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Trabalho de Conclusão de Curso 2017.1 Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza - Unifor Centro de Comunicação e Gestão (CCG) Diretora do CCG Profa. Candice Nobrega Coordenador do Curso de Jornalismo Prof. Wagner Borges Texto Gustavo Nery Fotografia Celina Diógenes e Reprodução Capa Daltro Holanda Orientador Prof. Eduardo Freire Projeto gráfico e diagramação Ravelle Gadelha Revisão Andreza Reis Impressão Gráfica da Unifor
Gustavo Nery
Fortaleza 2017
"Tudo que eu aprendi, eu aprendi com os filmes" Audrey Hepburn
Prefácio
Sempre que vou escrever um texto passo "minutos a fio" pensando sobre como começar a história. Como jornalista de quase 30 anos de batente, não poderia ser diferente. Em tempos de multiplataformas e notícias por segundo, está cada vez mais difícil sensibilizar o leitor para dedicar seu precioso tempo a textos um pouco maiores. E o começo do texto funciona como "isca". Com esta apresentação não foi diferente, mas decidi iniciar exatamente com o Gustavo Nery, esse aluno do Jornalismo, ou melhor, esse agora Jornalista por formação, que tanto ama as artes e nos contagia tanto. Gustavo foi meu aluno na disciplina de Princípios e Técnicas de Telejornalismo II na Unifor – Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz. Quieto, mas ao mesmo tempo perspicaz, Gustavo sempre me chamou a atenção pelas intervenções mais contundentes, embasadas em teorias e que deixa qualquer professor orgulhoso em sala de aula. Semestres depois, reencontro o aluno na condição de estagiário da Diretoria de Comunicação e Marketing da Unifor, já escrevendo grandes reportagens para os veículos institucionais de comunicação. E aí vi que o "menino" cresceu e já estava "quase" Jornalista. Só faltava o diploma. Ainda neste percurso de formação, Gustavo veio me falar sobre o TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, disciplina obrigatória para a conclusão da graduação em Jornalismo. Tema: crítica de cinema. Muito boa a ideia, embora desafiadora! O campo jorna6
Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
lístico requer diálogos com várias outras áreas do conhecimento e, quanto maior essa interdisciplinaridade, melhor a formação do profissional. Mais pontos para o Gustavo! Olhar para o filme de uma maneira transversal, cruzar caminhos entre as duas ciências, analisar as narrativas e ainda escrever é tarefa que exige conhecimento e dedicação, dois predicados que vamos encontrar no livro de Gustavo Nery. Algumas vezes é possível "ver o filme" na leitura dos textos do nosso mais novo "escritor-jornalista". Outra questão que me chamou a atenção em seu TCC foi a escolha dos filmes para escrever as críticas, dos clássicos ao cinema independente, até os chamados "blockbusters", um olhar amplo, sem contaminação de preconceitos. Ah! Ele também não esqueceu de contemplar as produções que tocam o coração de qualquer cea-
“O campo jornalístico requer diálogos com várias outras áreas do conhecimento e, quanto maior essa interdisciplinaridade, melhor a formação do profissional”
rense, como Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, longa-metragem que nos enche de orgulho. Bom, agora vou deixar a crítica para os outros leitores que, com certeza, serão muitos para este trabalho de Gustavo Nery. Ana Quezado Jornalista Prefácio Impressões de um rato de cinema
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Sumário
Créditos Iniciais . . . . . . . . . . . . . 11 Primeiro Ato . . . . . . . . . . . . . . . 19 Segundo Ato . . . . . . . . . . . . . . . 41 Terceiro Ato . . . . . . . . . . . . . . . 83 Créditos Finais . . . . . . . . . . . . . 221
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Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Dedico este livro à Daniel Piza, Walt Disney, Audrey Hepburn e Grace Kelly, que me inspiraram; À Eduardo Freire, Ravelle Gadelha, Andreza Reis e Daltro Holanda, que me ajudaram nesta empreitada; A todos os meus amigos, que me apoiaram ao longo da minha carreira e, em suma, a todos que sonham. Gustavo Nery
Sumário Impressões de um rato de cinema
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Sobre o autor
Não lembro ao certo quando os filmes tornaram-se parte da minha vida. Na verdade, ela confunde-se com os filmes que assisti. Minha trajetória com o cinema começou ainda nos primeiros anos de idade, quando uma locadora abriu em frente à casa onde eu morava. Como qualquer outra criança nascida nos anos 1990, auge do lançamento de filmes em fita VHS, visitar aquele lugar ganhou um significado especial: com tantas histórias à minha disposição, mal podia esperar para conhecer alguma nova. Alugava todos os dias um diferente clássico Disney, que na época ainda eram lançados, em solo brasileiro, nas extintas fitas verdes da editora Abril. Não demorou para aquele lugar assumir a posição de meu favorito. Visitava-o diariamente, após terminar o dever de casa, para conversar com os funcionários e os donos do estabelecimento. Organizava as fitas, sugeria filmes aos clientes, decorava as sinopses. Talvez tenha sido aí o início da minha carreira como um comunicólogo tão interessado em falar sobre filmes. Fui crescendo e, aprendendo a ler, passei a exercitar este hábito sempre, principalmente com os jornais que meu avô recebia em nossa casa, visto que assinava um dos de maior destaque no Nordeste. Comecei pelo caderno infantil, e logo voltei-me para o cultural, em que filmes recebiam maior destaque. A influência disto na minha formação foi imensa: encontrei facilidade em redigir e 12 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
O autor Gustavo Nery, aspirante à crítico de cinema corrigir redações, o que me trouxe destaque nas aulas de linguagens durante o colégio. No início dos anos 2000, quando os DVD’s começaram a substituir aos poucos o VHS, meu consumo de filmes aumentou: não via somente animações (que é um dos meus gêneros favoritos), passando a aventurar-me também em filmes de comédia, romance e, posteriormente, dramas e épicos. Também foi na metade da década que Créditos Iniciais Impressões de um rato de cinema 13
me apaixonei profundamente por musicais, passando a pesquisar sobre o gênero sempre que possível. Chegara a hora de montar minha coleção pessoal de filmes, a qual zelo e busco ampliar até os dias de hoje. Sobre a locadora, permaneci visitando até meus 16 anos de idade, quando mudei de residência para um bairro distante. Curiosamente, ela fechou um mês depois. Com a popularização da internet e a aquisição do primeiro computador, dediquei-me a ler em frequência quase diária notícias sobre o cinema hollywoodiano. Em consequência, descobri muitos portais de exercício e divulgação da crítica cinematográfica. Isto, somado às leituras de jornais, à aptidão para a área e às habilidades
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exercitadas durante o período colegial, acabaram influenciado-me a optar pela graduação em Comunicação Social - Jornalismo, na qual iniciei estudos no primeiro semestre de 2013, na Universidade de Fortaleza (Unifor). Ainda nos primeiros anos, meu desejo em escrever sobre cinema levou-me a fóruns online e redes sociais, nos quais publicava meus textos de análise fílmica em formato de comentário, no intuito de fomentar debates entre cinéfilos. Por essa razão, decidi inscrever-me, ainda no segundo semestre letivo, para estágio no blog laboratorial do curso de Jornalismo. O interesse por filmes agraciou-me com a oportunidade de contribuir quase semanalmente para a coluna Claquete do blog, destinada à resenhas cinematográficas. Os textos publicados nesta condição, hoje transformados em arquivos, podem ser encontrados no Segundo Ato deste livro, como explicado mais à frente. Em 2015, recebi convite dos diretores do portal Quarto Ato para colaborar periodicamente e, além de escrever críticas cinematográficas dos lançamentos recentes, assumir uma coluna sobre filmes de animação. A parceria funcionou de forma gratificante e exerço colaboração até o momento, agora também executando a editoria das postagens sobre literatura. O Quarto Ato hoje figura entre os parceiros do portal regional de notícias O Povo e da lista de imprensa do popular site AdoroCinema, que é um dos mais visitados a abordar especificamente o conteúdo audiovisual de produções cinematográficas e televisivas. Em 2016, fui convidado a ingressar também na equipe do portal cultural It Pop, onde a editoria de cinema encontrava-se em reforma e expansão. Dentro do portal, pude contribuir não somente com críticas de cinema, mas na elaboração de matérias especiais e playlists que contemplam o universo cinematográfico e suas premiações. Devido ao grande alcance conquistado pelas publicações do It Pop, o site tornou-se parceiro da emissora MTV, compartilhando de seu domínio virtual. Permaneço em sua redação até o momento, colaborando ocasionalmente e experimentando novos modelos editoriais dentro da área de cinema. Créditos Iniciais Impressões de um rato de cinema 15
Sobre o livro
Nascido de um produto apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso no primeiro semestre de 2017, o livro Impressões de Um Rato de Cinema reúne a maior parte das críticas cinematográficas produzidas durante meu período como estudante de graduação em Comunicação Social – Jornalismo (2013-2017) da Universidade de Fortaleza, desde os textos laboratoriais às produções que realizei para portais culturais de alcance nacional. O livro é dividido, assim como um filme, em três atos. O Primeiro Ato, escrito como uma síntese de minhas pesquisas para o trabalho, consiste em uma rápida introdução à ascensão histórica da crítica de cinema, assim como comentários sobre sua classificação, processo de produção e perspectivas sobre seu futuro em uma era pós-moderna de compartilhamento de informações. O Segundo Ato reúne textos produzidos em âmbito de oficina acadêmica (2013-2014), e o Terceiro Ato apresenta as análises fílmicas publicadas posteriormente (2015-2017), sob título de colaborador para os veículos Quarto Ato e It Pop. A realização deste livro, a meu ver, possibilita o estabelecimento de um parâmetro que avalia o crescimento acadêmico, pessoal e profissional de um aluno durante a graduação em Jornalismo. Sua produção é importante para compreender como o estudo de determinadas disciplinas, tais como História e Estética do Cinema, Comunicação Visual, Estética e Linguagem, Sociedade da Infor16 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
mação e Tecnologias, Oficina em Jornalismo, Jornalismo Impresso, Semiótica, Arte e Cultura Brasileira, Documentário, entre outras, podem afetar a produção textual em relação à construção de argumentos na prática da crítica cinematográfica. Espero que a leitura dos textos apresentados a seguir incite discussões a respeito de várias produções do cinema moderno, assim como desperte paixões e o exercício de um olhar crítico durante a apreciação de um filme. Convido você a também produzir suas
O Pecado Mora ao Lado (Billy Wilder, 1955) próprias análises fílmicas, como eu fiz, e compartilhá-las. Afinal, este livro é o retrato daquilo produzido por um “rato de cinema”, destinado à outros ratos que tenham sido tão seduzidos pela magia da frames em movimento e dos sonhos na tela prateada quanto eu. Aproveite! Gustavo Nery Créditos Iniciais Impressões de um rato de cinema 17
Breve Histórico da Crítica
Em 28 de dezembro de 1895, os irmãos Auguste e Louis Lumière exibem, pela primeira vez, no sudeste da França, o cinematógrafo. Sua nova invenção, uma máquina de filmar e projetar imagens, causa espantamento no público, com um crescente burburinho que logo viria a espalhar-se por outros países, trazendo destaque na época para a dupla. Foi em abril do ano seguinte, 1896, que o romancista russo Máximo Gorky, sob o pseudônimo I. M. Pacatus, publica no pequeno jornal Nizhegorodski listok sob sua experiência diante do filme dos Lumière, exibido na cidade de Nizhini-Novgorod. Inicia-se então a longa jornada da crítica cinematográfica. O cinema, em si, é uma arte que sempre proporcionou discussões, nem que seja uma simples conversa entre espectadores sobre a experiência construída em torno da exibição de um filme. Quanto à crítica de cinema como gênero jornalístico, não se sabe o período exato de origem; muito especula-se a partir de alguns marcos históricos, como no caso do texto de Gorky na publicação russa. Estima-se que os textos voltados à análise fílmica tenham herdado características gerais da crítica de arte, ao longo da consolidação do cinema como ramo de produção cultural. Muito de sua popularização deve-se também à cobertura de eventos cinematográficos pela imprensa, visto que os filmes despertavam o interesse de curiosos desde as suas primeiras produções, ocasionando na sua divulgação em veículos comunicativos por conta de um deferido status. 20 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Com o amadurecimento e a designação do cinema como arte ocorrendo apenas no século XX, as exibições dos primeiros filmes, ainda no final do séc. XIX, estariam limitadas à classificação de mero entretenimento. Por tratar-se de uma nova tecnologia, as sessões atraíam a atenção da imprensa, que realizava cobertura como um evento qualquer; registrava-se aquilo que era visto na tela e as reações do público. Sendo assim, os primeiros textos opinativos ainda mesclavam-se com a função de registro informativo característica do espaço em que eram disseminados.
Tempos Modernos (Charlie Chaplin, 1936) Ainda que o cinema tenha vindo a amadurecer posteriormente, a análise crítica do conteúdo apresentado pelos filmes, na época, era um desempenho muitas vezes consignado no âmbito acadêmico. É por esta razão que ocorrem confusões quanto aos termos “crítica” e “resenha”: o primeiro, geralmente, estava relacionado a comentários em pesquisas e publicações científicas, enquanto o segundo era utilizado para definir textos opinativos em veículos gerais. Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 21
Cantando na Chuva (Gene Kelly e Stanley Donen, 1952) Atualmente, com a diferença entre eles tornando-se cada vez mais tênue, ambos os termos são utilizados para definir textos com o mesmo objetivo: discorrer sobre produções cinematográficas. A crítica cinematográfica ganhou seu próprio espaço e tom a partir da II Guerra Mundial (1939-1945), quando surgiram as primeiras publicações dedicadas exclusivamente ao cinema, como as estaduni22 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
O Mágico de Oz (Victor Fleming, 1939)
“Estima-se que os textos voltados à análise fílmica tenham herdado características gerais da crítica de arte, ao longo da consolidação do cinema como ramo de produção cultural”
denses Film Quartely, Artforum e Film Culture; as britânicas Screen, Sequence, Sight and Sound e Movie, e as francesas Positif e Cinéthique e Cahiers du Cinéma. Este tipo de abertura deu-se com a sofisticação do cinema quanto arte, o que consequentemente propôs uma maior profundidade em conteúdo, permitindo maior tom analítico e discussões voltadas ao tema. Foram as análises realizadas por estas revistas, por exemplo, que identificaram vários movimentos de gênero e produção cinematográfica, como a Nouvelle Vague. Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 23
A função e o perfil do crítico de cinema
Se analisarmos a construção cultural moderna, percebemos que o cinema tem grande influência sobre o comportamento dos indivíduos, agindo também como uma possibilidade de expressão emocional e artística. Ele é um dos fatores centrais na definição da cultura contemporânea, visto que movimenta grande parte do mercado de entretenimento e estende-se, muitas vezes, a produtos não só do nicho audiovisual, sendo referenciado em diversos meios por causa da sua popularização. O crítico de cinema basicamente é, portanto, um curador de conteúdo. Seu trabalho é guiar a indústria para garantir que os produtos realizados mantenham um bom nível de qualidade e inovação, seja de estética ou de discurso. Como qualquer crítico de arte, aquele que é cinéfilo deve expor ao público os pontos positivos e negativos de uma produção, guiando investimentos tanto do público quanto dos grandes estúdios, e ajudando enaltecer obras que honram o cinema quanto instituição criativa e sensível artisticamente. Tendo isso em vista, o crítico deve ter bom conhecimento daquilo que decide abordar, assim como da recepção das obras, a fins de fundamentar aquilo que afirma em seu “juízo de valor” e reconhecer o respectivo impacto de sua opinião, quando bem construída e divulgada, em relação à produção e ao consumo. Em alguns casos, os contrastes entre a opinião geral do público e a da crítica pode corroborar uma imagem negativa quanto à po24 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
sição muitas vezes exigente dos críticos de cinema. Este tipo de debate desvaloriza a posição do crítico quanto especialista do tipo de conteúdo avaliado, reduzindo seu trabalho a uma mera análise antipática. É por esta razão que deve ser construído um diálogo entre os dois eixos consumidores (público e crítica), e o responsável pela análise fílmica deve, então, reconhecer os propósitos da obra analisada e seu contexto histórico e social de produção e distribuição, para melhor atender os quesitos em que sua opinião faz-se necessária e o teor na qual deve estruturar-se.
“O crítico de cinema basicamente é, portanto, um curador de conteúdo. Seu trabalho é guiar a indústria para garantir que os produtos realizados mantenham um bom nível de qualidade e inovação, seja de estética ou de discurso”
Como realizador de uma atividade séria e relevante para a indústria, o crítico de cinema deve também preparar-se para construir bons argumentos em seu texto. Uma boa fundamentação requer mais do que cinefilia e opinião direta; é preciso compreender os processos de construção de um filme, a organização usual de uma equipe produtora, os conceitos teóricos que cercam o cinema e vários outros fatores relevantes. Também é essencial, claro, uma grande bagagem de conhecimento acerca das produções já realizadas ao longo da história do cinema. Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 25
O crítico de cinema no século XXI
Certamente, o advento da internet e das redes sociais trouxe muitas possibilidades para o eixo da crítica cinematográfica. O que aos poucos foi consolidando-se na construção de blogs, onde os internautas possuem liberdade para publicar opiniões e experiências pessoais, hoje encontra espaço em poucos caracteres nos microblogs; em vídeos no YouTube; em lacunas que nos perguntam “O que você está pensando?” e “O que você está assistindo?”, entre outros estímulos de compartilhamento e sociabilidade digital. No séc. XXI, com os posts, downloads e streamings, a velocidade do fluxo informacional e sua extensão ampliaram o acesso e o consumo de conteúdo relacionado à cultura. As opiniões antes destinadas quase que exclusivamente aos jornais migraram para a web, e as muitas possibilidades de produção e divulgação de conteúdo abriram portas para aqueles interessados em discorrer sobre aquilo que consomem e vivenciam. Em tempos de convergência de mídias, essa produção é sobretudo estimulada; as palavras do público consumidor passaram a ganhar maior relevância, visto que tornaram-se um feedback imediato e um marketing espontâneo daquilo que pretende-se divulgar, muitas vezes influenciando nichos específicos de público (com os “portadores de opinião”, reflexo dos consumidores, sendo modernamente designados como digital influencers). Para a crítica cinematográfica, todos estes avanços propuseram uma remodelação em seu consumo e produção: as estruturas 26 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
textuais dispõem do auxílio de hiperlinks, vídeos com trailers e cenas dos filmes, gifs com cenas de divulgação, etc. O crescimento do volume de produção da mídia opinativa descentralizou, em alguns casos, o vínculo com o caráter jornalístico, pois as discussões e análises muitas vezes vão além do âmbito de texto argumentativo em veículo noticioso para ganhar espaço em fóruns, grupos de conversa e redes sociais voltadas para os fãs de cinema, como Filmow e Letterboxd. Com tanto conteúdo opinativo à disposição do público, a análise produzida pelos críticos infelizmente acaba sendo reduzida a meros números e poucas frases. Sites como Rotten Tomatoes, AdoroCinema, Metacritic e IMDb empenham-se em compilar diversos
Os Homens Preferem as Loiras (Howard Hawks, 1953) Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 27
textos e emitir uma nota de avaliação geral a partir deles, dividindo os filmes entre “bons” e “ruins” a partir de uma estimativa de consenso, que costuma também ser comparada com notas e comentários avaliativos de usuários. O diretor e produtor Brett Ratner (dos filmes “A Hora do Rush”, 1998 e 2001) afirmou certa vez em entrevista no festival Sun Valley Film que a plataforma Rotten Tomatoes “é a destruição do nosso negócio. Eu tenho muito respeito e admiração pela crítica de filmes. Quando eu estava crescendo, a crítica cinematográfica era uma verdadeira arte. Havia muitos intelectuais dedicados a isso. (...) Agora tudo é apenas um número. Um número composto de quantas críticas positivas versus negativas”.
...E o Vento Levou (Victor Fleming, 1939) Independente de como a crítica cinematográfica transformou-se em sua essência para manter-se viva nos dias de hoje, é inegável sua proliferação prática em plataformas digitais. Canais de vídeos no website YouTube dedicam-se especialmente a isto, enquanto novos usuários e consumidores não hesitam diariamente em compartilhar vídeos onde comentam sua opinião ou reação a algo. A banalidade desta prática aproximou 28 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Psicose (Alfred Hitchcock, 1960) a crítica de cinema a um serviço de divulgação; não é à toa que empresas de assessoria organizam as chamadas “cabines de imprensa”, onde as distribuidoras exibem, para convidados, jornalistas culturais (geralmente, os que desempenham a função de escrever crítica) e influencers, filmes antes de seu lançamento oficial, no intuito de receber algum marketing em retorno, e preenchendo assim suas páginas de clipagem. Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 29
Os tipos de crítica de cinema
Durante os anos, diversos estudiosos discorreram em suas pesquisas acerca da crítica cinematográfica e suas características. Em razão disto, não há uma classificação exata quanto aos tipos existentes, pois ela depende muito daquilo que é analisado por cada autor e o foco de sua obra. O jornalista, escritor e artista plástico Daniel Piza, por exemplo, aborda a análise fílmica em seu livro “Jornalismo Cultural”, publicado em 2004. No seu trabalho, ele apresenta quatro tipo distintos: as críticas Impressionistas, caracterizadas por uma marcante adjetivação por parte do autor, sendo este tipo de recurso literário a principal alternativa para a construção do texto opinativo; as Estruturalistas, em que há maior análise quanto à forma do filme, sua linguagem e construção técnica, sem enfoque na importância da obra e sua temática; as críticas que discorrem a respeito do Autor do filme, concentrando-se em sua equipe de produção e, por fim, as críticas que trazem foco à Temática, desta vez analisando o discurso apresentado pela obra e sua relevância (ou irrelevância). Na prática, encontramos vários artigos em publicações que abordam a importância ou a polêmica de determinado filme, ou até mesmo especiais que enaltecem o trabalho de algum diretor e suas marcas estilísticas; textos que poderiam perfeitamente encontrar encaixe dentro desta classificação (como críticas que destacam Autor e Temática, respectivamente). 30 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Titanic (James Cameron, 1997) Outros exemplos da classificação de críticas cinematográficas são encontrados na obra “Jornalismo Opinativo: Gêneros Opinativos do Jornalismo Brasileiro”, publicada por José Marques de Melo em
“Não há uma classificação exata quanto aos tipos existentes [de críticas cinematográficas]”
2003. Neste livro, o autor dialoga com conceitos definidos pelos jornalistas estadunidenses Frank Fraser Bond e Todd Hunt. Para Bond, a crítica define-se a partir do método de apreciação escolhido pelo autor, podendo ser Clássico, Relatorial, PanorâPrimeiro Ato Impressões de um rato de cinema 31
E.T. – O Extraterreste (Steven Spielberg, 1982) mico e Impressionista. A crítica clássica impõe a nova obra de arte como um produção a ser analisada a partir de padrões estabelecidos por tradição; a relatorial traz em sua essência uma descrição detalhada da obra, daquilo que se assiste (com a inserção de uma opinião implícita, a partir daquilo que foi selecionado para ser descrito); a panorâmica consiste na apreciação com embasamento em perspectiva histórica de produção e lançamento; e a impressionis32 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
ta, por sua vez, refere-se ao efeito provocado pela obra, em toda a sua conjuntura, no “ser humano sensível” que é o crítico. Trazendo esta classificação para a atualidade, percebe-se a prevalência dos modelos clássico e impressionista, visto que melhor atendem às expectativas do público geral quanto análise. Em tempos onde evita-se o spoiler (revelações de enredo que podem prejudicar a experiência do espectador), os textos aqui classificados como rePrimeiro Ato Impressões de um rato de cinema 33
A Princesa e o Plebeu (William Wyler, 1953) latoriais, cuja base é meramente descritiva, são negligenciados e geralmente destinados à análises acadêmicas. Para Todd Hunt, por outro lado, as análises opinativas sobre cinema dividem-se em apenas duas classificações: a Autoritária, que se julga as obras de acordo com modelos já existentes de análise e interesses dentro de um quadro histórico, sendo mais conservadora ao criar uma atmosfera de categorização, e a Impressionista, 34 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
que segue a anarquia cultural ao não seguir modelos ou padrões, sendo baseada na reação do autor das críticas e concentrando-se em seus próprios méritos e opiniões. É interessante notar que, se levarmos os conceitos de Hunt para classificação, perceberemos que os textos modernos tendem a mesclar os dois tipos; tendência já evidenciada por Marques de Melo em sua discussão. Um outro exemplo de classificação, o último exemplo a ser citado aqui, é a realizada por Francisco Esteve Ramirez e Javier Fernández Del Moral no livro “Areas de especialización periodística”. A jornalista cultural e pesquisadora Carolina Braga adaptou esta classificação em seu trabalho “A Crítica Jornalística de Cinema na Internet: Um dispositivo em Transformação”, publicado em 2013, dispondo-a da forma apresentada a seguir. • • •
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Descritiva: sem qualquer reflexão ou perspectiva; Formal: se concentra apenas na forma externa do filme dentro de um conceito estético de cinema; Escola de conteúdo: concentra a análise crítica no conteúdo da obra, deixando a estética e outros aspectos formais em um plano secundário; Manipulativa: modelo aplicado de acordo com interesses particulares do crítico, das distribuidoras, ou publicidade. Idealista: idealismo extremado que valoriza, acima de tudo, o autor ou seu estilo formal. O crítico centra o trabalho na busca do ponto de vista do diretor; Estruturalista: analisa o trabalho no âmbito das relações socioeconômicas que se desenvolveram; Clássica: com base em uma visão acadêmica do trabalho, leva em conta certas regras preestabelecidas e orientações. Visão geral: requer uma perspectiva histórica para a maneira como o escritor considera o filme em comparação com outros do mesmo gênero. Impressiva: a avaliação desse tipo de crítica depende dos valores que o crítico tem enquanto indivíduo. O profissional analisa à luz dos próprios afetos, de suas impressões. Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 35
Estrutura e processo de produção
Seguindo as possíveis classificações da crítica cinematográfica, como aqui já apresentado, podemos afirmar que, apesar do estilo diferente de cada produtor, a crítica segue uma estrutura de organização das informações que tende a repetir-se. O processo de produção em si varia entre cada crítico; da maneira como elaboram seus argumentos de sustentação para comprovar um juízo de valor adequado. Em sua escrita, o responsável pela análise fílmica pode demonstrar um pouco de sua personalidade e bagagem informativa, muitas vezes revelando-se aficcionado por determinado gênero de filme ou sugerindo referências de filmes, diretores, atores ou outros membros da equipe técnica. O teórico estadunidense de cinema David Bordwell observa que, na lógica da crítica cinematográfica, o crítico apresenta, tal qual no jornalismo opinativo, dados que confirmam ou refutam as hipóteses levantadas a respeito da obra. O leitor, por sua vez, tende a ser influenciado pelo conteúdo apresentado, mas é livre para concordar ou não com os argumentos do crítico, fomentando assim o debate acerca da obra. No livro “Making Meaning: inference and rhetoric in the interpretation of cinema” (“Fazendo Sentido: inferência e retórica na interpretação do cinema”, em tradução livre”), Bordwell comenta que a estrutura das críticas de cinema dos principais veículos de comunicação segue pelo menos quatro elementos: uma sinopse resu36 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
mida, evidenciando os momentos mais intensos, mas sem revelar o final da trama do filme; um conjunto de informações sobre ele (tais como gênero, origem, ano, diretor, atores, curiosidades sobre a produção ou a recepção); uma reunião de argumentos concisos sobre a recepção do crítico e, finalmente, uma julgamento direto e reduzido (bom ou ruim, de uma a cinco estrelas, nota em escala de um a dez) ou simples reação (“curti” ou ”não curti”; filme ”maduro” ou ”podre”; “deve ver” ou ”passe direto”). Quanto ao conteúdo estilístico do texto ou vídeo, os críticos usam diversos artifícios para esclarecer seu teor opinativo e percepção:
O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972) adjetivação, expressões modernas, frases irônicas, bordões pessoais, etc. Há também a referenciação de elementos e informações do filme, no intuito de exemplificar seus argumentos: é comum a descrição de sequências para ilustrar determinada opinião ou desPrimeiro Ato Impressões de um rato de cinema 37
Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954) taque (seja sobre aspectos visuais, comportamento dos personagens, enquadramento, desempenho de atores ou, simplesmente, o impacto narrativo da cena). Em resumo, a crítica de cinema, quanto artigo ou vídeo de opinião, deve situar o leitor a respeito da obra avaliada. A identificação inicial do conteúdo do texto difere-se do lead jornalístico, mas assume a importância de informar alguns aspectos gerais do filme e propõe de imediato a reflexão que será desenvolvida nos parágrafos ou minutos seguintes, a fins de captar a atenção do público interessado. Por conseguinte, geralmente são apresentados uma sinopse do filme (ainda nos primeiros blocos textuais ou minutos do vídeo) e análises de desempenho dos atores, roteiro e estética. Os argumentos presentes na avaliação estética da produção seguem, entre outros fatores, o estudo das escolhas visuais e sonoras da equipe. A estrutura básica é: 38 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Bonequinha de Luxo (Blake Edwards 1961) • • • •
Informações gerais sobre o filme e curta introdução à análise; Sinopse do filme; Avaliação do desempenho dos atores, da estética da produção e do roteiro (não exatamente nessa ordem); Conclusão: opinião acerca do conteúdo passível de discussão da obra, geralmente nos parágrafos ou minutos finais, desenvolvendo o pensamento crítico e apresentando uma reação opinativa direta de aprovação ou reprovação.
Os conteúdos podem ou não vir acompanhados de ficha técnica e links ou cenas do trailer do filme (o que é indicado), demonstrando o processo de apuração do autor em relação à obra cinematográfica, e respondendo curiosidades comuns dos consumidores em relação ao filme apresentado. A crítica também investe na referenciação visual ao filme, apresentando no mínimo um pôster do filme e/ ou imagens dos personagens ou cenas. Primeiro Ato Impressões de um rato de cinema 39
Paris-Manhattan Um história de amor para fãs
Sophie Lellouche, 2012 Originalmente publicado em 01/10/2013, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
“Paris-Manhattan”, filme francês dirigido pela então estreante Sophie Lellouche, homenageia um dos maiores atores, diretores e comediantes da história do cinema: Woody Allen. A trama gira em torno de Alice (Alice Taglioni), uma farmacêutica que teve seu primeiro contato com um filme de Allen aos 15 anos, e logo identificou-se com ele. A partir disso, Alice começou a nutrir uma relação de devoção: seu amor por Woody é tão grande que ela 42 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
chega a conversar sobre diversos dilemas de sua vida, por meio de pensamentos, com um pôster dele. A visão da protagonista sobre a sociedade em que vive geralmente apresenta tons de arrogância, o que pode ser entendido pela influência dos pensamentos críticos apresentados nas polêmicas obras do cineasta. Criticada pela problemática família, que preocupa-se com seu status acerca de relacionamentos amorosos, Alice encontra resposta para praticamente tudo na extensa coleção de filmes de Allen que possui, e que surgem como “guias explicativos”, no intuito de evitar desilusões resultantes da contradição entre o mundo real e a fantasia romantizada que a personagem secretamente alimenta. Ela, inclusive, por acreditar na eficácia dos filmes, os indica para clientes de sua farmácia. A realidade de Alice entra em choque com a aparição de Victor (Patrick Bruel), instalador de alarmes que conheceu após uma festa, e que nunca assistiu a um filme do diretor que ela tanto admira. Em meio à desavenças e situações cômicas, a relação entre os dois se desenvolve, promovendo um amor nutrido por suas características opostas. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 43
Na tentativa de compor uma produção semelhante às daquele que o filme menciona, o roteiro levanta questionamentos sobre a moral, em cenas que apresentam a atmosfera caótica entrelaçando os seres humanos nas suas patologias sociais. Entretanto, a premissa não é bem desenvolvida no longa, que marca pouco os espectadores, e não proporciona maiores reflexões. Há também defeitos na construção e montagem das cenas: o ritmo rápido no qual decorrem propõe que algumas informações permaneçam subentendidas, dependendo, portanto, da capacidade de percepção público. A complexidade de Alice passa a ser compreendida melhor com a continuidade dos atos, que constroem-se esteticamente buscando a representação sentimental da protagonista. Isso fica evidente nas sequências finais, compostas de maneira a evidenciar o estado quase “fantasioso” da personagem, e que destacam-se pela participação inusitada do próprio Woody Allen na trama. Em complemento, a trilha surge como grande ponto positivo no filme; mescla canções que ilustram a sofisticação parisiense com clássicos da era de ouro da música nova-iorquina. 44 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Os seus sonhos são banais. A realidade oferece coisas melhores do que isso” Victor (Patrick Bruel)
Uma proposta interessante é a análise que o filme realiza sobre o comportamento usual de indivíduos que são fãs de alguém: Alice admira tanto Woody que não admite críticas negativas direcionadas a ele. Sua paixão pelo cineasta restringe o relacionamento que ela possui com todos ao seu redor, sendo obrigada, em momentos posteriores, à abandonar seu jeito de agir e submeter-se aos limites e obrigações impostos pela sociedade. Em suma, “Paris-Manhattan” decepciona ao descumprir seu objetivo, mas torna-se suficiente para quem gosta de seu gênero, e, principalmente, para os fãs da grande personalidade que é Allen. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 45
Gravidade Agonia espacial
Alfonso Cuarón, 2013 Originalmente publicado em 22/10/2013, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza Vencedor de sete Oscar: Melhor Diretor, Melhor Trilha Sonora, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Fotografia, Melhor Edição, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som
Dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón (“Filhos da Esperança” [2006], “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” [2004]), o drama científico “Gravidade” (2013), estrelado por Sandra Bullock e George Clooney, destacou-se nas bilheterias, recebendo elogios de público e crítica durante seu lançamento. Com exemplar uso de efeitos visuais, o filme traz conceitos da ciência para construir uma narrativa que explora a humanidade por meio do desespero pela sobrevivência. 46 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama do filme segue a Dr. Ryan Stone (Bullock) e o astronauta experiente Matt Kowalski (Clooney) em missão espacial, até terem sua base atingida por destroços de um satélite, destruído por míssil russo. A partir disto, o público encontra-se diante de cenas agoniantes, que mostram a luta dos dois, agora à deriva no espaço sideral. Mais do que uma ficção científica, “Gravidade” é uma metáfora para o valor da vida e o recomeço. A personagem de Sandra, atordoada pelo trauma da morte da filha, não encontra mais sentido para sua existência. Entretanto, o ocorrido surge como uma chave para que ela possua novos objetivos e valorize seus dias na Terra. A fotografia e os efeitos da produção desempenham um papel crucial na inserção do espectador: é fácil sentir-se nauseado com os movimentos propostos pelo enquadramento que imita o ambiente espacial, e os efeitos 3D bem aplicados são capazes de tirar o fôlego da platéia em diversas cenas. A predominância da utilização de planos psicológicos contribui para o sentimento de desespero que permeia a obra, provocando lágrimas nos mais sensíveis. Já no
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campo de atuações, o maior destaque permanece sobre Bullock, com Clooney compondo um personagem que caracteriza-se mais pelo alívio cômico que provoca sobre a tensão. É importante dar atenção à uma das cenas mais simbólicas do filme: após recuperar o Oxigênio, antes escasso em sua roupa espacial, Ryan permanece suspensa em posição fetal, de maneira que remete ao processo de respiração entre mãe e bebê característico da gravidez, e representa a “nova chance de viver” que a protagonista recebe após sua quase asfixia. “Gravidade” foi eleito um dos melhores filmes do ano de 2013, inclusive pelo renomado diretor Quentin Tarantino. Ganhou sete prêmios Oscar, incluindo o de Melhor Diretor, além de relevantes premiações como British Academy Film Awards e Golden Globes Awards. 48 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
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Um Lugar na Platéia Pelo amor à arte
Danièle Thompson, 2006 Originalmente publicado em 05/11/2013, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
A Paris das artes é o foco da obra “Um Lugar na Platéia” (“Fauteuils d’Orchestre”, 2006), filme dirigido pela francesa Danièle Thompson, com roteiro leve e agradável. A comédia romântica explora a vida de personagens que vivem por trás de palcos e exposições, sob a perspectiva de uma ingênua e amável transeunte, cujo olhar e descoberta da paixão pelas artes é emprestado ao público para entregar uma admirável interpretação daquele universo. 50 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama desenrola-se a partir de Jessica (Cécile de France), jovem simples e interiorana que, incentivada pela avó e suas histórias, vai para Paris em busca de trabalhar no luxuoso hotel Ritz. Ao chegar na capital Francesa, Jessica não consegue emprego no hotel, mas é contratada como garçonete aprendiz em um movimentado café na Avenue Montaigne, em frente a um dos principais teatros da cidade. A garota passa então a acompanhar figuras interessantes, tais como uma famosa atriz de televisão que busca ampliar sua carreira para o cinema e está prestes a estrear em um novo espetáculo, um pianista que está cansado de sua rotina e planeja não realizar mais concertos, e um milionário que está pondo os principais títulos de sua coleção de arte em leilão. Todas essas situações, então, interligam-se, sendo exploradas simultaneamente no decorrer da trama. O charme da produção está nas paisagens e na trilha, que contribuem para criar uma sensação agradável de beleza ao espectador. O roteiro, permeado de situações cômicas, é tão ingênuo quanto sua protagonista, e aposta em explorar personagens cativantes. O grande trunfo, entretanto, é a homenagem às artes. Tudo está lá: música, teatro, cinema, artes plásticas… tanto nos gêneros clássicos, quanto nos populares. A proposta dessa “mostra artística” ganha ares harmoniosos, que se encaixam perfeitamente na atmosfera de romantismo parisiense. “Um Lugar na Platéia” possui uma temática que supre a necessidade de entretenimento, mas peca em não investir mais no lado reflexivo e na profundidade de determinadas histórias. Apesar disso, propõe algumas metáforas que, mesmo não destacando-se no meio cinematográfico, garantem análises e sorrisos. O espectador passa, por meio disto, a identificar-se com a classe artística. Como dizia a avó de Jéssica, na frase que abre o filme: “Eu sempre quis ser artista, mas como não tinha talento, resolvi trabalhar no meio deles”. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 51
O Mestre Todos nós somos dependentes
Paul Thomas Anderson, 2012 Originalmente publicado em 18/02/2014, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, “O Mestre” (2012) é um longa-metragem com narrativa polêmica que evidencia vínculos de liberdade e submissão, ganhando força com o desempenho excelente do trio principal. A trama, ambientada em 1950, segue o ex-marinheiro Freddie Quell (Joaquin Phoenix), que encontra-se mentalmente debilitado após a 52 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
II Guerra Mundial. Com acessos de violência, obcecado por sexo e viciado em álcool, Quell embarca acidentalmente em um iate, onde conhece Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), líder de uma corrente religiosa e filosófica denominada “A Causa”, que acredita na cura de doenças por meio da visitação a traumas passados, utilizando-se de uma técnica semelhante à hipnose. Dodd então toma Freddie como seu “protegido”, submetendo-o a uma série de exercícios mentais, com o intuito de curá-lo da sua loucura.
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Phoenix encarna Freddie Quell de maneira tão exemplar que desenvolve ao longo do filme trejeitos próprios do comportamento do personagem. Os impulsos animalescos de Quell revelam uma mente conturbada e problemática, que submete-se a Dodd como um ser amoral que vai aos poucos “domesticando-se”; ganhando 54 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
controle de sua vida, mas de forma a perder sua particularidade. Amy Adams, que interpreta a esposa de Lancaster, constrĂłi sua personagem com grande envolvimento psicolĂłgico, de forma a transmitir, com um simples olhar, todo o sentimento doloroso que perpetua seus pensamentos. Segundo Ato ImpressĂľes de um rato de cinema 55
Já Philip Seymour Hoffman dá a Lancaster Dodd um aspecto inicialmente carismático e persuasivo, mas que se perde com o desenrolar da narrativa, revelando um “mestre” não tão benevolente, que se esconde por trás de suas inseguranças e mentiras; alguém que considera sua verdade como absoluta e busca por meio de exploração da crença alheia uma forma de provar sua imponência. Um dos principais aspectos técnicos da película é sua fotografia, que se utiliza da composição como destaque, evidenciando a introspecção dos personagens por meio da paleta de cores e iluminação. Assim, elas se tornam mais frias e escuras à medida que os diálogos aumentam de intensidade. O enquadramento obedece noções de proporção nas cenas localizadas em ambientes externos
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“Quando estamos apaixonados experienciamos o prazer, e também a dor extrema” Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman)
e fecha para planos psicológicos quando conflitos interiores tomam conta dos protagonistas. A trilha, por sua vez, é responsável por transportar o espectador ao ano de ocorrência dos fatos. Por fim, a principal mensagem deixada por “O Mestre” não está relacionada somente à influência que fatos e pessoas exercem sobre outros, mas sim a dependência de seres humanos sob sua fé e até mesmo aqueles que o rodeiam. Como afirma Dodd: “Se conseguir descobrir um modo de viver sem servir a um mestre, qualquer mestre, avise a todos. Você seria a primeira pessoa na história do mundo”. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 57
Álbum de Família A família nos consome
John Wells, 2013 Originalmente publicado em 01/04/2014, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
Dirigido por John Wells e adaptado da peça homônima pela própria autora, Tracy Letts, “August: Osage County” (no Brasil, “Álbum de Família”) é um drama de 2013 que se destaca pela quantidade de nomes conhecidos em seu elenco. Entretanto, os méritos do filme não se resumem somente a isso; o texto instigante sobre disfunção familiar entrega uma boa dose de catarse, com performances que agradam e conseguem envolver o público. 58 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama ocorre no árido Condado de Osage, Oklahoma, e gira em torno da problemática Violet Weston (Meryl Streep) matriarca que sofre de câncer de boca e é viciada em pílulas. Após ser abandonada pelo marido, o poeta alcoólatra Beverly Weston (Sam Shepard), Violet recebe a visita de suas três filhas, Barbara (Julia Roberts), Karen (Juliette Lewis) e Ivy (Julianne Nicholson). Beverly comete suicídio, o que leva a uma indesejada reunião familiar Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 59
marcada pelas divergências entre os membros da família e alguns segredos que permaneceram ocultos por um longo período. Na análise das atuações, é essencial destacar o reconhecido desempenho de Streep e Roberts. A colaboração das duas em cena é espetacular, tendo em vista que conseguem expressar toda a angústia entre suas personagens. Meryl aparece praticamente desfigurada, com todos os aspectos físicos sintomáticos que Violet deve apresentar. Quanto ao restante do elenco, que inclui Ewan McGregor, Abigail Breslin e Benedict Cumberbatch, sua performance é competente em manter o clima intenso, necessário para a representação crítica dos problemas familiares atuais. É exatamente nesse quesito social crítico que o roteiro se encontra. Construído com enfoque nos fortes e extensos diálogos, o que pode tornar seu desenvolvimento arrastado para alguns, a prin-
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cipal questão levantada pela obra é o atual enfraquecimento das relações humanas, consequência da complexidade psicológica conturbada do sujeito moderno. Nos casos ali descritos, é possível perceber os vícios e distúrbios desenvolvidos pela insatisfação do ser humano, além dos inconsistentes laços afetivos que surgem em uma sociedade marcada pelo individualismo. Todos possuem seus próprios problemas em “Álbum de Família”, que vão de crises conjugais à demência, além do consumo de drogas como artifício de escape da realidade. Em uma proposta de reflexão a respeito do fim das virtudes e da compreensão, antigamente representados pela instituição familiar, que hoje se encontra predominantemente disfuncional, a produção nos permite indagar: afinal, foi a esse mundo em crise que chegamos?
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Rânia Fortaleza sob um olhar minucioso
Roberta Marques, 2011 Originalmente publicado em 15/04/2014, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
Longa-metragem de estreia da diretora Roberta Marques, “Rânia” (2011) acompanha a ingênua e esperançosa personagem-título, uma garota de 16 anos que sonha em ser dançarina. O filme, rodado inteiramente em Fortaleza, observa a cidade por meio de uma nova dimensão. Rânia (Graziela Felix) faz parte da classe baixa, filha de costureira e aluna de escola pública. Dividida entre as aulas de dança na esco62 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
la e seus afazeres num quiosque de praia, a garota leva um estilo de vida conturbado, decorrente de uma condição financeira precária e da sua responsabilidade com os familiares.
Zizi (Nataly Rocha), melhor amiga da protagonista, é dançarina na boate “Sereia do Norte”, onde ganha dinheiro através da prostituição. Rânia, então, é seduzida a trabalhar na boate, onde encontra a possibilidade de exercer sua paixão pela dança e obter renda. Contudo, sua vida tem a chance de mudar quando conhece a coreógrafa Estela (Mariana Lima), que oferece oportunidade de torná-la dançarina profissional. O roteiro da obra desenvolve-se de forma eficaz quanto à linguagem utilizada pelos personagens. Seus diálogos e reações condizem com os da região representada, principalmente por meio de Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 63
expressões típicas. Um tom poético permeia a produção, seja ele manifestado através da fotografia ou em sentenças voice off (que, por vezes, não adequam-se àqueles que as falam). O ponto alto da obra é a facilidade de reconhecimento dos espectadores às situações de realidade apresentadas na trama. A cidade surge quase como um personagem, com seus defeitos e carências transpostos para a tela, assim como seu caráter urbano. Rânia é 64 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
uma sonhadora tragada pelo submundo de Fortaleza, e cercada por um futuro incerto, com poucas perspectivas. Tudo o que não envolve a sua vida e a daqueles que a cercam parece distante. O pai da garota, por exemplo, é um pescador intransigente que não vê sentido nas ambições da filha por uma vida melhor. Em suma, uma narrativa sobre realizações pessoais destruídas pelas dificuldades de uma vida destinada a não ter pretensões. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 65
Praia do Futuro Retrato íntimo define filme de Karim Aïnouz gravado no Ceará
Karim Aïnouz, 2014 Originalmente publicado em 06/05/2014, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
“Praia do Futuro”, longa-metragem de Karim Aïnouz, diretor cearense conhecido por filmes como “O Céu de Suely” (2006) e “O Abismo Prateado” (2011), destaca-se por mesclar cenas entre Fortaleza e Berlim. Apesar de dividir expectativas do público, o filme acerta ao deixar espaço para diversas interpretações, e por manter uma perspectiva intimista para a compreensão dos personagens. 66 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama desenvolve-se a partir de Donato (Wagner Moura), salva-vidas da Praia do Futuro, na capital do Ceará, que, após seu primeiro resgate frustrado, aproxima-se de um amigo da vítima, o alemão Konrad (Clemens Schick). Atormentado internamente
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pela sua falha, Donato vai para Berlim com Konrad, onde os dois desenvolvem um romance. O salva-vidas encontra, então, a possibilidade de reconstruir sua vida. Anos depois, o cearense recebe a visita inesperada do seu irmão mais novo, Ayrton (Jesuíta Barbosa), que anseia por descobrir as condições em que ele se encontra, devido ao longo período sem contato entre os dois. A fotografia do filme é a principal responsável em propor uma dualidade entre a ensolarada Fortaleza e a fria Berlim, utilizando com frequência cores que fazem alusão a essas condições climáticas. Planos abertos em cenários quase paradisíacos, ou closes psicológicos, que evidenciam a expressão dos atores, contribuem para compreender a simplicidade dos personagens e, ao mesmo tempo, seus conflitos interiores. O roteiro do longa-metragem permeia a produção com um tom íntimo e naturalista, colaborando para a imersão dos espectadores em uma série de eventos ocorridos. Cenas de sexo e nudez, ou de 68 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
ações banais, como tomar banho ou comer, parecem exercer a função de familiarizar, quase que instantaneamente, os personagens ao público. Essa construção auxilia na afirmação do filme quanto ao gênero drama psicológico, mas pode torná-lo um pouco arrastado, quase incômodo para alguns. A análise da complexidade interna dos personagens é atrapalhada pela edição. Quando começamos a adentrar, por exemplo, a mente de Donato ou Ayrton, a narrativa é repentinamente tomada por cenas cheias de cor e movimentos, prejudicando a inserção previamente iniciada. No campo das atuações, notamos a dedicação de Moura e Schick na composição de seus devidos personagens. A preparação física e emocional dos dois é completamente perceptível. Apesar disso, o principal destaque positivo está no desempenho de Jesuíta Barbosa que, apesar da idade, mostra todo seu potencial em um personagem intenso e representativo. “Praia do Futuro” não se revela como o melhor filme de Aïnouz, mas deixa no ar uma breve reflexão sobre (re) aproximação entre familiares, fuga de seus medos e angústias. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 69
O Grande Hotel Budapeste Uma excêntrica perseguição
Wes Anderson, 2014 Originalmente publicado em 06/08/2014, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza Vencedor de quatro Oscar: Melhor Direção de Arte, Melhor Trilha Sonora, Melhor Figurino e Melhor Maquiagem e Penteados
Conhecido por dirigir obras como “Moonrise Kingdom” (2012) e “Os Excêntricos Tenenbaums” (2001), Wes Anderson conquistou parte do público amante de cinema com sua estética singular e roteiros criativos. Em “O Grande Hotel Budapeste” (2013), famoso título do diretor, o resultado não foi diferente: uma trama fértil, posicionada no período entre guerras, que cativa os espectadores de forma divertida e empolgante. 70 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
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O longa conta a história de Zero Moustafa (Tony Revolori), jovem funcionário de um famoso hotel europeu, que junto com Gustave H. (Ralph Fiennes), empenhado concièrge do local, se envolve em perseguições após o suposto roubo de um valioso quadro Renascentista, deixado como herança por uma hóspede assídua do estabelecimento, a Madame D. (Tilda Swinton). Anderson mantém sua principal marca no quesito estético e de design da produção: uma fotografia perfeitamente simétrica e cores que se destacam em meio à fria paisagem europeia. O filme torna-se delicioso visualmente, adquirindo tom de narrativa fantástica. Esse é um conceito persistente em todo o longa-metragem, exemplificado em breves sequências que beiram o irreal cartunesco. As divertidas e caricatas atuações, aliadas à maquiagem inusitada (destaque para a caracterização de Tilda Swinton), criam personagens que cativam por seu aspecto cômico e excepcional. Apesar de não gerar impacto sócio-filosófico marcante no espectador, a obra atual de Wes Anderson merece ser citada por todo 72 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Rudeza é meramente uma expressão de medo. As pessoas temem não conseguirem o que querem. A pessoa mais apavorante e inatraente só precisa ser amada e, então, desabrochará como uma flor” Monsenhor Gustave (Ralph Fiennes)
seu aspecto criativo. Romance, crime, comédia e estratégia misturam-se em um roteiro que instiga e entretém o espectador. O longa, por vezes, lembra a sensação gerada por um livro quando explorado pela primeira vez, sendo uma grata surpresa positiva e que merece ser revisitada de tempos em tempos.
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Ferrugem e Osso A dependência como uma possibilidade de amar
Jacques Audiard, 2012 Originalmente publicado em 02/09/2014, no blog laboratorial de Jornalismo do Núcleo Integrado de Comunicação da Universidade de Fortaleza
Dirigido por Jacques Audiard (“O Profeta”, 2009), o longa-metragem “Ferrugem e Osso” (“De rouille et d’os”, 2012) é uma obra francesa que permite ao espectador analisar a vida e o perigo sob uma ótica de necessidade. A trama exibe Alain (Matthias Schoenaerts), pai solteiro que enfrenta dificuldades financeiras e ganha dinheiro por meio de lutas 74 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
clandestinas e pequenos trabalhos, como segurança e vigia. Em uma determinada noite, após apartar uma briga, ele conhece Stéphanie (Marion Cotillard), uma charmosa treinadora de baleias.
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Posteriormente, Stéphanie sofre um acidente grave e o contacta, atitude que pode resultar em uma potencial relação entre os dois. O roteiro é baseado em alguns contos do autor Craig Davidson, e cria uma atmosfera sequencial no longa, que pode ser dividido em diferentes atos. A fotografia evidencia luz e movimentos, compondo cenas de aspecto sensível. Entretanto, os maiores destaques encontram-se no campo de atuações, com Marion e Schoenaerts incorporando situações de densa carga dramática. Além disso, o filme apresenta Marion Cotillard em um dos papéis mais desafiadores de sua carreira. O que difere “Ferrugem e Osso” dos demais romances dramáticos é a complexidade enfrentada pelo casal protagonista e suas perspectivas. Ambos apaixonados por profissões que envolvem risco, Stéphanie vê em Alain alguém que não a julga pelas suas condições físicas após o acidente; como um indivíduo que a sustenta em seu processo de “recomeço”. Enquanto o lutador mantém uma relação emocionalmente restrita com a personagem solitária de Cotillard, o que percebendo apenas no ato final do longa-metragem a necessidade mútua de um envolvimento entre ambos, o que viria a estabelecer o limiar para um encaminhamento positivo de suas circunstâncias.
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Amor, Plástico e Barulho Sensualidade, choro e paetês
Renata Pinheiro, 2013 Originalmente publicado em 17/07/2014, no portal de cinema Quarto Ato
Brega: gênero musical popular brasileiro com raízes e destaque na região nordeste, caracterizado por suas músicas que misturam romance e sedução, e por suas cantoras excêntricas e de visual espalhafatoso. É nos bastidores dessa atmosfera que se desenvolve o drama “Amor, Plástico e Barulho” (2013), da diretora pernambucana Renata Pinheiro, e premiado em festivais como o de Brasília (2013) e Aruanda (2013). 78 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama do filme se desenrola em torno de Jaqueline (Maeve Jinkings), vocalista da banda Amor com Veneno, cuja carreira encontra-se em um patamar de incerteza, resultando em crises de alcoolismo e sintomas depressivos. Em contraponto, a jovem dançarina Shelly (Nash Laila), também integrante da banda, está determinada a atingir o sucesso e realizar o sonho de tornar-se cantora de Brega, independente das dificuldades que surgem em seu caminho. A temática de “decadência versus ascensão” não é inédita no cinema – Hollywood a explorou nas três versões de “Nasce Uma Estrela” (1937, 1954, 1976), e até mesmo no mais recente e premiado “O Artista” (2011) – mas, no longa-metragem de Renata Pinheiro, sua essência é adaptada para cenários brasileiros, e com destino que diverge do esperado. É importante salientar a realidade precária em que nasce o Brega: uma condição social de baixas perspectivas, em total contraste com o glamour que é representado nos palcos. Contraste esse que ganha espaço para ser devidamente explorado no filme. As atuações de Maeve e Nash são dignas dos prêmios que receberam nos festivais anteriormente citados; A interpretação que a protagonista (também atriz de “O Som ao Redor”, 2012) dá ao compor Jaqueline é autêntica, e presume perfeitamente as angústias e a vulnerabilidade de alguém que adentrou o universo da fama e agora sofre com sua inconsistência. Nash transmite com o olhar todo resquício de ambição e sonho presentes em Shelly, estruturando uma coadjuvante que ganha holofotes por sua força, poder e carisma. Ambas personagens opostas, complementares e sexy. A edição e a direção de arte da produção são os principais responsáveis em transportar o espectador para cenas de ambiente quase onírico, com colorido que beira ao psicodélico. Um espetáculo de neon e glitter, que caracteriza toda a extravagância presente no Brega, principalmente na sua vertente Techno. “Caracteriza”, aqui, no sentido da palavra que se assemelha a “character” (do inglês, “personagem”), pois contribui fortemente para a narrativa da trama, assim como outro elemento essencial: a música. Mesmo que Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 79
o gênero não agrade a alguns, a música surge de forma envolvente, contribuindo para toda a atmosfera que o filme emana. Novas interpretações de hits populares ajudam ainda mais a entender o nível emocional dos personagens. 80 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Amor, Plástico e Barulho” surge como uma análise do show business em toda a sua latência, para demonstrar aquilo que Jaqueline cita em um dos seus monólogos: “Esse negócio de sucesso é descartável”. Segundo Ato Impressões de um rato de cinema 81
A Viagem de Chihiro Um conto sobre a autodescoberta e a espiritualidade
Hayao Miyazaki, 2001 Originalmente publicado em 28/02/2015, no portal de cinema Quarto Ato Vencedor do Oscar de Melhor Animação
Responsável por popularizar produções do recém-fechado Studio Ghibli, "A Viagem de Chihiro" (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001) marcou história ao ser a primeira animação estrangeira vencedora do Oscar de Melhor Animação, em 2003, e a segunda após a inclusão formal dessa categoria na premiação. O filme é dirigido por Hayao Miyazaki, personalidade destaque nesse meio, e chama atenção por seu roteiro fantasioso e deveras maduro. 84 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Chihiro é uma garota à caminho de sua nova casa, que encontra-se infeliz com a mudança. Durante o caminho, seu pai erra o trajeto e depara-se com um enorme túnel. Curiosos, os pais de Chihiro, Akio e Yuko, atravessam a construção, chegando a um local abandonado, que julgam ser um antigo parque temático. A garota os segue, assustada. Os adultos, em seguida, ficam atraídos por um enorme banquete, e Chihiro, relutante, resolve explorar o local. Com o passar das horas e a chegada da noite, a menina descobre que ali é, na verdade, uma cidade para espíritos, com o prédio principal sendo uma Casa de Banho, propriedade de uma bruxa chamada Yubaba. Ao procurar pelos pais, a garota percebe que se
tornaram porcos. Assustada, Chihiro inicia uma aventura para voltar ao mundo real e ter sua família restaurada. Assim como Alice com seu País das Maravilhas, ou Dorothy e sua visita à Oz, "A Viagem de Chihiro" é um conto, em versão oriental, que apresenta um mundo alternativo e cheio de fantasia, além de uma protagonista que percorre a paisagem surrealista em jornada Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 85
de autodescoberta, na simples função de retornar à realidade. O diferencial do longa de Miyazaki está, entretanto, no caráter espiritual da trama, que evidencia fortes crenças e traços da cultura que ambientou sua produção. Essa atitude fica clara, por exemplo, no título em inglês do longa: "Spirited Away" (Arrebatada, em tradução livre). O túnel apresentado na trama nada mais é do que a representação de um portal espiritual, ideia posteriormente explorada por Guillermo del Toro em "O Labirinto do Fauno" (2006). A Casa de Banho é um local rico em analogias, tendo em vista que os espíritos a visitam apenas à noite, no intuito de sentirem-se mais "leves" e "limpos". Nesse mundo, os humanos geralmente são transformados em animais, o que estabelece um incrível lembrete à natureza humana. Vale ressaltar que os pais de Chihiro, por exemplo, se transformam em porcos após não resistirem às tentações de curiosidade e gula. "Espírito de porco", que tal essa expressão? A construção de personalidade, porém, é um dos principais trunfos do longa-metragem. No novo mundo, Chihiro é obrigada a chamar-se Sen, e luta para permanecer lembrando de seu nome inicial, pois com ele encontram-se todas as suas memórias e essência. Ao passo que percorre a nova gama de acontecimentos, a garota luta contra a dominação da bruxa Yubaba, que controla todos ali presentes. A velha, que é a representação de uma lenda oriental (assim como muitas outras nessa animação), possui uma irmã gêmea, personagem crucial nos momentos finais do filme, e que reforça o discurso de dualidade na construção da persona. O filho de Yubaba, superprotegido pela mãe, carrega traços desse fato em seu comportamento. Entre os outros personagens, é importante destacar também um espírito "Sem Rosto", que adquire a personalidade daqueles que se aproxima. No caso de Chihiro, "Sem Rosto" assume o papel de amigo e protetor, devido à bondade e gentileza da garota. Para os gananciosos outros personagens, o espírito (que é retratado por uma sombra com máscara) apresenta postura de comportamento nocivo. Haku, por sua vez, é um enigmático garoto aprendiz de fei86 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
ticeiro, que sente conhecer Chihiro desde sua infância. Haku guia a menina pelo novo mundo, a protegendo. No último ato, é visto que ele é uma das mais fortes representações da cultura oriental, por tratar-se da representação de um espírito da natureza. "A Viagem de Chihiro" não encontra destaque positivo apenas em seu roteiro alegórico, mas nos quesitos técnicos, tendo em vista que permaneceu sendo produzido em 2D, apesar de situado no período em que a animação CGI crescia de forma latente. Porém, algumas tomadas utilizam a nova tecnologia, especialmente na experimentação de angulação e cenários, como em "A Bela e a Fera" (1991), animação pioneira nesse quesito estético. Hayao Miyazaki encontrou excelência na realização deste maduro longa-metragem, que continua sendo referência para a animação japonesa, mesmo após uma década. Essa produção Ghibli pode ser listada, portanto, entre os filmes que seguem um dos objetivos mais fantásticos do cinema: apresentar novos mundos e incentivar a criatividade imaginária, além de carregar a mitologia heróica em modelo já tradicional. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 87
Kingsman: Serviço Secreto Ação jovem e inteligente
Matthew Vaughn, 2014 Originalmente publicado em 09/03/2015, no portal de cinema Quarto Ato
Em cartaz nos cinemas nacionais desde a última Quinta-feira (05), "Kingsman: Serviço Secreto" é um filme de Matthew Vaughn (“X-Men: Primeira Classe”, 2011), adaptado da série de quadrinhos homônima criada por Dave Gibbons e Mark Millar. Além de vir obtendo êxito na sua função de atrair o público, a produção surpreende pela qualidade do entretenimento apresentado, demonstrando o que tende a ser um novo formato de gênero para o público jovem. 88 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Estrelado por Colin Firth e Samuel L. Jackson, a trama desenvolve-se a partir de Gary “Eggsy” (Taron Egerton), um garoto rebelde e de condições financeiras baixas que é convidado por Harry Hart (Firth), um alfaiate amigo de seu falecido pai, a participar da seleção de uma organização ultra secreta de espionagem, denominada Kingsman, do qual também faz parte. O garoto aceita, sem imaginar que logo a entidade viria a enfrentar o gênio da tecnologia Richmond Valentine (Jackson) em um plano de controle global. Assim como “Kick-Ass” (2010), outro longa-metragem dirigido por Vaughn, Kingsman é um filme de ação voltado para o público jovem, que busca conquistar esse tipo de espectador por meio de diversas referências à cultura pop e piadas de cunho adolescente. Entretanto, seu bom-humor e elenco agrada também a outros tipos mais maduros de plateia. O tom “tarantinesco” que faz-se constante no filme, inclusive, pode até transmitir ar caricato, soando como outro tipo de alusão ao gênero. Diferente de outros filmes que retratam a espionagem sobre ótica jovial, tais como “O Agente Teen” (2003) e “Alex Rider: Contra o Tempo” (2006), a fórmula soa especialmente atrativa em Kingsman. Inclusive, a ideia de competição entre adolescentes, constantemente explorada em sagas que permeiam o cinema e a literatura modernos, não diminui o quesito magnético do longa. O motivo dessa ocorrência se dá em razão do roteiro e da trilha sonora que, unidos, conseguem estabelecer sequências apreensivas, captando a atenção do espectador, e seguidas por momentos oportunos de comédia. Nos quesitos técnicos, porém, o CGI destaca-se como aspecto negativo, não chegando a convencer. Em contrapartida, a coreografia de lutas surge atingindo plena satisfação ao surpreender e divertir o público, com sequências tão loucas quanto envolventes. Apesar de entretenimento, “Kingsman: Serviço Secreto” não é completamente vazio: mensagens de honra, conduta, família, valores e análises políticas (nesse caso, sutis) são transmitidas no decorrer da produção. Inteligente e divertido, é, em suma, um blockbuster cheio de surpresas. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 89
Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada É Impossível Um entretenimento cheio de esperança
Brad Bird, 2015 Originalmente publicado em 05/06/2015, no portal de cinema Quarto Ato
Dirigido por Brad Bird (vencedor de dois Oscar pelas animações “Os Incríveis” e “Ratatouille”, e também responsável pela direção de “Missão: Impossível – Protocolo Fantasma”, o longa “Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível” surge como mais uma tentativa da Disney em ingressar no gênero de ficção científica. Entretanto, essa tentativa mostra-se não tão bem sucedida, mas apaixonada. 90 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Com uma abertura que preza pelo cômico, mas que pode soar vergonhosa para alguns, somos introduzidos à duas realidades: a de Frank Walker (Thomas Robinson, posteriormente interpretado por George Clooney), um jovem inventor que é transportado para uma cidade futurística durante a Feira Mundial de Nova Iorque de 1964, e a de Casey Newton (Britt Robertson), uma garota moderna e inteligente que é vislumbrada para a mesma cidade após receber acidentalmente um estranho pin com a insígnia “T”. Um pouco dessa trama é revelada nos teasers de divulgação do filme, mas posso afirmar que o enredo de “Tomorrowland” é bem mais complexo do que se poderia imaginar. Com o segundo ato cheio de cenas de ação, o roteiro do longa-metragem é espirituoso em diversos aspectos, mas cheio de falhas e momentos bobos, tornando-se por vezes desequilibrado. É fácil encontrar interrogações em algumas sequências, digerindo-as de forma um pouco confusa. Apesar disso, o resultado geral do filme revela uma mensagem digna ao estúdio que o produziu, onde percebe-se entusiasmo e paixão daqueles que o conceberam, Damon Lindelof e o próprio Brad Bird. As atuações resultam em desempenho misto, com Clooney recebendo grandes momentos, mas soando artificial em algumas falas. Britt Robertson surpreende positivamente com sua expressividade, chamando a atenção de quem ainda não a conhece, e transmitindo todo o carisma de sua personagem. O elenco ainda conta com a jovem Raffey Cassidy (do seriado europeu “Mr. Selfridge”), Hugh Laurie (o eterno Dr. House) e o cantor country Tim McGraw. Os aspectos visuais do filme são muito bons, com CGI bastante crível, justificando o orçamento alto de $190 milhões de dólares. A trilha é de Michael Giacchino, com quem Bird trabalhou em “Os Incríveis” e “Missão: Impossível – Protocolo Fantasma”, reafirmando uma espécie de parceria. O trabalho Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 91
de Giacchino é muito bom, mas não quanto o que rendeu a ele o Oscar de Melhor Trilha por “Up! Altas Aventuras”, nem tão memorável como suas trilhas em “Star Trek” e “Planeta dos Macacos: O Confronto”. 92 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
É válido ressaltar o peso do estúdio em todo o decorrer do longa, com os próprios ideais de Walt Disney transpostos para a tela. Tomorrowland, inclusive, é uma das áreas dos parques Disney, assim como It’s a Small World, Space Mountain e Epcot, atrações Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 93
94 ImpressĂľes de um rato de cinema Gustavo Nery
também referenciadas. Bird também insere easter eggs à la Pixar, com objetos de cena que remetem aos outros filmes que dirigiu. Como produção de ficção científica, “Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível” provavelmente não será lembrado, apesar de possuir boa parte daquilo que caracteriza o gênero, como robôs, viagens espaciais e dimensões alternativas. Contudo, ganha o carinho de boa parte do público que o assiste, semeando, com seu propósito, uma parcela de fé no futuro da humanidade. Um bom entretenimento, por vezes divertido como as atrações do parque, e inspirador em seu conceito cheio de esperança. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 95
Divertida Mente O retorno cheio de emoção da Pixar
Pete Docter, 2015 Originalmente publicado em 23/06/2015, no portal de cinema Quarto Ato Vencedor do Oscar de Melhor Animação
Escrito e dirigido por Pete Docter ("Monstros S.A.", "Up! Altas Aventuras"), "Divertida Mente" (Inside Out, 2015) é um dos filmes mais diferentes e inteligentes da Pixar Animation Studios até agora, pretendendo inovar em seu design criativo e cativar adultos e crianças com seu roteiro divertido e cheio de metáforas, além de trazer discussões interessantes para debate e arrancar algumas lágrimas do público (coisa que o estúdio não conseguia há algum tempo). 96 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama desenrola-se em volta de Riley, uma garota de 11 anos nascida em Minessota (EUA) que acaba de mudar-se com seus pais para São Francisco, enfrentando as dificuldades típicas da mudança de cidade, como a saudade dos amigos e do antigo time de hóquei que integrava. Entretanto, antes desse evento-chave, somos introduzidos à Riley desde seu nascimento, e consequentemente às emoções que começam a surgir na sua cabeça durante o passar Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 97
dos anos: Alegria, Tristeza, Raiva, Nojinho e Medo. A proposta do filme é explicar de forma lúdica o processo de formação das memórias e sua importância para a definição de personalidade, em conjunto com os sentimentos que relacionam-se à elas. O roteiro de Divertida Mente apresenta situações que explicam de maneira descontraída perguntas como "o que acontece em nossa mente durante um pesadelo?" ou "por que uma música 'gruda' na nossa cabeça?", destacando-se logo de início por sua originalidade. Pergunto-me: por que nunca fizeram um filme assim antes? E fico grato por finalmente o terem realizado. E, com o avançar dos atos, a película só tende a melhorar, pois deparamo-nos com representações metafóricas de questões como depressão e identidade de gênero (todas as emoções na cabeça do pai de Riley são "masculinas", e todas na de sua mãe são 98 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
"femininas". Por que Riley possui um conjunto "misto"?). São nesses pequenos detalhes que a genialidade do filme de Docter se encontra. O terceiro ato do longa-metragem certamente merece destaque. Enquanto os adultos da sala de cinema em que eu me encontrava tentavam disfarçar suas lágrimas, uma criança perguntou "mãe, porque a Alegria está triste?", e a responsável pelo garoto logo respondeu "porque existem alguns momentos na vida em que é impossível não ficar, filho". Nesse momento, percebi que os propósitos do filme haviam sido atingidos. Quanto aos quesitos técnicos, é importante destacar como um cenário tão "limitado" quanto a cabeça de uma criança conseguiu ser explorado de forma tão ampla, revelando um trabalho interessantíssimo que resulta de muitas artes conceituais. Percebi um pouco de influência das imensas cataratas, abismos e selvas de "Up!" na composição dos cenários de maior magnitude, e considero isso um defeito quanto à ambientações, mas que não compromete a qualidade do filme. Quanto às emoções, há um trabalho maravilhoso de construção visual e escolha de cores, dialogando bastante com cromaterapia e até com as nossas próprias percepções inconscientes. Destaque também para o fato dos personagens serem constituídos de "partículas", outra sacada bastante inteligente. A trilha de Michael Giacchino não consegue marcar o espectador de forma instantânea, mas pode ganhar o carinho do público com a futura popularização do filme, algo que ocorreu com muitos outros filmes da Pixar. Na dublagem brasileira, um trabalho satisfatório, que esconde o grupo de comediantes e apresentadores por trás das vozes (Miá Mello, Katiuscia Canoro, Dani Calabresa, Otaviano Costa, Léo Jaime e até Sidney Magal), mas que ainda não mostra-se tão bem executado quanto a dublagem original. Em suma, "Divertida Mente" é um filme belo e singular, que com certeza cairá nas graças dos espectadores e irá se consolidar como um dos clássicos do estúdio, junto aos dois citados anteriormente, a trilogia "Toy Story", "Wall-e", "Ratatouille","Os Incríveis" e outros. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 99
Um Senhor Estagiário Água com açúcar que agrada público-alvo
Nancy Meyers, 2015 Originalmente publicado em 26/09/2015, no portal de cinema Quarto Ato
Nancy Meyers ataca novamente. Roteirista e diretora de filmes como “Operação Cupido” (1998), “Alguém Tem Que Ceder” (2003) e “O Amor Não Tira Férias” (2006), sua nova produção, “Um Senhor Estagiário” (The Intern, 2015), realizada pela Warner Bros., chegou aos cinemas na última quinta (24), mostrando que ainda há espaço para produções “água com açúcar” em meio à tantos blockbusters de ação. 100 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Na nova trama, estrelada por Anne Hathaway (“Interestellar”, 2014) e Robert De Niro (“Ajuste de Contas”, 2013), o idoso Ben Whittaker (De Niro) sente-se solitário e ocioso em sua aposentadoria, decidindo então inscrever-se para um programa de estagiários da “terceira idade” em uma grande empresa de venda de roupas online, fundada por Jules Ostin (Hathaway). Whittaker é então encarregado como estagiário direto de Ostin, o que posteriormente desenvolve uma relação de amizade entre os dois. Pode parecer um pouco estranho, a princípio, ver Robert De Niro, conhecido por trabalhos como “Taxi Driver” (1976), “Touro Indomável” (1980) e “O Poderoso Chefão: Parte II” (1974), interpretando o suposto “idoso simpático”, que abraça com carinho a sua idade e as consequências do envelhecimento. Algumas cenas, inclusive, soam até constrangedoras (como a da massagem, mostrada no trailer do filme), mas contribuem para a afeição que o personagem ganha por parte do público, principalmente ao desenrolar das situações apresentadas. Já Anne Hathaway, querida pelos espectadores, apresenta deTerceiro Ato Impressões de um rato de cinema 101
sempenho exemplar, construindo uma personagem que, por trás de toda a pose de auto suficiência, mostra-se confusa e assustada com seu próprio sucesso emergente e os resultados dele na sua vida pessoal, em um verdadeiro espelho de muitos jovens da sociedade contemporânea. O roteiro é bastante leve e pode-se tornar um pouco cansativo durante os 121 minutos de filme, que apresentam uma evolução de situações, quase de forma episódica. Apesar disso, o público consegue se sentir atraído pela grande gama de personagens carismáticos – o que pode ser um problema no ato final da trama, já que nem todos conseguem desfecho para seu arco. O resultado é um longa-metragem bastante sequencial, e que não traz tantas novidades ao gênero, a não ser por seu aspecto moderno (uma consequência da representação do bombardeamento de mensagens e redes sociais no nosso cotidiano) e do breve discurso fe102 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“A verdade é que algo em você faz eu me sentir calma, ou mais centrada, ou algo do tipo. E eu poderia me acostumar a isso, obviamente” Jules (Anne Hathaway) para Ben (Robert De Niro)
minista que surge na posição dos personagens (até mesmo Ben comenta sobre o assunto). Em suma, “Um Senhor Estagiário” é um filme realizado de forma bastante mediana, mas que conquista o público no qual se propõe. Uma indicação relevante para quem deseja uma produção espirituosa e que traz a sensação feel-good, ou simplesmente acompanha a carreira dos dois atores protagonistas. Talvez o longa até se torne um clássico dentro do gênero, como os outros da quase-franquia “mundo ideal” de Nancy Meyers. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 103
Jogos Vorazes: A Esperança – O Final Conclusão eficaz e cheia de luto
Francis Lawrence, 2015 Originalmente publicado em 19/11/2015, no portal de cinema Quarto Ato
Em meio à antecipação que tanto construiu, “Jogos Vorazes: A Esperança – O Final”, filme de Francis Lawrence que encerra a quadrilogia “Jogos Vorazes” (2012) e baseia-se no romance da escritora Suzanne Collins, finalmente chega aos cinemas – inclusive, no caso de terras brasileiras, antes do resto do mundo, em decisão da produtora Lionsgate. O longa-metragem, predominantemente sóbrio, revela-se o mais obscuro de toda a saga, visto que explora 104 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
a atmosfera de guerra que permeia a trama e deixa (com maestria) espaço limitado para clichês de romance adolescente. Na trama que conclui a jornada da heroína Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence), vemos os passos seguintes da forte protagonista no movimento rebelde contra a Capital e seu sistema. Em tentativa de invasão à mansão do tirano Presidente Snow (Donald Sutherland), são colocadas em jogo as vidas de Gale (Liam Hemsworth), Peeta (Josh Hutcherson), Finnick (Sam Clafin) e outros personagens queridos do público. A direção de Francis Lawrence, responsável pelos filmes da franquia desde “Em Chamas” (2013), evoca a densidade e ambientação caótica de seus outros trabalhos distópicos, como “Constantine” (2005) e “Eu Sou a Lenda” (2007). Sendo assim, dentro de sua familiaridade com o gênero, a saga e o elenco, o desempenho na realização do capítulo final é bastante satisfatório. A fotografia de Jo Willems, inclusive, contribui bastante para a imersão do espectador na dimensão psicológica dos personagens. Os elementos técnicos transportam o público para o terror de um ambiente de guerra, desde a mixagem de som
Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 105
até o trabalho convincente da computação gráfica, que insere elementos dignos de pesadelo – nesse aspecto, é impossível não citar a sequência do esgoto, tão agoniante e bem executada que ficará na mente dos espectadores por certo tempo. Em adesão, os 134 minutos da película talvez se tornem cansativos para alguns, em especial aos que não são fãs do conteúdo. O elenco, por sua vez, apresenta performance superior à dos três últimos longas. Com personagens que ganham cada vez mais camadas em meio aos horrores que presenciam, o trio principal (Lawrence, Hutcherson e Hemsworth) demonstra bastante dedicação e transparência emocional. O time de demais atores, que inclui nomes como Julianne Moore, Woody Harrelson, Elizabeth Banks e o falecido Phillip Seymor Hoffman (em seu último filme), contribui similarmente e de forma significativa com seu desempenho. O cinismo que caracteriza a interpretação de Sutherland em seu Snow também merece reconhecimento. O longa-metragem é, certamente, o mais intenso da saga de Katniss Everdeen. As diversas e até constantes sequências de ação, em conjunto com a trilha sonora de James Newton Howard, desencadeiam no público um sentimento de aflição digno de guerra. Inclusive, esse é um dos aspectos mais interessantes da obra de Suzanne Collins, que a torna diferente das demais distopias já conhecidas pela cultura pop: a discussão política e moral, tão presente na realidade que às vezes esquecemos de sua exposição. Podemos afirmar que “A Esperança – O Final” veio em momento certo para debate, já que reflete situações de terrorismo, intolerância e abuso de poder. Qual o valor de uma vida inocente, mesmo que siga um estilo de vida oposto ao nosso? A conclusão da franquia “Jogos Vorazes” não decepciona, seja para fãs ou meros espectadores interessados na trama. Suas sequências finais, cheias de reviravoltas, encerram-se de forma quase anestésica depois de toda a violência apresentada. O que ecoa é 106 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Morta ou viva, Katniss Everdeen irá permanecer o rosto desta revolução. Ela não irá ter morrido por nada” Alma Coin (Julianne Moore)
uma sensação de luto, quase inevitável, mas que transmite a mensagem em ares de “dever cumprido”, incentivando a permanência de uma reflexão construída ao longos dos últimos quatro anos e que busca, em termos mais óbvios, acender uma esperança para a humanidade. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 107
O Bom Dinossauro Fórmula eficaz que não carrega inovação
Peter Sohn, 2015 Originalmente publicado em 11/01/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Com um considerável delay, o 16º filme de animação da Pixar Animation Studios, “O Bom Dinossauro”, chegou aos cinemas brasileiros em Janeiro de 2016. O filme, que enfrentou diversas reviravoltas durante sua produção, possui em sua construção algumas características que já destacaram o estúdio, mas não consegue apresentar uma narrativa tão inovadora quanto suas outras produções. 108 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Dirigido por Peter Sohn (responsável pelo curta-metragem “Parcialmente Nublado”, de 2009), a proposta de “O Bom Dinossauro” parte de uma pergunta que soa interessante: e se os dinossauros nunca tivessem sido extintos? E é a partir dessa teoria, brevemente apresentada nas sequências iniciais, que a trama volta-se para Arlo, um jovem e medroso apatossauro que perde-se de sua família após um acidente. No caminho de volta para casa, o protagonista aproxima-se de uma criança humana (com comportamento semelhante a um canino), a quem nomeia de “Spot” e constrói uma amizade bem no estilo “bicho de estimação”. A influência da Jornada do Herói de Joseph Campbell não passa despercebida no roteiro do longa-metragem, que também faz referências a diversos filmes, desde “O Rei Leão” (1994) e “A Princesa e o Sapo” (2009) a “127 Horas” (2010) e “Parque dos Dinossauros” (1993). A verdade é que não parece muito um filme Pixar, apesar dos primorosos aspectos técnicos e das cenas “arranca-lágrimas”. Isso não significa algo ruim, pois não afeta sua qualidade, mas indica um leve tom de mesmice que vem assombrando um estúdio tão conhecido por sua criatividade. Esse fantasma torna-se ainda mais explícito quando um trio de tiranossauros lembra os tubarões de “Procurando Nemo” (2003), ou quando recordamos que outros dois estúdios de animação beberam de fontes “pré-históriTerceiro Ato Impressões de um rato de cinema 109
cas”: Dreamworks Animation com “Os Croods” (2013) e Blue Sky Studios com a franquia “A Era do Gelo” (2002). Em relação a seus aspectos visuais, a animação apresenta uma organização meio dualística e contrastante: enquanto os belíssimos cenários, elaborados em tecnologia fotorrealista, tornam cada frame um cartão postal, o design dos personagens parece ter sido elaborado por iniciantes. Talvez essa seja uma decisão tomada para tornar o filme agradável para as crianças pré-escolares; entretanto, 110 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
causa certo estranhamento. De qualquer forma, os ambientes foram muito bem aliados ao 3D, que é aplicado de forma efetiva. Quanto ao sonoro, a trilha da dupla Mychael Danna e Jeff Danna soou-me bastante semelhante à do filme “Valente” (2012). Em resumo, “O Bom Dinossauro” não deixa de ser um bom filme. Possui cenas-chave bem executadas (como a sequência dos vagalumes) e consegue emocionar. No entanto, seu tom meio “reciclado” não inova e, por conta disso, talvez passe direto da lista de clássicos Pixar. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 111
Carol Romance polêmico e bem executado
Todd Haynes, 2015 Originalmente publicado em 16/01/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Premiado na edição 2015 do festival de Cannes, "Carol" (2015) é um romance do diretor Todd Haynes (de "Velvet Goldmine" [1998] e "Não Estou Lá" [2007]) que demonstra ousadia ao abordar a relação amorosa entre duas mulheres na década 1950, temática que ganha relevância nos dias atuais em que, apesar da conquista de direitos LGBT em alguns países, o preconceito permanece. Visualmente belo e bem executado, o filme ostenta como nomeado nas 112 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
principais premiações de cinema do início de 2016, incluindo 6 indicações ao Oscar, onde infelizmente (e talvez injustamente) não figura na categoria de Melhor Filme, mas tem o brilhante desempenho das protagonistas Cate Blanchett ("Blue Jasmine", 2013) e Rooney Mara ("Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres", 2001) reconhecido. A trama alcança desenvolvimento quando Therese Belivet (Mara), uma jovem vendedora de loja de departamentos na Nova York de
1952, atende a charmosa Carol Aird (Blanchett), uma mulher rica que procura um presente de Natal para a sua filha. Sedutora, Aird esquece suas luvas no balcão do estabelecimento, e após Belivet devolvê-las, as duas passam a marcar encontros com frequência. É também a partir desses fatos que somos introduzidos à realidade da dupla, cujas complicações pessoais podem atrapalhar o desenvolvimento de um romance. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 113
114 ImpressĂľes de um rato de cinema Gustavo Nery
Rooney interpreta Therese com uma doçura e ingenuidade que lembra Audrey Hepburn, uma atriz ícone do período histórico. Sua performance como uma personagem que está se autodescobrindo e permanece bastante confusa por boa parte das cenas consegue ser intensa, real e atrativa. Já Cate, com sua Carol poderosa e segura de si, consegue desconstruir a presença forte dos minutos iniciais à medida que os acontecimentos revelam a vulnerabilidade da personagem-título. Os atores secundários do longa-metragem também realizam desempenho positivo, especialmente Sarah Paulson, Kyle Chandler e Jake Lacy. Os quesitos técnicos tornam o filme bastante charmoso. A fotografia de Edward Lachman alia-se de forma interessante à narrativa, utilizando planos fechados e desfoque para evocar sensações e ébrio. Já o figurino de Sandy Powell (também destaque em 2015 por "Cinderela") consegue adequar a beleza dos anos 50 à personalidade dos personagens. A trilha de Carter Burwell, por sua vez, soa um pouco obscura e intrigante. O enredo de Carol é baseado no livro "O Preço do Sal", de Patricia Highsmith (escritora de "O Talentoso Ripley"), e adaptado para o cinema de forma eficaz pela roteirista Phillys Nagy. O resultado é uma narrativa bem contada e explorada, de forma que torna-se perceptível a presença do livro nas telas. Uma história que retrata de forma interessante as complicações de ser homossexual com toda a "moralidade" do século passado, dirigida competentemente por Todd Haynes e em uma produção que alcança êxito. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 115
O Quarto de Jack O confinamento de nossas vidas
Lenny Abrahamson, 2015 Originalmente publicado em 08/02/2016, no portal de cinema Quarto Ato Vencedor do Oscar de Melhor Atriz – Brie Larson
Intenso e bastante ambicioso em alguns aspectos, “O Quarto de Jack” (“Room”, 2015) é um filme dirigido por Lenny Abrahamson (“Frank”, 2014) e baseado no livro de Emma Donoghue, que adaptou a própria obra para roteiro neste longa-metragem. O resultado é uma produção que destaca-se pelo desempenho exemplar de sua dupla protagonista, além das polêmicas temáticas abordadas. 116 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Contado sob a perspectiva de Jack (Jacob Tremblay), uma criança de cinco anos, o filme desenvolve-se a partir da relação do garoto com sua mãe, Joy Newsome (Brie Larson), uma jovem garota que foi sequestrada há sete anos e confinada em um galpão. Denominado por ambos como “Quarto”, Jack nasceu dentro do local e nunca teve contato com o mundo exterior, estabelecendo rotina dentro do espaço. Após o quinto aniversário do menino, a dupla tenta realizar um esquema de fuga do sequestrador, conhecido como “Velho Nick” (Sean Bridgers). A ideia por trás de “O Quarto de Jack” é nada menos do que brilhante e desafiadora. Com as principais cenas filmadas em um ambiente fechado e pequeno, o filme assusta por trazer uma situação possível de ocorrer na realidade, tendo vista a existência de crimes por confinamento. A partir dessa pauta, a trama ainda aborda temas como estupro, depressão e maternidade, sempre sob uma atmosfera psicológica que propõe reflexões em torno da existência. Afinal, não é nada fácil explicar para uma criança situações tão complexas quanto as que ocorrem. É exatamente em decorrência deste fator que percebemos o quão bem-executadas estão as performances de Brie Larson (“Descompensada”, 2015) e Jacob Tremblay (“Os Smurfs 2”, 2013); cheias de química e extremamente necessárias para o funcionamento do filme. Larson encara uma personagem difícil e constituída por camadas que pairam entre o amor e a instabilidade mental, entregando-a de forma competente. O jovem Tremblay, por sua vez, revela-se um talento mirim promissor, esbanjando carisma ao apresentar uma criança inteligente e confusa que descobre o mundo pela primeira vez. A direção de Brahamson é inteligente e segue fiel à proposta da perspectiva infantil, entregando um filme cuja imersão do público contribui bastante para a compreensão de sua atmosfera. A já conhecida fotografia de Danny Cohen (“O Discurso do Rei”, 2010; “Os Miseráveis”, 2012), com seus enquadramentos fechados, auxilia bastante Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 117
nesse ponto, principalmente quando comparamos as sequências iniciais no Quarto com as de encerramento. O roteiro acerta em diversas cenas-chave, trazendo para o público uma história que tempos atrás era considerada como inadaptável devido às suas limitações, e a trilha de Stephen Rennicks encontra notoriedade quando bem deve, contribuindo bastante para o êxito da produção.
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Como resultado, “O Quarto de Jack” revela-se uma ótima experiência cinematográfica; um drama denso que desabrocha como um convite de Jack à descoberta da vida, de forma que nos faz refletir por bastante tempo sobre todas as possibilidades que estão no imenso mundo à nossa volta, mas que muitas vezes não exploramos por estarmos presos ao nosso próprio confinamento.
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Zootopia: Essa Cidade é o Bicho Política, investigação e risadas
Byron Howard e Rich Moore, 2016 Originalmente publicado em 05/06/2015, no portal de cinema Quarto Ato Vencedor do Oscar de Melhor Animação
Utilizar animais antropomórficos para contar histórias é uma prática que existe há muitos anos. Esse método fabular, infalível para atrair crianças, sempre foi bastante utilizado por estúdios de animação, visto que pode arrancar boas piadas, explorar um visual interessante e alavancar bilheterias. A Walt Disney Animation Studios, por exemplo, já havia utilizado-se desse recurso várias vezes, como em "Robin Hood" (1973) e "O Galinho Chicken Little" (2005), sua 120 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
primeira animação realizada inteiramente em computação gráfica. Sabendo disso, "Zootopia" (2016), filme de Byron Howard ("Enrolados", 2010) e Rich Moore ("Detona Ralph", 2012), aparentemente não trazia nada de inovador. Qual seria seu propósito, então?
A trama do longa-metragem parte do questionamento "e se os humanos nunca tivessem existido?" e traz como protagonista Judy Hopps (Mônica Iozzi, na versão dublada), uma coelha determinada a tornar-se oficial de polícia na grande Zootopia, uma metrópole moderna onde todos os mamíferos, presas e predadores, convivem em paz. Para demonstrar seu valor, ela deve solucionar um caso de desaparecimento, onde precisará lidar com a parceria de uma astuta e golpista raposa macho chamada Nick Wilde (voz de Rodrigo Lombardi). As sequências iniciais do filme não surpreendem muito: seguindo os bons clichês, somos introduzidos à infância de Judy, onde sua família interiorana leva uma vida pacata cultivando cenouras e os pais não incentivam seus sonhos "absurdos" de integrar a polícia. No entanto, a persistência e o esforço da personagem permitem Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 121
que ela se forme na área e siga para a tão famosa cidade onde "qualquer um pode ser o que quiser". E é aí, quando o público chega à colorida Zootopia, que o longa-metragem ganha um novo sentido. A metáfora construída em torno desta metrópole tão utópica é a de adaptação à diversidade. Animais de todas as espécies e diferentes comportamentos logo surgem como alusão à pluralidade étnica, de gênero e de diversidade sexual, fator tão presente nos centros urbanos. Essa comparação à nossa realidade torna-se ainda mais evidente com o uso da tecnologia pós-moderna, que marca presença de forma tão similar quanto em nosso cotidiano (não se assuste se algum animal tiver um celular igual ao seu). É nesse verdadeiro retrato da sociedade que nos deparamos, ao longo das cenas, com situações de preconceito, machismo, medo, abuso de autoridade e polêmicas sequências envolvendo drogas e nudez. A trajetória de Judy Hopps não está, afinal, tão longe da realidade – conheço, por exemplo, mulheres que sofrem preconceito na escolha de carreira tal qual a personagem. O estímulo à reflexão é o principal acerto de Zootopia: em tempos de tanta intolerância, é importante incitar aos pequenos (e aos adultos) a necessidade de respeito às diferenças e à empatia. O roteiro da animação, principalmente após o segundo ato, torna-se denso ao engatar em um processo de investigação que não subestima o público; coisa que a Disney não realiza há tempos. A ordem dos fatos – e as sequências de ação – são organizadas de maneira instigante, prendendo os espectadores. O visual, por sua vez, traz cenários tão criativos que parecem concept arts, explorando elegantemente texturas e iluminação. O humor em Zootopia é bastante equilibrado. Apesar das previsíveis piadas envolvendo comportamento animal, a maior parte das risadas advém de referências à cultura pop, que passeiam desde "O Poderoso Chefão" (1972) e "Breaking Bad" (2008-2013) à outras animações do estúdio, em uma enxurrada de easter eggs que incluem produções re122 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
centes como "Frozen" (2013) e "Operação Big Hero" (2014), clássicos como "Mogli – O Menino Lobo" (1967) e "Bambi" (1942), e até mesmo futuros lançamentos, tais como "Moana" (previsão para 2016) e "Gigantic" (previsão para 2018). O bom timing cômico ajuda a não tornar o filme tão longo em seus 108 minutos de duração. Diante de tantos aspectos positivos, Zootopia surpreende. A sensação é de que o estúdio conseguiu se destacar dentro de uma fórmula já tanto utilizada, inclusive por ele mesmo, fugindo do "felizes para sempre" irreal pregado por muitas produções do gênero. Uma fábula divertida que, apesar das alegorias, nos faz pensar na realidade como ela é, e em como deveria ser. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 123
Mogli: O Menino Lobo Visual incrível e ótima discussão nas entrelinhas
Jon Favreau, 2016 Originalmente publicado em 17/04/2016, no portal cultural It Pop Vencedor do Oscar de Melhores Efeitos Visuais
O novo live action da Disney, "Mogli: O Menino Lobo", já provou ser um dos melhores realizados pelo estúdio até agora. Dirigido por Jon Favreau (de "Chef" [2014] e "Homem de Ferro" [2008]), o filme tem um grande elenco de vozes famosas tanto na versão legendada (Bill Murray, Ben Kingsley, Idris Elba, Lupita Nyong'o, Scarlett Johansson e outros) quanto na dublada (Marcos Palmeira, Dan Stulbach, Julia Lemmertz, Tiago Abravanel, Alinne Mo124 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
raes e Thiago Lacerda), além de introduzir o fofíssimo Neel Sethi no papel de Mogli. Dentre os bons motivos para conferir esta versão live action, o mais óbvio é o visual lindíssimo. Dá para pensar "Onde ficam as locações?", até descobrir que todas as cenas foram gravadas em estúdios de Los Angeles, e os cenários e personagens produzidos inteiramente em computação gráfica. O primeiro live da Disney no estilo foi "Alice no País das Maravilhas" (2010), e os efeitos de "Mogli" têm uma aproximação forte com os de "As Aventuras de Pi" (2012) e "Avatar" (2009), valendo a pena serem conferidos em 3D. Outra bom motivo é a adaptação que o roteirista e o diretor realizaram do filme clássico de animação, lançado pela Disney em 1967, e do livro original, escrito por Rudyard Kipling e publicado
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em 1984. Todas as principais cenas estão lá, com diálogos praticamente iguais e as músicas que a gente já conhece (e que chegam cheias de sutileza e naturalidade às cenas). Ao mesmo tempo, a trama traz coisas novas, explorando mais o universo do filme e trazendo uma aventura que não torna a narrativa chata. O último ponto (e talvez o mais interessante) que devo levantar é a discussão social e política que se constrói nas entrelinhas da história. Ela já até existia na outra versão do estúdio, mas as coisas mudaram bastante nos últimos tempos. Aqui, Mogli é novamente um "filhote" diferente de todos daquele meio e, apesar de ser criado por lobos, não se identifica com eles. Sabendo que ele é humano, os outros animais têm medo de que ele se torne perigoso, visto que nossa espécie domina o fogo ("flor vermelha", no filme). Todo esse
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preconceito é evidenciado pelo tigre Shere Khan, que faz questão de impor medo no ambiente e deixar claro que o garoto não é capaz de pertencer à uma família que não é tradicional (no caso, da mesma espécie). Dito isso, a fábula mostra questões de aceitação às diferenças, explorando também temas de amizade, lealdade e democracia. A verdadeira definição de "família" fica clara nos últimos minutos, com um final que difere da animação e traz para as telonas alguns valores da geração moderna. Com o sucesso e boa aceitação da crítica de "Mogli – O Menino Lobo", a Disney já iniciou as negociações para uma sequência, trazendo de volta o diretor, o roteirista e o protagonista Neel Sethi.
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Alice Através do Espelho Fantasia bela e pouco criativa
James Bobin, 2016 Originalmente publicado em 27/05/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Parece que, para a Disney, apesar das opiniões de muitos críticos e de Tim Burton, é hora de voltar para o "País das Maravilhas" (ou "Mundo Subterrâneo"), como o próprio estúdio sugere em seu novo live action. "Alice Através do Espelho" (2016) chega aos cinemas seis anos após seu predecessor e, desta vez, caído nas mãos do diretor James Bobin (responsável por "Os Muppets", de 2011, e sua sequência, lançada em 2014). O que esperar de um 128 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
filme que, de acordo com o próprio Burton, diretor do longa-metragem de 2010 (e que retorna apenas como produtor), não havia necessidade de ser realizado? Trazendo todo o elenco original, nossa viagem de volta ao fantástico mundo de CGI toma início quando Alice Kingsleigh (Mia Wasikowska), após anos velejando no navio de seu pai, "The Wonder", retorna à aristocrática Londres. Ainda perseguida pelos costumes conservadores e machistas da época, a protagonista encontra-se em conflito quando seu ex-pretendente, Hamish Ascot (Leo Bill), tenta tomar-lhe a embarcação em um contrato de negócios. Indecisa sobre o que deve fazer, Alice acaba sendo guiada por Absolem (com a voz do falecido Alan Rickman) através de um espelho mágico, onde reencontra seus amigos do "Mundo Subterrâneo" e descobre que o querido Chapeleiro Maluco (Johnny Depp) está depressivo e perdendo sua "muiteza". A única maneira de consertar a situação é viajando pelo tempo, por meio de um aparelho denominado chronosfera, para desfazer os ocorridos que o trouxeram a esse estado.
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O roteiro da aventura, no entanto, parece bastante reciclado. O texto de Linda Wolvertoon, que também escreveu o longa anterior e "Malévola" (2014), parece ter bebido da mesma fonte de diversos outros filmes que abordam a viagem no tempo, além de produções do próprio estúdio. Não é difícil compará-lo, por exemplo, a "O Fantástico Mundo de Oz", esquecido filme de 1985, que também apresenta cenas em um manicômio (sim, apesar de ser uma ideia ousada, não é exatamente nova) e criaturas mecânicas. Até as frases de efeito, apesar de eficientes, são clichês. A trama proposta por Lewis Carroll em seu livro, como já esperado, foi reduzida a pequenas aparições de personagens (tais como Humpty Dumpty) e algumas referências. Linda preocupou-se em priorizar a construção de “histórias de origem”, o que tenta trazer sentido ao comportamento dos personagens já conhecidos que, ironicamente, fazem sucesso por sua amigável insanidade. Nada disto era verdadeiramente necessário. Sobre as atuações, não há muito o que se dizer; os personagens permanecem praticamente os mesmos, com Johnny Depp, Anne Hathaway e Helena Bonham Carter demonstrando um desempenho bastante similar (e não necessariamente ruim) aos de 2010. A única evolução parece ter sido em Alice, cuja confiança e maturidade exploram bem mais de Mia Wasikowska, levando a garota a entregar-se novamente, e de forma efetiva, ao papel que trouxe-lhe os holofotes. Outras adições relevantes ao elenco incluem Sacha Baron Cohen, que interpreta a personificação do Tempo (um ser metade homem, metade máquina) de forma até carismática, atingindo destaque, e Ed Speelers como o advogado James Harcourt, um personagem que é deveras mal aproveitado em suas aparições. Quanto aos aspectos visuais, "Alice" atinge seu ápice: Bobin e a equipe de efeitos visuais trazem cor ao sombrio mundo concebido pelo time de Tim Burton, respeitando ainda assim o estilo já permeado dentro daquele universo. Encontramos o verdadeiro "País das Maravilhas", com sua explosão psicodélica e às vezes vitoriana, que remete muito mais ao aspecto kid-friendly da animação de 1951. O design de produção é louvável e respeita as intenções de cada ambiente, onde 130 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
destaco o castelo do Tempo e seu goticismo arquitetônico. O figurino de Colleen Atwood é ainda mais criativo do que o da primeira adaptação, o que talvez a leve novamente ao Oscar. A sensação deixada por "Alice Através do Espelho" é que o filme não seguiu toda a sua potencialidade, resumindo-se a uma produção sintética e que não se arrisca em inovar e fazer o público pensar muito. Apesar disto, os temas já recorrentes nas produções Disney, como família e amizade, encontram-se fortemente presentes no longa-metragem, carregando uma "moral" e um sentimento agradável que o classifica como uma boa opção de entretenimento familiar, fazendo-o superar seu anterior. Bastante aproveitável, ainda que cheio de erros, a promessa em sua conclusão é agradar ao público e provavelmente encerrar uma franquia que tanto trouxe lucro, mas pouco destacou-se em termos narrativos. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 131
Como Eu Era Antes de Você Romance mediano, mas carismático
Thea Sharrock, 2016 Originalmente publicado em 12/06/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Desde que a adaptação do romance "Como Eu Era Antes de Você", da escritora Jojo Moyes, foi anunciada, muito especulou-se a respeito do filme. Bastante popular, o livro conquistou fãs e deu à autora um patamar similar ao dos romancistas John Green e Nicholas Sparks. No entanto, o longa-metragem, que marca estreia da diretora Thea Sharrock (responsável pelo episódio "Henry V" da minissérie "The Hollow Crown") nos cinemas, é bastante genérico, tornando-se similar a outras produções. 132 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A trama toma início quando Louisa Clark (Emilia Clarke), uma garota cheia de vida e energia, consegue emprego como cuidadora de Will Traynor (Sam Claflin), um jovem rico e sofisticado que, após um acidente de trânsito, torna-se tetraplégico. Ele, que antes tinha uma vida bastante ativa e aventureira, assume agora uma postura ranzinza e depressiva, situação tende a mudar com a aproximação da garota. O roteiro não é absurdamente cliché, mas também não parece algo novo; talvez por já termos visto situação parecida com "Intocáveis", filme francês de 2011. Apesar disto e de algumas falhas, a adaptação é até agradável. O filme não chega a fazer todo o público derramar lágrimas, e nem gargalhar com tanta frequência, mas reconhece suas cenas-chave e as trabalha de forma satisfatória. O drama e o alívio cômico vêm no timing certo. O verdadeiro destaque do longa-metragem está, de fato, no carisma de seus personagens e na química entre os protagonistas. Emilia Clarke brilha no papel de Louisa, mostrando-se uma atriz competente, principalmente ao distanciar-se com êxito de sua personagem no seriado "Game of Thrones". Ela é a alma do filme. Já Sam Claflin tenta, mas não consegue ficar longe da posição de galã que conquistou com "Simplesmente Acontece" (2014) e com a saga "Jogos Vorazes" (2012-2015). O resto do elenco (que, por sinal, é um banquete britânico e de sotaques) é bastante ofuscado, mas conta os rostos familiares de Charles Dance, Matthew Lewis, Jenna Coleman, Janet McTeer e Brendan Coyle. Não há muito o que se comentar sobre a trilha, que decide dar evasão à músicas de pop romântico e destacar o cantor-sensação Ed Sheeran (duas de suas músicas são tocadas durante o filme, o que lembra um pouco o drama teen "A Culpa é das Estrelas", de 2014, para o qual ele gravou uma música-tema). A fotografia de Remi Adefarasin ("Match Point", 2005, e "Elizabeth: A Era de Ouro", 2007), por sua vez, se esforça para aproveitar ao máximo as belas locações de filmagem. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 133
"Como Eu Era Antes de Você" talvez desaponte, visto todo o seu potencial de romance dramático que era esperado por um grande público. É um filme fraco, mas não por errar muito, e sim por encontrar
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lugar-comum entre as produções do gênero. Encontra salvação em seus personagens que, apesar de arquetípicos, são suficientes para conquistar os espectadores e mantê-los interessados até o final.
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Paratodos Documentário necessário e inspirador
Marcelo Mesquita, 2016 Originalmente publicado em 01/07/2016, no portal de cinema Quarto Ato
À primeira vista, o documentário "Paratodos" (2016), dirigido por Marcelo Mesquita, pode parecer um daqueles especiais televisivos onde indivíduos com deficiências físicas contam suas histórias de superação. No entanto, ainda em seus primeiros minutos, percebemos a grande ambição do filme que, dividido em atos, um para cada modalidade esportiva, apresenta bem mais do que atletas paralímpicos vencendo dificuldades. 136 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Rodado desde 2013, o documentário que, além do Brasil, traz cenas gravadas em outros países, esforça-se para sair do comum e apresenta seus personagens de forma a valorizar não só suas conquistas, mas revelar os estressantes bastidores de treinos e a rotina dos competidores paralímpicos, que muitas vezes é ainda mais complicada do que a de atletas regulares. A proposta é bastante importante para elevar a visibilidade destes atletas em nosso País, principalmente às vésperas de Olimpíadas, visto que seus feitos costumam ser bastante negligenciados por parte da mídia. A decisão de dividir o documentário em “atos” é muito coerente, especialmente devido ao foco em uma grande quantidade de atletas. Cada personalidade é introduzida ao público em seu tempo, de forma que os espectadores não fiquem confusos com a quantidade de pessoas e acontecimentos. A montagem, inclusive, é excepcional, "costurando" muito bem todas as histórias e trazendo recortes informativos que permitem a compreensão fluida de tudo; há uma boa seleção de registros, com fatos e curiosidades interessantes, que podem até resultar em uma boa aula sobre o tema. Apesar disto, é também nesta decisão onde encontramos algumas falhas; em seus 110 min de duração, o documentário parece longo, e o ritmo entre as sequências é bastante diferente, construindo um caráter "heterogêneo". A fotografia, por exemplo, atinge um ponto exemplar durante o ato de canoagem, onde contribui para a narrativa visual de maneira bem mais impactante. A mixagem e edição de som, por sua vez, é mais notável durante as partidas de futebol. Desta forma, algumas cenas revelam-se bem mais atraentes do que outras. Por fim, mesmo que "Paratodos" pareça grandioso com sua abordagem não tão piegas e com seus ápices de bela produção cinematográfica, ele não abandona sua essência documental. Câmeras e microfones à mostra não só relembram os espectadores que trata-se da realidade, mas nos aproximam de um mundo existente em que limites não significam impossibilidades. É um retrato necessário e inspirador, que certamente abrirá alguns olhos e motivará muita gente. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 137
O Bom Gigante Amigo Com ritmo ineficiente, fantasia decepciona
Steven Spielberg, 2016 Originalmente publicado em 25/08/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Alguns podem não reconhecer o nome Roald Dahl, mas certamente já viram suas histórias no cinema; "A Fantástica Fábrica de Chocolate", "Matilda", "Os Gremlins", "James e o Pêssego Gigante" e outras obras do autor tornaram-se clássicos infantis, principalmente após ganharem adaptações cinematográficas. "O Bom Gigante Amigo", no entanto, não havia ganhado espaço entre as grandes produções até 2016, exceto por uma animação realizada em 138 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
1989. O avanço de efeitos visuais, necessários para uma adaptação digna da obra, e a fórmula carismática que ela carrega parecem explicar o interesse da Disney em investir na sua reapresentação ao público, e desta vez trazendo o veterano Steven Spielberg ("Ponte dos Espiões", 2015) encarregado da direção. O que prometia ter um resultado perfeito, no entanto, mostrou-se um longa-metragem cansativo e sem sintonia. Ambientada em Londres, a história traz Sophie (Ruby Barnhill), uma garota órfã que, em uma madrugada, ao permanecer acordada enquanto todas as suas colegas dormem, avista um gigante da janela do orfanato. Ao perceber que foi notado, a criatura – posteriormente chamada de "Bom Gigante Amigo", ou simplesmente "BGA" (e interpretada por Mark Rylance com a ajuda de equipamentos digitais) – rapta a criança, a levando para um lugar chamado Terra dos Gigantes. Sophie percebe que a índole do gigante não é má e torna-se sua amiga, mas deve tomar cuidado para não ser devorada pelos outros, que são maiores e oprimem o BGA por não alimentar-se de criancinhas. O roteiro, escrito pela falecida Melissa Mathison ("E.T. – O Extraterrestre", 1982), se esforça para trazer camadas de profundidade sentimental, no intuito de conquistar o público e alcançar o prometido espaço entre os clássicos do gênero. Apesar disto, o que de fato ocorre é o excesso de sequências longas demais e de ritmo lento e desnecessário, que contrastam com as poucas cenas de ação. Parece irregular; o drama, a ação e o humor são explorados como que em capítulos, e não durante o filme em sua completude. O entretenimento também perde força quando a produção decide reduzir seu público ao optar por piadas infantilizadas – sabemos que crianças são o público-alvo, mas é possível construir um filme maduro e inteligente destinado à famílias, como os muitos outros já citados neste texto. Os pontos positivos recaem sob o ótimo desempenho da dupla protagonista, especialmente o de Ruby Barnhill. A dedicação que a estreante apresenta em cena a coloca como um dos talentos Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 139
promissores revelados pelo cinema este ano. Outro destaque está nos quesitos visuais: a fotografia de Janusz Kamiński, parceiro de Spielberg, contribui bastante para o tom fabuloso do filme, cuja ambientação, charme das imagens e direção de arte conseguem resgatar uma beleza característica da fantasia infantil. Os efeitos em CGI são bem produzidos e a tecnologia 3D, anteriormente aplicada pelo diretor em "As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne" (2011), é deveras eficiente ao transportar o espectador para aquela atmosfera. 140 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Dentre acertos, erros e uma narrativa que busca encontrar seu grande momento, a bela mensagem por trás de "O Bom Gigante Amigo" consegue ser transmitida, mas não por mérito de seus realizadores, que até tentam construir algo memorável, e sim pela potência emocional já característica das histórias de Dahl. Apesar das atuações e efeitos visuais, é um filme mediano, que provavelmente não atingirá o tão desejado status de clássico, caindo no esquecimento até que alguém decida pesquisar mais sobre a obra que o originou. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 141
Pets: A Vida Secreta dos Bichos Animação diverte, mas carece de diferencial
Chris Renaud e Yarrow Cheney, 2016 Originalmente publicado em 01/08/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Personagens fofos, premissa simples, músicas pop do momento e piadas despretensiosas. Essa é a fórmula básica do sucesso comercial, já seguida várias outras vezes pela Illumination Entertainment, vertente de animação da Universal Studios. Outrora responsável por "Meu Malvado Favorito" (2010) e seu spin-off caça-níqueis "Minions" (2015), o filme da vez é "Pets – A Vida Secreta dos Bichos" (2016), o primeiro de dois estrelados por animais falantes que a produtora lança no mesmo ano (O segundo, 142 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
intitulado "Sing", possui como destaque um forte apelo musical). Dirigido por Chris Renaud ("O Lorax", 2012; "Meu Malvado Favorito 2", 2013) e Yarrow Cheney (que costuma atuar como diretor de arte), o longa-metragem com bichos de estimação é bastante raso e sem muitas surpresas, mas consegue arrancar um sorriso ou outro. Ambientada em Nova York e com uma grande gama de personagens secundários, a trama parte da pergunta "o que os animais fazem quando seus donos não estão em casa?" e tem como plot principal o cotidiano do terrier domesticado Max, cuja paz é ameaçada quando sua dona Katie adota outro cão, o grande e desleixado Duque. A relação entre os dois é de início conturbada, desencadeando uma série de eventos que logo os mete em uma situação envolvendo o caminhão de controle de animais e várias criaturas de esgoto. Aos poucos, a saga torna-se uma aventura de resgate e regresso ao lar, passando a destacar os animais amigos do protagonista, até então com poucos minutos de tela. O roteiro do trio Ken Daurio, Cinco Paul e Bryan Lynch, que trabalhou em quase todos os outros filmes do estúdio, não é nem um pouco ambicioso, apesar de algumas tentativas – falhas – de causar comoção emocional no público, um fator que parece se tornar quase obrigatório entre os filmes de animação modernos. O humor, no entanto, consegue atingir seus bons momentos, principalmente quando baseia-se em situações absurdas e piadas envolvendo tecnologia e economia. Este é o único aspecto, inclusive, que o filme apresenta como diferencial de suas as produções similares, apesar deste não ser tão marcante. O visual gráfico, sintético e bastante colorido, ambienta o filme em um universo que reconhece suas semelhanças com os outros destaques da produtora (vários easter eggs envolvendo Minions comprovam isso), construindo um tom que, apesar de não ser desagradável ou não parecer amador, demonstra o desinteresse em originalidade pelos realizadores da produção. A trilha do excelente Alexandre Desplat (ganhador do Oscar por "O Grande Hotel Budapeste", 2014), inclusive, é por vezes ofuscada por músicas pop do momento – um exemplo é “Welcome to New York”, da estrela Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 143
Taylor Swift, que é tocada na íntegra durante a sequência de abertura, mesmo sob voice-over do protagonista narrador. "Pets – A Vida Secreta dos Bichos" é um filme que certamente seria produzido pela indústria em algum momento – o potencial de rentabilidade da sua fórmula é indiscutível, e até já 144 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
garantiu uma sequência para o longa em 2018. É em suma um tipo de entretenimento que diverte as famílias por alguns minutos e até as faz ir ao cinema, mas que cai numa mesmice que poderia ser evitada com um pouco mais de capricho criativo. Ele é a prova de que, para muitos realizadores, é a bilheteria que fala mais alto. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 145
O Lar das Crianças Peculiares O divertido circo de Tim Burton
Tim Burton, 2016 Originalmente publicado em 17/10/2016, no portal de cinema Quarto Ato
Desde que o trailer principal de "O Lar das Crianças Peculiares" ("Miss Peregrine's Home for Peculiar Children", 2016) foi lançado, o público ficou bastante dividido em relação ao filme. Baseada na criativa obra "O Orfanato da Srta. Peregrine Para Crianças Peculiares", publicada em 2011 pelo autor Ramson Riggs, a adaptação cinematográfica sofrera várias alterações narrativas nas mãos de Tim Burton, que assume o posto de direção do longa-metragem. 146 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
O resultado, no entanto, não foi lá dos piores – apesar de decepcionar (ou enfurecer) os fãs mais ávidos do conteúdo original, o filme é bastante divertido e visualmente agradável, garantindo umas boas horas de entretenimento em frente à telona e com um balde de pipoca. O enredo principal traz Jacob Portman (Asa Butterfield, de "A Invenção de Hugo Cabret" [2011] e "Ender's Game – O Jogo do Exterminador" [2013]), um garoto de 16 anos que resolve investigar o misterioso assassinato de seu avô após acreditar ter visto um monstro no local. Impulsionado pelas histórias fantásticas que o homem costumava contar sobre a sua infância e pelos registros que ele deixara, Jacob sai em busca de um orfanato para crianças com habilidades especiais, ditas "peculiares", sob a direção de uma figura chamada Alma Peregrine (Eva Green, de "Sin City 2: A Dama Fatal" [2014] e do seriado "Penny Dreadful"). É daí que a aventura toma início, apresentando paisagens interessantes, monstros bizarros e personagens um tanto quanto carismáticos. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 147
Na posição de diretor, Tim Burton brinca com seus próprios recursos estilísticos de maneira que não se via desde "Sombras da Noite" (2012). A diferença é que, em "Crianças Peculiares", suas marcas encontram espaço de maneira tão efetiva e prazerosa que é impossível não reconhecer a tamanha liberdade e afeição que ele teve ao abraçar o longa-metragem. Do uso de comédia negra à situações e figuras grotescas (que inclusive podem assustar os espectadores mais jovens) é possível enxergar o trabalho de Burton. O mais óbvio, no entanto, surge em uma cena stop-motion, e talvez no design dos monstros "etéreos", antagonistas do filme, que remetem muito às ilustrações do diretor para seu livro "A Morte Melancólica do Rapaz Ostra e Outras Histórias". O roteiro de Jane Goldman ("X-Men: Primeira Classe" [2011] e "Kingsman: Serviço Secreto" [2015]) mistura alguns eventos da saga escrita por Riggs, não atendo-se somente ao primeiro livro lançado dentro do universo da Srta. Peregrine. Essa mistura bebe das mesmas fontes de "X-Men" (familiaridade de Jane, que já trabalhou em vários filmes dos mutantes) e até Harry Potter, deixando bastante espaço para a introdução das crianças e a apresentação de suas peculiaridades. Com isso, é quase inevitável um problema de ritmo característico de muitos filmes com vários personagens; muitos arcos, como a relação entre Jacob e seu avô, ou com Emma, uma das crianças, tiveram tempo de tela sacrificado para o maior desenvolvimento de cenas de ação no ato de encerramento. No entanto, a história é apresentada – e concluída – de forma bastante concisa. Quanto às atuações, é preciso declarar uma profunda decepção com o desempenho de Asa Butterfield. Outrora promissor entre os jovens atores, sua interpretação como Jacob é tão apática e desinteressante que é bastante difícil construir algum tipo de afinidade com o protagonista. O resultado disso é a atração do público pelo grande mote de coadjuvantes – apesar de muitas das crianças peculiares serem novatas, elas executam boas performances, roubando a atenção em quase todas as cenas. Eva Green, por sua vez, brilha no papel da metódica e protetora Srta. Peregrine, mas 148 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
não esconde suas referências à clássica babá Mary Poppins. Sua presença em tela é cativante, o que promete a tornar uma personagem (junto ao belo figurino da ótima Colleen Atwood) bastante icônica dentro do gênero de fantasias young adult. O elenco ainda conta com breves (e mal-aproveitadas) participações de grandes estrelas, como Samuel L. Jackson, Judi Dench, Allison Janney e Rupert Everett. "O Lar das Crianças Peculiares" é uma produção que consegue entregar suas propostas, sendo o divertimento do público a principal delas. Pode não satisfazer alguns espectadores mais exigentes (em especial os leitores do conteúdo original), mas atende a seu potencial de fantasia e aventura, além de comprovar que Tim Burton sabe muito bem das características que o tornaram tão cultuado entre os diretores modernos mais populares. E podem acreditar: ele parece gostar muito disso.
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Trolls Animação é colorida, musical e inteligente
Mike Mitchell e Walt Dohrn, 2016 Originalmente publicado em 27/10/2016, no portal de cinema Quarto Ato
À primeira vista, a animação "Trolls", produzida pela DreamWorks Animation Studios e dirigida pela dupla Mike Mitchell ("Bob Esponja: Um Herói Fora D'Água", 2015) e Walt Dohrn, parece bastante familiar. Seu material promocional, dotado de uma explosão de cores, talvez torne difícil aos espectadores mais velhos uma associação imediata à linha de brinquedos homônima, que fez bastante sucesso entre os anos 60 e 00. Talvez isso também 150 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
se dê em razão do redesign das criaturas, que tornaram-se mais amigáveis, no intuito de favorecer o apelo ao público infantil. O que previamente vemos é algo próximo das criaturas cantantes de "Os Smurfs" (2011), em um versão meio disco-psicodélica, que faz alusão à desenhos atuais de grande sucesso. E é quando "Trolls" basicamente assume essas referências que o longa-metragem acerta em cheio. De premissa simples, a animação inicia-se de forma bastante tradicional e didática, explicando o conflito principal da trama: alegres e coloridos, os Trolls são o principal desejo dos cinzentos Bergens, monstros que alimentam-se das criaturinhas na esperança de absorver sua "felicidade". Refugiados em uma vila na floresta por muitos anos, a espécie que dá título ao filme mantém-se feliz, até serem encontrados por uma amargurada Bergen, que rapta alguns de seus membros em busca de vingança. A partir disso, a entusiasmada Poppy (voz original de Anna Kendrick), princesa dos Trolls, sai em uma jornada para resgatar seus amigos, sendo amparada por Tronco (voz original de Justin Timberlake), um Troll neurótico e ranzinza que teme o ataque dos Bergens.
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As clássicas personalidades opostas de Poppy e Tronco são os principais pontos de humor e entretenimento, construindo um carisma típico e que mantém o público interessado até o final. O roteiro, escrito por Jonathan Aibel e Glenn Berger (dos filmes "Kung Fu Panda" [2008-2016] e "Bob Esponja: Um Herói Fora D'Água" [2015]), busca focar justamente na relação entre esses dois personagens, pouco explorando os diversos outros coadjuvantes, de forma que mal conseguimos aprender todos os seus nomes. Esses, inclusive, parecem participar da trama apenas para aumentar o número de celebridades no elenco de dublagem, embora mal possuam falas relevantes. O que realmente conquista em "Trolls" é seu teor assumidamente pop, seja nas piadas ou em sua musicalidade. Esta característica há muito não era explorada pelo estúdio, embora esteja presente em seus clássicos "Shrek" (2001) e "Madagascar" (2005). É muito inte-
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ressante como há música na essência deste longa-metragem, e mais interessante ainda como a maioria delas, selecionadas a cargo de Justin Timberlake, são clássicos advindos das décadas entre 60-00, período em que a maior parte do público ainda nem era nascido. Esta escolha é capaz de provocar um sentimento contagiante que, também por meio da nostalgia (dos mais velhos), revela-se como o grande responsável pela conexão que é construída; como em todo musical, as músicas são importantes para traduzir a trama, e neste caso elas não só fazem isso, como criam momentos-chave de clímax emocional. A cena de "True Colors", canção conhecida na voz de Cindy Lauper, é a representação perfeita disto. O humor do filme também baseia-se bastante nas sacadas musicais (destaco a sequência de "The Sound of Silence", que é muito inteligente) e nas referências diversas (inclusive aos bonequinhos
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que inspiraram o longa). Tudo é bastante exagerado e explícito, para que logo percebamos o intuito de paródia à vários elementos que o público já conhece (desde a abertura de um livro na primeira cena até um subplot completamente baseado em "Cinderella" – e que quase classifica o filme como uma adaptação do estúdio para este conto de fadas, figurando entre incansáveis outras). Muito aqui vem de "Shrek", mas em vez do conteúdo marcado pelo duplo sentido, há uma aposta maior em piadas ingênuas e situações caricatas. 154 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
O visual do filme é completamente extravagante. Desafiando o comodismo monocromático do cenário Smurf, a paleta de cores é variada e bem viva (exceto na desinteressante cidade dos Bergens), transmitindo um exagerado sentimento de energia e vivacidade que, somado ao glitter, constrói um forte tom alegre, psicodélico e setentista. Muitas criaturas são desenhadas em aspecto nonsense, o que muito lembra a esfera criativa de desenhos bem-sucedidos da televisão, como "Hora de Aventura" e "Bob Esponja". É um universo louco, que parece tão bizarro quanto alegre. Apesar de alguns defeitos, como entregar resoluções rápidas e um desfecho genérico, "Trolls" mostra-se como uma animação divertida e de muito potencial – criativo, visual e rentável. Suas mensagens são majoritariamente modernas, e abraçam a
“Há felicidade em todos. Às vezes, você só precisa de alguém pra ajudar a achar” Poppy (Anna Kendrick)
diversidade com seus diferentes personagens. Há um otimismo necessário às novas gerações, e um agradável e eficiente apelo musical que fará muitas crianças o re-assistirem diversas vezes após lançamento home video, enquanto seus pais provavelmente cantarolam as famosas melodias no cômodo ao lado. A versão dublada é muito bem realizada e pensada, traduzindo e adaptando apenas algumas músicas, o que em muito mantém a essência do conteúdo original. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 155
A Luz Entre Oceanos Eficiente, drama é bem realizado
Derek Cianfrance, 2016 Originalmente publicado em 06/11/2016, no portal de cinema Quarto Ato
"A Luz Entre Oceanos" (2016), filme roteirizado e dirigido por Derek Cianfrance ("Namorados Para Sempre", 2010) e baseado na obra literária homônima de M. L. Stedman, parece, à primeira vista, uma mera produção do gênero, apresentando-se como muitos dos longa-metragens de romance da atualidade, em que os estúdios extraem de best sellers todo o seu potencial para histórias de sucesso. No entanto, a excelência desta produção carrega um 156 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
caráter "Oscar bait" (“isca” para o Oscar), cujo empenho acaba por torná-la uma das melhores de sua proposta lançadas este ano. A trama, que toma início na década de 20, segue Tom Sherbourne (Michael Fassbender), um veterano da Primeira Guerra Mundial que, em busca de estabilidade, dispõe-se para um emprego de faroleiro na costa australiana. O ex-militar logo apaixona-se por uma local, a doce e vivaz Isabel Graysmark (Alicia Vikander), com quem pouco depois atinge e consuma matrimônio. Morando sozinhos na ilha do farol, por conta do ofício de Sherbourne, o casal Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 157
encontra dificuldades para ter filhos, até que um bebê e o cadáver de um homem são trazidos em um barco pelo mar. Tom e Isabel decidem cuidar da criança e manter segredo sobre o caso, até ele os conectar com Hannah Roennfeldt (Rachel Weisz), uma viúva que perdeu o marido e a filha no oceano. O primeiro ato do longa-metragem é bastante enfadonho e pretende contemplar casais, sendo constituído basicamente por cenas de carícias entre Tom e Isabel. No entanto, a produção ganha ritmo após a primeira e bem-executada cena de tempestade, que capta de forma agoniante os espectadores e os prepara para os problemas que a dupla protagonista virá a enfrentar nas sequências posteriores. O resultado é uma carga dramática interessante, que apesar de over the top em algumas cenas, constrói camadas psicológicas em seus personagens e evoca um certo suspense do tipo "o que acontecerá agora?". Somos introduzidos, inclusive, à um debate moral, que esforça-se para emitir pontos de vista do trio de personagens principais, explorando o emocional de todos e instigando o público a uma reflexão momentânea. Para garantir que a produção funcione de forma efetiva, atingindo o objetivo que almeja de destacar-se entre as demais, o compromisso dos atores é admirável: Alicia Vikander ("A Garota Dinamarquesa", 158 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
2015) e Michael Fassbender ("X-Men: Apocalipse", 2016), que são namorados na vida real, entregam muito de sua química em cena. Alicia doa-se de maneira exemplar – com os escândalos de Isabel, ela reforça seu status como uma das melhores atrizes do cinema atual. Rachel Weisz ("O Lagosta", 2015) constrói uma personagem triste e ressentida o suficiente para não exprimir ares de "antagonista", o que seria prejudicial dentro do propósito da trama. Dentro dos quesitos técnicos, é importantíssimo destacar a trilha sonora de Alexandre Desplat ("O Grande Hotel Budapeste", 2015), uma das mais marcantes do ano (até agora), e a bela fotografia de Adam Arkapaw ("Macbeth", 2015). Ambos são essenciais para criar clímax narrativo; em especial nas cenas iniciais, que consistem em poucos diálogos e apenas dois personagens em uma ilha. O resultado competente de "A Luz Entre Oceanos" deve-se à uma soma de fatores positivos envolvendo o empenho de sua equipe de produção e o seu rico conteúdo. Com agradáveis imagens e uma discussão que consegue ser envolvente, é um drama bem realizado, que promete agradar aos ávidos pelo gênero e, quem sabe, angariar algumas indicações nas próximas grandes premiações de cinema.
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Harry Potter e a Ordem da Fênix Prazerosa extensão do universo
David Yates, 2007 Originalmente publicado em 19/11/2016, no portal de cinema Quarto Ato, em um especial com filmes da saga Harry Potter
Após o grande número de eventos ocorridos no bem-sucedido "Harry Potter e o Cálice de Fogo" (2005), seu sucessor, “Harry Potter e a Ordem da Fênix” (2007), também adaptado da obra de J.K. Rowling, encontrou o desafio de manter o ritmo acelerado de atividades e ajudar na construção do tom sombrio de evolução da saga. Apesar de falhar em alguns aspectos, desacelerando as coisas com cenas de ação não tão presentes, o longa-metragem de David Yates (que 160 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
também é responsável por todos os outros filmes do mundo bruxo lançados posteriormente) acerta em desenvolver mais os personagens coadjuvantes e algumas características do universo mágico. O roteiro de Michael Goldenberg ("Peter Pan", 2003) nos mostra uma Hogwarts em crise de administração: por acreditar no retorno de Voldemort (Ralph Fiennes), situação que vimos no filme anterior, Alvo Dumbledore (Michael Gambon) é afastado da diretoria do colégio, sendo substituído por Dolores Umbridge (Imelda Stauntun), professora indicada pelo Ministério de Magia, cujas medidas extremas logo a classificam como "inquisidora" da escola. Em contrapartida, Harry Potter (Daniel Radcliffe) decide preparar seus amigos para situações de perigo, ajudando-os no treino de feitiços de defesa e ataque. Como quinta produção da saga, "A Ordem da Fênix" exige fôlego e interesse dos espectadores, e por isso segue os passos da autora para introduzir novos personagens coadjuvantes e explorar outros já existentes, assim também como espaços até então pouco relevantes. É o caso de Luna Lovegood, carismática e memorável na interpretação de Evanna Lynch, atriz novata na época, e de Neville Longbotton (Matthew Lewis), reduzido a mero alívio cômico desde o primeiro filme. Há também destaque aos muitos membros da ordem secreta que nomeia o filme e às instalações do Ministério da Magia, em parte criadas em um bem-realizado CGI. O elenco protagonista, Daniel Radcliffe, Emma Watson e Rupert Grint, entrega performances similares às anteriores, mas ainda assim ótimas, mantendo o carisma. Há um fortalecimento de desempenho por parte de outros atores jovens, como Bonnie Wright, Tom Felton, Alfred Enoch e os dois já aqui citados. Do elenco adulto, além de Alan Rickman, Michael Gambon e outros grandes nomes, destaco Imelda Staunton, cuja excelente composição de sua atípica vilã a torna uma das mais marcantes e interessantes da saga. A leveza narrativa deste longa-metragem talvez o torne um dos mais familiares da franquia. Há certo prazer ao descobrir mais Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 161
facetas desta atmosfera fantástica; os novos feitiços, as novas criaturas, a ambientação criada pelo competente trabalho de computação gráfica, a trilha sonora de Nicholas Hooper (parceiro de Yates) e o figurino característico do mundo de Potter. A cena em que os alunos treinam seus patronos, por exemplo, é deliciosa de assistir. Se não há ação frenética, há entretenimento na competência de contar histórias. 162 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
A mensagem de movimento estudantil pregada em "Harry Potter e a Ordem da Fênix" é fortíssima e importante para o que viria nos longa-metragens seguintes, além de permanecer autêntica até os dias atuais, quase dez anos depois do lançamento original. Vale uma revisita; seja para rever determinados personagens em destaque ou ao menos encantar-se com algumas horas de magia. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 163
Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2 Conclusão apresenta falhas, mas emociona
David Yates, 2011 Originalmente publicado em 06/12/2016, no portal de cinema Quarto Ato, em um especial com filmes da saga Harry Potter.
Chegamos ao capítulo final. Encerrando a saga do famoso bruxo, "Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2" (2011) mantém a mesma equipe do seu predecessor, com David Yates na direção e roteiro de Steven Kloves, também responsável por sete dos oito filmes da saga. Não tão obscuro quanto sua primeira parte, esta segunda entrega muitos problemas de ritmo narrativo, mas encerra a longa jornada do protagonista de forma satisfatória, agradando aos fãs. 164 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Continuando exatamente de onde "Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1" (2010) parou, esta produção acompanha o personagem-título, novamente a cargo de Daniel Radcliffe, em sua batalha contra o lorde das trevas Voldemort (Ralph Fiennes),
buscando e destruindo as horcruxes produzidas pelo vilão com a ajuda de seus parceiros Ron Weasley (Rupert Grint), Hermione Granger (Emma Watson) e outros amigos de Hogwarts e da Ordem da Fênix. Em suas primeiras sequências, o longa-metragem parece mostrar o que seriam quase "cenas deletadas" de sua primeira parte, em um ritmo tão lento e fora do tom previamente construído que a tornam totalmente destoantes dos atos seguintes do filme. Com a chegada à Hogwarts e a aproximação do clímax, a produção torna-se Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 165
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bem mais interessante, estabelecendo cenas de ação envolventes e de maior impacto na narrativa. Todos do elenco atingem seu ápice, seja em preparação física ou construção emocional. Destaque para os nomes já citados, além de Matthew Lewis, Evanna Lynch, Alan Rickmann, Maggie Smith, Tom Felton, Michael Gambon (apesar de sua breve – mas importante – participação) e todo o ensemble coadjuvante. Quanto aos aspectos técnicos, o CGI decepciona em algumas cenas (talvez pelo pouco intervalo de pós-produção), sendo inferior ao de algumas produções anteriores da franquia. A trilha sonora de Alexandre Desplat ("O Jogo da Imitação", 2015) é realmente envolvente e busca resgatar o sentimento épico de produções como "O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei" (2003), apesar do conteúdo apresentado pecar em relativa inferioridade. Com um epílogo sentimental e agradável, apesar de bastante apressado, "Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2"
“O menino que sobreviveu veio para morrer” Lord Voldemort (Ralph Fiennes)
apresenta erros que não o classificam como o melhor de todos os longa-metragens adaptados da obra de J.K. Rowling, mas encerra a relevante saga do bruxo de maneira eficiente, atingindo sucesso entre seu público e tornando memoráveis a conclusão e as mensagens positivas que a franquia carrega em sua essência. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 167
Animais Fantásticos e Onde Habitam Com trama original, a magia de Harry Potter volta aos cinemas
David Yates, 2016 Originalmente publicado em 19/11/2016, no portal cultural It Pop Vencedor do Oscar de Melhor Figurino
Quando mais um filme do universo de Harry Potter foi divulgado, nós todos ficamos entusiasmados, principalmente ao saber que J.K. Rowling, autora responsável pelo livros do bruxo mais famoso do mundo, seria a roteirista. Aos poucos, várias novidades foram sendo reveladas, nos deixando cada vez mais ansiosos – e apreensivos – para conferir o resultado do longa-metragem, intitulado "Animais Fantásticos e Onde Habitam" 168 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
e baseado em um livro-apêndice de Harry Potter, publicado originalmente 2001. Ambientado na Nova York de 1926, cerca de setenta anos antes dos eventos de "Harry Potter e a Pedra Filosofal" (que chegou aos cinemas em 2001), "Animais Fantásticos e Onde Habitam" gira em torno de Newt Scamander (Eddie Redmayne), um tímido magizoologista britânico, que acabara de chegar à movimentada cidade norte-americana. Sem sabermos ao certo seus objetivos, acompanhamos o excêntrico personagem e sua maleta – cheia de criaturas mágicas – por situações cômicas e de infortúnio, que acabam causando a fuga de alguns animais pela cidade e provocando alvoroço no Congresso Mágico dos Estados Unidos (MACUSA), que teme a exposição do mundo mágico.
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O primeiro ato do filme é bastante introdutório, apresentando não só Newt como também os personagens que acompanham sua jornada em seguida: o não-maj (termo americano para "trouxa", ou "não-mágico") Jacob Kowalski (Dan Fogler), que é basicamente o alívio cômico do filme; a bruxa Porpetina Goldstein (Katherine Waterston), funcionária bem-intencionada do MACUSA e sua irmã Queenie Goldstein (Alison Sudol), cujo charme e poder de ler mentes a tornam a personagem mais carismática do quarteto. Paralelamente, outro núcleo, mais sombrio, também é introduzido: trata-se da comunidade radical Nova Salém, uma espécie de seita caça às bruxas que remete ao episódio das "Bruxas de Salém", ocorrido nos EUA em 1692, onde várias pessoas foram executadas sob acusação de bruxaria. Este grupo é liderado pela fanática Mary Lou Barebone (Samantha Norton), com a participação de seus filhos adotivos Credence (Ezra Miller), Modesty (Faith WoodBlagrove) e Chastity (Jenn Murray). Sua atuação em Nova York instiga os líderes mágicos, em especial Percival Graves (Colin
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Farrell), um influente auror (espécie de general e investigador do Congresso Mágico). Por tratar-se de uma história completamente nova e distante de Hogwarts, a necessidade de uma contextualização torna o ritmo dos momentos iniciais mais lento e desinteressante, o que pode desagradar públicos mais adultos, visto o tom familiar e mais "leve" das sequências de ação e humor. No entanto, com o desenrolar do núcleo envolvendo a Nova Salém, a narrativa torna-se mais densa em atmosfera e temática, preparando o público para o clímax. As duas distintas propostas não conversam muito entre si; as cenas estreladas por Newt são mais coloridas e engraçadas, enquanto as sequências com Credence, Mary Lou e Percival compõem um enigmático e perverso tom de terror. No entanto, são esses contrapontos que mantém o longa-metragem fluido, não tornando-o tão cansativo em suas duas horas de duração. Os momentos mais prazerosos do filme, inclusive, estão na revisita ao mundo mágico: o clima fantasioso orquestrado pelo diretor David Yates (responsável pelas quatro últimas produções da franquia Harry Potter) nos causa um conforto nostálgico e maravilha a percepção dos newcomers. A ambientação é visualmente agradável, com todo o art decó luxuoso da década de 20 e o tom sépio característico dos espaços urbanos em ascensão. O CGI é aqui muito bem produzido, assim como no criativo design dos animais fantásticos e seus habitats, apesar de não ser tão crível em algumas cenas. O 3D é bem aplicado, a trilha sonora de James Newton Howard (da franquia "Jogos Vorazes", 2012-2015) é cativante (como deveria ser) e o figurino da maravilhosa Collen Atwood ("Alice Através do Espelho", 2016) vai animar os fãs cosplayers com seus detalhes e molde vintage. Dentre os membros do elenco, que em sua maioria entrega boas performances (o Colin Farrell até tenta), destacamos dois: o queridinho Eddie Redmayne, que apesar de alguns maneirismos, entrega mais de uma faceta de Newt Scamander, apresentando boa preparação física, e Ezra Miller, talento de uma geração, que constrói talvez o personagem mais intenso de todos. 172 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
"Animais Fantásticos e Onde Habitam" certamente entrega um ótimo entretenimento, não decepcionando os fãs do universo bruxo com seus diversos easters eggs e preparando o público para suas sequências, que certamente virão cheias de mistério e conteúdo interessante. Tirem suas varinhas do armário, pois a magia está de volta. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 173
Sing: Quem Canta Seus Males Espanta Animação agrada na proposta musical
Garth Jennings, 2016 Originalmente publicado em 21/12/2016, no portal de cinema Quarto Ato
À primeira vista, a animação “Sing: Quem Canta Seus Males Espanta” não apresenta ideias tão originais. Produzido pela Illumination Entertainment, divisão dos estúdios Universal responsável por produções do gênero e cujo maior sucesso consiste na franquia “Meu Malvado Favorito”, o filme está entre os vários recentes estrelados por animais – sendo “Zootopia”, dos estúdios Disney, o que mais conquistou relevância em 2016. No entanto, com grande elenco de 174 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
vozes e várias hits musicais conhecidos pelo público, “Sing” tenta consolidar-se como um longa de destaque que, apesar das grandes promessas em bilheteria, não possui de fato muita força. Logo nas sequências iniciais, somos introduzidos ao coala Buster Moon (Matthew McConaughey no áudio original), que desde a infância nutre paixão por um imenso teatro local, tornando-se proprietário dele nos anos à frente. Porém, com o fracasso de seus shows, a propriedade beira à falência, e como iniciativa para salvá-la, Moon decide realizar um show-competição de canto ao melhor estilo caça-talentos, o que muito lembra os reality shows da televisão. Motivados pela alta quantia em dinheiro que o prêmio promete (e que não passa de um acidente na divulgação), os habitantes da cidade lotam as filas de teste no teatro. Paralelamente, acompanhamos um grupo de personagens com problemas pessoais diversos que, em comum, sonham em ter seus sonhos de estrelato transformados em realidade por meio do show. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 175
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O primeiro (e talvez principal) problema de "Sing" está na sua quantidade de protagonistas, muitos apresentados ao público de maneira superficial. Com muito potencial e backstories interessantes, os personagens são muitas vezes reduzidos a situações específicas, com vários "deixados de escanteio" e reduzidos ao papel de alívio cômico. Aos que recebem, além de Buster Moon, um tempo maior de tela – a leitoa Rosita (Reese Whiterspoon), o gorila Johnny (Taron Egerton), a elefanta Meena (Tori Kelly), a porca-espinha Ash (Scarlett Johansson) e o camundongo Mike (Seth MacFarlane) – é destinada a construção de profundidade emocional, que por vezes não tem espaço para desenvolver-se adequadamente, não atingindo seu objetivo de forma completamente eficaz. O humor, por outro lado, garante um entretenimento adequado ao público e garante força por meio da seleção musical. É a música, inclusive, que sustenta todo o filme (o que não há dúvidas, principalmente se considerarmos seu título e temática). Sem muitos recursos visuais que, de fato, sobressaem-se de forma atraente (a animação é tão genérica quanto outras produções comerciais, em especial as do estúdio), Sing investe na sua eclética seleção musical como trunfo atrativo e memorável, acertando bastante neste quesito. Muitas canções são hits "de rádio" ou clássicos de renomados artistas – temos Frank Sinatra, Taylor Swift, Katy Perry, Lady Gaga, Seal, Tom Jobim, Nicki Minaj, Paul McCartney e muitos outros, abrangendo desde Pop e Rock ao Jazz, Rap e até K-Pop. Desta forma, é quase impossível não reconhecer pelo menos uma das músicas, propondo uma experiência divertida ao público – e que, agora sim, atinge ápice durante seu último ato. Sob direção de Garth Jennings, conhecido por seu trabalho com videoclipes musicais, “Sing – Quem Canta Seus Males Espanta” é bastante fraco quando comparado à avalanche de títulos e ideias que o classificam como genérico. No entanto, é uma boa opção de entretenimento, principalmente por sua proposta musical e aspecto familiar. Vale incluí-lo na playlist. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 177
Rogue One: Uma História Star Wars Filme não cai no fan service óbvio e surpreende
Gareth Edwards, 2016 Originalmente publicado em 03/01/2017, no portal cultural It Pop
Cerca de um ano após "Star Wars: O Despertar da Força" (2015) ser lançado, muitos fãs da saga espacial encontraram-se extasiados com seu novo rumo e mal podiam esperar para a chegada do oitavo episódio da trama envolvendo os personagens Darth Vader, Luke Skywalker, Rey e companhia. É por essa e outras razões que a produtora Lucasfilm, sob as asas da Walt Disney Company, decidiu investir na produção spin-offs, que seriam lançados entre um epi178 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
sódio e outro, explorando novas facetas do rico universo expandido da saga, e garantindo sua permanência nas mentes do público e nas altas bilheterias mundo afora. É sob esta condição que "Rogue One: Uma História Star Wars" chegou às telonas. Ocorrida entre os episódios III ("A Vingança dos Sith", 2005) e IV ("Uma Nova Esperança", 1977), a trama de "Rogue One" foca em explicar como a Aliança Rebelde conseguiu os planos de engenharia e funcionamento da primeira Estrela da Morte, famosa arma do Império capaz de destruir planetas inteiros (e que viria a explodir 13 anos depois, durante o quarto episódio). Sob este pretexto, somos introduzidos à Jyn Erso (Felicity Jones), uma jovem forte e independente cujo pai, um cientista de grande conhecimento, foi raptado pelo Império ainda durante a infância da garota. Detida pela Aliança, ela deve juntar-se ao oficial rebelde Cassian Andor (Diego Luna), seu droide K-2SO (Alan Tudyk) e uma equipe de guerreiros infiltrados (o piloto Bohd Rook [Riz Ahmed], o guerreiro espiritual Chirrut Imwe [Don-
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nie Yen] e o atirador Beze Malbus [Jiang Wen]) na busca de informações sobre o perigoso projeto e, consequentemente, seu pai. Com uma sequência inicial que busca contextualizar a situação em que Jyn, o primeiro ato do longa-metragem dirigido por Gareth Edwards ("Godzilla", 2014) é dotado de um ritmo acelerado, que estende-se até o segundo, com várias situações ocorrendo rápido demais. Os personagens são quase todos mal introduzidos, e apenas "jogados" em tela para a ação, sem conseguirmos acompanhar devidamente como chegaram até onde estão e quais as suas verdadeiras motivações. As performances do elenco, apesar do alto nível satisfatório, não trazem impacto. E, a respeito da organização daquele universo, principalmente quanto ao embate Rebeldes vs Império, o roteiro do spin-off não subestima o espectador, mas de certa forma requer que ele tenha conhecimento das outras produções da saga. Em uma saga tão cheia de espírito como "Star Wars", como identificamos a "Força" na ausência de personagens Jedi ou Sith? Onde estão os sabres de luz? Tudo respectivo a este lado da narrativa é deixado de lado até certas sequências-chave, sendo reduzido basicamente à referências em boa parte do filme. Talvez este seja um dos principais fatores que dificultam a empatia do público quanto aos personagens, que não são tão carismáticos quanto os outros heróis da franquia. Isto reflete na atmosfera da produção, que é mais densa e menos bem-humorada, embora algumas piadas apareçam entre uma cena e outra para a manutenção do entretenimento, que desta vez encontra como principal base as bem-coreografadas e dirigidas sequências de ação. É durante o terceiro ato que, então, o filme encontra sua devida força (sem trocadilhos!). Sob as reviravoltas no roteiro de Chris Weitz ("Cinderela", 2015) e Tony Gilroy ("Conduta de Risco", 2007), os personagens comprovam todo o potencial até então desperdiçado, demonstrando que conseguem sim cativar os espectadores. A tensão emocional, construída com o auxílio da belíssima fotografia e da ótima trilha de Michael Giacchino ("Zootopia" e "Star Trek: Sem Fronteiras", 2016), transforma as sequências em algumas das me180 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Nós temos esperança. Rebeliões são construídas por esperança” Jyn Erso (Felicity Jones)
lhores e mais impactantes de todos os episódios da saga, ecoando na memória de quem as assiste. Sem apelar para o fan service óbvio, "Rogue One: Uma História Star Wars" é um trabalho bem realizado, e que faz os fãs pularem de surpresa da cadeira, em especial com a última cena. Se os próximos filmes mantiverem a qualidade (principalmente do último ato) em seus próximos spin-offs, inclusive tecnicamente, podemos ficar seguros quanto à qualidade de uma das sagas modernas mais queridas pelo público. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 181
Moana: Um Mar de Aventuras Há muito coração na nova animação da Disney
Ron Clements e John Musker, 2016 Originalmente publicado em 12/01/2017, no portal cultural It Pop
Personagens Disney têm muito peso na cultura pop. Nem é preciso dissertar muito sobre o assunto; basta fazer pesquisas rápidas no Google para encontrar diferentes versões das adoradas princesas do estúdio, e adaptações alternativas das músicas que marcaram a infância de muitos. Carregando traços culturais e muitas ideologias sociais das épocas em que foram produzidos, os clássicos filmes de animação permanecem vividamente na memória do ci182 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
nema (e do público), como "A Pequena Sereia" (1989), "Aladdin" (1992), "Hércules" (1997) e "A Princesa e o Sapo" (2009). Ron Clements e John Musker, diretores responsáveis pelas produções aqui citadas, decidiram então mergulhar totalmente nas técnicas de animação em computação gráfica (CGI) em sua produção "Moana – Um Mar de Aventuras" (2017, Brasil). A dupla, que costuma trabalhar com culturas de diferentes locais do globo, realizando um intenso processo de pré-produção e pesquisa, resolveu desta vez mirar nos mares polinésios; sua nova protagonista (que nomeia o filme) é nativa da região e conta com a ajuda de um semideus chamado Maui (Dwayne "The Rock" Johnson/Saulo Vasconcelos), personagem inspirado em lendas locais, para enfrentar desafios que retratam com afinco os credos do povo que a inspirou. Moana (Auli'i Cravalho/Any Gabrielly) é a jovem filha do chefe da ilha Motuni. Desde criança, a personagem anseia em velejar e descobrir regiões além da ilha, mas por proibição do pai, que teme em perdê-la, ela cresce aprendendo a função de liderar seu povo. No entanto, com a aproximação de uma misteriosa "escuridão" que promete atingir o bem-estar do povo de Motuni, Moana sai em uma aventura para encontrar o semideus metamorfo Maui e, com sua ajuda, realizar as atividades necessárias para restaurar o equilíbrio na vida de todos ao seu redor. A história da adolescente espirituosa que deseja descobrir o mundo longe de sua casa não é ao certo inédita; a fórmula já é conhecida da Disney, sendo utilizada em "A Pequena Sereia" (1989), "A Bela e a Fera" (1991) e "Enrolados" (2010), por exemplo. O modelo narrativo, que segue a jornada do herói de Joseph Campbell, também não soa como alguma novidade, criando uma trama bastante episódica (fator evidenciado pela curta participação dos piratas-coco Kakamora e do siri gigante Tamatoa). Apesar destes fatores tradicionais, que contrastam perfeitamente com o corajoso, moderno e excelente "Zootopia" (2016), seu filme predecessor, "Moana" ganha destaque por sua qualidade de trama, que traz personagens mais profundos e interessantes. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 183
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Também é, de fato, impossível negar as pequenas evoluções de discurso nesta nova era de produções Disney. Como dito no início deste texto, as animações do estúdio carregam ideologias da época em que foram produzidas – e, no caso de Moana, nada melhor do que apresentar uma protagonista com corpo curvilíneo, cabelo cacheado e novos traços étnicos que não são europeus (não que isto não tenha sido construído anteriormente em outros longa-metragens. No entanto, este é um novo patamar conquistado). Aventureira nata, a personagem-título não gosta de ser definida como princesa, e tampouco deixa o poderoso (e convencido) Maui tomar seu lugar. Em termos visuais, "Moana" é estonteante. A animação apresenta avanços notáveis de movimento, e o cenário, com grande fotorrealismo, é cheio de texturas e cores, sendo, acima de tudo, crível. Com alto nível de detalhes, o Oceano (aqui também personagem) e as estrelas compõem uma fotografia que é quase um presente aos espectadores, criando sequências Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 185
tão belas que muita gente vai querer usar como screensaver ou capa nas redes sociais. A música, composta em uma parceria entre a banda de ritmos tribais Opetaia Foa'i, o astro Lin Manuel-Miranda (responsável pelo premiado musical "Hamilton") e o veterano em trilhas sonoras Mark Mancina (“Irmão Urso”, 2003), é completamente satisfatória, contagiante e, inevitavelmente, viciante. A wish song de Moana, "How Far I'll Go", o glam rock cantado pelo caricato Tamatoa (Jemaine Clement), "Shiny", e a balada de autodescoberta "I Am Moana (Song of Ancestors)" são alguns dos pontos altos do filme. As adaptações em português, produzidas por Mariana Elisabetsky, nome conhecido do teatro musical 186 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
brasileiro, não deixam em nada a desejar (inclusive na dublagem). É música pra colocar on repeat! Como resultado, "Moana" é uma animação cheia de sentimento. Com alguns passos mais longos do que outros, o estúdio do Mickey comprova que é sempre capaz não só de se reinventar, mas conquistar as lágrimas e o carinho do público (os adultos, inclusive, devem tirar um proveito maior da história que as crianças, facilmente entretidas pelo colorido na tela e as piadas que oscilam entre o humor genérico e o pontual). Há muito coração neste oceano, de um estúdio que vem se encontrando novamente na última década, após vários fracassos de bilheteria e uma crise criativa. E, em resposta, a protagonista canta: "Com o passado eu aprendi / Esse legado mora aqui, me invade". Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 187
La La Land: Cantando Estações Belíssimo, filme traz grande homenagem ao cinema clássico de Hollywood
Damien Chazelle, 2016 Originalmente publicado em 16/01/2017, no portal cultural It Pop Vencedor de seis Oscar: Melhor Diretor, Melhor Atriz (Emma Stone), Melhor Trilha Sonora, Melhor Canção Original (“City of Stars”), Melhor Design de Produção e Melhor Fotografia
Conquistando buzz desde sua divulgação prévia, por tratar-se de um musical original com elenco de renome, "La La Land: Cantando Estações" (2016), filme de Damien Chazelle (diretor de "Whiplash" [2014] e roteirista de "Rua Cloverfield, 10" [2016]), divide bastante o público. Notório em seu patamar de "produção nostálgica", que enaltece o cinema clássico de Hollywood (um molde muito em voga nos 1950), o filme angariou muitos prêmios e aplausos 188 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
em sua trajetória, quebrando recordes no Globo de Ouro 2017 e destacando-se no Oscar. A história de "La La Land" é, assim como seu título, simples. Mia (Emma Stone) é uma aspirante a atriz frustrada que ama cinema clássico; Sebastian (Ryan Gosling), por sua vez, é um pianista desempregado apaixonado por free jazz. Ambos se conhecem, se apaixonam e passam a acompanhar as conquistas e derrotas um do outro. O que há de tão espetacular que faça o filme se destacar, en-
tão? A dualidade entre “sonho” e “realidade” que seus carismáticos protagonistas vivenciam. Mia e Sebastian são tão tridimensionais quanto qualquer um de nós; são críveis, empáticos. Jovens adultos cujo a chama sonhadora – resquício de um impulso artístico, seja do cinema hollywoodiano clássico ou da música como forma de expressão criativa e social – persiste, acima de qualquer decepção que a dura vida apresente. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 189
Uma temática de esperança já apresentada no número de abertura "Another Day of Sun" ("Quando te decepcionarem / Você levantará do chão / O amanhecer estará ao seu redor / É outro dia de Sol"), que inclusive cita cinema Technicolor, e que atinge ápice na belíssima canção "Audition (The Fools Who Dream)" ("Tragam os rebeldes / as ondas de cristais / Os pintores, os poetas e as peças / Um brinde aos tolos que sonham / Tão loucos quanto parecem / Um brinde aos corações que se partem / Um brinde à bagunça que criamos"). É uma história movida por paixão, sobre paixão, e que atinge em cheio o emocional de seus espectadores que sonham (frustrados ou não). Damien Chazelle construiu isto brilhantemente em seu roteiro, escolhendo um gênero cinematográfico tão marcado por "sequências de sonho" na era dourada de Hollywood, e que hoje resiste graças à seu público apaixonado. Em um dos principais 190 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
diálogos, por exemplo, é perfeitamente notável o paralelismo existente entre o jazz e os filmes musicais, ambos supostamente "enterrados" pela modernidade, mas que persistem com grande potencial de adaptação. A composição visual de "La La Land" também está entre seus principais méritos. A fotografia, com muitas cores vivas e saturadas, não só homenageia os cenários em Technicolor dos principais musicais clássicos, mas também faz utilização sensacional da psicodinâmica das cores e constrói sequências belíssimas com um ótimo uso de contraste e iluminação (ferramenta por vezes utilizada no longa-metragem para destacar seus protagonistas). A abertura conta com uma ótima referência ao uso de Cinemascope, e os movimentos de câmera são quase coreografados como passos de dança, em uma decisão arriscada, mas que traz uma prazerosa dinamicidade (talvez inovadora) ao espectador. Os números musicais são, certamente, ótimos. A coreografia de Mandy Moore (não é a atriz!) evoca muitas referências à musicais como "Cantando na Chuva" (1952) e "Amor Sublime Amor" (1961), principalmente durante as cenas de sapateado. A trilha sonora, composta por Justin Hurwitz, já parceiro do diretor em suas produções, é outro grande destaque positivo, com composições que exploram muito bem o instrumental e que são revisitadas durante todo o filme. As músicas da dupla Benj Pasek e Justin Paul, responsáveis pelo recente musical da Broadway "Dear Evan Hansen" (estrelado por Ben Platt, o Benji da franquia "A Escolha Perfeita") e alguns hits do seriado da NBC "Smash", são muito bem aproveitadas, principalmente no primeiro ato da produção, sendo responsáveis por parte do sentimento positivo que cerca "La La Land". A respeito de "City of Stars", só me resta dizer o óbvio: favorita quanto Melhor Canção Original. Sob a competente direção de Damien Chazelle e a química entre o casal protagonista (cujas atuações agradam bastante, principalmente a de Emma Stone, com personagem mais complexa), "La Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 191
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“Eu senti, desde o primeiro abraço que te dei, que agora nossos sonhos podem finalmente se realizar” Trecho de “City of Stars”, vencedora do Oscar de Melhor Canção Original
La Land" é um filme belo e bem realizado; cinema na sua forma mais pura e simples de contar histórias, que agracia a "fábrica de sonhos" californiana e emociona (e muito) com seu discurso esperançoso sobre esperança e ideais. Uma ode aos musicais, com um final triunfante que convida à reflexão sobre decisões e a realidade natural da vida. "Um brinde aos tolos que sonham". Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 193
Assim Que Abro Meus Olhos Retrato da revolução jovem
Leyla Bouzid, 2015 Originalmente publicado em 17/01/2017, no portal de cinema Quarto Ato
Leyla Bouzid, diretora natural da Tunísia, já acumulou seis produções em seu currículo, que acaba por ganhar notoriedade após “Assim Que Abro Meus Olhos” (inicialmente lançado em 2015), seu mais recente longa-metragem, ser selecionado e premiado em festivais como o de Veneza, situação que logo em seguida o levou a ser indicado pelo país para lista de Melhor Filme Estrangeiro. Com uma temática relevante e de impacto coerente, que apoia-se 194 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
na condição histórica de uma sociedade, o filme demora a instigar o espectador, mas consegue captar sua atenção nas sequências finais e mantê-la ainda durante os créditos. O filme tem como protagonista Farah (Baya Medhaffar), uma garota de 18 anos que acaba por descobrir as liberdades da juventude, tais como o sexo e o álcool. Às vésperas da Primavera Árabe, ela assume o posto de vocalista de uma banda experimental, cujas músicas denunciam e criticam a situação política e social do país. Devido às atitudes autoritárias e de repressão da polícia, a questão preocupa Hayet (Ghalia Benali), mãe de Farah, colocando as duas em posição constante de confronto. O principal acerto de “Assim Que Abro Meus Olhos” está em retratar os contrastes entre uma juventude revolucionária liberal e o conservadorismo tão presente em determinadas sociedades. Esta realidade existe ao redor do globo; se desconsiderarmos o idioma dos personagens, tudo é bastante próximo ao Brasil, principalmente durante o primeiro ato do longa-metragem, que arrasta-se bastante ao apresentar o cotidiano de Farah. Vemos aqui a garota que quer ser musicista, enquanto os pais, preocupados, buscam impor-lhe a carreira de médica. Há um marcante embate de ideais, apresentando jovens "rebeldes" que lutam por seus desejos e maior liberdade pessoal e social. Quanto às denúncias de repressão, o filme está cheio delas. A primeira música da obra, que a intitula, apresenta um parâmetro da desigualdade social e ausência de perspectivas na Tunísia, sendo repetida outras vezes durante o longa-metragem. Toda a musicalidade presente está, inclusive, voltada em torno disso, o que a torna forte e previsível na mesma medida. Há também uma sutil (mas poderosa e necessária) crítica ao machismo presente na liga Árabe, com alusões à representação equívoca da mulher feminista e à violência sexual; um assunto que atinge diretamente Leyla Bouzid, uma mulher que ocupa cargo de destaque atrás das câmeras. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 195
O ritmo narrativo, inicialmente lento, ganha fôlego a partir do segundo ato, onde impõe um conflito que extrai mais das performances da dupla feminina principal (Com Ghalia Benali, a mãe, entregando a atuação mais interessante e convincente). A conclusão da obra, posteriormente, entrega sequências onde há muita sinergia entre as duas. 196 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Assim Que Abro Meus Olhos” é um estudo de personagens com forte retrato temporal, mas que garante identificação e empatia entre o público pela universalidade de suas situações. Se aqui temos a Primavera Árabe no início da atual década, muito recorda-se da Ditadura Militar brasileira dos anos 60-80. É uma representação sólida da juventude e da música, assim como da revolução e, consequentemente, da violência. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 197
Quatro Vidas de Um Cachorro Polêmico, filme permanece no clichê
Lasse Hallström, 2017 Originalmente publicado em 26/01/2017, no portal de cinema Quarto Ato
Animais de estimação são uma forma perfeita de ganhar atenção e atrair público. Com todos os "awn's" que causam nos espectadores e, ocasionalmente, uma lágrima aqui ou ali, eles são os reis da Sessão da Tarde, protagonizando filmes de apelo familiar e sendo tema recorrente em diversas produções. Não é diferente com Quatro Vidas de Um Cachorro ("A Dog's Purpose", 2017), filme de Lasse Hallström ("Chocolate", 2000; "A Cem Passos de Um Sonho", 2014) 198 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
que gerou polêmica após relatos de casos de violência aos animais nos sets de filmagem, denúncia que ganhou a internet pouco antes de sua estreia mundial. Baseado no livro homônimo de W. Bruce Cameron, o longa-metragem é contado sob o ponto de vista de um cachorro (voz de Josh Gad) durante quatro reencarnações em diferentes raças. A proposta é executada de forma distante a discussões fantásticas ou religiosas; não preocupando-se em explicar muito ao público, a principal questão levantada pelo protagonista canino é "qual meu propósito no mundo? Por que estou aqui?", sendo trabalhada de forma cômica ou dramática a partir das famílias em que ele se envolve. Dentre os diversos arcos do filme, o de maior destaque gira em torno do dono Ethan (K. J. Appa/ Dennis Quaid), sendo contado em diferentes faixas etárias. O roteiro da produção é bastante apelativo, caindo em alguns clichês típicos do gênero e muito melodrama arranca-lágrimas. Afinal, o que se esperar de uma história que "mata" quatro protagonistas caninos? Até mesmo seus arcos coadjuvantes envolvem temas já muito explorados, investindo em situações românticas. O aspecto positivo, no entanto, vem com a inserção de alguns temas mais complexos, como alcoolismo, luto e solidão. Ainda que pouco presente, esse desTerceiro Ato Impressões de um rato de cinema 199
“Assim, em todas as minhas vidas como um cão, aqui está o que eu aprendi: Divirta-se, obviamente. Sempre que possível, encontre alguém para salvar, e salve-os” Bailey (Josh Gad)
taque é relevante em uma narrativa destinada ao público familiar. Outro ponto agradável é a representação temporal de cada década retratada em tela, evidenciada por figurinos e ambientação. O desempenho de Josh Gad na dublagem do protagonista em muito lembra sua atuação para o personagem Olaf, da franquia Disney “Frozen – Uma Aventura Congelante” (2013). Percebe-se que ele até tenta distanciar-se um pouco do personagem animado, mas a ingenuidade exigida por ambos os papeis ocasiona em uma semelhança inevitável. Já quanto aos personagens humanos, praticamente todos possuem pouco tempo em tela; Ethan, o mais presente, é interpretado por três atores diferentes. Desta forma, pouco permanece de cada atuação. A fórmula genérica de “Quatro Vidas de Um Cachorro” de fato agrada e funciona, principalmente dentro de sua proposta e público. No entanto, é triste saber que, em uma obra que preocupa-se tanto em representar o companheirismo canino – inclusive vilanizando personagens que os maltratam (sim, existe muito do típico "é só um cachorro"), há certa hipocrisia quando (e se) confrontada com eventos da realidade. No fim, mais uma obra da ganância hollywoodiana, que poderá ser vista em breve na televisão. 200 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
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Cinquenta Tons Mais Escuros Sequência não traz evoluções à saga
James Foley, 2017 Originalmente publicado em 09/02/2017, no portal de cinema Quarto Ato
Christian Grey e Anastasia Steele já deram bastante o que falar. Protagonistas da série de livros "Cinquenta Tons de Cinza", composta por três peculiares obras principais e dois spin-offs, todos da autora (e produtora) E.L. James, os personagens rapidamente tornaram-se ícones da cultura mainstream, aterrissando nas telonas pela primeira vez em 2015, em um longa-metragem duvidoso de Sam Taylor-Johnson ("Nowhere Boy", 2009). Dois anos depois, 202 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
novamente aproveitando o período do Valentine's Day, feriado romântico celebrado em diversos países, a saga continua com "Cinquenta Tons Mais Escuros" ("Fifty Shades Darker", 2017), desta vez sob encargo de James Foley ("A Estranha Perfeita", 2007).
Esta sequência toma lugar poucos passos depois do primeiro "Cinquenta Tons", encerrado previamente em grande cliffhanger narrativo. Tendo isto em vista, Jamie Dornan (dos seriados "The Fall" e "Once Upon a Time") e Dakota Johnson ("Como ser Solteira", 2016) retornam como a dupla principal, seguindo uma trama que pretende explorar mais a relação entre os dois, agora com maior foco no passado de Grey e na dominância feTerceiro Ato Impressões de um rato de cinema 203
minina de Anastasia, e apresentando melhor alguns personagens já citados previamente. No entanto, tal como seu predecessor, "Tons Mais Escuros" não consegue decolar em 118 minutos de filme. Seus personagens problemáticos, os diálogos superficiais e a ausência de um clímax competente o tornam um entretenimento vazio, focado quase sempre nas cenas eróticas pseudo-violentas que glamourizam sadomasoquismo ao som de música pop internacional. É basicamente um grande vídeo de música sensual "ao extremo", com um romance mal elaborado atrapalhando. A praticamente única diferença relevante do longa-metragem está num foco maior em cenas românticas, como a que embala "I Don't Wanna Live Forever", música-tema do filme, interpretada pelos astros Zayn e Taylor Swift, que surpreendentemente não envolve uma sequência de sexo. Mas, ainda assim, nada funciona por muito tempo: os diálogos realmente são vazios para a trama – chegando ao cômico – e as falhas são diversas, como na péssima sequência inicial, que aposta em flashes de um arco não revisitado durante todo o resto do filme e até na execução da música "The Scientist", neste caso a cargo de Corinne Bailey Rae, na tentativa de construir melodrama. É impossível, também, ignorar a ausência de força nos antagonistas interpretados por Kim Basinger ("Dois Caras Legais", 2016; "Los Angeles – Cidade Proibida", 1997) e Eric Johnson ("Valentine Ever After", 2016), cujo tempo em tela de ambos é insuficiente para construir antipatia. Há também uma tentativa de clímax-conflito, cuja resolução ocorre quase tão rápido quanto um estalar de dedos. E Christian Grey, novamente, apresenta-se como um personagem tão problemático quanto confuso e retrógrado, cujo comportamento abusivo tenta ser ofuscado com cenas de Jamie Dornan malhando ou até mesmo numa péssima tentativa de fingir pesadelos. É inegável, apesar de tudo, que "Cinquenta Tons Mais Escuros" e sua saga não tentam voar muito longe, e nem precisam disso para vender ingressos. Talvez seja divertido acompanhar a playlist que o filme é, 204 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
“Eu não quero viver para sempre, pois eu sei que estarei vivendo em vão” Trecho de “I Don't Wanna Live Forever”, tema do filme
ou ver as cenas "quentes" forçadamente sexy com o(a) seu(sua) companheiro(a) amoroso(a). Mas aceitar isto como algo ótimo é vender-se muito fácil à indústria e assumir um nível de artificialidade tão tosco que beira ao irreal romance à palmadas de Grey e Steele. Já fomos mais complexos, e alguns roteiros cinematográficos também. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 205
Moonlight: Sob a Luz do Luar Intenso, poético e importante
Barry Jenkins, 2016 Originalmente publicado em 01/03/2017, no portal de cinema Quarto Ato Vencedor de três Oscar: Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali) e Melhor Roteiro Adaptado
"Importante". Esta é a principal palavra para descrever "Moonlight: Sob a Luz do Luar" (2016), longa-metragem de Barry Jenkins ("Medicine for Melancholy", 2009) agraciado com três Academy Awards (o popular Oscar); entre eles, o de Melhor Filme, em uma reviravolta durante o anúncio que ficará para a história. A vitória, no entanto, não tinha nada de imprevisível: potente, o filme tem tudo o que é necessário para garantir tal honraria. 206 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
Adaptado de "In Moonlight Black Boys Look Blue", peça nunca antes montada do autor Tarrell Alvin McCraney, que também assina o roteiro do filme ao lado de Jenkins, a produção divide-se em três atos para retratar o coming of age de Chiron, um garoto negro da periferia de Miami, cujos problemas vão desde o vício em drogas ilícitas da mãe ao bullying pesado que sofre no colégio e às dificuldades em entender e assumir sua sexualidade. As fases de sua vida – infância, adolescência, adulta – são intituladas por como o personagem se define: "Little", "Chiron" e "Black", respectivamente, e sob a interpretação de Alex Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes. O teor teatral do conteúdo confere ritmo desacelerado às sequências, mas sua complexidade dá espaço à poderosas interpretações do elenco, não desgastando o espectador ao envolvê-lo emocionalmente. Temos aqui situações e personagens verossímeis, reais, importantes em representação. Em razão disto, muito destaque se deve aos coadjuvantes Mahershala Ali (premiado pelo papel) e Naomie Harris por seu desempenho. Ali ("Um Estado de Liberda-
Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 207
de", 2016) vive Juan, traficante de drogas que assume postura de "figura paterna" ao garoto Chiron; Harris ("Nosso Fiel Traidor", 2016), por sua vez, interpreta com maestria a complexa Paula, mãe do garoto, sendo a única atriz a estar presente nos três atos do filme. Janelle Monáe ("Estrelas Além do Tempo", 2016) também rouba todas as cenas em que aparece como Teresa, esposa de Juan.
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A densidade de "Moonlight" se deve aos diversos fatores que o agregam quanto estudo de personagem. A construção de Chiron, seja quanto negro, gay ou indivíduo de baixa origem sócio-econômica, traz à tona um complexo misto de minorias invisibilizadas na sociedade, sendo relevante ao espectador observar as influências disso ao caráter e fisionomia que o protagonista assume em sua fase adulta.
Quanto aos quesitos técnicos, há muito o que se exaltar na fotografia de James Laxton ("Vida de Adulto", 2013), que faz um coerente uso de cores para destacar o psicológico dos personagens, trazendo jus ao título original da obra, surgido em um dos principais diálogos ("À luz dos luar, garotos negros parecem azuis" [ou "tristes", em um trocadilho da língua inglesa]). Há também um destaque sublime à relação entre céu e mar, construindo elementos sutis arquitetados sob importância narrativa; tudo orquestrado pela trilha sonora de Nicholas Britell ("A Grande Aposta", 2015). Um envolvente despertar estético e sensorial. Poético, intenso e crucialmente cheio de voz, "Moonlight: Sob a Luz do Luar" atinge aclamação em sua comovente empatia, trazendo ao público uma história que pode até soar distante para alguns, mas representando uma realidade próxima. Em suma, a obra de Barry Jenkins atinge o que o cinema, quanto arte, faz de melhor: contar bem uma história e, como consequência, nos fazer senti-la. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 209
Power Rangers Adaptação encontra relevância e diverte
Dean Israelite, 2017 Originalmente publicado em 22/03/2017, no portal de cinema Quarto Ato
Se você nasceu nas décadas de 80 ou 90, provavelmente reconhece "Power Rangers" como um elemento relevante da cultura pop. Garantindo alguns minutos em programação matutina da TV aberta, a série se tornou um ícone infanto-juvenil, declinado ao longo dos anos por ausência de fôlego em suas várias temporadas. Eis que, sob a direção de Dean Israelite (cujo longa de estreia é "Projeto Almanaque", de 2015) e a distribuição do estúdio Lionsgate, os he210 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
róis coloridos ganharam nova roupagem para as telonas, destinada à geração que ressoa influências de games e filmes de super-heróis. Seria esta uma decisão errônea, feita sob puro pretexto comercial? Com a nova produção, repleta de tom nostálgico, os realizadores mostram que há, sim, algo de relevante a se (re)apresentar. Com trama "de origem", visto que é um filme para reboot, "Power Rangers" conta como os desajustados jovens Jason (Dacre Montgomery), Kimberly (Naomi Scott), Billy (RJ Cyler), Trini (Becky G) e Zack (Ludi Lin), cada um com o peso de problemas em particular (sendo os da maior parte relacionados à família), tornaram-se, respectivamente, nos poderosos Rangers Vermelho, Rosa, Azul, Amarelo e Preto, protetores da vida no Universo. Desta forma, há um background da origem alienígena de seus poderes, assim como de seu mentor Zordon (Bryan Craston) e da vilã Rita Repulsa (Elizabeth Banks), ambos ex-Rangers. O roteiro de John Gatins ("O Voo", 2012; "Kong: A Ilha da Caveira", 2017), no entanto, deixa muitas pontas soltas (e posteriormente esquecidas) durante toda a produção, o que é inadmissível para um filme de natureza introdutória. Por outro lado, o autor faz um ótimo trabalho em captar referências das versões anteriores de Power Rangers, assim como de outras franquias do gênero ação/herói, como "Transformers" e "Homem-Aranha", dispondo-as de forma humorada, inteligente e nostálgica. E, se há muito reaproveitado do passado, há também uma modernização essencial dos dramas sociais de um típico teen movie, trazendo os primeiros heróis LGBT e com TEA (Transtorno do Espectro Autista), e discutindo sobre amadurecimento, família e até exposição virtual (assunto muito presente em instituições contemporâneas). É este tipo de energia jovem que "Power Rangers" emana em muitas sequências – destaque para as do primeiro ato, que exploram aspectos iniciais da rotina dos protagonistas. A fotografia de Matthew J. Lloyd ("Projeto Almanaque", 2015; série "Demolidor", 2015) e a montagem de Dody Dorn ("Ben-Hur", 2016) e Martin Bernfeld Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 211
("Projeto Almanaque", 2015) trabalham muito bem em transmitir essa jovialidade, com planos de movimento cheios de dinamicidade técnica e empolgação. A música, explorando o caráter inverso do filme, constituído por referências temporais, se utiliza de hits não tão recentes para atingir o público não tão jovem; a computação gráfica, por sua vez, encontra momentos bons, mas não chega a ser um ponto positivo de destaque, decepcionando em cenas de batalha. O elenco é muitíssimo carismático. O quinteto-título é constituído por atores creditados em poucas produções (sendo Becky G, talvez, a mais conhecida, por seu trabalho na música), e que entregam perfor-
“Quando tudo isso tiver acabado… nós seremos Power Rangers ou nós seremos amigos?” Trini (Becky G)
mances por vezes superficiais e exageradas, mas com alguns aspectos positivos, explorando efetivamente aquilo que torna seus personagens diferentes, queridos e relacionáveis com o público. Quanto aos coadjuvantes, Bryan Craston e Bill Hader (como o robô Alpha 5) não entregam nenhum brilho, mas Elizabeth Banks acerta muito em sua Rita Repulsa, não sendo tão caricatural quanto inicialmente parece. O novo "Power Rangers" está cheio de falhas em sua narrativa, que não é das mais fortes. Porém, consegue mostrar o porquê de ser uma adaptação relevante e necessária, apresentando um discurso moderno ao público, trazendo inclusão (dentre os cinco Rangers, temos quatro etnias diferentes e três representantes de minorias 212 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
sociais) e persistindo em uma importante mensagem de empatia e sensibilidade ao próximo. Isto sob um viés de entretenimento que mistura bem ação, humor e nostalgia. Em suma, atenção do espectador a este reboot é válida, assim como um futuro investimento em suas sequências. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 213
A Bela e a Fera Adaptação encontra relevância e diverte
Bill Condon, 2017 Originalmente publicado em 17/03/2017, no portal cultural It Pop
"Tudo é igual, nessa minha aldeia...". Se reconhece este trecho, e até mesmo sabe continuá-lo, certamente ficará feliz com o resultado de "A Bela e a Fera" (2017), live action da Disney para a animação clássica de 1991, que é um dos maiores sucessos do estúdio e foi o primeiro filme do gênero a ser indicado ao Oscar de Melhor Filme (categoria com apenas cinco indicados, na época), conquistando duas estatuetas douradas para a casa do Mickey – e posteriormente 214 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
trilhando caminho à Broadway, com o nascimento de uma divisão da empresa destinada estritamente ao teatro. Nesta adaptação, dirigida por Bill Condon ("Dreamgirls", 2006; "Saga Crepúsculo: Amanhecer", 2011 e 2012) e roteirizada por Stephen Chbosky ("As Vantagens de Ser Invisível", 2012) e Evan Spiliotopoulos ("O Caçador e a Rainha de Gelo", 2016), a Disney Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 215
busca reapresentar sua produção animada ao público (e à bilheteria), como fez com "Mogli: O Menino Lobo" (2016), "Cinderela" (2015) e "Malévola" (2014). Seguindo os passos dos dois mais recentes, "A Bela e a Fera" apresenta conteúdo adicional àquilo que foi visto no longa animado, mas mantêm-se fidedigno à produção original. Esta decisão do estúdio de manter-se seguro pode incomodar a um público sedento por reviravoltas, mas agrada aos fãs mais puristas, que de fato constroem o arrecadamento financeiro do filme. Com Emma Watson (marcada por interpretar Hermione na saga "Harry Potter" [2001-2011]) no papel de Bela (oscilando entre 216 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
ótima, nas sequências mais dinâmicas e de cunho emocional, e apática, nas demais) e Dan Stevens (das séries de TV "Downton Abbey” e "Legion") como Fera, a nova versão consegue construir um romance crível entre o duo protagonista, mas se destaca mesmo com a performance e o espaço dado a seus coadjuvantes; Luke Evans e Josh Gad, ambos com background forte no teatro musical, brilham como Gaston e Le Fou, respectivamente, e a constelação de atores por trás dos objetos mágicos (entre eles, Ewan McGregor, Emma Thompson, Ian McKellen, Audra McDonald, Stanley Tucci e Gugu Mbatha-Raw) atinge o carisma necessário a estes personagens. Terceiro Ato Impressões de um rato de cinema 217
É nos quesitos técnicos que a produção encontra seus maiores prós e contras: a trilha, novamente conduzida por Alan Menken, emociona; as novas canções, em especial "How Does a Moment Last Forever", "Days in the Sun" e "Evermore", arrepiam e são dignas das grandes premiações; o design de produção é belo e preciso; o figurino obedece (em sua maior parte) ao contexto histórico (fator ignorado na animação) e a maquiagem funciona nas situações em que faz-se necessária. Em contraponto, a montagem é terrível; entrega um problema de ritmo forte no primeiro ato, em que algumas cenas são "apressadas" com cortes pontuais na conclusão de diálogos e outras são "estendidas" e demoram mais do que o necessário. Há também problemas em manter a fluidez narrativa, com sequências editadas para uma organização episódica. O CGI, por sua vez, é suntuoso em certos momentos, mas falha de forma frustrante em relação ao visual da Fera, por vezes semelhante à computação amadora. A direção de Bill Condon é bastante dúbia: falha em diálogos-chave, em que o desempenho dos protagonistas não está ao máximo, mas acerta precisamente no teor teatral dos números musicais – o ápice de todo o filme, com "Belle", "Gaston" e "Be Our Guest" figurando entre as melhores cenas. Quanto ao conteúdo inédito, apesar de ser relativamente pouco (em seus 45 minutos), consegue ser necessário, entreter e funcionar. A cena da transformação final, por exemplo, encontra uma interessante participação dos objetos mágicos, no intuito de reavivar o aspecto comovente que a consiste. E, em relação à representatividade, a Disney (uma empresa em prol da diversidade) dá pequenos (e importantes) passos que contestam ideais retrógrados, trazendo dois personagens LGBT (que, ao contrário do esperado, não recaem com força em estereótipos) e casais interraciais. "A Bela e a Fera" é um blockbuster dentre os melhores do estúdio, que apesar dos defeitos, agrada em quesitos gerais, sendo uma obra que atende às expectativas dos fãs e funciona no que propõe. Pode não soar tão encantador aos exigentes por inovação, mas consolida-se como uma boa obra de entretenimento, que reconhece seu público e o delicia com pompa visual e prazer nostálgico. 218 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
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Sugestões de leitura
1001 Filmes para Ver antes de Morrer, Steven Schneider (Sextante, 2003 - atualizado anualmente) O Clube do Filme, David Gilmour (Intrínseca, 2007) Como Ver um Filme, Ana Maria Bahiana (Nova Fronteira, 2012) Cultura da convergência, Henry Jenkins (Aleph, 2006) O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência, Ismail Xavier (Paz e Terra, 2008) Hitchcock/ Truffaut – Entrevistas, François Truffaut (Companhia das Letras, 2004) Introdução ao Jornalismo, Fraser Bond (Agir, 1962) Jornalismo Cultural, Daniel Piza (Contexto, 2003) Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro, José Marques de Melo (Mantiqueira, 2003) Lendo as Imagens do Cinema, Laurent Jullier e Michel Marie (Senac São Paulo, 2009)
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A Linguagem do Cinema (Coleção Fundamentos de Cinema); Robert Edgar-Hunt, John Marland e Steven Rawle (Bookman, 2013) A Linguagem Secreta do Cinema, Jean-Claude Carrière (Nova Fronteira, 2015) O Livro do Cinema, Vários Autores (Globo, 2016) Making meaning: inference and rhetoric in the interpretation of cinema, David Bordwell (Harvard University Press, 1991) Revolução do Cinema Novo, Glauber Rocha (Cosac Naify, 2004) Resenã Periodística, Todd Hunt (Editores Associados, 1974) O Século do Cinema, Glauber Rocha (Cosac Naify, 2006) Tudo Sobre Cinema, Christopher Frayling (Sextante, 2011)
Créditos Finais Impressões de um rato de cinema 223
Pesquisas acadêmicas
A Crítica de Cinema e os Espaços Virtuais da Crítica: o caso do “Quarto Ato”, Thomas Pacheco de Araujo (Monografia [Especialização] - Curso de Comunicação Social - Jornalismo, Universidade de Fortaleza, 2016). A crítica jornalística de cinema na internet: um dispositivo em transformação, Carolina Braga (Tese [Doutorado] - Curso de Jornalismo, Universidade Federal de Minas Gerais/Universidad Autónoma de Barcelona, 2013) Crítica de cinema: história e influência sobre o leitor, Regina Gomes (Revista Crítica Cultural, volume 1, número 2, jul./dez. 2006) Jornalismo e Cultura: Uma análise da reportagem especial “entrei na história” do caderno Vida & Arte, Maria Navarro Oliveira Neta (Monografia [Especialização] - Curso de Comunicação Social Jornalismo, Universidade de Fortaleza, 2016). Presente e futuro da crítica de cinema brasileira: A opinião de quem faz, Marco Amorim Prates (Monografia [Especialização] - Curso de Comunicação Social - Jornalismo, Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, 2009) Redefinindo os gêneros jornalísticos. Proposta de novos critérios de classificação, Lia Seixas (Covilha: Labcom Books [UBI], 2009). 224 Impressões de um rato de cinema Gustavo Nery
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