Revista Redescrições, Ano 2, Número 4, 2010

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano I, número 4, 2010 ISSN: 1980-881X


Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1980-881X Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA) Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva - UFPI Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira - Unisuam Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editor convidado: Ronie Alexsandro Teles da Silveira Editores: Pauko Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Foto da capa: Murilo Ferraz Franco

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano II, Número 4, 2010

SUMÁRIO Editorial Ronie Alexsandro Teles da Silveira

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Experiência e Formação Humana: Um Diálogo sobre Pragmatismo e Educação Rafael Bianchi Silva Leoni Maria Padilha Henning

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A Apropriação do Pragmatismo deweyano por Rorty: uma análise crítico-avaliativa. Edna Maria Magalhães do Nascimento

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Filosofia e Fantasia Privada: Derrida por Richard Rorty versus Derrida por ele mesmo Lucas Nogueira do Rego Villa Lages

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Umberto Eco: da “Obra Aberta” para “Os Limites da Interpretação” Marcos Carvalho Lopes

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A Relação entre Arte e Quadrinhos a partir da perspectiva Estética, Ética e Filosófica de Shusterman Fabio Luiz Carneiro Mourilhe Silva

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A deficiência e o contrato social Martha Nussbaum

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Resenha: “O Mal no Pensamento Moderno – uma história alternativa da filosofia” Susana de Castro

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Editorial O número 4 da Revista Redescrições está sendo disponibilizada com 5 artigos, 1 tradução e 1 resenha. São textos que refletem bem as tendências dos estudos pragmatistas no Brasil. Uma parte deles se insere em uma perspectiva teórica marcada pela análise conceitual e pela busca em esclarecer aspectos da filosofia pragmatista. Outra parte, que poderíamos chamar de “perspectiva prática”, tenta compreender características da cultura contemporânea a partir de uma base conceitual pragmatista. O que se torna perceptível nesse número, pelo menos para um editor convidado, é o fato de haver uma excepcional combinação desses dois pontos de vista. A historiografia, embora tenha inegáveis virtudes em termos de manutenção e enriquecimento conceitual da filosofia, não pode ser entendida como a expressão completa da atividade filosófica. Se os conceitos não são utilizados para compreendermos de maneira diferente o mundo em que vivemos, então sua vitalidade se restringe às paredes de um museu. Há um inegável papel reservado aos estudos historiográficos em filosofia, mas entender que o trabalho filosófico se reduz a ele é tomar a parte pelo todo. O desejo filosófico deve também incluir a necessidade de entendermos melhor o que se passa a nossa volta. Se não podemos fazer isso sem as categorias do passado, também não podemos restringir o trabalho apenas à análise histórica. Enfim, me parece que a comunidade pragmatista brasileira demonstra nesse número 4 da Revista Redescrições estar dotada dessa dupla perspectiva: por um lado se aprofunda o trabalho de compreensão do arcabouço conceitual já produzido e, por outro, esse material é utilizado para entendermos melhor o mundo em que vivemos. Com isso, me parece que evitamos o risco de nos tornarmos os guardas dos tesouros da filosofia. Ronie Alexsandro Teles da Silveira Editor convidado

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Experiência e Formação Humana: Um Diálogo sobre Pragmatismo e Educação

Rafael Bianchi Silva1 Leoni Maria Padilha Henning2 Resumo: Este artigo busca refletir a educação escolar a partir do conceito de experiência. Inicia discutindo a concepção de transmissão de conhecimento que toma o indivíduo como agente passivo do processo de aprendizagem realizada no contexto escolar. Ao conceber o sujeito como ser-no-mundo, passamos ao foco da experiência vivida pelo sujeito em sua existência. A análise da experiência humana nos oferece possibilidade de refletir quais tipos de experiência propiciam a ampliação de si mesmo, potencializando novas leituras do mundo, o que entendemos por caráter estético da experiência. Se por um lado, encontramos a construção da autonomia humana quanto ao sentido das interações realizadas, de outro, encontramos na atualidade a perversão dessa ideia no vínculo narcísico estabelecido pelo sujeito com o mundo (e com o outro). Pretendemos com este artigo pensar a formação humana como um contínuo em constante reformulação, sem perder de vista, o posicionamento ético deste sujeito em tal dinâmica. Palavras-Chave: Educação Escolar; Experiência; Formação Humana Abstract: This article intends to reflect on school education from the concept of experience. It begins by discussing the conception of the transmission of knowledge that points out the individual as a passive agent of learning process that happens in school context. Conceiving the subject as being-in-the-world, we follow to emphasizes the living experience by the subject in his existence. The analysis of human experience provides the possibilities to reflect on which types of experiences could provide the enlargement of himself, making the new interpretations of the world be increased , which experiences we understand as the aesthetic character of experience. If from one side we encounter the building up of the subject autonomy in relation to the senses of interactions he makes, from the other side, we encounter in present time the perversion of this idea because the narcisic tie established by subject with the world (and with the other). We pretend with this article to think about the human education as a continuum, as a process in constant reformulation, without loosing the ethical position of this subject in this dynamic. Keywords: Schooling; Experience; Human Education

1. O Problema O processo formativo humano na modernidade se confunde com a instituição escolar. Por sua vez, a escola tem por base a transmissão sistemática de uma série de conhecimentos considerados fundamentais para a construção do homem nesse determinado tempo histórico. O estatuto desse conjunto de conhecimentos naturalmente, se fundamenta na verdade estabelecida pela ciência, constituindo-se no crivo da verdade defendida pela instituição escolar. Encontramos, portanto, de um lado, a necessidade de levar os indivíduos a conhecer 1

Psicólogo, doutorando em Educação pela Unesp/Marília. Professor da Faculdade Pitágoras e da Faculdade Uninorte. Email: tibx211@yahoo.com.br 2 Doutora em Educação (Unesp); Docente do Departamento de Educação/UEL; Docente do Programa de Mestrado em Educação (UEL). Email: leoni.henning@yahoo.com 5


as descobertas humanas e, por outro, desenvolver métodos que garantam uma atitude de enfrentamento anti-dogmático da verdade, propiciando, contudo possibilidades de novas construções teóricas e práticas sociais. Ao longo da história das ideias educativas discutidas durante principalmente o último século, observa-se uma preocupação de cada vez mais inserir o aluno como sujeito conhecedor do mundo e não apenas, uma folha em branco passível de ser escrita por um agente exterior. Percebe-se assim que o papel do educador também passa por mudanças. Ele passa de um agente central do processo educativo para outro que visa organizar o mundo de forma a propiciar ao aluno a construção do conhecimento. Dessa forma, encontramos além da mudança de posição do professor, uma nova visão sobre o processo de conhecimento e o valor deste para o aluno. E qual a principal diferença que encontramos? O professor sendo articulador central sobre a relação ensino-aprendizagem, é onipotente, ou seja, detém o controle absoluto sobre o que acontece dentro da sala de aula. Encontramos fortemente, ainda hoje, um discurso que busca colocar o professor nessa antiga posição. Ele deve assumir seu lugar de saber e oferecer ao aluno uma sequência – cadeia – lógica de informações que deve ser apreendida e, logo, submetida à verificação durante o processo avaliativo (comumente quantitativo e normativo). No entanto, encontramos uma passagem a uma outra situação de entendimento que nos permite compreender que cada um de nós tem como marca central do processo formativo o fato de estar-no-mundo. O que isso significa? Primeiro que o homem não é atemporal, ou seja, tem seu processo formativo gravado dentro das possibilidades da relação tempo-espaço; segundo, as ações humanas possuem a dupla função de conhecer a rede de relações existentes entre as coisas do mundo, por um lado, o que termina modificando o próprio contexto em que o seu agente se encontra, por outro lado, é através delas que a construção da história acontece. Estar-no-mundo é reconhecer-se como um ser de passagem, que possui finitude. É entender que tudo aquilo que construímos em vida leva à consequências que serão sentidas por outros que por aqui passarão. Por essa razão, somos ativos. Não apenas porque agimos, mas porque temos responsabilidade pelas nossas ações. Porém, muitas vezes, acabamos interagindo com o mundo de forma apartada dessa reflexão que não possibilitamos a ampliação da própria capacidade desse entendimento, proporcionando a nós mesmos oportunidades para o saber ou o conhecer de uma forma mais rigorosa. Isso acontece, infelizmente, de forma bastante comum, na escola. Encontramos alunos e professores consumidos por ações repetitivas que não levam a uma verdadeira 6


sensação de existência. Entramos em uma sala de aula e vemos os professores realizando verdadeiras “profissões de fé”, como profetas que buscam convencer a multidão com verdades – que, de fato, parecem sumir com o vento. Mas por que isso ocorre? A nossa análise toma como ponto de partida o problema da incomunicabilidade dos saberes, ou seja, da impossibilidade da transmissão do vivido. Isso acontece devido ao fato de que a linguagem não oferece condições de preencher a totalidade de significados possíveis à experiência vivida por aquele que busca transmitir um saber. Assim, chegamos a um ponto paradoxal: um saber é sempre individual e, ainda que possamos democratizá-lo – via educação escolar, por exemplo -, o ouvinte não tem condições de apreender a multiplicidade de elementos que o contador possui em relação à própria experiência. Em outras palavras, encontramos um território no qual a expressão das verdades encontra barreiras de atuação. Um exemplo pode materializar de forma clara o problema que se mostra. Seria possível transmitir a ideia de um afeto como, por exemplo, a raiva? Ainda que exista uma tentativa por parte do falante em descrever, nos mínimos detalhes, as sensações relativas ao afeto, a única forma que o ouvinte tem de compreendê-lo é através do reviver das próprias experiências anteriores que ele correlaciona com tal sentimento. Por isso, não podemos dizer que o problema central seja nem de comunicação, nem de percepção. Como afirma Lacan (2003), o olho não foi construído para ver (o que pode ser comprovado pela impossibilidade de se ver tudo). E ainda que consiga ver, não significa necessariamente que consegue relacionar com aquilo que já é sabido, compreendido. Isso coloca um desafio constante para cada vivente: as experiências trazem sempre novas formas de percepções e, portanto, são sempre únicas. Vejamos essa questão em sala de aula. O professor como centro do processo formativo fala de algo que a ele faz sentido; trata de experiências por ele vivenciadas; discute conceitos que estuda ou mesmo reconhece em sua vida. Qual a possibilidade do aluno realmente adentrar nesse campo do Outro3? Ou abrir mão de suas próprias vivências; ou, seguir a tênue linha de raciocínio adotada pelo educador. As duas possibilidades tangenciam com o impossível: não há como estar no lugar que esse outro ocupa. Isso significaria acabar com a posição de sujeito, o que vemos como plano patente nos planejamentos de ensino dos professores, na escola regular. É muito comum o educador preparar suas atividades independentemente dos saberes dos alunos. Esse tipo de atitude não está relacionado, necessariamente, com a formação ética 3

“Outro” é o lugar ocupado pelos diversos “outros” na vida de um indivíduo. Não podemos identificar o Outro como uma pessoa, mas sim, como um lugar que toma a função de referência para o sujeito em seu processo formativo. 7


do educador, mas frequentemente, com uma maneira de pensar – “funcionar” – da própria instituição escolar. A ênfase se encontra ou no prévio – “planejamento” – ou no posterior – “objetivos” – da ação docente. O ponto discutido acima indica que será necessário reverter tal situação. 2. A Relação Sujeito-Mundo A questão perceptiva nos mostra a necessidade de ultrapassagem da naturalização dos fenômenos para entrarmos, de fato, no processo de humanização. Em outras palavras, devemos - enquanto professores - proporcionar a quebra da fixidez dos sentidos, o que nos leva à conclusão de que eles somente podem ser encontrados a partir de uma situação em que os seres humanos se encontrem na “presença” de valores construídos no campo social no qual se encontram. [...] é irrelevante a distinção entre o que é natural e o que é construído, uma vez que todas as condutas estão fundamentadas em um ser biológico mas, ao mesmo tempo, não se definem exclusivamente pelas estruturas anatômicas e fisiológicas que habitam. [...] sentimentos agrupados pelo mesmo nome são vivenciados de maneira distinta e até mesmo contrastante por pessoas de culturas diferentes. Nesse sentido, um oriental e um ocidental não experimentam a mesma emoção na mímica da cólera ou do amor. Na cólera, por exemplo, o japonês sorri, enquanto que o ocidental enrubesce e eleva o tom de voz (FURLAN; BOCCHI, 2003, p. 448, grifo nosso).

Vemos, portanto, que o ser humano não pode ser minimizado em relação à sua estrutura corporal; para compreender o caminho formativo único de cada indivíduo, é necessário adentrar na estrutura social na qual cada um desenvolve as condições biológicas e genéticas de sua existência. Nesse sentido, o que afirmamos é que ao longo da constituição subjetiva há exatamente um duplo movimento de aproximação e afastamento do vivente em relação ao mundo, sendo que nesse segundo processo, quando considerado em si mesmo, encontramos a objetivação e cristalização da realidade. Para compreendermos as relações é necessário realizar um corte no real, permitindo assim, a intervenção humana. Com a realidade paralisada, conseguimos descrevê-la, explicá-la, prevê-la. Transformamos o movimento em objeto de estudo, mas para tanto, têm-se como efeito colateral a perda de sua característica principal: a mudança. Quais as consequências desse processo? Não encontramos a reconfiguração dos elementos - sujeito e mundo - durante os processos de interação, mas sim, a tentativa primeira de rearranjo das partes isoladas como

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forma de adaptação. Em resumo: o ser humano parece preferir a estagnação ao invés de atuar sobre as estranhezas que surgem à sua frente. Como resultados derivados de posições unilaterais, encontramos, por exemplo, as pesquisas de Freud (1950) que apontaram para o fato de que a construção da estrutura neurótica está intimamente relacionada com a readequação interna, não implicando, porém, em ações externas para a resolução de determinado conflito, levando finalmente, ao sofrimento psíquico. Existem, por outro lado, a ênfase - principalmente, nas teorias sóciohistóricas - nas mudanças externas (que terminam por causar a formação da cultura humana) em detrimento daquelas alterações que acontecem internamente. Assim, chegamos ao extremo oposto do que é observado por Freud. De um lado a ênfase na ação cultural; de outro, a necessidade de reestruturação interna que antecipa a ação. Dois lados que parecem não se encontrar. Como forma de buscar quebrar tal dicotomia, encontramos pistas para a resolução da relação sujeito-mundo na concepção de Piaget (1988). Ele aponta que existe uma interdependência entre as mudanças internas e externas, onde sujeito e objeto são construídos pela inter-ação. Contudo, podemos ver nas escolas, o quanto é comum se tomar as concepções de Piaget a partir de perspectivas radicais, o que nos mostra a dificuldade do homem perceber a dualidade da relação entre os fenômenos. Assim, ou se toma a leitura de Piaget pelo ponto de vista da centralidade absoluta da criança - desprezando o papel do educador - ou pelo viés que entende o sistema piagetiano como método didático, recaindo em uma espécie de empirismo renovado (CUNHA, 1998). E neste ponto, essa sugestão sustenta nossa hipótese de objetivação, implicando na perda da mobilidade de mundo. É neste contexto de discussão, que Piaget (1988, p.17, grifo do autor) insere o conceito de experiência como forma de problematizar a obtenção do método científico (tomado como o método de investigação): [...] Não são com efeito as experiências que o professor venha a fazer perante eles [os alunos], ou as que fizerem eles mesmo com suas próprias mãos, seguindo porém um esquema preestabelecido e que lhes é simplesmente ditado, que olhes haverão de ensinar as regras gerais de toda experiência [...]. Uma experiência que não seja realizada pela própria pessoa, com plena liberdade de iniciativa, deixa de ser, por definição, uma experiência, transformando-se em simples adestramento, destituído de valor formador por falta de compreensão suficiente dos pormenores das etapas sucessivas. Em resumo, o princípio fundamental [...] pode ser expresso: compreender é inventar, ou reconstruir através da reinvenção [...].

Experienciar, portanto, deve implicar em uma ampliação daquilo que era anteriormente existente, percebido e compreendido pelo vivente. Esse ponto deve estar

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relacionado com uma ressignificação do lugar que o Outro ocupa subjetivamente para o indivíduo. A partir disso será possível verificar como o retorno ao corpo se torna, na verdade, ao mesmo tempo, tanto o reconhecimento de si como sujeito, quanto a apreensão do mundo como inconstante e a verificação do Outro como incompleto. E, a partir disso, permite a tomada da vivência com o Outro como forma de apreensão de novos saberes sobre si e sobre o mundo. 3. Arte e Experiência Iniciemos pela experiência, indicando que ela não leva o sujeito necessariamente ao repensar sobre o lugar que ele ocupa no mundo. É exatamente essa questão debatida por Adorno/Horkheimer (1985) ao discutir a relação sujeito-objeto. Considerando como falsa a premissa de independência de ambos, essa noção aponta que a ideia de separação dos elementos de uma experiência apresenta o estatuto ideológico. As partes são conhecidas para não se saber sobre a relação destas com um todo. Tal noção deriva de um processo racional que termina por criar uma confusão entre racionalidade e sujeito (LACAN, 2003), isto é, uma falsa identificação entre os mesmos. A imagem de que o sujeito é apenas racionalidade, de um lado, e a utilização desta premissa para determinar a experiência, de outro, são duas indicações que mostram um conjunto, ainda que apresentadas de forma separada. Em outras palavras, a racionalidade tomada como ponto de partida para a delimitação do sujeito terminou por culminar no estado de fragmentação do mesmo, o que é chamado de barbárie. Essa consciência mutilada tem como consequência direta o reflexo no corpo como extirpação da própria liberdade (ADORNO, 2000). A “crise” seria justamente a perda da “experiência” pela autonomização da razão, realizada objetivamente na ciência e na cultura, mas fora do vínculo à realidade. Uma objetivação apenas formal da razão, que se interpõe entre o sujeito e a realidade, impedindo o processo formativo derivado da ‘força negativa’ da racionalidade, impossibilitada de confrontar realidade e verdade, de relacionar dialeticamente os mundos ‘subjetivo’ e ‘objetivo’ (MAAR, 1995, p. 66, grifo nosso).

Falamos aqui do estabelecimento de uma dominação simbólica e intencional que, conforme temos debatido ao longo deste trabalho, tem na escola uma de suas maiores aliadas. Os ensinamentos não têm o caráter de levar à reflexão, mas sim ao amortecimento do próprio pensar. Nesse sentido, acreditamos naquilo que afirma Foucault (2000) ao pontuar que o exercício de poder não ocorre apenas pela proibição da ação, como também, pela 10


direção dada na permissão da mesma. Assim sendo, a escola pode sim utilizar da própria noção de experiência como forma de enquadramento subjetivo. Ele observou dois pontos contraditórios na escolarização. Ao mesmo tempo em que existe a diferença entre aqueles que têm ou não acesso à escola, encontramos a diferença entre os tipos de educação que são oferecidos aos diferentes alunos. Como bem aponta Teixeira (1971), a concretização da ideia de uma escola para todos levou no Brasil à demarcação exata às diferenças sociais e culturais, ao invés de integrá-las visando o desenvolvimento da sociedade. Seria o exercício da “língua culta” uma estratégia de inclusão ou ao invés disso a eliminação daquele que possui dificuldades para nela adentrar? É o que pergunta Freire (1987). A segunda opção parece ser mais verdadeira. Ainda permanecemos distantes da compreensão das diferenças existentes em nosso próprio campo social, o que nos leva a refletir se conseguimos, enquanto professores, realmente “tocar o aluno” a partir de sua própria experiência. Sob outro ponto de vista, Dewey realiza uma crítica sobre o processo realizado pela ciência na decodificação e transmissão do conhecimento para a criança em idade escolar. Segundo o autor, o processo indicado termina por perverter a lógica da produção de uma experiência verdadeira. [...] Os fatos são arrancados de seu lugar original na experiência e reajustados com referência a algum princípio geral. A classificação não é um assunto da experiência individual [...] A mente do adulto está tão familiarizada com a ideia dos fatos serem ordenados logicamente que não compreende – ou não pode compreender – o trabalho de separação e reforma que os fatos da experiência direta têm que sofrer para que possam apresentar-se como uma ‘assinatura’ ou matéria de estudo [...] Hão de ser reagrupados em torno de um novo centro que é completamente abstrato e ideal. Tudo isso supõe o desenvolvimento de um intelecto especial. Supõe a capacidade para considerar os fatores imparciais e objetivamente; isto é, sem referência a seu lugar e sentido na própria experiência do um [...] As matérias de estudo classificadas são, em uma palavra, o produto da ciência dos signos, não da experiência da criança. (DEWEY, 1959, p. 26, grifo nosso).

Porém, não sejamos pessimistas. É bem verdade que colocamos até agora pontos que parecem ir contra o sentido do sucesso da educação escolar. Consideramos até o momento que as palavras não apenas dão conta da experiência como também o seu uso fixo de sentidos pode favorecer a interrupção da compreensão e do desenvolvimento humano. A saída que encontramos é outra. Se a linguagem não oferece condições de totalidade da experiência, o que está fora desse campo? É o que veremos a seguir na busca de verificar

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possíveis saídas para compreendermos as possibilidades formativas do conceito de experiência. Como base, entendemos que na relação professor-aluno é necessário o estabelecimento de uma dialética, fundamental para a formação do sentido da experiência. Dentro dessa perspectiva, tomamos os indivíduos em relação contínua entre si e com os demais fenômenos que geram efeitos dentro do contexto escolar. Como aponta Gadotti (1995, p.101), “[...] a dialética concebe as coisas e os fenômenos não de maneira estática, mas no seu movimento contínuo, na luta de seus contrários”. Porém, essa luta não implica necessariamente na eliminação dos opostos. Esse é um traço diferencial do que acontece no processo formativo humano. Carregamos as contradições de nossa história na ponta dos pés. E o mais interessante é que podemos contá-las em palavras. Assim, neste processo, a negação não se encontra como forma de destruição da premissa anterior, mas sim, como integração de novos elementos na síntese a ser realizada. Explicando de outra forma, a contradição gera a formação de uma unidade mais ampla onde as duas premissas sejam incluídas (NICOLESCU, 1999). É essa ideia que nos permite pensarmos em uma ampliação da experiência enquanto síntese que fornece sentido a um sujeito. Se a racionalidade nos leva, pelo menos a princípio, ao desenvolvimento de novos dispositivos de controle, devemos então, buscar o “buraco”, “o furo”. Nesse momento, Pucci (1995, p.45, grifo nosso) nos oferece um caminho: “[...] A arte genuína, esta sim, contém um momento utópico que aponta para uma futura transformação política e social, onde a estética assume um caráter político, no sentido mais profundo do termo”. Com isso, tomamos o caminho de que o olhar para uma obra de arte demonstra a ruptura da continuidade linear presente na vivência padronizada do indivíduo moderno. Ela abre a fenda. Freire (1996) apontava para a necessidade de introduzir o campo estético na educação porque através dele poderíamos abrir novos mundos possíveis. O que interessa dentro dos limites dessa discussão, é que os atos de ler e escrever são re-criativos, ou seja, por si, tem todas as possibilidades de ser estético. Somos afetados por um pequeno poema a ponto dele nos levar às lágrimas. A surpresa causada por determinadas obras de arte impõem, pelo que causam ou movimentam internamente no sujeito, um impacto no corpo. Isso nos mostra a insustentável condição de permanência que deriva na impossível ruptura do sujeito com o mundo à sua volta. Tudo aquilo que é incerto se mostra como potência à ação de construção de novas formas de entendimento e de ser. 12


A mobilidade incessante do universo não vai, entretanto, ferir de incerteza permanente a marcha das coisas. Vai dar-lhe, isto sim, um ritmo diverso de certeza. As antigas leis científicas não terão, talvez, a rijeza que lhe atribuímos, mas nem por isso deixam de constituir uniformidades apreciáveis da natureza, que, dentro de certos limites, nos asseguram o poder de controlá-la. Se, de um lado faltam ao homem moderno aquelas velhas certezas de quatro pés, sólidas e inflexíveis, em que se apóiam a nossa ignorância e os nossos preconceitos, por outro lado, abriram-lhe novas possibilidades e caminhos novos para o exercício da ação criadora, por isso mesmo que vive em um mundo onde as mudanças e, com elas, os atos de criação são permanentes e contínuos (TEIXEIRA, 2000, p. 95).

A beleza da arte não se confunde com a beleza do olhar. A arte se caracteriza pela influência direta no sujeito, como um susto, que o faz mover-se como que imperativamente em busca de solução para os novos mistérios e questões que agora se defrontou. Nesse contexto, a experiência estética pode ser entendida como sendo o momento em que A forma ordinária de relacionamento que o homem experimenta na vida cotidiana, marcadamente baseada na classificação e distinções de objetos isolados, é posta de lado em benefício de um êxtase provisório. Nesse êxtase se realiza um acordo entre sensibilidade e intelecção, fazendo com que o homem se sinta “no mundo”. [...] Desta forma, o objeto estético apresenta uma dimensão inefável do mundo, uma dimensão mais efetivamente conectada ao que de fato vivemos enquanto seres enraizados num corpo. O mundo que a experiência estética coloca diante do homem é um mundo diferente daquele que nos fala nossa intelecção, orientada a uma compreensão lógica e racional do que apreende. No entanto, se o mundo surge distinto, não é porque se transfigura em algo novo, mas porque o homem para quem esse mundo surge, dirige-lhe uma nova forma de intencionalidade na qual sentimento e pensamento igualam-se em importância, articulando-se e completando-se (CHINELATTO, 2007, p. 1314).

A partir dessa explicação, consideramos importante discutir as possíveis posições adotadas pelo autor no processo de criação de sua obra. A primeira possibilidade é que o autor não possui uma intencionalidade da criação, mas sim, pela criação, ele se objetiva, se mostra. A segunda é o oposto: o autor cria uma obra como forma intencional de criar uma reação no espectador, nos oferecendo a ideia da arte como projeto. Ao falarmos de “intenção”, apontamos para o traço consciente de determinação das ações. Lacan (1985) explica que o fundamento ético da experiência estética se encontra no fato de que o autor se assusta com sua obra ou, muitas vezes, não detém o significado e a amplitude da mesma. Isso levaria à noção exata de que a construção do objeto – a obra de arte – está intimamente relacionada com o indizível, ou seja, com aquilo que escapa à linguagem, o sujeito. Porém, como aponta Bonfand (1996, p. 11), o trabalho com o vazio, por exemplo, na arte abstrata, é o projeto a ser realizado pelo artista que,

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[...] busca a abstração pura como única possibilidade de descanso interior da confusão e da obscuridade da imagem do mundo, e cria a abstração geométrica a partir de si mesmo, de modo puramente instintivo. Ela é a realização da expressão e a única expressão concebível para o homem da emancipação em relação à arbitrariedade e à temporalidade da imagem do mundo.

A imagem de uma cena descrita pelo autor em seu livro, é uma criação que se constitui como um mistério que conecta autor-mundo-observador em torno de uma mesma experiência. Cada qual com seu ponto de vista, criando internamente a mesma cena com diversos tons e perspectivas4. Tomando a abstração como ponto de suporte, encontramos não o trabalho de ressignificação simbólica (como é visto, por exemplo, a partir de um desdobramento das ideias de Vygotsky), mas o próprio estado de criação do símbolo. Tal experiência nos oferece a abertura à janela do mundo do artista, que permite a quem o vê, passar por um enriquecimento de si-mesmo a partir da interação do sentido da obra com as estruturas do sentido do receptor. Como consequência direta, promove-se a ligação da experiência com o mundo interno, oferecendo condições para o colapso dos estereótipos de sentido pessoais, potencializando uma ampliação da percepção. Se pensarmos na realidade escolar, de forma direta, cada “provocação” realizada pelo professor pode ter, por consequência, a flexibilização das relações do aluno com o mundo, tornando as vivências deste, mais significativas e orientadas para o futuro (SILVA, 2007). Quando isso acontece, então, geramos enquanto educadores um questionamento ético, ou seja, colocamos ao aluno em contato com as razões de sua ação e mapeamento de possíveis consequências da mesma. É essa a razão que faz Dewey (1985a) afirmar que toda a experiência completa possui a qualidade de ser estética. Encontramos com isso, um outro aspecto do que é a experiência. Ela é a própria condição do conhecer que possibilita a construção do sentido. Essa era a dificuldade que apontávamos como problema da comunicação encontrado na educação escolar. Dessa forma, compreendemos que existe uma simplificação da experiência dentro do processo educativo: ao invés de proporcionar a experiência, buscamos transmiti-la. Quais são os impactos disso? O primeiro grande impacto já foi indicado anteriormente. É o desaparecimento do sujeito aluno. Na fala do professor, o aluno se perde do seu papel de construtor. Ele segue à risca uma experiência que não é a sua. 4

Para aproximar-se dessa experiência, ver a materialização dessa ideia nos filmes “Herói” de Zhang Yimou e “Rashomon” de Akira Kurosawa.

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Muitos poderiam dizer que a imitação é uma das formas básicas de aprendizagem. Isso é verdade. Porém, trata-se de um momento no desenvolvimento do ser humano. Após isso, ela ganha o Outro, ganha a dimensão de referência que pode ou não ser seguida. Quando pontuamos o assujeitamento do aluno, indicamos que ele segue o professor porque não se vê como agente e detentor de saberes. Quem sabe é o mestre e este deve ser seguido. O mesmo pode ser dito, como sugerido anteriormente, da relação do método científico, tomado como único caminho verdadeiro para o conhecimento, e o experimentador fiel ao referido método. 4. Da Experiência Como apontado, existem variações na forma de se compreender o experienciar, que abrem possibilidades para equívocos. Encontramos alguns esclarecimentos para estas situações a partir da distinção proposta por Dewey referente aos tipos de experiência. O primeiro tipo diz respeito àquelas que nós temos, porém não chegamos a conhecer o objeto da experiência, ou seja, simplesmente acontecem, sendo alheias ao próprio sujeito. Por essa razão, ela se torna um tipo de expressão que ultrapassa os sentidos humanos, sendo percebido comumente como um ‘fenômeno da natureza’. Dewey (1985a, p.89) explica que a característica desta forma de experiência é a dispersão e a fragmentação, onde “[...] o que observamos e o que pensamos, o que desejamos e o que alcançamos, permanecem desirmados (desirmanados?) um do outro [...]”. De certa forma, esse primeiro tipo de experiência é o que comumente encontramos na previsibilidade de fatos que transcendem a vontade humana. Existe a possibilidade de descrição do fenômeno através da percepção do mesmo, mas não o suficiente para relacionálo com o que está presente ou com os saberes prévios do sujeito. Por essa razão, são experiências que “passam pelo sujeito”, mas não chegam a fazer parte necessariamente de sua verdadeira formação. Um segundo tipo se constitui de experiências que são refletidas, ou seja, chegam ao conhecimento humano em forma de consciência, transformando-se em ideias. Consegue-se contemplar as partes sem perder a visão do todo, identificando-se a mudança dos elementos além dos pontos de ligação de uns com os outros. É esta segunda forma de experiência que propicia o entendimento de uma sequência de eventos em cadeias de relações passíveis de entendimento e compreensão. [...] a vida não se apresenta como uma sequência ou corrente uniforme e sem interrupções. Constitui-se de histórias, cada uma com seu próprio tema, seu próprio princípio e movimento dirigido para a sua terminação, cada uma com

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seu próprio princípio e particular movimento rítmico; cada uma com sua própria qualidade não-repetível que a impregna [...] (DEWEY, 1985a, p. 89).

Ainda que essa segunda forma de experienciar seja reconhecida como “uma experiência”, existe, porém, um terceiro tipo que expressa elementos não presentes no momento vivido, mas que são pressentidos pelo sujeito. É este ponto que faz relação direta com o enigmático que desperta no - e do - corpo e se impõe como necessidade de ação. É isso que mostra para o homem o caráter incerto da realidade e o impele à investigação na sensação de que alguma coisa existe além de sua experiência imediata. Explica Teixeira (1985, p. 115) que, Quanto mais é o homem experimentado, mais aguda se lhe torna a consciência dessas falhas e das contradições e dificuldades de uma completa inteligência do universo. É isso que dá ao homem a divina inquietação, que o faz permanentemente insatisfeito e permanentemente empenhado na constante revisão de sua obra.

O processo de compreensão nasce inicialmente dessa sensação do corpo que remete ao vazio, que gera sentimentos ambivalentes e demarcam a ausência de significação. É o que comumente chamamos de angústia. Quantos foram os escritores, que em momentos como este, conseguiram construir seus mais belos textos? Encontramos a produção de um efeito cascata que estabelece a ligação necessária para a produção de sentido do fenômeno. [...] quando um evento possui significado, suas consequências potenciais passam a constituir suas características peculiares integrais e consolidadas. Quando as consequências potenciais são importantes e repetitivas, constituem a própria natureza e essência de uma coisa, sua forma definidora, identificadora e distintiva. Reconhecer a coisa é captar sua definição. Fazemo-nos, assim, capazes de perceber coisas, em lugar de simplesmente senti-las ou tê-las. Perceber é reconhecer possibilidades não atingidas; é referir o presente a consequências [...] (DEWEY, 1985b, p. 38, grifo nosso).

Experienciar remonta sempre a ideia de refletir sobre a própria ação, entendida não mais como isolada, mas sempre em relação tanto com o mundo externo quanto para o próprio sujeito. Assim, “[...] toda experiência é o resultado de interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo no qual vive [...]” (DEWEY, 1985a, p.95), implicando no fato de que “[...] os dois elementos que nela entram – situação e agente – são modificados” (TEIXEIRA, 1985, p.113). É isso que faz o elo com a dimensão do corpo. A percepção nasce de um processo de interação de corpos em um determinado tempo-espaço. Por isso, a síntese dos conhecimentos se dá no corpo em sua ação motora que estabelece esse caminho de ligação com o Outro. O sentido dos acontecimentos está situado no corpo. Por essa razão observa-se que a linguagem

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está intimamente relacionada com a fundação do símbolo para a criança. Encontramos a junção do traço social com as observadas no corpo, expressadas pelo nascimento da fala, por exemplo. [...] a concepção de percepção é definitivamente identificada com a experiência vivida, com o corpo em movimento. A percepção é uma porta aberta a vários horizontes, porém é uma porta giratória, de modo que, quando uma face se mostra, a outra torna-se invisível. O objeto é ambíguo e cada sentido se exerce em nome das demais possibilidades. Sob o meu olhar atual surgem as significações [...] (NÓBREGA, 2005, p. 608, grifo nosso).

A questão começa, porém, a ficar problemática quando refletimos algumas consequências das noções de centralidade do corpo e como ocorre a relação deste com os elementos do mundo. Na relação, por exemplo, entre homem e natureza, encontramos comumente um tipo de predomínio que impõe à natureza submissão aos desejos e planejamentos das ações humanas. Esse tipo de relação vertical continua sendo utilizada frequentemente ainda nos dias de hoje pela própria ciência que toma o mundo natural como campo de intervenção e manipulação para suas descobertas. O conceito de experiência nos mostra que toda relação é sempre incompleta e, portanto, passível de revisão e atualização futura que implica no reconhecimento de novas possibilidades em um mesmo campo de atuação. Toda experiência deveria tender para ser divergente e não convergente em relação àquela que a sucede. Ou seja, deve gerar propiciar a geração de novos significados sobre os eventos e não o inverso. Se assim o fosse estaríamos construindo no modelo escolar as condições prévias do dogmatismo (próprios do discurso do mestre). 5. Conclusão Analisando de perto a questão identitária de nosso tempo, é possível perceber que o momento atual não oferece mais lugares e papéis estáveis que funcionem como espécie de “efeito tampão”, que dariam a impressão de perfeição, oferecendo à experiência um ar sublime de totalidade. Existem mudanças de identidades porque passamos a reconhecer a impossibilidade de manutenção do mesmo, da imanência do que somos. [...] o indivíduo não tem mais a identidade associada à consciência enquanto arcabouço de grandes ideários, e sim, ao corpo. Isto é, o indivíduo associa seu eu a apenas um ideário, bastante limitado, atrelado à noção de corpo [...] há uma profunda mudança em nossa noção de sujeito; talvez possamos até falar da morte do sujeito moderno, ou de uma grande alteração do que entendemos por subjetividade (GHIRALDELLI JR., 2007, p. 41).

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Isso força a uma nova postura em relação ao mundo à volta. As estratégias de sobrevivência que eram relativamente previsíveis e, por isso mesmo, passadas de geração após geração, tornam-se sem sentido. Tomar os pais como referência torna-se um exercício piegas de amor fraternal. Ver os professores como mestres é como reconhecer nele um saber que pelos atos, sabe-se que aquela pessoa não possui. Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com os precedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mutáveis e de curta duração, não constituem opções promissoras [...] (BAUMAN, 2005, p. 60, grifo nosso).

O impacto na educação escolar é visível. A autoridade do educador - figura que entra na cadeia de imagem que ocupa o lugar do Outro – se perde e, com ela, muitas vezes o sentido da própria escolarização. Ainda que esse ponto seja bastante variável entre os educandos, como é possível discutir as formas com que a escola pode proporcionar a transmissão dos saberes, historicamente construídos pela humanidade, se o próprio sentido da História não faz mais sentido? Os impactos dessa última afirmação são preocupantes. “Fazer História” é reconhecerse como sujeito de suas ações. Vemos a desautorização contínua tanto do outro como de simesmo. Dessa forma, uma das principais tarefas da educação escolar é retomar a responsabilidade do sujeito sobre as consequências de seus atos, seja para consigo, seja para com os outros. O chamado “fim da História” também pode ser identificado pela sensação de que não há mais certezas a serem seguidas. Alguns chegam a confundir esse momento com o fim das referências. Mas isso não é uma verdade. Simbolicamente possuímos tais elementos referenciais, porém, passamos a questionar o estatuto da Verdade de instituições consideradas até então intocáveis: a família, a Igreja, o Estado. O que Adorno chamou de “barbárie” era a fragmentação das experiências; ao vivenciá-las em suas complexidade, o homem deslumbrouse com um mundo novo, cheio de possibilidades e sentidos. Encontrou um novo e perigoso gozo. O “fim da História” também é o “fim do Outro”, em seu estado mais bruto. Ao invés de uma releitura ou, em outras palavras, a construção de um novo papel do Outro, tomou-se apenas a queda e questionamento sucessivo desse lugar, como ponto de sustentação para o fim das contradições. Essa eliminação ocorre de maneira sistemática em sala de aula. Quantos são os professores que não conseguem realizar os seus trabalhos dado o grau de desinteresse de seus alunos? Seria um problema didático? Achamos que não.

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Construímos um estado quase selvagem no qual convivemos com o Outro, mas não se vive realmente com ele. As experiências tomam o crivo de um individualismo exacerbado sob a justificativa de evitar possíveis insatisfações. O inverso disso seria uma saída possível na qual se abre novas possibilidades de aprendizagens com o Outro, pautado não mais pela centralização do saber, mas sim pela troca. Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e a são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da “formação” do futuro objeto de meu ato formador [...] (FREIRE, 1996, p. 8).

Essa afirmação indica uma nova posição que devemos tomar em relação aos nossos alunos. Os diferentes tipos de controle exercidos em sala de aula, construídos como forma de garantir o vínculo dele com o objeto a ser estudado, têm se mostrado um verdadeiro fracasso. Avaliações obrigatórias, pautas de chamadas, entre outros dispositivos, ao longo do tempo, transformaram a sala de aula em um espaço burocrático no qual a palavra “troca” ganha contornos perversos. No que diz respeito à construção de conhecimento, tomou-se o corpo como único ponto de sustentação da verdade, desprezando o fato de que este corpo está imerso no universo do Outro. Assim, a referência passa a ser unicamente o vivido diretamente, sem ter no vínculo a expressão de validação desse conhecimento. O que vivo é a maior verdade que tenho em minhas mãos e o sentido da aprendizagem com o Outro se perde no meio do percurso, caindo-se assim num relativismo subjetivista exacerbado. A sentença “a vida é a verdadeira escola” se torna o fim do processo educativo e a escola perde seu espaço em relação à vida. Esquece-se que com isso “[...] nosso corpo traz marcas sociais e históricas, portanto questões culturais, questões de gênero, de pertencimentos sociais podem ser lidas no corpo [...]” (NÓBREGA, 2005, p. 610). Também se perde a ideia de que a vida deve ser levada para dentro da escola, ou seja, construir um espaço de troca e vínculos no qual o aluno possa realmente mostrar-se. Alguns podem dizer que isso foi levado ao seu extremo, ou seja, permitiu-se que cada um traga as suas vivências a tal ponto que a escola foi sucumbida pelas dicotomias sociais. Isso pode ser uma verdade. E nesse sentido, o que vemos como marco de maior indisciplina e caos, talvez seja a comprovação da existência do que entendemos por autonomia.

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Compreendeu-se durante muito tempo que o desenvolvimento da autonomia era identificado com “o fazer por si mesmo, independente do Outro”. Levada às últimas consequências, os alunos tem feito o que querem em sala de aula. É disso que se trata então, o “ser autônomo”? Com certeza não. Ao final desse breve texto, cabe, então, retomar o próprio sentido da experiência que proporciona a ideia de união entre os elementos que dela fazem parte. Podemos então afirmar, que durante uma experiência, “[...] Organismo-meio constituem um todo [...]” (TEIXEIRA, 1969, p. 71, grifo nosso). Em outras palavras, experienciar o mundo em sua complexidade é, na verdade, verificar o laço inquebrável com o Outro. Assim, retirar o professor de sua centralidade não é dar ao aluno a liberdade de aprender o que quer, na hora que deseja, mas sim, propiciar uma nova condição na qual o estar-no-mundo constrói-se e constitui-se no valor elaborado na relação que estabeleço com o Outro. E isso é necessário porque, como aponta Henning (2008, p. 887-888), [...] o artista, como qualquer ser humano, experimenta as coisas do seu ambiente, mas lança mão de um diferente meio para elaborar uma ordenação simbólica dessa sua experiência. Assim, o seu subject-matter [a matéria percebida ou apreendida por um sujeito] é singular devido à sua percepção própria das coisas. Sua composição, da mesma forma, não parece corresponder ao que os outros percebem na realidade. No entanto, as coisas que experimentamos, sendo artistas ou não, tornam-se subject-matter porque são coisas percebidas por cada um de nós, entraram no âmbito da nossa experiência. O organismo que realiza os atos é deliberativo, pois sua experiência requer um método. Cada pessoa possui seu próprio método de experimentar.

Em síntese, é a retomada do caráter estético da experiência entendido como a “esfera do entre dois” que remete à intencionalidade de um sujeito e a existência de um objeto que, em intersecção, formam o conhecimento (CHINELATTO, 2007). Referências ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2000. ADORNO/HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. CHINELATTO, Daniel Dobrigkeit. Por uma razão estética: um elo entre o inteligível e o sensível. Dissertação de Mestrado. 140p. Campinas/SP: UNICAMP, 2007. CUNHA, Marcus Vinicius. A Psicologia na Educação: dos paradigmas científicos às finalidades educacionais. Revista da Faculdade de Educação. vol.24. nº2. p.51-80. São Paulo: jul/dez, 1998. 20


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_____. Pequena Introdução à Filosofia da Educação: A Escola Progressista ou A Transformação da Escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

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A Apropriação do Pragmatismo Deweyano por Rorty: uma análise crítico-avaliativa. Edna Maria Magalhães do Nascimento5

Resumo: O presente artigo é uma tentativa inicial de analisar a apropriação do pragmatismo de John Dewey segundo Richard Rorty, para verificar até que ponto a “metafísica empírica” de Dewey, tão combatida por Rorty, pode ser alterada para se tornar consistente com o projeto rortyano do neopragmatismo. Nessa direção, pretendemos esclarecer a abordagem pragmatista de Dewey e suas ligações com o conceito de experiência e analisar em Rorty a modificação desse conceito. Nossa finalidade é argumentar a favor da consistência teórica da “metafísica empírica” deweyana, mostrando que ela envolve simultaneamente uma visada científica para a filosofia e é compatível com uma perspectiva historicista. Por último, pretendemos verificar a hipótese de que Rorty é deweyano não porque evitou a “metafísica empírica”, mas porque elaborou aquilo que poderia ser denominado uma "metafísica da cultura". Palavras-chave: Pragmatismo, neopragmatismo, metafísica, experiência, cultura Abstract: This article is an initial attempt to analyze the appropriation of John Dewey's pragmatism of Richard Rorty, to verify what extent the "empirical metaphysics" of Dewey, as opposed to Rorty, it may be amended to be consistent with the project rortyana interpretation of pragmatism. In this sense, we intend is clarify the pragmatic approach of Dewey and his links with the concept of experience in Rorty and analyze the change that concept. Our purpose is to argue for the theoretical basis of "empirical metaphysics" Dewey, showing that it involves both a target for science and philosophy is consistent with a historicist perspective. Finally, we intend to verify the hypothesis that Rorty's Deweyan not because it avoided the "empirical metaphysics", but because he has produced what could be termed a "metaphysics of culture." Keywords: Pragmatism, neopragmatism, metaphysics, experience, culture.

1. Introdução A apropriação que Richard Rorty faz do pragmatismo, e em especial do pragmatismo deweyano, tem suscitado muitas controvérsias, inclusive questionamentos sobre a pertinência ou não de falarmos em continuidade dos elementos do pragmatismo clássico no neopragmatismo de Rorty. Leitores proeminentes do pragmatismo americano clássico, como Malachowski (2002), Hall (1994), Haack (1995) e Lavine (1995), dentre outros, expressam grandes reservas quanto à interpretação que Rorty faz de Dewey. Nesse sentido, esforçam-se 5

Professora do Departamento magaledna@yahoo.com.br

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Fundamentos

da

Educação

DEFE/CCE.

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para recuperar a originalidade do pensamento de Dewey, não aceitando, sobretudo, uma interpretação que não reconhece na obra dele uma dimensão metafísica e epistêmica. Estes críticos vêm destacando que os atributos que Rorty concede a Dewey são do Dewey que emerge no próprio Rorty. Um dos elementos do pragmatismo clássico de Dewey, entendido como conceito central em sua doutrina e modificado na abordagem rortyana, é o conceito de experiência. Esse aspecto caracteriza a preocupação central desse artigo que é a de avaliar as modificações que Rorty introduz na teoria pragmatista de Dewey e defender a integridade da “metafísica empírica” desse último, presente na obra Experiência e Natureza. O conceito deweyano de experiência é a base de constituição da metafísica empírica rejeitada por Rorty. Sabemos que o engajamento de Rorty no movimento da virada lingüística fez com que ele operasse a substituição do conceito de experiência pelo conceito de linguagem, levando essa última a ocupar no neopragmatismo o lugar que a primeira ocupou no pragmatismo clássico. Nessa análise, pretendemos compreender melhor a relação entre os dois autores e averiguar em que medida Rorty se distancia ou se aproxima de elementos do pragmatismo de Dewey para justificar o neopragmatismo. Nosso objetivo é caminhar na direção de respostas às seguintes questões: qual a ligação da abordagem pragmatista de Dewey com o conceito de experiência? De que forma Rorty se apropriação de elementos do pragmatismo deweyano para alterar o conceito original de experiência? É possível argumentar a favor da consistência teórica da “metafísica empírica” deweyana, mostrando que ela envolve simultaneamente uma visada científica e historicista para a filosofia? Até que ponto é possível sustentar a hipótese de que Rorty é deweyano não porque evitou a “metafísica empírica” deweyana, mas porque elaborou uma "metafísica da cultura"? O propósito é verificar a hipótese de que, em Dewey, não há contradição entre a postura terapêutica de um pensador pragmatista e a postura sistemática decorrente de sua concepção de experiência. Nessa perspectiva, o fato de apontar os inconvenientes da tradição metafísica ocidental não credenciaria Rorty a negar a metafísica empírica de Dewey, até porque o primeiro parece fazer a mesma coisa que o segundo, ao propor uma situação filosoficamente ideal, na qual filósofos edificantes e sistemáticos estariam envolvidos num processo constante de conversação. Não teríamos aqui a constituição daquilo que poderia ser denominado uma metafísica da cultura? Para conduzir a nossa análise, tomaremos como fontes principais as seguintes obras de Dewey: A Reconstrução em Filosofia (1920) e Experiência e Natureza (1925). Em Rorty, concentrar-nos-emos nas obras A Filosofia e o Espelho da Natureza (1979) e Consequências 24


do Pragmatismo (1982), especificamente nos artigos Overcoming the Tradition: Heidegger and Dewey e Dewey’s Metaphysics. Nossa atenção se voltará também para o artigo Dewey between Hegel and Darwin, do texto Rorty & Pragmatism – The Philosopher Responds to His Critics (1995), com o objetivo de confrontar a interpretação elaborada por Rorty do pragmatismo deweyano e avaliar os elementos controversos dessa apropriação. Pretendemos, nesse esforço, verificar as bases teóricas do projeto pragmatista de Dewey para compreender como se constitui a sua abordagem da experiência enquanto uma teoria da justificação do conhecimento e uma alternativa pragmática às soluções clássicas do empirismo e do racionalismo. 2. Bases teóricas do pragmatismo deweyano Como sabemos, o pragmatismo é uma escola filosófica surgida nos Estados Unidos no final do século XIX e começo do século XX, sob o clima da forte tensão que se colocava entre a filosofia e a ciência moderna. O pragmatismo formula, em princípio, que o interesse e a importância de um conceito residem unicamente nos efeitos diretos que o mesmo pode ter na conduta humana. Dessa forma, essa teoria se insurgiu contra disputas teóricas fundadas nas antinomias clássicas, tais como aparência/realidade, material/espiritual, subjetivo/objetivo, enquanto tópicos controversos da filosofia tradicional. Para o pragmatismo, não se trata de preferir uma a outra noção, mas interpretá-las tendo em vista suas consequências práticas. Os pragmatistas clássicos tratam de temas comuns, tais como o combate às filosofias especulativas, a revisão do empirismo, a superação da filosofia contemplativa pela racionalidade científica e a formulação de uma nova concepção de verdade. No entanto, esses temas são abordados de maneira bastante diferenciada por cada um de seus propositores: Charles S. Peirce (1839-1914) parte de uma abordagem semiótica para caracterizar que a verdade é uma questão de correspondência e coerência entre os fatos e as nossas crenças; William James (1842-1910) afirma que a verdade é útil em termos práticos e deve ser compreendida em um contexto de interações e interesses da sociedade; John Dewey (18591952), com base na teoria da experiência, mostra que cabe à inteligência humana direcionar a investigação, que é fundamentalmente resolução de problemas. Para James (1985, p. 18), o termo pragmatismo, derivado do grego prágma, significa ação, e foi introduzido pela primeira vez por Charles Peirce, em 1878, em um ensaio denominado How to Make Our Ideas Clear [Como tornar clara nossas ideias], indicando que

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as nossas crenças são, na verdade, regras de ação, pois, para evidenciarmos o nosso pensamento, é preciso conhecer os efeitos práticos positivos dos objetos que nos interessam. Com esta perspectiva James enfatiza a postura pragmática, afirmando que, O pragmatismo volta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma série de hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados, com pretensão ao absoluto e às origens (JAMES, 1985, p. 18).

Dewey sempre revelou muita preocupação com o uso indiscriminado do termo pragmatismo, o que poderia, em sua opinião, induzir a uma falsa interpretação, motivo que o levou a escrever no prefácio da sua obra Logic – The Theory of Inquiry [Lógica: Teoria da Investigação], o seguinte: Espero que a palavra pragmatismo não apareça no texto. Possivelmente a palavra induza a falsas interpretações. Em todo caso, têm-se acumulado tantas incompreensões e tantas controvérsias relativamente ociosas em torno deste vocábulo que me tem parecido oportuno evitar seu emprego. Porém, no sentido genuíno do pragmático, a saber, a função que incumbe as consequências como provas necessárias da validez das proposições, sempre que estas consequências se tenham alcançado operativamente e sejam tais que resolvam o problema específico que suscita as operações, o livro que segue é absolutamente pragmático (DEWEY, 1950, p. 4).

Estas ideias iniciais, sistematizadas pelo pensamento pragmatista, difundiram-se entre os membros do denominado «Clube Metafísico» de Cambridge, entre os quais se contava W. James. Segundo James (1985), uma teoria da verdade não é aquela que trata de buscar uma concordância com a realidade, como presume a metafísica clássica, mas a ideia de verdade consiste no que é vantajoso ao pensamento ou naquilo que gera como consequências uma relação satisfatória com a realidade, de tal forma que vantagem e satisfação estejam vinculadas ao que é útil, ao prático, ou seja, a verdade é o que é bom. Esse aspecto relativista de James foi corrigido, discutido, e aprofundado por John Dewey, que analisou o conceito de verdadeiro em função da prática, nos termos de uma investigação científica. Os temas nucleados por Dewey, com base na sua doutrina pragmatista, referem-se aos conceitos de verdade e método, tendo como eixo central a noção de experiência. Com base nesse conceito, os filósofos que vêm acompanhando a tradição pragmatista identificam categorias que marcam sua distinção em relação aos projetos da filosofia moderna, rejeitando

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as metáforas dominantes das relações mente/conhecimento e da definição de verdade entendida independentemente da compreensão de como o homem conhece. Essas categorias presentes no pensamento de Dewey podem ser denominadas antirepresentacionistas e antifundacionistas. A objeção de Dewey às filosofias clássicas está diretamente relacionada aos dualismos mente versus conhecimento, principalmente na teoria da verdade como cópia da natureza, ou seja, naquela ideia que visa associar a verdade com a expressão fidedigna da coisa representada, como se o pensamento pudesse ser constituído de uma cópia correspondente à coisa experimentada. Para o pragmatismo essa teoria produz uma visão fragmentada do mundo, enquanto separa pensamento e realidade e nada traz de novo ao conhecimento. A verdade deveria ser entendida como adição ao fato, acréscimo feito à realidade e não uma mera cópia. Essa noção de verdade-cópia está presente tanto na vertente racionalista quanto na empirista, sendo concebida como representação mental do mundo exterior. Assim, o pragmatismo se coloca em contraposição às teorias correspondentistas ou representacionistas, ou seja, aquelas que declaram que uma ideia é verdadeira quando o pensamento concorda em absoluto com a realidade. Conforme o pragmatismo, nossas crenças são verdadeiras quando nos são úteis, enquanto valiosos instrumentos de ação que devem ser buscados tendo em vista as finalidades práticas em relação aos fins determinados. Desse modo, o pragmatismo abandona a ideia de teoria verdadeira como espelhamento da realidade, ao denunciar a ideia de verdade-cópia, pois, se o pensamento fosse tomado como uma simples cópia da realidade exterior, seria incapaz de produzir uma ação, criaria um abismo entre o espírito e o mundo, obrigando o espírito dar um autêntico “salto mortal”. Na mesma direção, Dewey afirma que o pensamento não tem um fim em si mesmo, é um acontecimento, um esforço para reconstruir a atividade do indivíduo e colocá-lo em condições de se adaptar à nova situação. O antifundacionismo de Dewey consiste numa permanente rejeição aos conceitos abstratos, categorias apriorísticas, princípios perpétuos, entes transcendentais, dogmas, etc. Seu esforço é negar que o pensamento possua fundações estáticas, perpétuas, imutáveis. Desse modo, ele recusa a ideia de certeza dos tradicionais conceitos filosóficos de verdade e realidade. E, considera, portanto, que as filosofias que buscam uma natureza ou substância da verdade são filosofias do medo, hiper-simplificadoras, transformando elementos da realidade na realidade do todo, reduzindo à aparência, ao secundário, ao epifenomênico, ao errôneo, ao

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ilusório, ou seja, a tudo que não pertence ao esquema da imutabilidade, da ordem, da necessidade ou da perfeição. A filosofia de Dewey parte de um ponto de vista naturalista e historicista, com influências marcantes do darwinismo e da filosofia hegeliana. Da abordagem naturalista obtém a definição de conhecimento, vinculado à compreensão de como conhecemos, isto é, do processo de desenvolvimento das atividades da consciência. O naturalismo enquanto recusa dos dualismos, não aceita uma divisão da realidade em um plano mental e outro material e nem permite que a mente ou a experiência contenha toda a realidade. O naturalismo sustenta que existe uma realidade contínua, da qual a experiência humana faz parte (SHOOK, 2002, p.18). Nessa interpretação, o processo ativo do ser vivo é a matriz do comportamento lógico, o que significa dizer que a busca, a indagação não é algo que sucede na mente ou no organismo isoladamente, mas numa situação real de ação-reação entre o organismo e o meio. Para Dewey (1985, p. 114), a experiência não pode ser vista distinta da natureza, ela é um tipo de ocorrência que penetra a natureza e aí se expande sem limitações. Tudo que existe é resultado desse processo de relações mútuas, pelos quais os corpos agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente. Esse processo de agir sobre outro corpo e sofrer de outro corpo uma reação é o que Dewey denominou experiência. O filósofo parte de um conceito amplo de experiência, considerando não apenas os atributos puramente humanos. A multiplicidade e a variedade de relações presentes na natureza tornam esse mundo precário e instável, e o obrigam a uma perpétua transformação. No plano físico, tais experiências acontecem sem nenhum sentido de adaptação, enquanto no plano da vida predomina a capacidade de seleção e adaptação, buscando o ser vivo conservar seu organismo. Nesse nível animal e vegetal a experiência é psicofísica. Na experiência humana esse processo ganha amplitude, pois implica uma atividade criativa e inteligente na reconstrução constante da experiência. Nesse sentido, o principal argumento de Dewey é demonstrar que a experiência não é algo que se opõe ou se sobrepõe à natureza: O que há de fundamental, nesse modo de ver a experiência, é a sua identificação com a natureza. Os pontos de vista do racionalismo ou do intelectualismo operavam sobre o velho dualismo de natureza e experiência, em que esta era um simples instrumento de análise daquela. Daí, a experiência ser considerada “transitória”, “passageira”, “pessoal”, contra a realidade permanente do mundo exterior (DEWEY, 1985, p. 113).

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Do ponto de vista histórico, Dewey retoma as formulações de Hegel sobre o desenvolvimento da experiência e da consciência, demonstrando o intercâmbio das determinações e indeterminações no processo gerador do dinamismo histórico, nos jogos de forças existentes na realidade, em contraposição à ideia de experiência simplificada e purificada de todos os elementos da desordem e do erro e, portanto, reduzida a estados de consciência claros e distintos. Na sua concepção, a experiência não é consciência, e sim história, carregada dos atributos da vida. Não se busca uma teoria da certeza ou um porto seguro para amparar o conhecimento estável, mas a análise da experiência enquanto uma situação histórica. Portanto, para Dewey, o homem vive em mundo aleatório, a sua existência implica o acaso. Diante da precariedade do mundo, e na tentativa de dar sentido à experiência, o homem recorreu, inicialmente, às forças mágicas e construiu os mitos e, depois de terem eles caído, substituiu-os por outras ideias tranqüilizadoras, como a imutabilidade do ser, o processo universal, a racionalidade do universo. Nesse sentido, Dewey formula uma contraposição teórica aos pensadores que, na sua visão, defendem uma filosofia do fluxo normal, ou seja, buscam o que é seguro e estável. O problema a ser investigado aparece em Dewey quando ele argumenta que os conceitos de natureza e experiência foram tomados pela tradição filosófica como incompatíveis, uma vez que, historicamente, a experiência passou a ser descrita como algo não natural. Há, desse modo, uma separação entre o homem e a experiência, de um lado, e a natureza, de outro. Nosso filósofo propõe como desafio reverter essa noção e pensar um naturalismo empírico ou um empirismo naturalista, ou ainda, como ele também denominou, um humanismo naturalista, cuja tarefa é a de se opor a uma tradição que, ao ver esta associação entre a natureza e a experiência, pensa tratar-se de um absurdo. O seu desafio é estabelecer uma teoria da experiência em termos naturalísticos, [...] na qual natureza e experiência convivem harmoniosamente juntas – onde a experiência apresenta-se a si própria como o método, e o único método, para atingir a natureza, penetrar seus segredos, e onde a natureza revelada empiricamente (pelo uso do método empírico na ciência natural) aprofunda, e enriquece e dirige o desenvolvimento posterior da experiência. (DEWEY, 1985, p. 3).

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A experiência, para o pragmatismo, é fundamentalmente natural, e não psíquica. Ela consiste de situações em que os objetos naturais, entre eles o ser humano, interagem uns com os outros. O filósofo argumenta que qualquer filosofia que encontre sentido exclusivamente dentro da mente do indivíduo pode ser considerada transcendentalista e comete os erros típicos dos dualismos. Portanto, o significado de uma proposição só pode ser conhecido a partir de suas consequências práticas, isto é, na medida em que determina seu uso possível na geração de outras coisas experimentadas no futuro. A experiência é sempre experiência de uma realidade, não podendo ser concebida sem ela. Eis porque o conhecimento não pode ser cópia mental dos objetos do mundo. Quando damos à teoria a forma da chamada verdadecópia, típica das teorias correspondentistas, estamos diante de um grave problema, ou seja, o de saber como podemos comparar nossas ideias à realidade e, nesse sentido, como apreender sua verdade. Dewey rejeita esse pressuposto, revelando que, se apenas temos uma cópia da realidade, então ela se torna cada vez mais inatingível e, assim, pode-se decretar a falência do conhecimento (DEWEY, 1985, p. 77). Dewey (1985) considera que tanto o racionalismo quanto o empirismo separam os conceitos de experiência e natureza. Para os racionalistas, a experiência é não apenas algo acidentalmente superposto à natureza, mas forma um véu ou tela que nos separa da natureza, a menos que possa ser “transcendida”. Para os empiristas, a experiência também é apresentada em situação desvantajosa, neles a “natureza é pensada como algo completamente material e mecanicamente determinado” (DEWEY, 1985, p. 3). Dewey reclama outro contexto, no qual experiência e natureza convivam harmoniosamente. O fato de Dewey rejeitar a tradição metafísica não significa que ele não tenha elaborado a sua própria metafísica e muito menos que tenha aderido a uma teoria empirista na sua acepção clássica, uma vez que elabora o seu pensamento com base em uma concepção histórica de mundo, que institui conexões entre o ser e o existir. Sua defesa de uma filosofia que articule pensamento e ação o faz denunciar as filosofias de caráter laudatório, ou seja, aquelas que deificam a mudança, tornando-a universal, regular e segura. O pragmatismo de Dewey recebe a denominação de instrumentalismo. A metáfora do instrumento estende-se a todos os aspectos do pensamento, como termos, conceitos, juízos, inferências, conhecimento e verdade. Todos são equipamentos usados para tornar melhores as nossas vidas. Como instrumentos, essas coisas são artefatos humanos que podem ser criados, aperfeiçoados, ignorados ou abandonados (SHOOK, 2002).

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O conhecimento é investigação que consiste em elaborações para proporcionar a adaptação ao ambiente. O conhecimento tem sentido quando favorece a resolução de problemas sugeridos pelo ambiente. O papel do pensamento e, portanto, do conhecimento derivado dele, é o de transformar situações caracterizadas pela obscuridade, dúvida, conflito, em situações claras, coerentes, ordenadas e harmoniosas. Desse modo, a investigação parte dos problemas, de situações que implicam incertezas e dúvidas. O discurso deweyano sobre a experiência demonstra ser possível indicar duas dimensões das coisas experimentadas; uma é a de tê-las, a outra é a de conhecê-las para tê-las de modo mais significativo. Esse caminho indica que as situações problemáticas se tornam objetos de pesquisa, no sentido de estimular a tentativa de solução, mesmo que ainda vaga, mas com o propósito de formular uma hipótese que favoreça as antecipações ou previsões do que pode acontecer. É antecipando as consequências futuras que se produz conhecimento no âmbito do pragmatismo. Nesse sentido, as ideias são operacionais, são planos de intervenção na realidade. “Uma ideia é, antes de tudo, uma antecipação do que pode acontecer; caracteriza uma possibilidade” (DEWEY, 1985, p. 62). Dewey estabelece a distinção entre as experiências imediatas, portanto nãoproblemáticas, das experiências problemáticas ou resultantes do esforço da reflexão intelectual. Na experiência não-problemática, guiada pela ação dos hábitos do organismo, não há uma divisão entre objetivo e subjetivo, portando não há uma subjetivação. Quando esta experiência se torna problemática, as fontes instrumentais do pensamento são chamadas a atuar. O homem, na sua ação diária, lança mão de um saber empírico, que, a partir de certas coincidências, pode prever dados da realidade, muitas vezes acertada, outras vezes equivocadamente. Para Dewey, esse modo de proceder empírico é diferente do pensamento reflexivo. Acreditar, portanto, naquela lógica, segundo a qual o fato de uma coisa vir depois de outra indica que a primeira foi causada pela segunda, é um erro comum, presente nas conclusões que, mesmo sendo exatas, são empíricas, pois esta exatidão tanto pode ser atribuída ao acaso quanto ao emprego de um método (DEWEY, 1959). Dewey faz objeção à teoria do conhecimento que designa a “inteligência” como “razão” ou “intelecto puro” – o mais elevado órgão ou faculdade capaz de captar as últimas verdades. O que cabe à nova teoria proposta por ele é considerar como se processa o conhecimento, em vez de supor que ele deva se conformar a algum fundamento. A inteligência, na sua acepção, é a designação sinóptica dos grandes métodos, em crescente desenvolvimento de observação, de experimentação e de raciocínio reflexivo, que, não obstante terem revolucionado, em reduzido espaço de tempo, tanto as condições físicas como 31


fisiológicas da vida, não foram, todavia aplicados àquilo que é basicamente humano (DEWEY, 1959, p. 21). Desse modo, os estágios do pensamento são aspectos funcionais da solução prática dos problemas, à medida que os homens encontrem instrumentos mais eficazes para interagir com o mundo. Neste ponto, Dewey enfatiza que mesmo as teorias empíricas que rejeitem a posição racionalista operam em termos de uma justificativa suficiente da faculdade de conhecer, adaptando a teoria do conhecimento a suas crenças pré-fabricadas no que concerne à percepção sensível, em vez de derivarem sua maneira de conceber esta percepção dos dados colhidos no processamento da pesquisa cientifica (DEWEY, 1959, p. 21). Desse modo, a descoberta mais revolucionária foi o fato de que a ciência natural se viu obrigada a abandonar a hipótese da fixidez e admitir que para ela o que é realmente universal é o processo. A universalidade que compete às teorias científicas não é a de um conteúdo inerente fixado por Deus ou pela natureza, mas a sua função de aplicabilidade, sua capacidade de retirar os eventos de seu aparente isolamento, a fim de ordená-los em sistemas que promovam sua qualidade vital pelo gênero de mudança que se denomina crescimento. Importa, desse modo, compreender que a racionalidade humana é possível apenas onde se encoraja e exercita o controle autoconsciente das ferramentas do pensamento. Os estudos filosóficos da razão científica e de seu potencial de aperfeiçoamento se fundamentam na ideia do seu uso prático e na sua capacidade autocorretiva. A esse respeito, Dewey argumenta que, se a ciência foi construída no espaço da pesquisa experimental, e a filosofia, no âmbito do espiritual e das questões morais, isso se deve aos perniciosos dualismos da tradição filosófica que separam essência e acidente, matéria e espírito, teoria e prática. Assim, Dewey propõe uma visada científica para a filosofia ao afirmar que seu interesse é a aplicação à atividade da filosofia daquilo que se diz da ciência, uma vez que a linha divisória entre o que na ciência é cognominado hipótese, e, na filosofia, especulação (geralmente em tom de menosprezo), é tênue e imprecisa nos contextos revolucionários do conhecimento. O trabalho executado pelos homens, cujos nomes agora figuram nas histórias da filosofia, mais do que nas da ciência, teve papel preponderante no propiciar um clima favorável à iniciação do movimento cientifico, de onde saíram a astronomia e a física, que desalojaram a velha cosmologia ontológica (DEWEY, 1959, p. 27).

Dewey mostra a contradição entre o desenvolvimento científico e o conservadorismo da filosofia tradicional, pois, segundo ele, a filosofia tem a posição fundamental de lançar as bases para as transformações na forma de pensar a realidade, sendo

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decisiva nesses contextos revolucionários da ciência. Enquanto se ampliam e se aprofundam as investigações no âmbito das ciências, a filosofia tradicional ainda se acha presa às velhas instituições. A hipótese levantada por Dewey sobre a crise em que o homem se acha envolvido no contexto da modernidade científica está relacionada ao grau de especialização, fruto da delimitação de áreas de operação e jurisdição, ficando a cargo de instituições antigas, com suas formas inalteradas, a supremacia em assuntos éticos e ideais. À medida que as aplicações da nova ciência iam provando ser benéficas em muitos setores da vida prática, foi sendo tolerada a nova ciência física e fisiológica sob a condição de apenas se ocupar com as questões materiais inferiores, sem se imiscuir no reino “superior” e espiritual de ser (DEWEY, 1959, p. 29).

Assim entendido, faz-se necessário indagar: O que precisa a filosofia para ser profícua na resolução dos problemas humanos e contemporâneos e, ao mesmo tempo, recuperar a vitalidade que foi gradativamente perdendo? O próprio Dewey responde que ela deve se apropriar, a seu modo, do método da ciência, ou do método empírico. Desse modo, afirma que as condições institucionais, em que ela (ciência) penetra e determina suas consequências humanas, não foram ainda submetidas a nenhuma indagação séria e sistemática, merecedora do título de científica (DEWEY,1959, p. 32). Logo, o trabalho reconstrutivo da filosofia seria envidar esforços para realizar, no campo moral, aquilo que os filósofos modernos fizeram pelo progresso da indagação científica. No caso, a reconstrução significa desenvolver, formar e produzir os meios intelectuais que progressivamente encaminharão a pesquisa para o âmbito dos fatos presentes, no que eles têm de mais profundo e particularmente humano. Nesta perspectiva, o novo método de conhecer, proposto por Dewey, teria de ser funcional e autocorretivo, retirando proveito tanto dos malogros como dos êxitos do avanço do conhecimento. A chave do método é a revelação da identidade entre a pesquisa e a descoberta. Dewey quer dizer que o método da descoberta nas ciências naturais é plenamente aceito, mas ainda está muito longe de ser admitido nas questões “espirituais”, ideais e morais. Para Dewey a filosofia ainda permanecia presa a uma etapa pré-científica, pré-democrática, pré-tecnológica. Ele tenta reconstruir os instrumentos do pensar para responder às necessidades do “novo mundo”. Daí a seguinte consideração: Quanto à filosofia, sua profissão de operar à base do eterno e imutável é o que lhe confere uma função e objeto, os quais, mais do que qualquer outra coisa, constituem a razão de sua crescente desestima popular e da falta de

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confiança em suas pretensões. Com o efeito, ela opera a proteção daquilo que presentemente é repudiado pela ciência, escorando-se apenas em velhas instituições, cujo prestígio, influências e vantagens de poder dependem da preservação da velha ordem; e isto justamente no tempo em que as condições humanas são conturbadas e instáveis, que exigem, com maior urgência do que no passado, algo como aquela visão compreensiva e “objetiva” em que se empenharam as filosofias históricas (DEWEY, 1959, p. 24).

No centro do debate sobre a investigação científica está a relevância concedida ao concreto, à importância social, ao papel da comunidade de investigadores e à ideia de aperfeiçoamento. Isto porque Dewey postula que a investigação deve estar atenta ao contexto do seu desenvolvimento, considerando as crenças políticas e científicas, a cultura e suas relações com as instituições sociais. O pragmatismo de Dewey se caracteriza pela referência constante ao futuro, de modo que o significado de uma proposição depende do teste de suas consequências, isto é, da antecipação e previsão das consequências futuras, da produção de eventos desejados, pois daí pode-se conhecer o que é melhor, útil e benéfico à vida humana. Assim, ao se contrapor à epistemologia tradicional, Dewey explica que o único objetivo de uma teoria é guiar a produção de eventos desejados, de modo a não mais ser um mistério ou um paradoxo que a teoria venha a produzir sua própria evidência. Segundo Shook (2002, p. 207), o pragmatismo deweyano recomenda que as teorias científicas devam ser compreendidas como modelos, não no sentido de uma cópia do original, mas na condição de uma estrutura produzida em que os construtores a usariam como guia de sua construção. Nesse sentido, o teste de uma teoria científica é sua capacidade de guiar de modo seguro e eficiente, a produção do conhecimento. Reforçando esse entendimento, Dewey afirma: O trabalho da ciência física é descobrir as propriedades e relações das quais elas são capazes de serem usadas como instrumentalidades; a ciência física alega revelar não a natureza interna das coisas, e sim somente conexões das coisas umas com as outras que produzem resultados e que, por conseguinte, possam ser usados como meio (DEWEY, 1959, p. 32).

Pelo exposto, a teoria da experiência de Dewey rejeita uma filosofia representacionista ao negar que o conhecimento seja derivado da capacidade racional de apreender ou representar fidedignamente o mundo exterior. Objeta, também, à ideia de uma substância ou natureza da verdade e, nem crê que o conhecimento deva ter um fundamento. Muito ao contrário, assegura o caráter operacional do pensamento humano, enquanto instrumentalidade necessária à sobrevivência e ao gozo da vida. O pragmatismo deweyano 34


parte do princípio que o método da ciência se auto-regula, é autocorretivo, pois deriva da sua capacidade de aperfeiçoamento. Ao rejeitar uma concepção de natureza da verdade, Dewey privilegia o processo, a investigação, a necessidade dos procedimentos do método científico, inclusive reivindicando para a filosofia hipóteses explicativas que tenham força de ação.

3. Apropriação rortyana do pragmatismo de Dewey Veremos a seguir, como essa discussão se apresenta na filosofia de Rorty, para identificarmos os elementos que constituem sua interpretação do pragmatismo deweyano. Antes, porém, cabe demarcar que o pragmatismo obteve, nas duas primeiras décadas do século XX, grande prestígio e notoriedade. No entanto, esse prestígio passou a ser minimizado em função do desenvolvimento de novas teorias que reivindicavam para a filosofia o caráter de uma disciplina técnica, cuja tarefa se fundamentaria no trabalho de justificação lógica da linguagem da ciência. Essa tentativa se deu com os movimentos surgidos a partir da ideia de uma filosofia científica em Bertrand Russel, do positivismo lógico e da filosofia da linguagem. O ressurgimento do interesse no pragmatismo ocorreu, especialmente, a partir da década de setenta, mais precisamente quando Richard Rorty publicou, em 1979, Philosophy and The Mirror of Nature ,[A Filosofia e O Espelho da Natureza] opondo-se à filosofia analítica e lançando um novo paradigma filosófico, o neopragmatismo. Rorty apresenta seu trabalho como sendo uma continuação de William James e John Dewey. Desde então começou a receber críticas de comentadores de James e Dewey e de estudiosos do tema, que procuram mostrar que ele está errado ao afirmar a continuidade entre sua filosofia e o pragmatismo clássico. Rorty diz que pretende seguir a tradição pragmatista na forma se seus antecessores e, desse modo, elege John Dewey como figura central do movimento pragmatista americano, atribuindo-lhe muitas de suas próprias doutrinas centrais. Nesse sentido, a posição anticorrespondentista e antirepresentacionista de Dewey tem grande repercussão no pragmatismo de Rorty. Esse último pretende realizar um diagnóstico crítico dos projetos da filosofia moderna e, ao mesmo tempo, propor a superação dos problemas clássicos da epistemologia e da metafísica, mostrando como seria a filosofia se nos libertássemos das metáforas que regem a mente e o conhecimento, presentes na tradição de Descartes a Kant.

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No entanto, seus críticos observam que as suas leituras do pragmatismo clássico são problemáticas e muitas vezes distorcem seriamente seus autores. Ele argumenta que a história da filosofia desde Platão tem sido a tentativa de isolar o “Verdadeiro” ou o “Bem” e definir as palavras verdadeiro ou bom. Com isso, ele avança a suspeita que não há trabalho interessante que possa ser desenvolvido nessa área, ficando todos aqueles que empreendem essa tarefa condenados àquilo que os próprios pragmatistas denunciaram: presos às discussões intermináveis sobre a busca do fundamento da realidade, da natureza, da verdade ou do bem. Nesse sentido, a filosofia enquanto história dessas tentativas e das críticas dessas tentativas pode ser considerada um gênero literário. Segundo Rorty, para o pragmatismo, não se trata de construir alternativas teóricas às formulações realista ou subjetivista da Verdade, da Natureza ou de Deus, mas simplesmente dizer que isto não leva a lugar algum. Ele nos diz que os pragmatistas não estão oferecendo “um novo e não-platônico conjunto de respostas às perguntas platônicas, mas antes pensam que já não devemos mais fazer essas perguntas” (RORTY, 1982, p. 14). Nessa análise, Rorty distingue a filosofia, com inicial minúscula, entendida como o trabalho de análise das proposições, das ações e das situações, e a Filosofia, com inicial maiúscula, entendida como representando uma noção platônica, ou seja, uma atividade acerca da natureza das noções normativas de verdade, de racionalidade e de bem. Com base nisso, argumenta que a filosofia teria muito a dizer se deixasse de se preocupar com o fundamento último da verdade, ou deixasse de buscar a natureza do conhecimento. Sua crítica à epistemologia faz com que ele atribua de modo generalizado suas próprias pretensões a todos os pragmatistas: “O que os pragmatistas estão a dizer é que a maior esperança da filosofia é não fazer Filosofia” (RORTY, 1982, p. 15). Rorty reconhece que, diante disso, os pragmatistas se veem numa encruzilhada: se adotam a linguagem não-filosófica, demasiado literária, podem ser acusados de mudar de assunto, de sair da área da filosofia; se a linguagem for demasiado filosófica, continuarão incorporando as hipóteses explicativas de Platão que eles pretendem a abandonar. No entanto, ao propor uma redescrição da filosofia como gênero literário ou apenas como “um tipo de escrita”, abstraindo a sua especificidade, seu papel de investigação, Rorty parece se opor a Dewey, que, embora partindo de uma crítica radical ao modo clássico de fazer filosofia, tem como aspiração a sua reconstrução, o seu caráter de operacionalidade, bem como a tentativa de propor um modelo de investigação e de refundação do método científico.

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Rorty retoma dos pragmatistas a rejeição da ideia filosófica do conhecimento como representação, como um espelho mental e faz isso em benefício de sua crítica à metafísica, argumentando que os projetos filosóficos que mantiveram os dualismos subjetivo/objetivo e aparência/realidade estão presos a uma reflexão já superada. Ele argumenta que o vocabulário da filosofia do século XVII é ineficaz para resolver os problemas de hoje, razão por que, em sua opinião, deve ser substituído. Diz seguir a concepção de Dewey de conhecimento como crença, e de Wittgenstein de linguagem como instrumento e não como espelho da natureza. Estes pensadores são retratados por Rorty como filósofos edificantes, responsáveis por superar os pressupostos da filosofia metafísica ocidental. Em outras palavras, eles partilham a ideia de que devemos desistir da ideia kantiana segundo a qual há algo chamado de natureza do conhecimento humano. Como diz Rorty: Tentarei sustentar a reivindicação (comum a Wittgenstein e Dewey) de que pensar no conhecimento que apresenta um “problema”, e acerca do qual devemos possuir uma “teoria”, é um produto da visão do conhecimento como uma montagem de representações – uma visão do conhecimento que, como tenho vindo a defender, era um produto do século dezessete (1994, p. 113).

No seu livro Consequences of Pragmatism [Consequências do Pragmatismo] (1982), em dois artigos intitulados, respectivamente, Overcoming the Tradition: Heidegger and Dewey e Dewey’s Metaphysics, Rorty apresenta sua interpretação do pragmatismo de Dewey. Declara-se um deweyano, quando se descreve com base numa filosofia historicista, construída em contextos específicos em resposta a mudanças específicas, concluindo que a filosofia não tem como oferecer uma fundamentação última para basear o conhecimento. No texto Overcoming the Tradition: Heidegger and Dewey, Rorty mostra os pontos em comum e as diferenças entre Heidegger e Dewey. Em relação às similaridades, Rorty pensa que esses filósofos partilham a mesma concepção histórica que leva à rejeição da ontologia ocidental, mas divergem quanto àquilo que deve sucedê-la. Os dois concordam nos seguintes aspectos: a) crítica à distinção entre contemplação e ação; b) crítica aos problemas cartesianos em torno do ceticismo epistemológico; c) crítica à distinção entre filosofia e ciência; d) crítica à distinção entre o domínio formado pela filosofia e pela ciência e domínio formado pelo “estético” (RORTY, 1982, p. 42). Tanto Heidegger quando Dewey rejeitam a distinção grega entre ação e contemplação, que resultou nas “ninhadas” de dualismos que alimentaram todas as

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instituições e forneceram os problemas da filosofia para os filósofos modernos (RORTY, 1982). Se, de um lado, Dewey identifica a cisão entre ação e contemplação como resultante da relação social desigual entre o homem livre e o escravo, de outro lado, Heidegger reconhece que o desmembramento da consciência originalmente unida provocou a fatalidade do Ser. Para ilustrar melhor essa relação entre ação e contemplação e a cisão feita pelos gregos, Rorty se refere a Dewey, afirmando: Dewey começa uma discussão da distinção entre teoria e prática com uma distinção entre o “sagrado” e o “afortunado”. Pensa a religião, e a sua herdeira filosofia, como estando ao serviço do primeiro. A arte, e a sua herdeira tecnologia, olham para o segundo. Porque a filosofia herdou o reino de que a religião tinha se ocupado, adotou naturalmente a noção, que tem governado a filosofia desde os tempos dos gregos, que a função do conhecimento é descobrir o antecedente real. Dada à herança adicional da religião da premissa que só o complemento fixo e imutável do ser pode ser real, é natural que a demanda da certeza tenha determinado a nossa metafísica básica (RORTY, 1982, p. 43).

Embora reconheça diferenças de perspectivas entre Heidegger e Dewey, Rorty identifica o mesmo o ponto de partida nos dois, isto é, a rejeição do modo pelo qual os gregos fundaram os dualismos que configuram a velha ontologia. Aqui Heidegger vê a distinção entre ação e contemplação, não como Dewey a vê, como refletindo um hiato entre o homem livre e o escravo, mas antes como emanando de uma disjunção inicial de uma consciência originalmente unida – uma disjunção que é presumivelmente para ser vista como uma fatalidade, uma das palavras do Ser, mais do que para ser explicada causalmente como um produto de um certo ambiente natural ou de uma certa organização social (RORTY, 1982, p. 43-44).

O propósito de Rorty é encontrar nesses filósofos uma identificação no que diz respeito a uma concepção histórica da filosofia. Ele afirma que Heidegger e Dewey estão de acordo em que a noção de conhecimento como representação exata deve ser abandonada. Mas, Rorty questiona o fato de Dewey querer superar a tradição através da dissolução das oposições tradicionais, substituindo-as pela noção, que considera vaga e não-controversa, de inteligência tentando resolver problemas e fornecer sentido (RORTY, 1982, p. 51). Rorty argumenta que Dewey vê os problemas epistemológicos apresentados pelos filósofos modernos apenas como uma forma de ajustamento às antigas hipóteses metafísicas. Os dualismos da filosofia clássica são colocados sob novas condições na filosofia moderna.

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Heidegger demonstra que há nessa última uma realização dialética desses mesmos problemas. Dewey e Heidegger concordam em que a filosofia moderna reapresenta os temas clássicos, instituindo novas dicotomias, desta vez na relação epistemológica entre objetivo e subjetivo. Assim, os problemas clássicos são transportados para a reflexão moderna à medida que a pergunta sobre as possibilidades do conhecimento assume caráter ideal e racional. Para Dewey, a filosofia moderna mantém essas distinções, que resultam do hábito de separar, da natureza, o homem e a experiência. No que diz respeito à distinção entre filosofia e ciência, Rorty alega que ambos criticam as tentativas cartesianas, husserlianas e positivistas de tornar científica a filosofia. No entanto, Rorty não leva em conta que Dewey, embora rejeite uma subordinação da filosofia à ciência, mantém uma filosofia com uma visada científica. Por último, ele apresenta esses pensadores como tendo ampliado o campo da filosofia, ao adotarem outras linguagens e vocabulários, como a arte, a poesia e a crítica cultural, criando a possibilidade de libertar a filosofia de seu caráter restrito e disciplinar. Na visão de Rorty, Heidegger e Dewey são filósofos radicais que introduziram “novos mapas do terreno” em termos filosóficos, instituindo uma nova e revolucionária etapa para a filosofia. Surgem como destruidores da velha ontologia e críticos da epistemologia. São muito mais terapêuticos e edificantes do que filósofos sistemáticos. Ele argumenta que este dois pensadores “estão a tentar encapsular toda a sequência que vai de Platão e Aristóteles a Nietzsche e Carnap, a pô-la de lado, e a oferecer algo de novo – ou pelo menos uma esperança de algo novo” (Rorty, 1982, p. 46). Nesse aspecto, Rorty defende a unidade entre esses dois pensadores, por serem historicistas até o âmago. Não aceita, portanto, que associem Dewey a pensadores não historicistas como Peirce, James e Quine. Fazer isso seria desconsiderar que Dewey se apaixonou pelas visões historicistas de Hegel e Comte. O ponto controverso está em Rorty não aceitar a dimensão metafísica de Dewey, privilegiando apenas o seu historicismo. A argumentação de Rorty enfatiza a dimensão historicista, mas não considera a metafísica empírica de Dewey. Nessa direção, os deweyanos afirmam que a verdadeira história da produção teórica de Dewey é marcada pelos temas metafísicos, dentre eles as questões relacionadas com a noção de experiência. Ademais, Rorty reúne pensadores cujos interesses filosóficos, como se vê, são muito distintos, o que nos leva ao questionamento da possibilidade dessa conjugação, sem que se destruam suas raízes históricas. A sugestão de Ramberg (2001) é que Rorty pretende encontrar em Dewey uma antecipação de sua própria visão de filosofia, como ideia que dá suporte às ciências políticas. Segundo Ramberg, por ler 39


Dewey dessa maneira, ele é acusado de, deliberadamente, separar o Dewey “bom” do Dewey “mau”. Rorty é crítico do que ele considera a recaída de Dewey na metafísica em Experiência e Natureza e, por isso, não aceita a tentativa de reconstrução do pensamento científico presente em Lógica: Teoria da Investigação. Rorty escreveu o ensaio Dewey’s Metaphysics para responder a essas objeções. Ele procura mostrar, nesse artigo, que Dewey, bem no final da sua vida, considerou a possibilidade de reescrever o Experiência e Natureza, com o título de Natureza e Cultura. Segundo Rorty, Dewey tinha desistindo de reabilitar a metafísica e reconheceu que a obra Experiência e Natureza não deveria ser lida como os textos clássicos da área, tais como, a Metafísica de Aristóteles ou a Ética de Espinosa. Com isso, o livro de Dewey não poderia ser visto como expondo uma metafísica empírica. Segundo Rorty, o assunto do livro envolve, tão somente, descrições da gênese cultural e histórica desses problemas apelidados de metafísicos (RORTY, 1982, p. 72). Assim, insiste que seria mais fácil pensar o livro de Dewey como uma explicação da razão pela qual ninguém necessitaria de uma metafísica, ao invés de ser ele próprio a apresentação de um sistema metafísico (RORTY, 1982, p. 73). O fato é que Rorty quer identificar em Dewey uma tensão entre uma atitude terapêutica e uma postura científicoempírica em filosofia. Com base nisso, declara que Dewey vacilou durante toda a sua vida entre essas formas de fazer filosofia. Ele quis construir um sistema metafísico que tivesse essas duas dimensões, o que é contraditório para Rorty. Em sua leitura de Dewey, Rorty pensa que ele estaria mais para um terapeuta filosófico ou intelectual historiador do que um metafísico (RORTY, 1982, p. 77). Isso sugere que Rorty tem dificuldade em aceitar que um autor pragmatista, que teve o papel de destruir a velha ontologia, possa ter uma recaída na velha tradição filosófica, ao propor um novo sistema metafísico, ainda que de caráter pragmatista. Discute, inclusive, se isso é mesmo possível. Desse modo, o conceito de experiência passa a ser questionado por Rorty, em função do programa com que Dewey se comprometeu. Em que consiste o problema proposto por Rorty? Ele reconhece a tentativa de incursões metafísicas em Experiência e Natureza. Mas a pretensão de Dewey, conforme Rorty, seria pensar um sistema que pudesse “afastar os ramos secos da tradição filosófica” e fosse desenvolvido a partir da aplicação do método científico e empírico à filosofia, dotando-a de instrumentalidade, ou seja, transformando-a em uma filosofia do fazer (RORTY, 1982, p. 77). O ponto principal estaria no esforço de Dewey em buscar no uso do “método” a base de superação dos dualismos da metafísica clássica. Dessa maneira, a novidade em Experiência e 40


Natureza não estaria na sua “metafísica”, mas, como o próprio Dewey assegura, no uso do método para compreender um grupo de problemas fundamentais que perturbaram a filosofia. Rorty diz que duas gerações de comentadores de Dewey tiveram dificuldades em entender que método poderia produzir “uma afirmação dos traços genéricos manifestados por existências de todos os tipos, sem relação com a distinção das mesmas em físicas e mentais” e diferindo em praticamente nada do método empregado pelo cientista de laboratório. E também não ficou claro para eles como uma apresentação de traços genéricos poderia ou evitar a banalidade ou dissolver os problemas filosóficos tradicionais (RORTY, 1982, p. 73). Rorty argumenta que ou a metafísica deweyana difere da metafísica tradicional por não ter uma predisposição fundamentadora dos valores sociais porque ele encontrou uma maneira empírica de fazer metafísica, ou Dewey, ao falar em “traços genéricos manifestados pelas existências de todos os gêneros”, está agindo de má fé. Mas Rorty reconhece que Dewey “não pretendeu, como fez Platão, ser um espectador de todos os tempos e eternidade, mas usou a filosofia (mesmo a presumivelmente mais alta e mais pura forma de filosofia – a própria metafísica) como um instrumento de transformação social” (RORTY, 1982, p. 73). Mesmo assim, Rorty procura mostrar que uma metafísica empírica é incompatível com os próprios princípios deweyanos, especialmente os da contextualidade e contingência. Além disso, as noções de observação e experimentação não deveriam estar dissociadas das questões sociais, que constituem a parte fundamental do programa de Dewey. Para concluir sua proposta de que Experiência e Natureza deve ser entendida como obra antimetafísica, Rorty argumenta como segue: Mesmo se, de algum modo, pudéssemos explicar a que é que equivale o “método empírico” em metafísica, ele não deveria (segundo os princípios de Dewey) ser dotado da neutralidade magistral que tradicionalmente pertence a uma disciplina que nos oferece “traços genéricos de todos os gêneros de existências”. Mesmo se Dewey pudesse explicar o que é observacional e experimental em Experiência e Natureza, os seus próprios comentários sobre observação e experimentação como ferramentas para resolver alguns problemas dados que envolvem valores sociais deveriam ser levados a incidir sobre a sua própria obra. Se, como eu disse, o conteúdo efectivo de Experiência e Natureza é uma série de análises de como surgiram esses pseudo-problemas filosóficos tais como sujeito-objeto, espírito-versusmatéria e de como eles podem ser dissolvidos, a natureza desse projecto é clara (RORTY, 1982, p. 74).

Neste itinerário, Rorty reitera que não existe, em Experiência e Natureza, algo que possa ser chamado de “metafísica da experiência”, que se contraponha ao que Dewey pretendeu, ou seja, a um tratamento terapêutico da tradição. Na leitura rortyana, Dewey tinha

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como hábito anunciar um “arrojado programa” construtivo, quando tudo o que podia oferecer era a crítica da tradição filosófica. Rorty questiona o conceito deweyano de experiência, indagando o que seria uma descrição não dualista da mesma que remetesse a um conceito universalista. Para Rorty, a contradição presente no conceito de experiência está na busca de uma matriz neutra permanente, que Dewey se comprometeu em encontrar. Desse modo, Rorty argumenta que, se há contradições no pensamento do pragmatista pioneiro, relativo à descrição da experiência, isso se deve ao fato de Dewey querer associar o sensualismo de Locke ao historicismo de Hegel (RORTY, 1982, p. 81). Segundo Rorty, o erro de Dewey foi o de pretender que a crítica da cultura tomasse a forma de uma nova descrição da “natureza” ou da “experiência” ou de ambas. Nesse sentido ele afirma: Se Dewey tivesse escrito o livro chamado de Nature and Culture, que viria a substituir Experiência e Natureza, poderia ter-se sentido capaz de esquecer os modelos aristotélicos e kantianos e ser simplesmente hegeliano até o fim, como o foi em muito do seu restante (e melhor) trabalho (RORTY, 1982, p. 85).

A estratégia rortyana consiste em oferecer não um retrato historicamente fiel do pragmatista, mas a construção de uma hipótese sobre Dewey. Na nossa avaliação, um retrato do filósofo que deveria ser a imagem do próprio Rorty. A base do argumento no artigo Dewey between Hegel and Darwin é mostrar que o primeiro foi tradicionalmente interpretado como um filósofo que ocupa uma via média entre o idealismo e empirismo. Mas Rorty constrói um “Dewey hipotético” e propõe que ele seja visto principalmente como uma via média entre historicismo e cientismo. Nesse artigo, Rorty diz que a teoria pragmatista da verdade foi apresentada em duas formas distintas, com base no pensamento de James. Na primeira formulação, o sentido de verdadeiro corresponde apenas ao expediente em nossa maneira de pensar. Na segunda formulação, as ideias se tornam verdadeiras enquanto nos ajudam a entrar em relações satisfatórias com outras partes de nossa experiência. Rorty aceita a primeira formulação, mas critica a segunda, dizendo que ela liga a verdade de uma sentença com o expediente de crer que uma sentença seja verdadeira, além de ligar sentenças, que são entidades linguísticas com experiências, que são entidades introspectíveis (RORTY, 1995, p. 5). O problema que ele identifica em James e Dewey é que ambos falam como se as duas formulações fossem equivalentes, mas a primeira vê a verdade de maneira historicista (como propriedade de entidades linguísticas) e a segunda, não. Rorty quer demonstrar que, se 42


Dewey tivesse assumido a primeira formulação, não se teria debatido no livro Experiência e Natureza com questões como distinções proposicionais e não proposicionais, propriedades do agente e do ambiente, experiência mais organizada e menos organizada. Com isso, Dewey acaba por se submeter à visão predominante em filosofia e sua tentativa de se livrar das distinções clássicas da metafísica fracassa. Nesse sentido, Rorty insiste em que Dewey deveria ter abandonado o termo experiência ao invés de redefini-lo. Ele deveria ter concordado com Peirce em que a sensação é diferente da cognição, que essa última só é possível para usuários da linguagem. A primeira formulação é historicista, contendo o germe da linguagem, e a segunda contém a essência do empirismo (RORTY, 1995, p. 7). Rorty pretende relacionar o historicismo e o cientismo para argumentar a favor da relação entre Hegel e Darwin enquanto propósito para explorar a relação entre experiência e natureza como linguagem. Já que a teoria pragmatista não pode ser idealista, Rorty se apropria do hegelianismo de Dewey apenas em sua dimensão histórica. Nessa interpretação, Dewey e James deveriam ter considerado, por exemplo, que, na declaração x é verdadeiro, temos um predicado de sentenças e não de experiências. Isso quer dizer que no lugar da experiência está a linguagem e que experiência e linguagem precisam de um meio em que o homem e o mundo não se separem. Esse meio poderia ser o naturalismo proposto por Darwin. Desse modo, Rorty diz que Dewey sugere que podemos ver Darwin como uma tentativa de naturalizar Hegel (RORTY, 1995, p. 9). Hall (1994, p. 83) sugere que para Rorty a linguagem é uma noção mais adequada para referir-se à experiência histórica, holística e antifundacionista. No entanto, Dewey não poderia efetuar essa substituição, pois a linguagem já se constitui, na sua obra, como a principal forma de experiência a partir das relações que os organismos humanos estabelecem entre si e com o ambiente. É com base nesse naturalismo que Rorty rejeita o que chama de elementos peirceanos do pensamento de Dewey. Rorty observa também que as noções de lógica, de método, de ciência e filosofia na obra de Dewey são marcadas pelo pensamento de Peirce. No esforço de interpretar Dewey como historicista – uma espécie de filósofo que mereceria seu elogio - Rorty desfigura em Dewey a noção de experiência, ignorando a reflexão desse autor sobre a nossa continuidade como organismos, sobre nossas necessidades e impulsos vitais de criaturas humanas (HALL, 1994, p. 83). Dessa forma, as influências do hegelianismo e do darwinismo sofrem modificações para se adequar ao “Dewey hipotético” de Rorty. Ele interpreta Hegel pelo seu historicismo e não pelo seu idealismo e Darwin pelo seu positivismo e não pelo seu vitalismo. Assim, Rorty cria um Dewey que transita entre os dois extremos do historicismo e do cientismo, mais do 43


que entre o idealismo e empirismo. Para construir esse “Dewey hipotético”, Rorty tenta extrair implicações sobre o que seria o pensamento desse autor se a experiência fosse substituída pela linguagem. Mas o fato é que Dewey está mesmo preocupado é em investigar o caráter da relação entre experiência e natureza e buscar as bases metafísicas de seu pensamento. Portanto, traduzir o pensamento de Dewey numa terminologia linguística pode subverter o propósito desse filósofo em relação aos problemas que ele pretende abordar (HALL, 1994, p. 84). Na interpretação de Rorty, segundo Hall, Dewey teria uma dimensão peirciana e outra jamesiana. Rorty tentaria manter em sua apropriação apenas a dimensão jamesiana, uma vez que em James há a possibilidade teórica de ampliar o vocabulário da filosofia para outras áreas, como a literatura, por exemplo. Assim, nesse retrato, Rorty reúne em Dewey o historicismo hegeliano e a influência jamesiana, o que permite a abordagem de novos vocabulários e favorece a proposta de uma etapa pós-filosófica. Desse modo, a influência de Pierce sobre Dewey, não é bem vinda para Rorty. De acordo com ele, Dewey mantém a descrição do método científico como um procedimento seguro, subordinando-se, portanto, ao papel da experiência na descrição do conhecimento, ao passo que os neopragmatistas substituem a experiência pela linguagem e deixam de lado o discurso sobre o método científico, uma vez que a distinção entre ciência e não ciência foi superada pelo trabalho de Tomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas. Rorty afirma que tudo o que aconteceu na filosofia da linguagem desde Quine torna difícil a reconstrução das pressuposições fundacionistas necessárias para levar a noção de método a sério. Rejeitando as noções deweyanas de conhecimento e método, Rorty prossegue em sua descrição do “Dewey hipotético”: Se Dewey tivesse sido persuadido por James a abandonar o cientificismo e a metodolatria, ele poderia concordar com Davidson em que não há nada a ser dito a respeito da verdade que seja análogo ao que os epistemólogos querem que seja dito. Uma vez tendo assumido, como fez Peirce, que crenças são hábitos de ação e não tentativas de representar a realidade e, como fez Davidson, que a crença é em sua natureza verídica, pode-se tomar a moral do naturalismo como indicando que o conhecimento não é um tipo natural que precisa ser descrito e estudado, ao invés de entendê-lo como recomendando o desenvolvimento de uma epistemologia naturalizada. Um Dewey assim modificado poderia ter dado boas vindas ao argumento de Davidson de que a verdade não é uma noção epistêmica (RORTY, 2000, p. 42).

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Essas objeções formuladas por Rorty sobre o naturalismo de Dewey e sua confiança no método científico são partes fundamentais do debate acerca dos aspectos da filosofia de Dewey que são problemáticos para os propósitos da apropriação rortyana. Um de nossos objetivos é mostrar que Rorty, ao estipular um Dewey ideal, abandona o projeto original desse pensador, principalmente a sua noção de experiência e, conseqüentemente, abandona as discussões sobre a teoria da verdade e as formulações deweyanas do método científico. Dewey é apresentado por Rorty na condição de herói destruidor da velha ontologia. Um pensador que considera haver pouco a ser dito sobre a verdade, de tal forma que os filósofos devem, explícita e conscientemente, restringir-se à justificação, enquanto asserção garantida, ou seja, só aceitar como verdadeira uma sentença que apresente o máximo de garantias possíveis. Mas, mostramos que, para Dewey, como a mente visa a uma crença prática, a transformação que produz é guiada pela atividade experimental. Ao contrário de Rorty, Dewey declara que é possível o procedimento de justificação experimental de uma crença. Mesmo assim, o conceito deweyano de experiência é deixado de lado por Rorty, uma vez que ele procura não se envolver com a discussão sobre os procedimentos da investigação científica, porque, segundo ele, só é possível justificar crenças para uma determinada audiência (RORTY, 2000, p. 47). Partindo da noção deweyana de que é na experiência que se patenteiam as diversas consequências do método científico, vemos que as ideias, concepções e teorias são instrumentos de uma reorganização ativa do ambiente, removendo dificuldades e perplexidades, cuja prova de validez deriva do cumprimento de um objetivo: sua operacionalidade. Assim, a teoria da verdade formulada por Dewey resulta da modificação da concepção tradicional da relação entre experiência e razão. Em nossa leitura de Dewey, diferentemente do que escreve Rorty, há muito para se dizer sobre a verdade, desde que a ideia correspondente seja derivada de hipóteses que funcionem adequadamente. Para Dewey, a verdade é o nome abstrato aplicado ao conjunto dos casos reais, previstos e desejados, que recebem confirmação de suas premissas em suas obras e consequências. Portanto, uma ideia e uma concepção não são mais do que uma reivindicação ou injunção, um plano de agir de certo modo. O que Dewey busca nas teorias é sua capacidade de confirmação, corroboração e verificação nas situações subsequentes. O abandono da natureza da verdade é condição para uma teoria do conhecimento, que ao invés de postular a “verdade”, no sentido universal e abstrato, investe no advérbio “verdadeiramente”. Sobre este sentido de verdade como utilidade, Dewey escreve:

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Generoso é quem procede generosamente. Pelos frutos se conhece a árvore. É verdadeiro aquilo que nos leva à verdade – a capacidade demonstrada para servir como tal guia é justamente o que designamos pelo termo “verdade”. O advérbio “verdadeiramente” é algo mais fundamental que o adjetivo “verdadeiro” ou o nome de “verdade”, pois, como advérbio, expressa um modo, uma forma de agir (1959, p. 154).

Muitos estudiosos se opõem à maneira pela qual Rorty se apropria da filosofia de Dewey. Susan Haack (1995) diz que, enquanto o pragmatismo clássico é uma tentativa de entender e criar uma estrutura nova que legitima a investigação científica, o pragmatismo de Rorty se afirma como um abandono da própria tentativa de aprender mais sobre a natureza e sobre as condições de adequação da investigação. Lavine (1995), por exemplo, alega que o “método científico” é o conceito central de Dewey, sendo possível dizer que seu objetivo é mais a reforma da metafísica do que sua eliminação. Segundo Lavine (1995), o fato de Dewey se queixar da fixidez dos processos ou do absoluto em termos filosóficos não é razão para negar o conhecimento ou considerá-lo “repugnante”. É neste espaço, conforme Lavine, que Dewey se distancia das pretensões do seu seguidor Rorty. Esta intérprete da filosofia americana descreve Rorty ao estilo de Harold Bloom, colocando-o “na condição de filho, soberbamente equipado com uma energia vigorosa, pós-moderna, no gozo de deslocar o filósofo pai em benefício de sua teoria” (LAVINE, 1995, p. 42). Na mesma direção, Malachowski (2002) afirma que os críticos da apropriação de Rorty reconhecem que Dewey nunca virou totalmente as costas à metafísica, que está presente particularmente na obra Experiência e Natureza, constituindo ali um forte ponto de atração para muitos pensadores pragmatistas. David Hall (1994), embora observe a inadequada substituição do conceito de experiência pelo de linguagem, assegura que Rorty não está em busca de uma nova teoria pragmatista. Ele pretende se centralizar na cultura, incluindo todas as possibilidades humanas de descrições e redescrições da realidade, como romances e metáforas, enfim, com todas as práticas possíveis. É nesse sentido que Rorty defende que não precisamos de uma metafísica ou de teorias epistemológicas, uma vez que temos a sensibilidade necessária para construir novas possibilidades de caráter social e institucional. Assim, cabe ao filósofo o papel de conversar, mediar, facilitar, estar aberto às novas possibilidades. Hall justifica o revisionismo de Rorty como uma “licença poética” para pensar Dewey à sua maneira. Com base nisto, Hall vê a interpretação de Rorty como uma contribuição que permite ver nas obras de Dewey um valioso recurso intelectual para nossos dias. 46


Ramberg (1998) sugere que as controvérsias sobre as apropriações que Rorty faz do pragmatismo podem resultar de duas perspectivas, a deflacionista e a demonizadora. Os deflacionistas são simpáticos a Rorty, concordando em questões pontuais, mas estão preocupados com a retórica radical rortyana expressa na obra A Filosofia e o Espelho da Natureza, marcada por um ceticismo em relação à filosofia. Criticam em Rorty seus efeitos dramáticos de rejeição da metafísica e da epistemologia. Mas os deflacionistas, segundo Ramberg, sabem que Rorty não propõe o fim da filosofia, nem quer precipitar a era pósfilosófica. O que ele sugere é que não cabe mais à filosofia estabelecer critérios de legitimação para as várias formas de conduta humana. Os demonizadores opõem-se ao estilo retórico de Rorty e pensam que ele realiza um ataque à própria filosofia. Eles rejeitam em Rorty o que consideram seu desprezo pela ciência e pelo método. Segundo os demonizadores, não é possível substituir a filosofia pelo gênero literário, mas sim seguir as aspirações de Peirce: “resgatar o bom navio da Filosofia para o serviço da Ciência” (HAACK, 1998, p 41). Concordamos que Dewey não abandona a cena filosófica de uma tradição sistemática e normativa como Rorty pretende que ele tenha feito. Isso fica claro a partir da exposição que fizemos das ideias de Dewey em Experiência e Natureza. Dewey dificilmente seguiria Rorty na defesa de uma cultura pós-filosófica, principalmente na ideia que nada de construtivo a filosofia poderia fazer. Da mesma forma, a visão de ciência postulada por Dewey é bem distinta da versão rortyana, para a qual a ciência é apenas uma maneira de falar, outro vocabulário. Para o propósito da nossa reflexão, parece não existir, como Rorty quer sustentar, uma posição pós-metafísica e pós-epistemológica em Dewey, embora o historicismo nele esteja presente de maneira marcante. 4. Conclusão Para além das caracterizações deflacionistas ou demonizadoras, pretendemos, numa leitura crítica do argumento rortyano sugerir que, embora Rorty acuse Dewey de tentar adotar uma metafísica empírica, unindo duas posturas que ele considera inconciliáveis, a terapêutica e a sistemática, ele parece fazer exatamente a mesma coisa. Ele parte das críticas aos “erros” da tradição metafísica ocidental, mas apresenta como solução a ideia de uma situação filosoficamente ideal, em que filósofos edificantes e sistemáticos, mediados pela conversação, serão capazes de promover uma nova cultura filosófica, permitindo o avanço da humanidade. Propor essa situação ideal certamente envolve não uma “metafísica empírica”, mas uma verdadeira “metafísica da cultura”, já implícita no título Natureza e Cultura, que Rorty sugere 47


para a obra de Dewey. Essa metafísica implícita estaria sendo escamoteada pela retórica de Rorty, quer ele queira, quer não. Rorty é deweyano, mas não pelos aspectos que elogia em Dewey e sim pelos aspectos que critica nesse autor. Todo o esforço crítico de Rorty se baseia em desqualificar a obra Experiência e Natureza como um livro de metafísica para caracterizá-la como um mero estudo histórico e sociológico da tradição metafísica. Com isso, ele pretende realçar não apenas as dimensões historicistas e políticas na filosofia de Dewey, mas também a noção de que ele seria um filósofo edificante. Rorty afirma que Dewey tinha tudo para ser um teórico radical da experiência, mas que optou por apenas redefini-la. Agindo assim, na verdade Rorty gesta a sua própria metafísica. Desse modo, é possível que Rorty seja deweyano não porque evitou a metafísica empírica de Dewey, mas porque elaborou uma nova metafísica da cultura. Essa última pode ser fundamentada na crítica radical da tradição epistemológica moderna e caracterizada a partir de uma perspectiva hermenêutica conversacional. Nessa leitura, pretendemos também mostrar, em acréscimo, que a perspectiva deweyana da metafísica empírica não é incompatível com o projeto da obra Experiência e Natureza. O fato de Dewey combater os dualismos da tradição filosófica não o retira da cena da filosofia sistemática e muito menos nos impede de considerá-lo um filósofo edificante. A nossa tentativa é igualmente verificar a hipótese de que a metafísica empírica de Dewey possui consistência e que, embora envolva uma visada científica para a filosofia, ela possui uma abertura para a historicidade e a contingência, de tal modo que, sob esse aspecto, muito se aproxima daquilo que estamos denominando “metafísica da cultura” em Rorty. O grande esforço de Dewey foi defender uma espécie de dialética entre homem e mundo, amparada no naturalismo e no historicismo. Pensamos que, na perspectiva de Dewey, a substituição de experiência por linguagem não pode ser realizada, porque a linguagem faz parte da experiência, inclusive como instrumento. A experiência é entendida como uma atividade, um atributo da vida em toda sua extensão. Mas Dewey não vê a experiência - ao menos a humana - como algo que se coloca por trás da linguagem, como algo que o fundamente, visto que a linguagem é um dos instrumentos da vida que se acha presente na experiência ativa dos homens. Dewey não negou que a experiência humana seja essencialmente linguística, mas apresentou um conceito mais amplo, um conceito naturalista de experiência como atividade que ultrapassa a linguagem, podendo mesmo assumir formas pré-linguísticas ou não-linguísticas. A desconsideração desse aspecto de sua filosofia pode ter levado Rorty a enfatizar, na construção de seu “Dewey hipotético”, a dimensão linguística da

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experiência humana, de caráter histórico e cultural, em detrimento de sua dimensão nãolinguística. Referências DEWEY, J. Lógica: teoría de la investigación. México: Fundo de Cultura, 1950. ______. Como pensamos. 2ª edição. Trad. Godofredo Rangel. São Paulo. Nacional, 1953. (Atualidades Pedagógicas). ______. Reconstrução em filosofia. 2ª edição. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959. ______. Libertad y cultura. Trad. Rafael Castillo Dibildox. México, UTEHA, 1965. ______. Individuality and experience. Carbondale, Southern Illinois University Press, 1984. v. 2, p. 55-61. ______. A arte como experiência. 2ª edição. Trad. Murilo Otávio Paes Leme, Anísio S. Teixeira, Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1985 (Os pensadores). ______. Experiência e natureza. 2ª edição. Trad. Murilo Otávio Paes Leme, Anísio S. Teixeira, Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1985 (Os pensadores). EDMAN, I. John Dewey: sua contribuição para a tradição americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1990. GOUINLOCK, J. What is legacy of instrumentalism? Rorty Interpretation of Dewey. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. HAACK, S. Vulgar pragmatism: An Unedifying prospect. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. ______. Quanto àquela frase: estudando com o espírito literário. In: PINTO, Paulo Roberto Margutti e MAGRO, Cristina (org.). Filosofia Analítica, Pragmatismo e Ciência. Belo Horizonte: Editora: UFMG, 1998. HALL, D. L. Richard Rorty. Prophet and Poet of the New Pragmatism. Albany. State University of N. York Press, 1994. JAMES, W. Pragmatismo e outros textos. 2ª edição. Trad. Jorge Caetano da Silva e Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1985. LAVINE, T. Z. America and constestations of modernity: Bentley, Dewey, Rorty. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. LAMBERT, D. C. Pragmatism and naturalismo: a inevitable conjuction. In: Cognitio: Revista de Filosofia, n. 2. Centro de Estudos de Pragmatismo – USp. São Paulo: Educ, 2001, p. 76-87. MALACHOWSKI, A. Richard Rorty. Princeton University Press, 2002.

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Filosofia e Fantasia Privada: Derrida por Richard Rorty versus Derrida por ele mesmo Lucas Nogueira do Rego Villa Lages6 Resumo: Este artigo busca analisar a leitura feita por Richard Rorty, na obra “Contingência, Ironia e Solidariedade”, acerca do pensamento final do filósofo francês Jacques Derrida, comparando-a com a leitura que este filósofo, posteriormente, faria de si mesmo em conferência proferida com o tema “Desconstrução e Pragmatismo”. Rorty parece sugerir que Derrida, definitivamente, rompe com os limites entre filosofia e literatura, abandonando a preocupação com a esfera pública e lançando seu pensamento em uma audaciosa aventura pela fantasia privada. O próprio Derrida, no entanto, em resposta a esta leitura feita de sua obra pelo filósofo americano, refuta-a, assumindo seu compromisso com a filosofia e afirmando a impossibilidade de separar o filosofar de um compromisso com a dimensão pública. O Derrida de Rorty, aquele preocupado com a criação de um novo vocabulário e desprendido da lógica e da argumentação racional, embora contrário à leitura que Derrida faz de si mesmo, pareceria um pensador melhor encaixado no contexto da contemporaneidade. Palavras-chave: Rorty, Derrida, Desconstrução, Ironia, Fantasia Privada. Abstract: This article tries to analyze the Richard Rorty’s interpretation, at “Contingency, Irony and Solidarity”, of Jacque Derrida’s last philosophy, comparing it with Derrida’s self-interpretation. Rorty sugest that Derrida definitely breaks the bounds between philosophy and literature, abandoning the concern about the public sphere and throwing his thought in an adventure over the private fantasy. Derrida himself, however, replying Rorty’s reading, assume his commitment with philosophy and the impossibility of divide it from the public dimension. Rorty’s Derrida, the one concerned about the creation of a new vocabulary and defying logic and rational argumentation, looks like a thinker more framed at the contemporary context. Keywords: Rorty, Derrida, Deconstruction, Irony, Private Fantasy.

1. Introdução O presente artigo tem como objetivo analisar a leitura que Richard Rorty faz do filósofo francês Jacques Derrida, tomando como base a obra Contingência, Ironia e Solidariedade (RORTY, 1994), mormente seu capítulo seis, incluso na parte II. Procura, também, confrontar essa leitura com a que Derrida faz de si próprio, embasando-se para tal na conferência Notas sobre Desconstrução e Pragmatismo (DERRIDA, 2005), por ele proferida no Collège International de Philosophie de Paris. Pretendemos, então, com esta análise, descobrir se Derrida concorda com a leitura que Richard Rorty faz de sua filosofia desconstrucionista e se existe, de fato, uma relação tão estreita entre desconstrução e pragmatismo. Derrida é, como sugere Rorty, o ápice da teoria 6

Mestrando em Filosofia (Ética e Epistemologia) pela Universidade Federal do Piauí – UFPI e Especialista em Ciências Criminais pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Bacharel em Direito e Licenciatura Plena em Filosofia, ambos na Universidade Federal do Piauí – UFPI. Atualmente é advogado, professor das faculdades FAP e NOVAFAPI e pesquisador bolsista da FUNPESQ. Email: lucasvilla@globo.com 51


ironista, tendo sido o primeiro filósofo a mergulhar, através da literatura, no totalmente privado, desistindo, assim da necessidade da argumentação com a tradição filosófica? A este questionamento buscaremos nos ater, confrontando o Derrida de Rorty com a auto-imagem que Derrida parece ter de si. 2. O Derrida de Richard Rorty Toda a obra Contingência, Ironia e Solidariedade, de Richard Rorty (1994), tem por preocupação discorrer sobre a impossibilidade de conciliação perfeita entre o público e o privado, propondo, apesar disso, o modelo do ironista liberal como a mais adequada combinação destas duas esferas para a contemporaneidade. Inicialmente faz sua apologia ao ironismo na esfera privada, dissertando sobre seus grandes heróis ironistas, ou “poetas fortes”, para utilizar a expressão que o próprio Rorty colhe de Harold Bloom: Proust, Nietzsche, Heidegger e, por fim, Derrida. O ironista, segundo Rorty, é este capaz de ultrapassar a metafísica, abandonando a busca do universal, da Verdade, em detrimento de um desejo verdadeiramente artístico de autocriação privada através do desenvolvimento de um novo vocabulário, de um estilo. No sexto capítulo da referida obra, intitulado Da Teoria Ironista às Alusões Privadas: Derrida (RORTY, 1994), Rorty dedica-se ao pensamento ironista de Derrida, sugerindo que este, em sua última fase, teria, por meio da privatização de seu pensamento, superado a dicotomia entre ironismo e teoria. Rorty inicia o capítulo afirmando que Derrida está para Heidegger assim como Heidegger está para Nietzsche. Teriam, Heidegger e Derrida, sido os leitores mais inteligentes e mais devastadores críticos de seus antecedentes. Travariam com seus antecessores uma relação dúbia de aprendizado e necessidade de ultrapassamento. Derrida teria aprendido com Heidegger a importância dos fonemas, porém ter-se-ia apercebido que “a litania de Heidegger é apenas a de Heidegger, e não a do Ser ou da Europa” (RORTY, 1994, p. 159). Derrida pretenderia, assim, como proposta de ultrapassamento da filosofia heideggeriana, descobrir um modo de “quebrar a tentação de se identificar com algo de grande – algo como a “Europa” ou o “apelo do Ser” ou “o Homem” (RORTY, 1994, p. 159). Segundo Rorty, a obra de Derrida, assim como a de Heidegger, se dividiria em um período inicial, mais profissional, e em um período posterior, de escrita mais excêntrica, pessoal e original. Este último período é o que mais interessa a Rorty. É o último Derrida que, segundo Rorty, “privatiza o seu pensamento filosófico e, com isso, quebra a tensão entre 52


ironismo e teoria” (RORTY, 1994, p. 163). Abandona a tentativa de argumentar com seus antecessores, buscando ultrapassá-los racionalmente, substituindo este projeto pela pretensão de fantasiar sobre estes antecessores, jogando com eles e dando livre curso às cadeias associativas que se originariam deste jogo. Estas fantasias, entretanto, não teriam qualquer moral ou uso público (político ou pedagógico). É esta fantasia essencialmente privada que, segundo Rorty, é “o produto final da atividade teórica ironista” (RORTY, 1994, p. 163). Uma vez reconhecida a impossibilidade de conciliação entre o público e o privado, da total relação de continuidade ou causalidade entre estas esferas, mergulhar na fantasia privada parece ser a única possibilidade de adotar, teoricamente, um referencial para si próprio. É a única saída para o ironista buscar ir além de seus antecessores sem recair nos mesmos modelos que eles utilizaram. Vejamos o que, a este respeito, afirma o próprio Rorty: Cair na fantasia privada é a única solução para o problema auto-referencial com que tal actividade teórica depara, o problema de saber como passar à frente dos nossos antecessores sem fazer exactamente aquilo que se repudiou terem feito. Assim, considero que a importância de Derrida reside em ter tido a coragem de abandonar a tentativa de unir o público e o privado, de deixar de tentar conciliar uma busca de autonomia privada e uma tentativa de ressonância e utilidade pública. Derrida privatiza o sublime, tendo aprendido com o destino dos seus antecessores que o público nunca pode ser mais do que belo” (RORTY, 1994, p. 163).

É assim que o último Derrida aprende que o grande desafio não é atingir a natureza ou estrutura da linguagem, mas sim criar um estilo diferente, um vocabulário único, capaz de tornar suas obras impossíveis de serem comparadas com as de seus antecessores, e isto por um motivo simples: não haveria como estabelecer critérios de julgamento. A luta não é mais por criar neologismos, mas por forjar um estilo. Por fim, o outro grande salto atribuído por Rorty a Derrida seria o de desenvolver a tal ponto um novo estilo e uma nova linguagem que seria capaz, conseqüentemente, de abandonar os jogos da linguagem antiga e ultrapassar a necessidade de argumentar. O fim da argumentação é o estágio último de “evolução” do estilo de Derrida, segundo Rorty. Vejamos o que, a este respeito, afirma o filósofo americano: Considero que Derrida não pretende dar um único passo dentro do jogo de linguagem que distingue entre fantasia e argumentação, entre filosofia e literatura, entre escrita séria e escrita lúdica – o jogo de linguagem da grande époque. Derrida não vai jogar segundo as regras do vocabulário final de outro (RORTY, 1994, p. 171/172).

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É através deste abandono da antiga linguagem que Derrida, segundo Rorty, ultrapassaria a distinção entre Filosofia e Literatura, entre o Racional e o Irracional. Derrida não estaria mais preocupado com a argumentação ou com a racionalidade, não teria mais compromisso com a tradição filosófica. Ao trabalho de Derrida já não faria sentido a tensão entre o sério e o lúdico: Derrida não quer mais ser filósofo, quer ser poeta forte! É a figura do poeta forte, comprometido com a autocriação privada, que Rorty atribui ao ironista Derrida, quando afirma que ele (...) está a tentar criar-se a si próprio ao criar seu próprio jogo de linguagem, a tentar evitar dar à luz outra criança através de Sócrates, de ser mais uma nota de pé-de-página a Platão. Está a pôr em funcionamento um jogo que corte transversalmente a distinção racional-irracional. Mas enquanto professor de Filosofia tem dificuldade de consegui-lo. Enquanto seria bastante primitivo perguntar a Proust se devíamos ler o seu romance como história social ou como um estudo de obsessão sexual ou perguntar a Yeats se realmente acreditava em todas aquelas tolices sobre as fases da Lua, dos filósofos pretende-se tradicionalmente que respondam a este tipo de pergunta. Se nos anunciamos como romancistas ou poetas, é-nos poupada uma série de perguntas difíceis devido à névoa de divino que envolve o “artista criativo”. Mas dos professores de filosofia pretende-se que sejam feitos de uma matéria mais resistente e que se exponham (RORTY, 1994, p. 172).

Rorty sugere, então, colocar Derrida neste espaço de indecidibilidade entre a filosofia e a literatura, entre a razão e a criatividade, já que considera que “sua finalidade é a mesma autonomia que Proust e Yeats tinham em vista” (RORTY, 1994, p. 172). A vantagem de tomar esta postura em relação a Derrida, segundo Rorty, é assim (...) podermos evitar dissecar sua escrita segundo linhas estabelecidas por outros e podermos, em vez disso, sentar-nos e apreciar essa escrita – esperar que conforto ou exemplo ela nos pode oferecer, se se verifica ser relevante para as nossas próprias tentativas de autonomia (RORTY, 1994, p. 172).

Assim se evitaria incorrer em deslizes como aqueles que Rorty atribui a Gasché e Culler, de sugerir que Derrida teria “demonstrado algo” ou “refutado alguém”. Por fim, “significa (...) abandonar a ideia de que Derrida desenvolveu um ‘método desconstrutivo’ (...)” (RORTY, 1994, p. 173). Segundo Rorty, na obra do último Derrida “(...) não há nenhum método envolvido, se um método é um processo que pode ser ensinado por referência a

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regras” (RORTY, 1994, p. 174). O que Derrida pretende não é traçar um catálogo de regras, mas sim descobrir o que aconteceria se nós agíssemos desconsiderando-as: A atitude de Derrida para com todas as regras é a de que, evidentemente, é necessário segui-las se se quiser argumentar com outras pessoas, mas que há outras coisas a fazer com os filósofos além de argumentar com eles. Essas regras tornam o discurso argumentativo possível, mas Derrida responde à pergunta “O que aconteceria se as ignorássemos?” (RORTY, 1994, p. 174).

É assim que Derrida se transubstancia no herói ironista de Rorty, aquele que conseguiu, sem traumas, pelo mergulho no privado, abandonar a necessidade de argumentar, que desistiu de duelar segundo as regras dos jogos da linguagem tradicionais. Aquele que pretende criar novos jogos, ignorando as regras do passado. É essa consciência de que o processo de auto-invenção do poeta forte versa sobre a sedução através da linguagem, e não do convencimento pela argumentação racional, que caracteriza o pensamento ironista que Rorty sugere para a “pós-modernidade” e que teria atingido seu apogeu em Derrida. Onde estaria, então, a vantagem de se desenvolver um estilo como o de Derrida? Vejamos o que diz Rorty: Qual é a vantagem de escrever desta maneira? Se se quer argumentos que alcancem conclusões, não há vantagem nenhuma. Como já disse, não há nada de proposicional a retirar da experiência de o ler – tal como não há no caso dos textos do último Heidegger. Deve-se, então, julgar essa escrita por critérios “literários” ou “filosóficos”? Não, porque, tal como nos casos da Fenomenologia do Espírito, de Em Busca do Tempo Perdido e de Finnegans Wake, não há critérios anteriormente disponíveis de nenhum dos tipos. Quanto mais original é um livro ou um tipo de escrita, quanto mais destituído de precedentes é, menos provável é dispormos de critérios e menos sentido faz tentar atribuir-lhe um gênero. Temos de ver se podemos encontrar-lhe um uso (RORTY, 1994, p. 174/175).

Essa auto-invenção através do estilo que promove o último Derrida é responsável, segundo Rorty, pelas características mais maduras do ironismo, ou seja: a) o mergulho no privado, percebendo sua incomunicabilidade com o público; b) o abandono da necessidade de argumentar com a tradição filosófica, tornando-a apenas objeto de suas fantasias privadas; c) a derrubada da fronteira entre a filosofia e a literatura, com a criação de um novo vocabulário; d) a superação da metafísica e da nostalgia da transcendentalidade. Este, então, parece ser o perfil do Derrida de Richard Rorty.

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3. Derrida por ele mesmo: resposta à leitura rortyana Em encontro realizado no Collège International de Philosophie de Paris organizado por Chantal Mouffe, Derrida teve a oportunidade de se manifestar sobre a leitura que Richard Rorty faz de sua obra. Este pronunciamento de Derrida foi, posteriormente, publicado com o título de Notas sobre Desconstrução e Pragmatismo (DERRIDA, 2005, p. 151/170). Neste pronunciamento, Derrida parece rechaçar, em muitos pontos, a leitura que Rorty faz de seu pensamento desconstrucionista. No que tange, por exemplo, ao suposto mergulho no privado que Derrida promoveria, percebendo a impossibilidade de conciliação do mesmo com o público, vejamos o que afirma: (...) gostaria de dizer o seguinte, especialmente para Richard Rorty, por quem sinto uma grande gratidão pela leitura, ao mesmo tempo generosa e tolerante, que tem feito de vários de meus textos. Entretanto, devo dizer que obviamente não posso aceitar a distinção público/privado da maneira em que a usa em relação com minha obra. (...) para mim o privado não se define pelo singular (não digo pessoal, porque acho esta noção um tanto confusa) ou pelo secreto. Ao tempo em que trato de tematizar uma dimensão do secreto que é absolutamente irredutível ao público, também resisto à aplicação da distinção público/privado a esta dimensão7 (DERRIDA, 2005, p. 154).

Portanto, Derrida afirma que Rorty estaria confundindo aquilo que ele chama “secreto” com a esfera do “privado” ou do “pessoal”. Esta distinção entre o “secreto” e o “privado”, entretanto, não parece ficar muito clara em seu pronunciamento. Rorty também afirma que Derrida teria abandonado a necessidade de argumentar e que a desconstrução já não teria mais o compromisso de atuar na esfera argumentativa. A este respeito, vejamos o que diz Derrida: Antes de tudo, a questão da argumentação. Estamos aqui para discutir e para trocar argumentos da maneira mais clara, unívoca e comunicável possível. Por outro lado, a questão que gira mais freqüentemente em torno do tema da desconstrução é a da argumentação. Acusam-me – se é que se acusa aos desconstrucionistas – de não argumentar ou que não gosto da argumentação, etcétera. Isto é, obviamente, uma difamação. Mas esta difamação deriva do fato de que há argumentações e argumentações, e isto é assim porque em contextos de discussão como este, onde governa uma forma proposicional, um certo tipo de forma proposicional, e onde desaparece necessariamente um certo tipo de micrologia, onde a atenção à linguagem resta necessariamente reduzida, a argumentação é claramente essencial. E, 7

As traduções são de minha autoria.

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obviamente, o que me interessa são outros protocolos, outras situações argumentativas onde não se renuncia à argumentação só porque se rechaça discutir sob certas condições (DERRIDA, 2005, p. 152).

Parece, então, que Derrida rechaça a leitura que Rorty dele faz quando sugere que não há, por parte dele, nenhum compromisso com a argumentação. Derrida esclarece que está, sim, muito preocupado com a argumentação – só que uma argumentação que não é, necessariamente,

proposicional.

A

ideia

seria,

portanto,

forjar

novos

protocolos

argumentativos. Sobre a afirmação de Rorty de que Derrida teria derrubado a fronteira entre filosofia e literatura e que o mesmo já não tinha mais preocupação em produzir trabalhos filosóficos ou ser lido como um filósofo, mergulhando, através da adesão à literatura, na idiossincrática fantasia privada, deixemos mais uma vez falar e gesticular o espectro de Derrida: Gostaria de insistir nisto porque é uma acusação recorrente, e dada a falta de tempo e contexto, terei que falar um pouco brutalmente: jamais tratei de confundir literatura e filosofia ou de reduzir a filosofia à literatura. Presto muita atenção à diferença de espaço, de história, de ritos históricos, de lógica, de retórica, de protocolos e de argumentação. Tratei de prestar a máxima atenção a esta distinção. A literatura me interessa, supondo que, a minha maneira, a pratico ou a estudo nos outros, precisamente como algo que é completamente oposto à expressão da vida privada. A literatura é uma instituição pública de recente invenção (...) não sou capaz de separar a invenção da literatura, a história da literatura, da história da democracia. (...) Em todo caso, a literatura é, em princípio, o direito de dizer algo, e é para grande benefício da literatura que seja uma operação a uma só vez política, democrática e filosófica, na medida em que a literatura permite formular perguntas que freqüentemente se reprimem em um contexto filosófico (DERRIDA, 2005, p. 155/156).

E, mais adiante, mostra que não se considera um literato, mas um filósofo: (...) apesar de que me parece necessária a ironia para aquilo que faço, ao mesmo tempo – e é uma questão de memória – tomo muito a sério o tema da responsabilidade filosófica. Sustento que sou um filósofo e quero seguir sendo um filósofo, e essa responsabilidade filosófica é algo que dirige meu trabalho (DERRIDA, 2005, p. 159).

Derrida, então, tanto nega que a literatura seja a expressão do privado, como que tenha ele abandonado o compromisso com a tradição e a escrita filosófica em favor de um mergulho nas belas letras.

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Por fim, quanto à alegação de Rorty de que Derrida teria superado qualquer tipo de nostalgia da transcendentalidade, vejamos, mais uma vez, o que sobre o tema afirma o filósofo da desconstrução: Algo que aprendi com as grandes figuras da história da filosofia, com Husserl em particular, é a necessidade de formular perguntas transcendentais para não ficar preso na fragilidade de um incompetente discurso empirista e, portanto, para evitar o empirismo, o positivismo e o psicologismo, é que resulta interminavelmente necessário renovar o questionamento transcendental. Mas esse questionamento deve renovar-se tomando em conta a possibilidade da ficção, do acidental e da contingência, assegurando assim que esta nova forma de questionamento transcendental só imite o fantasma da clássica seriedade transcendental, sem renunciar àquilo que, dentro desse fantasma, constitui um legado essencial (DERRIDA, 2005, p. 159).

A este posicionamento que não abandona a transcendência, mas dialoga com seu fantasma enfraquecido, Derrida chama de “quase-transcendentalidade”. Não há, portanto, na superação da metafísica derridiana, abandono da tradição, da transcendência ou da própria metafísica. O que há é um ultrapassamento sem abandono que se dá com o enfraquecimento da base dogmática e forte deste tipo de pensamento, com a transformação da tradição e do próprio ser em lembrança, rememoração, herança com a qual se dialoga, mas que já não pode mais ser levada totalmente a sério como era levada pelos pensadores do passado. É preciso, então, que a “quase-transcendentalidade” seja “a uma só vez, irônica e séria” (DERRIDA, 2005, p. 158). 4. Considerações Finais Percebemos, então, que Derrida parece rechaçar todos os “argumentos” de Rorty que fariam de si o grande herói da segunda parte de Contingência, Ironia e Solidariedade, o mestre da ironia que a teria levado a seu apogeu teórico. Entretanto, se lermos atentamente a resposta de Derrida a Rorty, perceberemos que, embora a mesma possa aparentemente consistir em uma tentativa de negação da leitura que o filósofo americano faz dele, o que ele sutilmente promove, através dela, é a confirmação, nas entrelinhas, de muito do que fora dito por Rorty. Não custa lembrar que escrever nas entrelinhas, obrigando o leitor a desmontar e desconstruir o texto, parece ser “a grande jogada” do estilo de Derrida e da “técnica de leitura” que ele chama desconstrução. Derrida, em sua resposta a Rorty, embora aparente argumentar ele, na verdade só se esquiva de seus questionamentos, negando-se a uma argumentação proposicional e fugindo

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das afirmações rortyanas através da criação de um novo vocabulário. É o que faz, por exemplo, quando rechaça a distinção privado/público em sua obra simplesmente substituindo a dimensão do “privado” pelo “secreto” (sem deixar clara a distinção entre os termos). Posteriormente, quando combate a afirmativa de que não estaria mais preocupado com a argumentação, afirma existirem “argumentações e argumentações” e que está sim preocupado com ela, mas com uma argumentação não proposicional (um novo protocolo de argumentação). Ora! O que foi este lance de Derrida, senão um jogo de palavras? Aparentemente negando, ele confirma não estar interessado no antigo protocolo de argumentação, recaindo, assim (porém sem admitir), justamente naquilo que Rorty dele afirmava. Acerca da distinção entre literatura e filosofia, não parece clara, também, em que consiste a marca que delimita as margens de cada uma destas formas de escritura no pensamento de Derrida. Embora ele se afirme um filósofo, sua preocupação com a autocriação privada por meio da criação de um novo vocabulário e a transformação da desconstrução em um estilo de escritura não torna de todo sem sentido imaginar que ele rompe as muralhas que separam o saber filosófico das belas letras. Não importa como Derrida pretenda definir ou deixar de definir a desconstrução - ela não é um método filosófico ou uma técnica filológica: é um estilo (literário) de escrita. Quanto à questão da superação da transcendência, mais uma vez Derrida utiliza-se de uma manobra lingüística para desviar-se das afirmações de Rorty: desta vez forja a figura do “quase-transcendental”, que, uma vez desprovido de fundamento metafísico, já não poderia mais ser chamado de transcendental (confirmando o ultrapassamento da metafísica que Rorty lhe atribui). O ser, então, já não se dá enquanto presença, mas somente, como em Heidegger, como rememoração de seus rastros e restos. Mas o que é, então, a metafísica, senão a crença no ser enquanto presença, enquanto ontos on? Por que, então, Derrida aparentemente esperneia em árdua luta, evitando assumir que Rorty talvez tenha trazido à superfície nuances importantes de seu pensamento? Por um motivo simples: ele não poderia aceitar ser explicado pelo vocabulário de outro. Seu impulso de autocriação restaria prejudicado se ele se permitisse ser narrado de acordo com a linguagem de Rorty. Aqui encontramos, finalmente, nossa chave interpretativa e, com ela, a possibilidade de conciliação entre o Derrida rortyano e o Derrida derridiano: a necessidade de se auto-inventar através de um estilo que não se submeta aos protocolos alheios. Nos termos de Rorty: “Derrida não vai jogar segundo as regras do vocabulário final de outro” (RORTY, 1994, p. 172), ou, nas palavras do próprio Derrida, “rechaço de plano um discurso que me 59


estipule um só código, um único jogo de linguagem, um único contexto, uma única situação” (DERRIDA, 2005, p. 158). Isso porque, conforme o filósofo francês, “obviamente o que me interessa são outros protocolos, outras situações argumentativas (...)” (DERRIDA, 2005, p. 153) – ou seja: a criação de um novo vocabulário, a auto-invenção através do estilo, como bem sugere Rorty. Aparentemente, portanto, e ao contrário do que uma primeira leitura poderia sugerir, há mais semelhanças do que diferenças entre o Derrida de Rorty e o Derrida do próprio Derrida, muito embora alguma parte do Derrida rortyano pareça ser, também, fruto da fantasia privada do pensador americano (e, assim, ele nos mostra o que aprendeu com o filósofo da desconstrução).

Referências DERRIDA, J. Notas sobre desconstrucción y pragmatismo. In: Desconstrucción y pragmatismo. Compilado por Chantal Mouffe. Buenos Aires: Paidós, 2005. RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Editorial Presença, 1994.

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Umberto Eco: da “Obra Aberta” para “Os Limites da Interpretação” Marcos Carvalho Lopes8 Resumo: O artigo investiga as transformações na abordagem que Umberto Eco dá a questão da interpretação na trajetória entre a Obra Aberta, na década de 60, para a ênfase nos limites interpretativos, a partir de meados dos anos 70.Nesta trajetória, o mago de Bolonha, parte de uma perspectiva fundada em Tomas de Aquino, dialogando com James Joyce, as vanguardas musicais, os estruturalismo e a semiótica de Peirce. O artigo mostra também como a perspectiva pragmática que Eco herda de Peirce formularia uma "metafísica detetivesca" centrada no conceito de abdução. O desenvolvimento do giro pragmático efetuado por Eco se distinguiria de modo forte da perspectiva neopragmatista de Richard Rorty. Palavras-chave: Interpretação, Pragmatismo, Semiótica, Eco, Neopragmatismo Abstract: This paper investigates the changes in Umberto Eco's approaches about the subject of the interpretation in the 60's, beginning with Open Work, culminating at the emphasis in the limits of interpretation, up to the mid 70's. The wizard of Bologna uses in his analyses the ideas from Thomas Aquinas, James Joyce, avant-garde music, structuralism and the semiotics of Peirce. This article also shows how the pragmatic approach that Eco inherits from Peirce would help him formulate an "investigator metaphysics" centered on the concept of abduction. The development of the pragmatist turn made by Eco differs strongly from Richard Rorty´s neo-pragmatism. Keywords: Interpretation, Pragmatism, Semiotics, Eco, Neo-pragmatism

Alcé la cara al cielo Inmensa piedra de gastadas letras: Nada me revelaron las estrellas (Octavio Paz ) “When I was a boy, my logical bent caused me to take pleasure in tracing out upon a map of an imaginary labyrinth one path after another in hopes of finding my way to a central compartment.” (Charles Peirce)

1. Um fio de Ariadne no Labirinto Medieval Neste artigo não pretendo construir uma visão completa da obra de Umberto Eco. Tal tarefa seria de enorme dificuldade e demandaria muitos anos, haja vista a extrema erudição do pensador italiano, sua vasta obra e seus diversos interesses. O mago de Bolonha escreve, com a mesma desenvoltura, tratados sobre a estética medieval e ensaios acerca de história em quadrinhos, textos sobre James Joyce ou os meios de comunicação de massa, histórias para crianças e adultos, exercícios de estilo, estudos sobre Peirce ou o carnaval etc. Este autor, apaixonado pela obra de Tomás de Aquino e que sonhava ser um novo Aristóteles, talvez 8

Doutorando em filosofia pela UFRJ. Bolsista da CAPES. Email: marcosclopes@gmail.com 61


esteja tentando construir uma renovada summa, uma enciclopédia das enciclopédias ou, pelo menos, um mapa que nos permita alguma orientação no universo do sentido (a biblioteca das bibliotecas). Segundo Eco, todo o seu trabalho teórico e ficcional tem por fim o mesmo objetivo: a tentativa de entender como damos significado ao mundo que nos rodeia. (NÖTH, 1996, p. 167). Eco fez seu doutorado no início da década de cinqüenta propondo uma leitura da estética medieval a partir da obra de Tomas de Aquino. No começo da década de sessenta, o pensador italiano ganhou notoriedade com o seu livro Obra Aberta, uma coleção de ensaios em que analisava a ambigüidade da mensagem estética e sua abertura para a iniciativa do leitor (complementando seu sentido). Depois disso, ainda na década de sessenta, Eco lançou Apocalípticos e Integrados, obra na qual examina o fenômeno da cultura de massa de uma forma original. Os interesses de Eco pelos fenômenos da significação levaram-no a iniciar no fim da década uma aproximação com a semiótica, o que deu origem a trabalhos como A Estrutura Ausente, Formas do Conteúdo e Tratado Geral de Semiótica. Nesse percurso, Eco considera constante o problema da interpretação, tendo em vista suas liberdades e aberrações. Para o pensador italiano, todos os trabalhos que realizou de 1963 até 1975 tinham em vista a “procura pelos fundamentos semióticos daquela experiência de ‘abertura’, a que nos referimos em Obra Aberta, mas cujas regras não tínhamos fornecido.” (ECO, 2004, p. XII). A partir de Lector in fabula, de 1978, o pensador passa a focar de maneira privilegiada a dinâmica da interpretação textual, aproximando-se da pragmática e tendo um interesse continuamente ampliado pela obra de Peirce. Além disso, na década de oitenta, Eco tornou-se um romancista de sucesso mundial com a publicação de obras como O nome da Rosa e O pêndulo de Foucault. Estes romances, assim como os demais escritos pelo pensador italiano (A Ilha do Dia Anterior, Baudolino e A misteriosa chama da Rainha Loanna), não deixam de repercutir suas preocupações teóricas. Como afirmou na introdução de Limites da Interpretação, seus interesses continuavam vinculados à questão da “abertura” interpretativa, porém tendo um foco diferente: Trinta anos atrás (...) eu me preocupava em definir uma espécie de oscilação ou de equilíbrio instável entre iniciativa do interprete e fidelidade à obra. No correr desses trinta anos, a balança pendeu excessivamente para o lado da iniciativa do intérprete. O problema agora não é fazê-la pender para o lado oposto e, sim, sublinhar uma vez mais a ineliminabilidade da oscilação. (ECO, 2004, p. XXII)

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Para Umberto Eco, “no fundo, a pergunta básica da filosofia (como a da psicanálise) é a mesma do romance policial: de quem é a culpa?” (ECO, 1985, p. 45-46). Seguindo a indicação do filósofo italiano em sua visão policial da metafísica, nos propomos neste trabalho a interrogação acerca “de quem é a culpa” pela preocupação desse pensador com a ideia de “obra aberta”, ou melhor, buscamos alguma explicação do motivo e da trajetória de sua pesquisa em torno desta temática. Precisamos também levantar uma hipótese sobre a importância da conjectura nas investigações do mago de Bolonha: por que a filosofia teria essa essência “detetivesca”? Ao analisar a obra de Eco entramos em um labirinto onde é necessária alguma forma de orientação. Não se trata do clássico labirinto grego, onde o fio de Ariadne seria a própria solução de seu enigma. Trata-se de um labirinto maneirista que tenta dar conta de um mundo de significados “estruturável, mas nunca definitivamente estruturado” (ECO, 1985, p.47), rizomático. Um labirinto maneirista se desenvolve como uma espécie de árvore, com muitos caminhos que se deve percorrer de modo falibilista. Lembra Eco que nesse caso “a saída é uma, mas pode enganar”. (ECO, 1985, p.47). Propomos uma espécie de fio de Ariadne entre a ideia de obra aberta e a defesa de limites da interpretação: no próximo tópico abordaremos a “abertura” da Obra Aberta; a seguir veremos como Eco crítica e utiliza o estruturalismo em sua perspectiva semiótica; e, por fim, nos aproximaremos de Peirce para tentar entender como o pensador italiano desenvolve sua ideia de interpretação e por que nela a formulação de hipóteses tem um caráter fundamental. Acredito que, para esta investigação, essa é a trajetória que possui pistas mais promissoras (mas, podemos estar enganados). 2. A abertura da “Obra Aberta” A Idade Média é para Umberto Eco uma constante obsessão. Isso, de tal maneira, que seu conhecimento como medievalista é uma espécie de lente através da qual analisa o mundo à sua volta. Diz ele que o presente só conhece pela televisão (ECO, 1985, p.17), ao passo que da Idade Média tem uma percepção direta, ela surge como “minha preocupação constante, e eu a vejo por toda parte de maneira transparente, nas coisas de que me ocupo, que não parecem medievais, mas que o são”. (Idem, p.17) Em verdade, a Idade Média continuou sendo tema de reflexão para Eco, em seus romances, sua obra teórica e mesmo no seu estilo de argumentação, que segue o caminho de Tomás de Aquino, “alinha as posições divergentes, esclarece o sentido de cada uma, questiona tudo, até o dado da revelação, enumera as objeções possíveis, tenta a mediação final”. (ECO, 1984, p.340) Eco vê na obra de Aquino 63


uma antecipação de Kant, com a entrada na cena filosófica do tribunal da razão. (Idem, loc. cit.) Como já dito, Umberto Eco escreveu sua tese de doutorado na década de cinqüenta do século passado, buscando desvendar uma perspectiva estética na obra de Tomas de Aquino. Ainda que nesse período tenha perdido sua crença na religião católica, a mística da inteligência que o pensador italiano desvendou na obra de Aquino, continuou sendo para ele uma referência, assim como a ideia do belo como uma realidade transcendental (em sentido kantiano). Em junho de 1962, Umberto Eco publicou Obra Aberta, uma coletânea de artigos sobre a poética da arte contemporânea, com um título que antecipa o tema central do trabalho. Com a ideia de “obra aberta” Eco aponta para a tensão entre fidelidade e liberdade interpretativa (conceitos que retira dos trabalhos de seu professor Luigi Pareyson). As obras de arte teriam como característica a ambigüidade e a auto-reflexibilidade, de tal maneira que, ainda que tomando uma forma fechada como um organismo equilibrado, “é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração em sua irreproduzível singularidade”. (ECO, 2005, p. 40). Desta forma, na teoria de Umberto Eco, o receptor ocupa um lugar privilegiado, já que a cada fruição o intérprete produz “uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original” (Idem, p. 40). O trabalho de Eco respondia às transformações que então ocorriam no universo da arte. Exemplo disto pode ser encontrado em obras de compositores pós-weberianos, como Karlheinz Stockhausen (1928-), Luciano Berio (1925-2003) e Henri Pousseur (1929-). Alguns dos trabalhos destes compositores não possuem uma mensagem pré-determinada, propondo que o intérprete faça escolhas em sua execução que funcionam “completando” a obra ao mesmo tempo em que o público a frui. Em exemplos como estes o filósofo italiano percebe uma abertura formal, que faz parte da própria obra. A abertura para a convivência de vários significados em um significante seria um valor comum na construção artística, apesar de que somente na arte contemporânea ela tomou parte de um programa poético: os artistas não se colocam como vítimas da possibilidade de interpretações múltiplas, mas sim, passam a utilizar a possibilidade de abertura como caminho de construção artística por meio da criação de obras que pudessem oferecer o máximo de possibilidades de fruição. Pensando em sua formação como medievalista, podemos questionar como a obsessão de Eco pela Idade Média pode ser contextualizada com seu interesse pela arte de vanguarda. A resposta parece estar na figura do escritor irlandês James Joyce, que 64


compartilhava com Eco a formação escolástico-católica, o fascínio pela Idade Média e por Aquino. É tendo por base seus estudos anteriores acerca da estética medieval que o pensador italiano se põe a analisar a obra Finnegan´s Wake, de Joyce, propondo uma espécie de continuidade com a Summa de Aquino9, uma ponte entre o pensamento cristão medieval e a experiência artística contemporânea. Eco lembra que Dante construiu a Divina Comédia antecipando certas possibilidades de leitura, que, no entanto, deveriam apontar para um sentido unívoco. Já no cosmos caótico de Finnegan´s Wake de Joyce “o autor deseja que se frua de modo sempre diverso uma mensagem que por si só (e graças à forma que realizou) é plurívoca”. (ECO, 2005, p.91-92) Com esta multiplicação de significados, a arte proporcionaria para quem a interpreta um acréscimo de informação, uma espécie de epifania da estrutura ausente que nos ensinaria algo sobre o mundo. A “abertura” seria mesmo uma metáfora epistemológica, uma espécie de arquétipo que reflete as mudanças na percepção do conhecimento advindas da descoberta das lógicas de valores múltiplos, da teoria da relatividade, da física quântica etc.; campos onde a indeterminação e incompletude tornam-se aceitáveis e mesmo naturais. A obra aberta se coloca como um meio “entre a abstrata categoria da metodologia científica e a matéria viva de nossa sensibilidade; quase como uma espécie de esquema transcendental que nos permite compreender novos aspectos do mundo” (ECO, 2005, p. 158). A ideia de uma epifania com a percepção de um mundo caótico faz com que o aspecto estético esteja submetido à construção poética: nem todos os leitores, ou melhor, a maioria absoluta dos leitores não tem condições de apreender qualquer sentido no caocosmo10 babélico que é Finnegan´s Wake de James Joyce. Ainda que aberta a múltiplas significações, a obra de Joyce exige do leitor certa competência para compreender sua poética e fruí-la em seu aspecto estético. Já se prenuncia aqui a divisão que fará Eco entre o leitor crítico e o leitor ingênuo e a ideia de que a verdadeira percepção estética deveria advir de uma fruição que procura compreender a poética da obra e aprender com ela. Se a principio a ideia de “abertura” surge como algo sublime e incomunicável, o trabalho posterior de Eco se direciona justamente a tentar sistematizar e compreender essa estrutura poética e suas possibilidades comunicativas. Podemos dizer então que ele parte do

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O artigo “Da Summa a Finnegan´s Wake” era uma peça central da obra publicada por Eco em 1962, contudo, na segunda edição italiana este ensaio foi retirado e passou a ser publicado separadamente como As Poéticas de Joyce (obra não traduzida para o português). A Obra Aberta possui várias edições com conteúdos diversos e revisados, nessas modificações mais e mais aparece o interesse de Eco por teorias da comunicação e seu contato com o estruturalismo. O caráter epifânico da primeira intuição de Eco tende a ser formalizado em uma direção que o leva a fase semiótica de seu trabalho. 10 Neologismo de Eco propondo a junção entre “caos” e “cosmo”.

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sublime para a tentativa de estruturação do belo.11 Isto serve para explicar seu interesse pela cultura de massa e a dialética entre vanguarda e kitsch, assim como sua posterior aproximação da semiótica de Peirce. 3. Crítica ao estruturalismo e perspectiva semiótica Neste tópico examinarei como Umberto Eco critica o estruturalismo e constrói sua perspectiva semiótica. Também aqui não farei um exame minucioso do trabalho de Eco, mas espero ao menos apontar para os caminhos que ele não segue. A princípio, o encontro com o estruturalismo foi para Eco um choque, assim como a aproximação com a obra de Roman Jakobson e dos formalistas russos. (PRONI, 2007) É por meio de uma “análise estrutural”, no livro Apocalípticos e Integrados, que o pensador italiano analisa a comunicação de massa, procurando mediar a oposição entre os que acreditavam que a “indústria cultural” promoveria uma degeneração cultural alienadora (chamados por Eco de “apocalípticos”) e os que defendiam que ela fornecia uma oportunidade para a democratização do saber, gerando também sua melhora qualitativa (denominados “integrados”). Esse passo ainda representa uma etapa do estágio pré-semiótico da obra de Umberto Eco. Em 1968, com a publicação de A Estrutura Ausente, Eco inicia sua fase propriamente semiótica. A Estrutura Ausente é um texto a partir do qual, como num palimpsesto, se derivaram diversas obras do autor – como As formas do conteúdo (1971) e O signo (1973) –, que adquiriram uma forma mais elaborada com a publicação, em 1975, de seu Tratado de semiótica geral. Em A Estrutura Ausente, Umberto Eco critica a procura por estruturas que poderiam ter um valor ontológico. Para ele “o fim natural de todo cometimento estrutural ontologicamente conseqüente seria a morte da ideia de estrutura” (ECO, 2003, p. 323). [itálico no original]). No lugar desta visão ontológica do estruturalismo, Eco defende (como já antecipamos) a epifania de uma estrutura ausente, utilizando um “estruturalismo operacional”, “que apesar de procurar por constantes a partir da manifestação dos fenômenos, não lhes 11

Aqui tomo a ideia de belo e sublime como descritas por Rorty no artigo “La belleza racional, lo sublime no discursivo y la comunidad de filósofas y filósofos”. Nele Rorty diferencia a busca pelo belo como sendo a ideia de ordenar as coisas melhor conhecidas, de forma a se integrarem em modelos de organização mais amplos e harmoniosos. Já a procura pelo sublime teria como intenção “llegar a establecer contacto con algo que no es familiar, porque es inefable: algo que no admite redescripción ni recontextualización”. Eco parte de Tomás de Aquino, onde desvela certa coincidência entre o belo e o sublime, procura a partir de então, racionalizar sua ideia de “abertura” nas obras de arte, estruturando sua descrição como algo comunicável. Podemos dizer que o romantismo rortiano caminha em direção contrária: do racional estruturado para a abertura imaginativa. (RORTY, Richard. “La belleza racional, lo sublime no discursivo y la comunidad de filósofas y filósofos”, p. 45-65. )

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atribui valor ontológico”. (KIRCHOF, 2003, p. 185). Ocorre aqui uma dialética que não pode ser eliminada, entre a experiência de interpretação que não pode ser apaziguada em um sistema, e o fato de que “deve ter uma estrutura, pois de outro modo não haveria comunicação, mas pura estimulação ocasional de respostas aleatórias” (ECO, 2003, p.60. [itálico no original]). Eco rejeita o realismo ontológico também na sua concepção de semiótica, quando assim define o signo no seu Tratado Geral de Semiótica: É signo tudo quanto possa ser assumido com um substituto significante de outra coisa qualquer. Essa coisa qualquer não precisa necessariamente existir, nem subsistir no momento em que o signo ocupa seu lugar. Nesse sentido, a semiótica é, em principio, a disciplina que estuda tudo que possa ser usado para mentir (ECO, 2003a, p. 8).

Com esta definição, Eco assume uma posição radicalmente convencionalista e procura fugir da “falácia referencial”: a possibilidade de significação (e comunicação), o que corresponde a nenhum estado de fato real (ECO, 2003a, p. 49). Tal posicionamento, seria derivado de uma intuição estruturalista: “se algo não pode ser usado para mentir, ele não possui oposição semântica, consequentemente, ele não possui estrutura, e, portanto, significação”(NÖTH, 1996, p.169). O estruturalismo continuaria sendo um ponto de referência para a obra de Eco. A semiótica de Eco tenta combinar posições derivadas do estruturalismo do dinamarquês Louis Hjlemslev com a teoria da interpretação de Peirce. Do estruturalismo de Saussure, relido por Hjlemslev, Eco toma a noção de existência de “dois planos semióticos autônomos, o plano do significante (redefinido por Hjlemslev como expressão) e o plano do conteúdo (redefinido como conteúdo)” (KIRCHOF, 2003, p. 174.). A associação entre o plano da expressão e o plano do conteúdo se daria através do código, que convenciona relações provisórias entre estas duas instâncias, instituindo o signo (que não é uma entidade física, nem uma entidade semiótica fixa). (Idem, p. 174). De Peirce, Eco usa a noção de interpretante como caminho para explicar a função semiótica sem a presença da noção de referente. Para Peirce, os três elementos fundamentais da semiose seriam o interpretante (nas palavras de Eco, “aquilo que assegura a validade do signo na ausência do interprete” (ECO, 2003a, p. 58.)), o signo ou representâmen e o objeto (aquilo que é representado, que seria para o pensador italiano algo como uma instância final, produzindo um hábito ou interpretante final).

No processo de semiose, como descrito por

Eco a partir de Peirce, não há uma relação de substituição entre objeto e signo: ocorre, sim,

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um processo de triangulação, que de modo algum pode ser resumido a dois de seus termos. Diante da dificuldade de redescrever o que seria esse processo, o melhor é utilizar as palavras de Peirce, que em uma de suas formulações mais famosas define o signo como aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirigese para alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa seu objeto não em todos os seus aspectos, mas como referência a um tipo de ideia que eu, por vezes denominei fundamento do representâmen (PEIRCE, 2003, p. 46. [sic]).

Desta forma, o processo de semiose não se fecha em um resultado de maneira descontextualizada, mas se dá como contínua produção de sentido. Na semiose, segundo Eco, para estabelecer o significado de um significante (...) é necessário nomear o primeiro significante por meio de outro significante que pode ser interpretado por outro significante, e assim sucessivamente. Temos, destarte, um processo de SEMIOSE ILIMITADA. (ECO, 2003a, p. 58.)

Eco adapta a teoria de Peirce a sua perspectiva epistemológica, mantendo dela a relação de substituição do signo (como algo que esta para algo) e a ideia de semiose como um processo

virtualmente

infinito

(ECO,

2003a,

p.171), enfraquecendo

a ideia de

correspondência ao rejeitar a hipótese de uma correlação real entre índices e ícones com o mundo (Idem, p.173). A noção de interpretante, em sua abertura, possibilita a Eco pensar a relação entre significante e significado de modo radicalmente convencional de tal maneira que somente o que é cultural interessa para a semiótica de Eco (NÖTH, 1996, p.170). Esta posição permite que Eco faça uma distinção entre juízo de fato e juízo semiótico. A semiótica econiana se interessa pela possibilidade de significação social, ou seja, a aceitabilidade de uma mensagem depende de sua relevância dentro de uma enciclopédia cultural compartilhada pelos indivíduos de uma sociedade. O juízo semiótico se derivaria da ideia de proposição analítica, predicando “de um dado conteúdo (uma ou mais unidades culturais) as marcas semânticas já atribuídas a ele por um código preestabelecido” (ECO, 2003a, p.138). Já o juízo factual “predica de um conteúdo marcas semânticas não atribuídas a ele antes pelo código” (Idem, p. 138). As mudanças de perspectiva em relação ao mundo, a partir da evolução dos conhecimentos científicos ou das modificações promovidas pelos poetas, apontam para a institucionalização de diferentes verdades semióticas. De qualquer forma, é necessário, mesmo para a ficção, respeitar o princípio da verossimilhança. Se quisermos contar a história de um mundo possível onde onças falam 68


inglês, devemos oferecer em nossa descrição certas características que permitam a identificação intersubjetiva de nossas personagens como onças, assim como, “se falam inglês, não podem dizer “eu te amo” em lugar de “I love you” toda vez que queiram manifestar seu amor por outrem” (BRITO Jr, 2005, p. 8). Desta maneira, mesmo a narrativa sobre mundos possíveis, para ser compartilhada, precisa tomar como fundamento o mundo compartilhado pela experiência intersubjetiva. No próximo tópico analisaremos como a noção de interpretação desenvolvida por Umberto Eco se funda no conceito peirciano de abdução. 4. A interpretação como um caso de detetive No começo de O signo dos quatro, de Arthur Conan Doyle, o leitor é informado do hábito do detetive Sherlock Holmes de tomar cocaína ao menos três vezes ao dia. Esse costume irritava seu ajudante Watson, mas o famoso detetive inglês assim justificava sua ação: Meu cérebro, disse ele, rebela-se contra a estagnação. Dê-me problemas, dême trabalho, dê-me o mais obtuso criptógramo, ou a mais intrincada análise e eu estarei no meu elemento. Dispensarei, então, os estimulantes artificiais. Detesto a rotina monótona da existência. Preciso ter a mente em efervescência. (DOYLE, 1991, p. 9).

A posição do detetive, como aquele que detecta e descobre a partir de certos indícios uma realidade inteligível, é comparável ao método de investigação proposto por Charles S. Peirce. Mas o que há em comum entre o detetive Sherlock Holmes e o multi-cientista Peirce? Uma breve fala de Peirce pode ajudar a tornar essa comparação mais clara: En las calles de Nueva York se encuentra un hombre apuñalado por la espalda. El jefe de policía puede abrir la guía telefónica, señalar un nombre cualquiera y suponer que aquél es el del asesino. ¿Hasta qué punto tal conjetura tendría valor? Pero el número de nombres de la guía no se aproxima a la multitud de posibles leyes de atracción que podría haber tenido en cuenta Kepler para su ley del movimiento planetario y, adelantándose a la verificación por las predicciones de las perturbaciones, etc., lo habrían tenido en cuenta para perfeccionarlo. (Peirce APUD: SEBEOK e UMIKERSEBEOK, 1987, p. 32).

Tanto o cientista quanto o detetive devem lançar mão de conjecturas, criar hipóteses para tentar desenvolver sua investigação. Ambos possuem um problema para revolver e devem procurar o caminho mais coerente, a hipótese menos extraordinária ou mais provável

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para seguir. A solução do caso depende de que a hipótese imaginativa desenvolvida pelo cientista/detetive seja verificada experimentalmente, confrontada com a realidade. Para a lógica que preside a invenção de hipóteses imaginativas Peirce deu o nome de abdução. A ideia de abdução é a mais original e importante contribuição de Peirce à lógica e à filosofia da ciência (SEBEOK e UMIKER-SEBEOK, 1987, p.63). Eco aponta para a abdução como uma espécie de princípio geral que regula todo o conhecimento humano (ECO, 2004: p. 200.), sendo o único método para postular explicações possíveis de eventos observados (SHOOK, 2002, p. 63). Para Peirce a questão do pragmatismo “nada mais é exceto a questão da lógica da abdução” (PEIRCE, 2003, p. 232). É por meio dessa teoria da abdução que o pai do pragmatismo rompe com as teorias que tratavam do signo baseando-se na noção de equivalência (entre signo e referente ou entre signo e significado) e abraça a noção de implicação, ou seja, o signo é sempre um meio pelo qual conhecemos alguma coisa a mais (SERRA, 2007).

Ao pensar o signo como algo que implica em outro signo, Peirce

desenvolvera sua ideia de uma semiose ilimitada. 12 Peirce fala em três tipos de raciocínio: a dedução, a indução e a abdução. O raciocínio dedutivo “prova, que algo deve ser, a indução mostra que alguma coisa é realmente operativa; a abdução sugere simplesmente que alguma coisa pode ser” (PEIRCE, 2003, p. 220). A dedução trata de inferências necessárias que prescindem de qualquer verificação experimental ulterior, já a indução trata de inferências experimentais, partindo de uma teoria prévia e, a partir dela, tentando predizer fenômenos “e observar esses fenômenos a fim de ver quão de perto concordam com a teoria” (Idem, p. 219). A forma geral da abdução é descrita por Peirce como sendo a seguinte: “Um fato surpreendente, C, é observado; mas se A fosse verdadeiro, C seria natural. Donde a razão para suspeitar que A é verdadeiro” (Idem, p. 229). Diante de um fato surpreendente precisamos criar hipóteses que ajudem a compreendê-lo. Precisamos criar alguma regra que acalme a dúvida em relação àquele evento que nos surpreendeu. O pensamento se move na direção de formar uma crença que apazigúe a dúvida e gere um hábito de ação em relação àquele fato que nos causou estranhamento. A abdução busca gerar uma regra, uma hipótese explicativa, por isso mesmo, envolve sempre um ato de interpretação. Quando Kepler verificou que a órbita de Marte passava por certos pontos que não correspondiam à ideia de órbitas circulares, deparou-se com um resultado intrigante. Para 12

O tema da semiose ilimitada será o grande mote para a disputa entre Eco e os Desconstrutivistas sobre Peirce. Ver mais em LOPES, M.C. Sobre limites da interação: um debate entre Umberto Eco e Richard Rorty.

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esse resultado era necessário criar uma regra: a hipótese imaginativa de Kepler foi a de que o evento se explicaria se considerasse a órbita de Marte como elíptica. Essa abdução precisava ser verificada e pôde sê-lo quando as previsões de movimento de Marte, considerando sua trajetória elíptica, foram confirmadas. A regra de interpretação de Marte se torna, então, signo para alargar a abdução e propor a órbita elíptica como sendo comum a todos os planetas (ECO, 2001, p. 56). A abdução seria o mecanismo de raciocínio necessário para o lingüista de campo ou qualquer pessoa aprender o significado de um signo. Como Peirce rompeu com o paradigma referencialista, a noção de equivalência não serve para explicar a aquisição de uma língua. Com isso, o processo de dedução, que partiria de uma regra geral para um resultado particular, não consegue dar conta do processo de aprendizagem: a semântica de dicionário não consegue explicar como os significados se dão na dimensão pragmática. A indução parece ser então o tipo de raciocínio que explicaria a aquisição de uma língua, já que com ela, por meio de experiências sucessivas, partimos do resultado particular para a regra geral. Contudo também a indução não consegue gerar um saber novo. Como explica Umberto Eco: acumulação de signos ostensivos não esclarece por mera indução o significado do termo, se não houver um quadro de referência, uma regra metalingüística (ou melhor metassemiótica ) de certa forma expressa, que diga segundo qual regra se deve entender a ostenção ( ECO, 2001, p.55).

Essa regra metalingüística é uma hipótese que tem origem na abdução. Para interpretar o mundo a nossa volta, para dar-lhe significado e com ele lidar é necessário que constantemente desenvolvamos conjecturas. O processo de interpretação, fundado na abdução, é para Eco o mecanismo semiósico que permite “qualquer tipo de interação do homem (e quiçá dos animais) com o mundo circundante” (ECO, 2004, p. XX.). Uma passagem de Peirce confirma essa leitura de Eco quando explica a necessidade de conjecturas e seleção contextual para transformar a percepção em descrição. Diz o filósofo norteamericano: En esta maravillosa mañana de primavera veo a través de la ventana una azalea en plena floración. ¡No, no!, esto no es lo que veo; pero es de la única manera que puedo describir lo que veo. Esto es una proposición, una frase, un hecho. Pero lo que percibo no es una proposición, ni una frase, ni un hecho sino sólo una imagen que hago inteligible, en parte, mediante una declaración sobre el hecho. Esta declaración es abstracta, pero lo que veo es concreto. Hago una abducción siempre que expreso en una frase lo que veo. La verdad es que la fábrica de nuestro conocimiento, en su totalidad, es un

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espeso filtro de pura hipótesis confirmada y limada por la inducción. El conocimiento no puede dar ni el más pequeño paso adelante con sólo la observación, debe hacer a cada momento abducciones. (Peirce APUD: SEBEOK e UMIKER-SEBEOK, 1987, p. 30).

É tomando por base as ideias de Peirce que Umberto Eco desenvolve sua teoria da interpretação. Se a preocupação de Roland Barthes se voltava para explicar o prazer que o texto proporciona, o questionamento do filósofo italiano se direciona à tentativa de entender qual é a razão que leva o texto a dar prazer (ECO, 2004, p. XV), ou seja, entre a “morte do autor” e o “nascimento do leitor”, Eco quer relembrar a importância do texto e como este regula suas possibilidades de fruição.

A dialética entre a abertura da obra para a liberdade

interpretativa do leitor e a estruturação do texto como “organismo” que estimula e regula sua fruição continuou sendo questão central para Eco desde a publicação de seu Obra Aberta em 1962. O texto possui espaços em branco que devem ser preenchidos pelo leitor. Esse deve fazer conjecturas e propor hipóteses para preencher seu sentido. Eco vê o texto como um mecanismo preguiçoso que pede a atualização cooperante do leitor para funcionar. Os textos postulam do destinatário certa competência para compreender o que comunica. Muitas vezes ocorre que o leitor não possui a enciclopédia necessária para decodificar determinada mensagem, o que o leva a produzir interpretações aberrantes. Para explicar o processo de cooperação interpretativa postulada por Eco, o filósofo italiano cria as figuras de autor-modelo e do leitor-modelo, que seriam estratégias interpretativas que surgem como polaridades internas à obra: uma interpretação bem sucedida se dá “entre duas estratégias discursivas e não entre dois sujeitos individuais” (ECO, 2004, p. 46). O leitor-modelo de Eco não se detém a preencher os vazios do texto (como postulava Wolfgang Iser), mas também o atualiza, analisando-o nas condições históricas em que foi criado e o trazendo para o presente (como pede Hans Robert Jauss) (FERNANDES, 1999, p. 251). Para realizar essa atualização é necessário que se leve em conta o autor-modelo, que surge como uma estratégia textual de leitura na tentativa de lidar com as intenções virtualmente contidas no enunciado. Na construção da ideia de autor-modelo interagem elementos que poderíamos chamar de intenção de leitura, como explica Eco A configuração do Autor-Modelo depende de traços textuais, mas põe em jogo o universo do que está atrás do texto, atrás do destinatário e provavelmente diante do texto e do processo de cooperação (no sentido de

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que depende da pergunta: “Que quero fazer com este texto?)” (ECO, 2004, p. 49).

Machado de Assis, ao escrever Dom Casmurro, previa por parte do leitor certa curiosidade no sentido de buscar pistas para saber se, afinal, Capitu teria ou não traído Bentinho. Por outro lado, o leitor deve levar em conta que a narrativa se dá na primeira pessoa e que quem toma a pena é o casmurro Bentinho: muitas das “pistas” que o leitor presume encontrar no texto podem ser atribuídas ao ciúme paranóico do narrador. O leitor mais arrebatado poderia mesmo tentar consultar Machado de Assis (em uma sessão espírita) sobre a existência ou não da traição de Capitu, contudo, a resposta do autor-empírico é de nenhuma valia se não puder ser confirmada pela textualidade da obra. O autor-modelo de Eco não deve ser confundido com o autor empírico, no seu Pós-Escrito a O nome da Rosa o filósofo italiano diz mesmo que “O autor deveria morrer depois de escrever. Para não perturbar o caminho do texto”. (ECO, 1985, p. 12). Na medida em que o leitor empírico corresponde às exigências do leitor-modelo, ele consegue interpretar o texto de forma bem sucedida, caso contrário, produz usos, exercícios imaginativos que conduzem a semiose para além do universo do discurso. O pensamento deve buscar gerar crenças que se traduzam em hábitos de ação: o que não leva à diferença na prática não deve ser considerado na teoria. Se quisermos interpretar um texto, devemos considerar que ele fala de algo de determinada maneira e não de qualquer coisa de acordo com a vontade do leitor. Para detectar/investigar o que o texto diz é preciso seguir indícios que sejam verificáveis. Como o detetive que não possui casos para investigar, o pensamento que não tem objetivo cria hábitos viciosos: usos que deturpam o sentido do texto. Assim, para Eco, as interpretações, para conseguirem êxito, devem ser verificáveis, tomando por base o texto e o que esse propõe: o interesse do leitor não deve se sobrepor ao que a obra permite inferir, caso contrário teríamos o que Peirce chamaria de deboche do pensamento13, ou seja, um uso que não tem por fim compreender a textualidade e sim promover um jogo de imaginação. A distinção que Eco faz entre uso e interpretação funciona como uma maneira de separar o pensamento que tem por fim compreender o texto gerando uma crença sobre ele e o que age de forma fortuita, como deboche sem um fim em vista. É esta distinção que Eco defenderá como primordial para preservação da racionalidade em suas 13

O pensamento para Peirce tem a única função de produzir crenças, mas ele pondera que “A acção de pensar pode, casualmente, ter outros resultados, pode servir para nos divertir, por exemplo, e entre diletantes não é raro encontrar quem tanto tenha pervertido o pensamento para fins de prazer, que lhes parece vexatório pensar que as questões em torno das quais se deleitam a exercitar-se possam alguma vez vir a ser resolvidas. Nestes casos, uma descoberta positiva que retire um tema favorito da arena dos debates literários é encarada como um mal disfarçado desgosto. Esta disposição é o grande deboche do pensamento” (Peirce citado In: MURPHY, John. O pragmatismo: de Peirce a Davidson, p. 37-38 ).

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Tanner Lectures, e que também servirá como mote para romances como O pêndulo de Foucault e Baudolino, em que o resultado dos excessos interpretativos de uma semiose hermética são ilustrados. Para Eco existiria mesmo um grande perigo político nestes excessos de interpretação paranóicos que permitem subordinar todos os aspetos do universo a um deles, abrindo as portas para um irracionalismo que para o mago italiano seria uma ameaça constante, uma espécie de fascismo eterno. Com isso o pensador italiano tentava responder aos excessos do pós-modernismo que, em sua irresponsabilidade, traria desastrosas consequências políticas (ECO, 1993). Richard Rorty aponta com perspicácia a ausência de qualquer critério para demarcar a divisão entre uso e interpretação. Para o filósofo norte-americano não faríamos outra coisa além de usar os textos para determinados fins (RORTY, 1993). No entanto, a distinção de Rorty entre o discurso que serve para o uso público e o discurso que tem fins meramente privados aponta para o mesmo objetivo da distinção feita pelo filósofo italiano entre uso e interpretação.14 Novamente a questão do critério e do limite se anuncia como problema para tal separação entre público e privado. Na descrição de Eco, a diferença entre o pragmaticicismo15 que compartilha com Peirce e o pragmatismo de James, que Rorty busca retomar, estaria em que, para o primeiro “não é verdadeiro aquilo que serve à ação prática, mas serve à ação prática aquilo que é verdadeiro” (ECO, 2004, p. 29). Com isso o pensador italiano mantém certo representacionismo que sustentaria a distinção entre dado e interpretação e a manutenção da dicotomia entre esquema e conteúdo. Acreditamos que com o percurso que fizemos podemos ter alguma resposta sobre o que motiva, “de quem é a culpa?”, pela mudança de ênfase na investigação de Umberto Eco, da abertura para os limites do ato de interpretação. Considerando a analogia construída entre o cientista/filósofo e o detetive Sherlock Holmes, é difícil separar quando o primeiro simplesmente “exerce seu vício” e quando está investigando um problema pertinente. A grande distinção entre descoberta e invenção torna-se problemática e o representacionismo, comum a Peirce e Eco, surge como um provável vício de valorização de meios e jargões epistemológicos. Ainda que abandone a ideia de estrutura em sentido ontológico, Eco toma

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A distinção uso-interpretação é objeto central da disputa entre Umberto Eco e Richard Rorty. Ver mais sobre isso em ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação e LOPES, M. C. Sobre limites da interação: um debate entre

Umberto Eco e Richard Rorty. 15

Peirce, incomodado pelo uso que James dava ao termo “pragmatismo”, renomeou, em 1905, sua teoria como pragmaticismo, expressão que esperava ser “suficientemente feia para estar a salvo de raptores” (PEIRCE, C. S. Semiótica, p. 287). Porém, a despeito da intenção de Peirce, seu termo era suficientemente feio para não conseguir grande sobrevida.

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sua miragem como norma cognitiva, uma epifania que faz mais pela religião do método do que pela abertura para a imaginação. Referências BRITO Jr, A. B. “Verdade e mentira em Baudolino”. Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol. 3. n. 1, 2005 DOYLE, A. C. O signo dos quatro. São Paulo: Melhoramentos, 1991 ECO, U. Os limites da Interpretação. 2ª ed. São Paulo Perspectiva, 2004. [1990] _________. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. _________. Semiótica e Filosofia da Linguagem. Lisboa, Instituto Piaget, 2001. _________. Tratado Geral de Semiótica. 4ª ed. Perspectiva, 2003 _________. A Estrutura Ausente: Introdução a Pesquisa Semiológica. 7ª ed. São Paulo, Perspectiva, 2003. _________. Pós-escrito a O nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. _________. Lector in Fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2004. _________. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005. _________. Viagem na Irrealidade Cotidiana. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FERNANDES, J. “O leitor ideal”. Fragmentos de Cultura. Goiânia. v. 9. n. 2. p.251. mar/abr, 1999. KIRCHOF, E. R. Estética e Semiótica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003 LOPES, M. C. Sobre limites da interação: um debate entre Umberto Eco e Richard Rorty. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, 2007. MURPHY, J. O pragmatismo: de Peirce a Davidson. Porto: Asa s/d NÖTH, W. A Semiótica no século XX. São Paulo: Annablume, 1996 PEIRCE Ch. S. Semiótica São Paulo Perspectiva, 2003 PRONI, G. El intelectual global. Una biografía intelectual de Umberto Eco: desde su licenciatura hasta “Il nome della rosa” (1954-1989)”. Disponível em: http://www.um.es/tonosdigital/znum3/perfiles/PerfilEco.htm Consultado em 30/06/2007. RORTY, R. La belleza racional, lo sublime no discursivo y la comunidad de filósofas y filósofos. In: Logos: Anales del seminário de metafísica. 2001 ______. “A trajetória do pragmatista”. In: Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. SERRA, P. Peirce e o signo como abdução. Disponível http://bocc.ubi.pt/pag/jpserra_peirce.pdf Consultado em 27/02/2007.

em:

SHOOK, J. R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DP&A, 2002 75


UMIKER-SEBEOK, J. Sherlock Holmes y Charles S. Peirce. El método de la investigación, Barcelona: Paídos, 1987.

76


A Relação entre Arte e Quadrinhos a partir da Perspectiva Estética, Ética e Filosófica de Shusterman

Fabio Luiz Carneiro Mourilhe Silva16 Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir uma concepção estética, apontada por Shusterman, que não é, no momento atual, necessariamente inerente às histórias em quadrinhos, onde a oposição entre o erudito e o popular se apresenta cada vez menos aparente. Deve-se considerar, contudo, que a legitimação dos quadrinhos nem sempre foi fato, graças, principalmente, a um posicionamento moral polêmico, uma estética própria, sua ‘estética do despreciosismo’, e um questionamento de valores tradicionais, incluindo a arte institucional. Em termos contemporâneos, percebe-se os quadrinhos como suporte onde, por vezes, são privilegiadas as funções auto-referenciais, apontando para uma possibilidade de criação de novos modelos para a filosofia atual, considerando simultaneamente uma estética erudita e outra pragmática. Palavras-chave: Shusterman; Estética; Arte; Quadrinhos. Abstract: This article aims to discuss an aesthetic concept, pointed by Shusterman, that is not necessarily currently present in comics, where the opposition between the highbrow and the popular is decreasingly perceivable. Although, the legitimation of comics was a feature only later considered, because of its polemical moral positioning, its own aesthetic, a ‘junk aesthetic’, and an interrogation of traditional values, including those associated to the institutional art. In contemporary terms, we can perceive comics as a support where, sometimes, are privileged auto-referential functions, pointing to the possibility of creating new models to modern philosophy, considering simultaneously a highbrow and a pragmatic aesthetic. Key-words: Shusterman; Aesthetic; Art; Comics.

Como conceber no momento atual as histórias em quadrinhos como arte e experiência estética, considerando que foram privadas por um bom tempo da respeitabilidade da história oficial da arte e das instituições artísticas? É possível legitimá-las sem recorrer a uma estética erudita dominante, em nome de uma experiência estética que ela nos oferece? Nos quadrinhos, temos a possibilidade da condução de um prazer e uma satisfação – que chega a adquirir um caráter corpóreo por sua dimensão sinestésica – com a simultaneidade de uma estética erudita, em uma arte ou não-arte que faz parte de nossa vida por sua expressão e participação na realidade que, como influência e permanência tangível, transpassa e se faz presente em quase todas as manifestações culturais, ideologicamente e eticamente. Conforme a proposta inicial de Shusterman de enfrentar a oposição entre o estético e o prático, objetiva-se aqui discutir a concepção estética com seus limites e papéis impostos pela ideologia dominante da filosofia e a economia cultural, junto a um 16

Doutorando do programa de pós-graduação em filosofia da UFRJ / Doutorando do programa de pósgraduação em comunicação da UFF. Email: fabio_bola@yahoo.com 77


posicionamento ético que considera o vínculo entre arte e vida. Deve-se considerar aqui uma defesa da cultura popular e dos quadrinhos no âmbito da contemporaneidade como suportes para a veiculação de conceitos, sem condenar a arte erudita e a filosofia. O conceito de estética aplicado à arte aparece nos trabalhos de Baumgarten no século XVIII e tem sido utilizado mais freqüentemente em uma cultura erudita. Mas sua aplicação não é mais de forma alguma limitada, considerando os termos próprios da estética utilizados como referência à arte popular, como graça, elegância, unidade e estilo. Arte e estética não são mais termos exclusivos da alta cultura (SHUSTERMAN, 1992). Segundo Shusterman (1992, p. 197), certos fatores sócio-culturais podem explicar porque a cultura popular – e os quadrinhos – se desenvolveu com tanto ímpeto nos Estados Unidos, desafiando a cultura erudita em termos de legitimidade estética e cultural. Com uma estrutura social mais flexível e descentralizada do que as sociedades européias, temos na América uma resistência à dominação cultural. Em uma nação de imigrantes de culturas diferentes, não existia uma tradição única nem um sistema educacional centralizado para reforçar uma uniformidade cultural. Uma forte distinção entre arte erudita e popular não pode ser filosoficamente e esteticamente justificável se considerarmos exemplos significativos das histórias em quadrinhos que se alternaram com o passar do tempo. Ambos os eixos se remetem e se sustentam junto à simultânea comodificação e experiência estética, que se desenrolam de uma forma ética duvidosa – se considerarmos a preparação do leitor em direção ao consumo no final do século XIX nos jornais sensacionalistas americanos (SILVA, 2009) ou com uma moral exagerada direcionada para a justificação de intervenções e atitudes imperialistas, no caso de certos heróis e super-heróis. Contudo, é possível perceber uma estrutura adequada para a veiculação de valores que se sustentam em sua narrativa gráfica peculiar. Sobre a arte popular, Shusterman (1992b, p. 99) coloca que ‘quando ela não é completamente ignorada, indigna até mesmo de desdém, ela é rebaixada a lixo cultural, por sua falta de gosto e de reflexão’. O posicionamento de certos quadrinistas perante estas questões é emblemático por assumir as críticas como verdade e desenvolverem seus trabalhos a partir delas em uma estética que passa pela caricatura e a expressividade do traço, e também uma estética do despreciosismo17. Esta estética 17

A estética do despreciosismo é um conceito que remete ao pensamento de Jules FEIFFER (2003), que se refere a uma estética do lixo, ‘comic books are junk’. ‘Para início de conversa, os gibis são um lixo. Acusá-los do que eles já são equivale a não fazer acusação nenhuma. Não existe um lixo idôneo ou um 78


caracteriza as revistas em quadrinhos (gibis), principalmente em sua primeira década de manifestação (Figura 1) e é articulada junto a uma ética própria – combate ao mal e a formação do que Feiffer (2003, p. 73) chama de ‘cidadão de segunda classe das artes’. Com isso, ganha-se uma série de privilégios, como a irresponsabilidade e a falta de seriedade, onde ‘já se encontra em estado de desgraça, não há respeito a perder’ – com valores indicativos de uma verdade e uma justiça que devem ser alcançadas a qualquer custo 18; e a exacerbação deste processo com a transformação e redirecionamento de valores com a preponderância dos gibis de crime (Figura 2) e terror. Como resultado desta tendência, temos a organização de um sub-comitê do senado americano para investigar a delinquência juvenil a partir de exigências de críticos como Frederic Wertham – para o qual os quadrinhos funcionariam como desarmamento moral (SILVA e NEVES, 2009) – e, posteriormente, em um código de honra auto-imposto pela indústria de quadrinhos, onde o compromisso moral e ético desvencilhados de seu tempo transformou os gibis em uma mídia ingênua e pudica (Figura 3) – para muitos, o fim dos gibis. Contudo, com as manifestações da contra-cultura, surgem os gibis underground (Figura 4) livres da distribuição e das imposições do Comic Code para apresentar uma nova postura ética em um ‘dever ser’ livre de imposições morais tradicionais.

Figura 1-

Figura 2-

Rex Dexter #1

True Crime

(1940)

Comics #2 (1947)

Figura 3- Baby Huey (1954) Figura 4- Mr. Natural, Robert Crumb (1967)

lixo ético... O lixo existe para entreter’. 18 Deve-se considerar, até então, a possibilidade que havia nestas obras em contribuir para a compreensão de aspectos éticos por motivação a partir de argumentos e inquisições, mostrando através de discussões o que seria interessante de filosofar, de forma semelhante à interpretação de NUSSBAUM (1986, p. 127) sobre os Diálogos de Platão (Protágoras). Nussbaum também ressalta que ao conectar diferentes posicionamentos sobre uma questão a personagens caracterizados concretamente, tanto nos Diálogos como na tragédia, temos sugestões sutis entre crenças intelectuais e modos de vida. 79


Devemos ressaltar ainda que, na narrativa quadrinística sensacionalista ou cotidiana, temos, principalmente com os gibis, através de sua estética do despreciosismo, representações que veiculam o mundo como fenômeno estético, justificando o mundo, tal qual a visão de Nietzche (1872, p. 142) sobre ‘o mito trágico que tem de nos convencer que a feiúra e a desarmonia são elementos de um jogo artístico pelo qual a vontade se joga na abundância eterna de sua felicidade’, revelando assim a verdadeira essência do mundo. A estética naturalista de Dewey (1934) tenta recobrar a continuidade da experiência

estética

na

vida,

indicando

uma

quebra

com

a

concepção

compartimentalizada e institucionalizada da arte (cultura erudita x cultura popular), que coloca a arte em uma realidade à parte, em museus, teatros e salas de concerto (DEWEY, 2005), alienando o homem comum de buscar satisfação nas belas artes e condenando a legitimidade e entretenimento populares, incluindo os quadrinhos. Assim, esta tradição serve a uma elite opressora que busca certificar sua superioridade garantindo que a arte seja mantida além do gosto e do alcance do homem comum, reforçando um senso geral de inferioridade. Para Shusterman (1992), a arte erudita tradicional – incluindo trabalhos canonizados bem como modos canonizados de apreciação – é pouco familiar e pouco acessível aos culturalmente pouco privilegiados. Estes deverão ficar sob domínio sócioeconômico e político. Assim, a arte serve para naturalizar e legitimar diferenças sociais e hierarquias, não apenas através de bens, mas também pelo seu modo e possibilidade de apreciação. ‘O elitismo persistente da cultura erudita e a exclusão do cotidiano são confirmados pelo fracasso dos esforços da vanguarda em desafiarem a cultura burguesa com a negação das qualidades autônomas e sagradas da arte’. Este fracasso mostra, segundo Shusterman (1992), que a liberação e reintegração da arte na prática da vida comum não pode ser alcançada apenas com tentativas radicais da própria arte, pois se trata de uma tradição forte. Para ele, a cultura popular poderia proporcionar esta transformação, levando a uma maior liberdade e integração com a prática da vida. As artes populares da mídia de massa são apreciadas por todas as classes de nossa sociedade. O reconhecimento de seu status como produtos culturais esteticamente legítimos auxiliaria a reduzir a opressão social em relação a suas apreciações estéticas e artísticas, pois, segundo os críticos, a direção estética da arte popular já é direcionada para a reintegração da arte e vida. A relação indicada por Shusterman entre cultura popular e vida é apresentada por Danto como proposição da Pop Art, onde são 80


colocados em evidência objetos e ícones da experiência cultural comum, ‘celebra as coisas mais ordinárias das vidas mais ordinárias’. Nos

quadrinhos,

temos,

em

certos

momentos,

uma

prática

de

descompartimentalização da arte, com sua introdução como concepção estrutural, referência ou conteúdo – ver exemplos remotos de tiras de Cliff Sterrett (Figura 5) e Feininger (Figura 6) –, que se contrasta à prática de alienação tão presente nos próprios quadrinhos e nas artes. De um retrato do american way of life, os quadrinhos americanos passaram a veicular questionamentos radicais na década de 1960 – ver Spain (Figura 7) –, deixando de ser apenas um ‘salão de beleza’ (DEWEY, 2005) que encobre os horrores e brutalidades da civilização ou ‘ilusão real’ (SHUSTERMAN, 1992, p. 146) que traz mentiras aos miseráveis.

Figura 5- Polly and her pals,

Figura 6- How the Jimjam relief

Figura 7- Trashman, Spain

Cliff Sterret

expedition set out, Lyonel

Rodriguez

Feininger

A própria distinção entre arte erudita e arte popular é problemática e seu posicionamento sócio-cultural complexo e equívoco (SHUSTERMAN, 1992). Nos quadrinhos, temos com o passar do tempo, um direcionamento sócio-cultural que se coloca junto a uma mudança do conteúdo que pode ser considerado tanto arte erudita como popular. Inicialmente, as tiras trouxeram uma criticidade histórica e um apelo popular em um enfoque sensacionalista, um posicionamento que colocava em cheque a discriminação e segregação da classe trabalhadora em termos de manifestação cultural e apreciação artística (Figura 8). Com a adequação das tiras aos formatos das propagandas e a utilização dos personagens como mascotes dos produtos, as tiras passaram a veicular um conteúdo que retratava o american way of life e a prática do consumo, manobras

81


descritas pela crítica como caráter próprio da cultura popular, porém nas histórias em quadrinhos junto a diversos autoquestionamentos quanto ao seu suporte e prática, e diversas inclusões de referências a práticas artísticas de vanguarda. Estas trocas e o seu posicionamento sócio-cultural oscilante se intensificaram na década de 1960 com a Pop Art, quando os quadrinhos passaram a emprestar sua estética a obras de arte (Figura 9), ressaltando sua especificidade derivada das técnicas próprias da área, como o uso da retícula. Além disso, os quadrinhos, no suporte dos gibis, continuaram a trazer referências estéticas à cultura erudita, agora com as experimentações da Op Art (Figura 10). Com as graphic novels, a relação entre cultura erudita e popular passou a se intensificar na medida em que a estética do despreciosismo dos quadrinhos passou a ceder espaço para representações com uma preponderância descritiva se emparelhando ao caráter narrativo, deixando clara relações com a pintura realista ou hiper-realista (Figura 11). Percebe-se, então, uma história em quadrinhos resultante de um processo de fusão entre arte erudita e popular com um posicionamento sócio-histórico ambíguo.

Figura 8- Yellow Kid no

Figura 9- Kiss 2,

Figura 10- Nick

Figura 11-

Louvre, Outcault

Roy Lichtenstein

Fury, Jim Steranko

Superman, Alex Ross

Em termos de dominação, devemos pensar em um processo duplo de fato, onde existem elites não apenas no meio artístico, mas também aquelas relacionadas à comercialização e promoção de produtos, levando à produção de um consumidor dócil e confuso, principalmente no que tange à violência na cultura. Assim, temos o que Shusterman (1992) chama de dilema estético inaceitável: entre a artificialidade moribunda da arte erudita e o primitivismo desumanizador da cultura popular. Devemos pensar no papel da crítica (de cultura popular ou arte erudita) em ser mais ética e engajada sócio-politicamente, de forma a levar a apreciação estética de obras individuais em direção a uma crítica da nossa realidade sócio-cultural, que inclui

82


uma denúncia contra instituições de arte – também junto à Igreja e à corte no passado – e mídias, que sempre foram impostas através de sua estética. Quanto à crítica presente nas obras, se destacam as artes revolucionárias que, contudo, se mostraram incapazes de mudar de fato o panorama e as relações no contexto da arte. Nos quadrinhos, porém, Spain através de um suporte popular em publicações underground conseguiu introduzir uma nova postura ética em um ‘dever ser’ com pouco apreço às tradições morais e sim seu questionamento (Figura 12), um ‘dever ser’ que emerge a partir de uma prática social, indicando o surgimento de novas subjetividades. Antes disso, a crítica nos quadrinhos já figurava, conforme já exposto, como característica em ‘Yellow Kid’ no final do século XIX (Figura 13).

Figura 12-

Figura 13- Outcault, In the Louvre, 1897

Ring of truth, Spain

Além da consciência crítica, os quadrinhos também ganharam pouco a pouco respeitabilidade e até a denominação de arte, a nona arte. Começaram a receber reconhecimento a partir de festivais e encontros que se deram a partir de 1951, na Primeira exposição de histórias em quadrinhos do mundo que se deu no MASP, onde foram expostos originais de artistas. Na Europa, por sua vez, temos o empenho de Claude Moliterni que, entre 1964 e 1979, montou centenas de exposições com material do universo das histórias em quadrinhos (GUBERN, 1979). Nos Estados Unidos, apenas em 1971, ocorre a primeira exposição de quadrinhos, no New York Cultural Center, com a mostra ‘Seventy five years of the comics’ (WITEK, 1989). Dos festivais e convenções, o mais tradicional e constante é o de Angoulême, que existe desde 1974 e com uma periodicidade anual. Além disso, o advento das graphic novels também mostra o reconhecimento recebido pelos quadrinhos, na medida em que recebem prêmios de literatura e figuram

83


entre os best sellers, em trabalhos que podem funcionar tanto como arte popular ou erudita. Desta forma, a distância entre alta cultura e cultura popular não é mais significativa, no que tange, pelo menos, aos quadrinhos, considerando esta aproximação como uma prática que já de certa forma naturalizada. Em uma mídia outrora considerada padronizada, conservadora e manipulativa, temos nos quadrinhos, ao mesmo tempo um experimentalismo marcante desde o seu início, mostrando o desenvolvimento de um caráter híbrido, com um pluralismo estrutural. A referência aos quadrinhos na Pop Art mostra o que Shusterman (1992) apresenta como transformação de entretenimento popular em clássico da alta cultura, indicando, de acordo com a visão de Danto, uma aproximação com o cotidiano, com a relação do popular com a vida ressaltada por Shusterman, porém se diferenciando deste último em termos de valorização da experiência19. A Pop Art estaria relacionada também ao que Danto (1997) denomina como fim da arte, estado em que os artistas estariam comprometidos em servir diretamente à humanidade – uma Pop Art contra a arte e a favor de representações da vida real. Danto (1997) argumenta que, na década de 1960, as pessoas queriam viver suas vidas como elas eram em seus momentos presentes, não em planos diferentes ou em algum mundo distante no qual o presente seria apenas uma preparação e o sacrifício uma constante. Foi um momento cataclísmico, acompanhado por revoluções sociais e políticas profundas, que trouxeram transformações filosóficas marcantes para o conceito de arte. “Para nós, a arte perdeu a verdade e a vida verdadeiras e foi transferida para o plano das ideias” (HEGEL apud DANTO, 1997, p. 148).

Consideração finais Temos aqui novas formas de deportação da arte que fazem coro com a expulsão dos poetas da República, o julgamento estético de Philibeus com a rejeição de todas as representações em pintura ou escultura (NUSSBAUM, 1986), ou toda a transformação que sofreram os quadrinhos na década de 1950? Ou seria a indicação de um processo pelo qual se acende a possibilidade de construção de uma experiência artística que se

19

Para SHUSTERMAN (1992b, p. 132), na arte como experiência e como objeto, temos a arte como parte da vida, onde as obras de arte habitam o mundo e funcionam em nossa vidas. 84


insere na vida e no cotidiano com um formato que privilegia o prazer, a auto-expressão e a sociabilidade? Ao contrário das críticas à cultura popular em termos de limites formais, quando ocorrem experimentações e questionamentos nos quadrinhos quanto ao seu suporte, temos uma arte que nos convida a contemplá-la intelectualmente e esteticamente com uma função auto-referencial e em um novo conceito de arte ou não-arte que pode suscitar novos modelos e formas para a filosofia atual, considerando uma estética erudita e outra pragmatista em simultâneo.

Referências DANTO, A. After the end of art: contemporary art and the pake of history. New Jersey: Princeton University Press, 1997. DEWEY, J. Art as experience. New York: Perigee Trade, 2005 (1934). FEIFFER, J. The great comic book heroes. Seattle: Fantagraphics Books, 2003. GUBERN, R. Literatura da imagem. Rio de Janeiro: Salvat Editores do Brasil, 1979. NIETZSCHE, F. The birth of tragedy. Arlington: Richer Resources Publications, 2009 (1872). NUSSBAUM, M. The fragility of goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2001 (1986). SHUSTERMAN, R. Pragmatic aesthetic: living beauty, rethinking art. Lanhan: Rowman & littlefield Publishers, 2000 (1992). _________________. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34, 1998 (1992b). SILVA, F., NEVES, C. Reflexos de Seduction of the Innocent nos quadrinhos. In: Anais do II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial. Rio de Janeiro: LIHED, 2009. SILVA, F. Páginas dominicais ilustradas dos jornais americanos no final do século XIX: uma reconfiguração. In: Anais do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Curitiba : Intercom, 2009. WITEK, J. Comic book as history: The Narrative Art of Jack Jackson, Art Spiegelman, and Harvey Pekar. Mississipi: University Press of Mississipi, 1989.

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A deficiência∗1e o contrato social∗2 Por Martha Nussbaum O problema aqui não é a assistência aos idosos, que pagaram pelos seus benefícios através de atividades produtivas pregressas. Terapias de prolongamento da vida têm, no entanto, um potencial redistributivo ameaçador. O problema primário é com a assistência para os incapacitados. Falar eufemisticamente em permitir-lhes usufruir vidas produtivas, quando os serviços exigidos superam quaisquer produtos possíveis, oculta uma questão a qual, compreensivelmente, ninguém quer enfrentar. (David Gauthier “Morals by Agreement”)

1.

Necessidades assistenciais, problemas de justiça Sesha, filha da filósofa Eva Kittay e de seu marido, Jeffrey, é uma jovem mulher de

vinte e tantos anos. Cativante e carinhosa, ama música e vestidos bonitos. Responde com alegria ao afeto e admiração dos outros. Sesha balança ao ritmo da música e abraça seus pais. Mas jamais poderá andar, falar ou ler. Por causa de uma paralisia cerebral congênita e retardo mental grave será sempre profundamente depende dos outros. 1

Não existe uma tradução exata de disability para o português. No Brasil, o termo adotado, por demanda dos próprios movimentos pela inclusão de pessoas portadoras de deficiência, é “pessoas com deficiência”, enfatizando-se a pessoa antes da deficiência, com o objetivo chamar atenção para a questão dos Direitos Humanos. Após consulta à bibliografia especializada no assunto, optei por traduzir disability por deficiência e impairment por lesão. A não tão antiga tradição médica traduzia impairment por deficiência e disability por incapacidade, mas, hoje em dia, os movimentos pela inclusão das pessoas portadoras de deficiência mostram que a deficiência tem significado social, e que antes da deficiência há a lesão que provoca o mau funcionamento de uma parte do corpo. Entretanto, antes de lesões e deficiência há a pessoa: as restrições de habilidades de um corpo lesionado são ocasionadas também pela falta de apoio social dentro do espaço público e pelo preconceito a essas pessoas; o deficiente não necessariamente é um incapaz, apenas tem necessidades especiais para poder realizar algumas (ou várias, dependendo da deficiência) habilidades comuns. 2 Tradução de Susana de Castro. Trata-se aqui de extratos da tradução do segundo capítulo do livro Fronteiras da Justiça que será lançado pela Editora WMF Martins Fontes. A Harvard University Press gentilmente autorizou a publicação desses trechos nesta edição da revista Redescrições. Parte do material desse capítulo foi publicado anteriormente pela autora em formato de artigo: “Capabilities and Disabilities: Justice for Mentally Disabled Citizens”, Philosophical Topics 2 (2002): 133-165. Todo o material é publicado aqui por cortesia da Tanner Foundation. © 2006 by President and Fellows of Harvard College. 86


Precisa ser vestida, lavada, alimentada, e que a levem para passear pelo Central Park em cadeiras de rodas. Além desses cuidados mínimos, se for para realizar-se da sua maneira, precisa de companhia e amor, um retorno visível das capacidades de afeição e satisfação que são seus modos mais fortes de conectar-se com os outros. Seus pais, profissionais atarefados, ocupam-se ambos de Sesha por muitas horas e pagam uma enfermeira em tempo integral. Ainda mais ajudantes são necessários nas muitas ocasiões em que Sesha está doente ou tem ataques e não os pode ajudar, dizendo onde dói.20 Meu sobrinho Arthur é uma criança grande e bonita de dez anos. Adora todo tipo de máquinas e já possui um conhecimento impressionante sobre seu funcionamento. Poderia conversar com Arthur o dia todo sobre a teoria da relatividade se a entendesse tão bem quanto ele. Minhas conversas ao telefone com Art vão sempre de “Oi, Tia Martha” diretamente para a última novidade mecânica, científica ou histórica que o tenha fascinado naquele momento. Mas Art é incapaz de estudar em uma sala de aula de escola pública, e não pode ser deixado sozinho por um minuto quando ele e sua mãe estão fazendo compras. Possui poucas habilidades sociais e parece ser incapaz de aprendê-las.

Afetivo

em

casa,

fica

apavorado

se um estranho

lhe toca.

Excepcionalmente grande para sua idade, também é muito desajeitado, incapaz de jogar os jogos dos quais a maioria das crianças menores é perita. Também possui tiques nervosos chamativos e produz sons estranhos. Arthur tem tanto a síndrome de Asperge, que provavelmente é um tipo de autismo de alto nível funcional, quanto, a síndrome de Tourette.21 Seus pais trabalham em período integral, e não podem proporcionar-lhe muita ajuda. Felizmente, o trabalho de sua mãe, como organista de igreja, permite-lhe exercitar-se em casa e as pessoas da igreja não se importam se leva Arthur para o trabalho. Mais importante ainda, o estado no qual eles vivem concordou, após uma luta, em pagar pela educação de Arthur em uma escola privada, equipada para lidar com sua combinação de talentos e deficiências. Nenhum de nós sabe se Arthur poderá algum dia viver por conta própria. Jamie Bérubé ama B.B. King, Bob Marley, e os Beatles. Pode imitar um garçom trazendo seus pratos favoritos, e possui um arguto senso de humor verbal. Jamie nasceu com a síndrome de Down e desde seu nascimento tem recebido sempre a assistência de uma ampla variedade de médicos e terapeutas, para não mencionar o cuidado 20

Ver Kittay (1999). Meu retrato de Sesha aqui corresponde à época descrita neste livro. Também possui numerosas deficiências físicas, dentre as quais se destaca um grupo de alergias alimentares muito graves. 21

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ininterrupto de seus pais, os críticos literários Michael Bérubé e Janet Lyon. Nos primeiro dias de vida, Jamie tinha que ser alimentado através de uma sonda inserida pelo seu nariz: seus níveis de oxigênio eram monitorados por uma máquina. Na época em que seu pai o descreve,22 Jamie tem três anos. Um logopedista trabalha para desenvolver seus músculos da língua; outro lhe ensina a língua americana de sinais. Um massagista terapeuta alonga os músculos encurtados de seu pescoço de modo que a sua cabeça possa ficar mais reta. Cinesioterapeutas trabalham o baixo tônus muscular, o maior obstáculo tanto ao movimento quanto à fala das crianças com síndrome de Down. Igualmente importante, uma boa pré-escola local em Champaign, Illinois, o incluiu em uma sala de aula regular, estimulando sua curiosidade e lhe dando uma preciosa autoconfiança nas relações com outras crianças, que reagem bem à sua doce personalidade. Acima de tudo, seu irmão, pais e amigos constituem um mundo no qual ele não é visto como “uma criança com síndrome de Down”, muito menos “um mongoloide idiota”. Ele é Jamie, uma criança especial. Jamie provavelmente poderá viver de alguma forma por conta própria e arrumar um emprego. Mas seus pais sabem que irá, mais do que muitas outras crianças, precisar deles por toda a sua vida. Crianças e adultos com lesões mentais são cidadãos.23 Qualquer sociedade decente deve responder às suas necessidades de assistência, educação, autorrespeito, atividade e amizade. As teorias de contrato social, no entanto, imaginam os agentes contratantes que projetam a estrutura básica da sociedade como “livres, iguais e independentes”, e os cidadãos cujos interesses representam, como “membros plenamente cooperantes da sociedade ao largo de uma vida completa”. 24 Também, 22

Em Bérubé (1996); meu retrato de Jamie deriva desta descrição. Uma observação com relação à terminologia: na literatura sobre deficiência, “lesão” [impairment] é uma perda de função corporal normal: uma “deficiência” [disability] é algo que você não pode fazer em seu meio ambiente em função de uma lesão; uma “incapacidade” [handicap] é a desvantagem competitiva resultante. No que se segue, tentarei levar em consideração estas distinções, apesar da linha entre lesão e deficiência ser difícil de estabelecer, particularmente quando o contexto social não é considerado fixo, mas aberto para debates. Como argumentarei, não podemos prevenir todas as deficiências, pois algumas lesões continuarão afetando a funcionalidade mesmo em um ambiente social justo. O que devemos fazer é prevenir a incapacidade [handicap] com relação a direitos básicos. A literatura distingue normalmente entre “doença mental”, tida como sendo primariamente uma desordem emocional e “lesões cognitivas”, ou “deficiências intelectuais”, tidas como envolvendo somente a razão e não as emoções. Acredito que esta divisão é equivocada: casos nucleares de doença mental, tal como esquizofrenia, envolvem tanto lesões cognitivas quanto emocionais. “Lesões cognitivas” como autismo e a síndrome de Asperger envolvem proeminentemente as emoções. Além disso, se alguém sustenta, como o faço, que as emoções envolvem a cognição, não quererá usar uma linguagem que encoraja as pessoas a separá-las. Por todas essas razões, uso a expressão “lesão mental” e “deficiência mental” para cobrir o terreno ocupado tanto pelas lesões “cognitivas” quanto pelas “doenças mentais”. Ela corresponde à “lesão física” e “deficiência física” (apesar de, é claro, não implicar que as lesões mentais não tenham uma base física). 24 Locke é a fonte da primeira frase, Rawls da segunda (PL., pp. 20, 21, 183 e em outros lugares): ver a discussão na seção ii, e, sobre Locke, ver o capítulo1. 23

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muitas vezes, os imaginam caracterizados por uma racionalidade particularmente idealizada. Tais abordagens são insatisfatórias, mesmo em casos de lesões e deficiências físicas graves. Está claro, no entanto, que só abordarão as lesões mentais graves, e deficiências associadas, em uma reflexão posterior, depois que as instituições básicas da sociedade já tenham sido formuladas. Na prática, isso significa que pessoas com lesões mentais não estão entre aquelas para as quais e em reciprocidade com as quais as instituições básicas da sociedade são estruturadas. O fracasso em lidar adequadamente com as necessidades de cidadãos com lesões e deficiências é uma falha grave das teorias modernas que concebem os princípios básicos da política como o resultado de um contrato para vantagem mútua. Essa falha vai mais ao fundo, afetando-lhes sua própria pertinência enquanto abordagens acerca da justiça humana em um sentido mais geral.25 Uma abordagem satisfatória da justiça humana requer reconhecer a igualdade na cidadania para pessoas com lesões, inclusive lesões mentais, e apoiar apropriadamente o trabalho de sua assistência e educação, de tal maneira que também ajudem a lidar com os problemas causados pelas deficiências associadas. Além disso, requer reconhecer as muitas variedades de lesão, deficiência, necessidade, e dependência que um ser humano “normal” igualmente experimenta, e, dessa forma, a grande continuidade que existe entre as vidas “normais” e as daquelas pessoas que padecem de lesões permanentes. Defenderei no capítulo 3 que e enfoque das capacidades pode funcionar melhor porque começa a partir de uma concepção da pessoa como um animal social, cuja dignidade não deriva de uma racionalidade idealizada, e, além disso, oferece uma concepção mais adequada de cidadania plena e igual para pessoas com lesões físicas e mentais, e para aquelas que cuidam delas. No decorrer do livro abordarei tanto a lesão física quanto a mental, mas concentrar-me-ei, particularmente, na última, a qual desafia as teorias em questão de uma maneira mais fundamental. Por essa razão, destacarei aqui três exemplos de lesão mental, mas, mais tarde, apontarei para as implicações de meu argumento também para a lesão e a deficiência físicas. Uma vez que o foco prático da minha argumentação será a educação, centrarei a discussão em crianças; mas, é claro, o argumento é completamente geral, e possui implicações práticas relacionadas ao tratamento dos adultos.

25

Uma vez mais, falo apenas de teorias que consideram que a razão do contrato é a vantagem mútua. 89


As lesões e as deficiências levantam aqui dois problemas distintos de justiça social, ambos urgentes. Em primeiro lugar figura a questão do tratamento justo para pessoas com lesões, muitas das quais precisam de arranjos sociais atípicos, incluindo diversos tipos de assistência, se queremos que tenham vidas integradas e produtivas. Em outra época, Sesha e Jamie teriam, provavelmente, morrido na infância, ou, se, tivessem sobrevivido, teriam sido internados em alguma instituição na qual receberiam os cuidados básicos, sem jamais terem a chance de desenvolver suas capacidades para o amor, a alegria, e, no caso de Jamie, de conquistas cognitivas substanciais e, provavelmente, cidadania ativa.26 Quinze anos atrás, antes de a síndrome de Asperger ter sido reconhecida como uma doença, Arthur teria sido, provavelmente, considerado uma criança esperta com problemas emocionais por causa dos pais. Ele teria sido, provavelmente, internado em alguma instituição, sem ter qualquer oportunidade de aprender, enquanto seus pais teriam vivido com uma culpa esmagadora. Uma sociedade justa, em contraste,

não estigmatizaria essas crianças

nem impediria seu

desenvolvimento; apoiaria sua saúde, sua educação, e a plena participação na vida social, e mesmo, se possível, na vida política.27 Uma sociedade justa, podemos pensar, também olharia para o outro lado do problema, a sobrecarga sobre os ombros das pessoas que cuidam de seus dependentes. Essas pessoas carecem de muitas coisas: reconhecimento de que o que estão fazendo é trabalho, assistência, tanto humana, quanto financeira, oportunidades de empregos recompensadores, e participação na vida social e política. Essa questão está estreitamente ligada à justiça de gênero, uma vez que a maior parte do cuidado de dependentes é realizada por mulheres. Além disso, grande parte do trabalho de cuidar de um dependente não é remunerado e nem reconhecido como trabalho pelo mercado, apesar de influenciar enormemente a vida de tal trabalhador. Minha irmã não poderia manter nenhum emprego que não lhe permitisse ficar muitas horas em casa. Somente a grande flexibilidade dos horários de ensino e pesquisa universitária permite que tanto os Bérubés, quantos os Kittays compartilhem suas responsabilidades de cuidado dos filhos mais equitativamente do que é comum entre profissionais ambiciosos. Também podem arcar financeiramente com muita ajuda – a maioria da qual, como Kittay observa com incomodo, exercida por mulheres que, elas próprias, não cobram muito, e que não são 26

As coisas nem sempre foram assim: a institucionalização nos Estados Unidos começou na época da Guerra Civil, e algum tempo antes na Europa e Grã-Bretanha. 27 Para um exemplo notável da participação política de dois homens com síndrome de Down, ver Levitz e Kingsley (1994) e Levitz (2003). 90


respeitadas pela sociedade como deveriam, já que estão fornecendo um serviço social especializado e vital.28 Estes problemas não podem ser ignorados ou adiados sob a suposição de que afetam somente um número pequeno de pessoas. Esta seria de qualquer forma uma má razão para adiá-los, já que levantam problemas graves de desigualdade, da mesma forma que seria ruim adiar questões de subordinação racial ou religiosa sob o argumento de que afetam somente uma minoria pequena. Mas devemos, também, reconhecer que a deficiência e a dependência surgem de diversas maneiras. Não é somente a grande quantidade de crianças e adultos com lesões permanentes que precisam de assistência integral e constante. As lesões mentais, físicas e sociais que acabei de descrever, apresentam, todas, paralelos aproximados com as condições de vida dos idosos, ainda muito mais difíceis de cuidar do que crianças e jovens adultos com deficiências, pois são pessoas mais zangadas, defensivas e amarguradas, menos agradáveis de se estar junto. Lavar o corpo de uma criança com síndrome de Down parece uma tarefa muito mais fácil do que lavar o corpo incapacitado, e incontinente, de um pai, ou de uma mãe, que detesta estar em tal condição; especialmente quando ambos, o assistente e o assistido, se recordam dos seus melhores anos. Assim, o modo com o qual refletimos sobre as necessidades de crianças e adultos com lesões e deficiências não diz respeito apenas a uma parte atípica da vida, facilmente isolada da “média”, também tem implicações sobre o modo como os “normais” (pessoas com defeitos e limitações medianos)29 pensam sobre seus pais quando estes envelhecem – e sobre as necessidades que eles próprios, provavelmente, terão se viverem o bastante.30 Quando a expectativa de vida aumenta, a independência relativa que muitas pessoas algumas vezes desfrutam se parece cada vez mais como uma condição temporária, uma fase da vida na qual entramos gradualmente e da qual também rapidamente começamos a deixar. Mesmo na fase áurea de nossas vidas, muitos de nós encontramos períodos curtos ou longos de extrema dependência dos outros – depois de uma cirurgia ou de um acidente grave, ou 28

Sobre a questão geral de respeito ao trabalho assistencial, ver Ruddick (1989), que cita um estudo do governo estadunidense de 1975 que classifica diferentes tipos de trabalho de acordo com a “complexidade” e as habilidades requeridas. A maior pontuação foi ganha pelo trabalho de cirurgião. Entre as piores pontuações ficaram as repartidas entre os trabalhos de babá e professoras de enfermagem, que foram agrupadas ao lado do “ajudante de misturador de barro” e a pessoa que joga os restos de galinha em um container. 29 O termo “normais” provém de Goffman (1963); sobre a sua teoria do estigma, ver Nussbaum (2004a). 30 De acordo com a secretaria das mulheres do ministério do trabalho estadunidense, em maio de 1998 um número estimado de 22.4 milhões de lares – praticamente um em cada quatro – prestavam assistência doméstica para membros da família ou amigos com mais de cinquenta anos. Para esses e outros dados, ver Harrington (1999). 91


durante um período de depressão ou stress mental grave.31 Ainda que uma análise teórica possa ambicionar distinguir fases de uma vida “normal” de uma lesão permanente, essa distinção é difícil de se perpetrar na vida real, e o será cada vez mais.32 Mas, se reconhecermos a continuidade entre a situação de pessoas com lesões permanentes e certas fases das vidas “normais”, devemos também reconhecer que o problema de respeitar e incluir pessoas com lesões e o problema correlativo de fornecer assistência para pessoas com lesões e deficiências são vastos e afetam virtualmente toda família em cada sociedade. Há muitas pessoas cuja saúde, participação e autorrespeito dependem das decisões que tomemos neste terreno. Uma das tarefas mais importantes de uma sociedade justa seria responder a essas necessidades de modo a proteger a dignidade dos beneficiários. Por outro lado, há também uma grande quantidade de trabalho assistencial sendo feito, normalmente sem remuneração e sem o reconhecimento público de que seja trabalho. Providenciar essa assistência de tal maneira que não explore o assistente também parece ser uma tarefa central de uma sociedade justa.33 Em outra época, pressupunha-se que todo esse trabalho seria feito por pessoas (especificamente, mulheres) que de qualquer forma não eram cidadãos plenos e não precisavam trabalhar fora de casa. As mulheres não foram indagadas se desejavam fazer esse trabalho: era simplesmente o trabalho que lhes correspondia e se presumia que o faziam por escolha, por amor, ainda que, na verdade, tivessem poucas opções de escolha nesse assunto. Hoje consideramos que as mulheres são cidadãos iguais e têm o direito de procurar qualquer tipo de trabalho. Também consideramos que têm, em geral, o direito verdadeiro a escolha sobre se farão uma quantidade desproporcional de assistência infantil ou se assumirão a sobrecarga de cuidar de algum pai ou mãe idosa. Tão pouco hoje a maioria das pessoas afirmaria, se perguntada, que o acidente de dar a luz a uma criança com lesões graves deveria destruir todas as chances, para os pais ou para um dos pais, de ter uma vida pessoal e social produtiva. Mas as realidades vividas em nações que ainda assumem (como em certa medida todas as nações modernas o fazem) que este 31

Ainda que o aumento da expectativa de vida signifique que, apesar do alto índice de divórcios, o casamento médio dure mais do que durava no século dezenove, o crescente aumento do tempo de deficiência na velhice logo excederá o que costumava ser a expectativa de vida média. 32

Sobre esta distinção, ver JF, discutido na seção vi; Rawls, por sua vez, apoia-se em Daniels (1985). Este é um dos temas mais importantes na literatura feminista recente: ver especialmente Kittay (1999), Folbre (1999) e (2001). Trabalhos anteriores importantes nesta área incluem Fineman (1991) e (1995), Ruddick (1989), Tronto (1993), Held (1993), West (1997). Duas coleções excelentes de artigos desde diversas perspectivas feministas encontra-se em Held (1995) e Kittay e Feder (2002). 33

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trabalho deve ser feito de graça, “por amor”, ainda colocam enormes obstáculos às mulheres ao longo de todo o espectro econômico, diminuindo sua produtividade e sua contribuição para a vida civil e política.34 O cuidado ordinário das crianças ainda é feito desproporcionalmente pelas mulheres, uma vez que estão muito mais dispostas do que os homens a assumir trabalhos de meio período e as limitações da carreira que isso impõe. Os homens que concordam em ajudar no cuidado de uma criança que logo irá para a escola estão, em geral, muito menos dispostos a assumir a dura carga de cuidar por um longo período de um descendente ou ascendente com lesões graves. Em algumas nações, a mulher que faz tal tipo de trabalho pode contar com o apoio de outros membros da extensa família, ou da rede comunitária; em outras, não. 2. Versões prudenciais e morais do contrato: o público e o privado O que disseram as teorias da justiça da tradição do contrato social a respeito desses problemas? Praticamente nada. Esta omissão, porém, não pode ser facilmente corrigida, pois está integrada na estrutura de nossas melhores teorias. Algumas versões do contrato social (Hobbes, Gauthier) partem unicamente da racionalidade egoísta; a moralidade surge (na medida em que o faz) das restrições impostas pela necessidade de se negociar com outros que estão em situação parecida com a nossa. A versão de Rawls, em contraste, acrescenta a representação da imparcialidade moral sob a forma do Véu da Ignorância, o qual restringe as informações das partes sobre suas posições na futura sociedade. Assim, as partes de Rawls perseguem seu próprio bem estar, com nenhum interesse pelos interesses dos outros,35 porém não se pretende que sejam modelos de pessoa completa, mas somente de partes da pessoa. A outra parte, a parte moral, é fornecida pelas restrições de informações do Véu. Não obstante, em ambas as versões egoísta e moralizada do contrato a ideia de que as partes sejam em linhas gerais iguais em poder e capacidade possui um papel estrutural muito importante na determinação da situação de negociação. 36 Como vimos, 34

Ver também o Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas (1999), pp. 77-83, que argumenta que tanto em países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos tal trabalho não remunerado é uma das maiores fontes de desvantagem para as mulheres, e aumenta cada vez mais na nova economia globalizada, a qual, em muitos casos, substituiu o trabalho doméstico por trabalho fora de casa. 35 As partes na Posição Original possuem a mesma concepção de bem estar, definida em termos de bens primários. Elas sabem que as pessoas que representam possuem diversas concepções de bem. Algumas dessas concepções abrangentes [comprehensive] podem, é claro, incluir interesses pelos outros e relações afetivas, mas uma vez que as partes estabelecem o contrato sem consciência de suas próprias concepções particulares, esses interesses não podem entrar em suas considerações no momento de acordá-lo. 36 É interessante observar aqui que não está terrivelmente claro se devemos pensar sobre essas capacidades acontextualmente (como livre de lesões graves) ou contra o pano de fundo de alguns 93


Rawls (p. 126) descreve a definição de Hume das Circunstâncias da Justiça de “as condições normais sob as quais a cooperação humana é possível e necessária”. Jamais deixa de endossar a restrição de Hume, a despeito do seu enfoque kantiano nas condições justas. Sua teoria é dessa forma um híbrido,37 kantiana, em sua ênfase nas condições justas, e contratualista clássica, em sua ênfase no “estado de natureza” e no objetivo de vantagem mútua. Uma igualdade aproximada de poder e capacidade pode ser construída de diversas formas. Por exemplo, poderíamos imaginar todas as partes do contrato social como seres necessitados e dependentes, com laços fortes e inalienáveis entre si. No entanto, todos os maiores pensadores do contrato social escolheram imaginar suas partes como adultos racionalmente competentes, que, como diz Locke, são, em um estado de natureza, “livres, iguais, e independentes.”38 Contratualistas contemporâneos adotam explicitamente uma hipótese próxima a essa. Para David Gauthier, pessoas com necessidades especiais ou lesões não tomam “parte de relacionamentos fundados em uma teoria contratualista.”.39 Da mesma forma, as partes na Posição Original de Rawls sabem que suas habilidades, físicas e mentais, estão dentro do âmbito “normal”. E, cidadãos na Sociedade Bem Ordenada de Rawls, cujos interesses são representados pelas partes na Posição Original, são “membros plenamente cooperantes da sociedade ao longo de uma vida completa.” Essa ênfase está embutida profundamente na lógica da situação contratual: a ideia é a de que as pessoas só se reúnem e estabelecem por contrato os princípios políticos básicos, em certas circunstâncias, circunstâncias que podem dar lugar a vantagem mútua e segundo as quais todos esperam ganhar algo com a cooperação. Incluir na situação inicial pessoas com necessidades excepcionalmente caras ou que caiba esperar que contribuam muito menos do que a maioria para o bem estar do grupo (menos do que a quantidade definida pela ideia do “normal”, cujo uso em Rawls examinaremos em seguida), seria contrário a lógica de todo o exercício. Se as pessoas estão estabelecendo acordos cooperativos com vistas à vantagem mútua, desejarão unirse com aquelas com cuja cooperação esperam ganhar algo, não com aquelas que contextos gerais (como livre de deficiência grave dentro de algum contexto humano “normal”). Os contratualistas clássicos não levaram em conta o grau no qual mudanças no contexto social poderia afetar o relacionamento entre o que chamo lesão e o que chamo deficiência. 37 Como a teoria política de Kant. 38 Locke (pp. 1679-80?/1960), cap. 8. Locke, entretanto, como vimos, concede à benevolência um grande papel em sua descrição das partes; nessa medida, sua teoria escapa das objeções que estarei levantando. 39 Gauthier (1986, p.18), falando de todas “as pessoas que baixam o nível médio” de bem estar em uma sociedade. 94


requerem atenção excepcionais e onerosas, sem que contribuam suficientemente para o produto social, e que, portanto, reduziriam o nível do bem estar conjunto da sociedade. Como Gauthier reconhece sinceramente, esta é uma característica incomoda das teorias contratualistas sobre a qual as pessoas não gostam de ser lembradas.40 Dessa forma, a própria ideia de tal contrato conduz claramente a que se estabeleça uma distinção entre variações “normais” em meio a cidadãos “geralmente produtivos” e o tipo de variação que coloca algumas pessoas em uma categoria especial de lesão,41 um movimento que Rawls endossa explicitamente. Exatamente aqui queremos, é claro, afirmar prontamente que pessoas com lesões e deficiências associadas não são improdutivas. Elas podem contribuir para a sociedade de diversas maneiras, desde que a sociedade crie as condições sob as quais possam fazer isso. Assim, as teorias do contrato social estão simplesmente erradas com relação aos fatos; se corrigissem suas pressuposições factuais falsas, poderiam incluir plenamente pessoas com lesões, e suas necessidades especiais, diminuindo as deficiências associadas a essas lesões. Uma defesa da teoria do contrato social segundo esse modelo está, portanto, condenada ao fracasso. Antes de passar a um exame mais detalhado da teoria de Rawls, permitam-me levantar uma questão que não tratarei em toda a sua extensão. A própria ideia de estabelecer por contrato os princípios que governarão a cultura pública tenderá sempre a ser associada com a omissão de certas questões importantes de justiça relacionadas com a assistência aos dependentes, pelas seguintes razões. Tradicionalmente, na história do pensamento político ocidental,42 a esfera do contrato tem sido vista como a esfera pública, caracterizada pela reciprocidade entre pessoas aproximadamente iguais. Essa esfera é geralmente contrastada com outra esfera, a, assim chamada, esfera privada, ou o lar. Nele as pessoas fazem as coisas por amor e afeto e não por respeito mútuo; nele as relações contratuais estão fora do lugar e a igualdade não é um valor central. Os laços familiares de amor e as atividades que fluem dele não são imaginados, de alguma forma pré-contratual ou natural, como componentes do que as partes, elas próprias, estão planejando [na Posição Original]. Até mesmo Rawls utiliza a expressão-padrão “afetos naturais” para caracterizar os sentimentos familiares. 40

Ibid., n. 30; ver epígrafe. E a deficiência? Mais uma vez não está terrivelmente claro se as lesões são imaginadas a partir de uma ideia das circunstâncias gerais da vida humana, e, portanto, como produtoras de deficiências dentro deste contexto geral. 42 Aliás, também na história do pensamento político indiano, a única tradição não ocidental que conheço suficientemente para poder comentar. Ver Nussbaum (2002a). 41

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Hoje em dia, no entanto, quase todo mundo reconhece que a família é, ela própria, uma instituição política, definida e modela, em aspectos fundamentais, por leis e instituições sociais.43 Aliás, dever-se-ia também deixar claro (e isso já era claro para o grande John Stuart Mill) que os sentimentos familiares estão longe de serem naturais: são moldados de diversas maneiras pelas condições do ambiente social e pelas expectativas e necessidades que elas impõem à família. Nenhum dos pensadores da tradição do contrato social, entretanto, aproxima-se deste insight (ainda que tanto Hobbes, quanto Rawls tenham, distintamente, elementos dele). Uma das razões dessa falha, acredito, está no fato de que a metáfora norteadora que utilizam para a organização de princípios políticos é a ideia do contrato, associada, tradicionalmente, com a antiga distinção entre as esferas pública e privada. Não há nada na própria ideia de um contrato social que nos impeça de utilizá-la para pensar a estrutura familiar e o trabalho feito dentro da família. Abordagens sobre a família que empregam as ideias do contrato e da negociação provaram ser úteis em nos ajudar a pensar sobre questões de equidade nas relações entre membros de uma mesma família. 44 Alguém poderia pensar que Rawls iria nessa direção, pois reconhece que a família é uma das instituições que formam parte da “estrutura básica” da sociedade na medida em que influencia decisivamente as chances de vida das pessoas, desde o início da vida, e, também, porque repudia a distinção entre o publico e o privado, ao menos oficialmente. Dessa forma, alguém poderia pensar que ele consideraria o trabalho dentro da família como parte daquilo que o acordo social deveria regular, ainda que, por razões complexas, ele não o tenha feito.45 A valorização histórica da família como a esfera privada do amor e afeto, a ser contrastada com a esfera do contrato, dificulta, no entanto, a tarefa de desenvolver, de modo consistente, o insight de que a família é uma instituição política. Nenhuma das teorias aqui consideradas trata a família dessa forma, como entidade política. Todas, consequentemente, fornecem muito pouca ajuda com relação aos problemas de justiça dentro da vida familiar.46 3. O contratualismo kantiano de Rawls: bens primários, pessoalidade kantiana, igualdade aproximada e vantagem mútua 43

Ver Nussbaum (2000a), cap. 4. Ver Sen (1990); Agarwal (1997). 45 Ver Okin (1989). Com relação à reformulação de Rawls de sua posição em IPRR, ver Nussbaum (2001a), cap. 4. A família está sendo tratada ultimamente como uma instituição voluntária, análoga a uma igreja ou a uma universidade, de modo que a justiça política só a regula desde fora. 46 Ver Nussbaum (2000a), cap. 4, e (2000c). 44

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Façamos agora um exame mais detalhado da teoria kantiana do contrato social de Rawls, que, acredito, é a melhor teoria desse tipo de que dispomos. A teoria de Rawls é excepcionalmente atraente porque não trata de extrair a moralidade da imoralidade, mas parte de um modelo da perspectiva moral muito atrativo. A combinação na Posição Original da racionalidade prudencial das partes com as restrições de informações impostas pelo Véu da Ignorância almeja nos fornecer uma representação esquemática de uma situação moral que as pessoas reais podem viver a qualquer momento, se são suficientemente capazes de ignorar a pressão de seus próprios interesses. Como diz Rawls, na comovente frase final da A teoria da justiça: “A pureza do coração, caso fosse possível alcançá-la, seria ver as coisas claramente, e agir com graça e autodomínio a partir desse ponto de vista” (p. 587). 47 A concepção de Rawls é, certamente, mais promissora do que a de Gauthier, se estamos procurando por boas respostas para as nossos problemas de justiça para os deficientes mentais. A teoria de Rawls, entretanto, é uma teoria híbrida. Seus elementos kantianos estão, algumas vezes, em tensão com seus elementos do contrato social clássico. Devemos estar preparados para identificar essas tensões e perguntar, para cada problema que encontremos, qual elemento da teoria é a sua causa, e quais elementos, em contraste, podemos utilizar para diminuir o problema. As quatro áreas problemáticas que devemos examinar são: o uso na teoria da renda e riqueza para indicar posições sociais relativas, o seu uso da concepção kantiana de pessoa e de reciprocidade, o seu compromisso com as Circunstâncias da Justiça e o seu compromisso com a ideia da vantagem mútua como aquilo que torna a cooperação superior a não cooperação. Deveríamos mencionar um quinto problema: o profundo comprometimento de Rawls com a simplicidade e economia metodológica. Este compromisso não só determina o tratamento dos bens primários, mas também afeta, de modo geral, o formato do seu contratualismo, levando-o, por exemplo, a excluir da Posição Original motivações de benevolência. A razão que Rawls (p. 129) oferece por não acompanhar Locke neste ponto, e incluir a benevolência, é a de que nos interessa “assegurar que os princípios de justiça não dependam de pressuposições fortes... Na base da teoria, busca47

Ver também PL, p. 51: na Posição Original, diz Rawls, o Razoável é modelado pelas limitações de informações, colocadas claramente à parte da descrição da racionalidade das partes, conectada, por seu lado, com seus interesses em perseguir suas próprias e diversas concepções de bem. Ver também PL, pp. 103-105: cidadãos na Sociedade Bem Ordenada possuem duas faculdades morais: a faculdade de senso de justiça e a faculdade de uma concepção de bem. A capacidade de formar e ser guiado por uma concepção de bem é modelada na Posição Original pela racionalidade das partes; a capacidade para o senso de justiça pela simetria aproximada entre as partes e por suas limitações de informações. Dessa forma, poderia se dizer que rivalizam com outras definições de Racional e Razoável. 97


se assumir o mínimo possível”. Irei voltar a este ponto mais tarde quando for discutir a necessidade de se introduzir a benevolência. Retornemos, agora, ao tratamento explícito da deficiência em Rawls, perguntando-nos como cada um daqueles aspectos, acima mencionados, de sua teoria aparece na sua justificativa para adiar essa questão para um “estágio legislativo”, quando os princípios básicos da sociedade já teriam sido formulados.

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Susan Neiman. O Mal no Pensamento Moderno – uma história alternativa da filosofia. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel, 2003. 392 p. Segundo as narrativas tradicionais, a filosofia moderna teria surgido com Descartes a partir da transformação da ontologia em epistemologia. Susan Neiman, porém, oferecenos uma outra versão dessa história. Segundo a autora, a filosofia moderna começa a partir da separação entre os dois tipos de males, o mal moral e o natural, e o seu grande precursor não teria sido Descartes, mas sim Rousseau. Nesta história alternativa da filosofia, Neiman ‘captura’ o leitor com sua escrita; somos ‘aprisonados’ na trama de seu relato como em um romance. Já no início do livro lança-nos uma provocação: a modernidade começa com o terremoto de Lisboa em 1755 e termina com Auschwitz. O que uma catástrofe natural e uma catástrofe humana e política têm a ver com a história da filosofia, perguntamo-nos. Neiman deixa claro desde o início que para ela a grande questão da filosofia, desde os antigo, é a justificativa da existência do mal. Com a finalidade de aplacar o mal metafísico, isto é, a consciência da finitude humana, e justificar o princípio da ordem moral de acordo com o qual felicidade e virtude seriam sinônimos, a religião pagã grega supunha que o destino das pessoas era determinado pelos deuses. Esta era a única explicação capaz de justificar o sofrimento e a miséria do indivíduo virtuoso. O cristianismo redescreve a noção de destino, chamando-lhe de desígnio divino ou providência. Nada ocorre na natureza ou na vida dos homens que seja aleatório, a causa de tudo é Deus. Emblemático do desígnio divino é a história bíblica de Jó, que a despeito de sua reconhecida bondade, e até mesmo santidade, passa pelas piores privações sem que tenha cometido qualquer falta. De acordo com a moral cristã, o bom cristão é aquele que possui a fé cega e aceita os fados da vida sem esboçar conflito ou dúvida, pois dele será o reino eterno. Os racionalistas do século XVII reconfiguraram a filosofia de acordo com a época de progresso científico que viviam, porém característico deles é a manutenção da explicação conjunta dos males morais e naturais a partir da noção de um arquiteto do mundo. A Teodicéia de Leibniz representa justamente essa motivação teológica. Nela, Leibniz defende que a despeito da presença de enormes sofrimentos e misérias no mundo, ainda assim vivemos no ‘melhor dos mundos possíveis’. O objetivo do seu livro é justamente o de provar que a dor e a miséria são no fundo frutos da bondade divina. A causa de cada falta, erro, sofrimento, é um bem ou leva a um bem. O arquiteto investigou todas as combinações possíveis entre vidas, coisas e pessoas, e o mundo em que vivemos é fruto da melhor combinação 99


possível, pois não é possível banir completamente o mal e o erro do mundo, já que, em certa medida, o bem está relacionado ao mal. Porém, o terremoto de Lisboa que destruiu praticamente a cidade e matou 15 mil pessoas, pôs definitivamente essa visão de mundo de lado. Impossível crer, depois do terremoto, que haveria um desígnio divino nessa catástrofe natural. Intelectuais revolucionários como Voltaire e o Marquês de Sade vão atacar frontalmente a teoria da teodicéia. Mas o autor central desta passagem da prémodernidade para a modernidade, diz Neiman, é Rousseau. Coube a ele a separação definitiva entre mal moral e mal natural. A causa do erro, do crime, da falta, diz Rousseau no Emílio, não seria externa ao homem, (pré-) determinada pela vontade divina, mas interna, isto é, fruto das suas próprias ações e escolhas. O universo das causas naturais é, portanto, inexpugnável para o homem, mas a natureza lhe presenteou com a capacidade moral inata. Todo homem nasce com a capacidade de discernir entre a bondade e a generosidade, e os seus opostos. Essa capacidade, porém, deve ser cultivada, pois do contrário poderá ser facilmente mal guiada e distorcida. A modernidade inicia-se, portanto, com o fim da teodicéia e com o reconhecimento de que cada qual é responsável por suas ações e vida. Neiman relata em seguida com riqueza de detalhes e arguta capacidade de descrição e síntese, o posicionamento dos filósofos modernos que se seguiram a Rousseau, como Kant, Hegel e Nietzsche. É interessante recapitular sucintamente a maneira como no seu relato cada qual vai construindo sua filosofia em reposta à filosofia do outro. Assim, Kant que leu muito Rousseau, chegou à conclusão de que deveríamos separar definitivamente o universo das escolhas humanas do universo das escolhas divinas, inalcançáveis ao nosso intelecto finito, porém deixou ao mesmo tempo claro que o campo da moralidade deveria ser puro. Kant levou, segundo Neiman, a noção da contingência às suas últimas consequências; vivemos sujeitos à contingência e a única forma de escapar dela e da imprevisibilidade dos efeitos das nossas ações em outros é agir sempre de acordo com uma intenção universal pura, ou seja, aquela que segue cegamente a lei moral, independente do contexto em que o sujeito estiver. Leitor de Kant, Hegel queria banir completamente a contingência da filosofia, para tal, diz Neiman, ele matou Deus e divinizou a consciência, deu-lhe a capacidade de, a partir do processo histórico, se autoconhecer, autodeterminar e progredir rumo a sua máxima realização no universal concreto. Nietzsche, leitor de Kant e Hegel, foi um dos maiores críticos do idealismo alemão. Ao seu ver, não há realização possível no universal, o indivíduo só pode atuar e realizar-se em sua própria existência. Tão pouco há necessidade de querermos escapar da contingência por temor à 100


imprevisibilidade do futuro. Para Nietzsche essa é uma atitude covarde e ressentida de quem não gosta no fundo da vida. Ao contrário, o filósofo nietzscheano ama a vida e o mundo contingente, ainda que este seja cheio de dor e miséria. A ideia de afirmar a dor e o sofrimento e não temer o que possa ocorrer no futuro está expressa nas doutrinas do eterno retorno do mesmo e do amor fati: amamos prometeicamente o nosso destino ainda que lhe desconheçamos e, por isso, afirmamos que não importa que não saibamos o que faremos ou seremos, ainda assim, faríamos tudo outra vez. O modelo intencionalista moderno acerca da responsabilidade pela ação e escolha vai, porém, entrar em choque com a visão de mundo pós-Auschwitz. O que se observou no julgamento dos oficiais nazistas responsáveis pelo genocídio judeu? Eles não se julgavam responsáveis, nem se sentiam culpados pelo ocorrido. Como imputar culpabilidade a pessoas que aparentemente são desprovidas de qualquer maldade. Os oficiais comportavam-se como cidadãos pacatos e comuns de qualquer província alemã e não assassinos cruéis e violentos, cheios de malícia e premeditação. O retrato desse choque com a ‘banalidade do mal’ foi descrito primorosamente por Hannah Arendt no Eichmann em Jerusalém. O relato de Arendt do julgamento em Israel do oficial nazista responsável pelo transporte dos judeus para os campos de concentração poloneses, mais de quinze anos após o fim da guerra, representa, para Neiman, o melhor do que se escreveu até hoje obre a gênese da maldade do século XX. Hannah Arendt desmistifica a maldade ao nos mostrar que no fundo ela não representa uma patologia exclusiva a sanguinolentos psicopatas, ao contrário, ela pode surgir como fruto de pequenas vaidades, como o crescimento na carreira, ou a simples a vontade de autopreservação. Além disso, no caso alemão, a propaganda nazista incutiu profundamente nas mentes alemãs a ideia de que todos estavam participando de um grande e nobre movimento coletivo. Por outro lado, os relatos de atos heroicos ocorridos nesse período, de pessoas que perderam suas vidas para salvar a de outras, levam Arendt, diz Neiman, a retomar ideia de uma teodicéia pós-moderna, laica. O mal na avaliação de Arendt existe e não pode ser simplesmente extinguido; não é algo que possa ser combatido somente com educação moral e boa intenção; ele é como um fungo que se espalha, não é profundo, não possui intenção, mas pode se espalhar com rapidez. Na nossa vida cotidiana, banal e trivial, pode crescer desapercepidamente e, quando menos se espera, tomar conta da nossa alma e emoção, deixando-nos frios e egoístas com relação à dor de outros. Como combatê-lo? Como 101


convencer as pessoas a darem o melhor de si e não o pior? Arendt retoma a ideia rousseauniana segunda a qual nascemos com a capacidade inata, natural, para o bem e para o amor. Graças a essa capacidade inata queremos a preservação do mundo e nos sentimos responsáveis por ele. A predominância do desejo de sentir-se em casa (amor mundi) pode inibir o descaminho para o mal inerente à atual condição humana na sociedade tecnocrata e seu modo de vida planejado, e planificado. No confronto das forças, espera-se que o compromisso com a humanidade se sobressaia, mas já não temos a ilusão de que possamos nos livrar completamente da sua ameaça. Susan Neiman foi aluna de John Rawls e Stanley Cavell em Harvard. Talvez por causa da influência do segundo sobre suas formação intelectual, encontramos ao longo de todo este livro referências constantes a grandes romancistas. Goethe, Dostoievski, Lessing, Camus, Sade, entre outros, estão lado a lado com Hume, Voltaire, Schopenhauer, Hegel, entre outros. Certamente, a origem do mal não é um tema exclusivo da religião ou da filosofia, mas também da literatura. Considero primorosas as passagens em que Neiman analisa as obras de Sade e Camus, nos capítulos três e quatro, respectivamente. Alguns leitores talvez venham a considerar que trata-se aqui mais propriamente de uma história da religião do que de história da filosofia moral, pois a autora aborda, dentre outra coisas, a teodicéia, o maniqueísmo, a teoria filosófica da religião natural, o deísmo, o gnosticismo etc. Penso, porém, que este livro vem nos mostrar o quanto as duas estavam (estão?) imbricadas. O mal ainda é hoje um tema predominantemente religioso, mas tem presença tácita forte na filosofia moral e política. Não podemos discutir cada qual separada da outra, sob o risco não conseguir explicar adequadamente os fenômenos sociais e políticos da atualidade. Neiman analisa em seu livro o atentado terrorista de 11 de setembro às torres gêmeas de Nova Iorque. Acredito que demonstra coragem intelectual ao assumir a tarefa de analisar um fenômeno relativamente recente dentro de um quadro de conceitos filosóficos morais, mas dá conta do recado com classe, sem cair em clichês ou simplificações. Um livro para ser lido e relido. Susana de Castro

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano I, número 4, 2010 ISSN: 1980-881X

Editor convidado: Ronie Alexsandro Teles da Silveira Editores: Paulo Ghiralelli Jr e Susana de Castro

www.gtdepragmatismo.com

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