ORGANIZADORES Josier Ferreira da Silva Paulo Wendell Alves de Oliveira Sandra Nancy Ramos Freire Bezerra Ana Paula Rodrigues da Costa
Josier Ferreira da Silva Paulo Wendell Alves de Oliveira Sandra Nancy Ramos Freire Bezerra Ana Paula Rodrigues da Costa
Fortaleza, 2021
POVO E TERRITÓRIO Práticas Educativas Relacionadas à Lugares, Memória e Pertencimento no Cariri Cearense © 2021 Copyright by JOSIER FERREIRA DA SILVA, PAULO WENDELL ALVES DE OLIVEIRA, SANDRA NANCY RAMOS FREIRE BEZERRA, ANA PAULA RODRIGUES DA COSTA Impresso no Brasil / Printed in Brazil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Diagramação eletrônica Ravelle Gadelha Revisão Ficou a cargo de cada autor Capa Samuel Quixote e Paulo Wendell Alves de Oliveira Impressão e Acabamento Expressão Gráfica e Editora Rua João Cordeiro, 1285 - Aldeota - Fortaleza - Ceará CEP: 60110-300 - Tel.: (085) 3464-2222 E-mail: arte@expressaografica.com.br
Ficha Catalográfica Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães CRB 3/801-98 S 586 p Silva, Josier Ferreira da Povo e território: Práticas educativas relacionadas à lugares, memórias e pertencimento no Cariri Cearense / Josier Ferreira da Silva, Paulo Wendell Alves de Oliveira, Sandra Nancy Ramos Freire Bezerra, Ana Paula Rodrigues da Costa.- Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2021. 168 p. : il. ISBN: 978-65-5556-222-4 1. Cariri- História e cultura 2. Práticas educativas 3. Cultura e pertencimento I. Oliveira, Paulo Wendell Alves de II. Bezerra, Sandra Nancy Ramos Freire III. Costa, Ana Paula Rodrigues da IV. Título. CDD: 394.26
Este projeto é apoiado pela Secretaria Estadual de Cultura, através do Fundo Estadual da Cultura, com recursos provenientes da Lei Federal n.º 14.017, de 29 de junho de 2020.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ����������������������������������������������������������������������������������8 REMINISCÊNCIAS KARIRI: MARCAS, COSTUMES E ENCANTAMENTOS �������������������������������������������������������������������������11 Sandra Nancy Ramos Freire Bezerra; Simone Pereira da Silva
A “FONTE MIRACULOSA DO CALDAS”, JOSÉ MARROCOS E A PROJEÇÃO DAS PRIMEIRAS ROMARIAS DO CARIRI NUM CONTEXTO DE CONFLITOS ENTRE A ROMANIZAÇAO E FÉ SERTANEJA ���������������������������������������������������������������������������������������� 25 Josier Ferreira da Silva
ARAJARA, BARBALHA, CEARÁ: DAS ÁGUAS LIMPÍDAS ÀS DINÂMICAS BARRENTAS ���������������������������������������������������������������� 41 Cassio Expedito Galdino Pereira
HONRA E VALENTIA NO SERTÃO NORDESTINO: A FIGURA DO SUJEITO CANGACEIRO COMO “CABRA” DO BANDO DOS MARCELINOS NO CARIRI CEARENSE �������������������������������������������� 54 Ana Paula Rodrigues da Costa
O PADRE CÍCERO E AS TENSÕES SIMBÓLICAS ENTRE CATOLICISMO POPULAR E CATOLICISMO ROMANIZADO ���������68 Paulo Wendell Alves de Oliveira
CORPOS QUE CANTAM, REZAM E ENSINAM: PRÁTICAS EDUCATIVAS ENTRE OS PENITENTES IRMÃOS DA CRUZ DE BARBALHA/CEARÁ. �������������������������������������������������������������������������� 81 Cícera Patrícia Alcântara Bezerra
ANCESTRALIDADE INDÍGENA: LUTA E RESISTÊNCIA NAS COMUNIDADES DO DISTRITO DE BAIXIO DAS PALMEIRAS, CRATO – CE ���������������������������������������������������������������������������������������� 93 Francisco Wlirian Nobre
A EDUCAÇÃO PÚBLICA E AS PRÁTICAS CULTURAIS DE ORIGENS AGRÁRIAS AGREGADAS À FESTA DE SANTO ANTÔNIO DE BARBALHA NO CEARÁ. ������������������������������������������������������������������ 108 Désirée de Sá Barreto Dias Gino
PATRIMÔNIO, TURISMO E DESENVOLVIMENTO: O LEGADO DO CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO �������������������������������� 122 Rosiane Bezerra de Oliveira (Dane de Jade)
REFÚGIO DO TURISMO E REFRIGÉRIO DO PATRIMÔNIO: DISCURSOS SOBRE A NATUREZA NO CARIRI ������������������������������137 José Ítalo Bezerra Viana
PAISAGEM, CULTURA E PERTENCIMENTO COMO ELEMENTOS PARA A PROPOSIÇÃO DO MUSEU DE TERRITÓRIO DO CARIRI CEARENSE �����������������������������������������������������������������������������������������152 Paulo Wendell Alves de Oliveira; Josier Ferreira da Silva; Ana Paula Rodrigues da Costa; Cassio Expedito Galdino Pereira
APRESENTAÇÃO A presente obra é produto do projeto denominado “Povo e território: práticas educativas relacionadas a lugares, memória e pertencimento no Cariri cearense”, selecionado através do Edital Prêmio Fomento Cultura e Arte do Ceará – Lei Aldir Blanc, apresentando uma coletânea de artigos de diferentes pesquisadores que se debruçam sobre a Região do Cariri cearense e fazendo um debate sobre os aspectos históricos, culturais, religiosos, agrários, educacionais, museológico e do turismo. Assim, ao trazer a riqueza histórico-cultural, a ancestralidade, o sentido de pertencimento, os movimentos sociais de reivindicação do espaço, as manifestações religiosas, os aspectos voltados ao patrimônio e ao turismo e a defesa da proposição da musealização do território do Cariri, essa coletânea de textos consolida-se como um aporte teórico para a valorização do Cariri cearense, sendo um instrumento pedagógico para professores e pesquisadores da região, no sentido de oferecer uma gama de perspectiva de análise pautada em diferentes áreas do saber científico. Outrossim, aborda a história dos Kariris, destacando a atração realizada pelas condições ambientais existentes na região, de modo que o primeiro texto da obra busca dialogar sobre o processo de formação histórico-territorial do Cariri, evidenciando os diversos fatores presentes nesse processo de ocupação das terras. A análise da nação Kariri perpassa pelos seus costumes, as marcas espaciais deixadas por esses primeiros povos que habitaram a região, trazendo sua mitologia que povoa, até os dias atuais, o imaginário regional. Na sequência, produz-se uma leitura sobre a Fonte do Bom Jesus, situada na no Distrito do Caldas, em Barbalha, interior do Ceará, abordando o movimento das primeiras romarias existentes no Cariri. José Marrocos, inspirado nos ensinamentos e nas obras desenvolvidas pelo Padre Ibiapina, difundiu a fé sertaneja presente no catolicismo popular por meio dos jornais da época apresentando as condições existentes na região, destacando a Fonte do Bom Jesus do Caldas. 8
O processo de formação histórico-territorial-cultural do Cariri também é debatido para ser pensado além da cultura da cana-de-açúcar, apontando para a diversidade e multiplicidade de fenômenos que ocorreram na localidade. Destaca-se, nessa abordagem, o distrito do Arajara, pertencente ao município de Barbalha, como ponto de partida para pensar essa relação espacial, pautado na memória, explanando os diferentes movimentos socioeconômicos e os personagens a estes ligados. Deve-se ressaltar também um aspecto presente em todo sertão nordestino: a honra e a valentia existente no Cariri, com base na atuação do Bando de Cangaceiros dos Marcelinos, discutindo a figura do “cabra”, expressão do linguajar sertanejo e que denota questões históricas e culturais do processo de apropriação territorial do Brasil. Disseminada no imaginário popular sertanejo, a ideia do “cabra” é tratada por uma análise científica para compreender seus desdobramentos espaciais. A religiosidade popular é outra marca cultural do Cariri cearense, constituindo-se em uma narrativa de reivindicação de melhores condições de vida, propagada pela fé e pela luta na terra sem males. Em Juazeiro do Norte, esse movimento encontra na figura do Padre Cícero um líder religioso na defesa do povo e da fé popular, produzindo tensões simbólicas entre a oficialidade religiosa da Igreja e a religiosidade popular sertaneja, estando essa relação espacializada na cidade. Dentre as diversas manifestações religiosas presentes no catolicismo popular, apresentam-se as práticas penitenciais, abordando os saberes e a transmissão oral do grupo religioso de penitentes do Sítio Cabeceiras, em Barbalha. A análise está centrada na permanência e disseminação das práticas ritualísticas religiosas com base no educar pela salvação, para a purificação dos pecados e para a transcendência ao corpo físico. Outra questão de relevância a ser abordada é a potencialidade cultural do Cariri cearense, tendo como ponto de partida a comunidade do Baixio das Palmeiras, verdadeiro patrimônio imaterial da região, expressada em elementos da ancestralidade indígena que se faz presente nos sujeitos habitantes da localidade pela disseminação de hábitos na espiritualidade, nos costumes, em manifestações culturais e no comportamento social do grupo que remonta as tradições dos Kariris. Por tais razões, destacando-se todas essas questões históricas e culturais do Cariri, entende-se a necessidade de ações efetivas de valorização desses aspectos. 9
Nesse intuito, a educação pública apresenta-se como ponto de apoio fundamental para a preservação desse patrimônio e da cultura popular. Entendendo que essas tradições remontam ao contexto agrário, é apresentada uma análise desse contexto posteriormente, focando na relação existente entre escola e comunidade de brincantes com base no reconhecimento da Festa de Santo Antônio como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), debatendo as fragilidades e as potencialidades para a valorização desses aspectos culturais. Seguindo a perspectiva de valorização cultural e as possibilidades de políticas públicas que agregam essas potencialidades, discute-se a relação entre patrimônio e turismo pensando em estratégias de preservação dos aspectos culturais como uma possibilidade, havendo sustentabilidade cultural de cidades históricas. Para ter-se um exemplo no tocante a essa discussão, apresenta-se a localidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, sua potencialidade para o turismo cultural e o fomento ao desenvolvimento local. Compondo a tradição cultural existente no Cariri cearense, somada à condição ambiental encontrada na região, destaca-se a potencialidade cultural para o desenvolvimento do turismo com base na condição ambiental propiciada pela Chapada do Araripe. É pensada a necessidade de suporte para o desenvolvimento desse potencial turístico por meio de políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento da atividade turística viabilizada pela riqueza presente na Chapada do Araripe, considerada patrimônio do Cariri. Logo, a presente obra é finalizada com uma reflexão sobre as potencialidades emancipatórias e de propagação de desenvolvimento local, pela proposição da musealização do território do Cariri cearense. Com base nos aspectos culturais destacados, entende-se o Cariri como um espaço ímpar a recepcionar um Museu de Território, fortalecendo o sentido de pertencimento local, valorizando a paisagem cultural e a subjetividade de seus sujeitos, ao passo que tal ação produzirá desenvolvimento local e sustentabilidade cultural. Convidamos o(a) leitor(a) para uma imersão no universo simbólico, histórico e cultural existente no Cariri cearense ao difundirmos as possibilidades de valorização dos seus sujeitos, lugares, cultura, patrimônio e ancestralidade; esse é um pouco do Povo e do Território Cariri.
10
REMINISCÊNCIAS KARIRI: MARCAS, COSTUMES E ENCANTAMENTOS Sandra Nancy Ramos Freire Bezerra1 Simone Pereira da Silva2
Introdução Localizada no Sul do Ceará, a região do Cariri é formada pelos municípios de Abaiara, Altaneira, Antonina do Norte, Araripe, Assaré, Aurora, Barbalha, Barro, Brejo Santo, Campos Sales, Caririaçu, Crato, Farias Brito, Granjeiro, Jardim, Jati, Juazeiro do Norte, Lavras da Mangabeira, Mauriti, Milagres, Missão Velha, Nova Olinda, Penaforte, Porteiras, Potengi, Salitre, Santana do Cariri, Tarrafas e Várzea Alegre, totalizando uma área de 17.390,30 km². Detentora de características geológicas, paleontológicas, arqueológicas e históricas, e de uma das mais importantes bacias sedimentares do mundo, na qual estão presentes enormes quantidades de fósseis do período cretáceo 1 Doutora em História (UFF), Mestra em História Social (UFC), Graduada em História (CESA/PE), Professora no Departamento de História (URCA), Coordenadora do Programa Patrimonialização na URCA ligado a Pró-Reitoria de Extensão, Integrante do Comitê Intersetorial e bolsistas pesquisadora FUNCAP no projeto de “Elaboração de Dossiê para candidatura da Chapada do Araripe como Patrimônio da Humanidade (UNESCO): natureza, tradição e formação de um território encantado”. E-mail: sandra. nancy@urca.br 2 Doutora em História UFF. Mestra em História (UFPB), Graduada em História (URCA), e bolsistas pesquisadora FUNCAP no projeto de “Elaboração de Dossiê para candidatura da Chapada do Araripe como Patrimônio da Humanidade (UNESCO): natureza, tradição e formação de um território encantado”. E-mail: symonepsilva.historia@gmail.com
11
inferior3, objetos que constituem verdadeiras preciosidades do Araripe, tendo em vista que testemunham a existência de animais e plantas do tempo em que existia apenas um continente no nosso planeta chamado Pangéia. De clima ameno, fontes de águas cristalinas propiciadas pela formação geológica da Chapada do Araripe4, que por ser constituída de arenitos na sua parte superior permite a infiltração das águas das chuvas, que ao se depositarem no solo formam o lençol freático de onde afloram fontes favorecendo a fertilidade do solo e consequentemente a variedade da flora e da fauna. Esta última conta com a presença de espécies endêmicas que estão ameaçadas de extinção, tais como o soldadinho do Araripe (pássaro de penugem preta, branca e vermelha) e o crustáceo de água doce conhecido como guajá do Araripe (KingsleyaAttenboroughi).
Figura 1: Localização da Chapada do Araripe na Região do Cariri. Fonte: COSTA (2020, p.25).
As condições propiciadas pela Chapada do Araripe levaram o pesquisador Irineu Pinheiro no ano de 1950,a estabelecer um comparativo com o Egito. 3 A bacia é considerada berço dos pterossauros, répteis voadores extintos há 65 milhões de anos. 4 Possui relevo tabular, com 180 quilômetros de extensão, variação entre 40 e 70 quilômetros de largura, e altitude que varia entre 800 e 1000 metros.
12
Lê-se em Heródoto que o Egito é um produto do Nilo e egípcios são os que bebem as águas do grande rio. Parodiando o historiador grego, podemos dizer que o Cariri é um presente da chapada do Araripe e caririenses os que lhe bebem as águas das nascentes, as quais, em número de cento e tantas, originaram as cidades do extremo sul do Estado e as têm feito progredir (PINHEIRO, 2010, p.21).
Estas condições de ambiência ocasionadas pela Chapada do Araripe, motivou a atração à região de grupos humanos de várias localidades entre estes os índios da Nação Kariri, também chamada Tapuia5, os quais emprestaram o nome para a referida região. Posteriormente, mais precisamente entre os séculos XVIII e XIX, ocorreu a vinda de colonizadores para fixação no lugar, missionários e viajantes. Estes últimos, atraídos inicialmente pela procura de riquezas naturais, encontraram no território do Cariri, um espaço distinto do entorno e que se tornou motivo de exaltação e de estudo da flora e a fauna. De acordo com Figueiredo Filho (2010, p.6), os índios Kariri são oriundos da Serra da Borborema também conhecida como Planalto da Borborema, elevação que abrange os estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte numa extensão de 400 km de norte a sul. De clima semiárido e índice pluviométrico baixo, uma vez que a serra é uma barreira natural de impedimento de passagem de massas úmidas do litoral para o sertão. A escassez de chuvas permitiu o processo de deslocamento dos nativos que ocorria de forma constante. 5 Termo foi utilizado durante o período inicial de colonização no Brasil para designar as populações indígenas que não falavam a língua Tupi. Conforme Baptista Siqueira (1978, p. 37): “É concepção arraigada e coerente dizer que a Costa marítima do Nordeste estava, a partir do século XVI, ocupada por silvícolas dos grupos que falavam a língua Tupi e seus dialetos- conhecidos como Língua Geral. Quanto, porém, aos indígenas interioranos a questão é bem diversa. Mas os escritores da época (sobretudo os viajantes e cronistas europeus, diante de dificuldades informativas), arrimando-se em dados precários, arrolaram tribos de falas diferentes e variadas, num mesmo esquema que se não baseia na realidade histórica. Aconteceu isto por absoluta falta de comunicações ou quando não pelo desconhecimento total do problema. Adotaram o cognome Tapuia para designar (amplamente) todos os indígenas do interior do País, sobretudo aqueles que eram inimigos dos Tupis da Costa”.
13
Em tempos de seca, segundo sugere Baptista Siqueira (1978, p.56) esses indígenas serviram-se dos leitos vazios dos rios como estradas para suas migrações. Nesse contexto o referido autor também sugere as direções tomadas pelos nativos para escaparem “[...] das áreas onde faltavam as condições de sobrevivência: descendo o Pajeú até a margem do São Francisco, nas proximidades de Sorobabé, Tacuruba e Cabrobó; outra através do leito do Moxotóe, última, seguindo o “riacho da Brígida”” (SIQUEIRA, 1978, p.57).Para tanto,Baptista Siqueira diz que por coincidência talvez nas áreas de concentração das aldeias Kariri,que se estendia do sul do Ceará ao centro da Bahia, nas margens e ilhas do São Francisco e do oeste de Pernambuco às quebradas orientais da Borborema, originaram-se os topônimos Cariris Velhos, Cariris-de-Fora e Cariris Novos. As aldeias em que se agrupavam, eram formadas por várias habitações do tipo pau a pique, construídas com palha de babaçu ecobertas com folhagem nativa ou de palmeira encontradas nas matas da região, dispostas em torno de um pátio onde se realizavam as festas e rituais. Os grupos de altiplano da Serra da Borborema na Paraíba, cuja parte foi depois aldeadas na Missão de Campina Grande, formavam o topônimo Cariris Velhos. Todos aqueles não incluídos nos grupos da Borborema eram os Cariris-de-Fora. Só mais tarde, o topônimo Cariris-Novos foi criado para identificar os grupos que apareciam pelos brejos ao pé da Chapada do Araripe, região que oferecia condições favoráveis a sobrevivência. A história do território caririense é constituída a partir dos primeiros habitantes da nação Kariri, que segundo Thomaz Pompeu Sobrinho apud Figueiredo Filho (2010, p. 7), vieram pelo rio São Francisco, por volta dos séculos IV e V, e aqui se estabeleceram por volta dos séculos IX e X. Para Robert Lowie (1946, p.557), os Kariri do sul cearense habitavam principalmente, as localidades que hoje pertencem aos municípios de Missão Velha, Missão Nova, Barbalha, Milagres e Crato. Áreas em que ainda é possível encontrar vestígios materiais e elementos culturais que remetem a presença desses povos que aqui habitaram.
Usos e Costumes Possuidoras de valor simbólico e identitário, as terras para a nação Kariri eram um meio de sobrevivência e liberdade, onde podiam cultivar suas lavouras de milho, de feijão, de algodão e da mandioca, esta última utilizada no preparo 14
da farinha e do beiju. Alimentavam-se também de mel e frutos silvestres como macaúba, babaçu, pequi, ouricuri, araticum, entre outros. De acordo com Alfonso Trujillo Ferrari (1957, p.29), os Kariri realizavam caça com arco fabricados com as madeiras do espinheiro e pau d’arco, corda de algodão ou caruá e as flechas com pontas dentadas de aroeira branca e o corpo de taquara com empenaduras helicoidais. Na pesca, usavam anzol, rede e armadilhas do tipo cestas em forma cônica. Assim como, outros instrumentos como cavadeira e machados de pedra. Pequenas fogueiras eram empregadas para proteção contra o frio e preparação de alimentos em utensílios domésticos de cerâmica por eles produzidos. Os utensílios eram geralmente enfeitados com desenhos gravados e pintados com detalhes serpentinados, circulares e em retas paralelas conforme cita Padre Antônio Gomes de Araújo (1971, p.138). Sobre este tipo de artefato, o autor utiliza como exemplo as Igaçabas,um tipo de pote que servia como reservatório de água e urna funerária. Estes artefatos foram encontrados no Crato, por operários em 1959, nas proximidades do antigo Cinema Paraíso, imediações da Praça da Sé, e no alicerce da Faculdade de Filosofia do Crato. Na ocasião, J. de Figueiredo Filho que era o então presidente do Instituto Cultural do Cariri – I.C.C., informa sobre os achados e as possibilidades de entendimento que eles geravam para os desconhecedores da história da presença indígena no território: Restam ainda sensíveis vestígios da vida do selvícola por estas paragens. Entre a praça da Sé, berço do Crato, e atual prédio em construção da Faculdade de Filosofia, à Avenida Antônio Luís, de quando em quando se tem encontrado, em escavações de alicerces, igaçabas e mais igaçabas. [...] O trabalhador, ao descobri-las, julga estar diante de uma botija, escondida por ricaço da antiguidade, em sua fuga de lutas armadas constantes. [...] Restam, apenas, daquele tesouro que cobiçavam, em sua vida de pobreza, ossos pulverizando-se, em parte, e cacos de barro, alguns com desenhos bem vistosos. Em todo o vale do Cariri encontram-se colares de pedra, sílex ou machadinhas de índios, aos que o povo chama sempre de corisco. São bem feitos, contornados, atestando assim que seu possuidor já passava pela fase mais evoluída da pedra polida (FIGUEIREDO FILHO, 2010, p. 8).
15
Para Figueiredo Filho, o desconhecimento sobre a história e sobre o que eram as igaçabas e qual a sua função, propiciou associá-las aos relados das ‘botijas’ (potes de argila onde os antigos guardavam tesouros). Segundo Câmara Cascudo, moedas, ouro e prata, para não serem furtados. Esse costume de guardar ouro em botijas levou a crença de que os donos dos tesouros quando morriam, apareciam em sonho para doá-los. O autor acrescenta: Os tesouros dados pelas almas do outro mundo dependem de condições, missas, orações, satisfação de dívidas e obediências a um certo número de regras indispensáveis [...]. O tesouro é encontrado unicamente por quem o recebeu em sonho. [...] Se faltar alguma disposição, ou se houver um erro no processo extrativo, o tesouro transformar-se-á em carvão (CASCUDO, 2002, p. 676-677).
Seguindo nessa perspectiva, é possível que os trabalhadores leigos ao se depararem com a presença dos ossos, tenham pensando que as riquezas estariam encantadas, visto que o conteúdo não teria sido a eles confiadas. Parte dos achados líticos e cerâmicos da região encontram-se nos Museus: Museu do Homem Kariri em Nova Olinda, Museu Histórico do Crato, Museu do Ceará e Museu Rocha, em Fortaleza (MENDONÇA, 2014, p.152). Além dos utensílios cerâmicos, os Kariri também faziam uso da rede para dormir que em certos rituais, servia como lugar onde os mais velhos da aldeia permaneciam para receber suas visitas, seus consulentes e as manifestações pelo nascimento dos filhos (SIQUEIRA, 1978, p. 60). Nesses rituais, as bebidas fermentadas e o cachimbo de pedra talha no estilo incaico como apontado por Figueiredo Filho (2010, p.9), se mostrava indispensáveis por propiciar uma imersão no mundo sagrado. Embora os homens usassem o protetor peniano, no geral andavam nus e nos rituais de festas e guerras pintavam o corpo de preto e vermelho com tinta extraída de plantas nativas. Nestas ocasiões utilizavam “[...] as emplumações com penas de araras, papagaios e periquitos [...] pintavam-se esses ameríndios, de urucu e Jenipapo, segundo consta informações dessas práticas no século XVII[...]” (SIQUEIRA, 1978, p. 49). Para personificar seus mitos em festas e rituais, usavam máscaras confeccionadas em madeira enfeitada com pele de 16
animal. Era também costume entre eles usarem brincos, botoques, colares de pedras, sementes, dentes de animais e ossos (FERRARI, 1957, p.30). Estes nativos expressavam sua arte nas danças, cantos, objetos de cerâmica e criavam seus instrumentos como tambores, flauta e maracás. A música e a dança eram expressões utilizadas para agradecer a natureza, comemorar o plantio e a colheita, as guerras, o nascimento e a morte. Muitos costumes indígenas permanecem até hoje em nossa cultura, inclusive alguns objetos usados por eles continuam sendo utilizados principalmente nas comunidades rurais.
Encantamentos O que sabemos sobre os Kariris bem como a sua presença no território é por meio dos Capuchinhos e dos estudos desenvolvidos por alguns pesquisadores. Os indígenas não fizerem uso da escrita convencional, mas estes antigos habitantes deixaram marcas em algumas cavernas, abrigos e afloramentos rochosos encontradas no sopé da Chapada do Araripe, em forma de gravuras e pinturas nas cores vermelho, amarelo, branco e preto. O acervo pictórico dos vestígios revela aspectos da vida deste povo, são, portanto, fontes materiais de conhecimento do cotidiano, dos rituais, danças, dentre outros. De acordo coma arqueóloga Rosiane Limaverde Vilar Mendonça (2014, p. 215-218), no Sítio de Arte Rupestre Santa Fé, localizado na vertente Norte da Chapada do Araripe, é possível encontrar um pequeno abrigo de arenito vermelho com desenhos e sofisticada técnica de pintar gravuras que são capazes de causar aos nossos olhos um efeito “impressionista”. Segundo a autora, a profundidade visual com que a gravura foi constituída, denota que o lugar de práticas ritualísticas, atuava como um santuário pré-histórico, onde pode-se ver um único símbolo repetido em todo o paredão de forma a evidenciar a notável importância para o grupo, ao mesmo tempo em que apresenta uma narrativa mítica conforme imagem a seguir:
17
Figura 2: Serpente - gravura da Mãe d’Água. Fonte: Rosiane Lima verde (2014, p.222). Foto: João Paulo Marôpo.
De acordo com Rosiane Limaverde (2014, p.221-222), a linha sinuosa é interpretada pelos caboclos da localidade como sendo uma referência a mãe d’água, também chamada por outros de Iara, Sereia e Yemanjá, o que denota a ligação dos índios pré-coloniais com o culto das águas. A interpretação sobre linha sinuosa aparece nos estudos desenvolvidos por Mircea Eliade (2016, p.154) referente a outro povo, encontrada nos vasos neolíticos da cultura de Walterniemburg-Bernburg. Conforme o autor a linha sinuosa significava representação da água. Para ele também existe uma associação da Água com a Lua e a Mulher entre os povos da pré-história denotando a existência de um “circuito antropocósmico da fecundidade”, cuja água assume um papel de matriz de todas as coisas. Além deste do Sítio arqueológico Santa Fé, outros foram localizados e revelam muito sobre alguns rituais de cultos as arvores ou divindades ligadas as arvores como é o caso das pinturas rupestres encontradas no sítio Arqueológico Capim II em Milagres.
18
Figura 3: Representação de um carregamento. Fonte: Rosiane Lima verde (2014, p.385).
Conforme Rosiane Limaverde (2014, p. 311), em suas análises, a referida representação sugere figuras antropográficas unidas por um traço horizontal, como possibilidade de ritual de carregamento de um tronco de árvore que muito se assemelha a celebração do carregamento do Pau de São Sebastião, em Nova Olinda, e do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha. Representações ritualísticas destes cultos também foram encontradas em abrigos na Serra da Capivara no município de São Raimundo Nonato no Piauí. Na localidade, é possível deparar com o painel monocromático contendo uma cena de “[...] homens com seus órgãos genitais eretos, erguendo seus braços como se cultuassem a árvore elevada por um dos seus pares” (SILVA, 2021, p.197). Uma demonstração do culto as árvores presentes entre os indígenas que habitavam o território que hoje denominamos Nordeste. Ainda sobre os achados arqueológicos, e especificamente em Barbalha, outras evidências importantes foram localizadas no Sítio Barro Branco em 2018, no âmbito das ações de pesquisa do Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico (em área do Lote 3 do empreendimento denominado Cinturão das Águas do Ceará – CAC, coordenado pelo arqueólogo Agnelo Queirós por intermédio da A&R Arqueologia, Consultoria e Produção Cultural, financiada 19
pelo Governo do Estado do Ceará, através da Secretaria dos Recursos Hídricos6 ), objetos de adorno do tipo lito-cerâmico (pingentes de amazonita) pré-colonial e que ao serem analisados pelos arqueólogos responsáveis pelos achados foi constatado em resultados parciais, que se tratavam de elementos ritualísticos, característicos da cultura material dos grupos tupi7 que passaram pelas terras onde hoje se situa o município de Barbalha.
Figura 4: Material especial (adorno) esculpido em rocha. Fonte: Acervo PGPA – Cinturão das Águas do Ceará – CAC.
Estes achados carecem de mais estudos e diálogos com outros campos do saber, posto que eles podem revelar mais elementos das experiências e vivências dos Kariris. Contudo se tomarmos os estudos de Figueiredo Filho (2010, p. 6) verificamos que entre esta nação viviam interpostos outros povos entre eles: gê, tupi, fulniê, tarairiú e outros de origem ainda não determinada. Portanto estes achados, tanto podem confirmar a presença Tupi no território em um passado distante, como também pode ser obra dos Kariris como sugerem os folcloristas Câmara Cascudo e Figueiredo Filho (1965, p.12).
Mitologia Na perspectiva mitológica dos Kariris, eles vieram de um lago encantado existente para as bandas do setentrião, conforme prefácio do Cathecismo da 6 A instituição que guarda o referido material é a Fundação Casa Grade e Memoria do Homem Kariri. 7 CEARÁ. Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico: Cinturão das águas do Ceará (CAC). Fase III – Monitoramento e Resgate Arqueológico. Relatório Parcial 5. Processo IPHAN/CE Nº01496.000257/2014-11, 2019, p.1-84.
20
Doutrina Chistã na Lingua Brazílica da Nação Kariri, escrito pelo padre Luis Vicencio Mamianino ano de 1698. A análise desta afirmação feita pelo historiador Capistrano de Abreu, em A Descoberta do Brasil (apud PINHEIRO, 2010, p.8), indica que provavelmente tenham vindo do Amazonas8 e até encontrarem o rio São Francisco, peregrinaram ao longo do litoral tendo sido expulsos da beira-mar pelos tupiniquins e tupinambás portadores da língua geral, e assim internaram-se nos sertões, nos vales fartos e frescos. As narrativas do lago encantado e dos encantamentos presentes no imaginário dos Kariri, encontram fundamento no culto da Jurema. Os índios que habitavam o sertão do Cariri, no Ceará, tinham como lugar de origem uma lagoa encantada (Vapabussu), numa terra que se chamava Itaberabussu. Juram alguns habitantes da região, ainda hoje que já viram a tal lagoa aparecer e desaparecer, como magia. Toda aquela área do Araripe era um reino, com terras fartas de ouro e riquezas naturais, comandado por um rei chamado Manatá e sua rainha Jurema. Um encantamento fez com que todo o reinado se transformasse em pedras, e Manatá e Jurema transformaram-se em plantas. O mito do encantamento do reinado em pedras constitui a cosmogonia Cariri e tenta explicar, de forma lúdica, os fósseis encontrados pelo Araripe, assim como as nascentes pela mata e as formações rochosas daqueles arredores (COSTA, 1999, p. 33).
Outras narrativas falam de castelos encantados que aparecem e desaparecem como um passe de mágica, narrativas que estão presente até os dias atuais no imaginário de muitos moradores da região, manifestadas em lugares sagrados espalhados por todo vale que contorna o Araripe. O imaginário entendido 8 As evidências da probabilidade de terem estes nativos vindo do amazonas, é realçada em Baptista Siqueira a partir dos estudos de Lorenzo Hervá que diz ter encontrado semelhanças léxicas do idioma Kariri com o falado pelos Tamanaco do Rio Orinoco, Venezuela e também, acrescenta às especulações sobre a origem desse povo no Amazonas, posto que informações vindas de Carlos Studart Filho (apud COSTA, 1999, p. 23), os Kariri fabricavam um tipo de cerâmica rudimentar, semelhante a de algumas tribos amazônicas, moldada na base e enrolada por cima.
21
como componente do mundo real, presente no cotidiano que atravessa todas as representações e experiências da sociedade, contribuindo para organização de formas de viver e de pensar (SILVA apud BEZERRA, 2011, p. 26). Para os nativos da nação Kariri, os fósseis, as nascentes e as formações rochosas eram explicadas pelo mito do encantamento do reino das pedras. Além das pedras e águas, as matas também possuíam significados especiais pois acreditavam serem povoadas por espíritos o que os levavam a respeitar a natureza, só retirando dela o necessário para sobrevivência de suas famílias. Muitos elementos da cultura desses povos, sobrevivem em diversas práticas cotidianas e na constituição do imaginário dos sertanejos e remanescentes destes povos aqui existentes.
Considerações finais Este breve histórico apresenta as reminiscências Kariri na região, o legado cultural e material de um povo presentes nos vestígios arqueológicos, no imaginário, nos hábitos, nos ofícios, na relação com o meio natural e nas práticas religiosas que muitas vezes se apresenta como resultado de crenças justapostas. Nesses aspectos culturais o ser humano moderno traz dos antepassados, tanto na forma de cultura oral como da letrada, marcas do passado que tende a ressurgir por vezes no presente, em feições novas, mas que ainda assim, tende a manter viva a memória de um grupo.
Referências ARAÚJO, Pe. Antônio Gomes de. A Cidade de Frei Carlos. v. I. Crato: Faculdade de Filosofia do Crato, 1971. BEZERRA, Sandra Nancy Ramos Freire. Oralidade, memória e tradição nas narrativas de assombrações na região do Cariri. Dissertação de Mestrado em História. Fortaleza, 2011 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 11 ed. São Paulo: Global, 2002. CEARÁ. Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico: Cinturão das águas do Ceará (CAC).Fase III – Monitoramento e Resgate Arqueológico. Relatório Parcial 5. Processo IPHAN/CE Nº01496.000257/2014-11,2019, p.1-84. 22
COSTA, Ana Paula Rodrigues da. Lugar e memória: narrativas da trajetória do bando dos Marcelinos em Barbalha - CE. Dissertação de Mestrado em Geografia. Goiânia: UFG, 2020, 210 f. COSTA, Pablo Assumpção Barros. Anicete: quando os índios dançam. Fortaleza: UFC/ Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia, 1999. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Trad. Fernando Tomas, Natália Nunes, 5 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016. FERRARI, Alfonso Trujillo. Os Kariri, o crepúsculo de um povo sem história. São Paulo: Publicações avulsas da Revista de Sociologia. n. 3, 1957. FIGUEIREDO FILHO, J. de. “A razão do nome Hyhyté”. In: Hyhyté. Revista da Faculdade de Filosofia do Crato, ano I, vol. II, n.2. Crato, 1965. FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. v. I, (Fac-símile da edição de 1964). Coedição Secult/Edições URCA.- Fortaleza: Edições UFC, 2010. LOWIE, Robert H. The Cariri. In: Handboolof South American Indians, v. 01, Washington, 1946, p. 557-559. MAMIANI, Luis. S.J. Catecismo da Doutrina Christãana LínguaBrasílicada NaçãoKariri. Composto Pelo P. LUIS VINCENCIO MAMIANI, da Companhia de JESUS, Missionário da Provincia do Brasil. Lisboa, Na Oficina de MIGUEL DESLANDES, Impressor de Sua Majestade. Com todas as licenças necessárias. Anno de 1698. MENDONÇA, Rosiane Limaverde Vilar. Arqueologia Social Inclusiva: a Fundação Casa Grande e a Gestão do Património Cultural da Chapada do Araripe. Tese de Doutorado em Arqueologia. Portugal: Universidade de Coimbra, 2014. NANTES, Frei B. de. Relato da missão dos índios Kariris do Brasil, situados no Grande Rio São Francisco, do lado sul 7° (graus) da linha do equinócio. Tradução de Gustavo Vergetti a partir da leitura diplomática de Pedro Puntoni. 23
12 de setembro de 1702 (versão portuguesa da parte introdutória do manuscrito em francês - DzubuKuá (microfilmado). ______. Katecismo índico da língua Kariris. Lisboa: Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1709, 363p. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/ handle/1918/00277600. Acesso em: ago. 2011. PINHEIRO, Francisco José. “Mundos em Confronto: povos nativos e europeus na disputa pelo território”. In: SOUZA, Simone de (org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007, p.17-55. PINHEIRO, Irineu. O Cariri. Coedição Secult/Edições URCA; Fortaleza: Edições UFC, 2010 (Fac-símile da edição de 1950). SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2008. SILVA, Simone Pereira da. Festa de Santo Antônio de Barbalha: usos do passado no século XXI. Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro: UFF, 2021. SIQUEIRA, Baptista. Os Cariris do Nordeste. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Editora Cátedra Ltda., 1978.
24
A “FONTE MIRACULOSA DO CALDAS”, JOSÉ MARROCOS E A PROJEÇÃO DAS PRIMEIRAS ROMARIAS DO CARIRI NUM CONTEXTO DE CONFLITOS ENTRE A ROMANIZAÇÃO E FÉ SERTANEJA Josier Ferreira da Silva9
Introdução O presente artigo resulta de uma abordagem de pesquisa sobre José Marrocos como coadjuvante da obra Missionário do padre Ibiapina no século XIX. Nele, foi recorrida uma historiografia regional a partir de uma especificidade de abordagens de jornais da época em sintonia com obras de autores que focam a relação do catolicismo no contexto do semiárido. A abordagem de vivência a fé religiosa católica dos sertanejos amparada na ação missionária do Padre Ibiapina, difundida pelo intelectual e professor José Marrocos se constitui ponto de apoio para o investimento de pesquisadores que buscam o entendimento da construção histórica e cultural da região do Cariri, orientada pelo catolicismo que ganha uma projeção sertaneja e, que não raro é conflitante com a romanização da Igreja. Nestas condições autores tem projetado seus textos que se 9 Doutor em Educação Brasileira, Licenciado em Geografia, Licenciado em Historia, professor do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri e do Mestrado Profissional em Educação – MPEDU da Universidade Regional do Cariri – URCA. Integrante do Centro Pró-memória Josafá Magalhães e da Escola de Saberes de Barbalha – ESBA.
25
materializam em artigos, livros e matérias jornalísticas que em diferentes épocas buscam elucidar fatos e melhor entender a identidade sociocultural do Cariri.
A fé e a fonte do Bom Jesus propagada por Marrocos Um dos fatores históricos de reação da Igreja Romanizada ao trabalho missionário do Padre Ibiapina no Cariri cearense, junto ao povo, está relacionado a pratica da fé, inspirada no catolicismo popular, fundamentada no pagamento de promessas e romarias. Essas práticas católicas se projetam na região do Cariri a partir da cura de uma enferma numa das fontes localizadas na encosta da chapada do Araripe, e que fora atribuída como milagre, sob a mediação religiosa do Missionário. O padre Ibiapina, sinalizando a dimensão terapêutica das águas das fontes do Caldas, na encosta da Chapada o Araripe, em Barbalha, havia aconselhado banhos a uma senhora, em uma de suas fontes, na intenção de contribuir com a superação do seu problema de saúde. A cura da enfermidade da senhora, interpretada como milagre, fez outros devotos recorrer à fonte como alternativa divina para os seus problemas de saúde, e que também, conseguiram se curar. José Marrocos, na condição de teólogo jornalista, teve um papel preponderante no fortalecimento da fé católica a partir desses fatos, ao publica-los e propaga-los de forma intensiva através do seu Jornal A Voz da Religião, até chegar ao conhecimento do episcopado romanizado. A partir de então a Igreja, através do Bispo Dom Luis, orientado pela romanização intervém no sentido de impedir a continuidade do trabalho missionário de Ibiapina o Cariri cearense. As grandes e repetidas maravilhas que se vão dando todos os dias na nascensa do Caldas não devem ficar em silencia ou antes apregoadas somente pelos beneficiados. A VOZ DA RELIGIÃO, que tem a missão de levar às localidades mais remotas a doutrina e os prodígios effeitos do Homem de Deus, deve tão bem ser o écho das maravilhas que se operão em seu nome saiba pois o mundo inteiro qye Deus querendo estabelecer o credito do seu servo, o Padre Ibipaina e fortalecer entre os povos do Cariri-novo as verdades da fé já moribunda e próxima a desaparecer, fez surgir o argumento irrespondível do milagre.A fonte do Caldas, na freguesia
26
de Barbalha, comarca do Crato, Província do Bispado do Ceará é actualmente o objeto de respeito e veneração dos fieis, da admiração dos ímpios, e da confusão dos incrédulos e materialistas que por mero capricho querem negar a Deus. Vejão todos elles as provas, e se não creem, venhão ouvir dos beneficiados a narração destes prodígios, e presenmciar os factos que não se contestão. Narremos os factos em face do depoimento das suas testemunhas oculares. Luzia Pesinho, parda, casada, moadora, na vila de Barbalha, paralytica das pernas a 3 annos pede que levem à prezença do Rm° Missionário. Bno dia 20 de junho de 1868 vê realisado o seu desejo e cahando-se ap encontro do Missionário Cearense, JOZE ANTONIO DE MARIA IBIAPINA que lhe passava na porta, roga-lhe com a mais viva instancia que lhe ensinasse remédio de seu mal. – Eu nõo sou médico de corpo, lhe diz o reverendo Padre Mestre, o meu ministério é curar almas. – Ah! Meu santo Padre, ensie-me, lhe retorquio Luzia, sim. Ensine-me o que quizer; eu tenho fé de ficar boa. – Pois bem mulher, va tomar 3 banhos na fonte do Caldas ao sahir do sol. Luzia creu, foi ao lugar indicado no meio de uma carga e acompanhada do marido que tão bem sofria de uma hérnia. Ambos forão ao banho e voltarão bons. (...)Luzia acompanhou o Missionário durante 3 mezes de missão, apregoando em toda parte o milagre de sua cura. A vista deste facto incontestável ao lugar, o povo tem corrido à fonte e recebido curas importantes. Dois aleijados lá deixaram as muletas! É verdade que muitos tem voltado no mesmo estado em que forão, por que também é verdade que não se deve dar aos cães o que é dos filhos de DEUS. E com effeito, todos os que com fé em DEUS confessão suas culpas, deixão o pecado e vão à Fonte das Aguas, tem se curado. (A VOZ DA RELIGIÃO, Ano I, n° 02, 1868, p. 03.).
Nessa conjuntura, a igreja católica passava a resistir a prática religiosa do catolicismo exercido por padres identificados diretamente com o povo, bem 27
como com a sua participação no campo político. Características inerentes à vida do Padre Ibiapina, que, alem de se identificar com em suas obras com a comunidade sertaneja, havia exercido o cargo de senador do império. As graças das curas das enfermidades eram exaltadas na redação jornalística de José Marrocos, onde o jornal propagava as curas de enfermidades que se realizavam a partir do banho nas águas da fonte miraculosa. Esses fenômenos provocaram o surgimento das primeiras romarias no Cariri, onde centenas de pessoas, das mais variadas partes do Nordeste brasileiro, se dirigiam para localidade do Caldas, na busca de cura de suas enfermidades, ou para pagar promessas ao Bom Jesus pelas graças já alcançadas. Outro fato, fortalecendo a dimensão da fé popular, correspondente a um incêndio em um dos galpões de palhas erguidos para hospedar os romeiros na localidade, que apesar da sua proporção, não queimou a capela anexa, apenas deixando suas palhas do teto pretas. Essas romarias decorrente da chamada fonte miraculosa contribuíram financeiramente para as obras do Padre Ibiapina, especificamente para a casa de Caridade de Barbalha. A casa de Caridade não aceitava dinheiro em espécie, exceto os decorrentes das doações dos romeiros do Caldas, conforme escrito do seu diretor Pedro lobo de Menezes, ao redator do jornal, Jose Marrocos. “Devo dizer que nem uma esmola tem a Casa recebido em dinheiro a exceção dos que os peregrinos tem dado ao CORAÇÃO DE JESUS na fonte do Caldas”. (JORNAL A VOZ DA RELGIÃO: ANO I, 1969, n° 25, p. 2). Dessa forma fica uma identificação dos Romeiros do Bom Jesus, do Caldas com a espiritualidade da Casa de Caridade de Barbalha, cuja capela, se incluía no mesmo roteiro religioso dos devotos. A expressividade na conjuntura religiosa da época, marcada pelas romarias derivadas das curas junto à fonte considerada miraculosa, interagia com a religiosidade expressa na casa de Caridade, que era contemplada com doações dos romeiros. Condicionada pela facilidade de composições musicais viabilizadas pela musica do Internato, o movimento religioso da época inspirou a criação do Hino religioso aos Santos peregrinos que se deslocavam para a Barbalha. CÂNTICO AOS SANCTOS PEREGRINOS Padroeiros da Capela da Caridade da Vila de Barbalha Aos Ireis Perigrinos Vimos cantar mil louvores 28
Porque são de Caridade Nosso Santos protetores Salve, ó Filho e Paes Divinos, Que com desprezo profundo Para nos deixar exemplos, Vivestes pobres no mundo Que despresoso, que sofrestes! Que crueldade ó meo DEUS! Com vosso povo, os Judeus! D’um tyrano perseguidos, Em pátria alheia vivendo, Fomes, sedes, sóes e frios, Como nós, (?)íeis soffrendo! Assim mostrastes, Senhor, Que esta vida é despresivel Que só na pátria celeste Há ventura immarecessivel (?) Por isso para instruir-nos Vindes cononsco habitar! Fasei, que por vosssa graça Vos poçammos imitar. Que a fome e a miséria Na pobreza e n’aflição Não se abata, e só a voz ame Nosso frágil coração. Que a vossa companhia Tenhamos ventura igual, D´eternamente louvar-vos Na Pátria celestial! 29
Que com os Anjos e Sanctos Fasendo coro tão bem Cantemos vosso luvores Por séculos sem fim: amem. Marrocos interpretava e publicava as curas das enfermidades como intervenção divina mediada pelo padre Ibiapina, contemplando o propósito religioso do Jornal A voz da Religião, de se constituir porta voz da divulgação da graça de Deus sobre os homens. Numa sociedade onde a Igreja combatia e percebiam o mal, como expressão do pecado, a palavra e pregações de Ibiapina passavam a se materializar na interpretação religiosa da graça das curas das enfermidades junto a fonte miraculosa. A doença, na concepção religiosa, ganhava duas dimensões uma, corporal e outra espiritual, onde, nesta última, a religião e a pregação se constituíam como alternativa para a sua cura. A condição de ser o jornal, se reivindicar como porta voz da palavra de Deus, justifica a intensidade de artigos, pelo redator, relativos às curas de doenças numa interpretação religiosa, espiritual. Torna-se a expressão mais forte de se exemplificar a presença e a ação de Deus entre os homens, mediada pelo missionário, que já tinha o seu reconhecimento pelas obras caritativas implementadas nas localidades do Cariri.
Do Caldas a Juazeiro: Marrocos continua divulgando milagres A reação da Igreja Católica ao Padre Cícero se contextualiza nas suas ações políticas para consolidação da sua romanização. A formação teológica e intelectual de José Marrocos se constituía ponto de preocupação por parte do episcopado, ao fazer a defesa do milagre da hóstia, em contraponto à posição da Igreja oficializada. Ao abraçar a causa dos pretensos milagres de Juazeiro, a partir de 1889, foi testemunha ocular dos fenômenos da hóstia que se transformou em sangue, por mais de dois anos, acreditava neles como fatos sobrenaturais e permaneceu ao lado do Padre Cícero e da Beata Maria de Araújo, ora como conselheiro, ora como secretário na emissão de documentos para Roma, editor de notícias para os jornais nordestinos e do sul, ora como co-
30
mentarista sob pseudônimo, ao criticar os atos de Dom Joaquim José Vieira. Na época, ficou famoso o folheto de sua autoria intitulado Machadinha de Noé, ainda nos velhos arquivos de pessoas do Cariri. (...) À época da questão religiosa de Juazeiro, José Marrocos esteve sob a mira da ira do bispo Dom Joaquim e seus seguidores, por não ter se acovardado e propagar sua crença nos milagres bem como em ter guardado a caixa onde permaneciam os panos ensangüentados das hóstias consagradas, ameaçada pelo diocesano para ser queimada com o conteúdo. Marrocos, crendo serem aqueles panos, relíquias preciosas, esconde-os até sua morte, na certeza de que eles seriam a maior prova, no futuro, para o julgamento fiel daqueles fatos. Isso custou-lhe grandes insultos após sua morte, ocorrida a 14 de agosto de 1910. (BARBOSA, Apud, CASSIRIO & VALKER, 2005, p. 96)
Essa posição de Marrocos é amparada em leituras acadêmicas, no sentido de fortalecer as suas convicções religiosas relacionadas ao milagre de Juazeiro do Norte. A recorrência ao campo da química a partir de obras utilizadas como leitura para desvendar a interpretação dos fatos relacionados ao considerado milagre de Juazeiro, se apresenta no campo historiográfico como objeto de discussões, sobre o envolvimento de José Marrocos no fenômeno do surgimento do sangue na boca da beata Maria de Araujo após o recebimento da comunhão pelo padre Cícero. Neste contexto, a dimensão intelectual de José Marrocos, tem sido utilizada contra ele nas interpretações dos que tem reagido deforma política e pessoal ao padre Cícero. Exemplificando esse cenário, alguns livros de José Marrocos, que pudessem fortalecer as ideias no campo político e religioso, favoráveis a credibilidade do suposto milagre e à emancipação de Juazeiro, deixaram de ser arrolados no seu inventário, pelo Juiz do Crato. Entre eles, os manuscritos, em três volumes, do livro que José Marrocos estava escrevendo sobre o Cariri, intitulado a Apontamentos para a História do Cariri, O Brasil Pré-Histórico, de Padre Ulisses Penaforte; A Índia Cristã, de Moisés Pinto de Campos; Os Mistérios do Precioso Sangue de N. S. Jesus Cristo, editada de Lisboa e A Questão Religiosa do Juazeiro, teologicamente discutida por José Marrocos. 31
Como se percebe, além de leitor José Marrocos, era dotado de excelente capacidade de redação jornalística e investia na produção historiográfica, tendo como objeto de análise a região do Cariri, onde, na condição de agente histórico, interpretava os fatos ocorridos no campo político e religioso. Essa literatura seria de grande importância para a história regional, considerando a interpretação de um militante contemporâneo na análise dos fatos significativos que evidenciaram a região no cenário político e religioso nacional e internacional. Contudo, o teor do conteúdo político e religioso, considerado desfavorável às pretensões políticas adversárias acusa de autonomia e a propagação dos fatos religiosos de Juazeiro, podem ter sido a origem de constituição de forças contrárias a circulação das ideias do Professor José Marrocos através de suas obras. Justificando a ausência desses livros, no arrolamento, denunciada pelo Jornal, O Rebate, o Juiz Dr. Raul de Sousa Carvalho, justificava (no mesmo órgão de imprensas) que “tais livros haviam sido entregues ao vigário do Crato, Mons. Quintino, que por sua vez, os remetera a D. Joaquim José Vieira”. (apud CASIMIRO& WALKER, 2005, p.80) Sendo que nesse contexto deve-se considerar o acirramento político e religioso entre Juazeiro do Norte e Crato, condicionado pela causa da autonomia política e pela resistência da Igreja Católica aos fatos do “milagre da hóstia” envolvendo o padre Cícero e a beata Maria de Araujo. O juiz também afirmava a existência de outro livro que integrava o acervo do professor José Marrocos. Tratava-se de um livro em Frances, que na opinião do Juiz, ensinava a fazer “imitação de sangue”, numa perspectiva de comprometer a credibilidade das versões da transformação da hóstia em sangue, nos fatos que passavam a dá destaque ao Juazeiro no cenário religioso, em nível mundial. Deve-se considerar que alem deste livro, uma caixinha de madeira na qual se encontravam os panos ensanguentados relativos ao fenômeno do sangramento da boca da beata após receber a comunhão, também, haviam sido entregue ao prefeito de Crato, Cel. Antônio Luiz Alves Pequeno. Na discussão acadêmica, a falta de título do livro tem levado à suposição de que se trata do livro, ´Précis D´Analyse Chimique, que juntamente com outras obras integrava o acervo utilizado por José Marrocos na intenção de identificar a origem do sangue gerado na boca da beata ao receber a comunhão, e não de livro sobre tinturação de tecido, como se supunha. Na defesa dessa hipótese BARROS afirma que Observando-se as datas acima mencionadas, pode-se afirmar que o estudo desses fenômenos é feito após os
32
milagres... A se aceitar a hipótese de Marrocos ser o dono do livro de química da biblioteca, pela data da publicação dele, realmente ele só teria se interessado por essa matéria após a classificação dos milagres como embustes... Os autores que afirmam com convicção que Marrocos tinha um livro de ´fazer sangue` se baseiam na informação do Dr. Alfredo Teixeira Mendes, Juiz de Direito aposentado que foleou o livro de química encontrado entre os pertences de Marrocos. Constatou ´que era escrito em francês, de autor francês, encadernação luxuosa de cor vermelha e editado em Paris`. Infelizmente o referido Juiz não cita o título do livro, nem autor, nem data de publicação. Seria o mesmo ´Précis D´Analyse Chimique` já citado? As características descritas são as mesmas. Se nossa hipótese for verdadeira, o livro tendo sido editado em 1903, realmente serviria para Marrocos examinar a procedência do sangue dos panos e não para ´tinturar os panos`, como afirmam Padre Gomes e os autores que exploraram esse filão de informações.” (Apud, CASSIMIRO & WALKER, 2005, p. 81)
O fortalecimento do catolicismo popular x Romanização A romanização caracterizada pelo fortalecimento institucional da Igreja Católica, centrada na autoridade do papa, em nível mundial, para compensar a perda de território decorrente da formação do Estado italiano, implicava num redimensionamento das ações eclesiásticas, sobretudo na relação do clero com a população e a superação das praticas católicas populares herdadas pelo catolicismo colonial. Neste cenário, as ações missionárias do Padre Ibiapina se confrontavam com as novas aspirações do episcopado romanizado, considerando a sua articulação com o povo e o incentivo às suas práticas penitenciais. Deve-se esclarecer sobre a prática da penitência como uma característica da fé cristã presente entre a população sertaneja do Cariri, representada por grupos de camponeses, que rezavam e se autoflagelavam como forma de purificação dos pecados e recorrência à Deus para livra-los das desgraças que os 33
afligia, tais como, a propagação da fome e as pestes nas comunidades sertanejas. Esses grupos de penitência no Cariri tem representação nas Irmandades de Penitentes, existentes na região, antecedentes à da chegada do padre Ibiapina, que ao contrário da concepção preconceituosa das elites contra eles, têm a sua pratica de catolicismo penitencia bem acolhida e recepcionada por este Missionário. Tais grupos eram repudiados pelas autoridades, que os acusavam e prática de furtos por ocasião de seus rituais de penitencia. Demonstrando uma posição de resistência e preconceito da sociedade da época em relação aos penitentes, citamos textualmente o artigo publicado pelo O ARARIPE. OS PENITENTES – Fasem dois ou três anos. Que aparecerão, em grande numero, nesta freguesia, grupo de penitentes, que percorrião, noites inteiras, diversos sítios, e algumas veses chegarão a invadir a Matris desta cidade, onde executavam uma scena bruslesca e sinistra. Na beira da estrada e em outros pontos, levantarão cruses, em redor das quaes executavam o programa entre elles concertado, e destes lugares passavão às estradas publicas, de huns para outros sítios. Os proletários engrossarão esses grupos, e com pouco vio se a fregusia infestada de uma associação temível. Os proprietários estremecerão, julgando seus bens à mercê desses aventureiros, no numerodos quaes havião malfeitores pública; e defeito pouco tardou q ‘ diversosos ladrões methanmorphosiados em penitentes, praticaram desatinos. Os grupos, ao passarem à noite por alguns sítios, furtavão o que encontravão: as próprias galinhas erão arrancadas dos poleiros, eo furto de cavallos se fes em grande escala. Effetuandose algumas prisões em membros dessa associaão por furtos commetidos, erão-lhes achados cachos d’ deciplinas. A imoralidade dos grupos subio a ponto que o povo sem fazer destinções os qualificou de Serenos. (...) mas afinal o bom senso e alguns exforços da policia, fiserão desaparecer esses grupos de vandalos, q ‘ recolherão se às suas espeluncas cobertos de maldições; para hoje voltarem como q ‘ para experitarem a opinião publica; pois q ‘ somos informado por pessoa de todo credito, q ‘em diversos pontos desta
34
freguesia, principia a funcionar tal associação de penitentes, sendo q ‘ o furto vai igualmente apparecendo em maior escalla do que anteriormente: si, o mal não for com o tempo remediado, teremos de ver reprodusidos os famosos feitos dos antigos Serenos. (...) Confiamos que a policia tomará em concideração o q ‘levamos de narrar, adaptando medida que evitem a reprodução de actos q ‘ depõem contra a civilização. Convidamos a policia para a leitura da seguinte interessante! (Ano III, n° 142, 1858, p. 01)
O Padre Ibiapina Ibiapina, religiosamente contrariado as concepções preconceituosas da sociedade e da Igreja romanizada em relação aos penitentes sertanejos organizados em suas irmandades religiosas, fortalece junto a eles essa pratica católica. O Sítio Cabeceiras em Barbalha - CE se evidencia como uma das localidades mais atingidas pela epidemia da cólera, ocasionando a concentração de camponeses organizados na pratica de orações e penitência, num ritual de objetivava afastar a Cólera Morbu. Cholera – no ultimo domingo fallecleceo ainda na villa de barbalha um pobre pai de família victima desta epidemia, e diversoso outros casos tem sido observados em diferentes localidades do termo, seno que no lugar cabeceiras, onde o primeiro se desnvolvera, reappareceo com novo furor, fasendo novas victimas. (Ano VI, n° 289, p. 2)
Nesta localidade de Barbalha, no Ceará, Ibiapina teve interferência missionária, onde foi construído cemitério para os mortos pela epidemia e onde se estabelece por século a Irmandade dos Penitentes Irmãos da Cruz, apontada, por Joaquim Mulato, Decurião da ordem, como uma organização criada pelo Missionário. A Irmandade da Cruz foi butada por Padre Ibiapina. Foi ele que estendeu essa religião aqui, que o Papa deu a eçe esta ordem para estender aqui no Brasil. Ela veio da Igreja, ela é de dentro da Igreja. Se souber fazer. Agora se não souber, ta perdido também. (Apud, CARVALHO, 2011, p. 120) O surgimento de grupos de penitentes eram fortemente combatido, cabendo ao Padre Pedro Ribeiro Castro, vigário de Barbalha, acusações de 35
legitimação das praticas de autoflagelo, movidas, especialmente por parte dos seus opositores políticos. ...Ao meio dia em ponto encontra-se bandos cofusos de homens descalsos e meio-nús, que, que cantando alto e descompassado se rasgão as carnes com desciplinas! Que desordem, que assuada é esta, perguntão os estranhos aos costumes da parochia? São os penitentes, que se açitavão, porque o cholera estava para vir, e agora se açoitão, porque não teem o que fazer. Fasem com licença do parocho. (O ARARIPE, Ano VI, 291, 1862, p. 2)
As estatísticas abaixo revelam o cenário marcado pela manifestação da epidemia de Cólera no Cariri enfrentado o padre Ibiapina com a colaboração de autoridades das localidades onde ele atuou, como o Tenente João Caetano pereira, em Crato e O juiz Municipal Antônio Manuel Sampaio, em Barbalha. Localidade
Óbitos (Dados da Delegacia)
Óbitos Dados do Jornal o Cearense
Crato
749
1.100
S’ Anna
209
-
Barbalha
147
200
Jardim
469
500
Missão Velha
25
26
Milagre
200
120
Tabela 1: Mortalidade pela Cólera. Fonte: Jornal o Araripe n° 287, p. 2 (Elaborado pelo autor)
Não obstante aos anos de temor da possibilidade da epidemia na região, a cólera chegou ao Cariri em 1862, levando a óbito um percentual considerável da população da região de todas as classes sociais. Entre eles protagonistas políticos e intelectuais e pessoas socialmente conhecidas do Crato e de outras vilas, tais como o Pai do Padre Cícero Romão Batista e padres João Telles Marrocos, pai do Professor José Marrocos, a quem o padre se negou a dar a sua extrema-unção temendo a contaminação. Quando todas as partes nos ameaçava a epidemia do cholera-morbus, esse enigma terrível proposto à huma-
36
nidade, quantas veses não perdemos a esperança de um dia voltar a este posto, sobrevivendo à tamanha calamidade? E quanto é temerosa a solidão que reina em torno de nós! O monstro cruel devorou centenas de amigos, tão caros, como necessários, e é immenso o vácuo que deixou, assim nas famílias, como nas fileiras das políticas. Esta recordação é muito incomoda. (O ARARIPE, Ano VI, nº 285, p. 1)
Tendo perdido o pai pela cólera, José Marrocos adotou o cemitério dos coléricos como um dos seus espaços de oração, onde ao pé do túmulo do pai rezava piedosamente, junto com eles, pelas vítimas da epidemia que assolou a região de 1862 a 1864. Solicitava sempre orações pela alma do seu pai, como enfatiza MACEDO Ao Todo Poderoso entregou o espírito o padre João Marrocos na manhã do dia 2 de julho de 1862. Quem isto ler, ou ouvir ler, reze pelo amor de Deus, reze um Padre-Nosso e uma Ave-Maria pelo repouso eterno do finado de saudosa memória. Estas palavras estão no livro de orações composto por José Joaquim, já homem maduro, muitos anos depois da morte do pai. É um pequeno caderno, capa de couro de veado, com duas cruzes singelamente desenhadas, a que o autor intitulou, a letra minúscula e firme – Caminho do Céu para gôzo da vida eterna. (Apud MACEDO & WALKER, 2005, p. 117).
Não obstante os esforços empreendidos pelo governo provincial, de deslocar para o Cariri, médicos integrantes da comissão de verificação do estado sanitário do sul da província, somados aos esforços de autoridades locais para atenuar o problema, a epidemia vitimou centenas de pessoas, encontrando, pelas faltas de condições higiênicas relacionadas aos recursos hídricos um ambiente favorável para a sua propagação.
Referências ALENCAR, Odálio Cardoso. Origens do Cariri. – Parte I – Fortaleza: Gráfica continental, 1988. 37
ARRUDA, João & CASIMIRO, Antonio Renato Soares de (Org.). - Anais do Seminário 150 anos de Padre Cícero. Fortaleza: RCV Gráfica e Editora, 1994. ARAÚJO, José Carlos Souza. A Igreja Católica no Brasil: um estudo de mentalidade ideológica: (1890-1922). São Paulo: Paulinas, 1986. ARRUDA, João. Padre Cícero: Religião, Política e Sociedade. Fortaleza: Editora INESP, 2002. A Voz da Religião. Disponível em: <http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/ voz-da-religi%C3%A3o>. Acesso em: 14/ abril de 2013. AZEVEDO, Dermi. A Igreja Católica e seu papel político no Brasil. Dossiê Religiões no Brasil. In: Estudos avançados. São Paulo, vol.18 n°52, Sept./ Dec. 2004. AZZI, Riolando. Catolicismo Popular e autoridade eclesiástica na evolução histórica do Brasil. Religião e Sociedade. n° 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. BARBOSA, Geraldo Menezes. 150 anos de José Marrocos. in: CASSIMIRO & WALKER, (Org). José Marrocos, de Libertador de Escravos a divulgador de milagres, 2005. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A terra da Mãe de Deus. Coleção Ensaio e Crítica. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A./minC/ Pró-Leitura-Instituto Nacional do Livro, 1988.. ______ Canudos, o Registro da Violência. Disponível em: <http://www.portfolium.com.br/Sites/Canudos/conteudo.asp?IDPublicacao=73> Acesso em: 18 Jul. 2007. BARBOSA, Walter de Menezes. Padre Cícero, pessoas, fotos e fatos. 2ª. Ed. Fortaleza: Editora, IMEPH, 2011. BORGES, Raimundo de Oliveira. O padre Cícero e a Educação em Juazeiro. Fortaleza: ABC Editora, 2004. 38
BRÍGIDO, João. Apontamentos para História do Cariri. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. BROD, Brenno. Et. all. História da Igreja no Brasil (ensaio e interpretação a partir do povo) – Segunda Época. A Igreja no Brasil no século XIX. Petrópolis. Vozes, 1980. CARVALHO, Anna Cristina Farias de. Sob o Signo da Fé e da Mística (Um estudo das irmandades de Penitentes no Cariri Cearense. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011. CASSIMIRO & WALKER, (Org). José Marrocos, de Libertador de Escravos a divulgador de milagres. 2005. DELA CAVA, Ralf Della. José Marrocos – Esboço Biográfico: in CASSIMIRO & WALKER, (Org). José Marrocos, de Libertador de Escravos a divulgador de milagres, 2005. ________. Milagre em Joaseiro. 2a Edição. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976. FIGUEIREDO, José Alves de. O Folclore no Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1960. HOORNAERT, Eduardo & HAUCK, João Fagundes. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. _______. Formação do catolicismo brasileiro, 1550-1800: ensaio de interpretação a partir dos oprimidos. 2ª Edição. Petrópoles – RJ: Vozes, 1974. INÍCIO DA PROGRAMAÇÃO DOS 100 ANOS DA MORTE DE JOSÉ MARROCOS. Disponível em: <http://pref-juazeiro-do-norte.jusbrasil.com.br/ politica/5532659/inicio-da-programacao-dos-100-anos-da-morte-de-jose-marrocos>. Acesso em: 11 de setembro de 2013. JORNAL A VOZ DA RELIGIÃO, Ano I, n° 02, 1868. _____. ANO I, n° 25 1869. 39
JORNAL O ARARIPE - Ano III, n° 142, 1858. _____. Ano VI, 291, 1862. _____.Ano VI, nº 285, 186. _____. Ano VI, nº 289, 1862. LEITE, Joser Bernardino de Carvalho. Barbalha em tempos passados. Crato: Tipografia e papelaria do Cariri, 1987. LEMOS FILHO, Arnaldo. Os catolicismos brasileiros. Campinas: Editora Alínea, 1996 NOBRE, Geraldo S. História Eclesiástica do Ceará. 1a e 2a partes. Fortaleza. Secretaria de Cultura e Desporto, 1980. PINHEIRO, Irineu. O Cariri (Seu descobrimento, povoamento, costumes. Fortaleza, Instituto do Ceará Histórico do Ceará 1950. SILVA, Josier Fereira da. Barbalha Gênse Urbana: A formação do município de Barbalha no contexto regional. Monografia. Especilaização em Análise ambiental Urbana. Universidade Estadual do Ceará – UECE. Fortaleza – CE, [1992]. ______. Estrutura de Poder e (Sub) desenvolvimento. (A inserção dos municípios caririenses na política oligárquica aciolina como fator inibudor da gegemonia e desenvolvimento regional: Ênfase à cidade de Barbalha – CE. Monografia. Espécializção em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. [1994] _______. O Circulo Operário de Barbalha como expressão do catolicismo social ma educação ena cultura. Dissertação. Programa de Pós-graduação em educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará. FACED/UFC, 2009. SOUSA, Simone (Org.) Historia do Ceará. Fortaleza. Universidade Federal do Ceará/Fundação Demócrito Rocha, 1989. 40
ARAJARA, BARBALHA, CEARÁ: DAS ÁGUAS LIMPÍDAS ÀS DINÂMICAS BARRENTAS10 Cassio Expedito Galdino Pereira11
Primeiras palavras Esse texto possui o caráter de trazer para o debate as diversas possibilidades para se pensar a formação histórico-territorial-cultural do distrito de Arajara, pertencente ao município de Barbalha, Ceará. A partir desse intuito queremos contribuiu em ver que não há uma única história espacial sobre o município de Barbalha, preso somente a cana-de-açúcar, mas que há uma diversidade e multiplicidade de fenômenos que ocorrem em locais distintos, como é o caso desse território. Por isso, precisamos olhar as memórias do território, vendo os personagens, acontecimentos, bem como os movimentos socioeconômicos e culturais. 10 Esse trabalho parte de reflexões advindas do tópico “A formação histórico-territorial-cultural do Ceará ao distrito de Arajara” presente na minha dissertação de mestrado, intitulada “Narrativas cartográficas sobre o agroextrativismo do babaçu em Arajara, Barbalha (CE)” (PEREIRA, 2019), realizada no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo entre os anos de 2016 e 2019, tendo como orientadora a profª. Drª. Fernanda Padovesi Fonseca. Nesse sentido, registro aqui meus agradecimentos e gratidão pelos ensinamentos da professora Fernanda, que sempre incentivou e colaborou no caminhar dessa pesquisa, reverberando que necessitamos trazer o debate sobre o papel da pesquisa na formação social e crítica. Gratidão! 11 Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo) da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Email: cassio.expedito@gmail.com.
41
Para isso, analisar o histórico do território não pode ser apenas ver os fatos que ali ocorreram, mas é necessário ver o jogo de xadrez desse território, onde o rei com sua elite, vinda do exterior, faz ao longo do tempo o jogo de conveniência prevalecer como sendo o jogo de todos. Os peões visualizam no horizonte apenas um rumo, plantando/definhando/abatendo sobre uma narrativa construída/vendida por pesquisadores/professores em instituições cientificas e escolares. Nessas se cultiva um olhar de extrativista que vai coletar as informações e utiliza-se para seu proveito. O processo de modernização do espaço vem trazendo uma nova lógica na relação com a terra, onde as pessoas são presas em sentidos estritos, pensando o mundo a partir da atualidade, esquecendo que há contextos e processos temporais que ocorreram para criar esse território. Partindo dessa conjectura, surge algumas questões: o que é Arajara? Quais seus contextos sociais ao longo da história? Quais seus dilemas econômicos, políticos, ambientais e culturais? Não tentarei aqui responder aos questionamentos acima, pois é algo amplo e complexo, necessitando mergulhar na realidade, mas escovando as histórias existentes a contrapelo (BENJAMIN, 1994) irei debruçar sobre uma primeira ideia de como é o processo formativo de Arajara. Por esse propósito, coloco com o jogo de pensar a Arajara pela origem da palavra, proveniente das ricas fontes naturais que nasce em seu pé-de-serra, as barrentas histórias, ainda turbas, que necessitam ser escovadas para clarearmos nossas visões e entendimentos sobre o processo formativo. Assim, o intento feito nesse capítulo é revelar as várias facetas de Arajara a partir de um levantamento feito em gabinete e em campo, notando como o distrito se forma por fatores imbricados ao sistema capitalista local e regional, bem como as relações socioculturais dos sujeitos ali existentes.
Do Nordeste à Barbalha O Nordeste teve seu processo de formação econômica e social alicerçado pela elite portuguesa, influenciada pela burguesia comerciantes da Europa, especialmente judeus e italianos (ANDRADE, 2001). Como Andrade (2001) destaca, esse processo de ocupação se fazia pelo interesse da coroa portuguesa com atividades comerciais que lhe favorecesse para acumulação de capital. Desse modo, Andrade (2001, p. 271) coloca que pós a Frustrada a tentativa de formação de um império na Índia, na quarta década do século XVI os portugueses ini-
42
ciaram o processo de colonização, a plantation açucareira que iria substituir o extrativismo do pau brasil e de outros produtos de menor valor. Celso Furtado (1959), em livro hoje clássico, já chamava a atenção para o fato de o Brasil ter sido palco de uma grande experiência de investimento de capitais na atividade agrícola, ao contrário do que ocorria na Europa, onde se aplicava como fatores de produção na agricultura quase que apenas a terra e o trabalho.
Para esse autor, o que decorreu desse processo foi o surgimento de uma sociedade dividida em classes, tendo sua estrutura rígida, onde uma nobreza, feita pelos ditos ‘donos da terra’, grandes comerciantes e altos funcionários reais detinham o poder político e econômico. Estes estabeleciam o processo de ocupação e controle social, redigindo os pequenos agricultores, sitiantes, prestadores de serviços e escravos as suas regras. Jucá Neto (2012) narra que no fim do século XVII e início do século XVIII, após criação da provisão régia pelos portugueses que reservava o litoral para produzir açúcar, os criadores de gado partem à capitania do Maranhão, buscando novas terras para pastagens. Esse processo, segundo o autor, culminou na primeira separação geoeconômica no Nordeste brasileiro, onde litoral teve a riqueza do açúcar e “ao criatório restou o longínquo e pobre sertão” (JUCÁ NETO, 2012, p. 134). Nas terras do Ceará, Jucá Neto (2012, p. 134) aponta que “no decorrer do Setecentos, a economia pecuarista, a despeito de sua baixa produtividade e pequena rentabilidade, atribuiu sentido à ocupação e deu forma e conteúdo à capitania”. Para o autor, esse território não foi favorável para as primeiras tentativas de ocupação, tendo sido conquistado de forma violenta, pela adversidade climática, briga entre sesmeiros e o processo de resistência indígena, no qual essa última culmina na Guerra dos Bárbaros. Nesse sangrento processo de ocupação e conflitos territoriais, os portugueses adentraram o interior para avançar suas atividades, des(organizando) em aldeamentos e numerosas concessões de sesmarias no Ceará (BRITO, 2016). Conforme Brito (2016), essas aglomerações foram organizadas pela construção de templos religiosos católicos e prédios da Coroa. Cabe ressaltar que “a pequena aglomeração foi instituída cidade em 1764 e a atividade de criação de gado foi, 43
paulatinamente, sendo empurrada para as áreas de fronteira nos estados do Piauí, Paraíba e Pernambuco, na medida em que crescia a atividade de plantio de cana-de-açúcar” (BRITO, 2016, p. 44). Brito (2016) relata que a colonização pela indústria pastoril fez em 1707 as primeiras sesmarias do Cariri cearense ser concedidas nas margens do rio Batateira e cachoeira de Missão Velha, favorecendo o epistemicídio dos índios Kariris. Porém, os primeiros colonizadores vinham pelos cursos dos rios da Bahia, Pernambuco, Alagoas e litoral do Ceará (quase escasso), onde começaram a construir os primeiros aldeamentos (SILVA, 2015). Para Barros (1964), o Cariri cearense foi forjado sem muita relação com outras localidades centrais do território cearense e nordestino, pois a distância impedia um fluxo constante, fazendo a região viver um longo período para si. Os atrativos para vinda dos colonizadores brancos ao Cariri seria a abundância de fontes de águas subterrâneas, que facilitou a pecuária e agricultura de subsistência se desenvolver (SILVA, 2015). É nesse contexto que surge em 1717 o primeiro sesmeiro, no vale do rio Salamanca, Antônio Gularte, ocupando as terras que futuramente constituiria como Barbalha. Após chegada desse colonizador, temos um cenário regional favorecendo esse isolamento, baseado na agricultura de susbsistência para consumo regional pelas condições das estradas e grandes distâncias as capitanias (PONTES, 2009), a charqueada sendo a base econômica do Ceará (GIRÃO, 2000), fazendo constituir vilas para os processos econômicos dos criadores, como a do Crato (1762) (PONTES, 2009; SILVA, 2015). Nesse sentido, Silva (2015) lembra que no século XVIII ao XIX o Cariri era um único território, a vila do Crato. Brito (2016) aponta as terras do Cariri despontando no cenário regional como área crescente para o plantio de cana-de-açúcar, sendo uma forte influência da Coroa para estímulo local e regional. Brito (2016, p. 46) destaca o decorrer dos anos, após as aglomerações ganharem corpo: (...) e, aos poucos, formando vilas habitadas por pessoas que vinham ao Vale do Cariri, migrando das longas estiagens ou seduzidos pelos relatos feitos por cronistas ou jornais da época − que representavam essa região como ‘oásis’, local vocacionado para agricultura, celeiro do sertão. Assim, outro modo de produção espacial ia
44
se impondo às formas de organizações indígenas, instituindo propriedade, empurrando as criações para áreas de fronteira de gado e aderindo a produção em grandes extensões de cana-de-açúcar.
Assim, a elite que se instaura na região implanta os primeiros engenhos para trabalhar com a cana-de-açúcar, sendo Barbalha posta como atividade central (BESERRA, 2007). Silva (2015) e França (2017) relatam que os produtos feitos da cana não eram o açúcar, como se fazia o litoral, pois a qualidade não era igual e não tinha como escoar a produção até os portos. Por esse motivo, Barbalha produzia rapadura e aguardente para o consumo regional (SILVA, 2015; FRANÇA, 2017). França (2017), fundamentada por dados de Thomaz Pompeo de Sousa Brasil (1977), mostra que a década de 1860 se tinha 70 engenhos produzindo 40.000 arrobas de rapadura e 20.000 canadas de aguardente em Barbalha. Vale salientar que Crato e Barbalha foi onde despontou a liderança na produção de cana-de-açúcar (BESERRA, 2007), lembrando que todo o pé-de-serra foi usado como plantio, o que destaca o distrito de Arajara. Barros (1964) assenta o pé-de-serra do Cariri cearense tendo uma vegetação ‘revestida’, maioria de mata úmida, dada a maior umidade pelo relevo e as chuvas orográficas. Porém, ao longo dessa colonização branca, a vegetação nessas encostas deu lugar as propriedades rurais com suas atividades agrícolas com fins para comércio na região ou subsistência (BARROS, 1964), como é o caso de Arajara. Por esse motivo, o território do distrito de Arajara torna-se um local central para as questões econômicas, sociais e políticas do munícipio e da região, necessitando ser aprofundada sobre sua formação e transformações ao longo da história.
Arajara: Plantio aos atuais dilemas sócio-espaciais A palavra Arajara é proveniente dos índios Kariris, tendo como significado água, lago ou lagoa limpa (TRIMMEL; DIAS; ROBERT, 20--). Não há informações precisas como se deu a ocupação, trazendo seus personagens, nem a expulsão e epistemicídios dos indígenas, mas observa-se que a riqueza das fontes naturais de água cristalina, como se pode ver no mapa (Figura 1), foi a centralidade para eles fixarem no território. 45
Figura 1: Recorte do Mapa Planialtimétrico de Pernambuco - Folha Crato (SB.24Y-D-III, MI – 1205) contendo o município de Barbalha. Escala: 1:100.000. Fonte: Governo do Estado do Pernambuco, Secretaria de Recursos Hídricos, 2002.
Por essa riqueza natural de água, além do clima e solo favorável (STUDART, 1888), o território de Arajara torna-se central para o plantio da cana-de-açúcar. Com o processo de plantio de cana nessa localidade houve muitas brigas entre donos de terras, pois, segundo Nobre (2015), mesmo com a valorização dessa atividade agrícola havia criadores de gados que queriam continuar essa atividade econômica na região, não se deslocando para as fronteiras de Piauí, Paraíba e Pernambuco (BRITO, 2016). Assim, os animais eram soltos e invadiam as lavouras, sendo uma resolução feita para esse problema foi a edificação de um muro de pedra, que criou a fronteira e vias de acesso entre Barbalha e Crato, sendo o local para travessia entre as cidades o sítio Melo, pertencente ao município de Barbalha (NOBRE, 2015). Nobre (2015) argumenta que ainda há resquícios desse muro entre os municípios. Em estudo feito por Studart (1888) é salientado que as principais áreas para plantio da cana-de-açúcar em Arajara era os sítios Farias, Macaúba, Luanda e Melo. Para Nobre (2015, p. 30), “com a sucessão hereditária as antigas propriedades adquiridas por sesmarias foram se dividindo e cada engenho foi se tornando um sítio”. A estrutura fundiária ser transformada em minifúndios não foi característica apenas de Arajara, mas de todo o pé-de-serra do Cariri cearense, pois eram desmembrados por heranças, não havendo terras devolutas ou inúteis, além da especulação do capital feita nesse território. Nobre (2015) traz que os primeiros engenhos que foram feitos na região eram de madeira, aos quais eram movidos pela força de bois mansos. O autor 46
indica que somente nas décadas de 1840 a 1850 os engenhos de madeiras foram substituídos pelos de ferro, tendo como combustível a madeira da região. E é no território onde hoje está Arajara que se teve um dos primeiros engenhos de ferro, adquirido e posto como novidade pelo coronel Joaquim da Costa Araújo (NOBRE,2015). França (2017), a partir de entrevista feita em campo, relatou que no período dos séculos XIX ao XX a produção feita em um dos engenhos de Arajara abastecia municípios do Agreste a Zona da Mata de Pernambuco, como também se vendia para municípios paraibanos. A venda era feita por tropeiros que circulavam os produtos feitos no engenho, bem como produtos da agricultura de subsistência e informações sócio-espaciais em comboios de burros e jumentos (SOUZA, 2016). Souza (2016), ao tratar sobre os tropeiros da região do Cariri, argumenta que estes eram em sua maioria iletrados, mas traziam consigo inúmeras memórias sobre as paisagens por onde andavam. O autor ainda traz em sua obra que essas pessoas criavam laços de amizades facilmente, prestavam serviços para pequenas cidades e vilarejos, além de possuir habilidades comerciais. Para ele, dentre os serviços prestados pelos tropeiros eram de trazer novos produtos, hábitos e valores culturais, especialmente o gastronômico, sendo um dos alicerces para o desenvolvimento da região Nordeste. Através dos tropeiros pode-se destacar a circulação do óleo de coco de babaçu, ao qual era feito naquela época em pouca quantidade, podendo até ser dada por amizades ou por início de negociação para venda do produto central. Nesse sentido, uma frase banalizada entre alguns moradores desse território é que o óleo de coco babaçu não é mercadoria, mas um produto feito com carinho e gratidão para entregar para amigo(a)s. Brito (1985) nos lembra que no Cariri cearense a economia rapadueira se deu por trabalhadores forasteiros livres. Essa mão-de-obra foi crescente durante os anos, sendo no período pós escravidão uniu com os ex-escravos libertos existentes na região, mas com um tipo de relação de trabalho por sujeição (BRITO, 1985), fazendo as pessoas serem subalternas aos que possuem poder e dominação do território. A autora esclarece que essa sujeição aconteceu aqui por o dono do engenho disponibilizar pequenos lotes de terras, aos quais não seriam de boa qualidade, para pessoas que trabalhariam três ou quatro dias no plantio de cana, usando o resto para fazer agricultura de subsistência perto dos canaviais (SILVA, 2015) ou coletando coco babaçu, sendo este vendido para compra de 47
alimentos. Essa realidade é vista como muito presente no distrito de Arajara, tendo que ainda ser aprofundada as nuances desses fatos em futuras pesquisas. Studart (1888) traz que pós emancipação de Crato (1846), Barbalha começa se despontar no cenário regional pela sua potencialidade hídrica. Ao se fazer uma divisão em quarteirões, onde atualmente são os sítios pertencentes ao distrito, Studart (1888) traz três locais que são partes de Arajara: Coité, Cajaseiras e Farias. O Farias é o local onde se encontra a nascente do Farias, que fornece água para os sítios vizinhos. Cajaseiras é provavelmente onde está a sede do distrito de Arajara, sendo posta nesse estudo como um local de uma feira animada. Nesse sentido, revela-se que havia uma feira local onde circulavam as produções feitas pelos sítios, sendo que essa feira atualmente não existe. Essa feira provavelmente acontecia pelo entroncamento das vias de acesso entre Ceará e Pernambuco, onde os tropeiros circulavam com os produtos advindos das viagens realizadas. Já o Coité é o sítio onde residiu Pinto Madeira (STUDART, 1888), personalidade importante para a história do Ceará e do Cariri cearense. Sobre Pinto Madeira cabe destacar que era um militar e latifundiário monarquista, tendo combatido na Revolução Pernambucana e na Confederação do Equador, tendo em 1932, enquanto chefe político da Vila de Jardim, liderado o movimento de Insurreição do Crato (FELIX, 2010). Felix (2010) argumenta que esse movimento, possuindo o intento de voltar a monarquia no país, criou um governo provisório em toda a região do Cariri cearense, ocasionando uma crise com império, culminando na prisão e fuzilamento de Pinto Madeira. No sítio Coité também morou o coronel Manuel Ribeiro da Costa, comumente chamado por Neco Ribeiro. Conforme Macedo (1990) relata, Neco possui vínculos sanguíneos com Pinto Madeira, ao qual essa família é uma que iniciou o processo de colonização branca da região. O autor também aponta Neco com um temperamento forte foi comandante oligárquico de Barbalha no período do coronelismo no Ceará, construindo seu poder através do banditismo social, sendo deposto em 1906. A partir de dados obtidos em entrevistas com moradores mais antigos, ressalta-se que Arajara pela centralidade desse entroncamento havia presença de cangaceiros. Por essa centralidade dada em Arajara, tendo também os movimentos religiosos dos séculos XIX e XX, o povoamento em 1900 começa se intensificar, como relata moradores mais antigos. É nesse período que Arajara inicia seu processo de virá distrito (1904), sendo emancipada como município entre 1963 a 1965, mas depois voltando a ser território de Barbalha (IBGE, 2017). É também 48
na década de 1960 que Arajara toma esse nome (IBGE, 2017), não tendo relatos porquê da escolha. Destaca-se que entre 1960 e 1970 era forte os engenhos de rapadura e aguardente, funcionando 60 estabelecimentos no município, dentre as quais vários eram na Arajara, como pode ser notado em uma entrevista feita com uma pessoa da comunidade que é agroextrativista. Na entrevista pode-se ainda notar que desses 60 estabelecimentos havia vários no distrito (figura 2). Ao pedir para ele representar com a ajuda da sua neta o que lembrava desses engenhos por um mapa mental foi colocado os engenhos a partir da década de 1960 que possuíam maior expressão, aos quais foram indicados com uma moita de cana-de-açúcar da cor verde e os babaçuais que predominam na região, sendo usado naquela época para fins de produção de óleo de coco ou carvão vegetal. Assim, foram representados 8 engenhos distribuídos entre os sítios Arajara, Farias, Coité, Macaúba e Monte Castelo.
Figura 2: Mapa de uma pessoa entrevistada sobre os babaçuais e engenhos. Fonte: PEREIRA, C. E.G. (2019).
49
França (2017) também destacou que nesse período também era forte a presença de abacateiros em Arajara. Contudo, nas entrevistas com os moradores foi revelado que essa cultura foi prejudicada por alguma praga que se deu, provavelmente advinda da lógica urbana-industrial que a cidade e a região passavam com o projeto Asimow (BESERRA, 2007). O projeto Asimow trouxe para Barbalha no final da década de 1970 a implementação da usina Manoel Costa Filho para favorecer a agroindústria canavieira. Mesmo com a chegada da agroindústria, o ciclo econômico da cana-de-açúcar estava em declínio na região, tendo sido substituído pelas políticas de industrialização, setor terciário e turismo, tendo uma centralidade especial para Juazeiro do Norte e Crato (BESERRA, 2007). Esse ponto favorece que para os sujeitos subalternizados irem ao coco babaçu como fonte de renda e sobrevivência, fazendo durante as décadas de 1970 até os anos 2000 ser um motriz da renda familiar da maioria das famílias de Arajara, conforme contou os entrevistados. Com a reestruturação econômica do capital no Ceará também foi impulsionado na década de 1990 aos camponeses de Arajara realizarem migrações sazonais em busca de sustento para famílias. Essas pessoas em maioria vão para o corte de cana-de-açúcar na região Sudeste e, nos dias atuais, para a soja no Centro-Oeste. Ao mesmo tempo Arajara toma o ideal de ser um centro para o turismo, favorecendo o surgimento de rotas para visitas, seja para exploração de pesquisas ou para o turismo, especialmente os ligados as fontes naturais de água (FEITOSA, 2005). Destaca-se também que Arajara nos anos 1990 aos dias atuais começa a fomentar a cultura local e regional com a presença de grupos culturais que vão movimentando a comunidade e a região para conhecer manifestações feitas pelos antepassados. Nesse ponto se destaca grupos de quadrilha, fortalecimento das festas de padroeiros dos sítios, manifestações afro-brasileiras feita pelo Mestre Chico Ceará e o grupo Arte e Tradição.
Os entroncamentos postos Ao observarmos a formação de Arajara devemos entender que a valorização desse espaço não somente pela leitura de narrativas históricas, mas pela importância territorial, socioeconômica e cultural. Por isso, esse processo de escovação ainda não conseguiu deixar límpida as águas, mas pudermos abrir algumas janelas para mostrar um horizonte mais rico e frutífero. Porém, entendesse que a 50
pesquisa sobre a formação de Arajara não deve ser vista apenas como uma tarefa de pesquisa, mas como momento de debruçasse sobre nossa história. Entendo que a análise do movimento de transformação feita pelo capital, efeito advindo das pressões globais, enfocou de forma incisiva a questão social do distrito de Arajara. O modo de vida dessa comunidade foi afetado pela intensificação do capital na exploração das terras e seus recursos, em especial com a lógica industrial, trazendo novas dinâmicas sócio-espaciais. Nesse ponto, a memória e cultura local vem sendo negligenciada, marginalizada e esquecida, deixando uma perca social para a comunidade, o munícipio e a região. Necessitamos aprofundar esses debates em novas pesquisas, pensando sobre fatos pincelados aqui, como os diferentes grupos que formam Arajara, a feira que acontecia em Arajara, os tropeiros dessa região, emancipação de Arajara e as manifestações culturais, além das identidades e r-existências da comunidade. No entanto, necessitamos de incentivos ao ato de pesquisar e a comunidade, fortalecendo e promovendo a base social e cultural do meio acadêmico com a comunidade.
Referências ANDRADE, M. C. de. Espaço e tempo na agroindústria canavieira de Pernambuco. Estudos Avançados, 15(43), 267-280, 2001. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BESERRA, F. R. S. Espaço, indústria e reestruturação do capital: a indústria de calçados na região do Cariri – CE. 2007. 123 p. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, 2008. BRITO, A. C. R. Transformações territoriais no Cariri cearense: o Cinturão das Águas do Ceará (CAC) e o contexto de conflitos no Baixio das Palmeiras, Crato/CE. Dissertação (Mestrado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. BRITO, M. S. Mudanças na organização do espaço: o novo e o velho no Cariri canavieiro. Fortaleza: IOCE, 1985. 51
FEITOSA, R. R. P. Saneamento Básico no Distrito de Arajara, Barbalha-CE. 2005. 53 p. Monografia (Especialização em Geografia e Meio Ambiente) – Universidade Regional do Cariri (URCA), Barbalha, 2005. FELIX, K. S. L. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza, 2010. FRANÇA, C. F. de S. A cana-de-açúcar e a mobilidade da força de trabalho no espaço periurbano da Região Metropolitana de Fortaleza - RMF. 2017. 297 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia. Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, 2017. IBGE. Enciclopédia dos municípios brasileiros: XVI volume. Rio de Janeiro: IBGE, 1959. 567 p. v. XVI. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv27295_16.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2017. JUCÁ NETO, C. R. Os primórdios da organização do espaço territorial e da vila cearense - algumas notas. Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 20, p. 133-163, 2012. MACEDO, J. Império do Bacamarte: uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri cearense. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1990. NOBRE, F. W. Baixio das Palmeiras: apontamentos geográficos, culturais e historiográficos. Juazeiro do Norte: BSG, 2015. PEREIRA, C. E. G. Narrativas cartográficas sobre o agroextrativismo do babaçu em Arajara, Barbalha (CE). 2019. Dissertação (Dissertação em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. PONTES, L. M. V. de. Formação do território e evolução político-administrativa do Ceará: a questão dos limites municipais. 2. ed. Fortaleza: IPECE, 2009. 92 p. 52
SILVA, J. F. da. Formação histórica, econômica e territorial do Cariri. In: SEEMANN, J.; RIBEIRO, S. C.; SOARES, R. C. (Org.). Geografias do Cariri cearense. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2015, p. 9-23. SOUZA, A. G. de. Tropeirismo nosso. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2016. STUDART, G. de. Descripção do Município de Barbalha. Revista Trimensal do Instituto do Ceará, p. 10-13, 1888. TRIMMEL, T.; DIAS, M. G.; ROBERT. Dicionário Online; Significado; O que Significa arajara para você? [20--]. Disponível em: <http://www.achando.info/ arajara>. Acesso em: 19 ago. 2018.
53
HONRA E VALENTIA NO SERTÃO NORDESTINO: A FIGURA DO SUJEITO CANGACEIRO COMO “CABRA” DO BANDO DOS MARCELINOS NO CARIRI CEARENSE Ana Paula Rodrigues da Costa12
Introdução A atuação de bandos de cangaceiros pelo sertão nordestino foi marcada por ações de honra e valentia, reafirmando dessa forma, a imagem de homens corajosos, fortes, ou propícios a violência, que ficaram caracterizados pela figura do “cabra macho”. A expressão “cabra macho”, no entanto, não surgiu para adjetivar cangaceiros. Já existia antes mesmo do movimento do cangaço torna-se um movimento expressivo no sertão nordestino. Essa noção, inclusive, servia para materializar preconceitos raciais e sociais, que ao longo dos tempos foram aos poucos tomando outras dimensões sem, no entanto, excluir as formas de preconceitos, já existentes. As histórias de honra e valentia sempre foram muito disseminadas pelo Nordeste13, sobretudo para demonstrar os feitos dos bandos de cangaceiros. Essa 12 Mestre em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG). Discente de Doutorado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará e pesquisadora do Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE). Email: anapaula-rodriguesdacosta@bol.com.br 13 A referência que se faz ao Nordeste não é sinônimo de região Nordeste com a atual divisão político-administrativa. No período correspondente ao Império e a Primeira
54
associação fez emergir em muitos sujeitos a ressignificação da expressão “cabra macho”, que passou a ser utilizada para adjetivar ou vangloriar as atuações dos bandos de cangaceiros. A figura do cangaceiro se tornou importante no processo de formação territorial do sertão nordestino. No Cariri cearense, essa expressão ficou marcada pela atuação do bando dos Marcelinos. Um bando de atuação local, que restringiu sua saga basicamente a Chapada do Araripe, atuando na década de 1920. A história de uma ofensa em público, deu origem ao bando em terras caririense. De acordo com fontes orais e escritas, em 1923, um dos membros da família Marcelino, João Marcelino, foi desarmado de sua peixeira pelo delegado local, na feira de Caririzinho, Pernambuco. Esse ato de desonra foi motivo para que, em 1924, os irmãos João e Manoel Marcelino adentrassem ao movimento do cangaço para vingar o fato ocorrido e honrar o nome da família que havia sido desmoralizado com o ato da desarma. De acordo com Gustavo Barroso (2012, p. 29) “no sertão quem não se vinga está moralmente morto.” Essa máxima fora o motivo maior para os irmãos Marcelino aderirem ao movimento do cangaço. Nessa seara, a imagem de “cabra macho” até hoje é utilizada pelos sujeitos caririenses que rememoram o cangaço dos Marcelinos, justificando a aderência ao movimento e associando as ações cangaceiras como ato de coragem e valentia em nome da honra. República, os Estados que atualmente correspondem ao Nordeste eram chamados de “do norte”, admitindo que o país pudesse ser dividido em duas porções: Norte e Sul. Uma divisão oficial, que dividia o Brasil em regiões, foi feita em 1941, no governo de Getúlio Vargas, período correspondente ao Estado Novo, pelo IBGE. Com essa divisão, o Nordeste passou a compreender os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Após a Segunda Guerra e a elaboração da constituição, em 1946, e, em virtude de períodos de seca, como em 1952, o governo federal instituiu um programa que, desenvolvido pelo Banco do Nordeste, passaria a atuar em áreas mais sujeitas à seca denominando de “polígono das secas”, que excluiu o território do Maranhão e abrangeu Sergipe, Bahia e uma parte de Minas Gerais. No ano de 1959, foi criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e, mais uma vez, feita uma delimitação do território correspondente ao Nordeste. Com isso, passou a ser formado pelos Estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, porção setentrional de Minas Gerais e pelo Território Federal de Fernando de Noronha. Na década de 1970, foi estabelecida uma nova regionalização do território brasileiro e, na região Nordeste, foram incorporados os estados como a conhecemos até os dias atuais (ANDRADE, 1979; 1988).
55
A valentia na figura do cangaceiro: o sujeito cabra macho A expressão regional “cabra” foi criada particularmente no Nordeste para definir um tipo de homem que caracterizasse a região ou que atribuísse particularidades para identificar o homem do Nordeste. O termo descreve um sujeito valente, destemido; geralmente, homens que desenvolviam trabalhos como jagunço, capanga, guarda-costas e/ou cangaceiro. No entanto, a discussão requer bem mais aprofundamento para explicar a questão da denominação, principalmente a relação entre capanga e cangaceiro tratada nos trabalhos literários e/ou científicos, como destaca Mello (2011). O vocábulo “cabra” geralmente é utilizado de forma pejorativa e preconceituosa, porém, também para adjetivar qualidades e defeitos, a depender do contexto, ou seja, “cabra da peste” serve tanto para glorificar um ato positivo de uma pessoa, quanto para desqualificá-lo por algum mal feito, pois está relacionada a valentia e coragem ou violência e brutalidade. A expressão pode vir acompanhada sempre de um adjetivo como “cabra da peste”, “cabra bom”, “cabra véi” ou “caba véi”, “cabra macho”, “cabra frouxo”, etc. No Ceará, de acordo com Cavalcante e Pelosi (2012, p. 67), apesar de a expressão ser utilizada para designar vários contextos, as autoras apontam para a hipótese de que culturalmente caracteriza homens violentos. [...] apesar de toda ambiguidade indicada pelos dados do corpus quanto à definição, uso e emprego do regionalismo “cabra” na cultura nordestina, levantamos a hipótese de que esse termo regional aponta também no âmbito da cultura cearense para a construção de uma figura masculina de caráter violento. Tal construção, a nosso ver, emerge de representações cognitivas que estruturam a linguagem verbal. Nesse caso, a linguagem verbal é utilizada como veículo de crenças a respeito da violência da cultura em questão, que, por sua vez, compreende uma dimensão histórica relativa às mudanças nas relações sociais, sobretudo de trabalho, e uma dimensão social, de gênero.
No Ceará, especificamente, essa expressão é muito utilizada para atribuir ações diversas. A denominação de cabra macho é empregada para caracterizar 56
um homem valente, corajoso, de muita virilidade. A expressão “macho” é utilizada popularmente também para referir-se a mulheres valentes, corajosas. Esse contexto reflete as condições socioculturais da sociedade à época, onde prevalecia o patriarcalismo, fortemente marcado por concepções machistas e racistas. No Ceará, em 1830, o botânico George Gardner, de passagem pelo Cariri cearense, fez nota de um ditado muito recorrente entre os caririenses: “não existe doce ruim, nem cabra bom” (IRFFI, 2017). Esse ditado era tido como característica definidora de parcela da população para se referir tanto a homens, quanto a mulheres pobres e negras. Essa parcela populacional era relativa às pessoas livres, libertas ou escravas. No século XIX, o Cariri cearense se configurava como espaço eminentemente rural, formado pelas localidades de Crato, Barbalha, Missão Velha, Jardim e Milagres. Esse espaço era composto por uma elite senhorial proprietária de terras, detentora da economia e dos dispositivos públicos. Em contraposição a essa elite senhorial, havia a classe subalterna que trabalhava para ela. A designação de “cabra” abarcava todos aqueles que não pertenciam à elite. O contexto socioespacial, assim, denotava e diferenciava os sujeitos de dada localidade. [...] a formulação “desse conceito” estava diretamente relacionada à necessidade, entendida pela classe dominante do Cariri cearense, em diferenciar as classes sociais e, mais ainda, delimitar os papéis sociais que competiam a cada uma. No entanto, o desenho dessa categoria, forjado ao longo dos oitocentos e parte do século seguinte, passava pela ideia de que tinha um sentido geográfico, entendendo o cabra como sertanejo do Cariri cearense, assim como o caboclo se referia ao Norte do Brasil. (IRFFI, 2017, p. 73. Grifo nosso).
De acordo com a autora, “cabra” era uma categoria social para designar o sertanejo do Cariri cearense, como também para acentuar a diferença de classes e o preconceito social e racial. A disseminação do termo no Cariri cearense ocorreu a partir de 1831 e 1832 com a revolta de Pinto Madeira14. Deste acontecimento em diante, foi 14 A revolta de Pinto Madeira, ocorrida no período de 1831 e 1832, entre Crato e Jardim, no Cariri, ficou conhecida na historiografia tradicional como uma revolta de
57
atribuído aos caririenses pobres e livres, entendidos como pessoas predispostas a revoltas e motins. O “cabra”, nesse sentido, era visto como um sujeito revoltado que não aceitava uma condição de violência ou humilhação, lutava de armas na mão, matava para honrar seu nome e sua família. A estratificação social indica a existência de um espaço geográfico do “cabra”. Esses homens livres ou escravos não tinham direito à terra e suas condições de vida eram precárias, de modo que habitavam as periferias das vilas e cidades. Nessa época de 1831, as atividades se caracterizavam pela agricultura e pecuária, as famílias trabalhavam na condição de arrendatários, meeiros, rendeiros e residiam nas propriedades da elite senhorial na condição de moradores. Contudo, apesar das condições de submissão em que viviam as famílias, estas se utilizavam dos mecanismos que dispunham para lutar, não aceitando as desigualdades e o abuso de poder. Essa relação de dominação foi difundida pelos diversos períodos da história. A expressão “cabra” também foi sendo cultivada entre os sertanejos nordestinos e utilizada por vários grupos. No movimento do cangaço era comum entre o povo e pelos próprios cangaceiros que, para referir-se ao coletivo do bando, os chamava de “cabroeira”. A nomenclatura confere aos sujeitos reconhecimento e pertencimento ao grupo social do qual fazem parte, ao passo que também dota de sentido o espaço, tornando-o familiar e transpondo-se em lugar para tais sujeitos. Albuquerque Júnior (2013) questiona a noção de que todo sertanejo nordestino é forte, valente e destemido, para construir um sentido de Nordeste. Analisar o movimento do cangaço nos parece um reencontro com essa ideia fundadora de braveza de sertanejos que, aderindo ao cangaço, desafiaram forças policiais, volantes, políticos e coronéis produzindo uma narrativa de macheza, valentia, rebeldia, ousadia e honra, valentia esta que era desencadeada, muitas vezes, por lutas ou rixas entre famílias, coronéis, chefes políticos ou movimentos de libertação, revolta e outras causas, as quais enfureciam os sujeitos que lutavam sem medo da morte. caráter político restauracionista. A vila de Crato, sede da comarca do Cariri cearense, foi invadida por homens com cacetes e facas e infundiram terror à população da vila. No comando dessa revolta estava Joaquim Pinto Madeira e o Padre Manoel Antônio de Sousa. O motivo da invasão ao Crato se deu pela inconformidade dos “cabras de Jardim” com a abdicação de D. Pedro I e a instalação de um poder regente, consolidando-se para uma política imperial de implantação do governo nacional (IRFFI, 2017).
58
Segundo Lima (2008), algumas rixas ou lutas eram extremadas em rivalidades criminosas e favoráveis ao uso de “cabras” em lutas, as quais se associavam a figura do cangaceiro que foi sendo construída uma imagem do cangaço de vingança ou do cangaceiro como vingador. Nesse quadro, o sertão nordestino é dotado pela cultura da violência que marca esses sujeitos. A noção de “cabra macho” ainda é muito presente na cultura caririense, o que foi constatado nas narrativas dos sujeitos, nos quais há menções à expressão “cabra” ou “cabra macho” para designar a atuação dos Marcelinos. Mesmo sendo contrários à apologia à violência, os sujeitos entrevistados enfatizaram a ideia de “cabra macho”. O senhor José Miguel ressalta que, mesmo tendo cometido crimes, a história dos cangaceiros é importante de ser contada porque eles eram “cabras” de coragem: “[...] tá certo que teve morte pelo meio, mas é história de cabras valentes, macho, que tinha coragem de enfrentar as coisas”15. A expressão “cabra” valente atesta para o sentido de pertencimento a um lugar, o reconhecimento cultural do espaço social em que se habita. Os sujeitos entrevistados reconhecem que, na história dos cangaceiros, houve muita violência, mas a justificam porque, muitas vezes, a violência cometida pelos cangaceiros era uma forma de revolta por estarem à margem da sociedade e subordinados à tirania do Estado. Os sujeitos pontuaram que igual ou maior era a violência cometida pelas forças policiais e pelos coronéis. Dessa forma, a expressão cabra foi disseminada pelo sertão nordestino como forma de propagar o preconceito social e racial. Mas, contraditoriamente, foi ressignificada na ideia de homens valentes, corajosos, que estavam dispostos a lutar pelo seu bem ou por um bem comum. Dessa maneira, o termo “cabra” tomou outras dimensões, sendo utilizada até os dias atuais para caracterizar situações boas ou ruins, mas, no geral, para glorificar a coragem e valentia do sertanejo nordestino. O reconhecimento existente na expressão vem ao encontro de aceitar a narrativa de pertencimento ao grupo social, de atestar para as condições socioespaciais existentes. A afirmação dá-se no sentido de reiterar o grupo culturalmente e seu espaço de atuação, tomado pela familiaridade e transposto em lugar.
“Escudo ético”: a honra pelo cangaço O sentido de honradez, de provar que era “cabra macho”, homem de bem, era tão forte que qualquer situação que afetasse a honra era motivo 15 Entrevista concedida à autora pelo senhor José Miguel, realizada em 13 de setembro de 2018.
59
para revoltar-se e agir contra quem praticava atos opressores. Um exemplo é demonstrado na narrativa do senhor Francisco de Assis sobre um possível arrependimento de Manoel e João Marcelino após decidirem entrar no cangaço, que mais um ato de “desonra” levaria a ferir o brio desses sujeitos de tal forma que a revolta seria ainda maior: [...] Um relato fala que eles tiveram um momento que até se redimiram, acharam que já estava bom no lugar deles e tudo, aí foram para o Boqueirão [Paraíba] para trabalhar em Souza, na Paraíba, na construção do açude do Boqueirão. Deixa que Lampião invade Souza, aí por Lampião invadir Souza e eles estavam lá, acharam que eles também tinham a ver com a invasão e levaram eles presos para Fortaleza, levaram os Marcelinos e foram presos em Fortaleza. Aí quando eles vêm, eles falam que não tinham nada a ver com aquilo, que já tinham saído para trabalhar, procurar um meio de vida, de forma mais, vamos dizer, honesta, aí vai preso por ocasião de Lampião em Souza, é tanto que eles recebem conselhos para voltarem para o Cariri para ficarem aqui tranquilos, aí um deles diz: “tão querendo que nós sejamos cangaceiro, pois nós vamos ser cangaceiro”. Aí entraram no bando de Lampião16.
O ato de terem se redimido e mais uma vez serem humilhados, desmoralizados, o fazem revoltar-se mais fortemente e decidirem que suas vidas de fato eram no cangaço, porque então seriam respeitados ou temidos. É a ideia de terem voz diante da sociedade que, mais uma vez, os desmoralizava ou, como coloca o senhor Francisco de Assis, que mais uma vez o Estado e suas repartições feriam o direito do cidadão ou nem ao menos atendiam os direitos da sociedade. Neves (2009, p. 38), analisando o cenário da desarma da faca de João Marcelino pelo delegado Ioiô Peixoto, pondera que foi um ato de abuso de autoridade, causando uma desmoralização que, mais tarde, seria vingada. “Estava lançada ali, naquele momento, a semente de novos cangaceiros, graças ao abuso de autoridade do delegado que, três anos depois, pagaria com a própria vida 16 Entrevista concedida à autora pelo senhor Francisco de Assis, realizada em 18 de outubro de 2018.
60
tão impensado ato. Com honra de sertanejo não se brinca impunemente”. A honra era o bem maior que o homem sertanejo dispunha, não podendo ser atacada dessa maneira. Nesse contexto, o sentido da honra estava associado à vergonha. Ser desonrado em público era uma vergonha familiar, pois a honra e a vergonha eram dois polos de valorização social que implicavam na representação social dos sujeitos. Uma desmoralização não ficava impune porque era o status de homem sertanejo que estava em questão, não vingar significava trair sua condição de “cabra macho”. A honra era tida como sagrada, assim, honra e graça, desonra e desgraça. Os sentidos de graça e desgraça estavam associados tanto à questão da religiosidade do homem sertanejo, como a sua reputação de homem valente, homem de bem. Rohden (2006, p. 106), analisando os trabalhos de Pitt-Rivers sobre o conceito de honra, discute a ideia do conhecimento público. Se uma ofensa, um dano causado à reputação de alguém se torna público ou acontece em público, ela toma proporções maiores no tribunal da reputação da pessoa ofendida que, neste caso, dificilmente acontecerá a recusa pela vingança na prática da violência. [...] recusar-se a enfrentar pessoalmente uma ofensa pode também produzir desonra. A violência é, muitas vezes, o recurso característico. Sua execução é obrigatória quando todos os outros meios de resolver as disputas foram ineficientes. Neste caso, recorrer à justiça oficial, ao Estado, significa admitir a sua incompetência ou vulnerabilidade em termos de honra.
O sentido de “lavar a honra” estava diretamente relacionado à vingança e, no caso do movimento do cangaço, uma desonra cometida impulsionava uma vingança: o cangaceirismo era um dos meios dessa vingança. Um sujeito ou grupo que tomasse partido por essa alternativa de vida estaria fazendo justiça, mesmo que, para isto, não recorresse legalmente aos tribunais, mas fizessem eles próprios cumprir o código ético/moral que se julgava correto aplicar em uma situação de desonra. Considerando-se os sentidos de ética e de código moral, a história do cangaço se desenvolveu com base em valores morais como honra e valentia para alguns cangaceiros. Desse modo, os cangaceiros impuseram pela força uma nova ordem de conduta, representada pela violência descontextualizada da fórmula 61
“lavar a honra”. Para adotar essa conduta, muitos utilizavam de táticas como tortura física e moral. Entendo que valores como valentia, num período histórico articulados com honra e trabalho, naquela conjuntura eram respeitados nessa mesma forma combinatória, por alguns grupos de camadas médias, pobres e até mesmo grupos mais importantes socialmente, em todo o Nordeste. No mesmo período, ao dissociar a coragem de elementos significativos para o todo social como eram o trabalho, o respeito à propriedade, à honra das famílias e aos mais fracos, o cangaço desintegra uma estruturação cultural centenariamente amalgamada (BARROS, 2007, p. 54).
Nessa seara, o cangaço surgia como alternativa para não se calar diante de desonras. Entrar no cangaço após uma desonra, seja por questões físicas ou morais, era aceitável, pois havia uma justificativa para isso, era uma resposta à afronta sofrida, uma vez que o ofendido justificava sua atuação “guerreira” como meio de vingança, entendida como equivalente à justiça. Era como um escudo de proteção para determinados grupos que optaram por viver no ou do cangaço buscando se reintegrar no quadro rígido da honra. Mello (2011) constatou que alguns cangaceiros formulavam um discurso de vingança como justificativa para atuar no cangaço, denominando de “escudo ético” o discurso que os cangaceiros professavam para perpetuarem sua saga. No entanto, havia vários episódios nos quais cangaceiros não cumpriram com essa afirmativa. O autor pauta essa discussão particularmente na figura de Lampião, porém cabe ressaltar que, por mais que atuassem no mesmo movimento, havia distinção entre os bandos. Lampião, por exemplo, costumava dizer que sua vida no cangaço era um negócio, se configurava como uma profissão. O surgimento de alguns bandos, como o de Lampião, pautou seu discurso de formação pelo intuito de vingança que, no entanto, nunca foi concretizada. A vingança em nome da honra, alardeada por alguns cangaceiros, se configurava como discurso para uma vida lucrativa e é nesse contexto que se inseriu o bando de Lampião, negociando favores, bens materiais etc. Analisando a relação entre cangaço e vingança, Mello (2011, p. 127) afirma que: “[...] a vingança tende a revestir a forma de um legítimo direito 62
do ofendido”. A respeito do bando dos Marcelinos, o senhor Citonho comenta que a inserção dos irmãos Marcelino no movimento do cangaço, por motivo de vingança, era um meio de “lavar a honra”: Eles ficaram decepcionados com a desarma, mas a peixeira que se usava naquele tempo era “pra” trabalhar, não era para fazer violência não. Aí foi desarmar ele desse jeito! Aí eles entenderam que tinha que vingar. Agora, se eles fossem se vingar do delegado e voltassem “pra” casa, não ia dar certo. Eles iam morrer também. O jeito que tinha era entrar no cangaço, foi uma alternativa que qualquer um que tivesse coragem fazia isso17.
Mesmo que a inserção no cangaço acontecesse por motivo de vingança, uma vez cumprida, a vida fora do cangaço teria sérios problemas que poderiam levar à morte de famílias. O senhor Citonho considera que o bando dos Marcelinos não tinha outra alternativa: uma vez no cangaço, no cangaço permaneceria. O dilema entre honra e vingança balizava o cangaceirismo. A ligação inicial do bando dos Marcelinos com o cangaço se justificou pela vingança e provavelmente esta é uma característica que o diferencia de outros bandos. O bando cumpriu a promessa de se vingar e não atuou por muito tempo, nem promoveu grandes feitos no movimento no qual tiveram seu fim. “Lavar a honra”, neste sentido, era uma forma de demonstrar uma conduta de “homem de bem” diante da sociedade, reafirmando o sujeito inserido no contexto cultural e social em que se vivia. Assim, o ofendido se sentia no dever de justificar sua postura de valentia. Esse dever visava cumprir um código de ética e moral diante da sociedade. Ao cumprir a vingança, muitas vezes o cangaço se apresentava como um refúgio para os vingadores. Permanecer no cangaço após a vingança se configurava como meio de vida ou como proteção para o cangaceiro e, consequentemente, para sua família. De acordo com Mello (2011), o cangaço apresenta-se em três modalidades: cangaço de vingança, meio de vida e refúgio. Considerando-se a motivação, a atuação e a dissolução do bando, os Marcelinos se apresentam nessas três modalidades. 17 Entrevista concedida à autora pelo senhor Citonho, realizada em 12 de outubro de 2018.
63
Embora tenham permanecido no cangaço por cerca de quatro anos, os Marcelinos vivenciaram algumas instâncias do movimento, mas a motivação por vingança prevaleceu em relação às outras modalidades identificadas por Mello (2011). Para o autor, os chefes de bando que mais tiveram vivência no cangaço foram Lampião e Antônio Silvino e suas atuações podem ser consideradas como “cangaço profissional”. Os sujeitos que aderiram ao cangaço como um instrumento de vingança não chegaram a ultrapassar uma quina no movimento, ou porque foram mortos, ou porque cumpriram com a vingança e optaram por outro modo de vida em outra região. [...] Enquanto profissionais notórios como Lampião e Antônio Silvino agitam por períodos de, respectivamente, 22 e 19 anos, os mais celebrados vingadores mal atingem o lustro. Sinhô Pereira, vingado, retira-se após 6 anos de correrias. Seu primo Luís Padre, após 5 anos. Cindário e Jesuino Brilhante também mal encostaram na quina. Nada há de estranho nisso. Quem quer vingar mesmo, parte pra cima do inimigo e mata, como Sinhô, ou morre como Jesuino, ou ainda, se nota que não pode com o peso do encargo, ensarilha as armas e afasta-se para cuidar de outra vida (MELLO, 2011, p. 146).
O cangaço não tinha a mesma configuração para todos os bandos: enquanto uns atuavam por motivo de vingança e atuaram pelo objetivo de cumpri-la permanecendo pouco tempo no movimento, seja porque se afastaram para outras localidades, seja porque morreram por sua atuação, outros permaneceram por mais tempo e não estiveram no cangaço por motivo de vingança, mas atuaram no movimento como uma profissão. Apesar dos muitos crimes cometidos pelos cangaceiros, geralmente se via e ainda se percebe como homens valentes que lutavam para defender a honra. Na narrativa do senhor José Miguel, ao falar da história dos Marcelinos, o mesmo fez menção como sendo uma história pesada, porque houveram crimes, contudo, enaltece a figura dos Marcelinos como homens de coragem, “cabras macho” que tinham disposição para enfrentar a ofensa sem temer. O contexto cultural e as condições socioespaciais reconhecidas pelos sujeitos os fazem interpretar a história do bando com esses significados. Assim, a violência empreendida pelos bandos armados no sertão nordestino acometia os sertanejos pelos mais terríveis atos de violência, mas não se 64
limitava aos cangaceiros. A força policial, também cometia violência com as famílias nordestinas e, abusando do poder do Estado, cometiam crimes tão terríveis quanto os cangaceiros. Barros (2007) relata que a situação da população era penosa, pois estava desprotegida e entregue aos bandos armados. Os homens das armas, iguais na vestimenta, nos apetrechos e nas mãos sujas de sangue, se repelem ou associam, “olho no olho”, segundo as verdades mais terríveis que só eles conhecem. Entregues a seu arbítrio, pouco a pouco os sertanejos sabem com quem lidam, identificando, à simples visão da volante, o tratamento a ser esperado pelo povo do lugar, daqueles “homens do governo” (BARROS, 2007, p. 163, grifos da autora).
As forças policiais e os bandos de cangaceiros cometiam violências similares, assim acreditavam-se na impunidade porque não havia como identificar qual grupo havia cometido tal ato. O fato é que os dois grupos não estavam tão distantes em atuações e arbitrariedades. O senhor Napoleão nos relatou como se dava a relação entre a polícia e os cangaceiros no Cariri para caracterizar o bando dos Marcelinos. [...] a polícia era mal paga, mal remunerada e recebia aquela munição do governo para atuar e fazia era vender aos Marcelinos. Sempre a corrupção dominando os bastidores da história do Brasil, desde aquele tempo. A polícia tinha a ordem de perseguir os cangaceiros ao passo que vendia munição para seu próprio embate com os cangaceiros. Era contradição, mas são coisas do cangaço [...]. A polícia fazia muitos desmandos, muita coisa. Aqui em Barbalha mesmo, a polícia vinha para perseguir os cangaceiros e ficava na feira fazendo absurdos, arbitrariedade, porque era a oportunidade que eles tinham de sobressair perante a sociedade18. 18 Entrevista concedida à autora pelo senhor Napoleão Tavares, realizada em 18 de setembro de 2018.
65
O senhor Napoleão caracteriza a polícia como um grupo que cometia as mesmas arbitrariedades dos cangaceiros, o que implica em questionar o código de ética e moral a qual estavam submetidos tais agentes do Estado, cuja atribuição era proteger a população. Desse modo, percebe-se que a violência era uma prática social utilizada pelos grupos de segmentos diversos. As relações sociais e os contextos histórico-culturais são tomados para compreender o movimento do cangaço e a atuação dos Marcelinos, dessa forma, a espacialização do cangaço na região do Cariri é compreendida retomando esses contextos, isso se faz presente nas narrativas dos sujeitos. Cultura, espaço e memória, dessa forma, estão ligados a questões históricas.
Considerações Finais Culturalmente as questões de honra e valentia, no sertão nordestino, foram basilares para a efervescência do movimento do cangaço, permeando as vivências do sertanejo do Nordeste, como homens destemidos, corajosos, que lutavam, matavam e morriam em nome da honra. Essas percepções, no entanto, ainda hoje estão presentes no imaginário, no cotidiano do grupo de sujeitos que vivenciaram ou foram ouvintes das histórias de cangaceiros que desafiavam a própria vida para manter o status de “cabra macho”. As percepções do grupo de sujeitos destacadas ao longo do texto, foram um aporte fundamental para compreender o sentido de honra que perpassa e marca a figura do “cabra macho” para caracterizar ou legitimar o cangaço como forma de vingança do bando dos Marcelinos, no Cariri cearense. Em uma terra onde sempre prevaleceu a força das elites, não seria surpreendente que surgissem movimentos de luta e combate à tirania e às políticas impostas por essa elite. A luta pela honra sertaneja está inserida nesses movimentos de levante contra as injustiças ditadas por uma sociedade controladora do direito de viver.
Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo” – uma história do gênero masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013. ANDRADE, Manoel Corrêa de. O processo de ocupação do espaço regional do Nordeste. Recife: SUDENE-Corrd. Planej. Regional, 1979. 66
______ O Nordeste e a questão regional. São Paulo: Ática, 1988. BARROSO, Gustavo. Almas de lama e de aço: Lampião e outros cangaceiros. Rio – São Paulo – Fortaleza: ABC, 2012. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. CAVALCANTE, Fernanda; PELOSI, Ana Cristina. O papel das representações sociocognitivas na emergência da expressão regional cabra enquanto uma figura masculina de caráter violento. Revista Antares. Fortaleza, v.04, n.07. Jan./ jul. 2012, p. 59-72. Disponível em: <http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/ riufc/18384/1/2012_art_fcavalcante.pdf> Acesso em: 03 fev. 2019. IRFFI, Ana Sara Cortez. Na contramão do império do Brasil: o sertão do Cariri cearense e a invenção do “cabra.” In: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes; NEVES, Frederico de Castro (orgs). Capítulo de história social dos Sertões. Fortaleza: Plebeu gabinete de leitura editorial, 2017. p. 73-87. LIMA, Geralda de Oliveira Santos. O rei do cangaço, o governador do sertão; o bandido ousado do sertão, o cangaceiro malvado: processos referenciais na construção da memória discursiva sobre Lampião. f. 304. Tese (doutorado em linguística). Departamento de linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, 2008. MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A girafa, 2011. NEVES, Napoleão Tavares. Cariri: cangaço, coiteiros e adjacências. Brasília: Thesaurus, 2009. ROHDEN, Fabíola. Para que serve o conceito de honra, ainda hoje? Campos – Revista de Antropologia. Curitiba, v.07, n.02, jul. 2006, p. 101-120. Disponível em: <http://www.revistas.ufpr.br/campos/article/view/7436/5330>. Acesso em: 03 fev. 2019. 67
O PADRE CÍCERO E AS TENSÕES SIMBÓLICAS ENTRE CATOLICISMO POPULAR E CATOLICISMO ROMANIZADO Paulo Wendell Alves de Oliveira19
Introdução Não é nossa intenção aqui, desdobrar todos os fatos sobre a história do Padre Cícero e a cosmificação da cidade de Juazeiro do Norte. Consideramos que existe uma vasta bibliografia que dá conta dessas questões, tais como: A Terra da Mãe de Deus, de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (2014) e O Milagre em Joaseiro, de Ralph Della Cava (1976), além de outras bibliografias e trabalhos de memorialistas da cidade, que se debruçaram por inúmeros documentos sobre os fatos que atestam o fenômeno ocorrido na localidade. Nossa intenção é pontuar o Padre Cícero em um contexto, no qual ele se insere em um universo simbólico religioso, do grupo social do catolicismo popular sertanejo, permitindo que pelas crenças, ritos e símbolos presentes nesse sistema religioso, permitisse transfigurá-lo em “Santo Popular”, graça as crenças em seus feitos, bem como cosmicizar a localidade que veio a ser Juazeiro do Norte. Assim, pontuaremos aqui, questões relevantes sobre a construção da figura mítica do Padre Cícero, vinculado ao fenômeno do catolicismo popular e como esse universo que se desenvolveu, transmutando pelo ato hierofânico, a localidade 19 Doutor em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG). Docente do Departamento de Geociências na Universidade Regional do Cariri (URCA) e vice-coordenador do Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE). Email: wendell.oliveira@urca.br.
68
do então sítio Juazeiro, em uma “Meca do Sertão”, na “Terra Prometida”, tornando-se um espaço sagrado, no qual se espacializam práticas devocionais, ritos, símbolos, signos e crenças ligadas ao catolicismo popular sertanejo. Ao tratarmos do catolicismo popular sertanejo, não utilizamos essa nomenclatura de forma despretensiosa, contextualizamos esse movimento religioso com base no processo de apropriação territorial do Brasil, remontando ao período colonial. A política colonial produziu dois territórios distintos, do ponto de vista econômico e cultural, sendo o primeiro a Zona da Mata - território voltado para exploração econômica da monocultura escravagista da cana-de-açúcar - e o segundo a chamada áreas de Sertão - território pelo qual se estabelece como área de suporte a produção açucareira do litoral. A vida nesses dois territórios seguiam processos distintos, enquanto no litoral a produção econômica era voltada para a metrópole Portugal, as áreas do sertão semiárido contextualizaram-se em uma base econômica de subsistência. Vários processos marcam essas distinções territoriais do Brasil, mas destaca-se a intervenção da Igreja e a política colonial, expressa pelo chamado catolicismo guerreiro. Negando todo um sistema simbólico religioso dos nativos e dos negros africanos, esses grupos subalternos foram obrigados a conversão ao catolicismo. Tal conversão não ocorreu sem resistência, mas foi sendo submetido à processos de ressignificação no próprio sistema simbólico de crenças desses grupos subalternos, apropriado-se do sistema de crenças do catolicismo para prática de seus próprios cultos, ritos e signos. Diferentemente do que ocorreu no litoral, de controle efetivo da Igreja e da Coroa no processo de conversão pela catequização, o sertão semiárido foi orientado por um processo de conversão do leigo pelo leigo, reapropriando e ressignificando o catolicismo com base na justaposição a outros sistema simbólicos religiosos e utilizando de sua condição de sofrimento humano para produzir movimentos de luta pela terra e pela vida, uma verdadeira busca pela terra sem males. O fenômeno de Juazeiro, do Padre e da Beata, não se explicam por si só e nem pelo contexto local, mas se insere na produção de um modelo cultural popular, que foi se desenvolvendo pelo processo de colonização e seus desdobramentos até chegar no período que se insere o Padre Cícero, a Beata e a cidade de Juazeiro do Norte. O processo de produção de uma cultura popular sertaneja, está diretamente ligado a segmentos da sociedade, no qual se insere os nativos, os negros, 69
camponeses sem terra, ou seja, todo um segmento social que sofriam as mais duras penas do desenvolvimento desigual, principalmente no interior do território, sendo agravado pelo quadro geoambiental da região, onde perdurou em vários períodos secas, que ceifava a vida de muitos sertanejos, pertencentes a essa classe social.
A religiosidade popular e sua força no sertão semiárido A Igreja oficial, partia de um discurso de aceitação das calamidades pela classes sociais, do constante embate entre Deus e o Diabo, onde o pecador padeceria e o fiel seria salvo, o caminho da santidade deveria ser conquistado pela aceitação dos desígnios de Deus e uma vida de provações, seriam assim a salvação da alma. Característico desse processo, expressões como “se Deus quiser”, foi “a vontade de Deus”, refletem muito bem essa concepção ideológica implementada pela Igreja as massas populares (HOORNAERT, 1991). O Estado não prestava assistência aos sertanejos, visando principalmente a economia desenvolvida no litoral e, após o século XIX, a exploração das áreas de minas. O sertão ficou abandonado a sua própria sorte. Essa época também é caracterizado pelas disputas entre a Igreja e o Estado, no qual a Igreja almeja manter um poder central de dominação. No entanto, o que se nota é a propagação da religiosidade popular, principalmente nas localidades sertanejas mais longínquas, que na maioria das vezes encontravam-se sem capelão, quando estes se deslocavam para essas localidades, pregavam os sacramentos, confissões e logo retornavam para as localidades centrais, com desenvolvimento econômico mais avançado (TOLOVI, 2015). As disputas pelo poder, coordenadas pelas elites políticas e eclesiásticas, passaram a ocorrer de forma notória com a separação entre o Estado e a Igreja. Esse modelo histórico serviu para distanciar, ainda mais, as massas populares sertanejas da perspectiva do catolicismo romanizado, assim a religião popular foi conquistando, cada vez mais, certa autonomia em relação a religião oficial. “A religião reinterpreta a lei nas situações em que não se estabelecem um verdadeiro diálogo, como aconteceu no colonialismo” (HOORNAERT, 1972). Pode-se imaginar a queda do conceito, para as massas rurais, de bispo que eram presos, submetidos a julgamento público, com grande alarde nacional, no Parla-
70
mento e na imprensa, até mesmo nas praças públicas, e esses bispos serem condenados ao cárcere e a trabalhos. Junte-se a isso a tradicional desmoralização do clero, o fato de a Igreja Católica ter estado comprometida com a escravidão, havia pouco extinta, e mais, haver sido a Igreja separada do Estado com a Proclamação da República, e concluiremos que o desprestígio da religião dominante só podia ser enorme entre as massas populares. (FACÓ, 2009, p. 58).
Com base nesse distanciamento entre a Igreja Católica e o povo sertanejo, o que se via era a ação de leigos, pregando a fé, o que permitiu o desenvolvimento do sistemas de crenças, símbolos, ritos e signos do catolicismo popular sertanejo, em detrimento a religião oficial. Os quadros de revolta social e a busca por melhores condições de vida, por muitas vezes, produziram espaços de resistência, como relatamos anteriormente, servindo também para corroborar com a ideia da procura pela “terra sem males” e sua característica cíclica, em tempos e tempos surgiria um novo líder religioso pronto para guiar e amparar o povo. Tal contexto histórico, juntamente com essas perspectivas religiosa do aparecimento cíclico de líderes populares religiosos é que se prosperou a figura do beato e da beata (TOLOVI, 2015), como líderes do povo sertanejo, pregadores da religião. Nesse contexto, vários nomes foram surgindo, sertão à fora, prestando assistência e ajudando as famílias carentes. Atuação de destaque no sertão nordestino brasileiro, teve José Antônio Ibiapina, mas conhecido como Padre Ibiapina. A atuação missionária do Padre Ibiapina e suas formas de assistência aos sertanejos permanecem no imaginário místico-religioso que, posteriormente, vai ser retomado por outros missionários, que podem ser transfigurados pelos seus feitos em Messias. A leitura realizada pelo sujeito do catolicismo popular, pauta-se na concepção religiosa que fora desenvolvida como catolicismo popular sertanejo, pela justaposição dos diferentes sistemas religiosos que fizeram parte do processo de apropriação e expansão colonial no sertão nordestino. [...] os registros culturais da colonização haviam deixado marcas profundas em um processo de miscigenação que envolveu elementos da religiosidade indígena, africana, mas, acima de tudo, das periferias da Europa ocidental, firmada por meio da catequese – principal-
71
mente nos arraiais e aldeamentos. Primeiramente, a partir dos “degredados de Portugal”, dos negros e índios. Depois, pelos pobres e aventureiros imigrantes que chegaram a esta terra. As festas religiosas, as homenagens aos santos, as “negociações” com o divino por meio das promessas, tudo fazia parte de um cenário já constituído. Portanto, a presença de Ibiapina se dará neste contexto de conflitos com base nacionalista, assim como também de conflitos com bases religiosas. (TOLOVI, 2015, p. 44).
A contribuição de Ibiapina para o catolicismo popular sertanejo Padre Ibiapina teve sua atuação missionária no Nordeste brasileiro, no período ao qual a Igreja Católica buscava recuperar seus fiéis, reestabelecendo uma ordem hierárquica superior, dada as tensões políticas entre as elites políticas e eclesiásticas, pelo fim do sistema de padroado. Nessa perspectiva, o auto clero, os sacerdotes, se romanizam e entendem a necessidade de inserir a população nesse contexto, sobre esse aspecto Della Cava (1976) definiu esse processo como tentativa de romanização do catolicismo popular. Ao pensar o contexto histórico do período, o que pontuamos anteriormente foi para a falta de sacerdotes no interior dos sertões, assim a Igreja precisaria de sacerdotes que fossem os responsáveis por realizarem o contato com os sertanejos que se encontravam ligados a um sistema religioso do que era pregado pela Igreja. No entanto, esse encontro entre o sacerdote e o sertanejo põe de frente duas concepções distintas de um mesmo sentido religioso. Para pregar aos sertanejos, torna-se necessário a aproximação do sacerdote ao mundo vivido por esses sujeitos, seus dramas, suas tragédias pessoais e coletivas, seu universo cultural e simbólico. Sob tal aspecto, Barros (2014, p. 118) aponta: Numa região de cultura integrada, como a do sertão nordestino, com sua especificidade estrutural, esse contato, quando vivido coerentemente pelo intelectual católico como pelo menos intelectualizado seguidor, desenvolveu, naquele período de profundo abalo das convicções centenárias, um posicionamento muito mais
72
próximo das tendências autonomistas e voltadas à vida prática da concepção de mundo do catolicismo popular. [...] Libertada do idealismo teórico, fora trazida por um pregador que fala a linguagem e sofre o sofrimento dos seus seguidores.
É sobre essa concepção que vai se desenvolver a atuação do Padre Ibiapina no Nordeste. Sua lógica de pregação, diferenciava-se daquela defendida e realizada em outras missões católicas tradicionais, empreendidas sertões a fora nessa época. A vivência que teve e participando diretamente do sistema cultural integrado existente no sertão brasileiro, vê a necessidade de pregar junto ao povo de outra maneira, não realizando meramente os sacramentos e ofícios, mas participando ativamente da vida do povo e fazendo com que os sertanejos vivessem a vida religiosa cristã em comunidade. Assim empreendeu várias obras de Caridade, sempre mobilizando a comunidade para trabalharem em regime de mutirão, desta forma fazia como a construção de casas de caridade que acolhiam órfãos e viúvas, a construção de açudes para armazenagem de água nos períodos de seca, construção de hospitais e cemitérios para os graves períodos de epidemias, como o surtos do cólera, escolas e outras obras mais, no entanto esse não foi o aspecto fundamental de sua atuação, esse aspecto se deve pelo fato do Padre Ibiapina capacitar os leigos para serem os administradores das obras e dos bens construídos. O conhecimento sobre as calamidades vividas pelo povo sertanejo, permitiu-lhe uma outra forma de atuação missionária junto aos sertanejos. Destaca Tolovi (2015) que, enquanto interessava a Igreja trazer padres e freiras de outras localidades, principalmente da Europa, sendo estes os responsáveis por administrarem os bens, Ibiapina tomou o caminho inverso como enunciamos, capacitando os próprios sertanejos para realizarem a manutenção e administrarem os bens construídos, a população assim era dona das benfeitorias. Nesse contexto surge o papel de destaque tido nas atuações dos beatos e beatas, pautados pelas “[...] próprias vestimentas e postura de piedade, despojados de disputa por espaços de poder na hierarquia, carregavam o simbolismo do sagrado, se doavam integralmente e supriam a ausência do sacerdote” (op. cit. p. 45). Sob essa perspectiva de atuação dos beatos é que Barros (2014), os colocam na posição de líderes intelectuais do universo religioso do catolicismo popular sertanejo. Ao empoderar os sertanejos, pela sua atuação missionária, permitindo uma outra visão da vida religiosa, fomentando, em certos aspectos, a vida 73
religiosa pregada nas concepções do catolicismo popular, Padre Ibiapina acabou por desagradar seus superiores da Igreja, que passavam a vê-lo como disseminador de contextos de fanatismo religioso. A Igreja entendeu sua atuação para além dos limites permitidos pela licença episcopal, que considerava apenas o ato de pregações e realização dos sacramentos. Teve suspenso seu direito a evangelização, em 1883, pelo bispo do Ceará, sendo ainda expulso da diocese (MAGALHÃES; MACIEL, 2015). Mesmo após a suspensão das suas ordens, continuou em sua missão evangelizadora a contragosto da Igreja. Nesse período passou por duas vezes no Cariri cearense, tendo sua primeira passagem sido realizada entre 1864 a 1865 e, em sua segunda visita, permanecendo entre os anos de 1868 a 1869 (DELLA CAVA, 1976). No Cariri realizou, junto a população local obras, nas então localidades de Barbalha, Vila do Caldas, Crato, Missão Velha, Milagres e Porteiras (FIGUEIREDO FILHO, 2010).
Juazeiro do Norte ou a terra sem males do sertão semiárido Essa contextualização sobre a atuação do Padre Ibiapina, nos é importante para entendermos o universo simbólico religioso, no qual o Padre Cícero atou, assim já existia um contexto predisposto para a renovação da crença do ritmo cíclico para o aparecimento de um novo líder religioso popular para o povo. O Padre Cícero inspirou-se na atuação do Padre Ibiapina, como é bem frisado no trabalho de Barros (2014). Sua percepção do contexto popular do povo, segue as mesmas orientações das do Padre Ibiapina, sendo que esta contraria as concepções da alta hierarquia da Igreja Católica. O que se vê é uma atuação forte, por parte do Clero Secular, no intuito de combater a lógica do catolicismo popular sertanejo que encontrava-se disseminado pela população e, que, encontrou adeptos entre sacerdotes da própria Igreja Católica. O Padre Cícero passou a habitar Juazeiro no ano de 1872, Negrão em seu artigo sobre o messianismo brasileiro, já destaca essa data como o início do movimento messiânico em Juazeiro do Norte, estendendo-se até a morte do Padre em 1934. Queiroz (1976), destaca que antes da santidade assumida pelo Padre, ele já era tido como extraordinário, pelos feitos junto ao seu povo, celebrando missas e sacramentos sem receber valores, vivia uma vida sem riquezas, acolhia os sertanejos em períodos de seca, dando-lhes terras e ensinando a cultivar e a preparar diferentes culturas agrícolas para sobreviverem ao período. A visão de 74
um homem extraordinário, um pai que acolhia a todos, passa a chamar a atenção de vários sertanejos que passam a dirigir-se a localidade. No ano de 188920, no primeiro dia do mês de março é que será transfigurado o Padim Ciço em “santo”. O ato hierofânico que marca esse episódio é o “milagre da hóstia” que se transformou em sangue na boca da Beata Maria de Araújo, evento esse onde o próprio sangue de “Cristo” manifesta-se naquele lugar, e daquele momento em diante, a localidade não era mais apenas o sítio Joazeiro, mais um território purificado pelo sangue e que permitiria a salvação das almas. Há esse contexto nos cabe uma questão ímpar; se o que transformou e cosmicizou o espaço foi dado pelo ato hierofânico, por que o milagre foi vinculado ao Padre e não a Beata? Para responder tal questionamento, torna-se necessário entender novamente o contexto vivido a época, período no qual se desenvolvia uma ação da Igreja, no processo de romanização do catolicismo, tendo em vista que ações como as realizadas pelo Padre Ibiapina, só fortaleciam a autonomia e a organização em torno do catolicismo popular e seus líderes, em detrimento a ação das autoridades eclesiais. A projeção que se fez em torno do fenômeno da hóstia, fazendo ser aceito por inúmeros seguidores, liga-se ao conjunto crenças, ritos, símbolos e signos que estão vinculados ao universo religioso do catolicismo popular sertanejo. Refletindo sobre o contexto social e religioso da época, assim retratam o fenômeno Tolovi e Estrela (2015, p. 957, grifo nosso): [...] a hóstia que sangrava representava um símbolo religioso que servia de signo ideológico. Isto é, um objeto (hóstia - pão) foi colocado para além de sua função específica (alimento), extrapolando os limites de sua imanência, projetando um conjunto de ideias que foram aceitas coletivamente. O que só fazia sentido porque refletia e retratava elementos culturais de uma determinada época e de um determinado lugar geográfico. Tornou-se um símbolo que representava um conjunto de ideias que dava sentido às longas caminhadas à “Nova Jerusalém” (Cariri Oeste) [“A Terra 20 A divergências em aportar o ano exato em que ocorreu o referido milagre. Optamos por 1889, por ser o ano citado em diversas pesquisas científicas.
75
Prometida”], dando início às romarias. Não era apenas a fé no sacramento da hóstia. Jesus estava se manifestando. Uma nova esperança nascia. Os relatos tocavam o coração, a alma, o desejo dos crentes sertanejos nordestinos que estavam mergulhados em uma realidade caótica de sofrimento sem fim.
As ideias aqui apresentadas pelos autores, são de grande relevância para inserirmos o que vêm a ser o catolicismo popular sertanejo e a sua espacialização na localidade de Juazeiro do Norte. O fenômeno hierofânico que ocorreu na localidade, ligando-os a figura do Padre Cícero e da Beata, está impregnado do valor simbólico guardado no imaginário do catolicismo popular sertanejo. Anunciava-se naquele espaço uma “Terra Santa”, uma Nova Jerusalém. Mas porque do destaque ao Padre e não a Beata? Novamente Tolovi e Estrale (2015, p. 964) nos trazem uma reflexão sob o contexto vivido a época [...] o cenário de colonialismo, a mentalidade clerical e machista, o racismo muito presente, são todos componentes que dificultariam a aceitação de Maria de Araújo como santa, já que não resolvi o caos gerado pela realidade desafiadora, na luta pela sobrevivência, e o conflito na luta pela manutenção do poder. Por outro lado, Padre Cícero se encaixava muito bem na narrativa simbólica que poderia ser aceita coletivamente.
Tanto para a Igreja, quanto para o sistema simbólico do catolicismo popular sertanejo, era difícil aceitar a Beata como Santa. Em uma sociedade patriarcal, uma mulher goza de menos prestígio perante a coletividade, por ser negra em uma sociedade altamente racista, machista e analfabeta. Não tinha os pré-requisitos para atestarem o ato extraordinário como milagroso. Mesmo após a primeira comissão ter atestado o fenômeno como extraordinário, nada foi feito para confirmar o fato como milagroso. O Padre Cícero passa a defender o milagre, colocando-se contra a hierarquia da Igreja, que solicitava que o Padre negasse, que o sangue era de Cristo, e evitasse sua propagação. No entanto, rapidamente fora ganhando mais adeptos sertão a dentro. Levas cada vez maiores de romeiros se deslocavam para Juazeiro. O importante do ato, pautava-se na hierofania, que corroborava com a concepção simbólica 76
do grupo religioso do catolicismo popular sertanejo, a “Terra Santa” se revelava, onde os males poderiam ter fim. “Em busca de um espaço cosmicizado, o romeiro migra de várias partes do sertão nordestino em direção à terra do seu padrinho” (COSTA, 2011, p. 85). Institui-se uma batalha entre o catolicismo popular sertanejo e o catolicismo romanizado. A hierarquia eclesiástica se pôs ao combate ao que chamavam de movimento de fanáticos ignorantes, lutavam contra a propagação do ato ocorrido na localidade, sendo este um risco para a Igreja, pois fortaleceria a concepção do catolicismo popular sertanejo. A Beata foi retirada da localidade, levada até a sede do município, a cidade do Crato, e exposta a uma segunda comissão de inquérito, decidida a concluir com embuste os atos extraordinários acontecidos em Juazeiro. Submeteram a Beata a diversas situações de constrangimento, fazendo desacreditar-se no ato que viverá. Por outro lado, o Padre também foi alvo da Igreja, tendo seus votos suspensos, pela não negação do milagre e por ter permitido a propagação das notícias do que havia acontecido na localidade (DELLA CAVA, 1976). Chegou-se ao ponto de sofrer excomunhão por parte da Igreja, levando a uma luta árdua, que se desenvolve até os dias atuais, no intuito de realizar a reconciliação (fato consumado em 13 de dezembro de 2015 - notícia recebida com grande fervor e comemorações pelos seus romeiros) e intentar pelo seu reconhecimento enquanto Santo canonizado pela Igreja. Ao contrário, a Beata continua vitimada nesse processo, dado a estrutura na qual se realizou o fenômeno e das formas como se sucederam os fatos. Não se questionam a santidade da Beata, não é cobrado da Igreja explicações sobre o “sumiço” do corpo da Beata. Maria de Araújo, mulher, negra, sertaneja, sem grandes instruções, fora vítima, e ainda é, das conjunturas na qual se assenta o desenvolvimento das estruturas e dos interesses religiosos. Do contexto simbólico, o que fica marcado no imaginário popular do romeiro é a narrativa simbólica que confirma que o sangue de Cristo se manifestou naquela localidade. Não é o lugar em si que produz a importância em si, nem mesmo o ato hierofânico por si só, mas o sistema simbólico do catolicismo popular sertanejo, que encontrou na narrativa do fenômeno uma estrutura de aceitação coletiva, que legítima daquele momento em diante o movimento messiânico que se desenvolveu em Juazeiro. Refletindo esse aspecto, destaca-se que [...] o cenário de colonialismo, a mentalidade clerical e machista, o racismo muito presente, são todos compo-
77
nentes que dificultariam a aceitação de Maria de Araújo como santa, já que não resolvi o caos gerado pela realidade desafiadora, na luta pela sobrevivência, e o conflito na luta pela manutenção do poder. Por outro lado, Padre Cícero se encaixava muito bem na narrativa simbólica que poderia ser aceita coletivamente.
Desse momento em diante, o que vai categorizar de forma decisiva a paisagem e o desenvolvimento da localidade do sítio de Juazeiro, serão as tensões simbólicas entre o catolicismo popular sertanejo e o catolicismo oficial. De um lado, o grupo religioso de romeiros lutando para defender seu patriarca e a “Terra Santa”, do outro a hierarquia eclesiástica se colocando a combater o movimento de “fanáticos”, no qual se transformou a localidade. Os desdobramentos futuros do fenômeno estão marcados de forma decisiva nas narrativas e nas lembranças que constituem o grupo social do catolicismo popular religioso. Entendido esse fenômeno, no contexto de estruturação do processo histórico, o qual esteve envolvido o sertão nordestino, constitui-se um sistema simbólico ligado ao sistema de linguagem cultural do catolicismo popular sertanejo e que se espacializou-se na “Terra Prometida”, que se constituiu pela hierofania da hóstia, na localidade de Juazeiro.
Considerações finais Esse contexto no qual surgiu o catolicismo popular sertanejo, tem como palco principal a caatinga ressequida, onde as condições ambientais, juntamente com o contexto socioeconômico vivido por sua população, levaram a ceifar milhares de vidas sertanejas. Destaca-se a caatinga, dentro da compreensão de sertão, pois as áreas de minas e seu entorno, assim como os campos meridionais, desenvolveram-se em uma outra lógica econômica, permitindo melhores condições de subsistência para seus habitantes. O contexto histórico-espacial vivido no sertão da caatinga, produziu um grupo religioso que passou a se reconhecer em uma estrutura simbólico-religiosa que passou a se organizar e reivindicar melhores condições de vida, principalmente em períodos em que a narrativa, forjada no processo de catequização desse grupo, encontrou as bases para organizar os sujeitos, transfigurando líderes carismático em messias e produzindo movimentos de busca pela terra sem males. 78
Tomando por base a localidade de Juazeiro do Norte, vemos esses aspectos presentes nas formas de espacialização dos símbolos, signos, ritos e sistemas de crenças, vinculados ao grupo do catolicismo popular sertanejo. Sua crença na terra sem males não esta diretamente atrelada ao líder carismático mas, antes de tudo, a uma narrativa que produz sentido a um grupo religioso que encontra uma forma de defender e especializar seu sistema simbólico através da terra prometida, transfigurando a localidade de Juazeiro do Norte na “Meca dos sertões”.
Referências BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da Mãe de Deus. 3. ed. Fortaleza: IMEPH, 2014. CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: o pensamento mítico. II. São Paulo: Martins Fontes, 2004. COSTA, Otavio José Lemos. Canindé e Quixadá: construção e representação de dois lugares sagrados no sertão do Ceará. 2011. 216 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009. FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. v. IV. Fortaleza: Edições UFC, 2010. HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro 1550-1800: ensaio de interpretação a partir dos oprimidos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. ______. Verdadeira e falsa religião no Nordeste. Salvador: Editora Beneditina, 1972. MAGALHÂES, Célia; MACIEL, Vilma. Padre Ibiapina: máximas, casas de caridade e o seu pensamento evangelizador. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2015. 79
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Revisitando o messianismo no Brasil e profetizando seu futuro. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: v. 16, nº. 46, jun. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092001000200006&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 18 de abril de 2017. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. TOLOVI, Carlos Alberto. Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso. 2015. 233 f. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Pontífice Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. TOLOVI, Carlos Alberto; ESTRELA, Eliane Nunes. Ela fez o milagre e ele foi santificado. Maria de Araújo: gênero e relação de poder no colonialismo religioso. Anais dos Simpósios da ABHR. São Paulo, p. 954-972, 2015. Disponível em: <http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/issue/view/22>. Acesso em: 24 de abril de 2018.
80
CORPOS QUE CANTAM, REZAM E ENSINAM: PRÁTICAS EDUCATIVAS ENTRE OS PENITENTES IRMÃOS DA CRUZ DE BARBALHA/CEARÁ. Cícera Patrícia Alcântara Bezerra21
Questões iniciais Este texto se configura como o fragmento de uma reflexão mais complexa realizada quando da experiência de construção da minha dissertação de mestrado em História, concluída no ano de 2010 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e que teve como tema as narrativas, as memórias e os lugares de (re) encenação da experiência com o sagrado do grupo de penitentes Irmãos da Cruz, da cidade de Barbalha/CE. Nas linhas que aqui escrevo, irei contemplar um aspecto que não foi diretamente explorado por minha dissertação de mestrado, mas que atravessa de modo muito evidente a experiência religiosa e cultural desse grupo: a organização e proliferação de práticas e saberes possuidores de uma dimensão educativa e que se alicerçam principalmente nos conhecimentos tradicionais (e transmitidos oralmente) desse grupo religioso formado unicamente por homens residentes no Sítio Cabeceira, em Barbalha/CE. No nosso entendimento, tais práticas educativas tem o intuito, dentro da configuração dos Irmão da Cruz, de educar para a salvação, para a purificação, para a transcedência. Apresentaremos aqui alguns argumentos que buscam evienciar essa percepção. Como já indicado, compreendemos que há nessa experiência com o sagrado uma experiência educativa, de transmissão, do que não se quer deixar 21 Doutora em História – UFPE. Historiadora do IPHAN/PI
81
esquecer, do que se deseja que o outro aprenda, guarde, transmita, “congele”, da magia que há em se projetar para o futuro, para o devir, parte da mística que dá sentido à experiência coletiva desses sujeitos. Os Irmãos da Cruz praticam e educam através de sua religiosidade. Pelo corpo, pelas rezas, a partir dos mais de 180 benditos, pelos instrumentos de sacrifício. Mas também pelo invisível e pelo imaginário. Pelo que não é concreto, não é exato. Seus conhecimentos não estão na escola, no ensino formal. Mas há uma formalidade no que se refere à sua experiência religiosa. Há uma métrica, há um protocolo, há um conjunto de regras explícitas e implícitas que se modificam com o tempo e que se costuram tendo em vista o terreno da memória. Neste sentido, iremos abordar em nosso texto ensaístico alguns desses aspectos, tendo em vista o contexto de (re)leitura que esses homens fazem da religiosidade católica tradicional. Nosso entendimento é de que tais práticas educativas aparecem no modo como esses sujeitos lidaram(e ainda lidam) efetivamente com as temporalidades que são manuseadas quando de suas práticas e discursos de sacralização. Teremos como ponto de partida (e também de chegada) o universo religioso do catolicismo popular contemporâneo.
Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo: o tempo ensinado por meio da Penitência. Ao chegar ao terreiro de um conhecido, ao cumprimentar no início ou no final do dia, no encontro do grupo para algum ritual religioso: Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo é acionado como momento em que a noção de grupo é trazida à tona pela Irmandade da Cruz. É, neste sentido também, espaço de ensinamentos sobre as prédicas religiosas e culturais que ligam os Irmão da Cruz a um tempo de memórias para o Cariri cearense. É o momento em que esses homens se encontram com seu passado, com seus mitos fundadores autoreferenciados. Tal frase remete-se, assim, à passagem de Padre Ibiapina por Barbalha em meados do século XIX. Sempre que em uma reunião esses sujeitos pronunciam “Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo”, é a voz de Ibiapina que ressoa de certa forma naquele momento. É a persistência da oralidade, da caprichosa função da memória e também do tempo das experiências culturais contemporâneas. Neste sentido, entendemos que a passagem de Padre Ibiapina pelo Cariri cearense, em meados do século XIX, estabelece muitos recortes temporais. “O padre que veio trouxe a ordem, trouxe o livro com os benditos, deu os cantos, deu a música, fez tudo”. Tal elemento de criação não está unicamente presente 82
nas frases e benditos proferidos por esses sujeitos, mas encontra-se também (e talvez principalmente) no corpo em constante trânsito pelos lugares pelos quais as narrativas vão de desenhando. Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo, mais do que parte de uma complexa memória herdada, é, na nossa compreensão, a confluência de muitas experiências que vão se tornando contemporâneas nos momentos em que são enunciadas. Tais experiências se tornam contemporâneas porque educam, porque atravessam o tempo para passar algum tipo de mensagem para o presente, mas também para o futuro. De acordo com Celso Mariz (1980, p. 92) tal cumprimento era usado por Ibiapina nas correspondências que este trocava com seus discípulos, bem como nas cartas que endereçava às autoridades legais solicitando auxílio para as vítimas das secas que assolaram o sertão da segunda metade dos oitocentos. Serviria como forma substitutiva para o seco bom dia ou boa noite”. (MARIZ, 1980, p. 93). No cenário específico da Irmandade da Cruz, esse cumprimento serve para legitimar os laços que sedimentam a identidade desses homens enquanto grupo religioso. No tempo em que a Irmandade da Cruz professa essas palavras, bem como quando transita periodicamente para o balneário do Caldas, local de memória da experiência de Ibiapina no Cariri cearense, o que se busca é ritualizar suas práticas culturais, é dar sentido à ligação do grupo com o processo de expurgação dos pecados trazidos pela epidemia de Cólera Morbus, por exemplo. Caminhar por esse espaço delimitado também é, do passado para o presente, educar o corpo e o espírito, para os ensinamentos e prédicas deixadas por Ibiapina “É, às vezes nós ia pro Caldas de pé, saía daqui oito horas da noite, chegava no Caldas embaixo de Chuva. Rezava no Cemitério, na Capela, na igrejinha, nós rezava: me disse o Penitente Deoclécio em entrevista que me permitiu em 14 de abril de 2009. Ibiapina está presente também nos objetos e espaços ritualísticos que a teimosia da memória insiste em dizer que foram trazidos por esse religioso em meados do século XIX. Eles são a materialização desse vínculo espiritual-religioso: “Ele construiu casa de caridade em Crato, deixou as beatas, construiu uma casa de caridade em Barbalha, deixou as beatas e os penitentes, descobriu o Caldas, subiu descobriu, fez o cemitério da Macaúba, desceu fez o cemitério de São Raimundo desceu fez aquele ali, desceu e fez, desceu e foi-se-embora”.
83
Para Joaquim Mulato, tendo em vista a entrevista realiza em abril de 2009 e explicitada acima, Ibiapina teria ido diretamente dali para o estado da Bahia, local em nenhum momento privilegiado pelas fontes escritas a que tivemos contato como rota das missões Ibiapianas. O primeiro Decurião parece estar contando um causo a pouco ocorrido, fala com a intimidade e com a confiança de quem parece ter vivido/observado aqueles acontecimentos de perto, disfarçando os quase cem anos que o separam de Ibiapina. É assim que Mulato consegue trazer o religioso para o contemporâneo, para o cotidiano da Irmandade da Cruz, para as demandas religiosas, de saúde e também de doença da atualidade de sua fala. Por intermédio de suas palavras Mulato também relaciona a figura enigmática de Padre Ibiapina a um surpreendente contato pessoal desse com um determinado pontífice, anônimo nessas narrativas: “Quem criou? Frei Ibiapina, trouxe de Roma, o papa deu e mandou ele estender aqui, ele estendeu aqui e na Bahia, na Bahia tem que ele estendeu lá, Frei Ibiapina trouxe essa ordem de Roma, ela veio de lá (...) ele vem fazendo penitência, frei Ibiapina, ali ele trouxe essa ordem do papa (inteligível) que lá tem, ele escolheu, qual que dava para fazer na basílica, Irmão da Cruz, mas ela é muito fina (inteligível) não é pesada para andar, é pesada a firmeza que tem que é fina demais, muito fina, quem pode ir chegar lá tá lá (inteligível), tem os cachos. Quando ele inventou cilin, cacho, aí ensinou como é que andava, de dia, se é pra andar a noite, foi pro lado de Bahia e estende lá, a mesma que foi inventada aqui, quem sabia (inteligível) foi ele que trouxe, essa ordem veio do papa”. pág 156.
O Decurião argumenta acima que a ordem leiga Irmão da Cruz existia, de alguma forma, na basílica romana no tempo (organizado pela narrativa, pela memória) em que suspostamente Padre Ibiapina esteve em encontro com determinado pontífice romano, (...) ela veio de lá (...) que lá tem, explica ele, neste sentido. Essa afirmação se faz surgir no intuito de legitimá-la enquanto parte presente da doutrina católica e de seus desdobramentos institucionais. Sendo assim, em sua fala, Joaquim Mulato legitima a permanência desse grupo, nos 84
dias atuais, bem como a soberania do mesmo em relação a outros grupos existentes no Cariri cearense, e por último, legitima as práticas que são apresentadas como reminiscências da atuação desse religioso em terras caririenses. O que é burlado neste instante são as fronteiras espaciais, já que se é realçada a relação pessoal entre o missionário católico (que nunca esteve em Roma de acordo com a historiografia oficial) e determinado Papa (que aparece sem nome na narrativa de Mulato), dando conta do quão prodigioso é o panorama de sua narrativa, dos diferentes saberes que ela aciona. Em torno dos objetos rituais utilizados pela Irmandade da Cruz ems eus rituais auto-punitivos, estes também são traduzidos por Joaquim Mulato como tendo sentidos pedagógicos em torno das práticas religiosas e culturais a eles vinculados. Tais objetos “estão na biblia” e sendo assim, está justificada a sua utilização: Quando ele inventou cilin, cacho, aí ensinou como e que andava de dia, foi ele que trouxe, tem lá declaração na bíblia, tem os cachos” (...) Ninguém deve fazer presente porque antigamente as beatas fazia, os Padres fazia, passava em frente de, se tivesse assim uma casa de caridade passava, cê via tarde da noite, cê via o cacho ta, ta, ta, ele se ‘sacrificando dentro da mulata, padre usava, cilim, andei o mundo todinho e tinha um padre que disse eu tenho um, cilim desse guardado.( p. 66).
Há a experiência de ensinamento e de aprendizagem também no que foi e é vivenciado no cotidiano, à noite, no escuro, entre o silêncio e os açoites, no cemitério e também entre as câmeras televisivas. Há um conjunto de memórias e narrativas compiladas e organizadas entre os mais de 180 benditos aprendidos pela oralidade, na memória, no que foi selecionado, porque algo foi esquecido. Com regras que vão além da cultura escrita, a narrativa ganha assim outras “metodologias” de ensinamento e de aprendizagem. Os benditos, as histórias que desafiam qualquer entendimento histórico mais despreparado, tudo isso contribui para a dimensão particular dessas narrativas. Elas se aproximam de certa imagética tradicional cristã, mas também vão além, bem além de tudo isso. A ritualística também possuí seus traços educativos. Tal educação é nitidamente ágrafa: não necessariamente por negação à escrita, 85
mas principalmente por alimentar-se mais ricamente da oralidade. Joaquim Mulato nos conta que foi na década de 1970 que a Irmandade da Cruz começou a usar as “roponas” que ainda hoje são as indumentárias oficiais desse grupo. Aquilo causou nesses homens certo incômodo, no entanto, obedeceram às regras estabelecidas pela Secretaria de Cultura de Barbalha. E a partir de então, construiram também suas regras próprias. Também durante a sentinela várias são as práticas religiosas e ritualísticas trazidas à tona pelos componentes da Irmandade da Cruz. O modo como o corpo do morto deve ser tratado, quais cânticos devem ou não ser escolhidos, todos esses aspectos são pensados pelo grupo Irmãos da Cruz. De onde esses conhecimentos são extraídos? ninguém sabe ao certo, no entanto, estão todos lá, ano após ano, e devem ser obedecidos à risca, pois fazem parte do processo de purificação do morto, da sua passagem para a vida eterna. É um saber que extrapola o que está na escrituras. Até mesmo a experiência “festiva” desse momento de luto, traz à tona o processo educativo a que esses sujeitos se veem vinculados. Especificamente consideramos que as práticas vivenciadas no período da quaresma servem para a educação do corpo e do espírito desses sujeitos. Acompanhadas de rituais autopunitivos, também há educação do corpo a partir da prática do jejum. Esses corpos ensinam aos demais sobre o sofrimento de Jesus, sobre a necessidade de expurgação dos pecados, sobre a necessidade de purificação, sobre certa aproximação com o que está registrado nas escrituras sagradas. Tendo em vista os vários espaços de purificação do corpo e do espírito aqui apresentados, bem como tendo em vista todo um conjunto de memórias herdadas através das narrativas orais, os Irmãos da Cruz educam-se e educam aqueles que os procuram para o sagrado, para a vida eterna. No entanto, seu principal agente transmissor é (ou pelo menos foi), sem dúvida, Mestre Joaquim Mulato de Souza, que por mais de 70 anos esteve à frente desse grupo religioso, mas que ainda hoje tem sua voz ressoada pelas veres das cabeceiras.
O que ele falava o povo ia procurar e encontrava nas escrituras Joaquim Mulato era (ou ainda é) um narrador exemplar ao desenho traçado por Walter Benjamin: alguém cujas palavras ganhavam uma dimensão de ensinamento, por costurarem de maneira auspiciosa a relação entre passado, presente e futuro. Não necessariamente nessa ordem, muito menos 86
nessa hierarquia. Mas, por ser assim, não é possível afirmar que suas palavras não obedecem a determinado ordenamento: apenas obedecem a uma ordem particular e única. É uma lógica tecida na própria experiência do grupo, forjada na interação entre os sujeitos, na riqueza do substrato de suas interações, de seus fragmentos: nos personagens apresentados tortamente em suas palavras. Quando Joaquim Mulato relata sua infância se projeta um universo complexo de enunciados que desafiam nossa capacidade mais cartesiana de conferir sentido e lógica ao que é vivenciado: o ouvido preso perto da porta, a escuta atenta às vozes fortes daqueles homens. Homens-penitentes. Homens penitência. Homens-memória também. Mulato entra na Irmandade da Cruz entre os anos de 1935 e 1936. Na entrevista que fizemos com ele para a construção de nossa dissertação, ele se atrapalha com a data correta do ocorrido, coisas da memória e também da história. O penitente apenas lembra que tinha 16 anos no período. Sua voz baixinha, então comprometida pela idade, dificultava sobremaneira o entendimento do que fora relatado. No entanto, é possível perceber o quanto a oralidade, o silêncio, a escuta, a mística, fazem parte do seu processo de aprender e ensinar sobre o sagrado. De acordo com o pesquisador Gilmar de Carvalho (CARVALHO, 2005, p. 141), Joaquim Mulato tinha 15 irmãos ao todo, o que lhe forçou a necessidade de trabalho e disciplina rígida desde muito cedo: “A infância foi marcada pela disciplina: minha avó era uma véia do tempo do carrancismo, ela não deixava eu arredar o pé para canto nenhum, só pra escola. Quando tomava banho no Salamanca, “entrava na peia”, e “não tinha com quem brincar”. Talvez daí, venha o tom monástico que lhe era tão característico, a rigidez com que conduzia a Irmandade da Cruz. Joaquim Mulato teve pouquíssimo contato com o ensino regular: apenas três meses. O que não impediu, no entanto, que ele operacionalizasse uma leitura do mundo a partir de uma cosmologia particular, imbuída de elementos e influências diversas: Que em toda vida fui rude pra aprender a ler, mas pra aprender de cor... A pessoa dizia uma coisa e eu ficava com ela na memória”. (CARVALHO, 2005, p. 141). Nada o impediu de dar uma dimensão educativo-religiosa a tudo o que vivenciara e aprendera. Como relatado acima, a memória, o lembrar, o imaginar, foram seus principais veículos de aprendizagem e também de ensinamento moral e religioso. Mulato contara ainda para o pesquisador Gilmar de Carvalho que a partir dos catorze anos de idade, fora “criado” por uma senhora viúva conhecida por 87
Dona Antônia e por outra de nome Teresa. Permaneceu solteiro a vida toda, dedicando-se à Irmandade da Cruz durante mais de 70 anos. (CARVALHO, 2005, p. 141). Foi o responsável pelas decisões mais importantes desse grupo no campo religioso e na relação deste com os representantes dos órgãos públicos municipais, dos órgãos ligados à cultura e das artes, com cineastas da região, pesquisadores e equipes televisivas que procuravam o grupo constantemente. Ele era o principal “filtro” de diálogo entre estes diferentes espaços, estes curiosos pelo que o grupo tinha a lhes apresentar. Em 2004 Mulato tornou-se Mestre da Cultura Tradicional do Ceará, o que lhe conferiu, ainda mais reconhecimento, poder, mas também legitimou seu saber, não apenas entre o restante do grupo, como entre outros moradores do Sítio Cabeceiras e talvez ultrapassando fronteiras ainda mais distantes. Tendo como base a imagem do narrador apresentada na obra de Walter Benjamin, torna-se interessante pensar os processos de transmissibilidade e comunicabilidade com que a oralidade no Sítio Cabeceiras se engendra no desenrolar de suas configurações épicas e pedagógicas. O narrador é na concepção benjaminiana o sujeito que agrega no interior de seu itinerário discursivo redes de sociabilidades intercambiáveis. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores (BENJAMIM, 1994, p.2). Esse jogo de interesses, tensionado obviamente pela preocupação em “conservar” determinadas imagens e signos (transmissíveis as futuras gerações) abre algumas janelas, no entanto, para que possamos observar por entre suas frestas, o que a contrapelo foi experimentado e reorganizado na (s) memória(s) outras: o que pode ser lembrado e o que deve ser efetivamente esquecido. Assim como já indicado, consideramos Joaquim Mulato um bom narrador no sentido benjaminiano, já que este desliza de maneira fluída sobre diferentes temporalidades/espacialidades, as organiza de modo bastante particular, principalmente quando ele está relatando a sua própria trajetória pessoal/ religiosa. De trinta e cinco para cá nunca deixei, eu tinha 16 anos, (...) Fiquei discípulo uns dez anos, eu entrei em trinta e seis, depois de dez anos andando com a Cruz, tomei a frente”. As experiências trazidas à tona pelo narrador aproximam do ouvinte um emaranhado de acontecimentos que permite a este último certa liberdade de construção de outros itinerários, algumas vezes com estreito vínculo com as primeiras coordenadas, outras vezes, tomando caminhos adversos dos primeiros. Nesta compreensão, a narrativa só existe e tem sentido na e pela interação 88
entre esses sujeitos, bem como entre o que se fala e o que se silencia. Joaquim Mulato se desdobra e consegue desdobrar também a trajetória dos sujeitos e das temporalidades, que parcialmente enraizadas, ganham outro sentido na sua fala, a partir de um ritmo quase musical, quando essas histórias estão inseridas no mundo dos seus benditos e ladainhas. Um desses benditos é o ABC do Divino: Joaquim conheceu a ordem dos penitentes com 12 anos, quando ouviu, numa noite de lua clara, vozes que cantavam o “ABC do Divino”. Achou bonito e perguntou à madrinha quem eram. A resposta foi de que se tratavam dos penitentes (Notícia publicada no caderno Cidade do Jornal cearense Diário do Nordeste, em 25 de fevereiro de 2009). É interessante o bendito se chamar “ABC do Divino”, e é até irônico imaginar que um cântico, atravessado pela lógica oral, se denominada de ABC, algo que remete ao processo de codificação das letras, de organização formal das palavras. Mas ele é também “do Divino” e por assim ser, obedece a regras que fogem completamente de uma lógica cartesiana, são regras da sacralidade, do invisível, do intransponível. A partir da significativa carga representacional represente em sua fala e atitudes, Mulato possuía uma autoridade que transbordava as questões administrativas da Ordem da Cruz. Sua autoridade vinha da sabedoria que suas palavras remetiam: Porque quando ele dizia não era não, e os outros obedeciam fielmente, era o mestre”(Entrevista realizada com Celene Queiroz no dia 28 de outubro de 2009). Dentro desse universo, a função de reatualização constante dos preceitos morais e religiosos por meio de seus conselhos, torna-se fundamental para a tentativa de fortificar determinados laços de parentesco e de identidade religiosa entre o grupo e do grupo com outros personagens. O narrador é um homem que sabe dar conselhos, afirma ainda Benjamin, e é exatamente também a partir do que fora vivenciado por outros homens que Mulato retira os conselhos que elabora, a experiência se desloca assim do terreno do vivido pessoalmente para se encontrar com o que é trazido à tona pelas palavras e pelos gestos que o procederam temporal e espacialmente. Dar conselhos é ensinar. Compreendemos que, ao fabricar santos, Joaquim Mulato também atravessa o campo das práticas educativas. Ele não nos disse com quem aprendeu aquele ofício. Mas são santos de fabricação muito particular, que ora se assemelham muito com os fabricados em larga escada na cidade de Juazeiro do Norte, e que são vendidos aos romeiros, mas que possuem as especificidades do trabalho autoral de Mulato. Representam assim o seu “jeito particular” e também de seu 89
grupo religioso de interpretar a imagética do divino, suas temporalidades e espacialidades. Não tomamos ciência que Joaquim tenha ensinado esse ofício para outros aprendizes no sítio cabeceiras, no entanto, como suas obras ganharam certa visibilidade perante o significado que este homem adquiriu para além das cabeceiras, acreditamos que seu jeito de fazer santo, fez escola. O processo de ensinamento e aprendizagem dos aspectos religiosos-culturais se faz também a partir da relação entre esses homens e os outros personagens do Sítio Cabeceiras. Há todo um conjunto de regras que são obedecidas pelos moradores e que dizem respeito diretamente ao movimento das ações sagradas tecidas pelos Irmãos da Cruz por intermédio de suas práticas religiosas. Há regras invisíveis e aprendidas também tendo em vista o diálogo entre eles e o poder público municipal de Barbalha desde da década de 1970. Neste sentido, é fascinante acompanhar como Joaquim Mulato narra ao seu modo aspectos históricos da religiosidade católica. O encontro entre personagens, que uma cronologia oficial não permitiria que se encontrassem, é estabelecido quando Mulato descreve as interações possíveis entre Jesus Cristo, o Papa e o “Frei Ibiapina”, como ele chamava. O casamento (na suas particularidades religiosas e laicas) é também um aspecto integrante do percurso de identidade/identificação dos Irmãos da Cruz, tornando-se imprescindível que sejam mantidos os preceitos morais (e tradicionais) que o norteiam. Joaquim Mulato fazia questão de relembrar tais prerrogativas e de aplicá-los àqueles que o procuravam para pedir conselhos. Suas prédicas intermediavam assim a relação entre o sagrado e o profano, entre a Igreja de Roma e o estado civil. (...) Era era só casa civil, ai seu Joaquim não aceita, num aceitava, mais eu insistia, insistia, só que ele num mandava eu voltar não, também eu não chagava perto dos meninos para andar junto como hoje eu ando, ai, mais ele também num ia com ignorância e tudo, só que ele dizia, Doda tem, procura, casar na Igreja que você é do grupo, ai eu tô sabendo que você tem a vontade, mas só que as leis não promete pra você andar mais nós junto, mas nunca me espancou, ai foi no ano que deu certo eu me casar na Igreja, eu me casei, como hoje, como amanhã, eu já acompanhei eles, até hoje. (p. 146).
90
As leis à quais Joaquim Mulato se referia em seus sermões domésticos são fundamentalmente de caráter religioso e moral. Estar casado na Igreja Católica nesse panorama significa estar de acordo com as regras doutrinárias que regem uma religiosidade que é ao mesmo tempo «criadora» de espaços próprios, mas que também negocia cotidianamente pontos de contato e de assimilação estratégica com seus interlocutores. A própria relação com essa Igreja, que se modifica no decorrer do tempo, é recheada de discordâncias e reapropriações. Neste aspecto, Joaquim Mulato, com muita facilidade e naturalidade, fazia uma intermediação entre o conjunto de regras estabelecidas pela hierarquia da Igreja Católica e o universo de prática construidas no cotidiano da própria Irmandade da Cruz. “O que ele falava o povo ia procurar e encontrava nas escrituras”, foi uma frase professada por Dona Teresina, ex-componente do grupo de incelências localizado no Sítio Cabeceiras. Tal senhora travou diálogo conosco durante a entrevista com seu marido e penitente da Irmandade da Cruz, Francisco Severo, conhecido como Chico Severo. Compreendemos que essa fala resume muito bem o papel de Joaquim Mulato como educador do espírito não apenas para os Irmãos da Cruz, mas também para toda comunidade do Sítio Cabeceiras: ele é um (re)leitor das escrituras, um tradutor, para ser mais exata.
Palavras finais Numa segunda-feira de Carnaval, 23 de fevereiro de 2009, as emissores de rádio e televisão bem como alguns jornais impressos cearenses noticiavam o falecimento inesperado de Joaquim Mulato de Souza, que durante mais de sessenta anos foi líder da Irmandade da Cruz. Seu falecimento, ainda que pareça forçoso afirmar, se configurou como um importante marco temporal de ruptura com um tipo de vivência e aprendizagem religiosa que tinha nesse sujeito um lugar central. É possível a afirmar que parte significativa dos ensinamentos, das aprendizagens, das memórias desse grupo religioso, se perderam como o falecimento trágico de Mulato. Mas outras tantas, se (re) significaram a medida que o tempo foi passando. Entre o início de nossas idas ao Sítio cabeceiras (2004) e a escrita e defesa de nossa dissertação de mestrado (entre os anos de 2008 e 2010), algumas mudanças foram visíveis na Irmandade da Cruz. Para além do falecimento de Joaquim Mulato, muitos atores entrarem e saíram de cena. A relação com a administração 91
pública de Barbalha, com a Igreja Católica oficial, com pesquisadores e curiosos, se redefiniu de modo muito evidente. Mas também tivemos (re)definições no interior da própria Irmandade da Cruz. Nossa análise, as conclusões que aqui foram extraídas, expressam um contexto específico, representam um recorte temporal moldado pela atuação de muitos agentes, principalmente pela atuação central de Joaquim Mulato de Sousa. É do tempo da fala dele até o tempo onde sua memória alcançava. Como já explicitado anteriormente, com a morte trágica de Mulato no ano de 2009, de certa forma o futuro da Irmandade se percebeu como ameaçado. No entanto, outros caminhos foram (re)formulados, outros atores vieram à tona, outros processos de espacialização se fizeram possíveis. (FERNANDES, 2021). Os “novos” atores que entraram em cena, reivindicaram entre si o papel de liderança do grupo. Durante certo tempo, alguns dos atores que sucediam Mulato na função de Decurião assim permaneceram como seus legítimo sucessores, a partir de certa altura, essa lógica se refez com o falecimento ou afastamento desses sujeitos. Outras narrativas, outras memórias, outras leituras dos textos sagrados, foram então introduzidas. Nos fica a pergunta inevitável sobre de que maneira esses sujeitos continuam compartilhando narrativas em prol da salvaguarda de suas memórias, histórias e saberes. Que tipo de saber ainda permanece e que tipo de saber se (re)significou ao longo do tempo. É difícil vislumbrar o futuro quando se têm certeza (palavra difícil) que a cultura é dinâmica, fluída e surpreendente. E que a memória também assim o é. Que aspectos vão continuar como prédicas religiosas, doutrinárias e educativas dentro dos Irmãos da Cruz? só o tempo (da memória) poderá nos dizer.
Referências BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. p. 197 - 221. BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Outras histórias: memórias e narrativas da Irmandade da Cruz- Barbalha/CE. Recife, 2010. CARVALHO, Anna Christina Farias de. Sobre o signo da fé e da mística: um estudo das Irmandades de Penitentes no Cariri Cearense. Tese de Doutorado em Sociologia, João Pessoa: UFPB, 2005. 92
CARVALHO, Gilmar de. Artes da tradição: mestres do povo. Expressão Gráfica/ Laboratório da Oralidade/UFC/UECE, 2005a. CAVA, Ralph Della. Milagre em Joazeiro. São Paulo: Paz e Terra, 1985. FERNANDES, Daiana da Silva. Cemitério no quintal: patrimônios, poéticas e políticas dos lugares. Monografia em Ciências Sociais. Universidade Regional do Cariri - URCA, Crato, 2021.
93
ANCESTRALIDADE INDÍGENA: LUTA E RESISTÊNCIA NAS COMUNIDADES DO DISTRITO DE BAIXIO DAS PALMEIRAS, CRATO – CE Francisco Wlirian Nobre22
Introdução Do Baixio das Palmeiras se vê a Chapada do Araripe, acordar cedinho e contemplar a natureza da chapada é a mesma coisa que fazer uma oração, é um pacto cotidiano que se faz com os nossos irmãos humanos, com as plantas, com os animais e com todas as demais formas de vida. Saber de onde vem essa relação com a natureza e como ela vem sendo transmitida ao longo do tempo através da cultura é uma questão que instiga a escrita deste artigo. O objetivo central desse estudo é apresentar as comunidades do distrito de Baixio das Palmeiras como um território do patrimônio imaterial da região do Cariri cearense que se expressa nos elementos da ancestralidade indígena que chegou até o presente nos hábitos, na espiritualidade, nos costumes, nas manifestações culturais e no comportamento do grupo social que vive neste território. A nossa hipótese é que toda essa riqueza expressa no patrimônio imaterial remete ao Baixio das Palmeiras como um território originário, cuja população em conexão profunda com a natureza descende dos povos Kariris. Para escrever esse texto me afastei das normas e conceitos da ciência moderna centrada na Europa como centro do mundo. Se a guerra, o massacre e o 22 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia - PPGG da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba – FAPESQ/CAPES. Email: lironobre@yahoo.com.br
94
genocídio dos povos originários foi a forma política de dominação e controle dos territórios, a ciência moderna eurocentrada foi um instrumento para extinguir as subjetividades que resistiam. Acredito que a colonialidade logrou não apenas a destruição da materialidade dos povos originários, mas também as diversas possibilidades cognitivas de leituras de outros mundos. Desta forma, a partir de estudos regionais dos povos Kariris me aproximo de Castro (2004), que através das cosmologias ameríndias apresenta os perspectivismos e o transformismo cosmológico como condição para compreensão da realidade. Também me apoio em paradigmas científicos emergentes que procuram romper com a ciência dominante como a Ecologia Política e pensadores indígenas como Ailton Krenak e Davi Kopenawa. A partir do nosso recorte territorial constatamos que apesar do passado colonial permanecer como uma marca profunda na sociedade brasileira o patrimônio imaterial especialmente originado na tradição indígena vem se expressando com muita força sinalizando uma nova postura diante de mundo orientada no desejo de interromper o padrão de poder dominante que se estrutura na hierarquização de raça, classe e gênero.
O projeto colonial e a tentativa de apagamento dos territórios originários Na Europa, a partir do século XV, foi se constituindo uma economia-mundo baseada em um novo modo de produção que foi denominado de capitalismo. Aos poucos, o desenvolvimento desse novo sistema foi se expandindo para outros continentes levando consigo a sua lógica de dominação e espoliação da natureza, a exploração e opressão de todos os povos que viviam de modo diversamente distinto desse novo sistema. Como nos alude Wallerstein (1974) e Porto-Gonçalves (2006) o desenvolvimento dessa primeira fase do capitalismo comercial forjou o sistema-mundo moderno-colonial que foi avançando num longo processo de expansão de modo que consolidou a supremacia cultural do ocidente definindo a Europa e depois a América do Norte como países centrais nas relações de poder que se estabeleceu na geopolítica mundial. Nas terras que viriam a ser chamadas de Brasil, a Coroa portuguesa, percebeu a necessidade de explorar a mão de obra local e logo autorizou a escravidão indígena por meio da “guerra justa” contra os povos que resistissem 95
a dominação. Mais tarde, a resistência indígena contribui para que o Estado português substituísse a escravidão indígena por negros africanos, tendo em vista que o tráfico negreiro era um comércio extremamente lucrativo na época. O projeto capitalista colonial percebeu também que a catequese cristã poderia ser um importante instrumento para facilitar a conquista das terras dos povos nativos. Nesse sentido, é sob a perspectiva do projeto de aldeamentos católicos, transformando índios brabos em sujeitos mansos e cristãos que os indígenas se tornaram úteis ao projeto capitalista europeu de destruição da natureza, opressão e exploração dos povos originários. Resistir ao projeto colonial significou para a grande maioria desses povos a sua sentença de morte, concomitantemente ocorreu o processo de aculturação, especialmente para aqueles que aceitaram a catequese, que tinha o objetivo de apagar as suas subjetividades e territorialidades. No entanto, é notório que tribos inteiras escaparam de ambos, fugindo da violência do colonizador e da aculturação do missionário passando a vagar sem rumo pelo interior do Brasil, se escondendo e se misturando com as populações locais. Incorporar lentamente as vilas urbanas que se formavam no litoral ou viver em comunidades rurais que surgiam no interior do país foi uma importante estratégia de (re)existência. A invisibilidade para fora foi necessária para esses povos que foram chamados de caboclos e passaram a viver um permanente processo de aculturação difundido pelos órgãos oficiais do Estado brasileiro. Não é raro encontrar, ainda hoje, discursos de que a extinção dos povos indígenas é questão de tempo dependendo do avanço do modo de produção capitalista. No entanto, a imaterialidade dos povos originários é um traço marcante da população brasileira e estão preservadas em centenas de milhares de comunidades tradicionais e periféricas de todo o país com presença marcante no cotidiano das pessoas através da sensibilidade, da memória individual e coletiva, da intuição, dos costumes e do comportamento. No Nordeste brasileiro, a violência contra os povos originários ainda são marcas profundas na sociedade contemporânea, é comum, por exemplo, encontrar em diversos povoados rurais do sertão histórias de avós e bisavós que foram capturadas “a dente de cachorro”, ou seja, mulheres indígenas raptadas e violentadas, muitas delas jogadas na casa grande, no engenho ou na fazenda de gado. Enquanto misturavam-se com vaqueiros e trabalhadores rurais essas histórias foram transmitidas discretamente através de mensagens codificadas. Os processos de intervenções que objetivam destruir as territorialidades originárias nunca param, estão sempre ativos, estão presentes nas leis brasileiras, 96
a exemplo da Lei de Terras de 1850, na ausência de uma Reforma Agrária ou na inoperância para demarcação de Terras Indígenas. Estão presentes nos projetos modernos coloniais como nas obras de transposições, grandes barragens e projetos de mineração e agronegócio, mas também estão presentes em escala menor, a nível local, na especulação imobiliária, no avanço da cidade, na apropriação privada da terra, da água e das florestas. No prefácio do livro “A queda do céu” Eduardo Viveiro de Castro sintetiza as consequências geopolíticas do Brasil no papel que exerce na economia moderna-colonial do sistema capitalista. [...] está mais para uma corporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivada de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas de minério para exportação, coberta por uma espessa nuvem de petróleo que sufoca nossas cidades enquanto trombeteamos recordes de produção automotiva, entupida por milhares de quilômetros de rios barrados para gerar energia de duvidosíssima “limpeza” e ainda mais questionável destinação, devastada por extensões de floresta e cerrado, grandes como países, derrubadas para dar pasto a 211 milhões de bois (hoje mais numerosos que nossa população de humanos) (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.18).
É fato que o processo de exclusão e violência do Estado brasileiro contra os povos originários e seus descendentes está na sua gênese imposta pelas forças do capitalismo central. Ocupando uma posição subalterna e contra seu próprio povo, o Estado brasileiro sempre negou e/ou violou os direitos dessas populações. No entanto, a ideia de progresso material que pretende romper com a imaterialidade ancestral não vai interromper aquilo que chegou até aqui, na verdade vivenciamos um novo momento nessa história, na medida em que se no passado o silêncio foi uma estratégia interna de sobrevivência, agora é o momento de se afirmar publicamente, é o que veremos no próximo tópico.
Ancestralidade indígena no Baixio das Palmeiras O Baixio das Palmeiras, localizado no coração do Crajubar23, na região do Cariri cearense, compreende uma área de chapada, encosta e vale marcada por 23 As três principais cidades da região: Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.
97
uma enorme biodiversidade que se expressa na rica diversidade sociocultural nas comunidades rurais que formam o distrito. Toda a riqueza demarcada pela interação entre seres humanos e natureza deve-se a Chapada do Araripe, um imponente patrimônio natural, que preserva o mais precioso tesouro do sertão nordestino, as águas cristalinas que brotam de suas nascentes despejando fertilidade nos riachos que irrigam o extenso vale. Muitos séculos antes dos primeiros invasores chegarem nessa região os índios Kariris habitavam esse território. O povo Kariri possuía um vínculo muito forte com a água, cuja relação representava a base da vida social, de seu sistema de mundo e de sua sabedoria em relação à vida. Limaverde (2015) sugere que esses povos chegaram na região do Cariri a partir do litoral nos longínquos séculos IX e X24, vindos da região norte, foram expulsos da costa pelos Tupinambás e através dos caminhos naturais dos principais rios nordestinos chegaram as áreas mais úmidas do interior do sertão, como é o caso da região do Cariri. Como o litoral já estava quase totalmente ocupado por invasores euro25 peus as matas e serras do interior se tornaram não apenas um refúgio, mas um espaço sagrado livre do colonizador, a “Terra Sem Males dos Tupis” e a “Vapabuçu” dos Kariri (LIMAVERDE, 2015). No entanto, não demoraria para que as entradas colonizadoras aportassem na região nos primeiros anos do século XIX, conforme demonstra Oliveira (2017, p.125): Daquele momento em diante, propagaram-se de forma rápida as expedições militares e as missões para os afluentes do Jaguaribe, especialmente para o Salgado e Riacho dos Porcos. Por todas as primeiras décadas do século XVIII, as autoridades coloniais buscaram mecanismos para enfrentar a resistência dos inúmeros nativos que habitavam aquelas ribeiras, em especial os da nações Icó e Kariri. 24 Hipótese ainda não devidamente comprovada. 25 As diversas guerras étnicas que ocorria entre as diferentes nações indígenas fazia parte da modo de organização desses povos que estavam em conflitos, mas também trocavam experiências. Dois grandes grupos se destacavam, os tupis ou índios mansos, que falavam a língua geral, e os tapuias, os índios brabos, de língua travada, que resistiram a dominação portuguesa. Quando chegaram aqui os portugueses exploraram essas divergências.
98
Com a tomada dos Cariris Novos26 e a queda do último baluarte de luta indígena contra o invasor, a distribuição de cartas de sesmarias esquadrinhou as terras ocupadas pelos povos Kariris. Aqueles que escaparam do massacre foram forçados a se deslocar novamente, muitos deles permanecem em movimento até hoje, encurralados em aldeias ou jogados no cativeiro da fazenda ou do engenho. Apesar disso, nas comunidades do distrito de Baixio das Palmeiras a presença indígena é marcante e perceptível na memória e na identidade da população, basta um olhar atento na cultura popular, na alimentação e culinária local, na medicina do povo, nas crenças, nos costumes, na linguagem e na sabedoria sertaneja que esse povo carrega (CARIRY, s/d). Vários espaços das comunidades do distrito são evidências notória do universo imaterial que permeia este território. O espaço cultural chamado “Casa de Quitéria” (figura 1), lugar de encontro e resistência, apresenta manifestações do patrimônio imaterial da região do Cariri que se traduz na contemporaneidade expressando as existências pretéritas dos Kariris, cuja construção são resultados de um longo período de interação com a natureza da Chapada do Araripe.
Figura 1: aula de campo na Casa de Quitéria. Fonte: Nobre, 2018. 26 Demarcação usada para diferenciar do Cariri paraibano e do Cariri baiano.
99
A estrutura física da casa por si só, já é uma verdade incontestável a todos, pois com mais de um século e meio, construída de taipa, é um espaço de resistência que procura preservar vários materiais líticos e achados indígenas para criação futura de um acervo arqueológico. A casa vem desenvolvendo iniciativas que expressa a memória ancestral e os significados da imaterialidade sertaneja através de três eixos centrais que passa pela cultura popular, pela agroecologia e pela educação do campo. A Casa de Quitéria igual a tantas outras dispersas nas comunidades foi construída com a sabedoria cabocla e os elementos naturais do próprio local. Ainda hoje há famílias que preferem a casa de taipa, afirmam que é mais fácil de ser construída, é mais fria e mais segura, conforme podemos observar na figura 2 o mutirão para construir uma casa de taipa é um momento de extravasar à sabedoria ancestral indígena que os povos do campo carregam.
Figura 2: construção de casa de taipa. Fonte: Nobre, 2017.
Outra significativa herança indígena que até hoje faz parte do dia a dia dos moradores do Baixio das Palmeiras é a Casa de Farinha Mestre Zé Gomes, na comunidade do Baixio do Muquém, que além de fazer o beneficiamento de 100
alimentos básicos da culinária sertaneja vem se constituindo como um espaço de encontro, de formação e de fortalecimento cultural. A casa de farinha é um espaço para ativar a memória coletiva dos moradores que confere sentido as experiências vividas deste grupo social contribuindo para o repasse geracional e a afirmação da ancestralidade indígena deste grupo social. Num riacho ao lado da Casa de Farinha, um pequeno olho d’água é descrito pelos moradores como a origem da comunidade do Muquém, local outrora habitado pelos Kariris. De fato, as marcas deixadas pelos povos originários estão grafadas em alguns locais do distrito, como por exemplo no lugar chamado “Pedra de Índio” (figura 3) ou em diversas descobertas casuais de sítios com artefatos líticos e cerâmicos além de urnas funerárias27.
Figura 3: pedra de índio. Fonte: Nobre, 2019.
Mas é na imaterialidade que a presença indígena se realiza com mais força, afinal de contas de onde vem o poder curandeiro das rezadeiras se não de seus sonhos e diálogos com os encantados? Ou ainda, de onde vem os saberes sobre 27 Infelizmente não se sabe ao certo o paradeiro das descobertas e muitos desses achados foram destruídos ou levados para fora das comunidades.
101
as plantas medicinais das raizeiras e meizinheiras? São mulheres que desenvolvem práticas de saúde, cura espiritual e todo um cuidado do corpo e da mente através da biodiversidade da flora que se materializa nos remédios caseiros, óleos, essências e cosméticos usados nas comunidades. É dessa sabedoria popular que as famílias caboclas ainda hoje falam sobre a “lenda da Pedra da Batateira”, um dos mitos fundantes da cidade de Crato, que segundo uma de suas versões evocam que a Chapada do Araripe é uma entrada para um grande lago encantado, cujo único acesso é segurado pela Pedra da Batateira, se for profanado a pedra se rompe e toda a água do lago vai inundar o vale (QUINDINS, 2013). Com o passar do tempo, os elementos indígenas dessa narrativa foram sendo incorporados a crença cristã e se fundindo com a ideia do Dilúvio e do Apocalipse28. A lenda da Pedra da Batateira remete ao período da invasão colonial que destruía as fontes de água da Chapada do Araripe. Por mais absurda que possa parecer os mitos e lendas possuem um sentido de existência, por isso que a lenda da Pedra da Batateira e tantas outras que permeiam o imaginário das comunidades rurais do Cariri, são demonstrações de que o povo resiste e apesar da histórica repressão que sofreram continuam firmes e buscam na imaterialidade um encontro com a sua ancestralidade e espiritualidade que se revela nas inúmeras manifestações culturais existentes na região. As diversas manifestações culturais, algumas delas enriquecidas com a matriz africana, que também teve grande influência na formação socioterritorial dessas comunidades, são expressões vivas da ancestralidade indígena e negra. A musicalidade da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto da Chapada do Baixio (figura 4) é um exemplo evidente das sonoridades remanescentes do povo Kariri. Outra manifestação das comunidades do Baixio das Palmeiras é o Maneiro Pau do mestre Chiquim Caboclo (figura 5). Há muitas hipóteses sobre a origem deste folguedo29 que funde arte e luta embalada com o entrechoque dos 28 Antônio Conselheiro em passagem pelo Cariri teve contato com essa lenda, posteriormente peregrinou pelo sertão pregando a profecia de que “O Sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”; Padre Cícero as margens do rio Salgadinho fazia analogia com o rio Jordão e Padre Ibiapina profetizou a nascente do Caldas como uma fonte de água milagrosa. 29 Há relatos de que surgiu com o fenômeno do cangaço nordestino, mas já se cogitou a origem indígena, africana e até árabe. Como a cultura está sempre em movimento acredito que este folguedo foi se transformando com a influência de diversas matrizes.
102
cacetes em ritmo de danças e toadas (CEARÁ, 1978). É uma dança que remete a valentia dos caboclos em suas habilidades no manuseios dos cacetes que eram usados como armas.
Figura 4: Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto do Chapada do Baixio. Fonte: Nobre, 2018.
Figura 5: Maneiro Pau do Mestre Chiquim Caboclo. Fonte: Nobre, 2017.
103
São muitos outros exemplos que podem ilustrar o patrimônio imaterial do Baixio das Palmeiras, desde a rica culinária regional (figura 6) até mesmo a crença na mística dos encantados que permanece no imaginário infantil com figuras folclóricas como a caboquinha, o pai da mata e outras assombrações. É nesta conjuntura de resgate que as comunidades do Baixio das Palmeiras vão aos poucos extravasando esse pertencimento ancestral e passam a se autoreconhecer como indígena rompendo com a história oficial que nega e viola os direitos dessas populações de se reconhecerem como tal.
Figura 6: Agricultora pilando milho para o preparo do fubá. Fonte: Nobre, 2019.
Obviamente que esse processo de autoreconhecimento é uma luta cotidiana contra o discurso de desenvolvimento que sufoca as territorialidades indígenas e tradicionais. Desde 2013, as comunidades do Baixio das Palmeiras vem enfrentando um drama de serem impactados pelo Cinturão das Águas do Ceará – CAC30, um megaprojeto moderno-colonial que pretende desterritorializar dezenas de moradores das comunidades. Com a organização de um movimento de resistência contra o obra, os moradores conseguiram barrar 30 Recentemente essa obra recepcionou as águas da Transposição do Rio São Francisco no chamado “Eixo Emergencial (lotes 1 e 2). No Baixio das Palmeiras (lote 3) somente os estudos e parte das indenizações foi executada.
104
momentaneamente a construção dos canais e até a finalização deste artigo nem mesmo as pendências indenizatórias das famílias atingidas havia sido resolvida. Nesse sentido, este artigo defende a ideia de que a violência da colonialidade31 que perdura por mais de cinco séculos vai se retroalimentando até o presente com estratégias sutis e sofisticadas, no entanto a resistência e a luta dos povos é o revés desse processo. Por muito tempo esses povos ficaram à margem da história agora chegou o momento de gritar e avançar.
Considerações Finais Em 1863 um relatório regencial decretou a extinção dos povos indígenas no território cearense, este fato é elucidativo para interpretar a posição das forças políticas em relação aos povos originários. Embora seja absurdo extinguir as nações indígenas por decreto, como se isso fosse possível na prática, a elite fundiária brasileira32, permanentemente dominando o Estado brasileiro, independente das formas de governo, sempre conspirou não apenas para destruir a materialidade desses povos mas também todos os seus significados territoriais que estão dispostos na subjetividade coletiva. Declarar esses povos como extintos, esconder a sua materialidade, faz parte do projeto moderno-colonial e sua ideologia racista necessária para a dominação dos países centrais do capitalismo que conforma o Brasil apenas como um território produtor de matérias primas que podem ser pilhadas com exploração e opressão do seu próprio povo. Para uma ínfima burguesia subalterna as migalhas do capital são suficientes para manter o país na condição de dependência do sistema. Basta olhar a nossa volta e perceber a guerra sem fim que os povos ditos civilizados travam com seus irmão humanos e com a natureza. Krenak (2019) de forma assertiva nos faz uma pergunta chave: é desta humanidade civilizada que queremos fazer parte? Certamente se não fosse as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e que inspira a luta e resistência contemporânea com arte e criatividade o mundo seria caótico dominado pela anarquia do 31 Conforme afirma o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves o colonialismo passou, mas a colonialidade permanece. 32 Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro fortaleceu um discurso de extermínio físico e subjetivo dos povos indígenas que são considerados como inimigos e entraves para o progresso do país.
105
capital que opera num ritmo de acumulação infinita de destruição da natureza, opressão e exploração dos povos. Em contrapartida, a luta contra esse sistema nunca parou e foi sendo transmitida de geração a geração com expansão das subjetividades e das experiências vivenciadas por nossos ancestrais. É esta a ideia principal que o presente artigo deixa para o leitor, ao compartilhar as vivências das comunidades do Baixio das Palmeiras esperamos que o estudo possa contribuir para tirar da invisibilidade a memória ancestral garantindo assim a autodeterminação dos povos.
Referências CARIRY, R. Cariri – a nação das utopias. s/d CEARÁ. Secretaria de Indústria e Comércio. Manifestações do Folclore Cearense. Departamento de Artesanato e Turismo e Empresa Cearense de Turismo: Fortaleza, 1978. KOPENAWA, D.; BRUCE, A. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. LIMAVERDE, R. Arqueologia social inclusiva: a fundação casa grande e a gestão do patrimônio cultural da Chapada do Araripe. Tese. Nova Olinda: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2015. PORTO-GONÇALVES, C. W. De saberes e de territórios: diversidade e emancipação a partir da experiência latino-americana. GEOgrafia. Ano VIII, nº 16, p. 41-56, 2006. OLIVEIRA, A. J. Os Kariri-resistências à ocupação dos sertões dos Cariris Novos no século XVIII. Tese. Universidade Federal do Ceará – UFC: Fortaleza, 2017. QUINDINS, R. O rio Mitológico dos Cariri. Disponível em: https: //www 20.opovo .com.br/ app/opovo/vidaearte/2013/05/18/ 106
noticiasjornalvidaearte,3058213/rio-salgado-o-rio-itologico-do-cariri.shtml): Acesso 12, mar, 2021. WALLERSTEIN, I. O sistema mundial moderno. Vol. II: o mercantilismo e a consolidação da economia-mundo europeia, 1600-1750. Porto: Ed. Afrontamentos, 1974.
107
A EDUCAÇÃO PÚBLICA E AS PRÁTICAS CULTURAIS DE ORIGENS AGRÁRIAS AGREGADAS À FESTA DE SANTO ANTÔNIO DE BARBALHA NO CEARÁ. Désirée de Sá Barreto Diaz Gino33
Introdução A reflexão sobre o atual comportamento educativo da escola e a distância entre ele e a perspectiva de reconhecer a própria prática cultural das comunidades de origem como educações vislumbradas nos saberes historicamente herdado entre gerações, com seus significados e simbologias, tornam um desafio para esta investigação, na qual está propondo a educação patrimonial nas escolas municipais como uma ferramenta para trabalhar a preservação do patrimônio imaterial. Com a finalidade de colaborar para o estudo da preservação do patrimônio imaterial nas áreas da educação e cultura popular, esta pesquisa teve como objeto determinante entender como as práticas culturais de origem camponesa são incorporadas pela educação formal a partir das escolas de ensino fundamental público municipal: Antônio Costa Sampaio e César Cals de Oliveira. Quando nos referimos a camponeses queremos evidenciar pessoas que vivem na e da roça, que se perpetuaram nestas localidades e sobrevivem na contemporaneidade, numa labuta diária e árdua mostrando sua resistência através da cultura popular. Seus saberes, experiências de vida, hábitos, costumes, crenças, etc, denominamos nesta investigação de educação informal, que emana do povo, sem regras estabelecidas. 33 Mestra em educação pela Universidade Regional do URCA. Email:desireegino@ hotmail.com
108
Entrevistamos alunos, professores, gestores, mestres, brincantes, profissionais da cultura popular, secretários municipais e estaduais de educação e cultura, funcionário da superintendência do IPHAN no Ceará, no intuito de atingirmos o objetivo proposto neste trabalho. Mostramos a necessidade que o sistema educacional em Barbalha/CE tem de incluir em seu currículo a educação patrimonial para que as novas gerações cultivem a sua identidade comunitária e sintam-se pertencentes a cultura do município. Mas para que isto seja efetivado precisamos da elaboração de uma política pública municipal dando suporte. Essas manifestações se expressam nas comunidades do entorno da Chapada do Araripe, situada na confluência dos sertões do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Piauí. É um geoparque habitado, com forte cultura, com destaque para os grupos de brincantes, a religiosidade, o artesanato e a gastronomia, sendo protagonizadas por trabalhadores do campo, e anualmente incorporadas aos festejos do padroeiro da cidade, abrindo os festejos juninos do nordeste brasileiro. Contudo, a expressividade desse festejo ao agregar as práticas culturais camponesas ignora a existência histórica e a vinculação da existência dessas manifestações de cultura popular em relação às comunidades e suas respectivas localidades de origem. A relevância do tema se encontra na discussão de que essas expressões culturais se fazem presentes no município de Barbalha e se manifestam como saberes afro, indígenas, luso, herdados por sucessivas gerações e não raro, marcada pela mistura de expressões que historicamente se fundem na formação social brasileira além de que as expressões da cultura imaterial também se faz presente na materialidade da cidade, integrado por sobrados, casarões que se constituem ponto de apoio da memória, como expressão simbólica e social da sua construção histórica e que ainda não está compreendida pela sociedade. Na tentativa de promover uma reflexão acerca de nossa realidade começamos então a ler e refletir sobre educação patrimonial e conforme Horta (2001, p.4) esta é “[...] o mais poderoso instrumento, para a ativação e o reforço da Memória Coletiva, através do processo educacional, permanente e formal”. Nestas circunstâncias, percebemos que a importância da preservação do patrimônio no seu contexto imaterial dialoga com a memória, e promove a sensibilidade e conscientização. Ele contribui com a formação dos nossos valores e sentimentos, e sendo que a consciência das nossas manifestações culturais promove reflexões de impacto na educação brasileira conforme a identidade dos lugares. 109
Assim, as materialidades da cultura no município de Barbalha se afirmam como potencial a ser incluído na projeção das políticas de desenvolvimento regional, onde a educação é passiva de colaboração nesse processo, a partir do fortalecimento de ações de salvaguarda da cultura imaterial. Nestas condições, torna-se necessário vislumbrar formas metodológicas e pedagógicas de ações de interatividade da educação formal com a educação informal aqui entendida como educação popular, representada nas manifestações da cultura camponesa que se expressam no município de Barbalha. Essa pesquisa ao contemplar a dinâmica dos grupos de brincantes em todas as suas nuances se apresenta dentro do contexto de inúmeras investigações sobre a festa de Santo Antônio em defesa deste segmento agregado a festa, por enxergar neles potencial para sobreviverem ativos durante todo o ano em suas comunidades de origem. Pois como a festa do pau da bandeira de Santo Antônio são também expressividades da cultura popular do povo barbalhense. Assim tomamos por base a importância dada a estes grupos dentro e fora da festa do pau da bandeira de Santo Antônio. Apresentamos um aporte teórico sobre preservação do patrimônio, cultura popular, educação patrimonial, identidade, memória, discorrendo sobre a educação patrimonial como um mecanismo para que as novas gerações reflitam, compreendam a necessidade de preservar a cultura da sociedade que estão inseridas, pois é inerente a sua identidade enquanto povo. Utilizamos também neste trabalho o procedimento da pesquisa de campo com objetivo descritivo que teve como objetivo à observação, coleta de informações definição de objetivos e hipóteses diretamente da realidade do objeto de estudo, análise e interpretação de fatos e fenômenos que ocorreram dentro dos ambientes de vivência onde a investigação esteve situada. Essas entrevistas se fizeram necessárias para apoiar a compreensão da história da cultura barbalhense e como ela tem sido tratada ao longo do tempo, suas reinvenções e transformações e qual a importância que a escola formal tem dado a educação patrimonial na contemporaneidade. Após estas reflexões reiteramos haver nesta investigação algo inovador que precisa ser trabalhado de forma que venha a contribuir com o tema em questão e ainda não viabilizado por nenhuma fonte. Constatamos na pesquisa de campo com os professores, que o trabalho em sala de aula com a cultura popular não é sistemático e só é trabalhado a partir do mês de maio, com a aproximação da festa do padroeiro Santo Antônio 110
e entre os alunos a pesquisa nos revelou que eles têm algum conhecimento sobre a cultura popular do município. O ensino sobre simbologias e a contextualização histórica dos referenciais culturais são superficiais, pois o tempo escolar dedicado a este estudo é insuficiente. Não tem material didático que auxilie os professores nas aulas, e nem formações continuadas sobre este tema. No terreiro de brincantes pesquisado verificamos que o reconhecimento do da festa do pau da bandeira de Santo Antônio trouxe a alegria à comunidade, todavia a impactação condicionada a este reconhecimento ainda não é perceptível no terreiro apesar da implementação realizada pelo governo do Ceará com os recursos transferidos através de editais, e quanto a transmissão do saber às novas gerações é preferível por eles que aconteça no terreiro, pois não se sentem à vontade na escola. Constatamos também que as secretarias de educação e cultura do município reconhecem a necessidade da educação patrimonial dentro das escolas, mas a ênfase maior dada é ao pau da bandeira do padroeiro, e as outras referências culturais ficam sem a relevância que merecem. Encontramos também as fragilidades nas políticas públicas de sustentabilidade no município quanto aos grupos de brincantes. Não existe uma política pública municipal sobre a educação patrimonial nas escolas. Percebemos, que as apresentações dos grupos de brincantes e dos grupos parafolclóricos das escolas ficam no campo da espetacularização com a restrita valorização destes brincantes, apenas vinculados à festa do padroeiro, a globalização permitiu uma aproximação entre as nações trazendo consigo a modernidade, o avanço tecnológico, a cultura de massas, dentre outros sendo um desafio a ser superado pelos grupos tradicionais. A sociedade no Brasil sinaliza a sua persuasão de que é plausível conciliar a preservação do patrimônio material, imaterial e ambiental ao desenvolvimento sustentável.
Escolas e comunidades de Brincantes: análise dos impactos condicionados ao reconhecimento da festa de Santo Antônio É importante o reconhecimento do patrimônio imaterial de uma comunidade, porque ele traduz toda a experiência de vida e costumes daquele grupo social, que através das diversas formas de existir a transmite às novas gerações por meio das memórias individuais e coletivas conservando desse modo viva a herança cultural. 111
Assim a cada nova geração ele é ressignificado produzindo um sentimento de identidade e continuação possibilitando a promoção da deferência à pluralidade cultural. Sentir-se-ão mais interligados com o passado de sua etnia, o que sucede em maior aprendizado e reconhecimento cultural. O registro da festa do pau da bandeira de Santo Antônio em Barbalha/CE como bem imaterial realizado pelo IPHAN satisfaz ao que estabelece o decreto 3.551/2000 e é realizado baseado em critérios como a continuação histórica, possuir importância para a memória nacional e fazer parte dos padrões culturais de classes formadoras da sociedade brasileira. O valor atribuído ao registro da festa do pau da bandeira de Santo Antônio é estipulado pelo destaque granjeado pela festa identificado nesse bem patrimonial o dia a dia dos indivíduos em suas representações e manifestações. Destacamos também, relevância concernente à parceria com ajuda financeira para a manutenção e preservação da festa, dos grupos de tradição, dos ofícios e expressões. Os brincantes, professores e gestores das escolas analisadas que participaram da pesquisa relataram que ficaram felizes com o registro da festa do pau da bandeira, mas a impactação nas comunidades e escolas não são perceptíveis ainda.
Práticas culturais incorporadas à festa e o conteúdo escolar Com o intuito de analisar o trato dado as simbologias e o contexto histórico das práticas culturais nas escolas municipais em Barbalha/CE, entrevistamos 08 professores graduados em história e artes de duas escolas municipais de Barbalha, Antônio Costa Sampaio, zona rural e César Cals de Oliveira, zona urbana, no período de dezembro de 2019 e janeiro de 2020. Nas entrevistas os 08 professores revelaram que o trabalho em sala de aula com a cultura popular local não é sistemático. Ele é trabalhado a partir do mês de maio com a aproximação da festa do padroeiro da cidade – Santo Antônio, consequentemente o ensino sobre as simbologias e a contextualização histórica dos grupos de brincantes é muito superficial, pois o tempo destinado a este trabalho é ínfimo pra dividir entre teoria e prática, não tem material didático-pedagógico sobre a cultura popular local, não existe formação continuada para os professores com este tema. Todos os professores relataram a importância de conhecer a cultura local, disseram nunca ter participado de formação continuada com o tema preservação 112
do patrimônio que lhes oferecesse subsídios para aulas de educação patrimonial e também nunca levaram seus alunos a equipamentos culturais, tão pouco aos terreiros dos grupos brincantes. Os 20 alunos entrevistados cursam o ensino fundamental II (6º ao 9º ano) e são oriundos de famílias com baixa renda. Demonstraram ter algum conhecimento sobre os grupos de brincantes mesmo que superficialmente, dizem conhecer algum terreiro de brincante e eles também demonstraram o interesse em aulas sobre cultura popular local, 11 alunos responderam que são brincantes, sendo 08 da escola localizada na zona rural e 03 da escola da zona urbana, todavia quanto à sistematização das aulas de cultura popular local, 04 alunos responderam que tem uma vez por semana, 07 alunos responderam que raramente tem esse tipo de conteúdo nas aulas e 09 alunos responderam que não têm aulas de cultura popular local na escola. Para muitos dos alunos os terreiros e as danças de brincantes fazem parte da sua vida. Relato do aluno (20): “Gosto do terreiro desde pequenininha, com dois anos até hoje, faz parte da minha vida, quero continuar até velhinha e quem sabe ser mestra como meu pai”. A mestra Lindete Xavier (2020) também comentou sobre a contextualização histórica e as simbologias dos grupos de brincantes que é responsável quanto a já ter sido várias vezes convidada a ensinar as danças tradicionais na escola da Arajara pela professora Celene do Projeto Cidadão do Futuro Barbalhense. É pelo conhecimento da cultura de sua comunidade que se mantém a continuação da história de seu local de origem e se caracteriza como tal e concretiza seus princípios e herança cultural, sobrepujando as gerações. Portanto, é necessário que o corpo social se coloque como aprendiz no entendimento histórico e de identidade da comunidade a que pertence. Para preservar um bem patrimonial é necessário identificá-lo, valorizá-lo, conhecê-lo e uma das maneiras de se conhecer é através da Educação Patrimonial, sensibilizando e conscientizando a sociedade sobre a relevância da salvaguarda do patrimônio que nos rodeia.
Fortalecimento e fragilidade das políticas públicas de sustentabilidade das práticas culturais a partir das gestões da cultura e da educação no município O enfoque dado à cultura pela Educação formal do município de Barbalha/CE tem se apresentado veiculada à operacionalidade de imitações dos 113
grupos de origens pelos alunos, no contexto parafolclórico, onde as percepções artísticas ficam restritas a apresentações que se agregam ao campo da espetacularização da cultura por ocasião da realização dos festejos do padroeiro da cidade. Nestas condições, a educação patrimonial em Barbalha-CE se confunde com espetáculos de imitações, tornando-se desprovida do entendimento da simbologia dos ritos, territorialidade da cultura e o sentido comunitário dos saberes herdado como herança cultural, vinculado à formação histórico-territorial da região. A espetacularização da cultura e a restrita valorização dos mestres e brincantes apenas a partir da sua vinculação na Festa de Santo Antônio, padroeiro da cidade de Barbalha/CE, tem se apresentado como uma problemática, que ofusca e inibe a elaboração de políticas públicas cotidianas de valorização das práticas culturais em suas localidades de origem. Conforme (Trigueiro, 2005, p.81): “Espetacularização das culturas populares não é uma coisa nova como se pensa; a mudança é nos métodos de produção, na velocidade de distribuição e no mercado de consumo desses bens culturais”. Por novos interesses de consumo, a indústria do entretenimento e o poder hegemônico estão se utilizando da fragilidade enquanto valorização do significado dos grupos de brincantes, sua autoestima, sustentabilidade, pertencimento ao lugar, reduzindo-os a mercadoria de fácil transformação pela força da modernidade. Para Debord (1997, p.39): A raiz do espetáculo está no terreno da economia que se tornou abundante, e daí vem os frutos que tendem afinal a dominar o mercado espetacular, a despeito das barreiras protecionistas ideológico-políticas de qualquer espetáculo local com pretensões autárquicas.
Alguns pesquisadores locais como Josier Ferreira, Ruth Rodrigues, Simone Pereira e Océlio Teixeira tem se preocupado com o risco que corre a cultura popular por não ter uma política de sustentabilidade que garanta a continuidade dos grupos de brincantes na sua comunidade de origem reduzindo-os a espetáculos de imitações. Outro fator preocupante é a globalização que aproximou os povos e trouxe consigo um fenômeno chamado hibridização que são misturas interculturais. Sabemos que cultura está intimamente relacionada ao cultivo da terra e por consequência trabalho e existência estão intimamente ligados. Para Correa (2010, p. 02): 114
A cultura popular termo que prefiro a folclore, pelas restrições que tem, caracteriza-se por se constituir, basicamente, de um complexo de informações transmitidas de geração a geração, sem ensino formal e nas sociedades gráficas. O ensino formal, metodizado, sistemático, regular, onde se criam situações pedagógicas intencionais, científica e tecnicamente estabelecidas, é o do ambiente escolar.
A incorporação da cultura popular camponesa na Festa de Santo Antônio, mobilizou a educação, inicialmente a partir do então Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, de colégios particulares católicos, onde no decorrer do tempo, não se dotou a organização dos festejos no campo do profissionalismo inerente a orientação histórica, antropológica e pedagógica que pudesse fortalecer a historicidade e a simbologia da cultura com conteúdo imprescindível com vistas a colaboração com a Salvaguarda. Não obstante, as especificidades dos valores culturais atraem pesquisadores e o poder midiático tornaram os festejos do padroeiro de Barbalha, no Ceará, nacionalmente conhecidos. Essa condição de manutenção de valores culturais específicos no campo cultural do semiárido que agrega o município e se expressa na Festa do padroeiro, condicionando o reconhecimento da Festa do Pau da bandeira de Santo Antônio como cultura imaterial. Nesta conjuntura, a antiga percepção da espetacularização da festa que envolve os brincantes se confronta com as novas alternativas comprometidas com a sustentabilidade cultural, tomando como base a valorização dos mestres e suas práticas culturais em suas localidades de origem. A partir deste contexto, a educação é reivindicada como condição de contribuição nesse processo, onde se deve distinguir a educação popular herdada, inerente às comunidades decorrentes do processo de observação e experimentação espontânea de participação nos ritos orientada por uma concepção de vida e de mundo expostas nas simbologias específicas das localidades onde ocorrem, e a educação formal, que não pode intervir no sentido de manipular, nem mesmo substituir a cultura original. No campo da educação formal, torna-se necessário uma reflexão sobre as formas de atuação que tem se mantido nas formas de imitação dos grupos de cultura popular pelos estudantes, restritos a um desfile no dia da abertura dos festejos do padroeiro, muitas vezes na intenção de substituí-los, no entanto, 115
desprovido de abordagem histórica, cultural, sociológica e antropológica dos seus conteúdos pela escola. O reconhecimento pelo IPHAN da festa do pau da bandeira de Santo Antônio de Barbalha se deu por meio do registro no livro das celebrações sendo uma das formas de garantir que toda a tradição cultural seja preservada isso o torna um fator de fortalecimento da cultura local e também o princípio da busca do registro de salvaguarda para outras manifestações culturais que fazem parte desta festa como os grupos de tradição. Como consequência desse reconhecimento são necessárias políticas públicas no âmbito cultural e educacional no município de Barbalha/CE, que interajam em benefício da promoção e salvaguarda, e da sustentabilidade dessa herança cultural, pois é uma festividade que faz parte do contexto das festas populares, exibindo uma abordagem de festa cultural, social, econômica e religiosa. Os habitantes de Barbalha/CE e região do Cariri tem na festa, um território de identidade e simbolismo, que se revigora a cada festa pelos produtores sociais e culturais. Além das dimensões sociais e culturais que envolvem a população nesse período, a festa também tem a dimensão econômica que proporciona a geração de empregos, renda, entretenimento, turismo. A proeminência e o fomento da cultura tradicional do município de Barbalha/CE são pensados com inquietação pelo indício de não haver uma preservação que traga solução para o não desaparecimento destes bens patrimoniais que são caros a uma comunidade que se sente pertencente a este povo e lugar.
A festa de Santo Antônio como fator motivador de mobilização cultural da escola pelo poder público municipal Desde 1976 com a introdução dos grupos de brincantes na festa de Santo Antônio tem tido a educação como parceira em mobilizar de início os grupos de brincantes, primeiro por alunos do ensino médio pedagógico do Colégio Nossa Senhora de Fátima, em seguida sendo mobilizadas as salas de aulas do MOBRAL onde se encontravam muitos brincantes. Em 2003 através do Projeto Cidadão Futuro Barbalhense inicia-se nas escolas municipais com um trabalho voltado para educação patrimonial formando grupos parafolclóricos, pois estes imitam os grupos de brincantes nascidos nas suas localidades de origem por meio da educação informal, que desde a nossa formação como nação existem, pois a 116
cultura representa os costumes, crenças, artesanato, culinária, religiosidade, ou seja, transmite as experiências de vidas de seu ambiente. Foi realizado pelo IPHAN no ano de 2019, um projeto intitulado Memórias da Festa, com a duração de quatro meses em 16 escolas municipais, com um público infanto-juvenil; o tema foi abordado através de palestras proferidas por professores da Universidade Regional do Cariri que já pesquisaram sobre a festa, acompanhadas de apresentações dos grupos de brincantes das comunidades. Vejamos o relato do Coordenador desse projeto pela superintendência do IPHAN no Ceará, Igor Menezes Soares: Bem, esse projeto, ele é fruto do processo de salvaguarda da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, né. A festa foi registrada como Patrimônio Cultural do Brasil em 2015 pelo IPHAN e a partir daí a gente começou a desenvolver uma série de atividades voltadas ao processo de salvaguarda da festa, que é basicamente garantir a viabilidade, a sustentabilidade da festa como um todo ... a importância desse projeto é de fato buscar aprofundar uma relação entre a cultura e a educação que eu acho que não pode, a gente não deve separar e buscar uma proximidade cada vez maior sempre.
A Educação patrimonial – uma proposta de unidade de colaboração para a salvaguarda da cultura imaterial A proposta de colaboração com a salvaguarda dos grupos de brincantes para o município de Barbalha/CE sugere uma metodologia que envolva os diversos saberes não se limitando somente ao patrimônio, pois ao suscitar a relevância da salvaguarda, consequentemente trabalhamos cidadania, respeito, coletividade, a interação e assumir-se em proteção da memória. O município de Barbalha/CE por abrigar uma variedade de grupos de brincantes e sobre tudo, por figurar percurso viável na condução do turismo cultural e religioso, necessita de “uma política estatal de patrimônio voltada para a educação e uma política de educação voltada para a preservação do patrimônio e da memória”. (CASCO, 2006, p.02). Dessa forma, podemos considerar que a cultura e a educação deveriam ser vinculadas daquilo que segundo Itaqui (2000, s. p.), chama de: 117
[...] políticas de desenvolvimento, organizador e articulador das instâncias do fazer comunitário, processo no qual a educação não está acima ou abaixo, mas no centro sinérgico das relações estruturantes de uma sociedade irmanada no respeito e defesa da vida.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – (LDBEN/9394/96) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) têm um mesmo entendimento de que a interdisciplinaridade é um elemento necessário no trabalho com a educação básica, a partir dos temas transversais. Nessa perspectiva, o trabalho com as noções sobre o patrimônio cultural deve ser inserido aos demais conteúdos escolares, pois mediante o caráter abrangente do termo patrimônio, a educação patrimonial assume papel preponderante, podendo ser entendida como: [...] uma proposta interdisciplinar de ensino voltada para as questões atinentes ao Patrimônio Cultural. Compreende desde a inclusão, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de temáticas ou de conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a conservação do patrimônio histórico até a realização de cursos de aperfeiçoamento e extensão para os educadores em geral. (ORIÁ, 2005, p. 2).
Logo, a interdisciplinaridade e transversalidade dentro do contexto da educação patrimonial são indispensáveis para se ter um resultado coeso e enriquecedor, numa atuação integradora das disciplinas obrigatórias, além de permitir a todo o instante o desenvolvimento de tais ações dentro e fora da sala de aula. É inegável a conexão entre a atribuição da educação patrimonial e a educação popular, pois ela é “a capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar, mas, sobre tudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a” (FREIRE, 1996, p.76). Logo, a educação popular, busca a liberdade dos educandos, fazendo-os refletir a respeito de suas condições para tomada de consciência do seu lugar na sociedade, tendo ela que ser descoberta através da conscientização com os educandos para eles enxergarem fundamentos nas suas histórias de vida. Por conseguinte, “o processo de liberdade não pode ser feito de forma impositiva sobre os oprimidos” (FREIRE, 1989, p.9). 118
E para que o trabalho do educador tenha êxito necessário se faz uma educação autônoma e libertadora, não uma educação alienante presente ainda nas escolas, onde os alunos desconhecem seu passado e sua memória.
Considerações Finais Neste trabalho analisamos a relação e articulação entre o saber formal e informal mediado pela educação na perspectiva de valorização do patrimônio imaterial representados pelas tradições de origem camponesa e com isto constatamos que as secretarias de educação e cultura do município concordam sobre a necessidade de um trabalho articulado em educação patrimonial nas escolas públicas municipais da cidade de Barbalha/CE, pois não tardará o desaparecimento dos grupos de brincantes em sua originalidade, seja pelo falecimento dos mestres ou a falta de uma política de sustentabilidade para essas expressões da cultura barbalhense. Fundamentados nas respostas das entrevistas a pesquisa apontou que existe um conhecimento superficial sobre os grupos de brincantes do município pela comunidade escolar, devido às escolas não terem aulas sistemáticas sobre o tema, nem material didático que contenha a contextualização histórica e as simbologias desses grupos e tão pouco formações continuadas para os professores que abordem este assunto. Ressaltamos, portanto a necessidade das políticas públicas culturais nos âmbitos municipal, estadual e federal, trabalhando através de ações compartilhadas com propósito de salvaguardar os patrimônios, valorizá-los e criar sentimento de pertencimento a identidade local pela comunidade. O foco do trabalho realizado pela secretaria de educação em Barbalha tem se limitado a operacionalidade de imitações dos grupos de origens pelos alunos em um contexto parafolclórico diverso ao objeto da educação patrimonial, que trata do entendimento da simbologia dos ritos, territorialidade da cultura e o sentido comunitário dos saberes herdado como herança cultural. Verificamos que as políticas culturais e educacionais no estado do Ceará têm em seu plano de ação, atividades para serem desenvolvidas em parceria com os municípios, mas não foram totalmente implantadas ainda e no município de Barbalha não temos planos e nem uma política pública neste sentido nas secretarias de educação e cultura municipais. Na investigação também percebemos que existe uma dificuldade em relação à espetacularização da cultura vinculada à festa de Santo Antônio, que 119
inibe a elaboração de políticas públicas voltadas à valorização destes grupos em suas localidades de origem. Outra preocupação é com o fenômeno da hibridização que mistura as culturas com a migração dos povos e agora pela globalização que conecta os diferentes povos do planeta através da tecnologia de informações causando impacto sobre as identidades culturais. Compreendemos também a relação entre as comunidades de brincantes e as escolas públicas municipais situadas no município de Barbalha, como interagem entre si e em que estágio de conhecimento encontra-se a comunidade escolar sobre a importância da valorização e preservação do patrimônio imaterial como parte de nossa identidade como barbalhense, pois a imagem do brasileiro contemporâneo não retrata toda a diversidade do país. Para tanto o município necessita de duas políticas públicas uma de patrimônio voltada para a educação e a outra de educação voltada para a preservação do patrimônio e memória, dando notoriedade aos grupos de brincantes que estão ameaçados de desaparecimento valorizando nossas potencialidades culturais e os colocando dentro da rota turística do município.
Referências CASCO, Ana Carmen Jara. Educação Patrimonial e Sociedade. Patrimônio: Revista Eletrônica do IPHAN. N. 03, Jan-Fev. 2006, p. 2. Disponível em: <http:// portal.iphan.gov.br/uploads/temp/sociedade_e_educacao_patrimonial.pdf.pdf>. Acesso em: 30 setembro de 2019. CORRÊA, Norton Figueiredo. Bumba-meu-boi no Maranhão: Um desafio ao olhar. Trabalho apresentado na Reunião Brasileira de Antropologia (27), 2010. DEBORD, Guy. A Sociedade de Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. SOUZA, Océlio Teixeira de. A Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha (CE) e o Processo de Romanização do Catolicismo Brasileiro (19281972). Embornal, v. 2, n. 4, p. 48-69, 2011. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: três artigos que se completam. São Paulo. Cortez, 1989. 120
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. A educação Patrimonial - um processo em andamento. Museu e Educação: conceitos e métodos. São Paulo: USP. Museu de Arqueologia e Etnologia, 2001. ITAQUI, José. Ciências e Letras: Educação e Patrimônio Histórico Cultural. In: Educação Patrimonial e Desenvolvimento Sustentável. Ciências e Letras. Porto Alegre, 2000. LIBÂNEO, José Carlos. Adeus professor, Adeus professora? Novas exigências educacionais e profissão docente. São Paulo Cortez, 2003. LIBÂNEO, José Carlos. Didática – São Paulo: Cortez, 1994. ORIÁ, Ricardo. Educação patrimonial: conhecer para preservar. Portal Aprende Brasil. s/d. Disponível em: <http://www.aprendebrasil.com.br/articulistas/articulista0003.asp>. Acesso em 08 outubro de 2020. SANTOS, Ruth Rodrigues. A festa que é a mesma, sendo continuamente outra: a ressignificação da festa (do pau da bandeira) de Santo Antônio de Barbalha, Ceará através das mudanças e continuidades. 2015. Dissertação (Mestrado). João Pessoa, 2015. SILVA, Josier Ferreira da. O Círculo Operário de Barbalha como expressão do catolicismo social na educação e na cultura (1930 - 1964). 2009. 363f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza. 2009. SILVA, Simone Pereira da. Os sentidos da festa: (re)significações simbólicas dos brincantes do Reisado de Congo em Barbalha-CE (1960-1970). Dissertação. Mestrado em História Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.
121
PATRIMÔNIO, TURISMO E DESENVOLVIMENTO: O LEGADO DO CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO Rosiane Bezerra de Oliveira34 (Dane de Jade)
Introdução O patrimônio cultural, mais do que atrativo turístico, é fator de identidade cultural e de memória das comunidades, fonte que as remete a uma cultura partilhada, a experiências vividas, a sua identidade cultural e, como tal, deve ter seu sentido respeitado. A opção pelo desenvolvimento turístico deve conciliar-se aos objetivos de manutenção do patrimônio, do uso cotidiano dos bens culturais e da valorização das identidades culturais locais, destacando valores simbólicos e históricos dos territórios. Nesse sentido, o estudo em questão aponta para os benefícios resultantes das atividades turísticas em algumas cidades históricas, principalmente, as localidades consideradas patrimônio cultural do Brasil e que de certa forma atingem um valor de excepcionalidade de caráter abrangente e de reconhecimento para pesquisas, educação, história sociológica e antropológica. Os atrativos turísticos do Cariri estão, na sua maioria, relacionados à religiosidade, à natureza exuberante do ambiente serrano da Chapada do Araripe, ao patrimônio histórico-arquitetônico e à cultura popular. Destaque para uma singular floresta de rica fauna, estâncias hidrominerais, grutas e cachoeiras além 34 Doutoranda em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E-mail: danedejade@gmail.com
122
dos inúmeros fósseis de animais extintos há milhares de anos. Em relação ao patrimônio histórico, podem ser vistos casarios que guardam prestígio e riqueza das cidades da região. Além dessa riqueza histórica, pode-se também ressaltar a importância dos movimentos sociais da história local e, em particular, do movimento messiânico, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, uma comunidade coletivista que foi considerada um dos mais importantes movimentos sociais do século XX e que figura como importante território que estabelece ligações com a história, o tempo, as práticas sustentáveis e a questões étnicas. A região do Cariri com suas características regionais permitem ampliar e proporcionar um vasto conhecimento histórico. Convém ressaltar que os deslocamentos motivados por interesses religiosos, místicos, esotéricos, cívicos e étnicos são aqui entendidos como recortes no âmbito do Turismo Cultural e podem constituir outros segmentos para fins específicos: Turismo Cívico, Turismo Religioso, Turismo Místico e Esotérico e Turismo Étnico.
Patrimônio, cultura e cidades históricas Ao olhar para a expressão patrimônio cultural, inicialmente cabe-nos indagar: o que é cultura? O que é patrimônio? Conceitos cujo desenvolvimento é de extrema utilidade para a compreensão da enorme diversidade cultural a ser preservada. A origem etimológica da palavra cultura remonta ao final do século XVIII e princípio do seguinte, do termo germânico Kultur, utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor no vocábulo inglês Culture que “[...] tomado em seu sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”, conforme aponta Laraia (2001, p. 25). Ao longo da história, a palavra “cultura” variou de conceito em função de uma escola de pensamento a outra, de uma sociedade ou de uma época a outra, assim como de sua aplicação a um ou outro campo de estudo e as tentativas de delimitá-la conceitualmente não têm chegado a avanços significativos. Entende-se, portanto, segundo Ferreira (2008, p. 212), por Cultura “[...] O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, das 123
manifestações artísticas, intelectuais, etc., transmitidos coletivamente, e típicos de uma sociedade”. Já, a palavra patrimônio, segundo Martins (2006), designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. Em uma sociedade mutante, constantemente transformada pela mobilidade, a noção de patrimônio remete a uma instituição e uma mentalidade. A institucionalização do patrimônio nasceu no final do século XVIII, com a visão moderna de história e de cidade. Assim, para Martins (2006, p. 138), “[...] Patrimônio são o conjunto de bens pertencentes a pessoas jurídicas de direito público (União, Distrito Federal, Estados-Membros, Municípios, autarquias e fundações)”. Como bens que estejam destinados à prestação de serviços públicos, equiparando-se a estes o conjunto de bens formadores do patrimônio das pessoas jurídicas de direito privado (empresas públicas e sociedades de economia mista) criadas pelas entidades estatais, quando prestadoras de serviços públicos. Ao definir Patrimônio Público, ou melhor, dizer, Bens Públicos, pode-se conceituar, conforme Mello (2007), como: Todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público, bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público (MELLO, 2007, p. 779).
Portanto, na legislação brasileira, a promulgação do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e instituiu o instrumento do tombamento. Na realidade, a política preservacionista brasileira data do início desse século, com a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais, em 1934, iniciativa pioneira do poder público no sentido de institucionalizar uma ação de proteção do patrimônio cultural brasileiro. Para Martins (2006), o patrimônio cultural é integrado, nos termos do artigo 216, da Constituição da República (BRASIL, 1988), pelos bens de natureza 124
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. O patrimônio ambiental corresponde ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, referido no artigo 225 da Constituição da República (CF/88), como sendo bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988). Moraes (2002), afirma que o patrimônio cultural é a principal base para o desenvolvimento do turismo nas cidades históricas. O patrimônio tornou-se um componente essencial do turismo com implicações econômicas e sociais evidentes. Em contrapartida, o turismo promove a valorização dos recursos patrimoniais, considerando que o interesse do visitante pelos atributos singulares de uma localidade/comunidade. O turismo favorece o desenvolvimento harmônico das cidades, promovendo o equilíbrio entre as necessidades locais e os projetos de crescimento econômico. Assim, a atividade turística permite que as cidades históricas dêem respostas às suas crises econômicas e funcionais, solucionando determinados desequilíbrios sociais (VINUESA, 1998). Para isto é necessário que estes destinos estejam bem administrados no âmbito turístico e urbanístico. Nessa visão, as cidades históricas brasileiras carregam consigo a imagem de um patrimônio cultural reconhecido, predominantemente, pelas edificações e monumentos arquitetônicos dos séculos XVI, XVII e XVIII. As cidades históricas brasileiras, designadas pelo título de Cidades Patrimônio Cultural da Humanidade, têm se esforçado para consagrarem-se como destinos de visita, fenômeno incentivado pela atual mudança da demanda turística que está em busca de novos produtos. A influência do turismo tem sido cada vez mais percebida como uma fonte de benefícios pelas administrações locais. Contudo, é importante ser consciente de que a afluência excessiva ou descontrolada de turistas pode provocar efeitos não desejados ou inclusive de incidir negativamente no patrimônio (ATLANTE, 2005). Neste contexto, vale destacar a importância de se criar estratégias para que o processo de transformação do modelo tradicional de gestão turística em uma 125
gestão integrada promova um maior envolvimento da administração pública e da iniciativa privada para o objetivo de planejar de forma mais flexível as políticas e planos para o desenvolvimento, promoção, gestão e dinamização dos municípios. Diante deste cenário, destaca Vaquero (2002), que o desafio que se coloca ao turismo é o de utilizar os recursos patrimoniais numa perspectiva de desenvolvimento sustentável, assentada em critérios de qualidade, para que os seus benefícios resultem numa efetiva melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, tanto daqueles que o praticam como daqueles que o acolhem. Nesse sentido, podemos visualizar os múltiplos aspectos do lazer turístico ligados ao patrimônio público, como por exemplo, a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do deserto, considerado hoje, um espaço voltado ao turismo e com um patrimônio material e cultural com enorme possibilidade de desenvolvimento local.
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: uma região histórica com perspectivas para o turismo cultural e desenvolvimento local A historiografia oficial, embasada ainda na história factual e cronológica dos grandes heróis, colocou em segundo plano os movimentos sociais que de certa forma transformaram a vida de muitas pessoas, tais mudanças são de suma importância no trâmite da historia cotidiana. Os movimentos sociais mostram sua grandeza quando consegue passar a mensagem às pessoas do poder da união desse povo e isso é história. Segundo Ramos (1991), nas décadas iniciais do século XX apareceu nas terras do Cariri mais um movimento messiânico que sustentado pela oração, fraternidade e trabalho, estabelecendo uma sociedade coletiva e igualitária. Era o Caldeirão, uma comunidade liderada pelo Beato José Lourenço, seguidor de Cícero e praticante do catolicismo popular típico dessa região. O Caldeirão foi uma espécie de Canudos em tamanho menor, que, como este apresentou o mesmo destino: a destruição fulminante promovida pelo Governo Cearense de Menezes Pimentel com o apoio dos coronéis e da Igreja. José Lourenço, chegando a Juazeiro do Norte, talvez por volta de 1891 (não há certeza sobre a data), dirigiu-se à casa de Padre Cícero e reencontrou seus familiares. Permaneceu algum tempo na cidade. Vivia-se um momento de expressão do catolicismo popular. Para os sertanejos, não restavam dúvidas sobre a veracidade do “milagre” – Juazeiro havia sido escolhido por Deus para ser o centro da salvação da humanidade pecadora. 126
Não há informação sobre o período de permanência de Lourenço em Juazeiro. Certo é que ali foi “introduzido” na religiosidade popular e na crença a Pe. Cícero. Este se torna, além de amigo, o guia espiritual. Lourenço incorpora as maneiras de agir e pensar do Padre Cícero. Aquele ambiente profundamente místico influencia-lhe bastante. Dedica-se ao trabalho missionário, realizando pregações e longas jornadas de oração e penitência. Chega até a fazer parte da Ordem dos Penitentes da Santa Cruz, grupo religioso secreto bastante conhecido em todo o Nordeste. Pelo menos até a data de 1920, José Lourenço pertenceu a Ordem dos Penitentes, uma seita secreta bastante conhecida em todo o Nordeste, organizada pelos missionários quando faziam pregações pelos sertões do século XIX. Tal ordem comumentemente realizava reuniões nas ruas, tarde da noite, reunindo inúmeros adeptos, os quais cobriam os rostos com capuzes para não serem identificados. Delas as mulheres não podiam fazer parte, nem sequer olhar a passagem das procissões, aonde os penitentes cantavam e recitavam orações até chegarem a algum cemitério abandonado, local escolhido para autoflagelarem-se com laminas cortantes presas a um chicote; tudo no intuito de obter o perdão divino para seus pecados. (FARIAS, 1997, p. 202).
A partir daí fica conhecido como Beato Zé Lourenço, dando início a sua vida de Beato, ou seja, passa a ser uma pessoa dedicada à religião, a Deus e mantendo-se casto. Provavelmente em 1894, por conselho de Pe. Cícero, José Lourenço, sua família e alguns romeiros arrendaram um lote de terra no Sítio Baixa Dantas, de propriedade de um coronel chamado João de Brito, localizado no município do Crato. Conforme Ramos (1991), muito caridoso, Lourenço permite que outros romeiros venham morar no Sítio. Sua casa começa a ficar rodeada por outras moradias construídas e habitadas por camponeses humildes. Na época, conforme Farias (1997), Floro Bartolomeu exercia o cargo de Deputado Federal. A história do ‘’Boi Santo” atingia sua carreira política - tanto que na sessão de 3 de setembro de 1923 pronunciou-se sobre o assunto. Queria com isso abafar os comentários da imprensa e limpar o próprio nome e a carreira política. Numa atitude autoritária: 127
Floro mandou chamar Lourenço a Juazeiro e ordenou a prisão deste. Determinou ainda que o Boi fosse abatido em frente à cadeia, devendo o Beato comer da carne. José Lourenço nem o mais necessitado dos mendigos de Juazeiro ousaram prová-la. Muitos dos romeiros, inclusive, chegaram a chorar no momento do abate do animal. (FARIAS, 1997, p. 203).
O beato ficou na prisão por 18 dias, sem comer quase nada, até quando Pe. Cícero foi libertá-lo, mandando-o de volta ao Sítio Baixa Dantas. Em tal episódio, Padre Cícero nada fez para evitar as humilhações de seu seguidor. Foi mais uma concessão feita pelo astuto religioso perante o poder político, demonstrando que Juazeiro não era um reduto de fanáticos, nada acontecendo ali de condenável ou herético. (FARIAS, 1997, p. 203).
Entretanto, especula Barros (1988, p. 301), “[...] uma atuação sua aumentaria com certeza as repercussões e o preconceito”. O silêncio não poderia ser entendido como uma forma de proteger a comunidade contra uma sindicância externa mais profunda? Padre Cícero possuía pleno conhecimento de todo passado do Beato e de que no Sítio Baixa Dantas, como depois no Caldeirão, tinha-se uma sociedade diferente, igualitária, coletiva e cooperativista, muito semelhante a Canudos que havia sido destruído. Segundo Farias (1997), em 1926, pouco tempo antes da morte de Floro Bartolomeu, João de Brito decidiu vender o Sítio Baixa Dantas. O novo proprietário exigiu de imediato que Lourenço e a comunidade deixassem as terras. Dessa maneira, dali o Beato humildemente se retirou, sem nenhuma indenização ou compensação pelas mais de duas décadas de trabalho e melhorias que transformaram aquela área em uma das mais prósperas da região. Desta feita, foi o Beato pedir ajuda ao Padre Cícero, que prontamente, ainda no ano de 1926, resolveu alojar o Beato e seus seguidores em uma grande fazenda de sua propriedade, denominada: Caldeirão dos Jesuítas. Situada no município do Crato, nas encostas da Chapada do Araripe, com uma área de cerca de 880 hectares, possuía tal nome devido à existência no local de uma depressão natural de pedra (com mais ou menos 2 metros de profundidade) 128
capaz de acumular água (era também alimentada por um pequeno riacho) e do fato, segundo a tradição popular, de ter servido de esconderijo para dois jesuítas fugitivos das perseguições movidas pelo ministro português Marquês de Pombal no século XVIII. Ao chegar ao Caldeirão, o Beato só encontrou “mato e pedra”, nada que lembrasse produção. Iniciou, então, em companhia de algumas famílias um novo trabalho comunitário igual ao que praticara no Sítio Baixa Dantas. A partir daí, criou-se então, uma sociedade igualitária, de sistema econômico coletivo, que impunha aos seus membros a cooperação para assegurar a existência e o desenvolvimento, tendo como base de tudo a religião. Um dos primeiros trabalhos a ser realizado foi a construção da casa do Beato, que ficou conhecida como a “Casa Grande”, por ser bem que as habitações construídas posteriormente. Essa casa foi construída com tijolo e coberta com telha. As outras moradias que foram surgindo eram feitas, em geral, de taipa e cobertas com palha ou telha. O piso era de barro batido. (RAMOS, 1991, p. 93).
Ergueram-se também cercas, barragens, armazéns, reservatórios d’água e rudes sistemas de irrigação. Passaram a cultivar cereais e frutas e a criar diversos animais domésticos. O trabalho em pouco tempo começou a dar resultados positivos. Em princípio, o Caldeirão era uma fazenda apenas agrícola. Posteriormente, em consequência da chegada cada vez maior de sertanejos atraídos pelo estilo de vida ali praticado, a comunidade vai ganhando novas atividades produtivas. No início da década de 1930 integrava-se à Comunidade, como convidado de Lourenço, um “engenheiro prático” de nome Manuel Maria de Morais (Manuel Silva), que orientou a construção de muitas obras, entre as quais uma capela, iniciada em 1931 e não concluída devido à invasão da polícia em 1936. O Beato desejava proporcionar assistência aos seguidores. Queria que algum padre viesse praticar atos religiosos que ele, como Beato, não podia celebrar (missas, batizados, casamentos etc.). Com o tempo, verificou-se uma espécie de divisão interna do trabalho - os membros da comunidade desempenhavam tarefas específicas: cuidavam dos roçados, manufaturas, engenho, horta, pomares, animais e construções. Tudo era coordenado pelo Beato José Lourenço e, com o aumento do número 129
de habitantes, por algumas pessoas de sua confiança, como Isaías, uma espécie de secretário. A coletivização do trabalho não excluía a organização familiar. Cada família possuía uma casa, e Lourenço reconhecia a autoridade dos pais. Os órfãos eram afilhados do beato e deviam-lhe obediência. Aliás, no Caldeirão, todos os tratavam como o “Padim Zé Lourenço”. Não há dados precisos sobre a quantidade de habitantes da fazenda, mas o certo é que cada vez mais ele crescia. Cariry e Barroso (1982, p. 303), dizem que “[...] em 1930 a população passava dos mil habitantes”. Nesse ano, segundo os referidos autores, inclusive, ao romper da revolução de 1930, os revolucionários marcharam sobre o Cariri, desarmando coronéis e fanáticos. Em uma dessas investidas, tentaram prender Zé Lourenço, sob a acusação de que guardava armas. Avisado com antecedência, o beato fugiu. Os getulistas nada encontraram no Caldeirão, a não ser camponeses e rudimentares instrumentos de trabalho. No entanto, a comunidade foi parcialmente destruída; soltaram o gado nas plantações, arrombaram as portas de suas residências e lhes roubaram todos os objetos pessoais. Finda as perseguições, Lourenço, retornou e sem mágoas, reconstruiu tudo, continuando o trabalho coletivo. Com a grande seca de 1932, o número de habitantes do Caldeirão aumentou. Enquanto pelo estado milhares de sertanejos retirantes morriam de sede e de fome, os que chegaram à comunidade tiveram total assistência do beato. Esse comportamento evidencia a coerência das pregações e práticas do beato. Entre os muitos que chegaram e fixaram-se no Caldeirão, em 1932, estava um líder messiânico paraibano, chamado Severino Tavares. Esse passara anos peregrinando pelos sertões nordestinos profetizando o fim do mundo e pregando os mandamentos do caminho reto, a união entre os povos e o respeito pelo sagrado. Severino em pouco tempo, tornou-se o braço direito do Beato, exercendo grande influência sobre a comunidade, embora continuasse a fazer periodicamente pregações pelos sertões. Após a morte de Padre Cícero, em 1934, muitos nordestinos passaram a considerar o beato José Lourenço como sucessor daquele e, ante a notória prosperidade da fazenda, a ela corriam cada vez mais contingentes de pobres do campo. Nesse ano, o Caldeirão já contava com uma população fixa de três mil habitantes e uma população flutuante em torno de seis mil habitantes, muitos deles camponeses que haviam abandonado a vida de trabalho árduo dos sítios vizinhos. As romarias, o crescimento da comunidade e a grande influência de José Lourenço começaram a chamar a atenção das elites sobre o núcleo dos fanáticos. 130
Essa situação, na visão Cariry e Barroso (1982), para muitos políticos e fazendeiros causou medo. O medo que têm os poderosos quando vêem o povo unir-se e organizar-se. A Igreja, os coronéis e o Estado, então assim como em Canudos, uniram-se e destruíram covardemente o Caldeirão. O Caldeirão foi um movimento semelhante à Canudos só que em proporções bem menores e já no final tinha uma ala tida como radical que via no governo do Ceará, tendo à frente o governador Menezes Pimentel e na polícia seus inimigos mortais (CARIRY; BARROSO, 1982, p. 21).
Voltando aos pensamentos dos referidos autores, na visão de Laureno (2005), podemos refletir sobre a citação: O beato cada vez mais conseguia o respeito e a admiração de todos que viviam na comunidade, tinha o hábito de dirigir novenas e ladainhas. Porém essa vida da comunidade de rezas e tranqüilidade logo estaria sendo ameaçada por poderosos interesses de “botas”, os “coronéis”. (LAURENO, 2005, p. 22).
Como já ressaltado, a partir desses fatos, começou um processo de articulação para acabar com a comunidade do Caldeirão. A destruição da comunidade está ligada de certa forma ao longo processo repressivo que acontecia no país depois da revolução de 1930 e mais ainda com a criação e vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas, que criara um movimento anticomunista no país, já se preparando para o golpe. Getulio destruía qualquer movimento ou foco social que fosse tido como diferente. Dessa forma em setembro de 1936 foi enviada para região do Cariri onde o sítio se localizava uma expedição militar fortemente armada comandada pelo então tenente José Góis de Barros. O beato José Lourenço, sabendo· da invasão militar conseguiu fugir e deixou o sítio sob o comando do nomeado secretário chamado Isaías, que foi orientado pelo beato à receber bem os policiais. No entanto, os policiais não tiveram dó nem compaixão na hora que começaram a destruição da comunidade, os sertanejos tiveram suas casas vasculhadas à procura de armas, mas nada encontraram além de instrumentos de trabalho como pás, enxada dentre outros. 131
As pessoas que moravam no Caldeirão passaram dias sendo tratados como animais, estavam famintos, pois quase não eram alimentadas, mulheres grávidas, crianças e velhos eram amontoados como se fossem bichos. O cinismo das autoridades cearenses era impressionante, chegando ao ponto de propor aos camponeses que fossem embora para sua terra natal e deixassem para traz tudo o que construíram durante todos os anos que viveram na comunidade, mas os mesmos se recusaram. Foi então tomada uma decisão: o Caldeirão deveria ser destruído. Então após alguns dias de reclusão no sítio, o Capitão Cordeiro Neto, resolveu destruir toda a estrutura do Caldeirão. A polícia saqueou e incendiou toda a comunidade às vistas dos olhos tristes dos pobres sertanejos que assistiam incrédulos todos os seus sonhos virarem cinzas. É nesse contexto triste que podemos refletir com a fala de Laureno (2005, p. 26) Um sonho que foi destruído pelos ignorantes. Ignorantes e ambiciosos que acabaram não só com a comunidade do Caldeirão, mas também com o sonho de uma população de lutadores. [...] Mas o beato José Lourenço era um homem de muita fé e muito calmo. Conseguiu fugir e formar uma comunidade, localizada na serra Araripe, onde a maioria das pessoas foram se refugiar e mais uma vez tentar construir suas vidas e sonhos.
O Caldeirão foi destruído por militares sob um comando nojento de pessoas que não estavam ali só seguindo ordens, eram pessoas com o espírito mau que via naquelas pessoas inocentes uma ameaça que na verdade não era verdadeira estavam revoltados por aquele povo ter conseguido sucesso econômico num período onde o mundo inteiro passava por uma grande crise financeira. Contudo, a comunidade que foi organizada na serra do Araripe ficou dividida em duas alas, algumas pessoas revoltadas com a violência que sofreram no sítio Caldeirão e influenciadas por Severino Tavares, que era uma espécie de profeta radical, foram contra as idéias pacifistas do beato Lourenço, que era avesso à violência, organizaram-se, segundo Farias (1997), como o objetivo de preparar uma armadilha para a polícia. 132
Figura 1: Moradores do Caldeirão quando da invasão do sítio pela polícia em 1936. Fonte: (RAMOS, 1991).
E dessa forma aconteceu, na tal emboscada morreram o Capitão José Bezerra e os dois filhos dele. A ação foi um estopim para que a população juntamente com o governo e toda a força militar pusessem para sempre um fim aos sonhos daquelas pessoas. Centenas de mortos, alguns acreditam que em torno de mil vidas humanas que se acabaram, bombardeios aéreos do Ministério da Guerra, incêndios e destruição de casas, espaçamentos de crianças, mulheres e velhos, enfim, uma verdadeira aniquilação de trabalhadores rurais que só tinham um sonho: trabalhar, viver em paz uns com os outros e com Deus. (FARIAS, 1997, p. 208).
Nos relatos que se seguem observa-se, o que houve foi um grande genocídio em volta do interesse em comum dos coronéis, do Estado e da Igreja, que se sentiram ameaçados de seus poderes de manipulação do povo. 133
Após várias tentativas o governo juntamente com a ignorância do povo conseguiu destruir a paz e o sonho daquelas pessoas. Quanto ao beato José Lourenço, morreu aos 74 anos e mesmo com vários pedidos do povo para que se rezasse ou fosse celebrada uma missa em sua homenagem, os padres da região negaram-se com a desculpa de que não celebravam missa para bandidos. Atualmente, 47 famílias revivem o sonho coletivo de produção idealizado por José Lourenço, num sítio denominado Assentamento 10 de Abril, a 37 km do centro do Crato. No local encontram-se 47 casas, sendo que 44 de alvenaria e uma escola, porém sem ostentar a grandeza atingida pelo então Caldeirão do beato José Lourenço. As famílias residentes mantém uma horticultura orgânica (couve, coentro, cenoura, macaxeira, alface, pimentão e espinafre estão entre as hortaliças cultivadas) e uma lavoura para auto-abastecimento. Parte dos homens também mantém um produtivo apiário, que contribui para os rendimentos do grupo. Com base nesse relato, considera-se o prognóstico do comportamento do fluxo turístico permitido, para estimar, por exemplo, o volume de recursos que podem ser injetados na economia regional pelos turistas e servir de referência para justificar a viabilidade de tal evento. Nos últimos dois anos, tem-se observado uma maior preocupação dos gestores estaduais de turismo com relação a um acompanhamento regular e detalhado, através de pesquisas específicas, da demanda de visitantes pelos produtos turísticos do interior do Ceará, incluindo aí a Região do Cariri. Portanto, os dados ainda são esparsos e com várias lacunas, que devem ser preenchidas à medida que as pesquisas recebem continuidade. Daí a importância da região receber um Curso de Turismo e colocar na prática esse arcabouço que se constitui o Cariri cearense.
Considerações finais Considerando os objetivos que envolveram este estudo, percebe-se que inúmeras são as possibilidades para o desenvolvimento de diferentes experiências turísticas. O turismo tem um altíssimo potencial econômico, social, cultural e ambiental, esses itens são elementos extremamente ligados ao turismo, pois estabelecem reciprocidade entre os elementos. O turismo é, principalmente, grande gerador de receita, é social por gerar grande número de postos de trabalho direto e indireto, cultural porque preservam a identidade do lugar, como monumentos históricos, e ambientais por aliar renda e preservação. 134
Portanto, são várias as causas que podem motivar o indivíduo a realizar uma viagem de turismo, sendo importante ressaltar que as viagens são motivadas, na maior parte das vezes, pela fé dos peregrinos, pelo passeio, pelos negócios e compras, entre outros, aliando patrimônio, turismo e desenvolvimento.
Referências ATLANTE. Desenvolvimento turístico sustentável em Cidades Históricas. Projeto melhorar as cidades o Atlântico Patrimônio Mundial do UNESCO. Assembléia municipal de Santiago de Compostela e Lugo, 2005. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A terra da Mãe de Deus. Rio de Janeiro: Francisco Alves, Brasília: INL, 1988. BARROSO, Oswald; CARIRY, Rosemberg. Cultura insubmissa. Fortaleza: IOCE, 1982. BRASIL, Constituição de 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 1997. FARIAS, Aírton de. História do Ceará: dos índios à geração Cambeba. Fortaleza: Tropical, 1997. FERREIRA, Aurélio B. H. Minidicionário de Língua portuguesa. 12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. LARAIA, Roque de B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. LAURENO, Dina Karla. (Org.) Caldeirão: realidade ou utopia? Fortaleza: UVA, 2005. MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. 135
MORAES, F. B. Patrimônio Mundial: aspectos de uma política internacional para preservação de sítios naturais e culturais. Aqui – Arquitetura & Cultura, Belo Horizonte, v. 1, n. 3, p. 62-70, 2002. RAMOS, Francisco Regis Lopes. Caldeirão. Fortaleza: EDUCE, 1991. VAQUERO, M. A cidade histórica como destino turístico. Barcelona: Ariel, 2002. VINUESA, M. A. Turismo y desarrollo sostenible en ciudades históricas. Ería Revista Cuatrimestral de Geografía. Oviedo: Departamento de Geografia de la Universidad de Oviedo, n. 47, p. 211-228, 1998.
136
REFÚGIO DO TURISMO E REFRIGÉRIO DO PATRIMÔNIO: DISCURSOS SOBRE A NATUREZA NO CARIRI José Italo Bezerra Viana35
Introdução Sob o enfoque da monumentalidade foi formulada e consagrada no Cariri da segunda metade do século XX uma noção de patrimônio natural que refletiria a natureza espetacular e grandiosa do lugar. Ali, o discurso de valorização da natureza credenciou iniciativas públicas e privadas a sobre por atributos turísticos aos espaços físicos naturais visando sua inscrição num mapa cujos sentidos apontariam rumos para inspirar e motivar a prática turística de toda a região Nordeste. Pelo menos é isso que se depreende da leitura de uma matéria de jornal intitulada “Turismo no Cariri” que foi assinada por Jósio de Alencar Araripe, figura de destacada atuação na articulação de narrativas do passado e projetos de futuro para a região. Dizia ele: Somente quem conhece os focos principais de atração turística do interior do Nordeste poderá avaliar os imensos recursos que oferece o Cariri cearense nesse setor [...]. Nosso Cariri é bem diferente e vale a pena a gente ver. Verdes as encostas da serra [do Araripe] que emolduram o Vale, os baixios e brejos, tudo verde o ano todo, até onde alcança a vista. Fontes perenes, bicas, cascatas, em meio a vegetação mais luxuriante. O 35 Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: italobezerra776@ hotmail.com.
137
clima também é bom. Pode-se andar à vontade, léguas seguidas, e enche-se a vista com as mais belas paisagens [...]. Nada ficamos a dever às cidades serranas do Estado do Rio [de Janeiro]. [...] Basta ajeitar um pouco o que a natureza nos deu prodigamente [...]. Assim é o Cariri, que poucos cearenses conhecem, e que poderíamos orgulhosamente mostrar a todo mundo, se os Governos nos dessem a mão, para dotar a Região de uma infraestrutura turística eficiente [...]. Como em tudo o mais, também no turismo o Cariri ajudará o Ceará a faturar muito mais. Desde que nos ajudem, a Região poderá se transformar na Meca do turismo nordestino (JORNALAAÇÃO, 01/09/1973, p.02–grifos meus).
Conforme indicações de disponibilidade para uso da atividade turística, a natureza foi sendo percebida como uma obra de arte e apresentada como a moldura digna para um quadro de investimentos simbólicos e materiais adequados ao turismo. Sua conotação de indústria deixava entrever que a comercialização da natureza seria responsável por fazer jorrar a fonte de riquezas daquele lugar. Ademais, a própria cultura local estava sendo pensada como fruto da natureza dita exuberante, como se ela resultasse do contato direto com a sua forma mais rudimentar, pretensamente definidora das características mais puras e originais do jeito de ser do povo caririense. Seguindo essa lógica, o Cariri estava deixando de ser apenas natureza para ser também cultura. Defendendo a tese de que a natureza constituía um dos valores da identidade local, a perspectiva subjacente às palavras anteriormente citadas de Jósio de Alencar Araripe era aquela que buscava territorializar a identidade cultural, ao mesmo tempo em que ansiava por fazê-la pertencer ao mundo, acreditando que isso seria possível através do esforço governamental em projetar o Cariri para o exterior. Com isso, criava-se a oportunidade para o lugar ser visto, entrar na rota turística, competir com outros lugares, investir na melhoria de infraestrutura, ampliar e diversificar a oferta de serviços, tudo isso sem perder de vista suas especificidades. O argumento de Alencar Araripe também se pautava pela concepção de turismo como promissor instrumento de desenvolvimento econômico, social e cultural no contexto cearense. O quinhão do Cariri seria, pois, o de oferecer atrativos naturais e culturais de grande demanda turística, contribuindo assim 138
com a promoção do produto local e incentivando a implementação e consolidação do turismo a partir de uma visão prospectiva, isto é, que exigia continuidade de ações naquele setor. É preciso sublinhar que o mote da natureza como especial atrativo turístico repercutia preocupações de um movimento mais amplo, datado de início dos anos 1960, quando as pressões internacionais pela preservação da natureza associaram a importância do turismo à conscientização dos problemas ambientais e suas possíveis soluções (CURY, 2000). No âmbito nacional, tal questão somou-se ao processo iniciado pela Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) para formação de demanda turística interna, enquanto no estado do Ceará eram dados os primeiros passos para planificação e exploração da atividade turística local, embora estivesse organizada de modo bastante tímido e restrito à capital (OLIVEIRA, 2015). O que estava acontecendo, portanto, era o estabelecimento de fronteiras naturais e culturais dentro do espaço comum do Ceará que projetava a imagem desse estado com base em “repertórios culturais regionais” (SANTOS, 2010). Isso corresponde a dizer que não há nenhuma obviedade no fato de ser o Cariri, na década de 1970, um lugar naturalmente vocacionado ao turismo, pois sua identidade turística e cultural estava sendo construída historicamente e a partir de relações humanas fundamentadas em interesses bem precisos.
“Um patrimônio vivo” Nesse processo de construção turística das paisagens cearenses, a feição atribuída ao Cariri foi aquela que possibilitaria uma imagem de unidade social e cultural determinada pelo potencial da fauna e da flora, pela força da religiosidade, pela peculiaridade do artesanato e do folclore, além das singularidades da formação histórica da porção sul do Ceará. Vinculando encanto, beleza e capacidade de atrair visitantes, o discurso que falava em favor do turismo era o mesmo interessado na construção do patrimônio cultural do Cariri. Ao definir esse patrimônio como um ramo significativo, quando não o principal, da atividade turística sua valorização passaria a ser objeto de importantes investimentos econômicos. Assim, sob pretexto de contribuir para o desenvolvimento da economia regional, o turismo foi construindo as referências do patrimônio cultural e natural daquele lugar, buscando inseri-los nos ritmos e temporalidades do 139
mercado turístico, conforme pode ser observado na explanação do radialista J. Lindemberg de Aquino em matéria de jornal intitulada “A potencialidade da Serra do Araripe”: Riquezas minerais incalculáveis dominam o panorama da Serra [do Araripe]. Riquezas minerais que poderiam servir à economia cearense. Riquezas vegetais que na parte da Floresta sofrem impiedosa, criminosa e devastadora destruição [...]. A Serra com um micro clima espetacular, que favorece a indústria do turismo, das caçadas, dos velódromos e autódromos, dos aeroportos sem fim, dos mirantes espetaculares [...]. A Serra que é um patrimônio vivo–esperança e redenção do Cariri e do Ceará aguarda, tranquilamente, a criação de um Grupo de Trabalho, de técnicos variados, de diversas especialidades, para preparar um estudo completo sobre suas potencialidades. A Serra que é a riqueza, o patrimônio maior do Cariri– que jaz esquecida da tecnologia e da ciência, como se zelosa seres guardasse para o futuro, para no futuro dar tudo o que pode em benefício do seu povo! (JORNAL A AÇÃO, 11/11/1972, p.02. Grifo meu)
Apresentando de forma resumida os benefícios que seriam oriundos do desenvolvimento do turismo na região do Cariri, a passagem acima oferece pistas importantes para pensar como a Serra do Araripe foi concebida enquanto espaço onde diferentes temporalidades encontravam lugar. “Aberta” aos visitantes, a Serra do Araripe responderia ao imediatismo do tempo do turismo, que é o tempo do movimento e da transformação. As ações de planejamento que deveriam marcar e guiar este processo seriam orientadas pela preocupação com a proteção, ou melhor, com a preservação (do futuro) da floresta, afim de evitar sua “impiedosa, criminosa e devastadora destruição”. Tentava-se ainda ajustar o presente e o passado, mostrando como aquele “resto de um colosso de serra” poderia se tornar produto do encontro entre o novo e o antigo, concebido em uma incubadora de projetos “da tecnologia e da ciência” que revelasse muito mais sobre suas potencialidades e servisse de incremento ao desenvolvimento econômico, tanto do estado do Ceará quanto da região do Cariri. Nessa formulação, a Serra do Araripe descrita por Lindemberg de Aquino permitia ordenar 140
e engrenar as categorias de passado, presente e futuro, dando-lhes um único sentido: o da patrimonialização do meio ambiente. Esse fenômeno, segundo a tese de François Hartog, designa a extensão da noção de patrimônio por meio de um indicador de temporalidade que aponta para “novas interações entre presente e futuro”. Nesse sentido, a preocupação com o futuro se justificaria pelo seu caráter não mais de“promessa ou princípio de esperança”, mas porque antes disso ele é uma ameaça (2013, p. 245). No caso anteriormente citado, é como se somente o futuro tivesse a competência exclusiva e restaurado do “patrimônio maior do Cariri”, modo pelo qual Aquino se referia à Serra do Araripe. A função desse patrimônio seria, pois, oferecer bens naturais e culturais capazes de definir e identificar o prestígio simbólico da região. Logo, as únicas operações possíveis seriam a sua preservação e difusão. A perenidade desse patrimônio, sugerida na expressão “para no futuro dar tudo o que pode em benefício do seu povo”, leva a supor que Lindemberg de Aquino imaginava a Serra do Araripe com um bem patrimonial cuja essência do passado dito glorioso sobreviveria às mudanças impostas pelo aproveitamento turístico. Convém destacar que a necessidade sentida por Aquino – de preservar a floresta e dela fazer uso turístico – estava em consonância com as deliberações da 17ª sessão da conferência geral da UNESCO, realizada em Paris, no outono de 1972, e a partir da qual um conjunto de obrigações relativas ao trabalho de “identificar, proteger, conservar, valorizar e transmitir às futuras gerações o patrimônio cultural e natural” foi estabelecido por meio da Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Dali em diante, as normas internacionais de salvaguarda atualizaram o conceito de patrimônio que “doravante é ao mesmo tempo cultural e natural”(HARTOG, IDEM, p. 240). Vale lembrar que num período anterior a esse contexto tal discussão já tinha sido aventada no Cariri. A incorporação de potencialidades econômicas e turísticas à Serra do Araripe foi posta em debate através de diversas matérias publicadas nos jornais locais, como aquela veiculada no semanário cratense A Ação, que afirmava idilicamente o potencial turístico dos “aspectos sociais e folclóricos do manancial da Serra” como “motivo maior do nosso entranhado amor a esse trecho da natureza, tão característico e invulgar no interior do Brasil” (JORNAL A AÇÃO,18/01/1969, p.06). Para justificar tal proposta, a imprensa cratense não cansava de divulgar “a riqueza potencial” das cidades vizinhas e diariamente destacava a contribuição que elas dariam para o incremento da atividade turística na região. Assim, 141
veiculou-se a notícia do início dos estudos de “aproveitamento turístico da fonte do Caldas, situada no município de Barbalha” (JORNAL A AÇÃO, 21/10/1967, p. 01) ou da construção de “uma grande obra de fundo turístico: o monumento ao Padre Cícero” (JORNAL A AÇÃO, 23/03/1968, p. 09). Em Juazeiro, o jornal Gazeta de Notícias informou que “a grande feira” local poderia representar para o visitante “uma festa aos olhos e um convite ao bolso do cliente que goste de lembranças, coisas do artesanato, joias [...] fabricadas por ourives dedicados, tudo enfim que seja típico e representa a cidade” (JORNAL GAZETA DE NOTÍCIAS, 01/11/1969, p.08). A propaganda turística estendeu-se até Fortaleza, e na ocasião uma matéria veiculada no jornal O Povo (03/08/1968, p.04) reiterava a existência de “imensas potencialidades”, destacando a necessidade de um planejamento turístico da região que abrangesse os municípios de Juazeiro, Crato e Barbalha. Essa divulgação do Cariri como atração turística geralmente buscava reforçar uma identidade “caririense” cujas características seriam tradicionais e positivas, o que ia desde a bravura e espírito liberal das lutas políticas dos séculos XIX – teoricamente responsáveis pelo pioneirismo político, material e cultural da região –, até a suposição da existência de uma inventiva e criativa cultura popular, genericamente definida como “costumes”, que faria os caririenses emergirem de forma diferenciada na arena turística estadual. Nesse sentido, o discurso da natureza privilegiada tanto exerceu influência na configuração de narrativas que apresentavam o Cariri enquanto roteiro turístico “predestinado” quanto operou uma interpenetração linear dos tempos, cujos fatos e personagens do passado teriam sido frutos da fecundidade e riqueza desses “imensos recursos” naturais, ao passo que o futuro era a única direção lógica capaz de garantir benefícios à altura de sua importância histórica. Assim, o trabalho de promoção e consolidação de um mercado turístico para o Cariri visava uma identidade cultural hegemônica, narrada como autêntica, a despeito dela própria resultar de uma construção sócio-histórica fundamentada em elementos seletivamente acionados como tradição. Fabricada no presente, essa tradição se valia da crença de um passado dourado como qualidade definidora de uma cultura tradicional, cultura essa ativada com base numa narrativa histórica que visava estabelecer uma continuidade temporal e espacial. Portanto, essa invenção histórica de um passado heroico e glorioso foi se tornando o carro-chefe de sustentação do turismo naquela região a partir de meados do século XX, retornando com frequência nas reivindicações de promoção do turismo do século seguinte (VIANA, 2019). 142
Entre o dinâmico e o estático Será interessante observar o texto de um relatório produzido pela comissão técnica de planejamento urbano do II Seminário de Desenvolvimento do Sul do Ceará, ocorrido na cidade do Crato em maio de 197636. A leitura de alguns trechos deste documento tornará perceptível o jogo de conflitos e interesses em torno da elaboração de planos de desenvolvimento econômico do Cariri – incluindo o setor de turismo –, bem como evidenciará os conflitos políticos que constituíram a própria configuração regional: A espectativa [sic] existente no povo em geral como nas lideranças, é a de que esse triângulo merece ser pensado como um todo [...]. O topônimo CRAJUBAR, formado pelas sílabas iniciais das três cidades [Crato, Juazeiro e Barbalha], indica muito bem o reconhecimento popular da interrelação [sic] existente, como também, da ação dos órgãos oficiais que devem agir naquela direção. Consistirá, portanto, uma violência, o não reconhecimento oficial deste processo expontâneo [sic] de integração entre as cidades que formam o triângulo caririense [...]. Levando-se em conta a grande proximidade e a integração das três cidades, exercendo ‘uma função de complementaridade entre sí’, [...], qualquer planejamento territorial, que não tome em consideração esses fatores, estará fadada ao insucesso. Tendo em vista o exposto, recomendamos que, para as três mais importantes comunidades do Cariri, seja elaborado um plano de desenvolvimento a nível regional [...] que dote a região da infra-estrutura [sic] necessária à expansão de sua economia (TRABALHO DA COMISSÃO TÉCNICA: PLANEJAMENTO URBANO. Proposição A–fl. 6e Proposição B–fl.2).
O entendimento do conteúdo desta passagem deve, necessariamente, estar atrelado à compreensão da configuração histórica e social na qual foi 36 A primeira edição do seminário, realizada em agosto de 1961, discutiu os impactos econômicos da eletrificação da região do Cariri pela hidrelétrica de Paulo Afonso (Cf. REVISTA ITAYTERA, nº 21, 1977, p. 29-43).
143
produzida. Sendo assim, cumpre informar que o relatório da Comissão Técnica de Planejamento Urbano constituía, na verdade, uma reivindicação do reconhecimento e valorização do lugar que a cidade de Barbalha deveria ocupar no debate do II Seminário de Desenvolvimento do Sul do Ceará, promovido pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). A própria constituição dessa comissão foi uma maneira encontrada pela prefeitura de Barbalha para inserir o município no debate e nas ações que visavam o desenvolvimento regional; isso porque no projeto oficial do II Seminário as únicas comissões existentes eram: a) agricultura, b) pecuária, c) indústria e d) sistemas educacionais. Assim, quando o então prefeito Fabriano Livônio Sampaio ficou sabendo dessa distribuição ele propôs à organização do referido seminário a criação da Comissão de Desenvolvimento Urbano, justificando que a temática estava “diretamente relacionada com o grau de desenvolvimento humano e turístico” discutido naquele evento (IDEM, Justificativa, fl. 02). Apesar de algumas opiniões contrárias à constituição da referida comissão, a proposta de Sampaio foi aprovada e assumiu a denominação de Comissão de Planejamento Urbano. Para os efeitos daquele seminário, a referida comissão foi composta pelo arquiteto Carlos Alberto Torres Quental, o economista Fabrício Livônio Sampaio e o já citado Fabriano Livônio Sampaio. Pois bem, o interesse do prefeito de Barbalha era garantir que aquele município fosse contemplado com os investimentos oriundos do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), um plano de ação do governo do ex-presidente Ernesto Geisel, que visava o desenvolvimento econômico das regiões do país de modo equânime e por meio de um ajuste estrutural, tendo entre seus objetivos a reorganização das bases da “economia ainda vulnerável do Nordeste semiário, e do quase intocado continente tropical úmido da Amazônia” (BRASIL, 1975, p. 10). Sinalizando um processo de transição da política do “Brasil do milagre econômico” e o início do “Brasil potência” (PRADO e EARP, 2007), o II PND destinou recursos na ordem de cem bilhões de cruzeiros para a Região Nordeste, com a intenção de imprimir novo rumo ao desenvolvimento da economia brasileira, “sem deixar nenhuma classe ou região à margem do processo de modernização” (BRASIL, 1975, p.14). Nesse sentido, o Estado seguia realizando uma experiência de planejamento territorial por meio da implantação de um programa que visava promover as cidades de porte médio do Nordeste, numa 144
política de urbanização que estava inserida o II Seminário de Desenvolvimento do Sul do Ceará. Dado esse quadro, tem-se os elementos desencadeadores das ações empreendidas pelo prefeito de Barbalha no sentido de defender a necessidade da participação daquela cidade no “Programa Prioritário para capitais e cidades de Porte Médio do Nordeste”. Em ofício datado de 18 de março de 1976, e enviado ao Departamento de Desenvolvimento Local da SUDENE, o prefeito Fabriano Livônio Sampaio dava ciência da não participação de Barbalha naquele programa e alegava perdas de “recursos para desenvolver projetos de natureza urbana, infraestruturais, sociais, econômicas e outros que colaborem com a fixação do homem” (Ofício nº 36/76, p. 01). Na expectativa de reverter a situação, a estratégia de convencimento utilizada por Sampaio apresentava o seguinte argumento: Como Crato e Juazeiro do Norte foram escolhidos para integrar o programa, constitui uma violentação [sic] do processo de integração em franco e espontâneo [sic] desenvolvimento, a exclusão de Barbalha; Muitas vezes mais vale o dinâmico que o estático, e Barbalha é uma das cidades onde as perspectivas de desenvolvimento são atualmente mais acentuadas. As indústrias e outros projetos já em funcionamento e em implantação, bem atestam nossa afirmativa [...] (IDEM. Grifo meu).
Valendo-se do discurso da integração, com vistas a suscitar solidariedade política e seu corolário econômico, o prefeito de Barbalha estava procurando encaixar numa ordem natural as distinções das “cidades irmãs” formadoras do triângulo CRAJUBAR37, e reivindicar, pela via do apagamento de tensões, uma unidade político-cultural que mesmo esculpindo diferenças não denunciaria 37 No intuito de entender a historicidade da unificação figurada na expressão CRAJUBAR, a indicação mais consistente que encontrei faz referência ao trabalho de sistematização do topônimo pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), através do seu Departamento de Desenvolvimento Local (DDL), em convênio com a Superintendência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (SUDEC), em meados do século XX. No entanto, não foi possível determinar a data do referido estudo. Essa referência encontra-se no documento enviado pelo prefeito de Barbalha, Fabriano Livônio Sampaio, em março de 1976, ao diretor do DDL da SUDENE, o senhor Ronaldo de Medeiros Ferreira Tavares, e também é aludida por SOARES, Douracy. O Cariri
145
descontinuidades, compreensão resumida na ideia de “função de complementaridade” entre essas três cidades. Desse modo, o CRAJUBAR era apresentado não apenas como um território com sentido jurídico e político, mas, sobretudo, como uma conurbação enfeixada de sentidos culturais. Nesse mesmo documento, Sampaio ainda elencou uma série de estabelecimentos industriais em funcionamento e em implantação que atestariam a capacidade e a necessidade de integrar aquela cidade ao programa de “cidades barragens”, numa alusão às inúmeras obras hídrícas realizadas no intuito de conter o fluxo migratório em direção às capitais durante longos períodos de estiagem no interior da região nordeste do país (NEVES, 2004). Nessa justificativa, Sampaio incluiu ainda o Balneário do Caldas e o Casarão Hotel no rol de estabelecimentos “industriais” que trariam benefícios socioculturais e econômicos para Barbalha e, consequentemente, colaborariam como processo de contenção do fluxo migratório. Possivelmente fez isso por considerar o turismo como uma “indústria sem chaminé”, expressão corrente à época, vislumbrando ali a possibilidade de realização de negócios turísticos que exerceriam efeitos positivos tanto para satisfazer os fins da atividade comercial, quanto para a manutenção e proteção das edificações históricas do centro da cidade. Entendendo que não se tratava apenas de um programa que servia para o aproveitamento turístico do patrimônio natural e cultural que estava sendo gestado naquele momento, mas também de um projeto de desenvolvimento urbano que dava primazia às “três mais importantes comunidades do Cariri”, Fabriano Livonio Sampaio defendeu com veemência a inclusão de Barbalha nas políticas públicas que, no limite, definiam a própria região. Afinal, não se tratava de um movimento que buscava atrair apenas recursos financeiros, ele queria também buscar a afirmação destas cidades com o lugares distintos, como legítimas e autênticas representantes da cultura regional do Cariri e que seriam possuidoras, portanto, de um importante papel de referência para os grupos sociais ali estabelecidos. Afora isso, era um modo de garantir legitimidade e dar visibilidade ao seu projeto político frente à administração municipal de Barbalha. Numa perspectiva diacrônica, observa-se que o processo de fabricação das identidades locais foi incentivado pela promoção da distinção cultural e hierarquização da importância política das cidades de Crato, Juazeiro e Barbalha. Tal processo, que tentava colocar uma ou outra cidade em maior grau de evidência, – Crato-Juazeiro do Norte. Estudo de Geografia Regional. Crato, Faculdade de Filosofia do Crato, 1968.
146
indica que os interesses e conflitos políticos foram marcantes na constituição dessa região e que suas fronteiras são menos naturais do que pode parecer. Nesse ponto, é preciso reiterar que a região do Cariri, como qualquer outra, resulta de uma produção simbólica, de uma atividade de atribuição de sentidos e significados que são definidos e defendidos por sujeitos sociais historicamente situados. Logo, toda região é produto de uma atividade humana, sendo realizada no campo das práticas e representações sociais. Essa produção, longe de ser estanque, é elaborada cotidianamente, não estando separada de um investimento político. Ela faz emergir sentidos de identidade e de cultura regional, tendo em vista que “uma cultura regional não é apenas a cultura produzida em uma região, mas também a região produzida pela cultura” (SANTOS, 2010, p. 51). Arrisco mesmo afirmar que a produção de uma região é também a prática de produção social do seu patrimônio cultural. Conforme mostrei, o uso do conceito de região – bem como as representações que lhe foram associadas – com ênfase nas identidades locais, fez parte das reivindicações do prefeito de Barbalha para o investimento no setor do turismo, sobretudo quando se tratava de planos de desenvolvimento econômico que poderiam beneficiar o Cariri. Contudo, é preciso dizer que Sampaio não foi o único a se sentir preterido pelos órgãos responsáveis pelo incremento da atividade turística naquela região. A esse respeito, o já citado jornalista cratense J. Lindemberg de Aquino se pronunciou através de uma matéria de jornal, intitulada “Turismo para o Crato”: O Crato, por exemplo, é um Município que tem ficado à parte do planejamento turístico do Estado. Aqui temos verdadeiros encantos da natureza, na paisagem deslumbrantes dos pés de serra, nos sítios encantadores, nos banhos maravilhosos das fontes. Quando [os] mostramos aos que nos visitam, [...], ficam todos maravilhados. E temos o folclore e festas populares de grande tradição e outras belezas que só vindo ao Crato se poderá conhecer [...]. Só queremos aqui é que no dia em que for estruturado e dinamizado o Departamento de Turismo, [...] não seja o Crato esquecido e marginalizado – quando o nosso Município pode dar uma contribuição tão grande ao turismo estadual [...] (JORNAL A AÇÃO, 13/03/1971, p. 02)
147
Pondo-se a serviço de construir uma imagem grandiosa para a cidade do Crato, Lindemberg de Aquino desconfiava dos projetos de planejamento turístico do estado do Ceará que não consideravam aquele município como um dos alvos de investimento. O invólucro pelo qual ele e outros intelectuais tendiam a recobrir aquela cidade era marcado pela imagem de um passado dito heroico e glorioso, que uns poucos consideravam como símbolo da força de suas tradições. Para Aquino, não parecia compreensível que o estado do Ceará fosse capaz de resistir aos “verdadeiros encantos da natureza” do Crato, marginalizando a riqueza que ele acreditava possuir uma cidade que tanto teria a oferecer para o incremento do turismo no Ceará. Ressalte-se que essa ideia de esquecimento do Crato no planejamento turístico era recorrente nas páginas dos jornais locais desde meados dos anos 1960. Em matéria divulgada pelo jornal A Ação, a crítica e o lamento foram postos a serviço de um cortejo de bens culturais apresentados como fosse um tesouro prestes a se perder, daí a necessidade de estabelecer relações mais íntimas entre turismo e patrimônio cultural no Cariri. A mesma matéria reclamava da importância dada à atividade turística no Ceará pelo governo federal e julgava que a atenção dispensada a esse estado era inferior àquela atribuída a outros lugares do país, afirmando que “o turismo no Brasil é apenas o carnaval, o Rio Amazonas, Cataratas do Iguaçu e a velha cidade de Ouro Preto, bem como a encantadora Salvador” (IDEM, 25/06/1967, p. 06). Provavelmente o autor da matéria em questão dirigia críticas às chamadas “Missões da UNESCO” e ao trabalho desenvolvido pelo inspetor francês Michel Parent, entre os anos de 1966 e 1967, como especialista enviado no âmbito do programa “Turismo Cultural” daquele órgão, cujo foco do interesse era destacar as potencialidade da atividade turística e os benefícios de sua relação com ações de proteção, utilização e promoção do patrimônio cultural como “uma das fontes do futuro desenvolvimento da renda nacional” (apud LEAL, 2012, p. 137), sobretudo num contexto de acentuada urbanização e de inúmeros problemas advindos do processo de industrialização do país. Além do aproveitamento turístico das cidades brasileiras, aquele período também abrigou a discussão que levantava questionamentos em torno dos principais entraves ao planejamento do desenvolvimento turístico: precariedade da infraestrutura viária, insuficiência da rede hoteleira, degradação da natureza. No Cariri, a aposta dos agentes do turismo local foi sinalizada pela criação da Sociedade de Turismo do Município do Crato (SOCIETUR) com 148
o objetivo de administrar um hotel que seria construído com recursos financiados pela EMBRATUR. O Hotel Municipal de Turismo, hiperbolicamente descrito como “o palácio do turismo cearense, num dos projetos mais soberbos, fascinantes e arrojados do Estado”, seria localizado ao lado do “deslumbrante e sedutor” Clube Recreativo Grangeiro, “junto a uma aba da Serra do Araripe, próximo às fontes naturais [...], próprio para a exploração da indústria turística em nosso meio”, conforme a citada matéria do jornal A Ação. Apesar de muita propaganda e planejamento, os anos foram passando e o Hotel Municipal de Turismo jamais foi construído. Em Barbalha, também foram feitos planos de construção de um hotel junto “a uma reserva natural de grande potencial turístico” (JORNAL A AÇÃO, 20/04/1974, p. 05), classificada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral como sendo fonte de águas minerais naturais hipotermais, e ali assim o empreendimento fora realmente construído. De acordo com a narrativa da revista A Região (15/07/1984, p. 91) a natureza privilegiada e o complexo do Balneário do Caldas, cuja inauguração se deu em meados dos anos 1970, tornavam Barbalha uma das cidades brasileiras que mais disporia “de excelente material turístico”, incrementado pela existência do “luxuoso e confortável” Hotel das Fontes, inaugurado no ano de 1983. Antes, porém, da inauguração ou mesmo da construção de um hotel em Barbalha, o tema suscitava polêmica na vizinha cidade de Juazeiro do Norte. A divergência começou no ano de 1971, quando a prefeitura apresentou à Câmara de Vereadores a proposta de venda das ações que o município possuía na Petrobrás, cujo valor arrecadado deveria ser investido na construção de um “moderno” hotel. O assunto foi parar nas páginas da imprensa, que tomou partido dos legisladores que acusavam a prefeitura de colocar em risco o patrimônio de Juazeiro, pois as ações da estatal forneceriam anualmente ao município a quantia de cinco mil cruzeiros, enquanto o resultado da venda geraria o montante de 250 a 300 mil cruzeiros e nada além. Apesar de toda a celeuma entre a prefeitura, a Câmara de Vereadores e a imprensa local, no ano seguinte o projeto foi aprovado e o hotel foi construído. Os exemplos da construção de hotéis em Barbalha, Crato e Juazeiro do Norte expressam o movimento que se esforçava em criar uma rede de instituições que favorecessem a elaboração, divulgação e atribuição de sentidos turísticos à região do Cariri. Era, pois, a oportunidade ideal de reconhecer e legitimar o destino turístico daquela região, dotando de conteúdo uma realidade imaginada 149
e materializando a singularidade dos bens culturais que se definiam pelo pertencimento a um dado recorte espacial (VIANA, 2017).
Considerações Finais A definição da natureza como um “patrimônio vivo” inspirou os projetos de implementação do turismo na região do Cariri e foi fundamental para estabelecer uma compreensão do patrimônio voltado à tradição, aos “costumes” e às memórias coletivas. Portanto, as ideias de proteção da natureza observadas nos discursos de fomento ao turismo encerram concepções de identidade e pertencimento que recorreram a aspectos românticos e fragmentários do passado para fixar pontos de representação coletiva que avaliavam como pródiga a natureza da região. Assim, floresta densa e variada, longas e cristalinas cascatas, temperatura amena, abundância de água e fertilidade do solo dariam ao Cariri uma feição de oásis em pleno sertão nordestino.
Referências BRASIL. II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975–1979). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1970-1979/anexo/ANL6151-74.PDF CURY, Isabelle (org.) Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. LEAL, Claudia F. B. As missões da UNESCO no Brasil: Michel Parent. In: CHUVA, Márcia; NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Patrimônio Cultural - Políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2012, p. 133-144. NEVES, Frederico de Castro. A Seca na História do Ceará. In: SOUZA, Simone de (org). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002. OLIVEIRA, Ana Amélia Rodrigues de. Em busca do Ceará: a conveniência da cultura popular na figuração da cultura cearense (1948-1983). Tese (Doutorado) 150
– Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza (CE), 2015. PRADO, Luiz Carlos Delorme; EARP, Fábio Sá. O milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA, Jorge; DELGAGO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil republicano. 2. ed. vol. 4. O tempo ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. SANTOS, Rafael José dos. As cores locais: regionalidade, cultura e turismo. In: PELEGRINI, Sandra C. A. [et al] (org). Turismo e Patrimônio em tempos de globalização. Editora da FECILCAM, 2010. VIANA , José Italo Bezerra. As muitas artes do Cariri: relações entre turismo e patrimônio cultural no século XXI. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza (CE), 2017. ______. Devedores do passado e fiadores do futuro: patrimônio cultural e turismo no Cariri. In: SILVA, Amanda Teixeira da (org). Novas Histórias do Cariri. Vol.1. Curitiba: CRV, 2019.
151
PAISAGEM, CULTURA E PERTENCIMENTO COMO ELEMENTOS PARA A PROPOSIÇÃO DO MUSEU DE TERRITÓRIO DO CARIRI CEARENSE Paulo Wendell Alves de Oliveira38 Josier Ferreira da Silva39 Ana Paula Rodrigues da Costa40 Cássio Expedito Galdino Pereira41
Introdução O Cariri cearense apresenta-se como uma região de grande expressão simbólico-cultural, marcado por diferentes contextos que perpassam pelas 38 Doutor em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG). Docente do Departamento de Geociências na Universidade Regional do Cariri (URCA) e vice-coordenador do Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE). Email: wendell.oliveira@urca.br 39 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Docente Associados do Departamento de Geociências na Universidade Regional do Cariri (URCA) e coordenador do Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE). Email: josier.silva@urca.br 40 Mestre em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais, da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG). Discente de Doutorado em Geografia pela Universidade Estadual do ceará e pesquisadora do Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE). Email: anapaula-rodriguesdacosta@bol.com.br 41 Mestre em Geografia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Discente de Doutorado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente do Departamento de Geociências na Universidade Regional do Cariri (URCA) e pesquisador do Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE). Email: cassio.expedito@urca.br
152
festividades locais, religiosidade, culinária, as relações ambientais, literatura de cordel, danças, musicalidade, o patrimônio material e imaterial, etc. Nesse aspecto defende-se a necessidade de instrumentos de preservação desse contexto histórico-cultural que marca essa região e a sua comunidade, agregando a políticas de desenvolvimento social local. A projeção da cultura no espaço do Cariri cearense sinaliza a relação de fatores sociais com o contexto natural, orientado por concepções de mundo centrado na religiosidade e nas tradições da cultura popular. As transformações dos aspectos culturais são o resultado das intervenções vinculadas a distintos fatores da conjuntura social e econômica dos diferentes períodos, que nortearam o processo de surgimento das vilas e cidades e seu posterior desenvolvimento. A compreensão cultural do Cariri cearense perpassa por uma leitura de sua produção espacial, produzidas pelos diferentes agentes e dos respectivos fatores históricos a estes relacionados (OLIVEIRA; SILVA, 2015). O território que hoje se denomina como Cariri cearense, no período pré-colonialista, fora ocupado pelos índios Kariris. A influência cultural desses povos marca, até os dias atuais, os saberes-fazeres dos sujeitos que hoje habitam essa porção do território cearense. A que se ressaltar a existência de grandes influências de outras matrizes culturais, como dos povos africanos, que se fizeram presentes, através do processo de apropriação territorial, e outros tantos povos que influenciaram a cultura do Cariri cearense. Por sua condição hidrogeológica, clima ameno e características pedológicas, fez com que essa região atraísse colonizadores do ciclo do couro e para a produção de cana de açúcar, que marca o primeiro período do processo de apropriação do território brasileiro. Tais condições geoambientais permitiram um grande desenvolvimento para a região do Cariri cearense, quando comparado a outras regiões do semiárido nordestino. Esse processo histórico de apropriação do território influenciou diretamente as condições culturais existentes na região. Vale ressaltar que o período colonial, em um primeiro momento, fora marcado por dois contextos socioeconômicos: a de se destacar a Zona da Mata, no qual se desenvolveu a monocultura escravista da cana de açúcar, demarcando essa região com um maior contato social, econômico e cultural com a Europa, através da metrópole Portugal; e os chamados sertões que mantinham o papel de áreas economicamente de suporte, produzindo para abastecer as regiões produtoras de cana de açúcar, sua economia foi marcada pela produção de subsistência. Essas duas 153
caracterizações geoeconômicas distintas contribuíram no desenvolvimento de práticas culturais diferenciadas entre os territórios dos Sertões e da Zona da Mata (OLIVEIRA, 2019). As condições geoambientais do Cariri cearense permitiram, a partir do século XIX, o cultivo da cana de açúcar, visando à produção de rapadura e aguardente. Os engenhos ainda marcam a morfologia do Cariri cearense, permanecendo como verdadeiros documentos históricos desse período na região (OLIVEIRA, 2014). Com base na memória dos grupos sociais que se vinculam, historicamente, a essas paisagens culturais, podemos destacar as condições socioespaciais desses períodos de outrora. As marcas do passado só produzem sentidos quando os sujeitos dão significados e sentidos às essas paisagens. Tal questão também é de fundamental importância para a compreensão de outros processos históricos, vinculando a memória coletiva de diferentes grupos sociais, através de seus sentidos de pertencimento, a materialidade e imaterialidade que marca a paisagem cultural do Cariri cearense. É nesse sentido que se defende a seguinte proposta: compreender o processo de pertencimento dos sujeitos que habitam a região do Cariri cearense, vinculando esse aspecto as paisagens culturais, valorizando as condições culturais e territoriais desses grupos. Com base nessas proposições pode ser produzido um inventário ligando cultura-território-comunidade e dar subsídio a proposição de musealização do território do Cariri cearense, uma proposta de valorização da cultura e do pertencimento de diferentes grupos sociais, ao passo que essa valorização permite a preservação da materialidade e imaterialidade que marcam culturalmente esse território e o seu povo. Assim poderá vir a proporcionar desenvolvimento social em uma dinâmica com as atividades turísticas que valorizam o lugar, sua paisagem e seus sujeitos. A proposição de musealização de um território surge como forma de valorizar comunidades pelo seu sentido de pertencimento há um determinado território, contribuindo para a manutenção de sua identidade cultural. Os objetos que compõe o acervo do museu de território conservam-se em seu contexto original, são inventariados, mas permanecem fazendo parte do cotidiano dos sujeitos (REIS, 2019), mantendo seus valores de uso e de troca, além de seu valor simbólico. A categoria de Museu de território é adotada e reconhecida pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). É notório que o crescimento econômico e a expansão urbana têm contribuído com o processo de desterritorialização, no qual os grupos subalternizados 154
são suas maiores vítimas. O Museu de Território pode favorecer a permanência dos sujeitos, contribuindo com o fortalecimento do sentido de pertencimento, devendo ser trabalhado de forma conjunta com outros agentes públicos e privados na constituição de políticas públicas de preservação da paisagem cultural e da identidade das comunidades, possibilitando o desenvolvimento social. O Museu de Território pode ser compreendido como uma estratégia de valorização da memória dos lugares, valorizando o território pelo sentido de pertencimento dos sujeitos, ao passo que a valorização da cultura fortalece a preservação da paisagem cultural local e pode gerar renda aos sujeitos, evitando processos de desterritorialização. Pensando de forma específica o Cariri cearense, essa região tem passado por um processo de desenvolvimento econômico, principalmente na última década, após a instituição da Região Metropolitana do Cariri (RM Cariri), através da lei nº. 78, de 26 de junho de 2009. Tomando por base as três principais cidades da RM Cariri (Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha), o que se nota é o adensamento da zona urbana, a modernização de equipamentos, acabando por invisibilizar marcas do passado, ligados a paisagem cultural local e a sua comunidade. Outra questão que se nota é o adensamento da população, dado a vinda de pessoas que passam habitar a localidade, mas que, em muitos casos, não conhecem as relações culturais existentes nesse território. O que é proposto com o a musealização de território é a perspectiva de valorizar os aspectos presentes na paisagem cultural do Cariri cearense, conciliando ao desenvolvimento regional, valorizando a cultura local e a comunidade a ela vinculada, na manutenção de sua identidade cultural e territorial. Destarte, a musealização do território pode contribuir como estratégia de administração da memória e instrumento de desenvolvimento social.
A importância de instrumentos de preservação da memória e do pertencimento no Cariri cearense A região do Cariri tem sido uma das regiões, no interior do Ceará, de maior atração para novos investimentos. No entanto, o que se têm notado, é o fato de que nem sempre esses novos investimentos estão articulados com determinadas condições locais, principalmente em relação às questões culturais. De fato, podemos notar tais questões tomando, por exemplo, a cidade de Juazeiro do Norte. Seu núcleo de formação histórico guarda poucos vestígios do 155
passado da cidade, por meio de algumas poucas construções preservadas e, para além das edificações, ainda podemos citar a descaracterização de praças, logradouros, antigos calçadões, etc., que desapareceram da cidade ou foram totalmente modificados em suas estruturas físicas, dando lugar a outra lógica de produção do espaço urbano. Antigos casarões, sobrados, bangalôs, foram cedendo espaço para a construção de estacionamentos privados, graças ao aumento do fluxo de automóveis. Ruas deixaram de existir, outras foram alargadas, no sentido de viabilizar a mobilidade urbana. Praças foram transformadas para ganhar um toque de “moderno”, caso da antiga praça cinquentenário (OLIVEIRA, 2014). Essa realidade não é algo específico de Juazeiro do Norte; Crato e Barbalha, cujos núcleos urbanos são mais antigos que o de Juazeiro, tem sofrido com o processo de substituição da materialidade de tempos pretéritos, para ceder lugar ao “novo”. Não queremos dizer com isso, que o processo de desenvolvimento e crescimento econômico se contraponha a preservação da cultura, a preservação da materialidade e do sentido de pertencimento da comunidade que nela habita e que se reconhece nesses espaços. Ponderamos que é possível pensar políticas públicas que agreguem o desenvolvimento econômico ao patrimônio e a cultura local que está presente naquela comunidade, produzindo um desenvolvimento social e permitindo a convivência de novos investimentos com a identidade cultural da comunidade. Deve ser destacado que esse processo de modernização dos espaços, em essência, produz um aprofundamento da consciência de si mesmo. Esse processo reflete uma tensão entre o particular e o universal, entre o provincial e o cosmopolita (BERDOULAY; ENTRIKIN, 2012). A identidade cultural torna-se evidente e apresenta-se em um campo de disputas entre o moderno e o memorável. Esse processo de disputa implica em um sentido de pertencer a uma comunidade de memória. Nesse contexto que se entende na necessidade de participação dos sujeitos, de forma ativa, valorizando o processo de inclusão social no processo de produção do espaço. O avanço da malha urbana sobre espaços rurais, espaços estes nos quais a cultura popular se apresenta com maior presença, tem ajudado no processo de invisibilização da paisagem cultural. A paisagem cultural vai sendo descaracterizada e, o que se nota, é a falta de políticas públicas que resguarde o direito a cultura, o direito ao patrimônio, o direito ao território, no sentido de apresentar subsídios que permitam a comunidade difundir as marcas que lhe caracterizam e de preservar os bens, sejam materiais e/ou imateriais, que dão sentido a sua forma de pertencimento e de identidade cultural. 156
Chamamos a atenção para a necessidade de pensar políticas públicas integradas, permitindo a inserção dos diferentes agentes sociais que produzem e consomem o espaço, proporcionando a inclusão social da comunidade na tomada de decisões. É nesse sentido que se propõe trabalhar com um instrumento de valorização dos sujeitos e do território. Defende-se a potencialidade no desenvolvimento de um plano de musealização e a instituição do Museu de Território do Cariri cearense. Uma ação que visa fortalecer o sentido de pertencimento local, promovendo a preservação do patrimônio, reforçando a cultura popular e agregando essas questões a um projeto de desenvolvimento social. Nesse sentido, a comunidade deve ser ator principal na construção do plano de musealização, desenvolvimento do estudo de inventário e na gestão do Museu de Território.
Debatendo sobre a perspectiva de musealização do território Quando falamos em Museus de Território, nos voltamos a uma proposta que está atrelada a chamada Nova Museologia ou Sociomusiologia, no qual o museu é entendido como parte da comunidade onde está situado, voltado-se para a demanda e os problemas da sociedade, e não de forma exclusiva a sua coleção (AIDAR, 2002), preservando o patrimônio cultural e natural, vinculados a comunidade, e permitindo um protagonismo no contexto cultural, social e econômico, voltados para o desenvolvimento social. Nesse sentido, o Museu de Território deve ser compreendido no sentido de desenvolver-se como “[...] um interlocutor institucional natural à dimensão do território, uma ferramenta cultural para a valorização do capital patrimonial do território” (VARINE-BOHAN, 2008, p. 15). A Nova Museologia entende a comunidade local, na qual se instituí um Museu de Território, como um agente, um ator patrimonial e cultural do microdesenvolvimento do território. Destaca-se que, mesmo sendo um movimento internacional, cada Museu de Território guarda sua especificidade local, tratada pelo sentido de pertencimento e pela preservação do patrimônio cultural e natural local, seja este material ou imaterial, adaptando-se a interações complexas dos fatores e dos múltiplos parceiros, no sentido de atender as mudanças e as demandas locais do território em que se insere. Cabe ainda ressaltar que, diferentemente dos museus tradicionais, os Museus de Territórios não estão restritos a um edifício, mas se estendem por um determinado território, no qual a comunidade se reconhece por meio de sua paisagem cultural e desenvolve sua identidade territorial. O patrimônio que 157
constitui o acervo destes museus permanece, em geral, ligado ao cotidiano das comunidades, desenvolvendo-se em seus valores de uso e de troca, mas fortalecendo seu valor simbólico das ações endógenas e exógenas. O que é reforçado em seu patrimônio cultural e natural é sua relação com a cultura viva (VARINEBOHAN, 2008). Destarte, situamos tal proposta em um campo interdisciplinar, dialogando vários saberes científicos para a proposição de um plano de musealização do território do Cariri cearense, valorizando a comunidade local, seu patrimônio e articulado a uma proposta de desenvolvimento social. Nesse sentido a geografia, enquanto ciência, pode contribuir na correlação do sentido de pertencimento dos sujeitos com o patrimônio cultural e natural que os (re)significam, por meio da compreensão da dinâmica territorial e da análise da paisagem cultural. Por esse viés, trará valorização dos saberes compartilhados pela comunidade e destacando os saberes vernaculares dos sujeitos. Essa compreensão da maneira de sentir e agir da sociedade em relação com seus lugares, valorizando as experiências tanto pessoais quanto coletivas (OLIVEIRA, 2016), será uma das referências para construção de um plano de musealização do território. Toma-se esse princípio, concordando com as afirmações de Costa (p. 152, 2008): A identificação do sujeito com a paisagem é explicitada pela relação cognitiva, onde a construção da memória do lugar, é representada pelas ações cotidianas onde se produz formas de espaço culturalmente construídas. Cada indivíduo apreende o entorno, utilizando diversos registros de atividade cognitiva, construindo uma relação paisagem-memória que se manifesta em recortes territoriais.
O sentido de pertencimento e as experiências espaciais com o ambiente darão os referenciais para pensar quais as comunidades que podem estar inseridas em uma proposta de produção de um plano de musealização do território. Sem esse elo que liga o valor simbólico do patrimônio, para além do seu valor de uso e de troca, com as relações cotidianas das comunidades, marcando de forma clara a identidade cultural daquele grupo de sujeitos, não haverá um sentimento de pertencimento e de preservação por parte da comunidade. Para que os acontecimentos do passado produzam impacto no presente, torna-se necessário o reconhecimento dos sujeitos em relação a esses objetos 158
e das expressões culturais (TUAN, 2012; 2013), devendo produzir um sentido comum que mantenha o sentido identitário a uma comunidade. Devendo este ser reforçado pela memória coletiva, repassada para as novas gerações, com toda a força simbólica que determinada materialidade ou expressão cultural possuem para aquela comunidade. Quando falamos das relações existentes entre o patrimônio natural e cultura com a cultura viva, nos remetemos a esse sentido de pertencimento da comunidade a um determinado território. Para esses sujeitos, os valores das expressões materiais e simbólicas que marcam sua identidade cultural possuem maior valor do que um bem tombado pelo patrimônio nacional ou a um acervo de museu, pois se vinculam ao cotidiano do sujeito, reforçam suas identidades e seus sentidos de pertencimento ao território. De fato, quando realizamos tal abordagem, atentamos para a questão do ato de preservar e, quando falamos em preservar, nos reportamos a um processo seletivo, ou seja, selecionar elementos ou objetos para serem memorados e outros esquecidos. Nesse sentido, os museus, de forma hegemônica, tendem a preserva as lembranças vinculadas a determinados grupos hegemônicos, em detrimento dos subalternos, relegados ao esquecimento. Esse embate entre memórias coletivas de distintos grupos (lembrança e esquecimento) interfere diretamente na questão identitária de toda uma comunidade (OLIVEIRA, 2016). Os museus tradicionais, por vezes, buscam atender a demanda de um determinado público, de determinada camada social, nem sempre estando voltadas as comunidades nas quais estão inseridos (VARINE-BOHAN, 2008). Quando a comunidade não se reconhece em relação ao museu, este não terá grande valor simbólico para a comunidade. Ao contrário, o Museu de Território valoriza a relação entre o patrimônio e comunidade, os sujeitos se reconhecem naqueles objetos e nas expressões culturais simbólicas, dando significado ao museu, enquanto instituição. O Museu de Território não deve ser tomado como algo estático, ao contrário, deve ser visto como processo que significa e ressignifica os sujeitos que constituem a comunidade na qual está inserido.
Paisagem cultural e o sentido de pertencimento como aportes para a musealização do território no Cariri cearense Ao falarmos de paisagem, tomando-o enquanto um conceito-chave de nosso estudo, cabe ressaltar o sentido em que o abordamos, tendo em vista 159
que a noção de paisagem é extremamente polissêmica e adotar qualquer concepção penalizará a pesquisa com a possibilidade de resultados superficiais (RIBEIRO, 2007). Partindo de uma base teórico-metodológica, assentada na fenomenologia, a compreensão da qual partimos para falar de paisagem é: “[...] um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma ‘impressão’, que une todos os elementos” (DARDEL, 2011, p. 30). Ao delimitarmos conceitualmente nossa compreensão de paisagem, podemos nos reportar a base pela qual será proposta a construção de um plano de musealização do território. No sentido exposto, a paisagem não é uma mera cena, na qual o olhar do observador a descreve. Ao contrário, a paisagem representa o acúmulo, realizado por meio das memórias, e o despojo, proporcionado pelo esquecimento, das marcas e expressões culturais que definem os sujeitos de uma determinada comunidade ao seu espaço geográfico de convívio (HOLZER, 1999). Quando afirmamos que o Museu de Território se constitui como um processo, não devendo ser tomado como algo estático, nossa base conceitual para tratar a paisagem deve igualmente refletir essa condição, proporcionando aos sujeitos o protagonismo no desenvolvimento do plano de musealização do território. Para alcançarmos essa compreensão de paisagem aqui abordada, torna-se necessário uma vivência junto às comunidades que irão compor a proposta de musealização, passando a conviver com o seu cotidiano, desta forma, os trabalhos de campo devem ser realizados no sentido de vivenciar a comunidade no seu dia a dia. É necessário vivenciar antes de descrever, é necessário ouvir antes de falar. Com base nas experiências da vivência com as comunidades, podemos problematizar as primeiras questões referentes à produção de um plano de musealização do território, na qual se insere as comunidades pesquisadas. Uma questão a se valorizar são os sujeitos e suas memórias, desta forma, será necessária a busca pela realização de compreender as relações entre o sujeito e o seu lugar. Esse destaque inicial entre o sujeito e o lugar dar-se, pois, o sujeito e o lugar são constitutivos um do outro (BERDOULAY; ENTREKIN, 2012). A realização desse ato de vivenciar o cotidiano da comunidade deve ser seguida pela coleta das narrativas dos sujeitos que fazem parte dessa comunidade de memória. Quando o sujeito torna-se o protagonista de seu lugar, por meio de sua narrativa, percebe-se uma valorização do sujeito consigo mesmo. A trama narrativa permite realizar a percepção da coerência existente entre os diversos elementos do ambiente. 160
O que faz a força do relato é o poder que ele confere ao sujeito de interpretar o seu mundo, de lhe dar sentido, qualquer que seja a heterogeneidade dos fenômenos envolvidos. Esse trabalho se efetua, com efeito, a partir dos elementos que podem ser muito discordantes, quer dizer, que dependem de lógicas diferentes. A especificidade espaço-temporal da experiência e da memória coletiva que vinculam os lugares molda-se bem de maneira narrativa. É por intermédio do relato que o sujeito organiza seus laços com o ambiente e com a coletividade. (Ibdem, p. 109).
A narrativa é, nesse contexto, o elo de produção de sentidos e de pertencimento do sujeito com o lugar, marcando sua identidade cultural, valorizando seu patrimônio material e imaterial e permitindo visualizar-se enquanto protagonista na proposição da musealização do território do qual faz parte. A realização das entrevistas deve ocorrer nas próprias comunidades, como forma de estabelecer uma conexão entre a fala do sujeito e o próprio espaço no qual se desenvolve seu cotidiano. Como já destacado, mas do que produtora de identidades, a memória permite que o sujeito se reconheça pertencente a um determinado grupo social, ao passo que, se difere de outros sujeitos e grupos sociais. “[...] A alteridade é fundamental na constituição da identidade: eu me identifico com quem, com quem sou parecido, de quem sou diferente? Vemos assim que conhecer o outro é fundamental para conhecermos a nós mesmos, com o que o museu pode contribuir” (OLIVEIRA, 2016, p. 87). Os acervos que compõe o Museu de Território não podem ser restritos ao modelo tradicional, no qual existe uma coleção de objetos. O acervo que compõe o Museu de Território é composto, principalmente, por seu patrimônio cultural, expresso em sua paisagem cultural. Daí a necessidade de ser inventariado, podendo compor este acervo, bens imóveis, territórios inteiros, saberes-fazeres e seus bens imateriais (KASEKER, 2014). Deve-se tomar o cuidado, no processo de inventário, para que se tenha a comunidade como elemento fundamental da constituição do acervo, tendo em vista que, o Museu de Território deve servir, em princípio, a própria comunidade. É somente com o sentido de pertencimento e identidade cultural que podemos tomar a perspectiva de desenvolvimento social e econômico para 161
essa mesma comunidade, ao não atender a esses aspectos, podemos recair no erro de a comunidade ser utilizada para favorecer uma parcela específica da sociedade e do mercado. O museu, independentemente de sua condição técnica, não deve ser estático, ao contrário, em sua dinamicidade ele deve ser capaz de formar opiniões, de propor ou contrapor ideologias e de contestar o que está estabelecido (AIDAR, 2002). A questão da cidadania deve ser eixo principal dos museus, principalmente dos Museus de Território, garantindo o pleno direito à cidadania e acesso aos seus espaços públicos, contribuindo para reverter o quadro de exclusão social, ao passo que garante acesso aos instrumentos que constituem a vida em sociedade. A questão da participação social na constituição deveria ser uma questão essencial, porém, o Estatuto dos museus não prever uma obrigatoriedade dessa participação, apenas sinaliza para essa possibilidade, por meio do art. 46, § 1º. (BRASIL, 2009). Na perspectiva apresentada por Kaseker (2014), partindo da proposição de musealização do território do município de Itapeva (SP), no qual se propõe em contribuir com instituições públicas e privadas, que se encontram instituídas nos municípios da região sudoeste paulista, no sentido de compartilhar informações e experiências com as instituições correlatas. Visualiza-se a mesma potencialidade existente na região do Cariri cearense, da qual sinalizamos as seguintes instituições parceiras para a realização do processo de musealização do território: o Instituto Escola de Saberes de Barbalha (ESBA) - instituição que foi criada com o propósito de preservar os saberes tradicionais da cultura caririense e que vem cumprindo esse papel, atuando diretamente junto ao poder público e privado, no sentido de promover políticas públicas voltadas a promoção e salvaguarda da cultura popular e do patrimônio natural e cultural do Cariri - e o Centro Pró-Memória de Barbalha Josafá Magalhães - sediado na cidade de Barbalha, a instituição é reconhecida como promotora da memória do lugar e das questões culturais, no sentido de atuar na inclusão social, por meio da cultura popular. Construindo-se a proposição da musealização do território, tomando por base as comunidades, instituições de ações culturais reconhecidas no território do Cariri cearense e o apoio técnico-científico do estudo, vislumbra-se a grande potencialidade para a realização da musealização do território do Cariri cearense.
Considerações finais Os Museus de Território, como destacado ao longo do ensaio, enquadram-se enquanto uma proposta que visa fortalecer o sentido de pertencimento dos 162
sujeitos e valorizar os patrimônios culturais (materiais e imateriais) e naturais, vinculados a determinadas comunidades, por meio de processo de salvaguarda, possibilitado pela musealização do território. O ensaio, ora apresentado, propõe possibilidades e potencialidades para a promoção do processo de musealização do território do Cariri cearense. Sendo essa ação um instrumento de garantir à memória dos lugares, por meio da autoafirmação dos sujeitos com os seus territórios, garantido a salvaguarda da memória e dos bens materiais e imateriais. A musealização do território, enquanto instrumento de desenvolvimento de políticas pública, procura valorizar os aspectos culturais da comunidade, apresentando tais elementos como potencialidades de desenvolvimento social, inclusão da comunidade na tomada de decisões, principalmente na gestão dos territórios em que se inserem, evitando a invisibilização da memória dos lugares e dos próprios sujeitos. A ideia não é “congelar” a memória e a comunidade no tempo. A memória está vinculada ao conhecimento, à consciência da herança e do patrimônio cultural, e pressupõe um caráter de permanência (passado), de resistência (presente) e de continuidade (futuro), mas nunca de eternidade. É nesse sentido que se sustenta o desenvolvimento de uma política de patrimonialização e de musealização, permitindo o protagonismo aos atores da própria comunidade. A identidade cultural, garantida enquanto aspecto motivador, valoriza e reforça a compreensão do papel da musealização do território. Os moradores devem ter total consciência do papel de protagonistas que terão de assumir durante a montagem do plano de musealização do território, na construção do inventário e na constituição do acervo, na proposição das políticas de salvaguarda dos bens tombados, a institucionalização do Museu de Território e na promoção do mesmo, podendo contar com outras instituições para assessorar, quando necessário, a comunidade na promoção de políticas públicas da cultura e voltadas para o desenvolvimento social da própria comunidade. O que se vislumbra é o grande potencial existente no Cariri cearense para a promoção de um instrumento que favoreça políticas públicas de desenvolvimento local, subsidiando a preservação do patrimônio material e imaterial, existente na localidade e proporcionando protagonismo aos sujeitos na tomada de decisão e gestão dos territórios em que habitam. O Laboratório de Espaço, Memória e Cultura Aplicados à Educação (LEMCAE), sediado na Universidade Regional do Cariri (URCA), já possui 163
um acervo de pesquisas que apontam para a importância de se pensar instrumentos políticos de preservação da memória, da paisagem e do pertencimento dos sujeitos aos seus territórios. Nesse sentido, o presente ensaio apresenta e defende a proposição da musealização do território do Cariri cearense.
Referências AIDAR, Gabriela. Museus e inclusão social. Ciências e Letras, n. 31, p. 53-62, 2002. BERDOULAY, Vincent; ENTRIKIN, Nicholas. Lugar e sujeito: perspectivas teóricas. In: MARANDOLA Jr., E. et. al. (Orgs). Qual o espaço do lugar? Geografia, epistemologia e fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 93-116. COSTA, Otavio José Lemos. Memória e paisagem: em busca do simbólico dos lugares. Espaço e Cultura. Edição comemorativa 1993-2008, p. 149-156, 2008. DOI: 10.12957/espacoecultura.2008.6143. DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011. HOLZER, Werther. Paisagem, imaginário e identidade: alternativas para o estudo geográfico. In: ROSENDAHL, Z. et. al. (Orgs). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 149-168. KASEKER, Davidson Panis. Museu, território e desenvolvimento: diretrizes do processo de musealização na gestão do patrimônio de Itapeva (SP). 2014, 288f. Dissertação (Mestrado em Museologia) - Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. OLIVEIRA, Carlos Augusto de. A musealização do território: uma aproximação entre geografia, educação e museologia na Cohab Raposa Tavares. 2016. 228 f. Dissertação (Mestrado em Museologia) - Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. OLIVEIRA, Paulo Wendell Alves de. Memória da cidade: transformações e permanências na produção espacial do núcleo de formação histórico da cidade 164
de Juazeiro do Norte - CE. 2014. 241 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) Centro de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2014. ______. Ser-tão romeiro: a memória hierofânica do catolicismo popular sertanejo e sua espacialização em Juazeiro do Norte-CE. 2019. 206 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Estudos Socioambientais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019. OLIVEIRA, Paulo Wendell Alves de; SILVA, Josier Ferreira da. Os agentes modeladores da produção espacial do núcleo de formação histórico de Juazeiro do Norte - CE. Revista Geografia Ensino & Pesquisa, v. 19, n. 2, p. 7-22, 2015. DOI: 10.5902/2236499412729. REIS, Gabrielle Alves. O território como estratégia de memória: museus de território. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia, 13., 2019, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: ANPEGE, 2019. Disponível em: <https://www.enanpege2019.anpege.ggf.br/site/anais2?AREA=30#G>. RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007. TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: Eduel, 2013. ______. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel, 2012. VARINE-BOHAN, Hughes de. Museus e desenvolvimento local: um balanço crítico. In: BRUNO, M. C. O. (Orgs). Museus como agentes de mudança social e desenvolvimento: propostas e reflexões museológicas. São Cristóvão: Museu de Arqueologia do Xingó, 2008. p. 11-20.
165
Povo e Território foi composto em Minion Pro e impresso sobre CFLD115 e CSLD300 pela Expressão Gráfica e Editora em maio de 2021.
O CENTRO PRÓ–MEMÓRIA DE BARBALHA JOSAFÁ MAGALHÃES é uma instituição da Sociedade Civil, sem fins lucrativos, fundada em 06 de maio de 2008 e reconhecida de utilidade pública pela lei nº 2.249/2016, que objetiva o desenvolvimento e a promoção de atividades educativas e culturais na perspectiva de colaboração com a sustentabilidade do patrimônio cultural material e imaterial do município de Barbalha – Ceará, a partir da preservação da memória, da história e das manifestações culturais do município de Barbalha, como representação identitária do Cariri Cearense. Nesta perspectiva, tem suas ações centradas atuando na difusão da consciência patrimonial, a partir de eventos sócio-educativos e culturais em articulação com a sociedade careirense. A sua criação foi condicionada pelo fato de o município de Barbalha – CE se caracterizar pela existência de edificações centenárias, representadas por sobrados e casarões do século XVIII bem como pela concentração de inúmeras práticas culturais de tradições agrárias que remetem ao processo de formação histórico-social do Cariri, a partir da sua colonização, no inicio do século XVIII, pelo ciclo da pecuária. Diante destas características regionais, expressadas nas potencialidades ambientais e culturais da região do Cariri inerentes ao território correspondente ao município de Barbalha, foi criado o Centro Pró-memória de Barbalha, pela idealização do memorialista Dr. Napoleão Tavares Neves e do advogado Josafá Magalhães. Ao longo da sua existência, a instituição vem se articulando junto aos poderes executivo, legislativo e judiciário, bem como junto à comunidade e outras instituições congêneres, no sentido de fortalecer a defesa e promoção do patrimônio ambiental e cultural do Cariri, tomando como área de atuação o município onde está sediado. A operacionalização de suas ações se dá através de atividades educativas e culturais que contemplam seus objetivos, que buscam a promoção e valorização de práticas culturais de tradições agrárias, da memória e da história como forma de compreensão da identidade regional e do município.