muito diferentes. “A doula está preocupada com a mulher e com o bem estar dela. Se a luz está incomodando, se ela quer massagem, se quer mudar posição ou tomar um banho. O obstetra está preocupado com o bem-estar fetal e da mulher no sentido fisiológico, então são papéis que se complementam”, explica Krys Rodrigues. Contudo, uma rivalidade entre médicos e doulas ainda existe. Krys Rodrigues revela que, por várias vezes, obstetras já fizeram a parturiente escolher entre a doula e o profissional da saúde. “Quero que todo mundo consiga trabalhar pro mesmo objetivo: trazer nascimentos respeitosos. Eu entendo que esses profissionais foram levados desde a academia para agir com as práticas que agem hoje. Mas com a boa informação, é preciso evoluir. Se agora a gente entende que isso certos procedimentos não são bons para a mãe e o bebê, é uma irresponsabilidade agir ao contrário”, opina Krys. A obstetra Liduína confirma o que foi dito pela doula. Quando fazia residência, acompanhou partos em que a parturiente ficava sem a família, em uma sala coletiva, com muita luz, sem comer. "A gente não se percebia e nem reconhecia que isso era violento, porque era a prática", explica. Quebrar esse paradigma não é fácil, mas extremamente necessário. "Na minha residência, quando a gente ia se aproximando da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), lá embaixo a gente ouvia o grito das mulheres em trabalho de parto. Aquele grito era incorporado à sonoridade da maternidade e isso era encarado como normal. Hoje a Meac está fisicamente e culturalmente ambientada pras boas práticas. O som é outro.

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Fico perguntando se as pessoas da minha geração entendem que aquele grito que a gente ouvia antes eram gritos de dor, de desespero mesmo", conta. Em 2016, a Meac foi reconhecida pelo Ministério da Saúde como o primeiro Centro de Apoio ao desenvolvimento das boas práticas de atenção obstétrica e neonatal no Brasil. Com uma média de 450 partos por mês, a Meac é referência em gestação de alto risco e humanização no atendimento. O hospital é público, e teve o Centro de Parto Normal (CPN) inaugurado em 2017. Indicadores de médias anuais publicadas pela Maternidade em 2018 mostram que 85,6% dos partos tiveram a utilização de métodos não farmacológicos para alívio da dor, como exercícios respiratórios, banho morno, e exercícios na bola. Além disso, em apenas 3,8% dos partos foi realizada episiotomia; 100% dos partos não foram na posição convencional e o contato pele a pele imediato foi em 86,9% dos partos.

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O CPN faz parte do Centro Obstétrico (CO) e tem como objetivo realizar a assistência segura ao nascimento. A equipe do CO é composta por 60 médicos obstetras, 14 enfermeiras obstétricas, 24 técnicas de enfermagem, psicóloga e assistente social, segundo o Relatório Institucional da Meac divulgado em 2018. A estrutura do setor tem oito apartamento individualizados pré-parto, parto e pós-parto (PPP), com banheiros privativos e espaço que favorece a liberdade de posições e métodos não farmacológicos para o alívio da dor. Hoje, prestando assistência a partos humanizados, Liduína Rocha vê tudo de outra forma. “Achava que nunca ia ver uma mulher parir sorrindo, e tenho visto com muita frequência. Com dor, porque a dor existe, mas com uma relação de dor que não é sofrimento, e felizes por estarem vivendo aquele momento”, conta. Ainda pouco acessível financeiramente, um parto humanizado na rede privada custa entre 5 e 10 mil reais, segundo a doula Krys Rodrigues. O valor inclui a taxa de disponibilidade do médico obs-

Capítulo 3 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Foto: Divulgação/Hospital São Camilo

Suíte de parto humanizado disponível no Hospital São Camilo, em Fortaleza.

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tetra, a suíte de parto humanizado, e o trabalho dos profissionais da enfermagem e da doula. Esta última custa em média, R$1500,00. Os serviços também podem ser contratados isoladamente. De acordo com a doula Flora Terrá, o trabalho de acompanhamento da doula pode se iniciar a partir da 12ª semana de gestação. A profissional constrói um plano de parto junto com a

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Foto ilustrativa registrada para o Ensaio Naturalis.


mulher e passa informações de qualidade baseadas em evidências científicas, para que,assim, a gestante e a família possam fazer suas escolhas. No plano de parto, a gestante escolhe que procedimentos ela quer fazer. "Ficamos sendo o canal de acolhimento, estamos lá para tirar dúvidas de ordem prática, fazemos encontros semanais de prepa-

Foto: Lana Pereira. Capítulo 3 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica 87


ração para o parto, conversamos sobre como lidar com a dor, e no dia do parto, fazemos um acompanhamento contínuo", explica Flora. Além disso, as doulas auxiliam no pós parto imediato, estimulando a amamentação. Em novembro de 2019, o Hospital São Camilo, em Fortaleza, passou a oferecer a opção da suíte de parto humanizado com assistência médica do próprio hospital para mulheres com plano de saúde. Assim, a parturiente paga uma taxa de R$ 1.500,00 por fora e tem direito à piscina individual – que ela pode levar para casa depois –, bola para exercícios, cama para pré-parto, parto e pós parto, e banheiro individual.

Tudo diferente

O relato de quem já viveu um parto convencional e, posteriormente, humanizado, é firme e claro: “foi tudo completamente diferente”, conta Nayane Paiva, estudante, com a mesma frase que Manuela declarou quando se referia aos dois partos já vivenciados. Em 2014, aos 21 anos, Nayane deu luz à Pérola, sua primeira filha.

Ana Maria Cajado

Fotos: Lana Pereira.

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Estava tudo certo para ser um parto cesárea, até que ela estudou e resolveu mudar de médico para tentar o parto normal. No dia do parto, exame de toque a cada 1 hora. “Era uma coisa tão bruta,

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quando eu via que ele estava vindo, já ficava triste. Ele fazia o exame e a mão dele saía banhada de sangue”, conta a estudante. Depois de cinco horas assim, Nayane subiu para o centro cirúrgico e tomou um “remédio intravenoso”, segundo ela. Até hoje, a estudante não sabe dizer o que foi, mas sua bolsa rompeu logo em seguida. O médico também deu uma anestesia na coluna, sem

Achava que nunca ia ver uma mulher parir sorrindo, e tenho visto com muita frequência Com dor, porque a dor existe, mas com uma relação de dor que não é sofrimento, e felizes por estarem vivendo aquele momento”

Ana Maria Cajado

Liduína Rocha, obstetra

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nunca ter falado com Nayane sobre isso, nem nas consultas, nem na sala de parto. Uma hora depois, Pérola nasceu em um parto vaginal. Quando foi no quarto, após o parto, o médico passou um remédio porque tinha cortado Nayane. A parturiente, novamente não foi avisada do procedimento. Depois da anestesia, Nayane sentiu muitas dores, no local da expulsão do bebê. Para ser medicada, seu esposo precisava ficar brigando com a assistência do local. Segundo ela, a dor persistiu por muitos dias. Quando engravidou pela segunda vez, com 24 anos, decidiu que procuraria um bom médico, que desse a assistência que ela


precisava. Não ia contratar doula, mas a médica aconselhou a presença da profissional. Às duas da manhã, quando começou a sentir contrações, a doula chegou e auxiliou Nayane até a hora de ir para o hospital. Na sala de parto, Nayane optou por ficar na piscina, e disse que queria ter bebê lá dentro. A bolsa estourou naturalmente. “A todo

Foto: Lana Pereira. Capítulo 3 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Foto ilustrativa registrada para o Ensaio Naturalis.

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momento eu pedia para a médica a anestesia, mas ela me instigou a ficar sem. Uma hora depois, a minha neném nasceu dentro da água. A médica disse que eu precisava de pontos, mas se rasgou de forma natural, durante o trabalho de parto ela nem tocou em mim, foi tudo na base da conversa”, conta Nayane. No primeiro parto, a informação que ela detinha era escassa, mas quando engravidou pela segunda vez, já sabia que queria assistência humanizada. Coletou o máximo de informações, para não passar pelas mesmas coisas da primeira vez. “Não tem comparação. No meu segundo parto eu saí muito mais disposta, bastante animada, principalmente por ter tido um parto 100% natural. Eu não sou muito de curtir o momento, mas foi bem emocionante”, conta Nayane. Sobre a assistência da doula, Nayane conta que procurou a profissional no fim da gestação, mas que agregou muito. “É muito confortável o fato de ela estar ali, prestando atenção e pensando em coisas que você não pensa, como a alimentação. São detalhes pequenos mas que fazem diferença, tanto na hora, como depois”, afirma. Entretanto, Nayane diz que não sabe se poderia ter um parto humanizado novamente devido ao valor financeiro que ele pede. O investimento foi de R$3.400,00. O ideal, era que toda equipe prestasse o atendimento humanizado. A realidade, no entanto, é o medo de ir para um plantão. “As mulheres que tem um pouco de entendimento, dificilmente querem ter bebê com um plantonista por medo”, afirma a estudante. Em prol da humanização do parto, movimentos sociais de mães vem ganhando cada vez mais força. Nas redes sociais já existem vários grupos de mulheres que discutem e dividem suas experiências sobre a gestação e o parto. Rodas de conversa sobre o assunto também acontecem com frequência em Fortaleza. O registro fotográfico de partos humanizados merece uma observação que comprova muito do que se falou até aqui. Sempre é possível ver o protagonismo feminino em um parto humanizado. Elas são o centro de tudo: dos olhares, da assistência médica, familiar e do apoio profissional da doula. O parto humanizado traz com respeito a individualidade de cada mulher.


Foto: Lana Pereira. Capítulo 3 A dor que cala: Relatos de Violência Obstétrica

Ao contrário do que muitos pensam, o parto humanizado não significa "defender o parto vaginal a qualquer custo", e sim permitir que a mulher faça as suas escolhas e seja escutada e respeitada. O parto humanizado não deveria ser algo que a mulher opta, escolhe, ou paga para ter. A humanização do parto, assim como de qualquer outra assistência médica, deveria ser o comum. Não importa se é cesárea ou vaginal, hospital público ou privado. A assistência médica humanizada não deveria ter classe social, cor ou raça. Enquanto o sistema de saúde não se transforma, para ter certeza de que poderão parir com respeito e dignidade, as mulheres continuam pagando por fora. Mas como ficam as que não podem pagar? Até quando sofrerão violência obstétrica? Até quando serão caladas pelos gritos, constrangimentos, machismos, negligências médicas e intervenções desnecessárias?

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Seis mulheres compartilham suas experiências vivenciadas durante o atendimento médico no pré-natal, parto e pós-parto. Os relatos expõem e descrevem situações incoerentes com o atendimento preconizado pelos órgãos de saúde à mãe e ao bebê.


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