Revista Código #8 - Dez/2019

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

NÚMERO 8 | ANO 6 | NOVEMBRO 2019

O PAPEL DO JORNALISMO Ao contar as histórias do cotidiano, os jornalistas são os profissionais responsáveis por construir sentidos para o momento vivido. Nesta edição, revisitamos velhas reportagens e percebemos sua importância na elaboração da história e na memória que carregamos sobre os fatos. Uma ponte entre passado e futuro, com a possibilidade de refletir sobre a tarefa do ofício jornalístico no presente.

O BOM JORNALISMO QUE ATRAVESSA A FRONTEIRA DO TEMPO

MERCADO PROFISSIONAL E PERSPECTIVAS PARA UM MUNDO 100% CONECTADO


SELE 2 0 2 0 TIVO cruzeirodosul.edu.br

PROCESSO

CURSOS PRESENCIAIS, SEMIPRESENCIAIS E A D I S TÂ N C I A .


O Brasil precisa

Reitor Prof. Dr. Luiz Henrique Amaral

Pró-Reitora de Graduação e Extensão Profa. Dra. Amelia Maria Jarmendia Soares

Pró-Reitora de pós-graduação e pesquisa Profa. Dra. Tania Cristina Pithon-Curi

Pró-Reitor de Educação a distância Prof. Dr. Carlos Fernando de Araujo Jr.

Revista Código

ISSN: 2317-9392 Tiragem: 200 exemplares

coordenador do curso de jornalismo Prof. Me. Antonio Lucio R. Assiz

Editora e jornalista responsável Profª Dra. Mirian Meliani Nunes MTb 23761/SP

coordenaÇÃO EDITORIAL Prof. Me. Luiz Vicente de L. Lazaro

Professores orientadores

Antonio Assiz, Flávia Delgado, Krishna Tavares, Luiz Lázaro e Rosângela Paulino

Diagramação Alunos do curso de Jornalismo

REVISÃO Alunos do curso de Jornalismo

foto de Capa iStock

Impressão Forma Certa

(11) 2081-6000

Núcleo de comunicação/liberdade R. Galvão Bueno, 868 – Liberdade São Paulo - SP, 01506-000 (11) 3385-3000

Núcleo de comunicação/SÃO MIGUEL

do nosso jornalismo

N

o período de dois séculos em que o Jornalismo moderno se posicionou na sociedade, passamos por muitos desafios, confrontos e algumas acomodações, mas nada se compara ao que ocorre atualmente no mundo e, especialmente, no Brasil. Buscar a verdade tem sido um difícil e perigoso caminho seguido por profissionais em coberturas que vão desde pautas do cotidiano até importantes investigações na política, educação, economia, meio ambiente ou segurança pública. Os constantes ataques sofridos por jornalistas não são problema menor, pois violam o direito da sociedade à informação e, consequentemente, a democracia. Sem o acesso à verdade, o que nos espera é a barbárie, a mentira e a violência. O ambiente de desinformação atinge até mesmo a saúde pública e a ciência, doenças se fortalecem, pessoas fragilizadas são as mais atingidas e o desconhecimento retroalimenta a roda do mal. Mas há luz no fim do túnel, ou melhor, da caverna. Platão (IV aC) explicou como é fundamental insistir rumo à luz. Mas, para isso, é necessário ousar não aceitar a escuridão. Ao percorrer acontecimentos recentes e revelar a atuação dos jornalistas, os alunos refazem um percurso muito útil para jogar luz nas práticas e na teoria do jornalismo brasileiro, trajetória fundamental para combater as mentiras e distorções a serviço da escuridão. A visita a grandes reportagens, a análise dos impactos da cobertura de tragédias sociais e o registro de novas funções no jornalismo, presentes nesta publicação, constituem uma importante contribuição para iluminar o jornalismo e nossa sociedade. Como última reflexão, vale pensar sobre o novo e o velho. Se, por um lado, as tecnologias digitais desafiam todos a repensar os modos de produção, os relacionamentos, a educação e a cultura, por outro, para decifrar tudo isso, é preciso resgatar os princípios que nortearam a origem do jornalismo. Um bom caminho é olhar simultaneamente para passado e futuro, percebendo os sentidos profundos do serviço público prestado pelo profissional do jornalismo e o modo como ele deve reassumir essa responsabilidade nos tempos atuais. A prática fundamentada na busca da verdade é, em essência, a origem da linguagem jornalística. Precisamos do jornalismo para a sociedade civilizada e democrática, disso não abrimos mão.

Prof. ME. ANTONIO lucio r. ASSIZ

R. Parioto, 350 – Vila Jacuí São Paulo - SP, 08060-030 (11) 2037-5706 http://www.cruzeirodosul.edu.br É permitida a reprodução do conteúdo aqui publicado, que citada a fonte e os autores. Novembro desde de 2019

Acesse os projetos do curso de Jornalismo 3


Nesta edição

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06 A MAIOR DOAÇÃO DOS JORNALISTAS Você conhece o jornalismo voluntário? Jornalistas do SBT e da TV Cultura dedicam-se anualmente ao voluntariado participando no Teleton, projeto da AACD.

10 QUANDO A COBERTURA JORNALÍSTICA ULTRAPASSA O LIMITE DA NOTÍCIA O jornalismo não está livre de erros. Conheça alguns casos em que a atuação dos jornalistas afetou a sociedade e a própria profissão.

14 FAMOSOS NA MIRA: A DENÚNCIA É O FIM DO ASSÉDIO? Famosos de dentro e fora do país têm sido acusados de assédio. Seria a denúncia uma forma de colocar um ponto final nesse problema que afeta a sociedade?

18 PERIFERIA ALÉM DO RETRATO POLICIAL A periferia além da criminalidade. Por que restringir a cultura pode prejudicar as comunidades da cidade de São Paulo?

22 A DITADURA NO BRASIL E OS VESTÍGIOS DO GOLPE Vivemos em uma democracia. Essa liberdade, no entanto, parece por vezes ameaçada por ecos de um passado de opressão e censura. 4

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26 ELOÁ PIMENTEL: A ESPETACULARIZAÇÃO DE UM CRIME Um crime que abalou o Brasil: o caso Eloá Pimentel e a influência negativa da mídia no sequestro, que durou mais de cem horas e teve um fim trágico.

30 JORNALISTAS ESPORTIVAS CONTRA O MACHISMO Jornalistas esportivas lutam para vencer o preconceito dentro do ambiente de trabalho. Entenda o impacto causado pela campanha #DeixaElaTrabalhar.

34 PANORAMA DA VIOLÊNCIA NAS PERIFERIAS DA ZONA LESTE DE SÃO PAULO Propostas de projetos culturais são apontadas como um dos caminhos para diminuir o alto índice de violência na zona leste da cidade de São Paulo.

38 AS BODAS DE UMA PATOTA DUCA Uma revisita ao icônico jornal carioca “O Pasquim”, que evoca a essência do mais alternativo e debochado veículo da história do jornalismo brasileiro.

42 A MULHER BRASILEIRA HOJE A revista Realidade trouxe, em 1967, um especial sobre as mulheres. O que mudou? Comemore as conquistas e ajude a lutar por mais direitos. Revista Código | Cruzeiro do Sul


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45 O ERRO DE RICARDO E VÂNIA Ricardo, o “Fofão da Augusta”, viveu e sofreu pela falta de informação e as duras consequências do uso do silicone industrial.

48 PRÓXIMA ESTAÇÃO, CARANDIRU De presídio modelo a cenário de uma tragédia. Conheça como era a vida dos detentos no maior presídio do país, quase 30 anos após o massacre.

52 DANIELA ARBEX: A DAMA DO LIVROREPORTAGEM BRASILEIRO Daniela Arbex fala dos desafios de escrever um livroreportagem, gênero que ganhou destaque no país.

56 FERNANDO JORGE: UM CONTADOR DE HISTÓRIAS Um perfil de Fernando Jorge. Conheça as histórias do jornalista e escritor que não tem medo de dizer a verdade e o que pensa.

60 CÉSIO-137: ACIDENTE RADIOATIVO COMPLETA TRÊS DÉCADAS

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72 MÁFIA DO APITO: FRAUDE DENTRO DO CAMPO Um panorama da manipulação de resultados no Campeonato Brasileiro de Futebol.

74 PRÊMIO PETROBRAS PROMOVE DISCUSSÃO SOBRE A DEPRESSÃO Série de reportagens sobre depressão, produzida pela Band News FM, foi a grande vencedora do prêmio Petrobras de jornalismo de 2018.

77 FORMAÇÃO E CARREIRA: OS DESAVIOS DO MERCADO Jornalistas se deparam com um mercado saturado, novas formas de comunicação e inovação constante. Onde estão as oportunidades de trabalho?

80 PROFISSÕES ENTRELAÇADAS A história de personagens que entraram na área da comunicação motivados por suas maiores paixões.

84 JORNALISMO E NOVOS CAMINHOS

Em 1987, aconteceu o grave acidente com o Césio-137 em Goiânia/GO. Conheça a tragédia que tirou vidas e afetou milhares de pessoas.

Com o mercado instável, jornalistas contam histórias de como aplicam seus conhecimentos longe das redações.

68 TIM LOPES: A VOZ QUE NÃO SE CALA

Do mercado de trabalho à universidade, professores e alunos dialogam sobre suas experiências, ensinando e aprendendo jornalismo.

O legado deixado pelo jornalista após sua morte trágica e a segurança no jornalismo investigativo. Novembro de 2019

88 JORNALISMO E NOVOS CAMINHOS

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Jornalismo e Sociedade

A maior doação

dos jornalistas Por Raíssa Correia e Thainná Bastos

Divulgação AACD

O Teleton incentiva o voluntariado e ajuda milhares de pacientes diariamente nos hospitais da AACD em quatro estados do Brasil, oferecendo diversos tipos de tratamentos gratuitos com profissionais renomados

O

s projetos sociais causam grande impacto na vida dos envolvidos, tanto para quem é ajudado, quanto para quem é voluntário. É comum ouvirmos que o ato de fazer o bem satisfaz mais do que recebê-lo. Uma pesquisa divulgada no último ano revela que o trabalho voluntário cresceu 12,9%, de 2016 para 2017. Segundo a pesquisa Outras Formas de Trabalho 2017, do IBGE, 7,4 milhões de pessoas praticam trabalho voluntário no Brasil. Para quem não tem tempo, o voluntariado corporativo é uma boa alternativa. São ações de uma empresa empenhada em apoiar e incentivar seus funcionários a participarem de programas solidários, mas pode ser muito mais 6

A hidroterapia utiliza as propriedades da água para a prevenção e tratamento de doenças. que isso. Uma das áreas que atuam proativamente é o Jornalismo, que além de contar com sua grande influência na mídia para ajudar os que mais necessitam, também dedica seu tempo para ajudar causas sociais.

O Jornalismo Voluntário é uma das formas que os jornalistas encontram de se aproximar ainda mais da sociedade, participando de ações voluntárias que os colocam em contato direto com as pessoas. Um dos maiores exemplos é Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

apareceram para a Instituição. As metas foram sempre atingidas e, com as novas unidades abertas, as despesas aumentaram como consequência do grande número de pacientes. Então, não bastava apenas construir novas unidades, era preciso manter o padrão de qualidade dos atendimentos prestados em todas elas. No ano de 2012, as metas foram surpreendentemente superadas. Após a morte de uma das idealizadoras do Teleton, Hebe Camargo, houve uma comoção tão grande que o valor das doações foi muito maior do que a meta estabelecida. No ano seguinte, para chegar ao valor da meta, começaram a calcular o quanto a AACD precisa de doações durante um ano inteiro. Além da maratona televisiva, a AACD tem outras fontes de captação de recursos como os mantenedores dos bazares, jantares beneficentes e ainda a realiza durante o ano várias ações específicas que ajudam a pagar as contas. A outra parte vem das doações que chegam por meio de outros canais, tais como o telefone, o cartão bancário, boleto e também pelo site da instituição. “O Teleton é uma oportunidade que todos nós temos de fazer alguma coisa pelo semelhante. Todos nós que somos jornalistas, quando estamos apresentando o jornal, fazendo ou editando uma reportagem, pautando, seja o que for, sempre estamos pensando no pró-

Sandro Dias

o Teleton, programa transmitido anualmente desde 1998 pelo SBT e pela TV Cultura. O projeto foi iniciado pela AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), uma Instituição sem fins lucrativos, criada em 1950, que possui projetos voltados para o tratamento de crianças e adultos com paralisias, lesões graves, más-formações, amputações, entre outros diagnósticos. Teleton é uma palavra de origem inglesa, derivada da junção das palavras television (televisão) e marathon (maratona). É definido pelo dicionário Cambridge como uma maratona televisiva transmitida por muitas horas, com o propósito de arrecadar dinheiro para causas sociais. O criador deste formato foi o ator Jerry Lewis, em 1966, em apoio a Associação de Distrofia Muscular, doença que seu filho possui. Transmitido atualmente em 20 países, este tipo de maratona foi adotada pela AACD para divulgar os resultados obtidos do que já foi feito com o dinheiro arrecadado e, além disso, é a principal maneira de captação de doações, pois, apesar de estar disponível para recebê-las durante todo o ano, nos dias de transmissão há um aumento considerável no número de doadores. Desde o início do programa, o objetivo era conseguir um valor suficiente para abrir outra unidade da AACD, mas com o tempo estes planos mudaram, porque outras contas

Carlos Nascimento participa do Teleton há 13 anos. ximo, porque o trabalho que fazemos não é para beneficiar a nós mesmos, e sim para beneficiar as pessoas que são prejudicadas por uma série de coisas no Brasil”. É assim que Carlos Nascimento, do SBT, descreve sua participação como Jornalista Voluntário no Teleton, do qual faz parte desde que entrou na emissora, em 2006. O programa permite que os jornalistas exerçam a essência de sua profissão, que é ajudar o próximo. “Agora, no Teleton, nós temos uma oportunidade definida de contribuir para um público que espera aquilo de nós, e a gente faz isso com muita alegria”, complementa Carlos Nascimento. Outras voluntárias que trabalham no SBT também tiveram o mesmo sentimento de realização. Natália Novais, estagiária de jornalismo, trabalhou na produção de rede 7


Thainná Bastos

do Teleton em 2018. A função dela era receber e auxiliar todos os jornalistas do SBT de outras regiões, que ficam encarregados de anunciar a entrada de artistas e representantes durante o programa. Para ela, é muito gratificante, pois todos sabem que estão trabalhando por uma causa nobre, pelas as crianças. Jaqueline Gois, Analista de Programação e Crossmedia, cuida da divulgação nos programas e do atendimento às emissoras regionais e afilia-

Acervo pessoal

Natália Novais foi voluntária em 2018 e pretende continuar no projeto

Priscila descobriu sofrer de Mielopatia Cervical com apenas 24 anos. das do SBT, organizando toda a logística das entrevistas daqueles que passam pelo palco. Geralmente, a campanha oficial começa um mês antes, mas o fluxo aumenta, de fato, durante a maratona. Ela conta que os funcionários podem se inscrever nesse mesmo período para serem voluntários, que é quando também podem escolher participar da plateia. “É uma honra você usar o seu trabalho para poder contribuir com uma causa tão 8

nobre, verdadeira e bonita de se ver. Eu sempre falo que é o período que eu mais trabalho, mas o que eu faço mais feliz e com mais vontade. Não tem uma pessoa que eu conheça que vivenciou isso que não fale que é um clima gostoso, uma energia muito boa. É uma irmandade, todo mundo ali trabalha com prazer, independente de receber algo em troca ou não”, conta Jaqueline. A equipe do Teleton começou, em março, os preparativos para a edição 2019. Os voluntários costumam realizar uma reunião na semana da maratona, para saber como funcionará cada etapa. Segundo o Balanço Social da AACD, foram realizados no ano de 2017 mais de 8.30 mil atendimentos, mais de 6800 cirurgias, foram entregues 60 mil aparelhos ortopédicos pelas oficinas especializadas da própria associação e, além disso, atuaram neste ano na instituição cerca de 1.800 funcionários e 1.300 voluntários neste ano. Uma das pacientes é Priscila Laranjeira, que descobriu ser portadora de Mielopatia

Cervical, uma lesão degenerativa na medula espinhal e sem cura, que ocorre devido à compressão da medula espinhal na região do pescoço, causando fortes dores na região, dificuldade para segurar objetos e andar. A doença geralmente se manifesta em pessoas com mais de 50 anos, por conta do desgaste da coluna com a idade, mas, apesar disso, Priscila soube que tinha a doença com apenas 24 anos, em 2018. Em fevereiro de 2019, ela realizou por meio da AACD uma cirurgia para a colocação de uma placa na região do pescoço, com o intuito de amenizar os sintomas da doença. Para ela, o Teleton tem grande significado, pois foi essa arrecadação que possibilitou sua cirurgia. “O Teleton ajuda os mais necessitados com tratamentos de qualidade, de forma gratuita. Ter doença não é nada fácil, e tratar também custa caro, nem todo mundo tem essa possibilidade”. Outra paciente ajudada pela AACD é Luara Crystal, de apenas 12 anos, que possui Osteogênese Imperfeita, doença mais conhecida como ossos Revista Código | Cruzeiro do Sul


Acervo pessoal

Luara Crystal foi a Criança Símbolo do Teleton 2018. Novembro de 2019

Divulgação AACD

de vidro. É uma condição rara, genética e hereditária, que afeta o tecido conjuntivo de uma em cada 20 mil pessoas. Luara foi a criança símbolo do Teleton em 2018, e a mãe dela, Luana Ribeiro, contou que a escolha para participar do projeto acontecem por meio de um sorteio: “através de um sorteio a Luara foi escolhida, e de lá para cá sempre participa das campanhas da AACD e do Teleton”. A menina já realizou vinte cirurgias do hospital da AACD e ainda participa regularmente de sessões de fisioterapia e hidroterapia. Para a mãe, o Teleton é indispensável para a arrecadação: “tem sido essencial para ajudar essa causa tão nobre. Eu, como mãe e voluntária, vejo onde é gasto cada centavo arrecadado, e é por isso que o SBT confia tanto em transmitir as 24 horas do programa”. Informações do Balanço Social da AACD de 2017, con-

Os voluntários têm a sensação de missão cumprida ao participar de ações sociais. tam ainda que a programação da maratona (Teleton) daquele ano rendeu 25 horas e 04 minutos, resultando na arrecadação de R$ 29.732.666,00, direcionados para a manutenção dos Centros de Reabilitação. A Cultura também contribui com a transmissão e divulgação do Teleton anualmente e, no último ano, enviou três jornalistas (duas do programa “Momento Papo de Mãe” e uma do “Jornal da Cultura”) e os personagens do Quintal da Cultura, um programa infantil matinal. Roberta Manreza e Mariana Kotscho, apresentadoras do programa “Momento Papo de Mãe”, reforçam a importância de jornalistas participarem sempre de projetos sociais como este. “Fazer a cobertura de uma iniciativa como esta também é uma forma de contribuição, de apoio à causa. Com a criação do momento Papo de Mãe, a AACD sempre

fez parte das nossas pautas. São projetos transformadores. Muda tudo. Passamos a enxergar a vida de outra forma. Essas crianças e suas famílias são exemplos para todos nós”, aponta Roberta Manreza. Para elas, a relação de jornalismo com o trabalho voluntário é evidente, pois está na alma da profissão o cuidado com o público e, além disso, as emissoras devem se comprometer com a comunidade. “São emissoras com um comprometimento social. Sempre acreditei numa responsabilidade social dos meios de comunicação, pelo alcance que têm. Então é cumprir uma missão, de ajudar informando, envolvendo e conscientizando a sociedade. A gente espera poder continuar contribuindo por muitos anos. Se com nosso trabalho a gente puder mudar a vida de alguém, nossa missão estará cumprida”, completa Mariana Kotscho. 9


Jornalismo e Sociedade

Quando a cobertura jornalística ultrapassa

o limite da notícia Por vezes a cobertura jornalística parece ultrapassar os limites do bom senso e espetaculariza fatos em busca de maior audiência. Quais seriam, afinal limites dessa cobertura?

Por Alice Marques, Amanda Silva, Luiz Damasceno, Marcelo Júnior e Renan Lavrador.

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a noite de 29 de março de 2008, exatamente às 23:59:59, a soldada Roseli Martines Poleze recebeu uma ligação no serviço de emergência da Polícia Militar de São Paulo. A voz, desesperada, dizia’ que uma criança havia caído do 6º andar do edifício London, localizado na rua Santa Leocádia, Vila Guilherme, São Paulo, supostamente arremessada por algum ladrão infiltrado no prédio. Manchetes como “Criança de 5 anos morre ao cair de prédio em SP”, do G1, logo mudaram, quando questionamentos sobre o caso não foram respondidos: quem matou a criança? Por que a

matou? Como a matou? Mesmo sem dar nomes, você provavelmente reconheceu essa história: o caso Isabella Nardoni ganhou grandes proporções na mídia, principalmente na televisão. Casos como esse, o da Escola Base (1994) e, mais recentemente, o atentado em Suzano (2019) invadiram as telas das casas do país, marcando não somente a história, como a memória de boa parte da população. A grande exposição de casos se dá quando os veículos de imprensa, em sua maioria, desenvolvem interesse sobre um acontecimento motivados pela pressão social, pela falta de coerência dos eventos, Revista Código | Cruzeiro do Sul


pela relevância e por outras características que compõem os critérios de noticiabilidade. Até mesmo simples acontecimentos podem ganhar grandes proporções, repetindo-se diversas vezes até que se esgotem os recursos da investigação, ou quando o interesse pelo fato diminui. Carregados de responsabilidade e dever social, os jornalistas funcionam como agentes da informação, tendo como compromisso levar conhecimento à sociedade e casos que a cercam todos os dias nos mais diversos meios, seja impresso, televisivo ou digital. No dia a dia, os profissionais recebem uma enxurrada de pautas e presenciam muitos acontecimentos que passam pela cobertura jornalística, uma espécie de filtro que pode ser planejado ou inesperado. Nas coberturas planejadas, os jornalistas se programam para eventos previamente estabelecidos ou para sazonalidades, datas que acontecem todos os anos como a Páscoa, Natal, Dia

Denúncias de violações de direitos em programas policialescos, representadas pelo Ranking de Violações de Direitos Humanos na TV Aberta.

Novembro de 2019

Presos desde 2008, Alexandre Nardoni foi condenado a 30 anos e dois meses e Ana Carolina Jatobá a 26 anos e oito meses.

das Mães entre outras. Já as inesperadas exigem a articulação da equipe jornalística, que precisa ir aos locais dos acontecimentos para apurar as informações o mais rápido possível e veiculá-las imediatamente, são geralmente são crimes, assassinatos, desastres naturais etc. Entretanto, independente da natureza da cobertura, ela ainda está sujeita a erros de apuração que podem comprometer a notícia em muitos sentidos.

As notícias são capazes de influenciar a opinião pública e contribuir para que a justiça tome determinadas atitudes no decorrer das investigações que podem impactar diretamente no julgamento, principalmente quando a cobertura dos eventos é massificada por diversos veículos e profissionais que buscam incessantemente novos pontos da história para contar. Em muitos casos, dependendo do direcionamento da notícia, pessoas que estão envolvidas em escândalos e crimes já entram no processo de investigação com sua sentença declarada, graças à pressão dos meios de comunicação e da população, e, independente do resultado, seus nomes já estão manchados perante à sociedade. Rogério Pagnan, repórter da Folha de São Paulo e autor do livro “O Pior dos Crimes” (2008) sobre o caso Isabella Nardoni, acredita que as investigações tomaram rumo 11


Código indica: Divulgação

Escola Base, Emílio Coutinho

Divulgação

Este livro-reportagem é resultado de uma longa pesquisa de Emílio para a produção de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Nele, Emílio faz um retrospecto de 20 anos após o caso Escola Base (1994), acompanhando, em primeira pessoa, a jornada do autor em busca das principais personagens envolvidas no caso.

O Pior Dos Crimes, Rogério Pagnan Neste livro-reportagem, o jornalista Rogério Pagnan se debruça sobre um dos casos policiais que mais dividiu opiniões, o de Isabella Nardoni. Na obra, Pagnan conta os acontecimentos com diversos fatores inéditos que abrem espaço para que se tenha certeza (ou não) sobre a indagação: Alexandre Nardoni e Anna Jatobá são os verdadeiros culpados?

pautadas pela pressão popular e pelo grande interesse da mídia, fazendo com que decisões precipitadas fossem tomadas, como a primeira vez em que o casal foi preso em uma “jogada de interesse”, segundo Pagnan, entre o delegado responsável no 9º DP Calixto Calil Filho e o delegado geral Marcos Carneiro Lima. “O problema desse caso em específico é a quantidade de interesse dos veículos de comunicação que interferiram até nas investigações. O juiz concordou com a prisão e esse delegado que pediu para manter o caso no 9° DP apareceu dando entrevista, inclusive para se beneficiar do momento para aparecer. Quando o dele12

gado geral tentou transferir, ele (delegado responsável) mandou prender (o casal). A partir disto, eles foram considerados suspeitos formalmente. Aí o que a polícia vai fazer? Em tese ela elimina outras linhas, outros suspeitos para confirmar o que você disse para o juiz, senão você toma um processo por danos morais, e foi o que aconteceu; a investigação dali para a frente foi para estabelecer o casal como culpado, pois agora havia obrigação, por dois motivos: ficaria péssimo eles chegarem ao fim da investigação e falarem ‘a gente não conseguiu esclarecer o crime’ para o juiz, e o segundo: eles tinham comprado briga com o chefe”.

E completa, “o livro também mostra que eles estavam tão ocupados em sustentar essa versão contra a do casal que algumas testemunhas que eles ouviram deram informações problemáticas e eles entraram em um abismo. Eu falei para o delegado ‘doutor, fulano de tal falou isso, chegou em tal horário, onde ele estava esse tempo todo?’, ele me disse ‘ah, não sei te responder, isso você tem que falar com a delegada, só ela sabe te explicar’. As vezes existe uma explicação lógica, mas a polícia não se preocupou, esse é um exemplo, no livro eu tenho vários outros nos quais a polícia passou batido na investigação. Tudo isso dá conta dequanto Revista Código | Cruzeiro do Sul


os holofotes alteraram todo a investigação, a audiência interfere, os meios jornalísticos interferem, os holofotes jornalísticos interferem”. Além da possibilidade de mudar o rumo das investigações, a cobertura massificada tem o poder de manchar permanentemente a imagem de envolvidos em casos. Uma abordagem em que se mostre nome completo, imagem e outros elementos que correspondem ao suspeito abre precedentes para que a sociedade crie um sentimento de repulsa e busque a pessoa para linchamento, ação facilitada pelas redes sociais, locais nos quais se pode despejar o ódio anonimamente ou com segurança por estar atrás de uma tela. Mas isso pode ir muito além. Em 1994, uma escola localizada no bairro da Aclimação, na capital paulista, foi eternamente marcada por um erro de apuração e espetacularização da justiça. O caso da “Escola Base” ainda é muito discutido nas instituições de ensino superior, servindo como exemplo para os novos profissionais de uma cobertura que nunca deve ser repetida. Muitos erros foram cometidos: após crianças relatarem situações estranhas e uma delas aparecer com lesões anais, duas mães acusaram os donos da escola de estupro, foram à delegacia e registraram a denúncia. O delegado Antonio Primante não investiNovembro de 2019

gou a fundo o caso e as mães, por acreditarem que a polícia não daria conta sozinha, logo chamaram a imprensa que, por sua vez, confiou cegamente na declaração oficial da polícia e veiculou manchetes como “Kombi era motel na escolinha do sexo”, e “Escola dos Horrores”, que estamparam respectivamente as capas do extinto jornal Notícias Populares e da revista Veja. A partir da repercussão do caso, pessoas foram até a escola e depredaram o prédio, deixando-o em ruínas. Na ausência dos meios digitais, a sociedade reagiu de forma física, chegando a esse e muitos outros extremos. Emílio Coutinho, jornalista e fundador do portal Casa dos Focas, escreveu o livro-reportagem “Escola Base: onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira” (2016), que aborda os impactos da cobertura jornalística sobre os envolvidos com o caso. Coutinho conta que na época os acusados correram riscos reais. “Eles foram ameaçados de morte, foram presos, quase foram mortos, a escola foi depredada, destruída, saqueada, as donas da escola foram ameaçadas de estupro, os filhos delas também foram ameaçados, um deles chegou a ter uma arma apontada para a cabeça no meio da rua. Eles tiveram que correr, se esconder, enfim, acho que pior do que isso só se realmente tivessem matado eles, o que não

aconteceu porque fugiram”. Ao ser questionado sobre como a cobertura da época afeta a vida deles até hoje, Emílio diz que “todos foram afetados de forma negativa, de forma profunda e até hoje sofrem por conta disso. Sofrem por conta de um erro que foi repercutido em quase todos os órgãos de imprensa e que afetou não só aos personagens que viviam naquela época, mas as famí-

Independente da natureza da cobertura, ela ainda está sujeita a erros. lias deles e eu não duvido que isso será carregado por outras tantas gerações. Infelizmente é algo que manchou a vida deles e acabou com vários dos seus sonhos, é uma vergonha para todos. Nós devemos ver como um exemplo a não ser seguido e o resultado de uma triste história que não foi bem apurada”. Quanto à responsabilidade dos jornalistas, Coutinho afirma “devemos ter cuidado com os dados, com as informações que nós publicamos e saber em qual momento dá-las de uma forma ou de outra.” 13


Jornalismo e Sociedade

Famosos na mira:

a denúncia é o fim do assédio? IDMb/ G1

Detentores de sucesso e poder, alguns artistas têm mostrado seu pior lado. Movimentos nas redes sociais incentivam as vítimas a denunciar

Akguns famosos acusados de assédio sexual.

Por Sabrina Rodrigues, Thaynara Bernardo e Vitória Moura

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U

m dos casos de assédio que tiveram maior repercussão e desdobramento na mídia, foi o caso do ex-funkeiro Biel, em 2016, no qual a estagiária do portal iG, Giulia Moraes, foi assediada sexualmente pelo cantor em uma entrevista.

Em maio de 2016, Biel foi acusado de assédio pela estagiária do portal iG, após uma entrevista para divulgação de um disco, no qual o artista chamou a estudante de “gostosinha” e disse que a “quebraria no meio” caso tivessem relações sexuais. Após seguir com Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

Alina Oliveira de Souza

a acusação, Giulia foi demitida e acredita que sua saída ocorreu por conta de ter seguido com o processo. Após a repercussão do caso, o ex-funkeiro pediu desculpas por meio de uma rede social e fez um acordo com a Justiça para pagar R$ 4.400,00 à uma instituição de caridade. Outro caso de grande repercussão em 2017 envolveu o ex-ator da Rede Globo, José Mayer, que foi acusado pela figurinista Susllem Tonani de assédio sexual. Em um longo texto, a funcionária da TV Globo, narrou diversos episódios em que teria sido constrangida pelo ator. Após a repercussão do caso, a Rede Globo afastou José Mayer de suas produções por dois anos. Em janeiro deste ano, a emissora anunciou o fim do contrato com o ator. Após o caso envolvendo Mayer, foi criado o movimento por mulheres Mexeu Com Uma Mexeu Com Todas, que teve grande apoio entre atrizes da Rede Globo. Outro ator da Rede Globo também foi acusado nesse ano foi Caio Blat, acusado por atrizes da novela O Sétimo Guardião de assediá-las. Em nota, a Central da Rede Globo de Comunicação informou: “todo relato de desrespeito na Globo é apurado criteriosamente, assim que tomamos conhecimento dele – como é o caso agora. A Ouvidoria da empresa já foi acionada.” Casos como esse ganham

Repórter Laura Gross, assediada por torcedor. grande visibilidade por envolverem famosos, contudo, o dinheiro e a fama acabam por influenciar a opinião pública e as decisões jurídicas. Como o caso envolvendo o youtuber Everson Zoio, que tem aproximadamente 11 milhões de inscritos em seu canal. Em 2018 o youtuber fez um vídeo para seu canal, descrevendo para seus amigos como teria estuprado sua namorada enquanto ela dormia, contudo, a investigação envolvendo o youtuber foi encerrada porque o delegado não encontrou indícios do delito. Com os crescentes casos de assédio, vários movimentos foram criados por mulheres para denunciar os abusos enfrentados em suas carreiras, e têm ganhado as redes sociais. Um desses movimentos é o Deixa Ela Trabalhar. A campa-

“Você está rodeada por homens, você se sente pior ainda porque ninguém ajuda com nada, ninguém faz nada e você fica totalmente exposta à situação” Laura Gross, jornalista.

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Thaynara Bernardo

nha representa as mulheres da mídia esportiva criado no estado do Rio Grande do Sul. Outra vítima foi a jornalista Laura Gross da rádio Guaíba, do Rio Grande do Sul, que sofreu assédio quando cobria o jogo entre Internacional e River Plate em abril desse ano, na copa Libertadores da América. O ataque veio de um torcedor do Internacional, que tentou beijá-la à força logo na entrada do estádio Beira-Rio. Segundo Laura, ele estava visivelmente embriagado, e começou a dizer que queria dar uma entrevista. Começou com “brincadeiras” e frases como: ‘é muito linda”, e que 16

“não poderia ir embora sem aproveitar”. Na sequência, o agressor segurou a cabeça da jornalista e tentou beijá-la a força. Laura pediu para ele parar, mas ele não respeitou o pedido e conseguiu encostar em sua bochecha. É preciso enfrentar e punir o assédio sexual contra as mulheres. Para Laura, a denúncia não é a porta para o fim, mas sim a porta para o início, para mostrar o quanto isso é errado, e quem sabe acabar com esse crime que vem crescendo cada vez mais em nosso país. “É muito difícil seguir com a minha carreira, porque você tem medo de encontrar a pes-

soa de novo e talvez eu o encontre, eu acho que o que me dá forças é justamente o fato de lutar para não acontecer de novo. Lutar para não acontecer comigo e com nenhuma outra menina”, relata Laura Gross à Revista Código.

O assédio De acordo com o artigo 216-A do Código Penal, assédio sexual é definido como “ato de constranger alguém, com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da suacondição superior hierárquica ou ascendência inerentes ao Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

Em 2018 casos envolvendo celebridades hollywoodianas ganharam notoriedade, envolvendo atores como: Steven Seagal, Morgan Freeman, John Travolta, Ben Aflleck e o produtor e diretor Brett Ratner do filme “O Regresso” e “X-Men”. Outro caso de grande repercussão foi o que envolveu o cineasta Woody Allen, que foi acusado de ter abusado sexualmente da sua filha adotiva Dylan Farrow enquanto ela ainda era uma criança. O incidente, segundo Dylan Farrow, aconteceu em 1992, no sótão da casa de Mia Farrow, em Connecticut. Observando cada caso, coloca-se em vista que a vítima merece todo apoio e deve, obviamente, fazer a denúncia, com todo apoio e respaldo da mídia e da justiça para que tenha essa liberdade. Segundo a terapeuta Luz Jaime, as vítimas precisam de acolhimento e atendimento humanizado, pois podem desenvolver doenças físicas e emocionais, como ansiedade, depressão, estresse e problemas de sono. É bom lembrar que existe um prazo de até seis meses para a vítima denunciar o agressor. A denúncia pode ser feita pela Central de Atendimento à Mulher pelo número 180. AG News

exercício de emprego, cargo ou função”. Segundo dados da ONU, sete em cada dez mulheres no mundo ainda sofrem ou já sofreram assédio sexual em algum momento de sua vida. Os casos mais populares são de jovens entre 15 e 25 anos e acontecem no transporte público. Um levantamento feito em 2017 pelo Datafolha, mostra que quatro em cada dez brasileiras afirmam ter sido vítimas de assédio no trabalho, em espaços públicos e até dentro de sua própria casa. Os dados apontam que 42% das mulheres são assediadas no Brasil. Até 2018, o único ‘tipo’ de assédio considerado crime, era quando acontecia no ambiente de trabalho, praticado por uma pessoa com cargo superior ao da vítima. Em 2018 houve uma mudança importante no ordenamento penal brasileiro, com a criação da lei de importunação sexual (13.718), sancionada em 24 de setembro Segundo a socióloga Jacqueline Pitanguy, assédio não é dar apelidos, assoviar e nem paquerar, há uma grande diferença, pois a partir do momento que um comentário deixa a mulher constrangida, pode ser considerada assédio. Qualquer interação sem consentimento que tenha fins libidinosos pode ser considerada um tipo de violência sexual. Casos de assédio envolvendo famosos internacionais

Giulia Moraes, assediada pelo cantor Biel, em 2016. ganharam também destaque nas mídias, gerando revolta e manifestações; contudo, atualmente boa parte da população é conectada às redes sociais, que ajudam a divulgação e a mobilização de pessoas em prol de movimentos contra o assédio sexual. Um exemplo, é o movimento Me Too, que foi criado pela atriz Alyssa Milano, e incentiva mulheres que já foram vítimas de abusos sexuais ao longo da vida a dar seu testemunho no Twitter usando a hashtag “Me Too”. A campanha teve início em outubro de 2017. Harvey Weinstein, o produtor e co-fundador da empresa de entretenimento Miramax e ganhador de um Oscar pelo filme ‘Shakespeare Apaixonado’ foi acusado por dezenas de mulheres de abuso sexual e estupro.

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Jornalismo e Sociedade

A Periferia muito

além do retrato policial A produção cultural nos conta muito mais dos extremos da cidade que o sensasionalismo dos programas policiais de fim de tarde

Tuca Vieira

Por Jean Carlos

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No aniversário de 450 anos da cidade de São Paulo, o fotógrafo Tuca Vieira participou de um projeto do jornal Folha de São Paulo, que pretendia mostrar imagens da metrópole como forma de homenagem. Por meio de imagens aéreas, o fotojornalista retratou uma cena estranha e ao mesmo tempo comum, a divisa da comunidade de Paraisópolis com um 18

condomínio de luxo no bairro do Morumbi na Zona Sul. O impacto foi grande, devido à forma como a desigualdade social na Cidade foi apresentada. Em entrevista ao The Guardian, o fotógrafo disse: “ela é claramente uma ilustração da desigualdade social, talvez o maior problema do Brasil e da América Latina. A diferença injusta e brutal entre ricos e pobres, uma herança da escravidão recente, está

na origem de muitos outros problemas: a violência, a baixa escolaridade, o preconceito, entre tantos outros”. Desigualdade social é o termo usado para assinalar a diferença econômica entre determinados grupos presentes numa sociedade, conceito diretamente ligado ao de classes sociais. Essas diferenças entre os padrões de vida podem ser sentidas de diversas formas. Uma delas diretamente atreRevista Código | Cruzeiro do Sul


lada ao nosso sistema que é baseado no consumo, ou seja, o acesso ou não a produtos e serviços como roupas, alimentação, escolas, moradia, lazer, hospitais etc. Os extremos vão da miséria, onde o indivíduo não possui condições mínimas para a sobrevivência como alimentação, saneamento básico ou moradia; até megaempresários detentores de capital bilionário que controlam meios de produção e empresas de âmbito mundial. “A desigualdade faz o sujeito mais pobre ser obrigado a trabalhar mais. Assim, ele não tem tempo para estudar e sua educação fica prejudicada. Com isso, não consegue desenvolver consciência crítica e política para transformar sua própria situação.” Diz Vieira. Segundo dados do IBGE a desigualdade em diversas regiões do Brasil tem cresci-

Novembro de 2019

do. Enquanto a maior parte da população vive com um salário mínimo, apenas 10% da população concentra metade de toda a riqueza gerada. Esses 10% tem o poder econômico equivalente a soma de 80% dos brasileiros.

A riqueza marginalizada O modo como são retratadas as periferias e comunidades paulistanas criou uma imagem de que as comunidades são apenas desfavorecidas, no entanto, ignora-se o lado das riquezas culturais e pessoais que circulam por essas regiões. Podemos encontrar pelas ruas das periferias batalhas de rap, saraus, centros e iniciativas culturais, serviços de ONGs e iniciativas como a Rede Emancipa, uma rede

de educação popular atuante em periferias não apenas na comunidade de Paraisópolis, como também em várias outras regiões desfavorecidas do Brasil. Há quem sustente o discurso de que veículos midiáticos como jornais, revistas, rádio e a televisão são o reflexo da sociedade, mas qual dos lado dela? Frequentemente a mídia trata as minorias com um viés de invisibilidade e negatividade. A educadora popular da Rede Emancipa, ativista feminista e negra da periferia, Ana Laura Oliveira, nos diz em entrevista, que assim como o sistema, a mídia retrata apenas as desigualdades e as necessidades presentes nas periferias, ao mesmo tempo em que há a ascensão “pós-moderna” dos negros e de transexuais dessas regiões, também vemos que a periferia só é citada quando acontece algum tipo de tragédia. Não se fala da arte presente, por exemplo: “por mais que eles tentem nos retratar em novelas e em séries, ainda não nos vemos nelas, pois eles romantizam as pessoas mais pobres de forma equivocada, nunca em um papel principal, sempre olhando uma cultura de nós por nós, sem entender 19


‘‘Eles ainda não caíram na real que na periferia é onde está o ‘néctar’ da coisa” Pedro Moreira Leite, Gestor da Casa de Cultura de São Matheus.

o que uma classe representa. Avançamos muito como sociedade, por isso a mídia foi empurrada e nos deram abertura para falarmos mais sobre nós” disse. O avanço da tecnologia proporcionou às ditas minorias um acesso melhor à informação e uma organização melhor das classes para que certas pautas progressistas entrassem no radar da mídia. “Na verdade existe uma intenção em ter maior visibilidade e audiência, nada além disso, a intenção não é mudar a sociedade, eles querem manter ela como está, porém acompanhando o tempo para que não sejam engolidas pelo avanço da internet. Se não fosse o avanço dela não teríamos essa visibilidade”, afirma a ativista. “Existe uma mobilização progressista, porém nada revolucionária. Elas buscam mais identificar o indivíduo como indivíduo 20

do que enxergar o problema social, muito mais complexo”. Ana Laura acredita que se existisse um modelo de educação que causasse interesse na periferia em estar nos espaços de cultura e lazer já seria um grande avanço, porém, a interferência da mídia, a mínima visibilidade que ela proporciona e a forma como funciona o capitalismo, dificultam a presença dos marginalizados nesses ambientes. Devemos considerar ainda o impacto social e também o psicológico, pois ambos ocorrem de forma silenciosa e imediata na vida dos que são considerados de classe baixa. Como exemplo comum de como os veículos de mídia são parcialmente responsáveis, por serem culturalmente influenciadores, é quando pessoas que devido à baixa renda, acabam se instalando nas regiões extremas, morando longe do Centro, onde há maior concentração de lazer, cultura, oportunidades de empregos, educação e saúde de maior qualidade. Determinada colocação verbal, constante e negativa sobre uma região, muitas vezes influencia diretamente na vida dos moradores de lá, e como resultado, eles muitas vezes têm que lidar com a população de regiões de classe média ou alta e empregadores que possuem certos pré-conceitos que foram construídos sobre as pessoas e os residentes desses locais marginalizados.

Um olhar para as iniciativas da “perifa” “Trabalhamos com o que os nossos braços alcançam”, disse Pedro Moreira Leite, gestor da Casa de Cultura de São Matheus, na Zona Leste de São Paulo. Segundo ele, toda a divulgação dos projetos que acontecem no espaço, hoje é feita por meio das redes sociais do espaço, por possibilitar maior agilidade no processo.

Há mais de quarenta anos, Pedro Moreira Leite atua levando arte e cultura à zona Leste da grande São Paulo. Porém, iniciativas culturais como essa possuem certa dificuldade em alcançar as pessoas, devido à imagem que estas possuem da periferia, gerada a partir da visão dos grandes veículos midiáticos. “A grande mídia está interessada no “ibope”, então ela está mais ligada quando acontecem coisas ruins, algum tipo de traRevista Código | Cruzeiro do Sul


gédia”. Incomoda que em um mundo tão globalizado, com tanto espaço e com a internet “solta em qualquer canto”, as coisas boas são deixadas à margem, “eles ainda não caíram na real que na periferia é onde está o ‘néctar’ da coisa”, diz o gestor. Ainda segundo Pedro, esta imagem negativa que é transmitida, é ruim principalmente para a área da cultura, pois há uma expectativa de que coisas ruins possam acontecer no evento, o que acaba prendendo principalmente os mais jovens em casa. “Iniciativas como a nossa são de extrema importância e deveriam existir mais, porque temos talento de sobra nas regiões que estão marginalizadas”, delcara. A presença da mídia em espaços sociais é importante, devido a normalização do modo de vida das diferentes regiões de uma mesma cidade, e mesmo que tenha um olhar para a cultura periférica, “há também uma impressão, que ela privilegia algumas áreas”, diz Pedro. Ter um estereótipo já definido atrasa atitudes que visam melhorar a situação de regiões que são consideradas carentes e que precisam de apoio da sociedade civil, “Se a mídia tradicional abrisse um pouquinho mais de espaço Novembro de 2019

para o segmento da cultura, já seria uma grande ajuda, grande melhora até da condição de vida. A vontade e a ansiedade da galera aprender a tocar um violão, ou fazer um teatro, ou dança, é enorme”, completa.

As manifestações psicopatológicas O Psicólogo Anderson Santos, diz que apesar de não poder afirmar que exista uma ligação entre poder aquisitivo e problemas psicológicos, o indivíduo que tem uma constante cobrança, pressão, trabalho excessivo, stress e demais questões emocionais como idade, histórico de vida ou pré-disposição, pode desenvolver transtornos como ansiedade e depressão. “O histórico de vida, o que denominamos de subjetividade, ou seja, as experiências vividas pelo indivíduo, sejam elas boas ou ruins, contribuem para que ele tenha a capacidade de enfrentamento ante às adversidades que surgem pelo caminho.” Santos afirma também que a ansiedade, dentro dos padrões da “normalidade”, é considerada saudável, porém a partir do momento em que ela começa a interferir na vida acadêmica, nos relacionamentos pessoais ou nas atividades profissionais, acaba se tornando uma questão psicopatológica,

pois afeta a qualidade de vida do indivíduo. “Devido à crença cultural de que quem procura psicólogo ou psiquiatra é ‘louco’, existe certa precarização no acesso à programas de saúde mental, que está começando a ser falada agora devido aos casos de suicídio e depressão”. Após o atentado de Suzano em março deste ano, foi proposto na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) um projeto de lei que obriga a presença de psicólogos nos ambientes escolares até o final do ano. Além disso, já existe a disponibilidade desses profissionais pelo Sistema Único de Saúde (SUS), porém o acesso a eles é bastante difícil. Já algumas faculdades de psicologia possuem as clínica-escola, que atendem a população com atendimento gratuito ou com preços simbólicos. Dados da OMS afirmam que até 2030, a depressão será a doença mais comum do mundo, e Anderson Santos reforça a importância de ter acesso aos serviços psicológicos ou psiquiátricos, “A ausência ou dificuldade no acesso a esses tratamentos, implicam no agravamento de casos simples.Deve haver consciência e bom senso, e devemos cuidar da nossa mente da mesma forma que cuidamos do nosso corpo”. 21


Jornalismo e Sociedade

A ditadura no Brasil

e os Vestígios do Golpe Por Elisabete Perestrelo, Flávia Sampaio, Jaqueline Melo e Rosimere Basílio

N

este ano, o presidente Jair Bolsonaro gerou polêmica ao determinar, em publicação de uma rede social, que as forças armadas fizessem “as devidas comemorações” do aniversário do golpe de 31 de março de 1964, que deu início a mais de duas décadas de regime militar no Brasil. Um período lamentável e tomado por tragédias no qual pessoas eram torturadas e mortas. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) confirmou 434 mortes e desaparecimentos durante a ditadura. A ditadura militar se estendeu por 21 anos. O regime foi instaurado no país por meio de um golpe organizado por militares e civis. No período, foram promovidas modificações na constituição e a ditadura restringiu o direito ao voto, a participação popular e reprimiu 22

Gustavo Lima/Câmara dos Deputados

Entre os anos de 1964 e 1985, o Brasil esteve sob regime militar. Mais de trinta anos depois, os rastros dessa época de repressão, censura e desaparecimentos, ainda marcam boa parte da população brasileira.

Presidente Jair Bolsonaro e seu filho Flávio Bolsonaro no Congresso com a bandeira do Brasil. com extrema violência todos os movimentos de oposição. Na época houve o fortalecimento do poder executivo e a sucessão presidencial era controlada. O Alto Comando das Forças Armadas indicava um candidato, que era apenas referendado pelo Congresso Nacional. Os partidos políticos, sindicatos e organizações sofreram severa intervenção do governo, os meios de comunicação e manifestações artísticas também foram alvos de censura.

Anteriormente, nas eleições presidenciais disputadas em 1961, Jânio Quadros foi eleito com 48% dos votos. Seu lema durante a campanha era “varrer a corrupção” e seu jingle alardeava: “varre, varre vassourinha, varre, varre a bandalheira”. Em seu governo, Jânio defendeu a autodeterminação dos povos, condenou as intervenções estrangeiras, restabeleceu contato diplomático com a então União Soviética e com a China. Com Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

um plebiscito para decidir sobre a manutenção do sistema parlamentarista. Cerca de 80% dos eleitores votaram pelo restabelecimento do sistema presidencialista, e a partir de então, Jango passou a governar o país com mais poderes constitucionais. Para combater a inflação e acelerar o crescimento econômico, o governo promoveu um plano trienal. A proposta foi elaborada por Celso Furtado e visava combater a inflação, cuja taxa chegava a 7% ao ano. O projeto serviu, porém, para aumentar a instabilidade política nacional e, além de não ter rendido o esperado, fez com que a oposição aumentasse a quantidade de críticas ao presidente. Em 13 de Março de 1964, Goulart proferiu um discurso na Central do Brasil no qual defendeu as reformas de base propostas por seu governo. Menos de uma semana após o discurso, os conservadores organizaram um protesto pelas ruas de São Paulo. Após perceber que não teria mais possibilidade de permanecer no poder, Jango foge como exilado político para o Uruguai. Com a mobilização de tropas, os militares tomam o controle de locais estratégicos do país, apoiados por parlamentares e conservadores da elite. Em 2 de Abril de 1964, o presidente do senado Auro de Moura convocou uma reunião extraordinária e decretou vaga a Presidência da República, o que consolidou o golpe no país. Ranieri

Reprodução

apenas sete meses de mandato, no entanto, o presidente renunciou, alegando ter sofrido pressão de “forças terríveis”. Com a renúncia de Jânio Quadros, uma grave crise política foi instaurada. De acordo com a Constituição de 1946, o vice-presidente João Goulart, também conhecido como Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) deveria tomar posse. Entretanto, Goulart encontrava-se, nessa ocasião, na China, enquanto alguns ministros militares, contrários à sua posse, queriam vetar sua volta ao Brasil. Outros militares, como o general Machado Lopes, queriam garantir a posse de Jango, assim, ocorre a chamada “Batalha da Legalidade” ou “Campanha da Legalidade”. A “Campanha da Legalidade” foi promovida nos 14 dias que se seguiram à renúncia de Jânio Quadros. O movimento tinha por objetivo defender a posse do vice-presidente, Goulart. A solução para esse impasse foi dada pelo Congresso Nacional, que transformou o regime presidencialista em parlamentarista; assim, mesmo com sua força política restrita, Goulart é empossado presidente em sete de Setembro de 1961. Após assumir a presidência, Jango se depara com um país instável e repleto de problemas. Por conta das limitações que o regime lhe impunha o presidente não teve muitas possibilidades de realizar reformas e propor projetos para o Brasil. Em 1963, Jango convocou

Vladimir Herzorg: jornalista assassinado durante o regime militar brasileiro. Mazzilli assumiu provisoriamente o cargo. Em 9 de Abril de 1964 foi emitido o Ato Institucional nº 1, o primeiro de uma série de atos repressivos. Dois dias depois, em uma eleição indireta realizada em 11 de Abril, o Congresso elegeu o general Humberto Castello Branco para a presidência do Brasil. Castello Branco concorreu com Juarez Távora e Eurico Gaspar Dutra, mas saiu vencedor com praticamente 99% dos votos.

A mídia na ditadura A maior parte da imprensa apoiou o golpe que derrubou o presidente João Goulart. No dia 2 de Abril de 1964 o jornal “O Globo” publicou em sua primeira página: “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida (...) atendendo aos anseios nacionais de paz, tranquilidade e progresso(...) As forças armadas assumiram a tarefa de restaurar a nação da integridade de seus direitos, livrando-a do amargo fim que haviam envolvido o Executivo Federal”. 23


Fabrício Faria / ASCOM – CNV.

Entrega do relatório da CNV à Presidenta Dilma Rousseff. A mídia exerceu enorme influência e de certa forma teve um papel destacado já nos preparativos do golpe, porém, o governo logo passaria a supervisionar os meios de comunicação para manter o controle total sobre as informações veiculadas. É possível identificar tal fato claramente no caso do jornalista Vladimir Herzog. O jornalista, professor e cineasta brasileiro Vladimir Herzog foi morto sob tortura pelos militares durante a ditadura, após ser chamado para prestar depoimento na sede do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). A versão oficial, porém, apresentada pelo laudo médico assinado pelo legista Harry Shibata, foi a de que, Herzog teria cometido suicídio por enforcamento. A cena montada e fotografada pelos militares, na qual aparece Herzog “enforcado” e amarrado a uma grade de pouco mais de um metro e meio de altura foi divulgada nos principais jornais da época. A nota publicada pelo jornal “Folha de 24

São Paulo”, em 1975 diz: “II Exército anuncia suicídio de jornalista”, reforçava a tese de que o jornalista teria cometido suicídio, já que ao divulgar a nota, o veículo teria reforçado a versão dos militares. Os jornalistas contrários ao governo migraram para a chamada mídia alternativa, que se tornou o principal meio de denúncia dos crimes cometidos pelos militares. Nessa linha, destacam-se jornais como “Opinião”, “O Sol”, “Jornal da República” e “Movimento”. O servidor público, Eduardo Stalin, 69, conta como foi vivenciar essa época. “Foi um longo e conturbado período, era constante a sensação de cerceamento da liberdade e da democracia. Não consigo listar nenhum benefício importante legado aos brasileiros pela ditadura militar. Entendo que não há nada a comemorar, só a lamentar. Seria mais lógico e racional comemorar o final da ditadura, como se comemora o final de uma guerra, de uma revolução. Uma amiga direta, taxada de subversiva, foi presa pelos órgãos de repressão e sofreu tortura, o que lhe deixou com sequelas para o resto da vida. Pessoas do grupo dela foram violadas física e psicologicamente, um ficou surdo devido aos choques aplicados em seus

ouvidos e outros simplesmente desapareceram”, conclui Stalin.

Pessoas desaparecidas “Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho? só queria embalar seu filho que mora na escuridão do mar. Quem é essa mulher que canta sempre esse lamento? só queria lembrar o tormento que fez seu filho suspirar. Quem é essa mulher que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo e deixar seu corpo descansar, quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho? só queria embalar seu filho que mora na escuridão do mar.” Essa é a letra da música Angélica, que Chico Buarque compôs para Zuzu Angel, que retrata a história triste vivida pela estilista durante a ditadura. O filho de Angel, Stuart Angel Jones foi torturado e assassinado no Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica do Rio de Janeiro, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue em 2014, que analisou documentos e ouviu testemunhas. A versão já existente era de que o corpo de Stuart Angel teria sido lançado ao mar, porém, com os novos depoimentos, existe a possibilidade de que seus restos estariam na cabeceira da pista da Base Aérea de Santa Cruz, na zona Oeste do Rio. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Flávia Sampaio

No início de fevereiro, a Comissão Nacional da Verdade declarou que o ex-deputado Rubens Paiva, morto em 1971, foi assassinado no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).

Comissão da verdade Eduardo Stalin: lembranças dos tempos violentos da ditatura. Rubens Beyrodt Paiva, mais conhecido como Rubens Paiva, também foi um dos desaparecidos durante a ditadura. Sua morte foi confirmada quarenta anos depois, por depoimentos de militares envolvidos no caso à Comissão da Verdade. Em seu livro “Feliz ano velho”, Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado Rubens Paiva escreve que seu pai foi retirado de casa em 20 de Janeiro de 1971, quando a família se preparava para ir à praia. A investigação do caso ganhou força em novembro de 2012, quando documentos do regime foram encontrados em Porto Alegre (RS) na residência do coronel do Exército Júlio Miguel Molinas Dias, ex-comandante do DOI-Codi. De acordo com os documentos, Paiva foi preso em sua casa no Rio de Janeiro por uma equipe do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), em 20 de janeiro de 1971 e, no dia seguinte, entregue ao DOI-Codi. Novembro de 2019

Em 2011, no mandato da presidente Dilma Rousseff, foi criada pela lei 12.528 a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que soma-se a todos os esforços anteriores de registros dos fatos e esclarecimentos das circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988. Foram necessárias diversas reivindicações dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, exigindo esclarecimentos, para que a CNV fosse criada. Assim, foi realizado um longo trabalho de investigação a respeito de todos os crimes cometidos durante a ditadura. O maior êxito da Comissão Nacional da Verdade foi colocar o tema da ditadura e das violações de direitos humanos em pauta na sociedade, além, é claro, das apurações que constataram os crimes. A comissão foi encerrada em 16 de dezembro de 2014, com a entrega de seu relatório final para a então presidente Dilma Rousseff, com as conclusões e recomendações da CNV sobre violações de direi-

tos humanos durante a ditadura militar. Após insinuações do presidente Jair Bolsonaro, a respeito do militante de esquerda Fernando Santa Cruz, a procuradora da República Eugênia Gonzaga, informou que cobraria explicações sobre o ocorrido em 1974. Felipe era pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, a quem o presidente também se referiu, dizendo que explicaria a Felipe o que houve com o pai durante a ditadura. Após o ocorrido, houve a troca dos membros da Comissão de Direitos Humanos, determinada por Bolsonaro e pela ministra da mulher, família e direitos humanos, Damares Alves.

Eduardo Bolsonaro e o AI-5 A recente “sugestão” de um novo AI-5, vinda do filho do presidente, repercutiu em toda a imprensa nacional e internacional, a volta de um novo AI-5, o mais duro de todos os Atos Institucionais instaurados durante a ditadura, emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, o que resultou na cassação de mandatos de parlamentares contrários ao regime, além da perda de direitos constitucionais. Hoje, a sociedade tem voz, por todos os avanços conquistados, em garantia da igualdade e da preservação dos direitos humanos. Por isso é inadmissível a volta da ditadura e de todos os males por ela causados. 25


Jornalismo e Sociedade

Eloá Pimentel: A espetacularização de um crime Danilo Verpa

A transmissão obsessiva e o protagonismo do sequestrador foram agentes fundamentais no desfecho trágico do caso.

Eloá na janela do apartamento onde estava sendo mantida em cárcere privado. Por Felipe Hiroshi, Gabriele Tenório, Mayara Lopes, Pamella Eloynne e Paula Lira.

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O

sequestro que culminou com a morte da jovem Eloá Pimentel, então com 15 anos, foi o mais longo já registrado pela polícia no Estado de São Paulo. O ex-namorado da vítima, Lindemberg

Alves, na época com 22 anos, invadiu armado o apartamento onde a menina morava com sua família. Segundo o criminoso, o motivo era o término do namoro e a recusa de Eloá em reatar o relacionamento. Portando um revólver calibre Revista Código | Cruzeiro do Sul


A abordagem da mídia A Mídia errou desde o início. Um crime jamais deve ser noticiado enquanto ainda está em andamento, para evitar o sensacionalismo sobre o caso. Não se trata obviamente de censura. “Como regra geral concordamos que Novembro de 2019

não deva haver censura, mas achamos que a mídia tem que ter responsabilidade. Nesse caso da Eloá, as coisas aconteceram de forma totalmente irresponsável, não tem sentido um crime em andamento ser televisionado”, destaca Antônio Assiz, jornalista e coordenador do curso de jornalismo da Universidade Cruzeiro do Sul. A ética jornalística foi ignorada no caso, algumas emissoras de TV se posicionaram em frente ao apartamento onde acontecia o sequestro, e dali passaram a fazer a cobertura ao vivo. O erro, além de ser da mídia também cai sobre os órgãos de fiscalização do governo, que deveriam cumprir seu papel e intervir na transmissão. Neste caso, Antonio Assiz destaca também que os índices de audiência, podem ter sido um fator crucial para os canais manterem no ar a tragédia: “Nós temos órgãos de fiscalização que, naquele dia, deveriam ter interferido junto à emissora e pedido para tirar do ar, que não poderiam manter a transmissão ao vivo, pois isso poderia causar uma tragédia, que foi o que aconteceu. A audiência pode ser um dos motivos, mas o governo deveria interferir, o ministério das comunicações tem fiscalização, tem fiscais que deveriam ter ligado para emissora e falado parar tirarem do ar”. Ainda segundo Assiz, a mídia talvez tenha sido a grande responsável por levar a essa tragédia, isso baseado em outros fatos

que agravariam mais ainda a situação. O programa “A tarde é Sua”, da RedeTV!, era veiculado no horário da tarde, durante a semana e era apresentado Gabriele Tenório

38, o sequestrador deu início ao terror que duraria mais de 100 horas. No local estavam Eloá, sua colega de escola Nayara Silva e ainda mais dois colegas que realizavam um trabalho escolar. O caso ocorreu em outubro de 2008 e teve repercussão nacional e internacional. A mídia foi um agente direto no desfecho do caso, sendo considerada por muitos como uma segunda culpada, ou influenciadora na tragédia. Segundo o Coronel Eduardo José Felix, o sequestrador voltou atrás na decisão de por fim ao cárcere privado após conceder entrevista para a televisão. Coberturas ao vivo, interação com os envolvidos em tempo real, até a contratação de um instrutor de defesa pessoal da polícia dos Estados Unidos para comentar o caso em uma emissora de TV brasileira, foram alguns dos muitos fatores que podem ter influenciado no desfecho trágico do sequestro. A ação da polícia também é muito criticada, chegando a “devolver” a refém Nayara Silva, de 15 anos, ao cativeiro.

Antônio Assiz Jornalista formado desde 1990. por Sônia Abrão. A jornalista divulgou ao vivo no dia 15 de Outubro de 2008 uma entrevista com Lindemberg Alves via telefone, que durou mais de 30 minutos, assumindo o papel de negociadora, aconselhando o sequestrador a se acalmar e pedindo para que ele soltasse a jovem. Lindemberg, porém, estava irredutível, alegando que iria soltar Eloá, mas que não iria dizer quando e nem que horas isso poderia acontecer. A apresentadora também foi duramente criticada pelo colega de profissão, o apresentador do programa Brasil Urgente, José Luiz Datena. O jornalista disse abertamente que alguns repórteres e apre27


Paula Lira

sentadores não atrapalhassem mais o caso agindo como negociadores. O ex-comandante do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e Sociólogo Rodrigo Pimentel, também condenou a ação em entrevista para o site “Terra Magazine”: “foi irresponsável, infantil e criminoso o que a Sônia Abrão fez”.

A Psicóloga Maristela Botari é especialista em relacionamentos.

Maristela Vallim Botari, 52, psicóloga há 8 anos classificou a ação dos jornalistas e editores como técnicas psicológicas para fazer apelo emocional. “Quando eles querem vender ideia de terror eles conseguem, quando querem vender ideia de paz, eleger ou favorecer um candidato, eles usam os ângulos certos, as imagens certas e nós somos suscetíveis, nosso incons28

ciente aceita a primeira coisa que vê, ou que ouve e não foi diferente no caso”, declara Maristela. A psicóloga, especializada em relacionamentos, acredita que a mídia pode ter afetado o psicológico do sequestrador após inúmeras interferências: “ele pode ter se sentido pressionado pela mídia e alguma coisa ali no inconsciente dele fez com que a ansiedade dele aumentasse, e ele perdesse o senso crítico, a partir daí ele começa a perder-se totalmente”. Após o triste desfecho do caso, em torno de 40 mil pessoas acompanharam o enterro de Eloá, sendo que apenas uma parte delas era de parentes e amigos da jovem. Havia mais curiosos e também pessoas que acompanharam pela televisão o sequestro. “Tenho certeza que a mídia tem uma influência negativa sobre as pessoas. Ela é um dos três aparelhos ideológicos do estado (...) A televisão está ali falando o tempo todo de uma tragédia, as pessoas não estão só acompanhando, elas estão vivendo aquilo”, completa.

Lindemberg Alves, durante o sequestro da jovem. O MPF pediu uma indenização de 1,5 milhão de reais, equivalente a 1% do faturamento bruto anual da emissora para o Fundo de Defesa dos direitos Difusos. “Ocorre que, no programa, não só o drama de Eloá foi tratado como entretenimento, em flagrante desrespeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento, como também a emissora a inseriu como atração principal em seu programa, fazendo com que dele participasse de modo efetivo e sem devido ‘alvará judicial’”, declarou a procuradora regional do direitos do cidadão Adriana da Silva Fernandes, autora do pedido. Adriana ainda ressalta que a emissora agiu de forma inconstitucional e ilegal por afrontar as normas constitucionais e infraconstitucionais que regulam o serviço público federal de radiodifusão e as que garantem direitos da criança e do adolescente, com evidente prejuízo para a sociedade e para o telespectador.

RedeTV é processada

No dia 10 de fevereiro de 2012, a Promotora do caso, Daniela Hashimoto, informou que a defesa de Lindemberg iria convocar seis jornalistas, entre eles Sônia Abrão (RedeTV!) e Roberto Cabrini (SBT) para serem testemunhas do julgamento do sequestrador no dia 13 de fevereiro de 2012.

O Ministério Público Federal em São Paulo moveu uma ação contra a emissora RedeTV em 1° de dezembro de 2008, por exibir a entrevista no programa “A Tarde é Sua”, comandado por Sônia Abrão, com a menor Eloá Pimentel e

A Mídia no tribunal

Revista Código | Cruzeiro do Sul


Por meio de sua assessoria de impressa, Cabrini confirmou sua presença no tribunal, já Sônia Abrão não se manifestou sobre isso.

Ibope O programa “A Tarde é Sua”, na época oscilava entre um e dois pontos de audiência, mas, durante a entrevista via telefone com o sequestrador e a jovem mantida em cárcere privado, os números de audiência cresceram consideravelmente, alcançando cinco pontos. Vale ressaltar que, a policia invadiu o apartamento em um horário de grande índice de televisores ligados e telespectadores totalmente focados no desfecho do longo sequestro. O que não quer dizer que os policiais agiram devido ao Ibope, mas há coincidência, por conta do horário da ação. O papel da mídia é informar e não fazer uma disputa por audiência, transformando um caso sério em um espetáculo, como foi tratado o de Eloá Cristina Pimentel. Esse sequestro poderia ter tido um outro desfecho se a imprensa tivesse optado por fazer o seu trabalho e não interferir, negociando diretamente com o sequestrador. Ficam os questionamentos: a corrida pelo topo da audiência vale mais do que uma vida? Até que ponto o jornalista deve ir para obter o “furo” em um caso de repercussão? Novembro de 2019

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Jornalismo e Sociedade

Jornalistas esportivas

contra O machismo Reprodução Instagram

As mídias sociais apoiam as mulheres na luta pela igualdade dentro e fora do ambiente de trabalho

Giovana Kiill, narradora do jogos de futebol da TVB.

Por Acsa Freire, Andressa Paes, Janaína Melo e Vanessa Linhares.

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T

odos os dias, jornalistas esportivas sofrem algum tipo de assédio, seja moral ou sexual, dentro ou fora do ambiente de trabalho e nem sempre podem opinar sobre os jogos durante um programa esportivo, por serem tratadas por torcedores como incapazes e sem o conhecimento necessário para abordar o assunto futebol. Nos programas esportivos, as mulheres ainda são

vistas como objeto e muitas delas são inferiorizadas pelos próprios colegas de trabalho, incluindo a produção. Segundo Giovana Kiill, narradora de futebol e repórter da TVB, “Muitas (jornalistas) são instruídas a não opinarem durante os programas, apenas se forem solicitadas”. Sendo o futebol o esporte mais popular no país, ele também é o principal palco para o preconceito contra mulheres jornalistas, que Revista Código | Cruzeiro do Sul


Reprodução

frequentemente, não são levadas a sério pelos próprios colegas de trabalho e ouvem comentários como “mulher não entende de futebol”, ou “lugar de mulher é na cozinha e não no campo”.

Como surgiu a campanha #DeixaElaTrabalhar No ano de 2018, a jornalista do “Esporte Interativo”, Bruna Dealtry, sofreu assédio de um torcedor, enquanto fazia a cobertura da estreia do Vasco da Gama, na fase de grupos da copa Libertadores da América. Um homem tentou beijá-la, ao vivo, deixando a repórter sem reação. A partir daí, Bruna teve a ideia para a campanha #DeixaElaTrabalhar, para incentivar outras jornalistas a lutarem pelos seus direitos no exercício da profissão. O movimento se expandiu, não só para as redes sociais, mas também para a mídia tradicional, dentro e fora do país. Com a repercussão na mídia, diversos profissionais do jornalismo ajudaram na divulgação da campanha, incluindo jornalistas mulheres que apoiaram a causa lutando por seus direitos. De acordo com Luciana Mariano, jornalista e narradora esportiva, “a campanha #DeixaElaTrabalhar foi uma forma de conscientizar as pessoas que até então ignoravam o fato de que toda vez que se entrava em campo tinha uma gracinha desse tipo, que é assédio”. Novembro de 2019

Jornalistas se uniram para criar o movimento #DeixaElaTrabalhar. A jornalista Mayra Siqueira acredita que o movimento #DeixaElaTrabalhar foi de extrema importância para o meio, e que pela primeira vez, houve uma união efetiva das mulheres do jornalismo esportivo. Segundo Mayra, essa campanha “só ganhou força porque as mulheres do meio perceberam que é um momento que muitas transformações sociais estão acontecendo, nesse sentido, a gente nunca no mundo viveu um momento em que mulheres têm tanta voz”, completa a jornalista. O movimento incentivou outras profissionais, que agora se dispõem a fazer denúncias contra o crime de assédio, e mostram que uma mulher pode (e deve) participar de assuntos até então ditos como “masculinos”, o que começou a gerar comoção entre os internautas, que apoiam o trabalho feminino, como o técnico do Botafogo, Alberto Valentim, que divulgou um vídeo na rede social Instagram no qual mostra seu apoio à campanha e o jornalista Felipe Goldenberg,

“Ninguém acreditava que uma mulher pudesse narrar futebol, eu narrei”. Luciana Mariano - Narradora Esportiva da ESPN.

do Jornal Zero Hora de Porto Alegre, que também aderiu ao movimento nas redes sociais. O vídeo feito para a campanha mostra jornalistas sendo atacadas pelos torcedores e pedindo respeito durante o exercício da sua profissão, 31


Acsa Freire

exemplo, já é possível narrar através do facebook, através de lives, e por ai vai”, completa.

Cartão vermelho para o machismo! Bruna não é a primeira vítima de machismo no Brasil. Há milhares de casos e diversos tipos de assédio vivenciados por jornalistas esportivas. Outro exemplo de jornalista que sofreu com assédio durante uma cobertura de futebol, foi a repórter da TV Globo Julia Guimarães. Um homem tentou beijá-la antes do jogo entre Japão e Senegal, durante a copa do mundo de

Vanessa Linhares

fazendo com que times de futebol do Brasil inteiro, como São Paulo, Palmeiras, Chapecoense, Botafogo, Corinthians, Flamengo, entre outros, apoiassem e ajudassem na campanha, repostando o vídeo do movimento. Além dos clubes e jogadores, famosos também se engajaram na divulgação da campanha, como a apresentadora Ana Hickman e a ex-candidata a vice-presidente Manuela D’Ávila que publicaram no Twitter a hashtag #DeixaElaTrabalhar, mostrando seu apoio ao movimento. Luciana Mariano também diz que as mídias ajudaram muito na repercussão do movimento, e que agora as mulheres não ficam mais caladas, elas se apoiam, e por meio das redes sociais, mais pessoas têm tido o conhecimento dessa iniciativa. “A gente (jornalistas esportivas) depende das emissoras, depende dos direitos de transmissão, e esse leque vem se abrindo, porque hoje, por

Luciana Mariano foi a primeira mulher a narrar um jogo de futebol na televisão. 32

2018, ocorrida na Rússia. Diferente de Bruna, que não teve reação nenhuma no momento do assédio, Julia repreendeu o homem, dizendo: “nunca mais faça isso, ok? ”. Mesmo com a grande repercussão na mídia, o assédio contra profissionais femininas continua sendo um problema. Em muitos casos, ocorre o medo e a vergonha de denunciar, e em outros, a justiça não é feita e o agressor nem sempre paga pelos seus crimes. O machismo é algo tão enraizado na nossa cultura, que muitas vezes, mulheres que são vítimas dessas situações nem percebem que se trata também de um tipo de assédio. A jornalista Mayra Siqueira relata que já foi vítima de assédio e de comentários machistas, mas que na época que isso ocorreu, ela nem se deu conta: “eu fui percebendo que algumas situações não eram legais, que não eram normais, (...) já aconteceu comigo várias vezes, algumas situações de machismo explícito e que eu fiquei muito mal, e outras que eu fui percebendo que os errados eram eles e não eu, foi ficando mais fácil de lidar”, conta. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Arquivo pessoal

Novembro de 2019

Reprodução Instagram

Como muitas vezes as profissionais do jornalismo não encontram apoio em suas emissoras e até mesmo nas autoridades, elas vêm se juntando e mostrando apoio ao movimento Deixa Ela Trabalhar, publicando em suas redes sociais casos de assédio à jornalistas mulheres da área esportiva. Cada post relata o ocorrido e os comentários de internautas, muitas vezes mulheres, mostram o apoio às vítimas das agressões. O que entra em discussão é quais os desfechos desses crimes, cometidos contra essas profissionais? Os agressores saíram impunes? É difícil encontrar, no entanto, alguma atitude tomada após a denúncia da vítima. A mídia tem feito seu papel na divulgação e apoio ao movimento, se posicionando contra os crimes de assédio e violência contra a mulher, o que raramente se vê é a apuração feita por parte da grande mídia tradicional em busca de punições a esses criminosos e também em relação às ações da justiça. Frente a essa situação, muitos casos acabam com a vítima calada e com o agressor impune. Desse modo, parece que tudo não passou de mais um dia de trabalho “normal” para as jornalistas esportivas, cansadas de terem de passar

Giovanna Kiill é jornalista esportiva e narra jogos de futebol em Campinas/SP. por esses tipos de situações, onde a massa parece estar “acostumada” com esses tipos de comportamentos machistas. Hoje, após um ano do ocorrido com a jornalista Bruna Dealtry e do grande apoio que o movimento teve nas redes, parece que o clima esfriou e não se ouve mais falar da campanha Deixa Ela Trabalhar, entretanto, muitos são os casos que merecem maior atenção da grande mídia. Ainda que aos poucos, as

Mayra Siqueira, jornalista e ex-repórter esportiva da rádio CBN.

grandes mídias estão quebrando antigos paradigmas de que existem assuntos apenas para homens e estão abrindo espaço para as mulheres atuarem como narradoras e comentaristas, ainda há muito para ser mudado na sociedade para acabar com o machismo. De acordo com Giovana Kiill, “mais mulheres têm que comentar, mais mulheres têm que narrar, até que chegue um momento em que isso seja visto como algo normal. Enquanto isso, as profissionais da notícia continuam lutando por seus direitos e por seu lugar no jornalismo esportivo, e por meio de campanhas como a "Deixa Ela Trabalhar", desejam ser reconhecidas pelo seu trabalho e poder atuar, com tranquilidade, na área esportiva. 33


Ian Izaque

Jornalismo e Sociedade

Panorama da violência nas periferias

Da Zona Leste de São Paulo Casos antigos e atuais refletem as situações de precariedade em comunidades da Zona Leste da cidade de São Paulo

Por Carolina Mangieri, Ian Izaque, Marina Gonçalves, Roberto Araújo e Rodrigo Alves.

U

ma matéria da Folha de São Paulo, realizada no segundo semestre de 2017, aponta que um quarto dos casos de latrocínio está localizado em sete distritos da cidade de São Paulo. 24% dos assaltos seguidos de morte estão centrados nas regiões de São Mateus, José Bonifácio, Guaianases, Lajeado, São Miguel, Vila Curuçá e Itaim Paulista. 34

Segundo Gilmar Souza Santos, subprefeito do Itaim Paulista, as medidas tomadas pela Prefeitura para mudar as estatísticas de criminalidade na Zona Leste de São Paulo tem sido estar presente nestes territórios. Atua-se por meio da Coordenadoria Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança (Conseg) para ouvir a sociedade. Gilmar relata que a população é ouvida e, posteriormente, casos de latrocínio, assalto, furto e estupro são levados às Polícias Militar e Civil. Um dos exemplos associados às estatísticas é o rela-

to do motorista de aplicativo, Leonardo Gomes, que passou por uma situação de violência em um conjunto habitacional, no bairro José Bonifácio. Segundo ele, ao desembarcar um casal de passageiros, foi abordado por cinco assaltantes. "Dois vieram ao meu lado, me renderam com arma em punho e apontaram na minha cabeça (...) sem chances de reação. Levaram meu carro e tudo que estava nele". Entretanto, a sorte estava ao seu favor e seus pertences foram recuperados pela Polícia Militar 30 minutos após o Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

Roberto Magalhães

roubo. Os policiais avistaram o carro na contramão, acharam a atitude suspeita e o abordaram. Na abordagem, constataram que o veículo era roubado. Em 2018, a Prefeitura de São Paulo sancionou uma lei que decretava obrigatório o uso de adesivos de identificação em carros de aplicativos como Uber, 99 Táxi, Cabify e Lady Driver. Um ano depois, a Prefeitura passou a fiscalizar e apreender automóveis sem o adesivo. De acordo com o órgão, até abril deste ano, 3,3 milhões de carros estavam em não conformidade. Para Leonardo, este método tornou o carro mais "visado" e de certa forma aumenta a vulnerabilidade dos veículos de aplicativo. "O poder público não está nem preocupado com os motoristas de ônibus, quem dirá com os de aplicativos", diz. Segurança Pública é competência do Estado, como destaca Gilmar Souza Santos. Ele afirma que essa responsabilidade não está atribuída ao município, porque a Guarda Civil Municipal (GCM) é quem cuida do patrimônio da cidade: “A Polícia Militar e a Polícia Civil são as responsáveis pela Constituição da Segurança Pública”. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, o Brasil ocupa a oitava posição no ranking mundial em número de mortes por arma de fogo. O levantamento da instituição menciona um apontamento realizado por

Descarte de lixo nas ruas da comunidade do Keralux. pesquisas nacionais e internacionais sobre o aumento da violência letal estar correlacionada com a maior circulação de armas. Em 2016, o Brasil estava entre os seis países responsáveis pelo maior índice de mortes envolvendo armas de fogo, de acordo com o Journal of American Medical Association (Jama). Colômbia, Venezuela, Guatemala, México e Estados Unidos são os outros países mencionados nesta etapa da pesquisa. As principais causas dos confrontos fatais, conforme o estudo, são as guerras entre facções criminosas e o tráfico de drogas. No artigo “O golpe e os golpeados”, a jornalista, Eliane Brum, narra um fato ocorrido no Morro do Querosene, no Rio de Janeiro. O caso em questão, é de um jovem negro, morador da favela, morto por uma bala perdida “e, assim, se tornado uma bala achada”, como destaca Eliane Brum.

Um jovem negro teve sua vida interrompida por uma bala perdida “e, assim, se tornado uma bala achada”

Em sua narrativa, a autora menciona a mãe do rapaz, Sheila da Silva, a quem se refere como “Pietà Negra”. É curioso ressaltar: o termo “Pietà Negra” carrega grande significado. Pietà é uma estátua talhada em már35


Roberto Magalhães

Moradores sofrem com a falta de asfalto na comunidade do Keralux. e do cidadão, pois é de suma importância investir em cultura, esporte, lazer, artesanato, entre outros.

Manifestações socioculturais A capital Paulista abarca Casas de Cultura com o intuito de promover o acesso ao lazer e movimentos culturais. Ao todo são 18 oficiais, sendo 6 localizadas na Zona Leste. Além dessas, há também as

Ian Izaque

more pelo poeta, escultor, pintor e arquiteto florentino, Michelângelo. A obra representa a Virgem Maria com Jesus nos braços, após sua crucificação. Por ser esculpida em mármore, pode remeter à uma pessoa branca. Sheila, ao encontrar seu filho morto, ergue o lençol envolto em seu corpo, mergulha suas mãos no sangue e pinta o rosto com ele, em forma de protesto. Isto resultou em uma fotografia impactante, clicada pelo fotógrafo Pablo Jacob. De acordo com Gilmar, a falta de programas culturais e educacionais, dá abertura para a violência e a criminalidade. “O crime apadrinha os jovens quando há ausência do Poder Público”, diz. O subprefeito ainda ressalta que é necessário trabalhar na base para a formação do caráter da criança

Tainá Dias fala sobre as dificuldades enfrentadas na época de sua graduação. 36

não oficiais, mantidas com recursos próprios, sem interFoto: Roberto Araújo venção do poder público. Os serviços oferecidos pelas Casas de Cultura estão centrados em atividades como exposições, oficinas de teatro, expressão corporal, artes visuais, música, capoeira, dança, entre outras. Tais ações são atribuídas ao público de todas as idades para que haja inclusão de toda a população. Para Aureo Verticchio, 51, gestor da Casa de Cultura de Guaianases, o índice de criminalidade pode diminuir com a inserção de projetos culturais nas comunidades. “Temos um público de, mais ou menos, oitocentas pessoas por semana de acordo com os nossos eventos, somando com as oficinas”. Aureo afirma que muitos frequentadores da Casa estavam vulneráveis à violência e os programas dão um novo rumo às suas vidas. O espaço, antes de virar Casa de Cultura, era uma Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana (CDM) abandonada. O local foi ocupado por pessoas em situação de rua e usuários de Revista Código | Cruzeiro do Sul


Carolina Mangieri

drogas. O índice de roubo era grande, e os moradores tinham medo de sair de casa. Verticchio conta que, ao abrir a Casa de Cultura, a população voltou a frequentar o espaço e os ocupantes deixaram o local. Alguns deles participam de oficinas e assistem aos espetáculos. Outro exemplo de projetos socioculturais é o conjunto habitacional Keralux, situado no distrito Ermelino Matarazzo.

“O crime apadrinha os jovens quando há ausência do Poder Público” Gilmar Souza Santos, Subprefeito do Itaim Paulista.

Segundo o morador, Lucas Almeida Soares, a região conta com eventos em datas comemorativas realizados pela associação e igrejas locais. Na festa junina, por exemplo, a igreja católica promove quiosques em frente à entidades dos moradores com comidas típicas da comemoração de São João e também há eventos artísticos em um palco próximo à praça central. A Instituição União Keralux (INKER) oferece para o bairNovembro de 2019

Subprefeito do Itaim Paulista, Gilmar Souza Santos, fala sobre ações socioculturais promovidas pela Prefeitura de São Paulo.

ro uma variedade de oficinas pagas e gratuitas. Os valores cobrados variam de 30 a 50 reais. As gratuitas incluem capoeira, percussão, mídias sociais e até atividades físicas para os moradores idosos. No Keralux, Tainá Dias, formada em Rádio e TV, relata a dificuldade enfrentada no decorrer de sua graduação. A jovem de 23 anos, residente da comunidade desde os dois anos de idade, já presenciou assaltos em comércios próximos. “Uma vez, um dos comerciantes sofreu aproximadamente dez assaltos. Depois disso, fecharam por um tempo até se restabelecerem novamente”. A estudante também ressalta o medo enfrentado por moradores diariamente no trajeto até o ponto de ônibus. “É um negócio meio estranho, porque pessoas de outros lugares frequentam aqui. Por exemplo, na época da faculdade, meu pai me buscava por

conta da falta de segurança”. Hoje, o fluxo de frequentadores do Keralux é maior, por conta dos estudantes da USP Leste. Ao perceber a falta de possibilidade de adquirir experiências, Tainá decidiu ir na contramão e investir em cursos gratuitos oferecidos na região, através de ações sociais desenvolvidas por voluntários do bairro. A partir daí, decidiu entrar na Universidade e se formou no ano de 2018. A jovem afirma que educação, cultura e esporte são meios para driblar a violência. “O poder público precisa investir em mais lazer e projetos socioculturais, porque com isso, a comunidade tem mais momentos de entretenimento e, consequentemente, se sente mais acolhida e pertencida”, finaliza seu relato. Como apresentado, investir em cultura é um dos meios para que casos como o da “Pietà Negra” não aconteçam. 37


Jornalismo de Referência

AS BODAS DE

UMA PATOTA DUCA Mesmo após 50 anos de sua fundação, jornal carioca “O Pasquim” ainda é símbolo de um jornalismo brasileiro, alternativo e debochado Por Bruna Santos e Guilherme de Sousa. Colaboração: Aline Julio, Carlos Soares, Max Diniz e Sávio Ferreira

“O

Pasquim” nasceu de uma forma completamente destoante de sua trajetória: após um enterro. Fundado em junho de 1969, o projeto do periódico surgiu depois da morte de Sérgio Porto, diretor de “A Carapuça”, jornal com teor humorístico que teve apenas cinco edições. Para preservar o trabalho e memória do cronista carioca, o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral criaram “O Pasquim”, negando o convite de administrar o “semanário hepático-filosófico” fundado por Porto em agosto de 1968. Com uma aura jovial e indiscutivelmente boêmia, “O Pasquim” tornou-se símbolo do jornalismo alternativo durante a 38

ditadura civil-militar brasileira, regime instaurado entre 1964 e 1985. Seu ar cômico e debochado desafiava não somente o governo, como também os preceitos morais da elite carioca. Reportagens e artigos comportamentais que falavam com leveza sobre sexo, drogas, feminismo e divórcio, conquistavam leitores e promoviam discussões ímpares para a época. Ainda assim, a frase que constava do cabeçalho equivalia a uma declaração de princípios: “Aos amigos tudo; aos inimigos, justiça”. Responsável por disseminar termos populares como “putzgrila”, “bicha”, “duca” e “paca”, as reuniões de pauta aconteciam nos bares de Ipanema, sem ao menos decidir qual dos presentes poderia ser considerado o “editor-chefe”. Batizada de “a patota”, o jornal reuniu jornalistas, cartunistas e intelectuais como Millôr Fernandes, Ziraldo, Chico Buar-

que, Ivan Lessa, Paulo Francis, Vinícius de Moraes, Glauber Rocha, Odete Lara, Carlos Prósperi, Henfil, Fortuna, Cacá Diegues, Miguel Paiva, Carlos Leonam, entre tantos outros. Para Fernando Coelho dos Santos, organizador do “1º Salão Mackenzie de Humor e Quadrinhos”, a molecagem e a irreverência foram essenciais para o sucesso do semanário. “Eles formaram um grupo de pessoas fora da curva, inteligentes, sagazes. Cada um tinha sua linha pessoal e política, tiravam sarro de tudo e de todos, inclusive uns dos outros. Além disso, criaram uma diagramação diferenciada, com total liberdade. Seções e termos, copiados por todos, como é o caso das Dicas criada pela Olga Savary, até hoje circulam pelas ruas”. O tom zombeteiro já surgia no primeiro exemplar. No artigo intitulado “Independente, é? Vocês me matam de rir”, Millôr Revista Código | Cruzeiro do Sul


Furacão Leila Responsável por realizar um jornalismo mais oralizado, pouco preocupado com o estilo formal, o jornal ficou conhecido por suas longas entrevistas, feitas principalmente em ambientes festivos e cheias de intromissões dos colaboradores. Personalidades como Chico Buarque e Madame Satã integraram o rol de depoimentos tomados em tom de bate-papo. Mas o caráter nada discreto do semanário não passaria despercebido pelos sensores do regime militar, marcado pelo Ato Institucional número 5, o “AI-5”, que fora promulgado em dezembro de 1968 pelo então presidente Artur da Costa e Silva. Considerada uma das publicações mais polêmicas d’O Pasquim, a entrevista com a atriz carioca Leila Diniz causou furor na época. Na conversa, ela falou abertamente sobre amor, sexo, homossexualidade e feminismo. Isso alterou os ânimos do domínio militar, Novembro de 2019

masculino e conservador da época, que não admitia uma mulher livre de amarras e sem nada a esconder. Frases como: “Eu nunca comi mulher nenhuma porque elas não têm p**. E pra mim, p** é um negócio essencial”, estremeceram o cenário da época. Foi a partir dessa entrevista que o “Decreto Leila Diniz” foi aprovado pelo general-presidente Garrastazu Médici, que instituiu de vez a censura prévia dos periódicos, tendo como alvo “as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”. Para Marcos Silva, Professor Titular de Metodologia da História na FFLCH/USP, desde o início o jornal estava fadado ao confronto político. “O Pasquim contou com a participação de importantes desenhistas de humor que tinham experiências anteriores na crítica política. O próprio surgimento desse grupo como editor de um jornal pode ser considerado politizado naquele universo ditatorial”.

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desacreditava que o jornal podia ser desvinculado de outros meios: “Não estou desanimando vocês não, mas uma coisa eu digo: se essa revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses não é independente. Longa vida a essa revista! P.S. Não se esqueça daquilo que eu te disse: nós, os humoristas temos bastante importância pra ser presos e nenhuma pra ser soltos”.

Atchim No mês de novembro de 1969, onze integrantes do semanário foram presos após o lançamento da 71º edição. O motivo? O famoso quadro de Pedro Américo, “Independência ou Morte”, fora editado. Na obra, um balão sobre a cabeça de Dom Pedro I dizia: “Eu quero mocotó!”. “Em alguns momentos eles sofreram violência dita39


Reprodução Reprodução

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modo de sua existência era equivalente a intensidade de sua circulação, chegando a vender um total de 225 mil exemplares em 1970, meses após a sua criação. De acordo com Fernando Coelho, apesar da oposição clara ao regime da época, a ideia de um jornalismo de resis“Eu quero Mocotó”, refrão do sucesso de Erlon Chaves. A charge criticava o civismo brasileiro e garantiu a prisão de 11 membros do semanário. tência não combinava com o periódico. Os únicos que escaparam “Não entendo, como alguns torial, mesmo assim conseguiram impor temas e perda prisão foram Millôr e Henfil, dizem, que o jornal foi de sonagens que denunciavam resistência, jeito algum. Como que não foram encontrados. arbitrariedades como se fizes- Com o desfalque, o jornal diz o Jaguar, ‘nós fomos uns sem outra coisa. O cotidiano porra-loucas, mexíamos com sobreviveu graças a solidade violência e corrupção, por tudo e com todos’”, comenta. riedade de outros jornalistas, exemplo, era muito realçado No começo de 1970, o escritores, ilustradores e artispelos personagens de Henfil”, prédio no qual estava instalada tas que se prontificaram para afirma Marcos Silva, também a redação do periódico sofreu ajudar, dentre eles o cantor e autor de “Rir das ditaduras – compositor Chico Buarque e o um ataque a bomba, destruindo os dentes de Henfil”. a fachada do edifício. Meses cineasta Glauber Rocha. No caso dos jornalistas depois, um artefato explosivo Mesmo presos, todos esdo Pasquim, não houve coerainda maior, com enorme poder tavam presentes nas edições ção violenta ou torturas nos de destruição, seria encontrado do semanário, através da dois meses em que estiveram recriação de seu estilo literário na porta da redação. Felizmenpresos. Mas para justificar a ou de seus desenhos e capas te uma falha no mecanismo ausência dos jornalistas, a evitou maiores estragos. que tinham presente uma inedição seguinte anunciava A resposta ao atentado trínseca crítica ao militarismo que um surto de gripe atingira e a censura da imprensa. veio em forma de ironia: com toda a redação. Para os censores, o incô- os rostos cobertos por más-

1964

1969

1970

Por meio de um golpe de estado, é instaurado o regime civil-militar brasileiro.

Publicada a primeira edição do semanário “O Pasquim”.

“Decreto Leila Diniz” instaura a censura prévia. 11 membros do jornal são presos e a redação é alvo de dois atentados a bomba.

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Revista Código | Cruzeiro do Sul


um movimento de indignação popular. A sociedade passou a compreender a importância e poder do humor para driblar a tirania. Para o Professor e Doutor em Ciências da Comunicação Marcos Antônio Zibord, esse artifício foi essencial para a luta da época. “A sátira e o humor ajudaram com a resistência porque na maioria das vezes são indiretos. Eles pressupõem uma interpretação mais sutil que não fica óbvia para a censura. Ali que está a possibilidade de você agir em uma fissura, numa brecha qualquer que o sistema permite, deixa passar ou não percebe”.

caras de caveira e com uma caixa de whisky vazia, os integrantes do jornal posaram para a foto que estamparia a próxima edição. “Damo-nos por vencidos, como diria um purista. Até agora ainda não sabemos quem colocou a bomba na Rua Clarisse Índio do Brasil (vocês já repararam no nativismo de nosso endereço?), na madrugada de quinta-feira, 12 de março (felizmente, como sempre, estávamos no bar). Mas já sabemos, naturalmente, a direção e de onde veio o ataque. E sabemos, sobretudo, o que pretendem os agressores. Assim, para evitar qualquer futuro atentado, damos, acima, aquilo que tão ardentemente desejam os terroristas: ver nossas caveiras”, dizia a legenda escrita por Millôr.

Cinquentinha Apesar do jeito malandro de “garoto de Ipanema”, no dia 26 de junho de 2019, o jornal comemora seus 50 anos. Apesar das marcas de sua existência serem percebidas por todo jornalismo brasileiro, Silva é direto ao falar: “nenhum jornal ou mídia brasileira foi capaz de se equiparar ao que ‘O Pasquim’ fez e representou na sua época”. Levando a sério o ditado “relembrar é viver”, o sema-

O Humor

Em relação à BNDigital, durante o período de final de novembro a março de 2020, as páginas do jornal estarão disponíveis para pesquisa e passeio eletrônico no local da exposição. Para Coelho, tornar essa história cada vez mais acessível é concretizar um sonho: “Estou muito feliz por poder fazer esse trabalho, registro histórico de um tablóide que marcou muitas gerações.”

Reprodução

O Pasquim é admirado até hoje por sua despretensiosa, mas anticonformista forma de criar. Por meio de charges, cartuns e caricaturas, o periódico foi responsável por um humor feroz e político que ajudou a criar

nário parece voltar aos holofotes no ano de suas bodas de ouro por meio das mãos de grandes amigos. Fernando Coelho assumiu recentemente a curadoria da exposição que será realizada em homenagem aos 50 anos do jornal. Além disso, ajudou no desenvolvimento do projeto de disponibilização d’O Pasquim no portal da Biblioteca Nacional. A nova plataforma permite ao aventureiro embarcar nessa longa história de duas décadas, 1.072 publicações e milhares de memórias. As edições já estão digitalizadas e a primeira exposição está marcada para novembro, no Sesc Ipiranga, com um grande grupo já trabalhando no seu desenvolvimento.

1989

1991

2019

O jornal é vendido em para o empresário João Carlos Rabelo.

O semanário chega ao fim após 1072 edições.

“O Pasquim” completa 50 anos e ganha plataforma digital com acervo completo.

Novembro de 2019

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Jornalismo de Referência

A mulher brasileira

ontem e hoje Em 1967, a Revista Realidade trouxe, em edição especial, uma pesquisa sobre as diferenças sociais que claramente existiam entre mulheres os homens. Será que hoje pode-se ver uma evolução desse modelo? inaugurada uma nova cidade, Brasília, projetada para ser a nova capital do Brasil, depois disso, João Goulart foi o primeiro Presidente Trabalhista. Economicamente tivemos a desaceleração mundial e o fim dos “anos dourados” do capitalismo.

Por Estefany Siqueira.

A

década de 60 teve características marcantes: grandes movimentos de esquerda nos países do ocidente e efervescência tanto na política como na cultura. O Feminismo surgiu e ganhou força e os movimentos civis em favor dos negros e homossexuais adquirem protagonismo. Os hippies, que eram contrários à Guerra Fria e ao conflito do Vietnã, inspiravam novos tempos. Um conjunto de manifestações levantaram-se em diversos países, e este tem seu ápice em 1968, quando diversos movimentos estudantis pelo mundo tomam as ruas para contestar a sociedade vigente. Na música tivemos os Beatles e os Rolling Stones. No Brasil, Elis Regina e outros artistas consolidam a Música Popular Brasileira (MPB) e os festivais de música viriam a influenciar gerações. Em 1967, surge 42

A importância de uma revista Capa da polêmica edição de Realidade, lançada em 1967. a Tropicália, que conta com grandes cantores como Caetano Veloso e Gilberto Gil. De outro lado, a Jovem Guarda ditava o figurino e fazia sucesso na televisão. Outro fator importante nos anos sessenta foi a difusão da TV a cores, que chega ao Brasil com a TV Tupi em 1963. No ano seguinte, a IBM lança um circuito integrado (chip) e para completar surge o protótipo da internet, a Arpanet. Na política brasileira foi

Lançada pela editora Abril, a revista Realidade foi uma publicação que durou de 1966 a 1976. Os temas eram muitas vezes polêmicos, abordados em matérias muito bem escritas e apuradas, dentro de um formato jornalístico autodenominado “Novo Jornalismo”, surgido nos Estados Unidos, criado por Tom Wolfe, Gay Talese, entre outros. As características desse jornalismo “novo” eram clareza e objetividade, com um foco narrativo, sendo assim também chamado de jornalismo literário. Os jornalistas tinham total liberRevista Código | Cruzeiro do Sul


dade para escrever os textos em primeira pessoa, inserir diálogos com travessões, fazer descrições minuciosas de lugares, feições e objetos. Além disso, era possível alternar o foco da narrativa de observador onipresente para testemunha ou participante dos acontecimentos. Realidade era uma revista que trabalhava com a emoção: investia-se muito no jornalista para que ele conseguisse transmitir em suas reportagens uma ideia real do fato. A revista passou por fases, na primeira delas, uma edição ficou marcada: a de janeiro de 1967. Era uma edição especial sobre A mulher brasileira, que continha reportagens sobre temas que até hoje, infelizmente, são considerados tabu. As reportagens chamaram a atenção de um juiz de menores de São Paulo que as considerou “obscenas e profundamente ofensivas à dignidade da mulher”. No dia 30 de dezembro de 1966, quando a revista tinha acabado de chegar às bancas, toda a tiragem foi apreendida, inclusive os exemplares que ainda estavam na gráfica. Porém, graças a ação rápida dos jornaleiros, quase metade da tiragem foi vendida e circulou de mão em mão durante muitos anos. Aquela edição falava sobre como a mulher brasileira da década de 60 vivia, trabalhava, amava e pensava. A redação havia dedicado vários meses para a preparação Novembro de 2019

Mulheres do século XXI: as mudanças na sociedade brasileira são notáveis, mas ainda há muito o que evouir. desse especial. O ex-diretor da revista Realidade Roberto Civita (1936-2013) resolveu descobrir os bastidores da proibição, assim como tentar recorrer da decisão. Na edição seguinte foi deixado registrado que os juízes não especificaram o que acharam obsceno na edição que foi apreendida, mas se descobriu depois que eles tinham sido incitados por uma ligação do então governador de São Paulo, Laudo Natel, que teria recebido um telefonema indignado do cardeal da arquidiocese. Deu-se então entrada em uma ação judicial Vinte meses depois, no dia primeiro de outubro de 1968, numa decisão memorável do Supremo Tribunal Federal, os exemplares foram liberados Infelizmente os exemplares já haviam sido triturados. “Embora tarde demais para salvar a edição ou reparar os pesados

danos materiais causados pela proibição, a decisão do Supremo lavou nossa alma e nos deu forças para continuar pelo mesmo caminho”, disse Roberto Civita em um depoimento dado quando a edição teve, finalmente, sua reimpressão, em 2010. Pode soar estranho nos dias de hoje, pensar que aquele periódico foi retirado de circulação por conter assuntos que para nós, que estamos no século XXI, no ano de 2019, sejam tão normais e corriqueiros. Os pensamentos evoluíram, as mulheres se tornaram mais fortes e convictas no que acreditam, se tornaram independentes e dispostas a lutar por seus ideais. Embora seja verdade também que muitos dos assuntos tratados na edição recolhida e depois destruída ainda provoque arrepios na parte mais conservadora da sociedade brasileira. 43


As conquistas das mulheres ao longo dos anos Assuntos pelos quais se lutava na época foram conquistados anos depois, podemos então listar: 1975: É fundado o jornal “Brasil Mulher” que infelizmente teve apenas vinte edições em dois anos, mas que é considerado um dos porta-vozes do movimento feminista e tinha como objetivo ser mais uma voz na busca pela igualdade. 1977: A Lei do Divórcio é aprovada. Vale lembrar que mulheres desquitadas eram mal vistas aos olhos de muitas pessoas e algumas mulheres preferiam viver relacionamentos abusivos a se divorciarem. No mesmo ano, Rachel de Queiroz, escritora e jornalista, foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. 1979: mulheres são autorizadas a praticar qualquer esporte. Em 1937, Getúlio Vargas decretou que as mulheres só podiam praticar esportes para os quais elas tivessem condições físicas para isso. Lutas, futebol, beisebol e outros eram extremamente proibidos. Mas em 1979, quatro mulheres se inscreveram com nomes masculinos no Campeonato Sul Americano de Judô e o Brasil conquistou o título devido a boa pontuação dessas atletas, então o governo decidiu revogar a lei. 1980: A Marinha do Brasil passa a aceitar mulheres. Dois anos depois, foi a vez da Força Aérea e, finalmente, em 1992 foi a vez do Exército. 1985: Surge em São Paulo a primeira delegacia da mulher e logo em seguida outras unidades foram abertas em diversos estados. A Polícia Civil utiliza essas unidades especializadas para investigar e criar medidas de proteção para os casos de violência doméstica e sexual contra as mulheres. 1996: As mulheres passam a participar ativamente da política. Os partidos são obrigados a ter ao menos 20% das suas chapas eleitorais formadas por mulheres. 44

2006: é criada a Lei Nº 11.340, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, que é sem dúvida uma das maiores e mais importantes conquistas das mulheres brasileiras. Maria da Penha, a farmacêutica que dá nome a lei, sofreu duas tentativas de homicídio pelo seu marido Marco. Ela lutou e conseguiu colocar o seu cônjuge atrás das grades. Só 23 anos depois uma lei de proteção foi criada, mas todas as mulheres são gratas pela sua luta, que as inspira a continuar lutando todos os dias. 2010: o Brasil elege a primeira Presidenta do país. Dilma Rousseff marca a história da pátria, convocando nove mulheres para serem ministras. 2013: No entretenimento, Kathryn Bigelow é a primeira mulher a ganhar o Oscar de melhor direção. Ela foi apenas a quarta indicada para ganhar o prêmio na história. 2015: No dia nove de março de 2015, é aprovada a lei do feminicídio, tipifica esse tipo de crime no Brasil. 2016: De volta ao mundo das telonas, Viola Devis é a primeira mulher negra a ganhar um Emmy. No ano seguinte, ela conquista o Oscar como melhor atriz coadjuvante. 2019: Em fevereiro, Maria Júlia Coutinho, a querida Majú, se torna a primeira mulher negra a integrar o time de apresentadores do maior jornal da televisão brasileira, o “Jornal Nacional”, fazendo parte do rodízio de jornalistas aos finais de semana e feriados. Em setembro tornou-se a apresentadora do “Jornal Hoje”, também da TV Globo. Ainda em 2019, mas nas telas de cinema, Ruth E. Carter e Hannah Beachler marcaram o Oscar ao receberem os prêmios de melhor figurino e melhor design de produção, pelo filme Pantera Negra. Muitas das mulheres de 1967 não estão entre nós para contemplarem as transformações que tivemos, porém, elas fazem parte de todas essas conquistas, elas lutaram por isso, e algumas não acreditaram que pudessem ir tão longe, mas ainda há tempo de se conseguir muito mais.

(...) as mulheres se tornaram mais fortes e convictas no que acreditam, se tornaram independentes e dispostas a lutar por seus ideais. É bom ressaltar também que naquela época o país era outro, vivíamos uma ditadura militar, a maioria dos brasileiros achava que o lugar de mulher era em casa fazendo as tarefas do lar, não existia divórcio só o desquite (que uma separação sem valor legal), um quarto das brasileiras tinha vergonha em falar sobre sexo e o número de mulheres que faziam aborto sem nenhuma segurança era grande, assim como é ainda nos dias de hoje. Em uma das matérias escritas naquela edição de Realidade, foi feita uma pesquisa com 1.200 mulheres de várias partes do Brasil. Elas responderam diversas perguntas sobre homens, parentes, religião, política, dinheiro, entretenimento, moral e ideais. É incrível ler o fac-símile da edição de cinquenta e dois anos atrás e perceber o quanto os direitos das mulheres e o país evoluíram e o quanto ainda precisam evoluir. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Jornalismo de Referência

O erro de

Ricardo e Vânia

Por Fábio Saraiva, Gustavo Souza, Gabriela Ocanha, e Victor Granjeia

Divulgação

A história do “Fofão da Augusta” originou uma reportagem de Chico Felitti, publicada pelo Buzzfeed e tornou-se a obra Ricardo e Vânia.

S

ituada a 280 quilômetros da capital paulista, a cidade de Araraquara, em meados da década de 80, era muito pequena para aturar a revolução que Ricardo Correa da Silva e Vagner Munhoz estavam próximos de realizar. Eles eram dois cabeleireiros ousados, sempre com os looks e cabelos da moda e com o “make” impecável. E acredite: isso tudo muito antes mesmo do som de Madonna e Cher invadirem as casas noturnas. Com a ida para São Paulo, e com um talento nato, conquistaram clientes famosos como Glória Menezes, Alcione e Ana Maria Braga. Nessa época, Vagner foi expulso de casa e se abrigou em um apartamento na Avenida São João, uma quitinete, onde Ricardo morava. A con45

Ricardo e Vânia, no início do namoro, em 1981, na boate Medieval, em São Paulo. Revista Código | Cruzeiro do Sul


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Capa do livro Ricardo e Vânia.

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vivência fez com que os dois se apaixonassem. Um dia, após voltar do mercado, Vagner encontrou Ricardo segurando um galão com um líquido denso. Quando confrontado, disse que se tratava de silicone inócuo de uso médico e que tinha conseguido a substância com um amigo farmacêutico. Eles começaram a aplicar o produto um no outro. A tal da “beleza rápida”, virou a maior obsessão. Tais procedimentos fizeram com que Ricardo, anos mais tarde, ficasse conhecido como o “Fofão da Augusta” e Vagner se tornasse Vânia, uma prostituta em Paris. As duas vidas, que se cruzaram por acaso, provocaram grandes abalos por onde passaram. Em outubro de 2017, o jornalista Chico Felitti fez uma reportagem para o portal BuzzFeed sobre a vida de Ricardo

e, com isso, “parou” a internet. Ricardo então abandonou a sua história oculta e ganhou novamente uma identidade. Com o sucesso da história contada, o jornalista recebeu prêmios e em 2019 nascia o livro “Ricardo e Vânia”. A publicação se deu, segundo Felitti, por conta das mais de cinco mil mensagens de pessoas narrando passagens da vida de Ricardo. O material está se transformando em filme, sem ainda previsão de lançamento. A produção é da RT Features, responsável pelos filmes “Frances Há” e “Call Me By Your Name”. Chico Felitti contou à RevistaCódigo que já existe uma primeira versão do roteiro e que acompanha tudo de longe.

Por que Fofão?

Ricardo e Vânia quando namoravam 46

Ricardo foi apelidado de Fofão da Augusta devido a sua semelhança com o personagem da TV brasileira. Além das bo-

chechas enormes, ele aparentava ter uma cabeça desproporcional em relação ao corpo. As primeiras aplicações de silicone industrial foram pela obsessão do cabeleireiro em ter uma face como as das “bonecas chinesas” de porcelana. Em seguida desejava o rosto da cantora Rosana, dona do sucesso O Amor e o Poder. Esses “procedimentos estéticos” já eram executados desde 1980 por travestis que aplicavam em si mesmos, colocando suas vidas em risco.

Não é apenas uma biografia: é uma forma de conscientizar todos que, de alguma forma, estão ou são marginalizados. O Livro Após a reportagem para o Buzzfeed, a caixa de e-mails do jornalista ficou cheia de depoimentos e contos sobre Ricardo. Havia muito mais o que falar sobre o personagem, que podia ir de uma vida calma em Revista Código | Cruzeiro do Sul


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CHICO FELITTI: O AUTOR Código: Além de Vânia, o que mais te motivou/inspirou para a publicação do livro? Chico Felitti: O carinho e o interesse dos leitores. Recebi mais de 5.000 mensagens de pessoas narrando passagens da vida do Ricardo. Código: O que despertou sua curiosidade para entrevistar Ricardo? Chico Felitti: A curiosidade nasceu com a aparência dele. E fui ficando ainda mais curioso ao saber que as pessoas não sabiam o nome dele. Código: Acredita que se você tivesse os entrevistado antes, a história teria um outro desfecho? Chico Felitti: Não. É impossível ficar supondo o que teria acontecido. Impossível e improdutivo. Código: Após o caso de Ricardo, você teve interesse em ir atrás de outras histórias similares? Chico Felitti: Sim, publiquei algumas, inclusive. Como essa, sobre a “Animal”, a corredora de rua. Código: A história de Ricardo e Vânia está se tornando um filme. Como anda a produção? Chico Felitti: Está ótima. Já existe uma primeira versão do roteiro, e olho tudo com carinho, mas respeitando a distância saudável para deixar as pessoas trabalharem. 47

Ricardo Corrêa da Silva na região central de São Paulo, onde ficou conhecido como “Fofão da Augusta”. Araraquara, a um surto de esquizofrenia. O livro foi publicado pela editora Todavia e não é apenas uma biografia: é uma conscientização a todos que, de alguma forma, estão ou são marginalizados. Além de ser uma das reportagens com maior repercussão na internet nos últimos anos, a descoberta de Vânia, namorada do protagonista, foi o interesse maior para a reportagem ser retrabalhada e adaptada para o livro.

O perigo da “beleza rápida” O implante de silicone é uma das cirurgias plásticas mais realizadas no Brasil. A prótese pode ser colocada em

várias partes do corpo para “aumentar o volume”. Mas infelizmente, mesmo com a popularização da cirurgia, algumas pessoas ainda insistem no uso do silicone industrial ou líquido. Um dos casos mais recentes no Brasil foi do médico conhecido como “Doutor Bumbum” que ocasionou na morte de uma bancária. Essa “moda perigosa” teve início na década de 80, principalmente por conta dos travestis, que buscavam a beleza rápida, esquecendo dos riscos à saúde. O procedimento ilegal pode causar siliconoma, uma espécie de tumor motivado pela reação do corpo a aplicação do produto, causando deformidades e morte por infecção generalizada. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Jornalismo de Referência

“Próxima estação,

Carandiru”

De cartão postal ao massacre que dizimou mais de uma centena, casa de detenção de São Paulo completa 100 anos

Por Elina Azevedo, Luana Moraes, Sandra Cotrim, e Thiago Arantes.

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A

s pessoas que passam todos os dias na região da zona norte da cidade de São Paulo, mais especificamente no bairro de Santana, observam um parque a céu aberto com pistas de skate, quadras de futebol, biblioteca e até mesmo uma Escola

Técnica Estadual que faz parte do Centro Paula Souza, a Etec Parque da Juventude, que oferece cursos de administração, nutrição, informática, entre outros. Para grande parte dos brasileiros, a palavra Carandiru traz à tona um tipo de sofrimento, cuja compreensão pasRevista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

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Heitor Hui/Estadão conteúdo

sa por uma reconstituição de acontecimentos que remonta à quase um século de história. A concessão para a implantação do que viria a ser o maior presídio da América Latina durante quarenta e seis anos saiu em 1905, sob o comando do governador Jorge Tibiriçá Piratininga. Anos depois, em treze de maio 1911, deu-se início à construção da Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru. Em Tarde de dois de outubro 1992, local onde os presidiáros tinham princípio, o custo da obra era alguns minutos de “paz” e “liberdade”. estimado em sete mil contos de réis, porém, com ela finalizada obra Encontros com homens, também atendia à nova lógica e inaugurada em vinte e um de livros e países, sobre o sistema do país: “a punição conjuntaabril de 1920, o valor divulgado de cárcere adotado na época, mente à correcção e regenedemonstrou que foi gasto algo que incluía aulas e atividades ração do homem criminoso, em torno de quatorze mil conhouve que construir uma nova extracurriculares, nas quais tos de réis. Uma cifra consideos detentos eram encorajados morada; a nova lei reclamou rada exorbitante para a época. nos processos de organização, um novo templo.” O jornal Estado de São limpeza e higiene e eram incenAo longo destes nove Paulo noticiou que a moderna anos em que o presídio esteve tivados no cultivo de legumes, penitenciária traria progresso hortaliças e frutas. em obras, o Brasil teve quatro social e exaltou os significaA penitenciária era aberta presidentes: Hermes da Fondos que ela representaria em para visitação até meados de seca (1910-1914), Venceslau alguns anos. O arquiteto-en1940, quando excedeu sua Brás (1914-1918), Delfim genheiro Francisco de Paula capacidade máxima. Em uma Moreira (1918-1919), que asRamos de Azevedo foi o resdas inúmeras tentativas para sumiu após a morte de Rodriponsável pela obra, que tinha conter o problema de superlotacomo modelo a arquitetura pri- gues Alves, que não exerceu ção, foi construído um segundo sional francesa. A penitenciária o mandato. A inauguração da pavilhão que passou a comporCasa de Detenção só ocorreu significava a vanguarda no tar mais de três mil e duzentos na gestão de Epitácio Pessoa tratamento carcerário, como detentos. Outra reportagem (1919-1922). explica a matéria do Estadão produzida pelo Estadão, o jorDurante muitos anos o à época: “carácter de casa nal mostrou como “o excesso Carandiru chegou a ser consicorreccional e regeneratoria, derado um cartão postal da me- da população carcerária, falta com officinas próprias, de forde matéria-prima para o funciotrópole paulistana, e recebeu ma que o encarcerado possa namento das oficinas de trabavisitas de grandes autoridades ser acompanhado e educado como o antropólogo Claude até sua rehabilitação moral”, lho, do maquinário deficiente e Lévi-Strauss e o escritor e a casa de detenção supria o desgastados pelo uso” impejornalista Stefan Zweig, que fez diam que o local funcionassem déficit de estabelecimentos prisionais em São Paulo, como elogios ao Carandiru em sua de forma adequada, sendo que


em 1956 a instituição prisional foi considerada uma das mais seguras do mundo.

O Massacre do Carandiru

Sandra Cotrim

A rebelião teve início às dez horas da manhã, após uma partida de futebol, que terminou em confusão, com a divisão de dois grupos rivais. Por volta das quatorze horas, o chefe da casa de detenção pede reforço da PM e ordena que todos os carceireiros abandonem o local. Pouco mais de trezentos e vinte policiais cercaram o pavilhão nove, entre eles homens de batalhões de elite como Rota, Gate, Tropa de Choque e a Cavalaria, além de alguns bombeiros. O jornal “O Globo” noticiou o massacre como: “Banho de sangue no presídio”. Pouco tempo depois, o secretário de Segurança, Pedro Campos, falou sobre como não se poderia

permitir uma fuga em massa em época de eleições. “Era um dia especial, por causa das eleições. Não poderíamos permitir uma fuga em massa de mais de sete mil criminosos”. Ele ainda negou que tenha acontecido um massacre. A carnificina deixou, em números oficiais, cento e onze mortos. Os detentos alegam, no entanto, que o número real de mortes pode ter chegado ao dobro disso. A operação terminou com cento e vinte policiais indiciados, porém, apenas oitenta e seis chegaram a ser julgados. O governador do estado de São Paulo da época, Mário Covas, lançou a ideia da desativação da casa de detenção. A proposta inicial era fechar e criar novos presídios menores, em um raio de cem quilômetros da cidade. Estes novos presídios ajudariam a acabar com a superlotação e a descentralizar as unidades, afastando os presídios de escolas, creches,

Torre de vigilância: usada para supervisionar todo o presídio e para manter os presos sob controle. 50

parques e centros residenciais. Entretanto, a desativação ocorreu apenas durante o mandato de Geraldo Alckmin, dez anos após o massacre. Em 2002, foi iniciado o processo de desativação da cadeia e a transferência dos presos para outros presídios do Estado, que prometeu realizar, durante sua campanha eleitoral, as obras de três parques, sendo eles: esportivo, contemplativo e uma área voltada para a educação, onde os pavilhões foram mantidos na revitalização. Em 2003, o presídio do Carandiru deu lugar ao “Parque da Juventude Dom Paulo Evaristo Arns” e mudou a paisagem da Zona Norte de São Paulo. Após quatro anos em construção, a última fase do projeto foi entregue tornando o parque um complexo cultural, com quadras poliesportivas, biblioteca e áreas verdes e de lazer com atividades para todas as idades. Hoje o local recebe em média 300 mil pessoas por ano, e pensando em saber o que os visitantes têm achado sobre o ambiente, a Revista Código conversou com os frequentadores para entender a importância desse espaço público e também quais são as lembranças que possuem do antigo Carandiru. Giulia Baptista, 19, é seminarista da Igreja Bíblica da Paz e contou que frequenta o parque há alguns anos e junto com seu grupo usa os espaços do parque para levar palavras Revista Código | Cruzeiro do Sul


OS PAVILHÕES

Ainda de acordo com o profissional, o massacre é algo Entenda como funcionava a divisão do presídio. difícil de ser esquecido. “O que marcou e mais Os presos eram fotografados, cortavam o cabelo, recebiam o chamou atenção foi a morte, uniforme e em seguida assistiam a uma palestra com as principais regras. o massacre que já tem mais de vinte anos. Porque eu não Tuberculosos, doentes mentais ou aqueles que fingiam possuir chorei com nenhum deles não. alguma doença. No térreo existia a "masmorra", por ter celas No pavilhão que eles estavam apertadas, úmidas, escuras com os jurados de morte. só existiam bandidos. BandiPrimeiro andar: celas de castigo. Terceiro andar: estupradores, dos perigosos”, afirma. justiceiros expulsos de outros pavilhões. Quarto andar: travestis. Quinto andar: presos jurados de morte. Além do contador, diversas pessoas também penEra a cozinha, que já funcionava há anos. As salas de savam e pensam como ele. administração no segundo e terceiro andar, já no quarto e quinto Como mostra uma matéria andar ficavam os presos com o mesmo perfil do pavilhão 5. publicada em 2013, no portal Era conhecido como o pavilhão do trabalho, onde eram IG. “Defesa chama réus de feitas bolas, pipas, barcos e outras atividades. ‘heróis’ e diz que PMs não devem ser punidos como tropa”. Este pavilhão era ocupado por presos reincidentes no crime, Ao ser indagado, o entrevismas nem por isso a violência era menor. tado defendeu seu ponto de Aqui ficavam os réus primários e isso muitas vezes gerava conflitos, vista alegando que “nenhum já que os mesmos eram ainda não tinham assimilado as regras a policial da época deveria ter serem seguidas. sido punido. Foi uma descarte Infográfico de Thiago Arantes necessário”, garante. Já Giulia acredita que o local deveria virar um memorial, vinha ao parque respirar. Eu de consolo e de fé para os vilembro que ele estava sentado para que as pessoas nunca sitantes por meio de peças de em um banco e conversei com esqueçam o que de fato aconteatro e musicais. teceu alí. Contudo, apenas dois ele sobre Jesus. A atmosfera “A importância do parque do lugar mudou, e até ele falou pavilhões tiveram um destino é absurda, por conta de estar diferente dos demais. Isso porisso. Muitas histórias aconteem um seminário cristão a ceram aqui, mas essa foi a que que, os números 7 e 4 foram os gente usa o parque para falar escolhidos para fundar a Escode Jesus. O parque é um pon- mais me impactou”, finaliza. la Técnica Estadual (ETEC). Júlio Castro, 61, é contabito estratégico de evangelismo No mesmo espaço tamlista, morador da região há mais muito grande”. bém foi construída a atual de vinte anos, e usa o parque Enquanto falava sobre Biblioteca de São Paulo (BSP), suas experiências ao promover para ler o jornal e relaxar. Secom o intuito de promover e gundo ele, as mudanças foram esses encontros com outros jovens, a missionária relembrou importantes. “Não precisava ser incentivar o gosto pela leitura. A BSP atende toda a comuum parque, poderia ser qualuma situação que a tocou. “Durante um evangelismo, quer outra coisa, mas a retirada nidade de Santana e conta do presídio daqui foi uma ótima a gente estava com alguns com mais de 30 mil itens entre iniciativa. Ficava muito no centro livros tradicionais, jornais, amigos e conversamos com e causava muito transtornos em audiolivros, braile, CDs, DVDs, um senhor, ele estava tendo dias de visitas”, diz. uma crise de ansiedade e internet e jogos.

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Jornalismo de Referência

Daniela Arbex:

A Dama do Livro-Reportagem

Brasileiro

Conhecida por trazer um olhar humanístico em suas obras, a premiada jornalista Daniela Arbex revela os bastidores dos seus trabalhos. Por Beatriz Ferreira, Camila Menezes, Liliane Souza e Melissa Mendes

D

iante das inúmeras mudanças no campo jornalístico, entre invenções e reinvenções de técnicas, procedimentos e modelos, além da inovação de meios e suportes, encontra-se o livro-reportagem. Forma peculiar de fazer jornalismo, que desperta forte interesse no público, tem encontrado intenso crescimento no circuito editorial, além da possibilidade de se publicar em outras plataformas. O livro-reportagem é também uma alternativa aos profissionais jornalistas de desenvolverem, por um meio específico, um texto diferenciado da prática 52

das hard News – notícias quentes, uma vez que se tem mais tempo para produzir o livro, com riqueza das informações e mais fontes.

O gênero literário livro-reportagem traz narrativas extensas e aprofundadas, que as mídias tradicionais (televisão, rádio, revista) não costumam trazer. Além de ser um instrumento de grande importância para a formação de estudantes de comunicação, mais especificamente dos jornalistas, os livros-reportagem também são usados como entretenimento e, é claro, como informação. Segundo pesquisa do site Publish News, o gênero vem crescendo cada vez mais no Brasil. Em 2016, por exemplo, 55% dos livros mais vendidos no país, foram livros-reportagem. Apurar, fazer ligações, entrevistar personagens, escrever, revisar, editar, filmar, tirar fotos e publicar nas redes sociais são exercícios que Revista Código | Cruzeiro do Sul


deixam a rotina do jornalista bastante estafante. Apesar da convergência das mídias on-line e off-line proporcionarem maior divulgação de informações aos leitores em seu dia a dia, as grandes reportagens ainda encontram merecido destaque no jornalismo, tendo o livro-reportagem como um apoio, afinal, como diz Marcos Zibordi, professor da ECA-USP e crítico de conteúdo do UOL via Brasil Newscom, o aprofundamento da abordagem jornalística nesse gênero traz consigo vantagens como a humanização do relato, maior contextualização das situações, foco em personagens importantes que não são privilegiados, entre outros. Além disso, a leitura é o principal ritual de todo bom jornalista, e o público tem se interessado cada vez mais por esse tipo de publicação. Considera-se um livro-reportagem uma obra que trata de acontecimentos ou de fenômenos reais e utiliza, para sua produção, procedimentos metodológicos inerentes ao campo do jornalismo, sem, contudo, descartar certas nuances literárias. Outro ponto importante é a constante verificação dos fatos que está presente em todas as etapas da elaboração desse gênero. Diante de inúmeros escritores nesse gênero literário, alguns jornalistas são consagrados como Caco Barcellos, Roberto Saviano, Daniela Arbex, entre outros. Novembro de 2019

“Eu me sinto confortável com essa tarefa que eu me impus de construir a memória coletiva do Brasil, porque essa é uma das responsabilidades do jornalista”. André Freire, Presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.

Daniela Arbex é uma jornalista e escritora brasileira que se dedica à defesa dos direitos humanos, como ela mesma declara. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 1995, e iniciou sua carreira no jornal “Tribuna de Minas”, do qual foi repórter especial por mais de duas décadas. A jornalista já publicou três livros-reportagens que resultaram em mais de 20 prêmios nacionais e internacionais no currículo, entre eles três prêmios Esso, o americano Knight International Journalism Award (2010) e o prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina (2009). Todos os livros abordam assuntos marcantes para o país e são frequentemente usados em sala de aula em cursos de comunicação. Para selecionar as histórias com habilidade e destreza, Daniela costuma se questionar se o que vai fazer é útil, se possui relevância social e se há interesse público. En-

tão, ela afirma que se dedica totalmente à história. É possível notar a importância desses questionamentos nos três livros-reportagens da autora publicados pela editora intrínseca (Cova 312, Holocausto Brasileiro e Todo dia a mesma noite). Para a autora, o contato com as personagens de suas histórias, que são emocionantes e, como no holocausto brasileiro, acabam ensinando sobre as histórias desconhecidas de nosso país, são relações intensas e profundas: “não tem como você mergulhar na história de alguém ou que alguém entregue a você o que ela tem de mais poderoso, que é a memória afetiva dela, sem construir algum tipo de relação”. Quando questionada sobre as dificuldades na construção de um livro-reportagem, Daniela diz que é “lidar com tantas histórias, tantos personagens e o volume de informações colhidas durante as entrevistas. Eu tento recolher o maior número possível de 53


Acima, as três obras de Daniela em ordem de publicação (2013, 2015, 2018). 54

informações. Lidar com todas as informações e conseguir organizar isso em um livro que tenha conteúdo e desperte interesse no leitor, é o maior desafio”. Sobre os seus livros, os quais considera como filhos, Daniela diz que não tem um preferido, mas cada um deles é uma história especial. Porém, ela cita o que faz cada um deles serem únicos em sua trajetória como escritora e jornalista: “sou muito apaixonada pelo Holocausto Brasileiro, porque foi a minha estreia bem sucedida na literatura. Sou grata por ter dado voz pela primeira vez aos sobreviventes que nunca tinham falado. O Cova 312 é um livro vencedor do Jabuti, como o “Holocausto”, mas ficando em 1º lugar e sou apaixonada pelo fato de que um morto me levou a presença dos amores dele quase 40 anos depois de sua morte, eu acho isso incrível. E o Todo dia a mesma noite é uma história muito forte, uma história que eu ganhei muito, mas perdi muito também, perdi em saúde, tive minha rotina familiar afetada, porque eu fiquei muito impactada pela escrita desse livro. É porque eu vivi um luto, que nem era meu e sair disso foi muito difícil. Então eu digo que eu ganhei porque eu conquistei a confiança das famílias, dos profissionais da área da saúde, tive a chance de dar a voz para os bombeiros que não tinham falado, isso é muito gratificante”.

Falando sobre conciliar a vida pessoal com livros-reportagens e o trabalho no jornal diário, rotina da qual viveu por seis anos, a autora diz que ficou muito ausente de casa para escrever o Holocausto Brasileiro: “eu fiquei um ano durante todos os finais de semana longe da minha casa, com um filho pequeno, e são perdas, não? E eu não vou mais resgatar isso com o meu filho, por exemplo (...) É claro que eu tenho orgulho do que eu construí, mas exige muita renúncia, então lidar com a vida pessoal estava sendo muito difícil.” Referente a uma declaração que deu em entrevista, a jornalista diz: “eu construo a memória coletiva do Brasil, essa é a proposta que

Daniela diz ter muito orgulho do trabalho que construiu. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

Fotos Reprodução

eu tenho”, Daniela se sente totalmente confortável com essa tarefa que ela mesma se impôs, pois essa é uma das responsabilidades dos jornalistas, “contar a história do seu tempo e apresentar para as novas gerações a história que ainda não tinha sido construída. A gente fala tanto que o brasileiro é um povo sem memória, mas como vamos ter memória daquilo que não foi construído? Então esse é o nosso papel, contar a história do hoje, mais ir lá no passado e trazer para o presente para que possamos conhecer a história.” Brenda Cruz, jornalista e autora do livro-reportagem Nuances e Cruezas da Loucura, diz que o trabalho de Daniela traz grandes reportagens de pessoas que não são vencedoras de suas próprias histórias, afinal, “essas pessoas possuem histórias, dores, sonhos e você – jornalista – deve ser o alguém, que possibilite com o seu trabalho dar visibilidade aos invisíveis da sociedade”. Emilio Coutinho, jornalista e autor do livro-reportagem Escola Base 20 anos depois: Onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira, se diz suspeito para falar do trabalho da Daniela, pois são muito bons e recomenda. Para ele, “todo bom repórter deve olhar os fatos não somente no aspecto numérico, deve sempre valorizar primeiro o humano

Agora como jornalista independente, Daniela está envolvida em vários projetos desafiadores. e depois a técnica”. Segundo Coutinho, é importante mostrar que não são apenas números, mas sim, histórias que acabaram sendo perdidas e que não podem ser esquecidas, cabendo ao jornalista mostrar que todos possuem uma história grandiosa que merece ser contada. Ele ainda ressalta que o olhar humanístico, além do grande profissionalismo de Daniela, é o que fez com que ela ganhasse tantos prêmios e atraísse a atenção das pessoas. Recentemente a autora anunciou que estava saindo da “Tribuna de Minas” para focar em uma carreira como jornalista independente. Sobre os seus projetos futuros, há o lan-

çamento de um livro-reportagem para o ano que vem, além de um contrato assinado para o desenvolvimento de mais um outro livro e, também, cursos voltados para jornalistas em formação. Daniela deixa uma dica para os novos jornalistas: “não só para quem quer seguir o caminho do livro-reportagem, ou do jornalismo investigativo, o que quer que seja; para quem quer ser jornalista a dica que eu dou é: gostem de gente! Tenham interesse real pela história do outro porque no fundo, o que nós somos é contadores de histórias, e isso é muito grandioso porque a potência da palavra é transformadora”. 55


Jornalismo de Rerefência

Fernando Jorge:

UM contador de histórias Por Aline Silva, Caroline Amorim e Igor Pereira.

S

entado na poltrona lendo o jornal, em sua sala cercada de louças, quadros e objetos decorativos, com tapetes em todos os cômodos (que não negam suas origens libanesas, mas sempre lembrando do sangue quente que herdou dos seus antepassados espanhóis), encontra-se uma mente 56

Conheça as lembranças de uma mente inquieta, que com duas armas, a inteligência e a escrita, se tornou um importante autor e jornalista “subversivo” inquieta, que aos 91 anos não pára. O jornalista, escritor, historiador, biógrafo, crítico literário, dicionarista e enciclopedista Fernando Jorge, viúvo, mora com sua filha em um bairro tranquilo, na cidade de São Paulo. Como ele mesmo diz, “a experiência não pode ser comprada e sim adquirida”. Estu-

dou o máximo que pôde. Com um currículo extenso, é formado e diplomado em Biblioteconomia pela USP, foi diretor da Divisão Técnica de Biblioteca da Assembleia Legislativa de São Paulo, é jornalista com a carteira 088 da Associação Brasileira de Imprensa - SP. Seus pais, Salomão Jorge e Albertina Alves Jorge, saíRevista Código | Cruzeiro do Sul


“De alguém que é meu consolo meu carinho Única aspiração, único bem Estrela da manhã do meu caminho Ninguém como eu te quero, ninguém, ninguém Sem ti não deveriam amar no vinho da vida Tudo passa por mim, até mesmo o velho relógio da parede Novembro de 2019

Relógio ela virá? Perguntei em vão, ponteiro seguindo diz que sim e o Pedro chorando diz que não”. Possuidor de uma memória invejável lembra, com precisão, de todas as histórias e pessoas que cruzaram sua vida, contando tudo com muito bom humor, imitando vozes e trejeitos de uma forma que só ele sabe fazer, como por exemplo do dia que encontrou Marta Suplicy, da amizade com Jânio Quadros, quando conheceu Assis Chateaubriand e de como desmascarou Silvio Santos, quando participou de um programa de calouros. Todos os jurados atribuíram ao Silvio as melhores notas seguidas de vários elogios. No entanto, Fernando Jorge a fim de manter a sua consciência limpa, expôs o entrevistado para o público, verdades que o empresário Silvio Santos optou por esconder, para sustentar a fama entre as mulheres. “O mesmo disse que não é casa-

“A experiência não pode ser comprada e sim adiquirida” Fernando Jorge, Jornalista e escritor.

do e não tem filhos, mas, eu bem sei que ele é casado sim, e tem duas filhas de 14 e 16 anos”. Em sua trajetória como jornalista, ficou conhecido na ditadura militar por ser subversivo, sempre com opiniões fortes! Seus amigos discordam desse título e dizem que Fernando Jorge é muito mais que isso, pois usa duas armas: a primeira, a inteligência, e a segunda, a sua caneta. Seus anos no mundo jornalístico lhe trouxeram muita Caroline Amorim

ram do Rio de Janeiro quando ele ainda era um menino de sete anos, para que o seu pai, médico de formação, pudesse se dedicar àcarreira política como deputado estadual. Desde garoto, sempre gostou de escrever. Um professor em especial, o incentivou a seguir a carreira, identificando a vocação para ser escritor e jornalista, e lhe pedia para ler seus textos em voz alta na sala de aula. Estimulado por ele, começou a escrever sem parar e fundou um jornalzinho: “O Guarani”, no colégio Carlos Gomes, onde estudava. Uma das coisas que mais se orgulha é de sua biblioteca particular. Junto aos livros que trata com tanto carinho, possui lembranças da família. Entre elas, um retrato de seu pai e de sua mãe com uma dedicatória. Ao ser questionado sobre o pai, lembra de seus ensinamentos. “Meu pai me ensinou muita coisa, ele disse assim: meu filho, já que você quer ser escritor, fuja do lugar comum, o inimigo mortal do escritor é o lugar comum, e de um jornalista também”. Lembrou saudoso de um poema e o recitou:

O autor em frente a foto de seu pai, o médico e escritor Salomão Jorge. 57


Caroline Amorim

Em meio aos livros uma homenagem do cartunista Venancio. sabedoria, uma tática que sempre usa é levar um chocolate para oferecer aos seus entrevistados mais difíceis. Diz que depois do doce, todo mundo fica mais feliz e comunicativo. Jornalista nasce jornalista e se aperfeiçoa ao longo dos anos, como ele mesmo diz: “O conhecimento é a base do jornalista”. Jornalismo se faz com o tempo, com experiência e com aprendizado. “Grandes jornalistas do Brasil não tinham diploma, como Carlos Lacerda, Assis Chateaubriand, e dezenas de outros, inclusive existem escritores que se tornaram famosos devido à imprensa, às suas carreiras nos jornais”. Fernando Jorge colaborou com

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a famosa “Gazeta”, “Diário de SP”, de Assis Chateaubriand, e teve artigos publicados no “Estado de S. Paulo”. Declara que sua experiência como jornalista é muito rica, e que aprendeu a conhecer a alma humana. “Nunca me arrependi de ter publicado nenhuma obra, nunca, pelo contrário, só me causou orgulho. Eu sou muito firme. Quando eu traço um objetivo eu vou até o fim, pode haver terremoto, revolução. Eu sigo aquele provérbio: “perseverar é cair sete vezes e levantar-se oito”. Constantemente polêmico, já publicou dezenove livros, em sua maioria, sempre campeões de venda, que lhe renderam di-

versos prêmios, como o Jabuti, de 1962. Fernando é perigoso, pois só fala a verdade seja ela dura ou não. Tem opiniões fortes, que já lhe renderam a fama de autor de um livro “assassino”. Paulo Francis que era colunista da Folha, morava em Nova York. Afirmava que os Árabes eram débeis mentais e que o alcorão era um livro de autenticidade duvidosa. Fernando, com seu sangue árabe prometeu que vingaria suas origens. “Eu tenho a violência no sangue, mas procuro usar minha violência para a verdade e a justiça”. Durante quatro anos, contratou um pesquisador, enquanto Francis escrevia em uma rede de dezoito jornais, Fernando Jorge lia todos e assim descobriu plágios. Ele se apropriava de frases de grandes escritores de qualquer nacionalidade, como Shakespeare, Oscar Wilde e grandes filósofos, e com toda essa informação começou a escrever seu livro “Vida e obra do plagiário Paulo Francis: o mergulho da ignorância no poço da estupidez”. Na mesma época em que o livro foi lançado, Paulo Francis difamou os diretores da Petrobrás, chamou todos de ladrões sem nenhuma prova, devido a isso recebeu um processo dos diretores que exigiram uma indenização de 100 milhões de dólares. Há boatos que quando ocorreu o infarto que o matou, ele estava no banheiro lendo o livro. Quando questionado Revista Código | Cruzeiro do Sul


Caroline Amorim

Fernando Jorge apresenta com detalhes suas principais obras em sua biblioteca pessoal. o conhecimento. Um povo que não tem cultura não sabe julgar, avaliar, seguir. É como o garimpeiro, que joga o garimpo no rio e, ao invés de ficar com a pepita de ouro, fica com o cascalho (a pedra coberta de lama). A cultura é necessária para fornecer o

Aline Maria

sobre a mídia no Brasil, Fernando Jorge mostra o porquê é perigoso e tem opinião forte “A mídia no Brasil está sendo omissa, porque o que contribui ao senso crítico, para uma pessoa julgar as coisas de maneira justa e sensata, é a cultura, é

Escritor exercita sua mente enquanto conta suas histórias. Novembro de 2019

senso crítico, e a mídia, ao invés de procurar elevar de maneira inteligente, hábil, e agradável, o nível cultural do povo, faz todos os tipos de concessões para agradar as massas”. No começo pode passar uma impressão errada, pois sua voz grave assusta e seu olhar por de trás dos óculos intimida. No entanto, após cinco minutos de conversa o senhor de cabelos brancos e bigode preto, se mostra o ser mais gentil e modesto e até brinca, falando que o bigode só é negro porque é mais jovem que os cabelos. É muito orgulhoso da carreira que trilhou na imprensa e na literatura, tem um acervo enorme com tudo que pesquisou e publicou, e diz que seu legado é deixar todo o conhecimento possível para todos. 59


Jornalismo de Referência

Césio-137:

Acidente radioativo no Brasil completa três décadas O vazamento do material, em 1987, chocou o país e é considerado um dos mais graves acidentes radioativos do mundo Por Cézar Augusto, Guilhermes Barros, Lucas Rodrigues e Jonatas Macedo

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H

á 32 anos, em Goiânia, no ferro-velho de Devair Ferreira, um aparelho de radioterapia abandonado de uma antiga clínica de radiologia foi aberto para o reaproveitamento do chumbo. No aparelho, havia uma cápsula com Césio. Devair ficou encantado com o pó que emitia um brilho azul no escuro e o comprou de dois catadores de sucata,

Wagner Pereira, então com 19 anos, e Roberto Alves, então com 22 anos. Os dois deixaram o prédio carregando os 122 quilos do equipamento, divididos em dois cilindros. Devair mostrou a descoberta para sua esposa Maria Gabriela, bem como o distribuiu para familiares e amigos. O irmão de Devair, Ivo Ferreira, levou um pouco de césio para sua filha, Leide das Revista Código | Cruzeiro do Sul


Neves, que tocou na substância e ingeriu as partículas do césio junto com um ovo cozido que sua mãe havia preparado para o jantar. A primeira parada do cilindro com a cápsula de Césio ocorreu na Rua 57, no Setor Central, onde foi desmontado, a marretadas. Posteriormente, a residência seria demolida devido à contaminação no local. O pó radioativo que saiu de dentro da cápsula foi passado de mão em mão entre inúmeras pessoas. Posteriormente, o material trouxe sequelas. No dia 23 de outubro morreram Leide e Maria Gabriela. Devair passou pelo tratamento de descontaminação no Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, e morreu sete anos depois. Mais duas pessoas morreram após terem contato direto com o material e seis mil toneladas de rejeitos radioativos foram recolhidos. Tão logo expostas à presença do material radioativo, em algumas horas as pessoas começaram a desenvolver sintomas: náuseas, seguidas de tonturas, vômitos e diarreias. Em 30 de setembro de 1987, técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e policiais militares começam a descontaminação da região. Durante este período, 112.800 pessoas foram monitoradas. Destas, 249 apresentaram radiação em seu corpo. Estas pessoas foram isoladas e agrupadas conforme o grau Novembro de 2019

de contaminação, sintomas e grupos familiares. Nesse período, além de pessoas, ruas, carros, casas inteiras, pedaços de calçadas e até árvores foram contaminadas. Em novas consultas, 120 pessoas haviam sido descontaminadas pelos procedimentos adotados, outras 129 passaram, a partir de então, a receber acompanhamento médico regular. Pensando em um ângulo diferente para abordar o caso do Césio-137, nossa equipe buscou jornalistas que vivenciaram ou que tiveram algum tipo de envolvimento com o caso em questão. Relatamos a desinformação e o preconceito que levaram a população local a ser hostilizada até em outros estados.

Os bastidores do caso Césio-137 Em contato com o repórter Galtiery Rodrigues, que recebeu, na categoria reportagem, o 34º prêmio de direitos humanos de jornalismo, organizado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). A reportagem especial dos 30 anos do pesadelo azul, foi a vencedora da noite. Ela trata das três décadas do acidente com o Césio-137. Galtiery é um ano mais novo que o acidente, mas conta que convive com colegas que estiveram presentes na cobertura do mesmo, e que todos fazem relatos chocantes sobre a situação.

“Alguns veículos de imprensa foram bem indelicados ao tratarem sobre o assunto.” Galtiery Rodrigues, Jornalista, O popular.

“Todos fazem relatos chocantes, porque muitos acabaram chegando muito perto dos locais atingidos e sem nenhuma proteção. Como eu disse, a falta de informação e incerteza do que se tratava de fato foi um elemento que agravou, em muito, a dimensão da tragédia”. Conta Galtiery Rodrigues. A negligência dos Poderes Públicos da época e a falta de informação foram cruciais para o desenvolvimento de toda a situação. Durante 16 dias, resíduos de césio foram divididos, manuseados, tocados e espalhados pela cidade, agravando ainda mais a situação. “Acho que houve uma tentativa, em âmbito local, de não alarmar demais ou gerar pânico na cidade. Por outro lado, em nível nacional, houve exemplos de coberturas e veículos que foram bem indelicados e incisivos na maneira como aborda61


das com câncer. Entre 2004 e 2017, mais 21 pessoas foram diagnosticadas com a doença na mesma região. Pelo menos 39 pessoas da região da Rua 26-A, no Setor Aeroporto, hoje chamada de Rua Francisca da Costa Cunha, já tiveram a doença. A maioria morreu e alguns ainda enfrentam as complicações, residindo nos mesmos locais da época. A Rua 26-A foi um dos principais focos de radiação na época, já que abrigava o ferro-velho de Devair Alves Ferreira, nos lotes 29 e 30 da Quadra Z. Ele foi o primeiro a comprar as peças do aparelho que continha a cápsula de Césio. “Não é fácil apagar da memória tudo que aconteceu. Os moradores que ainda vivem na região da cidade

Reprodução/O Popular

ram o assunto. A Revista IstoÉ, por exemplo, fez uma capa afirmando “Goiânia Nunca Mais”. A apresentadora Hebe Camargo fez um discurso bem questionável. Foram situações de falta de informação e acirramento do preconceito. Por muito tempo, pessoas de Goiânia foram mal vistas ou mal tratadas em outros locais”. Destaca Galtiery. As famílias que foram atingidas, direta ou indiretamente, continuam tendo de fazer exames periódicos e tendo um acompanhamento médico, porque as sequelas do contato com o material radioativo podem surgir décadas depois da exposição. Além disso, existem pessoas que guardam no corpo marcas e cicatrizes do contato que tiveram com as partículas de césio. Entre 1987 e 2004, 18 pessoas foram diagnostica-

onde o acidente ocorreu ainda preservam as lembranças da época e os relatos são ricos em detalhes. Muitos perderam casas, objetos, roupas e fotos da família. Tudo teve de ser descartado e virou resíduo nuclear”, conta o repórter. Galtiery ressalta a importância de rememorar o caso e não deixar que toda a situação caia no limbo do esquecimento, para que novas gerações possam conhecer a história. “Em suma, é como se o acidente com o Césio-137 tivesse deixado uma lição – dura e trágica, mas uma lição – para que ele não se repita jamais. A total desinformação, a negligência do setor público e o despreparo não só facilitaram com que tudo ocorresse, como também acentuaram os efeitos da tragédia. Afinal, foram 16 dias entre a abertura da cápsula e a identificação de que, de fato, tratava-se de um acidente radiológico. Foi um marco trágico e triste na história da cidade e do Brasil, com repercussão mundial”.

O Veredito

População forma fila no Estádio Olímpico, em Goiânia, para medição dos níveis de radioatividade. 62

Galtiery relata que a cada reportagem sobre o caso, novas histórias surgem, e mostram a importância de manter e preservar a memória do acidente, com relatos e ângulos diferentes. Um dos momentos mais marcantes para o repórter é uma história que ainda não Revista Código | Cruzeiro do Sul


Odesson Ferreira, presidente e fundador do AVCesio.

havia sido contada, como as cartas que Luiza Odete recebeu da família enquanto esteve internada no Rio de Janeiro. “Ela me relatou, por exemplo, que quando foi liberada e retornou para Goiânia, a filha mais nova tinha dificuldade de chama-la de mãe, porque tinha se acostumado a ficar longe. Ir aos locais onde tudo ocorreu, visitar os lotes concretados, conversar com os moradores que ainda vivem na região sempre traz novas informações e uma percepção diferenciada de tudo”.

AVCesio Em meio a muitos percursos, o AVCesio (Associação de Vítimas do Césio 137), é conhecido por ajudar pessoas, Novembro de 2019

empresas e instituições a não se perderem no que houve nos últimos longos, dolorosos e tensos 32 anos da catástrofe, que tanto afetou Goiânia. Eles deixam grandes ensinamentos para que algo tão grave não ocorra novamente. Nestes anos, voluntariamente levaram o caso Césio a 380 cidades e 9 países, entre eles, os EUA. Isso mostra a força da informação no Brasil. As tragédias chegam a todos os ouvidos, telas e folhas do mundo, pois todos querem saber o que há de melhor e pior no país. “Foi horrível, sim! Mas eles invadiram privacidade das pessoas, deixaram nosso estado mal visto”, diz Odesson Ferreira, presidente e fundador da AVCesio. Deixemos claro que não se trata de revolta com a imprensa, Odesson vive hoje somente do programa. Ele viaja por todo o Brasil e países sul-americanos falando sobre o assunto e, coloca sempre em primeiro plano alertar as pessoas, deixando empresas e instituições cientes sobre as agressões ao solo, água e pessoas. Com isso, vemos que esta causa, que está em projeção, precisa de ajuda, de voz. Pois o que mantém vivo este projeto é exatamente levar para as pessoas a importância da radiação solar. Foi o pedido de algumas famílias. Eles queriam que fizéssemos algo que ajudasse.

Quando fizemos uma reunião, me escolheram, era conhecido no bairro, e hoje eu só ajudo, não gosto de levar isso como criador; eu não conhecia o rapaz que pegou (Valdir), nem muitas pessoas que morreram, eu só procurei e procuro ajudar pessoas”.

Reprodução/G1

“Foi horrível, sim! Mas eles invadiram a privacidade das pessoas, deixaram nosso estado mal visto”.

Odesson Ferreira, dono do ferro-velho onde a cápsula foi aberta em Goiânia. Que após o lembrete de 30 anos do fato, acabou deixou a grande mídia sedenta do caso, e com isso, abre enormes possibilidades do nome Césio ser levado além daquilo que já foi feito. Mais bairros, cidades, estados, países e continentes. O caso atingiu um raio de mais de 200 metros a partir do centro de Goiânia. Hoje a cidade está recuperada, com árduo trabalho para que os resíduos fossem retirados, sendo tratados com o tempo, com a tecnologia e estudos apropriados. 63


Jornalismo de Referência

Revisitando as

“Bruxas de Guaratuba”

Paraná, 1992. O caso que chocou o Brasil por suspeita de bruxaria envolvendo o corpo de uma criança.

Por Fernanda Iana e Patricia Pontes.

E

m 6 de abril de 1992, Evandro Ramos Caetano, então com 6 anos de idade, desapareceu na cidade de Guaratuba, interior do Paraná, no trajeto entre a escola e sua casa. Cinco dias após seu desaparecimento, um corpo infantil em avançado estágio de putrefação foi encontrado num matagal e reconhecido pelo pai de Evandro, graças a uma marca de nascença em uma das mãos. O cadáver sofreu terríveis mutilações - as mãos e pés foram amputados e órgãos e vísceras foram retirados. A vítima era filho de funcionários da prefeitura no período em que Aldo Abagge 64

era prefeito da cidade. Meses após o corpo ser encontrado, a investigação ainda não tinha surtido efeitos, mas pairava no ar a suspeita de que o assassinato fazia parte de um ritual de bruxaria, devido a forma como a criança foi assassinada. Os detalhes que deram mais força para essa teoria foram obtidos pelas confissões dos acusados, que

aconteceram nos dias 2 e 3 de julho de 1992. Essa versão foi rapidamente aceita pela polícia e pela mídia, o que causou pânico entre os moradores: o caso do desaparecimento de Evandro ficou conhecido como o caso das “Bruxas de Guaratuba”, ganhando manchetes sensacionalistas.Termos como

Revista Código | Cruzeiro do Sul


“magia negra” e “satanismo” ganhavam destaque nas matérias, alimentando a comoção pública. Os acusados, ainda sem julgamento, eram chamados de “bruxos” e “bárbaros”, nas manchetes das matérias publicadas na época. O sobrenome Abagge tem destaque fundamental no caso do menino, pois Celina Abagge e sua filha Beatriz, respectivamente esposa e filha do então prefeito da cidade, foram acusadas posteriormente pelo assassinato da criança. Além das duas, outras cinco pessoas foram indiciadas: Airton Bardelli, Davi dos Santos Soares, Francisco Sérgio Cristofolini, Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula Ferreira. Em 1993, as mulheres da família Abagge tiveram sua narrativa considerada em um veículo de comunicação. A “Folha de Londrina” publicou uma entrevista exclusiva, na qual elas revelam pela primeira vez à imprensa sua versão dos acontecimentos, alegando ter sofrido torturas para confessar o crime. A matéria foi assinada pela jornalista Mônica Santanna. Em 1996, a jornalista Vânia Mara Welte foi responsável por um dossiê, publicado no jornal curitibano “Hora H”, sobre o caso. Foram 17 reportagens de autoria de Vânia, publicadas no jornal entre junho e outubro daquele ano. A cobertura da jornalista venceu o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria Regional Sul. Novembro de 2019

As reportagens premiadas De todas as reportagens feitas sobre o caso, durante todos esses anos, sem dúvida as que mais se destacaram foram as reportagens de autoria da jornalista Vânia Mara Welte, que até hoje é a única mulher paranaense a ganhar o prêmio Esso de jornalismo. As reportagens foram publicadas no jornal da capital do estado, quatro anos após os acontecimentos. Durante as reportagens, Welte entrevistou membros da família, pessoas que conviveram com os Abagge, oficiais de Justiça e indivíduos diretamente ligados ao Caso Evandro, além dos familiartes de Leandro Bossi, outra criança desaparecida em Guaratuba no mesmo período. A jornalista decidiu tomar rumos que nenhuma outra reportagem havia exposto sobre o caso. A to invés de acusar e

culpar as ditas “bruxas”, Vânia decidiu ouvir sua história e dar-lhes o benefício da dúvida ao desenvolver uma série de reportagens que buscava mostrar quem eram Celina e Beatriz. A sequência tem início em setembro de 1996, quando Welte apresenta 12 perguntas sobre o Caso Evandro que ainda não tinham solução. Após quatro anos, a situação das Abagge era a prisão domiciliar e outros quatro acusados continuavam presos em regime fechado, todos ainda sem julgamento. A primeira entrevistada é Sheila Abagge, filha de Celina e irmã de Beatriz. Sheila conta sobre o impacto que a prisão e o julgamento prévio da mãe e da irmã causaram na vida de todos os integrantes da família e como foi prejudicial para cada um deles conviver com o peso de ter seu sobrenome associado ao crime. A primeira reportagem segue com um relato de Aní65


bal Khury, político paranaense que contribuiu para a criação de várias cidades no Paraná. Khury afirma que a prisão e tortura sofridos pelas Abagge “estão entre as maiores injustiças cometidas no país”, pois o caso do menino desaparecido foi transformado em um problema político. Ainda é apre-

“Sinto não poder exorcizar a injustiça”. Frei Miguel, Sacerdote e educador da Ordem Capuchinha. sentada a opinião de cerca de 60 famílias que trabalharam e conviveram com os Abagge e que acreditam na inocência das mulheres. Na segunda parte da série, Welte evidencia o dossiê de 300 páginas elaborado por Isabel Mendes, advogada do Conselho Municipal da Condição Feminina, que expõe todas as torturas sofridas pelos acusados, buscando a abertura de um inquérito para investigação da responsabilidade de tais ações, porém a denúncia foi suspensa e Mendes e sua família sofreram ameaças. O dossiê revela que os acusados foram interrogados sem a presença de seus advogados e, além de serem humitlhados, 66

foram vítimas de violências físicas e psicológicas. Na reportagem seguinte, a jornalista escreve sobre o depoimento exclusivo do delegado responsável pelo caso, Luis Carlos de Oliveira, que diz acreditar que o corpo da criança mutilada que foi encontrado e que todos acreditavam pertencer à Evandro, na realidade não era do menino e afirma que não descansará enquanto o caso não for solucionado e os verdadeiros culpados sejam encontrados. O delegado aponta diversas falhas nas investigações do caso, devido a apresentação de inúmeros dados e informações sem explicações concretas, a relação dos desaparecimentos dos meninos e desconfia de ambos os casos terem sido forjados para propósitos desconhecidos até aquele momento. Oliveira mostra-se perplexo pelo fato de que mesmo sem ser confirmada a identidade do corpo, os suspeitos já haviam sido apontados e presos e que quanto maior a quantidade de acusados, mais confusa e complicada é a resolução do caso, mais difícil fica a criação de álibis e consequentemente o esclarecimento dos fatos. O delegado responde ainda às 12 questões levantadas por Welte na edição anterior do jornal e acrescenta dez dúvidas a serem esclarecidas sobre o caso. O “Hora H” também buscou conhecer a versão dos policiais denunciados por tortura dos acusados. Todos dizem não ter

nada a declarar, pois o caso do menino pertence à esfera judicial e que apenas uma pressão popular poderia reabrir as investigações sobre a tortura sofrida pelas Abagge e os outros supostos culpados pelo crime. Na mesma edição, somos apresentados à diversas cartas escritas por leitores que afirmam ter mudado de opinião à respeito da culpa imposta a Beatriz e Celina após a publicação das reportagens. Muitos passaram a acreditar na inocência das mulheres e pedem que o Caso Evandro seja reaberto, entretanto, ainda há aqueles que duvidam do relato das Abagge e creem que ambas são culpadas. A reportagem ainda afirma que o caso, desde o início, tem sido marcado pela comoção popular, sensacionalismo exagerado, interesses políticos desconhecidos e teria se tornado uma espécie de inquisição moderna. Na edição seguinte do jornal são acrescentadas mais 3 crianças ao quadro de desaparecimentos do qual já faziam parte os meninos de Guaratuba. O texto articula sobre as dúvidas do paradeiro dessas crianças e a dificuldade para identificação dos corpos que já foram encontrados, pois o cadáver achado com as roupas de Leandro Bossi era, na verdade, de uma menina e o delegado Oliveira acredita que os resultados dos exames feitos para comprovar se a criança encontrada é Evandro, são negativos. Revista Código | Cruzeiro do Sul


A reportagem seguinte de “As Bruxas de Guaratuba” mostra uma entrevista exclusiva com Diógenes Caetano, tio de Evandro, que o jornal intitula como “O caçador de bruxas”. Ele é questionado se teria alguma relação com a morte do menino, ou com as torturas sofridas pelas Abagge. Caetano nega ambas as acusações, mas afirma ter certeza que o outro menino desaparecido na mesma época, Leandro Bossi, está morto, inclusive contando em detalhes como o fato aconteceu, além de proferir denúncias contra os acusados do assassinato de seu sobrinho e seus defensores. As acusações mais fortes são dirigidas às Abagge, pois ambas as partes nutriam uma rivalidade política e pessoal já de muitos anos. Na edição de junho de 1996, temos a primeira entrevista de João Bossi, o pai de Leandro, que continuava desaparecido. Nesta reportagem ele contesta a versão de Diógenes que havia informado que seu filho estava morto, bem antes que o próprio Evandro. Além de acreditar que seu filho ainda está vivo ele também crê que o corpo encontrado em abril de 1992, não pertence a Evandro. Afirma que em certo período se uniu à Caetano para forjar falsas declarações contra os Abagges e em uma das falas mais fortes, Bossi alega que foi manipulado por Caetano e que o ex-policial seria capaz de matar. Um Novembro de 2019

mês depois desta edição, uma testemunha oculta afirma ter visto Diógenes Caetano “desovar” um corpo. A testemunha tem certeza que era o corpo de uma criança, porém até o presente momento não se sabe se isso realmente aconteceu, pois a polícia nunca investigou. Ao passar das edições, fica evidente qual o objetivo das reportagens: a busca da verdade e a preocupação de colocar definitivamente um ponto final no caso. Um dos pontos altos da série é quando um garoto, em Manaus, garante ser Leandro Bossi. O menino é enviado ao Paraná, onde reconhece João Bossi como seu pai, colocando em cheque a versão de Diógenes de que Leandro estaria morto. O garoto chegou a morar com sua suposta família biológica, contudo, um exame de DNA constatou que ele não era Leandro, e sim uma criança desaparecida em Manaus. Um dos grandes defensores da inocência dos acusados é Frei Miguel, o único padre na época no Estado do Paraná que era autorizado pelo Vaticano para realizar exorcismos. O frei lamentava a injustiça que estava sendo praticada contra o grupo. Em uma de suas declarações, afirmou: “Sinto não poder exorcizar a injustiça”. Nas edições seguintes, o foco das reportagens foi mantido no Caso Leandro, pois os exames realizados ainda eram questionados. O grande final

O podcast que reviveu a história

Esse caso é tema principal da quarta temporada do podcast “Projeto Humanos”, idealizado pelo professor e escritor Ivan Mizanzuk. A curiosidade sobre o caso gerou um projeto no qual o principal objetivo é contar novamente essa história, sob outros pontos de vista. Além disso, ele nos ambienta à história política, social e econômica do Paraná e da cidade de Guaratuba na década de 1990. da sequência de reportagens de Vânia Welte destaca as torturas sofridas por mãe e filha, é informado com maiores detalhes o local em que supostamente ocorreram as agressões. Só encontramos menções ao Caso Evandro novamente na edição dezembro de 1996, na qual o jornal parabeniza a jornalista por vencer o Prêmio Esso de Jornalismo pelas matérias sobre “As Bruxas de Guaratuba”. 67


Jornalismo de Referência

Tim Lopes:

A voz que não se cala Por Alison Tavares e Yavini Santos

Mesmo depois da morte de Tim Lopes, o nome e os feitos do jornalista estão registrados no coração daqueles que exercem a profissão.

A

Fotos Pedro Guilherme

rcanjo Antônio Lopes do Nascimento, mais conhecido como Tim Lopes, foi um produtor e repórter investigativo brasileiro da Rede Globo de televisão desde 1996. Lopes cursou jornalismo na Faculdade Hélio Alonso (Facha) no Rio de Janeiro. Seu primeiro trabalho foi na revista Domingo Ilustrado, do jornalista Samuel Wainer, como office-boy. O apelido de Tim foi dado pelo próprio dono do jornal, devido a semelhança física de Antônio com o cantor Tim Maia. Uma de suas principais reportagens foi publicada no jornal alternativo “O Repórter”, na década de 70. A matéria denunciava as precárias condições de trabalho dos

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operários na construção do metrô do Rio de Janeiro. Para produzir a matéria, Tim se vestiu de operário, pois tinha como característica em seus trabalhos “entrar na pele” dos entrevistados. Assim como fez em outras reportagens, chegando a vestir-se de mendigo para retratar a realidade dos meninos de rua. Em uma de suas primeiras reportagens para o Fantástico, da Rede Globo, Lopes fantasiou-se de Papai Noel e ouviu crianças carentes sobre seus sonhos. Além disso, se fez passar por vendedor de água de côco para realizar uma matéria sobre gangues de rua, e registrou a morte de um bandido por meio de uma microcâmera escondida. Para mostrar o que, muitas vezes, ninguém tinha coragem de denunciar, o jornalista se dedicava à produção e apuração dos fatos e isso o poupava de ficar na frente das câmeras. Por esse motivo, para a maioria dos telespectadores brasileiros, Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

humano, da emoção. Colocar a vítima e seu algoz cara a cara num momento de catarse, sofrimento e alívio. Propiciar, enfim, a hora da verdade. Após quatro meses no programa, o repórter foi deslocado para a editoria Rio, onde coordenou a equipe que realizou a série “Feira das Drogas”, que obteve grande destaque no Jornal Nacional e resultou no Prêmio Esso de Telejornalismo conquistado em 2001. A série denunciou a livre ação dos traficantes da Favela da Grota, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. No dia dois de junho de 2002, o jornalista Tim Lopes foi morto ao retornar à favela Vila Cruzeiro para concluir uma reportagem sobre o tráfico de drogas ao ar livre e sexo explícito com menores de idade, iniciada por uma denúncia de moradores da região do bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro. O jornalista, que era reconhecido por suas reportagens de denúncia, caracterizadas pelo uso de câmeras escondidas, trabalhava sempre só. Lopes foi pela quarta vez à comunidade para obter mais material. Nesta última ida ao local, sete traficantes capturaram Lopes, o torturaram e depois o executaram. O caso foi relatado pela imprensa, quando enfim, após uma semana de seu desaparecimento, foi confirmada a morte do jornalista. William Bonner, apresentador e editor-chefe do Jornal nacional, fez uma declaração

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o rosto de Tim Lopes não era amplamente conhecido. Durante sua carreira, Tim ganhou muitos prêmios, inclusive o Prêmio Esso, em 2001. Em 1985, venceu o 11º Prêmio Abril de Jornalismo na categoria atualidades, pela matéria esportiva “Tricolor de Coração”, publicada pela revista Placar. No ano seguinte ganhou novamente o Prêmio Abril, desta vez pela matéria “Amizade sem Limite”. Lopes começou a trabalhar na Globo em março de 1996, como produtor de reportagens do Fantástico. No programa, realizou a série “Hora da Verdade”, onde familiares de vítimas ficavam frente a frente com assassinos presos. O jornalista chegou a declarar na época, que era um desafio relatar a violência a partir dos próprios personagens e por eles mesmos. Mostrar a dor, o sentimento de vingança, a resignação, o perdão. Falar do sentimento

Tim Lopes, assassinado enquanto trabalhava em uma grande reportagem no complexo do alemão. sobre a morte de Tim Lopes, com duração de aproximadamente dois minutos. Na declaração, Bonner fala sobre o jornalista louvável, pai e esposo exemplar e amoroso que Lopes era. E ainda afirmou que “os traficantes que o mataram, interromperam o seu plano. E devem estar acreditando que calaram a sua voz. Estão errados. A sua voz será ouvida cada vez mais alta em cada reportagem em que nós, jornalistas do Brasil fizermos. A sua voz vai ecoar na redação da Globo e nas casas de cada brasileiro de bem. Ao invés do silêncio, o nosso aplauso”. A declaração feita pelo apresentador, no encerramento do jornal, mostrou Tim Lopes de forma heróica, como alguém que morre no foco das reportagens, exercendo a sua tão amada profissão. Após a confirmação da morte de Tim Lopes, a Rede Globo acompanhou cada passo da investigação e a procura dos assassinos. Durante três 69


meses a emissora produziu e apresentou 470 reportagens sobre o poder dos traficantes no Rio de Janeiro, resultando em mais de 17 horas de informação. A notícia da prisão de Elias Maluco, um dos líderes e principal suspeito do assassinato na época, foi dada pela Globo no dia 19 de setembro, durante o Jornal Nacional. No final da edição, William Bonner reforçou que a persistência de todo o Brasil pela prisão do assassino não era um privilégio, mas sim um reconhecimento de que quando se mata um jornalista o que se pretende é calar toda a sociedade. Na edição do dia nove de junho de 2002, o Estadão publicou a notícia que contava com detalhes aquilo que foi feito ao jornalista antes dele ser morto, a partir dos depoimentos feitos à polícia. Deixando explícitas também as medidas que foram tomadas após a morte de Lopes. O sequestro e assassinato foram executados por sete participantes, entre eles estão Elias Pereira da Silva (Elias Maluco), Elizeu Felicio de Souza (Zeu), Reinaldo Amaral de Jesus (Cadê), Fernando Sátyro da Silva (Frei), Cláudio Orlando do Nascimento (Ratinho), Claudino dos Santos Coelho (Xuxa) e Ângelo Ferreira da Silva (Primo). Todos foram condenados pelo crime, em 2005. ‘Primo’ foi o único que recebeu pena de quinze anos de prisão. Os outros envolvidos receberam penas de 23 anos e Elias Maluco, o mandante, recebeu 70

a maior pena: vinte e oito anos de prisão. Ângelo, o “Primo”, único menor de idade na época do crime, fugiu da penitenciária antes de cumprir a pena completa. Ao contrário da Rede Globo, o Estadão apresentou a morte de Tim Lopes de forma que o foco ficasse na crueldade e liderança que traficantes têm no morro, apresentando com detalhes a trajetória dos assassinos, interrogatórios e depoimentos que Tim Lopes fez antes de sua morte. Mostrava, ainda, depoimentos dos suspeitos na época, em que falavam sobre cada passo dado pela polícia. Zaqueu Teixeira, o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, disse que os detalhes eram minuciosos demais, sendo que o grupo só teria ‘ouvido dizer’. A polícia também se pronunciou referente às providências tomadas para combater o tráfico de drogas na localidade, tentando até acabar com o domínio dos traficantes nas redondezas. Além dessa publicação sobre o assassinato de Tim, o Estadão colocou nas bancas

no dia dois de setembro de 2002, uma matéria na qual informa que o motorista da Rede Globo que trabalhava com Lopes, e que o levou três vezes à Vila Cruzeiro antes de ser morto, começou a desconfiar de que poderia existir um informante relacionado com o tráfico de drogas próximo a Tim. Tal informante poderia ter avisado os assassinos de como seria a matéria e os locais onde ele estaria, bem como datas e horários. Alexandre Pinto, o motorista citado na notícia, contou a Alessandra de Araújo Wagner, esposa do Jornalista, que ele teria demonstrado receio de ir ao local da reportagem pela terceira vez, pois os encontros eram sempre no mesmo local. No dia sete de Agosto de 2002 a Polícia publicou o inquérito da morte do Jornalista culpando o próprio Tim Lopes pela sua morte. A alegação foi que Tim teria ido filmar traficantes e suas armas e não um baile funk organizado pelo tráfico, e por isso teria se colocado muito perto do perigo. Em resposta ao inquérito, William Bonner leu uma nota oficial repudiando o resultado das investigações, e posteriormente o Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, Nacif Elias, também se posicionou, dizendo que colocaria uma nota oficial rejeitando a conclusão da polícia. Em 2002 foi criado o Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Revista Código | Cruzeiro do Sul


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Investigativo, que visa incentivar a imprensa a seguir cobrindo o abuso e a exploração sexual infantil. No carnaval de 2003 a escola de samba “Acadêmicos do Tucuruvi” desfilou ao som de Não Calem Minha Voz, um samba enredo em homenagem ao jornalista, cujo refrão clamava pela verdade. Em 2012, Bruno Quintella, filho de Tim Lopes, dedicou-se à produção de um documentário sobre seu pai com o título de História de Arcanjo - um Documentário sobre Tim Lopes. Diante da morte de uma figura importante, algumas

“A sua voz será ouvida cada vez mais alta em cada reportagem(...)” William Bonner, Âncora e Editor Chefe do Jornal Nacional, da Rede Globo.

medidas e prevenções foram criadas, visando garantir maior segurança para os jornalistas da área. Além disso, criou-se uma conscientização maior por parte dos profissionais que diariamente estão no meio investigativo. É o que revela Maria Iemini membro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Iemini, gerente-executiNovembro de 2019

William Bonner, âncora do Jornal Nacional noticiando com muito pesar a morte de Tim Lopes. va da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), instituição que visa promover um jornalismo de qualidade e defender a liberdade de expressão, comentou algumas mudanças que ocorreram no Jornalismo Investigativo, após a morte do Jornalista. Segundo a entrevistada, houve mudanças, principalmente entre os jornalistas que atuam na área, pois houve uma tomada de consciência maior em relação aos riscos a que estão submetidos. Cresceu também o interesse em treinamentos e discussões sobre segurança na hora de fazer reportagens. A própria criação da entidade é uma das mudanças: “A própria criação da Abraji pode ser vista como uma mudança: jornalistas - que não são seres exatamente gregários - se reuniram para criar uma organização sem fins lucrativos nem caráter sindical, na qual podem trocar experiências e conhecimentos, manter contato entre si e lutar pela profissão”.

Maria Iemini aproveita ainda para citar as medidas de segurança adequadas para quem trabalha com Jornalismo Investigativo: “depende do tipo de apuração no qual o jornalista está envolvido. O básico, para todos, é jamais colocar a história acima de sua própria segurança, de sua vida. Ao perceber que uma das duas está em risco, o melhor é recuar”. Também falou a respeito de algumas recomendações no meio digital. Segundo ela, as recomendações são proteger ao máximo sua privacidade, separando perfis públicos dos privados em redes sociais, por exemplo e adotar medidas como senhas fortes e autenticação em duas etapas. Na “vida real”, em caso de ameaças ou perseguições, recomenda-se registrar as ameaças e denunciá-las às autoridades competentes, além de alterar rotas e horárias de idas e voltas do trabalho. Em casos extremos, sair de cena por um tempo. 71


Jornalismo de Referência

Máfia do Apito:

fraude dentro de campo Por Daniel Marques, Gabriel Henrique, Luccas Leão, Gustavo Aquino, Samuel Fragoso, Paulo Junior e Igor Silva.

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a história do futebol mundial, diversos escândalos relacionados à corrupção vieram à tona após investigações. Um dos maiores clubes do mundo, a Juventus Football Club, de Turim (Itália) esteve envolvida em um dos maiores escândalos de manipulação de resultados, quando em maio de 2006, o clube teve dois títulos anulados e um rebaixamento à divisão inferior, que foi disputada em 2007. Não menos impactante, temos o caso envolvendo a Federação Internacional de Futebol (Fifa), entidade máxima do esporte. No Brasil, sete dirigentes mais um ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin, foram presos em 2015 na Suíça, por suspeita de manipulação na escolha dos países sede para a Copa do Mundo. Entre nós, no entanto, o caso mais famoso foi a chama72

da “Máfia do Apito”, ocorrido durante o Campeonato Brasileiro de Futebol de 2005. O fato veio à tona após um texto publicado pelo jornalista André Rizek na edição de 23 de setembro do mesmo ano da revista Veja. O caso tratava de um grupo de apostadores federados, comandados pelos empresários Nagib Fayad e Vanderlei Pololi. Eles manipulavam as partidas da competição, pagando valores aos árbitros, para que eles favorecessem um dos lados em diversas partidas, influenciando diretamente o resultado final dos jogos e beneficiando estes apostadores. Após a apuração, foram anuladas onze partidas, que no fim tiveram que ser remarcadas. Os jogos foram realizados novamente, e tiveram resultados finais diferentes. O Corinthians sagrou-se campeão da competição com três pontos de difereça em relação segundo colocado, o Internacional de Porto Alegre. Os resultados originais das partidas manipuladas teriam dado o título para a equipe Colorada. Alguns erros de arbitragem

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Quatorze anos depois do dossiê referente à manipulação de resultados no Campeonato Brasileiro de Futebol de 2005, ainda não há legislação específica sobre o tema.

Capa da revista Veja do dia 23 de setembro de 2005. ainda são recorrentes, prejudicando ou beneficiando diversas equipes do futebol brasileiro. A partir disso, árbitros que cometem falhas graves passam por um processo de reciclagem antes de retornar aos gramados. Segundo a Federação Paulista de Futebol, a reciclagem é realizada por meio de trabalho psicológico, técnico e físico. Os árbitros que passam por este processo têm um acompanhamento semanal, para recuperação e retorno às atividades. Revista Código | Cruzeiro do Sul


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Na semana seguinte à publicação da matéria pela Veja, os árbitros Edilson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon confessaram envolvimento no esquema. Edilson é considerado o pivô da chamada “Máfia do Apito”, e ficou marcado como a principal figura do caso. Ele foi preso em sua casa, na cidade de Jacareí, localizada na região do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo, na madrugada de 24 de setembro de 2005. Já Danelon se apresentou à Polícia Federal e permaneceu em liberdade. Os dois empresários foram detidos e cumpriram cinco dias de prisão temporária, assim como Edilson. Nagib Fayad foi preso em uma boate na capital do estado. Depois isso, os dois árbitros foram banidos do quadro oficial da CBF. Após cinco anos do acontecimento, o árbitro Edilson Pereira de Carvalho foi condenado por manipular os jogos, juntamente com Fayad, que fez a ponte entre os apostadores e os árbitros. De acordo com as investigações feitas pelo Ministério Público de São Paulo, os árbitros envolvidos na manipulação recebiam de 10 a 15 mil reais por cada jogo fraudado, sempre comandados pelos empresários. A CBF também foi considerada culpada por não cumprir o dever de garantir a observância de regras que garantissem o regular andamento dos campeonatos. Edilson, em entrevista à própria Veja em 2011, classificou a oferta que recebeu como “tentadora”, e Novembro de 2019

afirmou que “não conseguia mais parar de roubar”. Apesar disso, em 2015, em reportagem feita pelo site “globoesporte.com”, Edilson se eximiu de qualquer culpa no título do Corinthians no Campeonato Brasileiro de 2005. De acordo com o ex-árbitro, se há algum culpado pelo timão ter passado o Internacional na competição este é Márcio Rezende de Freitas, que não marcou um pênalti no jogador Tinga, do Internacional, na partida entre os dois clubes, disputada em São Paulo, no dia 20 de novembro daquele ano. Este é um lance que causa muita reclamação até hoje por parte da torcida colorada, e até o próprio Tinga já se pronunciou sobre o assunto, dizendo aos canais “ESPN”, em 2015, que ainda se sentia “assaltado” e que aquele foi o jogo que tirou a possibilidade do Inter de ser campeão. Voltando à Edilson Pereira de Carvalho, ele era um dos dez árbitros a ostentar o escudo FIFA na época em que a “Máfia do Apito” foi descoberta. Vale destacar que, ainda para o “globoesporte.com”, o ex-árbitro também revelou que tudo começou após um jogo pela Taça Libertadores da América, em 2005. Logo após apitar o jogo entre Banfield (Argentina) e Alianza Lima (Peru), ele recebeu dez mil reais para favorecer o time da casa (Banfield), que ganhou pelo placar de 3 a 2. O ex-árbitro conta que Nagib estava lhe esperando no aeroporto de Cumbica, em Guaru-

Revista Placar sobre o escândalo acontecido em 2005. lhos com a “recompensa” pelo favorecimento. Após o escândalo da “Máfia do Apito”, muitas pessoas passaram a olhar a possibilidade de realizar apostas com maior cautela. O panorama das apostas, desde então, tinha todos os motivos para não ter a empatia e aceitação dos amantes do futebol. No entanto, no dia 12 de dezembro de 2018, o então presidente da república, Michel Temer, sancionou a lei que libera apostas esportivas no Brasil. Além de criar novas políticas de proteção ao esporte relacionados à apostas, o governo federal deve arrecadar cerca de um bilhão de reais por ano, considerando o movimento atual desse mercado no país. Por fim, vale destacar que a legislação criminal também deve se aprimorar para contemplar os crimes deste tipo, já que no caso da “Mafia do Apito”, o ex-árbitro Edilson Pereira não foi punido por falta de legislação específica. 73


Jornalismo de Referência

Prêmio Petrobras

promove discussão sobre a depressão Com a reportagem radiojornalística “Saúde Mental - Não é frescura”, Gabriela Mayer e Renan Sukevicius venceram na categoria radiojornalismo. Por Gabrielle Cesaretti

U

ma das maiores provas de sucesso do seu trabalho, é o reconhecimento. E foi assim que Gabriela Mayer e Renan Sukevicius foram presenteados ao vencerem o Prêmio Petrobras de Jornalismo, na categoria de “Radiojornalismo”. A série de reportagens “Saúde Mental – Não é frescura” apresentada pela dupla de radialistas, abordou os grandes problemas de saúde mental, dando foco principal nos casos de depressão e transtornos de ansiedade, que como a própria Gabriela conta, “eram os pontos que tinham os índices mais alarmantes”. A série produzida e distribuída pela Rádio BandNews FM, teve a participação de psicólogos e psiquiatras. A reportagem separadatt em cinco episódios também contou com a presença pessoas que 74

sofriam de doenças mentais e aceitaram compartilhar suas histórias.

Saúde Mental Infelizmente, o assunto “depressão” é pouco compreendido, pois o preconceito com quem sofre desse mal ainda é muito grande no Brasil. A maioria das pessoas que se limita a esse preconceito, entende que quem sofre da doença não pensa positivo, não teve uma educação familiar adequada, que pode estar atrelado diretamente à questões religiosas e que o quadro pode ser uma fase passageira.

Uma das maiores barreiras enfrentadas pelas pessoas que sofrem com a depressão é o preconceito e a banalização da doença. Expressões como: “você não tem motivos para estar triste” ou “por que você não se esforça para melhorar?”, são algumas das diversas frases que muitas pessoas tem que encarar. “Nossa série se chamava “Saúde Mental Não é frescura”, pois esse era um argumento muito recorrente. Era comum ouvir alguém falar “isso é frescura, arruma o ombro levanta as costas e anda pra frente que dá certo”, mas não é

Revista Código | Cruzeiro do Sul


Natália Turini

Arquivo pessoal

bem assim né?!” - contou a jornalista Gabriela Mayer. Psicofobia é o termo utilizado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para definir o descaso e preconceito com esses transtornos, e a rejeição às pessoas com depressão, transtornos de ansiedade ou outras doenças mentais o termo é classificado na mesma linha da homofobia e xenofobia. A ideia de criminalizar este ato, é uma ação educativa e de conscientização. Dados levantados pela OMS em 2015, mostram que cerca de 12 milhões de brasileiros sofrem com a depressão, colocando o país em segundo lugar no continente americano em casos da doença, perdendo apenas para os Estados Unidos. Já na América Latina, o Brasil lidera o ranking. Mas, os casos de transtornos de ansiedade são ainda

Renan Sukevicius e Gabriela Mayer, após receber o Prêmio Petrobrás de melhor reportagem radiojornalística.

maiores, o Brasil é recordista mundial somando 19 milhões de casos. A mesma pesquisa comprovou que no total, a depressão atinge cerca de 322 milhões de pessoas ao redor do mundo, e mata, em média, oitocentas mil pessoas ao ano. Os dados ainda apontam algo mais preocupante: a doença é a segunda maior causa de mortes entre os jovens. A Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal) afirma que quanto mais as pessoas falam sobre este preA psiquiatra falou sobre a importância de conceito, as vítiprogramas especializados em falar sobre a mas se sentem saúde mental das pessoas. 75

mais confortáveis em conversar sobre a doença e procurar ajuda profissional. O médico psiquiatra Daniel Barros, participou da série de reportagens e comentou sobre a importância de pessoas públicas falarem sobre o assunto. “Ajuda a diminuir o estigma, pois a pessoa pensa que acontece apenas com ela, e não é, uma pessoa produtiva também pode ter depressão”, diz. Na série de reportagens o ex-âncora da BandNews FM, Ricardo Boechat falou sobre a dificuldade de compreender que não estava bem. “Só percebi que esses eram os sintomas depois de ter passado pelo surto e depois de ter conversado com o psiquiatra”, contou o jornalista. E depois de 15 dias longe do trabalho, ele Revista Código | Cruzeiro do Sul


O Prêmio O Prêmio Petrobras de Jornalismo existe desde 2013, quando foi criado 76

Djuly Pendek e Marcos Junior

voltou aos microfones e explicou aos ouvintes o que havia acontecido. Boechat contou que muitos o procuraram para falar sobre o assunto. Para Gabriela Magini Prado, médica psiquiatra do núcleo de psico-oncologia do A.C. Camargo Cancer Center, os principais fatores que contribuem para o aumento de casos de depressão são as mudanças de estilo de vida, alimentação, saúde física em geral, abuso de álcool e drogas, tecnologia, crescimento populacional, fatores estressores, perda do senso de comunidade e companhia e, finalmente, falta de apoio. Por mais que a internet e outros meios de comunicação tenham ajudado a disseminar mais informações, somente 10% das pessoas ao redor do mundo recebem o tratamento adequado (Dados da OMS). “Acredito que todo programa ou espaço que se destine a falar sobre saúde mental para o público em geral deva ser valorizado, dado que a desinformação fomenta o preconceito e o adiamento da busca por tratamento psiquiátrico”, afirma a psiquiatra Gabriela Magini Prado que acredita que a melhor forma de combater o preconceito, é por meio do diálogo e da orientação familiar.

Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS).

durante as comemorações de 60 anos da estatal. O principal objetivo do prêmio é reconhecer a importância dos meios de comunicação, e principalmente dos jornalistas no processo de democratização e disseminação de informações e conteúdos qualificados e relevantes para o Brasil. Buscando estreitar e consolidar o relacionamento da Petrobras com a imprensa, estimulando a produção e o desenvolvimento de reportagens que contribuam de forma positiva para a imprensa e a sociedade. De acordo com os dados disponíveis no site do Prêmio Petrobras, as reportagens

são avaliadas em duas etapas. Na primeira, uma Comissão de pré-seleção, que é composta por 12 jornalistas com experiência comprovada, avalia todas as matérias recebidas. As dez melhores de cada categoria seguem para a próxima etapa e são então julgadas por uma comissão composta por sete profissionais renomados da imprensa, com extensa trajetória na área jornalística. Podem participar do prêmio veículos de comunicação nacionais, desde que as reportagens tenham sido publicadas em meios de comunicação de massa em texto, áudio, vídeo ou fotografia. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Profissões do Jornalismo

Formação e carreira:

OS DESAFIOS DO MERCADO Pixabay

Ter um diploma não é garantia de sucesso. O mercado profissional pode exigir mais do profissional, que devido à baixa oferta, pode ser obrigado a mudar de área. Por Adnael Nogueira, Ana Vitória Bispo, André Nascimento, Danilo Oliveira, Gabrielle Santos, Samuel Vasques e Sulamita Mendonça

A

todo momento profissionais de diversas áreas precisam se reinventar e agregar novas habilidades ao currículo. O mercado de trabalho de hoje não é o mesmo de dez anos atrás, pois transformações ocorrem constantemente nas mais diversas profissões. Com isso, muitos profissionais formados acabam migrando para outras áreas de atuação e, no jornalismo, não é diferente. Nos últimos anos vêm se tornando cada vez mais comum casos de pessoas que mudaram radicalmente de área por conta da dificuldade de ingressar no mercado de trabalho por meio de sua primeira formação. Segundo o sociólogo italiano Domenico de Masi, um dos fatores que tem mudado a indústria e o setor de serviços é a globalização do mercado de trabalho. A criação da modalidade de outsourcing, ou seja,

Novembro de 2019

quando uma empresa transfere as atividades para outra, com o fim de proporcionar maior disponibilidade de recursos para suas atividades, com isso reduzindo a estrutura operacional, diminuindo os custos, economizando recursos e simplificando a burocracia e administração. Trata-se, basicamente, de um tipo de terceirização. Esse processo e outros semelhantes acabam por transformar as relações de trabalho, provocando uma queda na oferta de vagas

de emprego e prejudicando os trabalhadores. O mercado de trabalho de quarenta anos atrás era bem diferente. Os profissionais estavam tranquilos em realizar somente suas funções e a empresa já ficava satisfeita. Hoje, no século XXI, o empregado precisa ser multitarefa e estar a todo momento se atualizando. Hoje ainda se pode observar jornalistas que atuam na área sem diploma, aqueles que descobriam sozinho as 77


Danilo Oliveira

técnicas para fazer jornalismo. O jornalista Audálio Dantas, que faleceu recentemente, é um exemplo desse tipo de profissional. Dantas, no entanto, defendia a exigência do diploma e defendeu seu pensamento em uma entrevista à revista IHU (Instituto Humanitas Unisinos): “não tenho formação específica em jornalismo, sou defensor da exigência do diploma universitário para o exercício da profissão. Fiz isso como presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e como presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, por entender que o curso, no mínimo, oferece conhecimento teórico que dá melhores condições para o exercício da profissão. O problema é que nem sempre os cursos oferecidos, muitas vezes em faculdades que são verdadeiras arapucas, formam bons jornalistas. Um dos problemas é que muitos dos professores de jornalismo não passaram sequer perto de uma redação”.

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Marcela Gil, formada em jornalismo, trabalha como coordenadora de treinamento na Smollan iTrade. As redações jornalísticas atualmente estão cada vez mais enxutas e com menos profissionais da área, centralizando funções em uma só pessoa. Além disso, a concorrência de vagas segue cada vez mais acirrada, o que contribui para que muitos jornalistas enfrentem a mudança de profissão a fim de buscar por uma carreira mais bem sucedida e com um cenário mais promissor. Uma das áreas de fuga para os profissionais de comunicação social formados em jornalismo é a área corporativa.

Não para exercer jornalismo institucional, mas sim atividades de administração. Outros procuram abrir seu próprio negócio, ou embarcam em corporações já estabelecidas, referências nas áreas em que atuam. O jornalista Fernando Guifer, graduado em jornalismo, e que atua há 14 anos na área, viu a necessidade de migrar de carreira por conta das condições e oportunidades. Fernando começou no jornalismo em 2005, após publicar um artigo em uma conceituada revista de música voltada para o público do Rock, sem pretensão, dois anos antes de ingressar na faculdade. Desde então, decidiu que seria essa a sua carreira. Depois de atuar 14 anos como jornalista, entre diversas funções, ele recebeu uma proposta da empresa em que trabalhava como analista de comunicação para atuar como coordenador de recrutamento e seleção. Guifer conta que transição de carreira naquele Revista Código | Cruzeiro do Sul


Novembro de 2019

Após sete meses coordenando o setor de recrutamento da empresa, Fernando Guifer decidiu se deligar da função, e se dedicou à sua carreira como escritor e mestre de cerimonias. Caminhos diferentes, de alguém que precisou se reinventar. A jornalista Marcela Gil, também enfrentou uma transição de carreira. Ela conta que a princípio escolheu o jornalismo por gostar muito de escrever, além de, na época do vestibular, estar em dúvida entre muitas opções que o mercado oferecia e o jornalismo lhe pareceu uma boa opção para transitar entre as mais diversas áreas. No início, Marcela conta que por ter feito faculdade em uma região mais afastada da cidade não teve muitas oportunidades de estágio na área do jornalismo e suas primeiras experiências foram os projetos de extensão da própria faculdade e as aulas práticas. Só quando veio para a grande São Paulo, que realmente foi trabalhar em sua área de formação, como redatora e assessora em um site de odontologia. Para Marcela, não foi exatamente uma decisão sair do jornalismo, mas, após se candidatar para uma vaga de redatora acabou entrando no mundo corporativo e passou a trabalhar com treinamento e capacitação de pessoas e não saiu mais. “Eu sempre falo que, embora esse mundo de treinamento corporativo pareça totalmente distante do

Danilo Oliveira

momento não foi algo muito difícil de lidar, porque acredita que Recursos Humanos e Jornalismo tem algo bastante em comum: transformar vidas. Mas afirma, obviamente, ter tido mais dificuldade para atuar em seleção, já que não tinha experiências na área. “Quando a gente gosta mais de uma coisa, é natural que enxerguemos menos dificuldades no exercer e no lidar em todos os aspectos. A mesma coisa quando não gostamos e tudo se tona um martírio. Por isso, talvez eu veja menos dificuldades no jornalismo e tenha tido mais dificuldades no recursos humanos, diz. “Jornalista eu sou; coordenador de R&S eu apenas estava. De qualquer forma, embora adore lidar com pessoas, o maior desafio de qualquer profissão está mesmo nas relações humanas e suas particularidades individuais”, completa. Além da grande concorrência e demais empecilhos, outro importante fator que contribui para a transição de carreira dos jornalistas é o piso salarial. Não houve aumento proporcional à expansão da área. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o piso salarial para a profissão vai de R$ 1.000 a R$ 3.000 para os cargos mais tradicionais. Guifer explica que a transição de subordinado à líder, fez com que seu salário aumentasse e a mudança proporcionou uma vida melhor para sua família.

Fernando Guifer viu uma oportunidade e mudou de área. jornalismo, eles possuem muita ligação. Afinal de contas, no jornalismo a gente escreve sobre qualquer assunto para que qualquer pessoa consiga entender. No treinamento corporativo a gente faz a mesma coisa, só que usando outras ferramentas (como apresentações de Powerpoint e guias de execução). O ato de transmitir uma mensagem com sucesso à uma pessoa, independente do conhecimento anterior dela, segue o mesmo caminho”. Há dez anos ela trabalha com recursos humanos e por mais que já tenha pensado em voltar a atuar como jornalista, já se sente à vontade e realizada no mundo corporativo. Relatos de experiência como a do jornalista e escritor Fernando Guifer e a da jornalista Marcela Gil reforçam a ideia de um cenário cada vez mais dinâmico no âmbito profissional, no qual as pessoas não ficam presas a sua formação e buscam cada vez mais a autorrealização profissional e pessoal. 79


Profissões do Jornalismo

Profissões entrelaçadas: a ponte entre o jornalismo e a música Por Jefferson Vicente, Juliana Ferreira e Karina Abel.

Acervo pessoal

Jornalistas superam dificuldades vividas no mercado e se reinventam, criando uma relação entre a profissão e seus hobbies.

O

profissional de jornalismo possui habilidades que são requeridas pelas mais diversas áreas, como por exemplo, a música. A versatilidade é uma das principais características que permeiam os dois campos de atuação, que também exigem pessoas que sejam multifacetadas, flexíveis e plurivalentes. Além disso, o jornalista é, na maioria das vezes, alguém curioso, que gosta de novidades e de se reinventar a todo momento. Todas essas características criam pontes para que outras áreas de atuação possam ser exploradas e, consequentemente, preenchidas por esses profissionais. Às vezes, o jornalista decide transformar a sua área de atuação e olhar de outra forma para o mercado de trabalho 80

Régis tocando na casa de shows Bourbon Street em São Paulo. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Juliana Ferreira

e seus projetos para o futuro. Sonhos, aspirações e desejos podem ser mais importantes até mesmo do que o dinheiro ou uma carreira bem consolidada dentro de uma grande organização. A seguir, você irá conhecer dois personagens que, acidentalmente, enveredaram por caminhos diferentes de suas formações: Régis Tadeu, ex-dentista, membro da banda Muzak, jornalista e crítico musical e Carlos Junior, formado em jornalismo e profissional da área de publicidade em uma rádio de São Paulo.

Jornalismo “por acidente”: a história de um amante da música A profissão de crítico musical está presente em diversos veículos de comunicação há décadas. Nesta área atua o jornalista, apresentador e radialista Régis Tadeu. Conhecido por diversas aparições nos programas Superpop (Rede TV) e Raul Gil (SBT), Régis é apresentador dos programas “Lado Z” e “Rock Brazuca”, na Rádio USP FM, possui um site onde publica suas matérias e um canal no YouTube, atualmente com 100 mil inscritos. Formado em odontologia, Régis começou sua carreira jornalística “de forma acidental” em 1994. “Um dos proprietários da editora que publicava a revista “Cover Guitarra” Novembro de 2019

soube que eu tinha uma enorme coleção de discos e me convidou para fazer algumas resenhas. Fiz a primeira e não parei mais”. Ao longo de sua carreira, foi colunista do Yahoo durante sete anos, editor-chefe e diretor de redação das revistas Cover Guitarra, Cover Baixo, Cover Batera, Cover Teclado, Áudio e Mosh, essa última, levou Régis ao “Programa do Jô”, no qual falou sobre o lançamento da revista e mostrou sua coleção de discos. “A entrevista foi fundamental para alavancar a minha carreira como jornalista em todas as mídias – nos meios impressos, no rádio e na televisão”, diz. Após a entrevista, foi

convidado pela produção do programa Superpop (Rede TV) para protagonizar um quadro onde tecia críticas e quebrava discos de diversos artistas, assim como os apresentadores Alfredo Borba (1926-2012) e Flávio Cavalcante (19231986). Como telespectador, discordava com frequência destes comunicadores, principalmente quando “metiam o pau” em gêneros pertencentes à juventude da época. Diante de tantos compromissos, Regis viu-se obrigado a abdicar da carreira de dentista, depois de vinte anos. “Tive que abandonar a profissão que tanto adorava quando não consegui mais conciliar as 81


Acervo pessoal

Régis Tadeu em ensaio de estúdio em São Paulo. agendas de meus pacientes com meus trabalhos em rádio, televisão e mídia impressa”. Além de jornalista, Régis também é músico desde os dezenove anos e aprecia do Rock à Música Erudita, passando pelo Soul, Jazz e por diversas vertentes da Música Brasileira, além de sons de outras culturas. Como baterista, foi integrante da banda punk Subúrbio, ao lado de seus amigos de colégio Edgard Scandurra e Marcos Valadão, que viria a ser conhecido como Nasi. Os dois últimos formariam uma das grandes bandas do rock brasileiro, o Ira!, em 1981. Sobre os colegas, Regis diz que a relação era excelente. “São meus amigos até hoje. Edgard foi importantíssimo para a minha formação como baterista, pois aprendi com 82

ele a improvisar em cima de qualquer música. Nunca passo aperto quando sou chamado para ‘jam sessions’. Devo isso a ele”. Também passou pelos grupos Anarca, Vis-a-Vis, Ness e Muzak, este último, lançado pelo gravadora EMI-Odeon no projeto “Mini LP”, ao lado da Plebe Rude e da Banda Zero. “Voltamos à atividade em setembro do ano passado e já estamos preparando um novo disco. Estamos em ótima fase”, diz. Conhecido por suas opiniões fortes, Régis se diz entristecido com a situação atual do jornalismo, segundo ele, tratado como “moeda de troca”. “Antigamente, tínhamos profissionais em todas as áreas do Jornalismo que embasavam suas opiniões – controversas ou não – em

uma argumentação sólida o suficiente para nos fazer pensar. Ver colegas meus de imprensa fazendo resenhas de discos sem ouvir, tecendo comentários elogiosos a respeito de shows horrorosos só para não se queimar com a produtora e, com isto, conseguir mais credenciamentos (para ir aos eventos). Gente com medo de emitir opiniões sinceras para não “desagradar a galera”. Uma vergonha”. Sobre o cenário musical contemporâneo no Brasil, Regis diz que há um domínio completo por estilos populares e ruins. “Quem não está na mídia, tem que se contentar em fazer shows no circuito do Sesc”. Já fora do país, a situação é diferente, com um circuito de shows forte e sólido. “Permite que bandas e artistas Revista Código | Cruzeiro do Sul


Música, Jornalismo Esportivo, Rádio e Publicidade Diferente de Régis, que deixou a sua primeira formação para exercer a sua profissão atual, Carlos Mendes Júnior, 29 anos, é formado em jornalismo pela Unip, mas não atua na área. Fez trabalhos na área de publicidade e passou por rádios importantes da capital paulista, como a Metropolitana FM, atuando nas áreas de pedágio, promoção e comercial. Atualmente trabalha na 89 FM, a “Rádio Rock”, onde produziu alguns boletins no período da Copa do Mundo de 2018, diretamente da Rússia para o programa “Do Balacobaco”, apresentado pelo radialista Zé Luiz. Antes de enveredar pelo jornalismo, chegou a pensar em cursar publicidade e até mesmo ciências da computação. “Não tenho nenhum perfil Novembro de 2019

Acervo pessoal

para isso (risos). Optei pelo jornalismo visando meu amor pelo esporte e sonho em ser jornalista esportivo”, comenta. A música e o esporte são as grandes paixões de Carlos: “Sempre sonhei em atuar com música, que está presente praticamente o tempo todo em minha vida ou com esporte, especificamente com futebol”. Ao ser questionado se a formação de jornalista o ajuda em seu campo de atuação, Carlos diz que a graduação o auxilia a entender melhor os veículos onde trabalha, como meios de informação para o público, além de aprender a melhor trabalhar a imagem do cliente por meio da comunicação. A falta de oportunidade na área de jornalismo também levou Carlos a atuar na área publicitária, além do crescimento profissional na área comercial em paralelo ao seu curso. “A carreira acabou indo automaticamente para esse lado. Quando me encontrei, me interessei imediatamente, decidindo concluir a faculdade de jornalismo, mas seguir na área comercial/publicitária de veículos de comunicação. A falta de espaço e a questão de remuneração também influenciaram bastante a minha decisão”, alega. Baixista em uma banda de Hardcore, começou a tocar guitarra aos 14 anos, mas encara a música como um hobby: “É uma área complicada em questões financeiras, ainda mais no caso do estilo da

Show da banda Jaraguá em Chamas, em São Paulo.

Acervo pessoal

de médio porte sobrevivam com muita dignidade, algo que não acontece no Brasil”, comenta. Apesar de não ver com bons olhos o jornalismo vigente, se diz satisfeito com relação a seus projetos atuais e aconselha quem está começando no jornalismo e na música. “Ouçam música como se fosse um ritual e não como trilha sonora para qualquer outra coisa que estejam fazendo. E leiam muito”.

Carlos Jr. tocando contrabaixo.

minha banda, por isso sempre tratei como diversão”, conta. Com a queda da mídia impressa, Carlos acredita que o jornalismo está cada vez mais defasado e sensacionalista: “Preocupam-se mais em ‘vender’ a informação do que aprofundá-la ou transmiti-la com qualidade”. Em decorrência da enorme abrangência da internet, Carlos conclui que as pessoas se informam muito pouco e não se aprofundam nos assuntos: “Passar um conteúdo de forma correta e eficaz é uma missão cada vez mais difícil para o jornalista”. 83


Profissões do Jornalismo

Jornalismo e

Novos caminhos

Com o mercado de trabalho cada vez mais acirrado e exigente para os jornalistas, tem se tornado cada vez mais comum a procura por novas áreas de atuação. Por Ana Claudia, Luciana Monteiro, Jadson de Almeida e Stefannie Herschel

P

ercebe-se que cada vez mais jornalistas têm deixado sua área original de formação para tentar carreira em outras áreas. Atualmente, as maiores empresas de comunicação, especialmente algumas redações, abandonaram o verdadeiro objetivo do jornalismo, abrindo mão da informação pela multidão de opiniões que 84

povoam as chamadas redes sociais. Mas não se pode deixar de ressaltar que tais redes têm sua importância e espaço relevante para o jornalismo, devido a facilidade e a rapidez na comunicação. A revolução tecnológica pode ser apontada como responsável pela migração dos jornalistas para o digital, uma vez que os meios digitais tomaram maiores proporções ao possibilitar que as notícias fossem veiculadas com maior rapidez e eficiência, fazendo com que grande parte do pú-

blico leitor migrasse do jornal impresso para o virtual. É notável que estamos vivenciando uma era digital, na qual, aos poucos, os veículos de comunicação vão se adaptando às novas formas de atingir seu público, atendendo a demanda por velocidade de informação, dificultando a inovação dos meios tradicionais, como o impresso, por exemplo. Segundo pesquisa do International Center for Journalists (ICFJ), apenas 5% das redações jornalísticas em todo o mundo possuem funcionáRevista Código | Cruzeiro do Sul


rios com formação tecnológica voltada para a área, mostrando a escassez de pessoas qualificadas para adaptarem as redações, e instalando a dúvida se a qualidade do jornalismo acompanha sua evolução mercadológica. O primórdio da revolução digital remete à 1950. Desde então a revolução tecnológica e digital foi mudando a forma de ver o jornalismo e suas múltiplas funções. “A revolução do impresso, com a invenção de Gutenberg, retirou os livros do monopólio da Igreja, o telefone permitiu uma comunicação instantânea entre pessoas, a TV e o rádio levaram informações à distâncias enormes para uma mas-

A falta de oportunidade é também um dos principais fatores para a atuação dos jornalistas em outras áreas. sa de espectadores. A internet cria hoje, uma revolução sem precedentes na história da humanidade. Pela primeira vez, o homem pode trocar inforNovembro de 2019

mações, sob as mais diversas formas, de maneira instantânea e planetária. Vale destacar também que outras mudanças contribuíram para a saída dos jornalistas de suas iniciais ocupações, como o fato do jornalista contemporâneo ter adquirido múltiplas funções. Diferente do panorama arcaico do jornalismo, onde era apenas um profissional com função específica, o jornalista da era digital é aquele que se aplica em todas as funções; idealiza a pauta, fotografa, edita e publica em curto prazo para suprir a demanda do seu veículo. “(…) todas estas inovações tecnológicas geram condições infinitamente superiores para a qualidade do trabalho do jornalista, mas, ao mesmo tempo, exigem, pelo dinamismo, velocidade e diversidade de sua evolução, uma permanente reciclagem atualizadora do jornalismo profissional, principalmente sob o ponto de vista estético e ético”.

Diante dessa constante evolução, torna-se evidente que é necessária uma nova busca de como inovar os jornais impressos para essa nova realidade dos leitores do século XXI. Observa-se, assim, as razões da redução do número de profissionais nas redações jornalísticas, fazendo com que os veículos assumam a necessidade da aplicação de novos meios tecnológicos e profissionais adaptados a estas tecnologias. A violência contra os jornalistas também é um fator que aflige muitos profissionais da área, indo desde a violência psicológica, como ameaças, até a física, como agressões ou a morte. Segundo um relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a violência contra esses profissionais aumentou 36% em 2018, sendo registrados 135 casos de agressão, atingindo 227 jornalistas, resultando em um clima de medo no campo de atuação. 85


Gabriela Sigeco

Nos últimos 12 anos, 38 jornalistas foram assassinados no Brasil. De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), apenas dez dos casos relatados foram solucionados, um número relativamente baixo, levando em consideração o constante aumento dos crimes contra os profissionais de comunicação. Segundo o relatório “Tendências mundiais sobre liberdade de expressão e desenvolvimento da mídia”, a cada dez assassinatos de jornalistas, nove ficam impunes, levando o Brasil a ficar em 10º lugar no ranking de impunidade de crimes contra jornalistas. O país faz parte da lista há nove anos, alertando sobre a ne86

mesmo fora da comunicação, tais como a área do empreendedorismo, caso do entrevistado Carlos Cesar, e até mesmo da educação, como é o caso da entrevistada Gisele Moura. Ambos formados em jornalismo, mas que atualmente não fazem parte desta profissão em sua totalidade. “Eu realmente achava que a informação era a única forma de mudar a concepção das pessoas e com isso, gradativamente, o mundo. Mas tão logo comecei a trabalhar na área, me dei conta que as notícias são os produtos dos meios”, diz Gisele. Formada há 7 anos e atuando na área desde o estágio no quarto ano, ela nunca deixou o jornalismo de lado. Já trabalhou em revista, jornal, internet e televisão.

Roberta Souza

Gisele Moura, professora na Plus Language School.

cessidade de priorizar a averiguação dos crimes, já que em muitos casos estes acontecem devido a denúncias e divulgação de documentos que os profissionais fazem. Principalmente em casos políticos em períodos eleitorais. Para fugir da insegurança e do medo, muitos profissionais acabam optando por atuar em outras áreas que não a de formação. A falta de oportunidade é também um dos principais fatores para a atuação dos jornalistas em outras áreas. Com a grande crise que o país está enfrentando, o mercado de trabalho está se tornando cada vez mais acirrado, obrigando os jornalistas a migrar para áreas como Relações Públicas, Publicidade e Propaganda, e até

Gisele com dois de seus alunos, Gabriela Sigeco e Fabio Ramos. Revista Código | Cruzeiro do Sul


Ana Lúcia Gonçalves

Carlos César em mais um dia de trabalho. Atualmente é jornalista, conteudista, redatora freelancer e professora de idiomas. Gisele explica que o motivo de sua mudança é que a área do ensino de idiomas é bastante flexível, onde ela é capaz de “combinar as coisas”. Diferente de Gisele, Carlos está formado há 30 anos. Sempre gostou de escrever. A paixão pela fotografia já estava presente em sua vida: “sempre fui um ótimo aluno em Língua Portuguesa e Literatura. Embora jamais tenha publicado, escrevi quase uma centena de poemas e poesias. Além do mais, naquela época a profissão era valorizada e possuía um certo glamour. Meu sonho era concluir o curso e trabalhar como repórter fotográfico para grandes revistas da época, como ‘Geográfica Universal’, ‘Manchete’ e ‘Veja’”, diz. Novembro de 2019

Carlos já atuou durante 4 anos na Folha Universal, se intitulando praticamente como um dos “fundadores deste jornal”. Nos 18 anos seguintes trabalhou na área da Assessoria de Imprensa, na qual coordenou um grupo simultâneo para todos os políticos da Igreja Universal no Estado de São Paulo, e também ajudou a fundar o Partido Municipalista Renovador (PMR), transformado depois em Partido Republicano Brasileiro (PRB) e, atualmente, Republicanos. “Fui membro da executiva nacional do partido”, explica. Atualmente é microempreendedor individual, no setor de brindes promocionais. Carlos fala que dentre alguns fatores, a desvalorização da profissão do jornalismo o levou a mudar de profissão. “No decorrer dos anos, a não obrigatoriedade do diploma

para exercer cargos específicos do jornalismo nos colocou em desvantagem e em uma concorrência desleal com pessoas que nunca cursaram uma faculdade e acabam adquirindo o direito de exercer a profissão por meios ‘escusos’”, dispara. Mesmo que para Carlos a Assessoria de Imprensa seja uma ramificação do jornalismo, ele acredita que o foco é diferente da reportagem. “Atuando em meus últimos 18 anos com assessoria, já não estava muito habituado com as notícias. Minha função era de vender uma imagem positiva do meu produto (políticos, organizações, empresas etc)”, explica. Para o futuro, Carlos planeja cursar turismo e investir nesta área. Ao contrário de Carlos, Gisele pretende continuar na área. “Com a agilidade das mudanças, impulsionadas principalmente pela tecnologia, estamos sempre desatualizados em alguma ponta, por isso, sempre procuro me manter informada, atuando e estudando também”. Evidentemente um jornalista é perito em se comunicar e manejar como ninguém as palavras. Com seu faro investigativo, consegue apurar a veracidade dos fatos. Com tais habilidades, o profissional tem aproveitado as novas oportunidades para desenvolver novas práticas e técnicas de trabalho, destacando-se em novos mercados. 87


Profissões do Jornalismo

Jornalistas que formam jornalistas Por Eduardo Ariedo, Ingrid Gusmão, Nicollas Barbosa e Maite Brandão.

Maitê Brandão

Da redação para as universidades: professores e alunos dialogam sobre suas experiências dentro e fora da sala de aula no ensino do jornalismo

H

á diversas razões que fazem um jornalista trocar o ambiente movimentado das redações pelo complexo mundo das salas de aula. Sonhos, uma forma de continuar os estudos, ou até mesmo a desilusão com as práticas cotidianas da profissão. Todas essas situações parecem chegar ao mesmo ponto: a paixão, o desejo e a arte de lecionar. Atualmente, a área de jornalismo no Brasil vive uma grande crise. Segundo dados do INEP, no período entre 2009 e 2015, mais de 326 mil pessoas se matricularam no curso de jornalismo. Desse número, 53 mil concluíram a graduação. Já os números apresentados pela Relação Anual de Informações Sociais, indicam que, no ano de 2013, houve um aumento de vínculos trabalhistas formais, com aproximadamente 88

Antonio Assiz, professor e coodernador do curso de jornalismo, junto aos alunos de jornalimo da Universidade Cruzeiro do Sul. 67 mil postos. Todavia, quatro anos depois, em 2017, esse número caiu em 15%, representando 57 mil contratados formais na área. Esses dados, junto com a não obrigatoriedade de um diploma para atuar na profissão, geram uma discussão sobre a necessidade ou não de uma experiência anterior para o profissional do jornalismo.

Para Antonio Assiz, professor de jornalismo na Universidade Cruzeiro do Sul, houve um momento na carreira do jornalista em que ele sentiu que alcançou um acúmulo de experiência, e veio o desejo de passá-la adiante, junto com o desejo de buscar mais conhecimento. “Quando eu tinha uns dez anos de profissão, fiz pós-graduação, e foi lá onde Revista Código | Cruzeiro do Sul


de se tornar docente lhe torna capaz de passar um olhar diferenciado aos alunos. “Mas há casos de pessoas que dedicam a vida inteira à academia, emendando pós-graduação, mestrado e doutorado em sequência e que são excelentes professores também. Só que se a formação de novos jornalistas fosse feita apenas com esse tipo de instrutor, não seria bom para o mercado. Assim como também não seria bom se existissem apenas docentes com experiência de mercado”, diz. Ele ressalta que, acima de tudo, é preciso existir uma mescla desses dois perfis dentro das instituições de ensino.

Arquivo pessoal

fui provocado a trazer o meu saber de mercado para dentro de uma universidade”, explica sobre suas motivações. “Primeiro, eu tinha vontade de falar sobre minha vivência de mercado para os alunos, mas nesse processo eu comecei a aprender também com eles. Essa troca de experiências é algo bacana que existe no meio”, conclui. Quando questionado sobre a necessidade de trabalhar previamente na profissão antes de ingressar no mundo acadêmico, o coordenador Antônio Assiz pensa num meio termo para a situação. Para ele, tomar um tempo para trabalhar como jornalista antes

Estela Almeida, estudante de jornalismo formada pela Universidade Federal de Tocantins em comemoração à sua colação de grau. Novembro de 2019

Antonio Assiz cita, ainda, que as gerações de jornalistas formados antes da dele, como a dos anos oitenta, reclamava da falta de professores com experiência acadêmica, visto que naquela época não existia a tradição das faculdades formarem professores, o que culminava na falta de didática dos docentes da época dentro de sala de aula, já que todos eram profissionais atuando no meio. Por fim, ele ressalta que o ambiente da universidade gera uma troca de experiências, então é importante que os gestores do curso consigam encontrar docentes que completem todas essas lacunas existentes entre o conhecimento de mercado e o acadêmico. Entre os alunos, a discussão sobre experiência de mercado para os dois perfis atinge os dois extremos da balança. Para alguns, como Beatriz Barbosa, aluna da Universidade Nove de Julho, o docente ter um sido um profissional atuante é um diferencial na hora de passar o conteúdo para os alunos. “Saber como é o dia a dia dentro das redações é importante para nós, principalmente na questão da dinâmica de aula. Acho que por entenderem como as coisas funcionam fora do ambiente universitário, eles conseguem dar uma visão melhor sobre o conteúdo passado. Claro, não podemos desmerecer aqueles que não tem essa experiência, mas de modo geral, o conhecimento 89


Arquivo pessoal

Beatriz Barbosa, aluna de jornalismo da UNINOVE, realizando uma gravação para o ‘De Virada’, seu canal de esportes no Youtube. empírico não pode ser negado ao estudante”, afirma, reforçando que as experiências anteriores de seus professores no mercado a ajudaram a ficar mais perto da realidade de como é o dia a dia dentro de uma redação. Já para Estela Almeida, formada pela Universidade Federal do Tocantins, é possível encaixar os dois perfis de professores. Em algumas situações, uma experiência prévia para um professor é algo de extrema importância, mas em outros momentos, o fato dele ter trabalhado ou não como jornalista não é relevante. “Nas disciplinas práticas, como as que envolvem filmagem ou técnicas de entrevista, é preciso que o professor tenha um conhecimento prático disso, 90

pois precisa ter passado por todo esse processo para conseguir explicar ao aluno como se portar em várias situações”, afirma a tocantinense. “Mas também há muitas matérias teóricas na grade de ensino de um curso de jornalismo, então quando há essa situação, o docente não precisa ter passado por uma redação para ajudar o aluno. É necessário uma boa didática para não confundir quem está tentando aprender”, conclui. Publicada em setembro de 1950 no jornal laboratório A Imprensa, da Escola de Jornalismo Cásper Líbero, uma fala do jornalista Fernando Góes, então secretário do Jornal de Notícias, em São Paulo, revela uma inquietação do redator em relação a

aspectos da orientação pedagógica do primeiro curso superior de jornalismo do Brasil. Ele fazia referência ao anúncio de uma aula cujo conteúdo lhe causou estranhamento por versar sobre um tema de cultura geral que, como sugere professor, seria pouco representativo para a formação do jornalista. Supõe-se a partir desta crítica que, para Góes, as lições da aula, vistas como excessivamente abstratas e distantes da realidade das redações, pouco serviriam como preparação do estudante para a vida profissional. Na sequência, o depoimento também revela preocupações relacionadas ao perfil dos professores do curso. Na visão dele, o jornalismo deveria ser ensinado por profissionais com trajetória de destaque no mercado, detentores de “conhecimento legítimo das coisas de jornal”. A partir desses comentários, é possível compreender que o autor lutava por um modelo de formação superior em jornalismo que se aproximasse mais dos saberes do mundo do trabalho. Baseado nas referências e nas fontes, os alunos possuem aprendizado misto, com docentes que ensinam a teoria e outros que mostram como o jornalismo funciona no mundo real, e é a união desses ensinamentos que traz a completude necessária à formação dos futuros profissionais da área. Revista Código | Cruzeiro do Sul



Pablo Fernandes/iStock.com

“Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos tambĂŠm o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados.â€?

Vladimir Herzog


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