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4 HISTÓRIAS ORAIS E ESCRITAS
4 HISTÓRIAS ORAIS E ESCRITAS
Ao pensar em audiobook ou um conto sonoro, é muito comum pensar no papel primordial que a voz tem ao se contar uma história, na verdade, o elo entre voz e história é muito antigo. Antes do surgimento da escrita, o ser humano já criava, contava e recontava histórias, histórias que eram transmitidas oralmente, de geração em geração. Dessa forma foram transmitidas as fábulas, o folclore e até os contos de fadas, todos propagados pela voz antes da documentação escrita.
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A contação de histórias começa com nossos ancestrais, posicionados em torno de uma fogueira, dispostos a ouvir e a contar histórias, a compartilhar seus feitos, aventuras, desventuras, a explicar sobre o surgimento do mundo como nos mitos e lendas, a se ilustrar um preceito como nas fábulas ou a se transmitir histórias que perpassam o profano e o sagrado que explicitam o duelo entre o bem e o mal como nos contos de fada ou contos maravilhosos. (SILVA, 2011. p. 9)
Segundo Merege (2019) anteriormente ao advento da escrita, só existia uma maneira de preservar histórias, contos, canções, etc: seria pela memória. E ainda, a única maneira de transmiti-las era oralmente. A autora ainda afirma que os poemas (que eram inclusive, segundo ela, extensos e extremamente elaborados), asseguraram sua preservação, por meio da oralidade, antes de serem documentados, e, as histórias e poemas ao longo de suas transmissões para outras gerações, foram recontados. Ainda segundo Merege (2019) existiam em várias culturas pessoas que eram preparadas para manter tais histórias e ensinamentos vivos, transmitindo assim para futuras gerações. Como as histórias eram transmitidas oralmente, é comum que algumas delas apresentem finais diferentes, ou mesmo tenham alguns detalhes diferentes no meio da história. Isto porque cada pessoa ia comunicando a história, mito, conto ou canto e a pessoa que escutava a recontava, podendo assim a história em específico sofrer algum tipo de mudança.
Por entender que a narrativa é oriunda do meio de artesão - no mar, no campo e na cidade, onde quem fiava ou tecia contava histórias que se entrelaçavam com as histórias dos ouvintes que, por sua vez, também teciam ou fiavam, formando uma rede há milênios tecida em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (BEDRAN, 2012 apud BENJAMIN,1994 p.203.)
Desta forma é possível notar que várias histórias foram propagadas pela oralidade - como os mitos, nas mais diversas mitologias - que posteriormente foram documentados - que tentavam explicar a origem da humanidade e de diversos fenômenos, histórias também com o intuito de trazer algum ensinamento ou moral para o ser humano e até mesmo histórias que compuseram o folclore local de diversas regiões e dessa forma compõem a identidade cultural de povos e nações. Um exemplo disso são os contos de fadas, transmitidos oralmente no continente europeu e posteriormente documentados por meio da escrita. Tais contos geralmente apresentam algum aspecto da natureza humana ou dos perigos que podem assolar qualquer pessoa.Sobre os contos de fadas, no livro Fadas no Divã: Psicanálise nas Histórias infantis podemos entender um pouco da abordagem dessas narrativas:
A função das narrativas maravilhosas da tradição oral poderia ser apenas a de ajudar os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas noites de inverno. Sua matéria? Os perigos do mundo, a crueldade, a morte, a fome, a violência dos homens e da natureza. Os contos populares pré-modernos talvez fizessem pouco mais do que nomear os medos presentes no coração de todos, adultos e crianças, que se reuniam em volta do fogo enquanto os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia e a fome era um espectro capaz de ceifar a vida dos mais frágeis, mês a mês. (KEHL, 2006 p.14)
Os contos de fadas, originalmente, quando passados apenas por meio de oralidade, apresentavam um caráter diferente, diz KEHL (2006, p.14), utilizando como exemplo o conto original de Chapeuzinho Vermelho “Não existe um final feliz, nem uma moral da história (...)”. Ainda continuando sobre o conteúdo dos contos de fadas no original: “ (...) não apresentavam a riqueza simbólica que faz dos contos de fadas um depositário de significações inconscientes aberto à interpretação psicanalítica. Na verdade, eles nem eram destinados especificamente às crianças, nem parecem aliados a uma pedagogia iluminista.” Essas histórias passam a ser modificadas após sua documentação: “(...) a partir das adaptações feitas no século XIX, passaram a integrar a rica mitologia universal” (KEHL, 2006. p.14). Após essa
mudanças (por conta do contexto da época, como por exemplo, surgimento do contexto de infância, entre outros) as histórias passaram a ter as características que temos hoje e também a ser mais destinada ao público infantil. Mesmo após a documentação pela escrita desses contos, e suas respectivas modificações, estes não perderam seu contato com a oralidade, visto que o contato com tais histórias se inicia pela infância, geralmente contada vocalmente por um membro da família.
É provável que as técnicas de transmissão oral, que na falta de imagens visuais apelam ao poder imaginativo dos pequenos ouvintes, sejam até hoje capazes de conectar as crianças ao elemento maravilhoso e à multiplicidade de sentidos que caracterizam o mito em todas as culturas e em todas as épocas, formando, na expressão dos autores, um “acervo comum de histórias” através do qual a humanidade reconhece a si mesma. (KEHL, 2013, p.14 e 15)
Merege (2019) destaca em seu livro a imagem da “avó narradora” (palavras da autora), estabelecendo um paralelo entre a mulher e a narração de tais contos, visto que por conta de uma herança milenar, a figura da mulher por estar relacionada outrora ao lar, com as crianças (sejam no caso de uma mãe, seus filhos, e no caso de uma avó, seus netos), acabam, segundo Merege detentoras do sabor e da memória da família, de sua cultura e da tradição popular do meio na qual é inserida, dessa forma, ressalta afirma a autora que estas mulheres continuariam a transmitir esse saber (histórias, memórias de sua família e do meio cultural, que elas estão inseridas, histórias populares) mesmo com a existência de uma sociedade ou mundo mais letrado. Contudo, mesmo após o surgimento e difusão dos livros, as histórias não perderam seu elo com a voz. É possível afirmar que a literatura outrora esteve muito conectada com a parte vocal do ser humano, esta conexão inclusive durou por muitos anos. Essa relação (entre voz e literatura) se inicia na Idade Média onde a leitura era comumente feita em voz alta, houve continuidade nessa relação que se estendeu por vários períodos como por exemplo, na Idade Moderna. No século 19 era muito comum a leitura em voz alta de vários textos, tais quais: livros, poesias e também cartas. Esse costume foi se perdendo com o tempo, devido também ao avanço dos processos de alfabetização. No entanto, algumas famílias mantiveram o hábito de ler para as crianças, geralmente pela noite, histórias para dormir. (PALETTA; WATANABE; PENILHA, 2008 apud BORCHARDT, 2008).