Ser chef é cargo, não profissão

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Ser chef é cargo, não profissão Texto Renata do Amaral Foto Chico ludermir

Aos 85 anos, o sushiman Jiro Ono segue a mesma rotina todos os dias: acorda cedo, pega o metrô e segue para seu restaurante Sukiyabashi Jiro, localizado no subsolo de um prédio comercial em Tóquio. Detesta feriados, pois trabalhar é seu maior prazer. Diante do pequeno balcão de 10 lugares, o homem simples dá lugar ao shokunin, palavra japonesa para o artesão que burila seu ofício em busca de uma perfeição inalcançável. “O costume dos shonukin é repetir a mesma coisa todos os dias. Eles gostam de trabalhar. Não estão tentando ser especiais”, explica um aprendiz que trabalhou para Jiro até o mestre completar 60 anos e que agora toca seu próprio restaurante. Outro aprendiz, Nakazawa, fez mais de 200 sushis de ovo que foram rejeitados e chorou de felicidade quando Jiro finalmente aprovou sua execução. “Foi muito tempo antes de Jiro se referir a mim como shokunin. Eu queria gritar: ‘Você me chamou de shokunin, não foi?’ Fiquei tão feliz, que queria pular! Mas tentei não demonstrar. É por isso que

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lutamos todos estes anos”, conta. O episódio está no documentário Jiro dreams of sushi, filme dirigido por David Gelb em 2011, que deveria ser obrigatório para amantes da cozinha, cinéfilos e, principalmente, aspirantes a chef. O título é literal: Jiro informa que tem visões de sushi nos sonhos e acorda no meio da noite com novas ideias. Como isso é possível com um prato tão tradicional e consolidado? “Tudo no sushi é simples. Completamente minimalista. Os maiores chefs do mundo comeram no Jiro e disseram: ‘Como uma coisa tão simples tem um sabor tão complexo?’ Se você fosse sintetizar o sushi de Jiro numa frase, seria: ‘A simplicidade leva à pureza’”, explica o crítico Yamamoto, que jura que comeu em todos os restaurantes da capital japonesa e confessa que ficou nervoso ao ir ao Sukiyabashi Jiro pela primeira vez (e, de quebra, em todas as outras). A degustação no restaurante é composta por 20 peças e custa 30 mil ienes, equivalentes a R$ 780. Como não há


entrada nem sobremesa (apenas uma fatia de melão como doce concessão), muito menos espaço para conversa, a refeição dura entre 15 e 20 minutos, o que faz dela a mais cara do mundo. Mesmo com todas essas peculiaridades, Jiro ganhou três estrelas no Guia Michelin, o que indica que vale a pena viajar ao país apenas para visitar a casa. “Quando Jiro ganhou as três estrelas, todos ficaram surpresos. Só há 10 cadeiras no local! O banheiro fica fora do recinto. Não há outro três estrelas como este”, espanta-se Yamamoto, que serve como guia no filme. As imagens, porém, não deixam nenhuma dúvida no espectador quanto ao merecimento: se existe mesmo essa tal de food porn, seu exemplo mais bem-acabado está ali. A expressão, criada para designar imagens suculentas de comida feita para encantar, é perfeita para definir o que se vê na tela. Em câmera lenta e closes quase indecentes, embalados pela música de Philip Glass, o sushi vira fetiche. Ao contrário da propaganda enganosa de um sanduíche Big Mac, porém, a nudez da iguaria entrega o que promete. Não é fácil ser aprendiz no Sukiyabashi – um dos que passaram por lá só aguentou um dia e nunca mais deu as caras. “Quando você trabalha com Jiro, ele te ensina de graça. Mas você tem que aguentar 10 anos de treinamento. Se perseverar por 10 anos, você terá conhecimento suficiente para ser um chef aprendiz”, afirma Yamamoto. A primeira tarefa dolorosa é torcer a toalha quente oferecida aos clientes para higiene das mãos. Só depois se aprende a preparar o peixe. O último passo, depois de 10 anos, é o sushi de ovo, aquele que trouxe lágrimas aos olhos do aprendiz. Massagear um polvo por 40 a 50 minutos, para conferir uma textura macia à carne, é outra atribuição. O treinamento foi mais duro ainda com os próprios filhos, confessa Jiro, para que eles pudessem andar com as próprias pernas. “Alguns dos clientes dizem que ficam nervosos comendo no restaurante do meu pai. Dizem que eu sirvo o mesmo sushi num ambiente mais relaxado. É por isso que eles gostam de

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vir aqui”, diz Takashi, filho mais novo de Jiro, que trabalha no Rippongi, restaurante simétrico ao Sukiyabashi. Sobre as costas do seu irmão mais velho, Yoshikazu, 50 anos, recai a responsabilidade de suceder o pai. Trabalha com ele desde os 19. À procura do umami – A seletividade passa pelos ingredientes, escolhidos em compras diárias. Jiro ia ao mercado pessoalmente até os 70 anos, quando teve um ataque cardíaco e foi substituído por Yoshikazu na tarefa. Os fornecedores são fixos e reconhecidos como os melhores. O comprador de atum, por exemplo, escolhe o peixe pelo tato, com um método pouco ortodoxo, em um leilão que mais parece pregão da Bolsa de Valores. O vendedor de arroz, por sua vez, conta que só vende determinado tipo do insumo para Jiro. Segundo ele, outras pessoas não saberiam prepará-lo mesmo, então qual a lógica de vendê-lo? A busca pela perfeição se dá em equipe. “Um verdadeiro shokunin pega somente os melhores peixes para aplicar suas técnicas. Não nos importamos com dinheiro. Meu empenho é fazer o melhor sushi”, diz Jiro. “Mesmo com minha idade, tenho descoberto novas técnicas. Mas quando você acha que já sabe tudo, você descobre que está redondamente enganado e fica deprimido”, brinca o vendedor do peixe halibute. O objetivo final é encontrar o umami, conhecido como quinto sabor (além do doce, salgado, azedo e amargo), caracterizado pelo equilíbrio no gosto. O menu do dia, como um concerto, segue uma sequência: primeiro vêm os peixes clássicos, como atum e sardinha; em seguida, é o momento do improviso, com os peixes do dia; por fim, chegam à mesa os sushis de enguia e ovo. Todos são comidos com a mão, sem molho de soja e com wasabi entre o peixe e o arroz, já na quantidade adequada. As peças têm tamanhos diferentes para homens e mulheres a fim de evitar que um acabe a refeição antes do outro. Aposentadoria não está nos planos do sushiman, que confessa que era péssimo aluno na escola, mas preferiu deixar essa informação de fora quando foi dar uma palestra para crianças. Jiro entende que sua fama leva as pessoas ao restaurante, mas considera que 95% do mérito é da equipe. “Mesmo com a minha idade, depois de décadas de trabalho, não acho que tenha chegado próximo da perfeição. Mas me sinto extasiado todos os dias.” Cargo: chef – O que Jiro Ono tem a ensinar para quem quer entrar no ofício? Em primeiro lugar, humildade. A chef carioca Roberta Sudbrack dá a dica em seu blog: “Não escreva no campo profissão do seu currículo: chef de cozinha. A não

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ser que você esteja exercendo esse cargo em alguma cozinha. Mas, se estivesse, por que estaria enviando currículos? Nós somos cozinheiros! Ninguém sai da faculdade, por mais que erroneamente esteja escrito no diploma, com esse título. Isso é um cargo, não é uma profissão!”. Quem se forma em gastronomia é o quê? Ora, gastronômo, assim como quem estuda astronomia é astrônomo. A confusão tem a ver com a moda da gastronomia, que pode ser resumida na explosão do número de graduações na área e na abordagem midiática do tema, em que alguns chefs são tratados como celebridade. “No caso daqueles que vêm das escolas, muitos focalizam a profissão a partir de chefs que têm projeção, que sabem realizar seu marketing pessoal, e acabam dando mais importância ao glamour, ao estrelismo do momento, esquecendo as dificuldades do dia a dia da brigada”, conta Laurent Suaudeau no livro Cartas a um jovem chef: caminhos no mundo da cozinha. O chef francês foi responsável, junto com Claude Troisgros, pela chegada da alta gastronomia no Brasil na década de 1980 – aos 24 anos, virou subchef no Saint Honoré em Copacabana, com cardápio de Paul Bocuse. Sua experiência mostra que a disciplina oriental de Jiro também aparece em outras cozinhas pelo mundo. Quando foi trabalhar

no L’Auberge de L’lle, restaurante de Bocuse, em 1977, viu aprendizes cortando a mão de propósito para serem dispensados. “Sempre digo que fiz serviço militar com Bocuse, não na Base Aérea de Dijon”, recorda. “Um aprendiz teve uma crise de choro e ficou no chão, chamando a mãe dele. Hoje, como chef, sou favorável à disciplina.” Também francês, Daniel Boulud trabalha em Nova Iorque no restaurante que leva seu nome – três estrelas no Guia Michelin – e escreveu Conselhos a um jovem chef. Para ele, apenas depois de 10 a 15 anos, o aprendiz pode conseguir virar chef. “Todo mundo pensa que nós, os chefs importantes, somos mágicos, que botamos a mão em cada prato que sai da cozinha. Isso é fazer confusão entre a orquestra e o maestro.” No Brasil, segundo Laurent, é comum que jovens de classe média se espantem por ter que limpar sua praça, por exemplo. “Atualmente, encontramos na cozinha chefs de todo tipo. Para alguns, o mais importante é o sucesso. Na verdade, a meu ver, o cozinheiro precisa ter em mente que a tarefa mais importante de sua profissão é alimentar os outros.” Sem essa força motriz, não dá nem para começar.

Renata do Amaral é jornalista, professora e doutoranda em Comunicação

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