Revista Redescrições, ano2, número 4, 2011

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010)

Ano II, número 4, 2011 ISSN: 1984-7157


Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo Cerasel Cuteanu – CEFA James Campbell – Universidade de Toledo Leoni Maria Padilha Henning - Universidade Estadual de Londrina Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte † Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Marcelo Barreto - UFES Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Foto da capa: James Campbell

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010) Ano II, número 4, 2011

Sumário Editorial

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Notas & Comentários A resposta para quem me chama de “relativista” - Paulo Ghiraldelli Júnior

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Liberdade e individualidade nas grandes cidades: contribuições de Georg Simmel para o debate contemporâneo - Amana Rocha Matos

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Artigos: 1. Justiça e igualdade em Ronald Dworkin - Fábio Oliveira

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2. James, Rorty, Vattimo e a religião pós-metafísica – Cristiane Maria Marinho

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3. Richard Rorty e a redescrição da sabedoria: - Marcos Carvalho Lopes

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4. A Utopia Liberal de Richard Rorty - Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira

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Tradução: 1. Um arco do pensamento- Robert Brandom

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2. O giro neopragmatista - David. L. Hildebrand

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3. Michael Linn Eldridge - James Campbell

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Resenha: DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro, Martins Fontes, 2010. – (Coleção Todas as Artes). 646 pág. - por Inês Lacerda Araújo 108

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Editorial É com enorme prazer que apresentamos este último número de nosso segundo ano. Nesta edição o leitor encontrará artigos versando sobre temas caros à filosofia de uma maneira geral, e, em especial, ao pragmatismo, tais como religião na atualidade, a noção de experiência e linguagem, justiça igualitária, liberdade e muitos outros. Na seção de notas e comentários, destinada a autores convidados, estão os textos de Paulo Ghiraldelli, “A resposta para quem me chama de “relativista””, e de Amana Matttos, “Liberdade e individualidade nas grandes cidades: contribuições de Georg Simmel para o debate contemporâneo”. O primeiro texto mostra de modo claro como Rorty escapa do relativismo através do entendimento causal da linguagem, mediante a qual diferencia sentenças intencionais de sentenças descritivas. O segundo apresenta a argumentação de um texto lapidar de George Simmel, publicado em 1903, no qual o autor descreve a sociedade contemporânea e seu apego à liberdade, e como o aumento da liberdade representa o aumento da solidão nos grandes centros urbanos. Na seção de artigos o leitor encontra os textos de Fabio Oliveira, “Justiça e igualdade em Ronald Dworkin”, Cristiane Maria Marinho, “James, Rorty, Vattimo e a religião pós-metafísica”, Marcos Carvalho Lopes, “Richard Rorty e a redescrição da sabedoria: Ciúme de Platão, Ciúme de Proust”, e Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira “A Utopia Liberal de Richard Rorty”. No primeiro o autor apresenta as principais teses de Dworkin sobre a justiça igualitária e distributiva nas sociedades liberais. Cristiane Marinho mostra em artigo de fôlego como Vattimo, James e Rorty apresentam versões atualizadas das crenças religiosas, redescritas para o mundo atual. No terceiro artigo, Marcos traz a filosofia para o plano da psicologia ‘humano’ e mostra como a filosofia de Platão pode ser explicada a partir do ciúme de Platão por Homero. Não há nesse ciúme nada de depreciativo, mas como mostra Rorty através do conceito bloomiano de ‘angústia da influência’, o ciúme é o motor por trás da obra dos grandes autores. Por fim, Antonio Engelke brinda-nos com um artigo de fôlego sobre a filosofia política de Rorty, suas influências e debates, e também suas falhas. Na seção de tradução, encontará “Um arco de pensamento” de Robert Brandom, “O giro neopragmatista” de David. L. Hildebrand, e, finalmente, “Michael Linn Eldridge” de James Campbell. O último texto foi apresentado na mesa redonda no 38th SAAP, em março deste ano, em homenagem a Michael Eldridge, falecido em outubro do ano passado. Conhecido por seu trabalho sobre Dewey, Tranforming Experience, Mike era membro do nosso corpo editorial. Mike participou de um dos encontros do Grupo de Trabalho Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof e ao longo desses anos manteve um diálogo estreito com seus membros. O texto de Hildebrand é certamente um texto que toca num ponto chave do debate Rorty e Dewey, a noção de experiência. Rorty defende que está noção tornou-se supérflua depois da virada linguística. Hildebrand argumenta, no entanto, que essa noção é fundamental para o pragmatismo e não pode ser abandonada. No primeiro texto, de Robert Brandom, o leitor encontra a leitura de Brandom da história da filosofia da mente de Rorty e de como ele abandona-a pelo pragmatismo. Na seção de resenha o leitor encontra a resenha de Inês Araújo Lacerda sobre o livro de John Dewey, Arte como experiência, publicado pela primeira vez em sua íntegra no ano passado. Este livro certamente merece a atenção dos estudiosos do pragmatismo e da filosofia da arte, seja por que aborda a noção central da filosofia deweyana, experiência, seja por que apresenta um novo modo, pragmatista, de abordar as questões da estética. Os editores

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Notas & Comentรกrios

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A resposta para quem me chama de “relativista” Paulo Ghiraldelli Júnior Para os meus amigos Nicolao e Susana, estudiosos do relativismo

Como o pensamento pragmatista adota o perspectivismo, comum a James e a Nietzsche, não é difícil encontrar aqueles que vêem nessa doutrina nada além do relativismo – a implicância com Nietzsche e James tem história. A confusão entre relativismo e perspectivismo é comum entre os que, vindo de tradições doutrinárias que falam na busca do absoluto, não consigam – ou não queiram – ver a diferença entre uma postura e outra. Para os meus adversários, quem adota a ideia de que temos melhores idéias se consideramos o maior número de perspectivas – que é o perspectivista – é absorvido no time dos que adotariam a ideia de que todas as perspectivas se equivalem – o que denominam relativista. Mas, é claro, essa idéia está errada. Um perspectivista acredita ser melhor não transformar o mundo num lugar em que a pluralidade de visões é anulada por uma só visão, sem exame em cada caso. Um relativista, na conta de meus adversários, também não; ele é aquele que tem consideração por todas as visões que se lhe apresentam, mas as consideraria como equivalentes e, portanto, teria menos chances de justificativa perante os que optaram de maneira diferente e, principalmente, oposta. Os adversários do relativismo nem sempre percebem – e se percebem ficam bem quietinhos às vezes – que esse personagem, o relativista, é uma invenção pouco plausível. Ninguém deixa de optar sobre a maior parte das questões que são colocadas, e não é verdade que não tenhamos boas justificativas para oferecer pelas nossas opções. Então, se é assim e se isso é razoável de se dizer, qual o problema que faz alguns tão incomodados com o relativismo? O que os incomodados com o relativismo dizem é que é um fato empírico que optamos sempre e que é também aceitável ver que há boas justificativas para determinadas opções. Mas, eles insistem que tais decisões são baseadas em justificativas que não se sustentam pelas próprias pernas, uma vez que, no limite, uma justificativa pode se apresentar tão boa quanto a do lado contrário. Sendo assim, a verdade associada à justificativa, que é o que Platão chamou de conhecimento, não estaria de posse do relativista. Não tendo conhecimento, o relativista optaria e justificaria, sim, mas, sem qualquer segurança. Dizendo isso, o adversário do relativista acaba concordando com o cético, para quem a verdade é possível, sendo que aquilo que não é possível é o conhecimento. 6


Eis aí o pântano: aquele que é o adversário do relativista termina por endossar o cético. E se ele fica em desconforto assim, pode ser que volte ao dogmatismo para dizer que é mentira de Nietzsche que “Deus está morto”. Então, esbraveja que há um absoluto. E complementa: o fato da filosofia não encontrar o absoluto é uma questão de tempo. Vinte e cinco séculos é pouco. Os pragmatistas não precisam ir por essa via. Concordo com Richard Rorty quando ele reapresenta o “tudo é interpretação” de Nietzsche. As visões são sempre nossas, são interpretações, claro. Mas isso não quer dizer que elas se equivalem e também não quer dizer que nossas justificativas são sempre idiossincráticas a ponto de não podermos obter validade durável para elas. Caso observemos o que temos para concretamente observar (não há razão para não aprendermos nada com a Linguistic Turn), que é o uso de nossa linguagem, poderemos ver isso com certa facilidade. O exemplo de Rorty, nesse caso, é significativo e feliz. Ele fala sobre dinossauros. Rorty diz que quando comentamos sobre dinossauros, quando queremos descrevê-los, podemos usar dois tipos de enunciados, e ambos podem envolver única e exclusivamente relações causais – as relações causais são as relações que admitimos válidas em nossa ciência. É o que temos no mundo sublunar! Falamos dos dinossauros levando em conta relações causais sob uma descrição que diz respeito aos seus ovos; depois, falamos dos dinossauros levando em conta relações causais sob uma descrição que diz respeito a nós. Ambas são descrições nossas e ambas são causais, mas a primeira não pode ser alterada uma vez que dinossauros são dinossauros porque são ovíparos. Não podemos falar de dinossauros não ovíparos. Algo não ovíparo parecido com o dinossauro não será dinossauro. (Do mesmo modo que baleia parece peixe, mas é mamífero, não é peixe.). Agora, a segunda descrição sempre poderá ser alterada, como vem sendo, pois estamos sempre modificando o desenho que fazemos dos dinossauros (RORTY, 1998, p.97-98). Assim, a questão toda é de levar em conta o uso da linguagem: se sabemos utilizar a palavra dinossauro corretamente nos jogos de linguagem em que ela cabe, não criaremos problemas. Não há razão para dizer aquilo que alguém com pendores metafísicos (ou que leu muito Platão ou Kant) gostaria de dizer, por exemplo, que botar ovos é algo da coisa-em-si chamada dinossauro, enquanto que o resto seria da coisa-para-nós chamada dinossauro. Fazemos isso, de vez em quando, porque estamos acostumados a achar que temos de distinguir a descrição de ações intencionais da descrição de ações não-intencionais. Chegamos até a dizer que a descrição de ações não intencionais é a descrição do que é Real, imutável, enquanto que a descrição do que é intencional é a interpretação, o mutável e, então, não propriamente o Real (o R em maiúsculo, aqui, é proposital). Podemos distinguir essas descrições, claro, mas não temos que distingui-las a partir de uma distinção que as 7


coloca em campos opostos, em reinos que as faz de espécies diferentes. Não precisamos criar um reino para cada tipo de ação. Ambas são ações causais. “O dinossauro é ovíparo”(a) indica uma ação de causa: ele, dinossauro, é a causa de seu ovo. O “dinossauro é um animal que conhecemos faz pouco tempo”(b) indica uma ação de causa: ele, dinossauro, causou em nós uma idéia (que não tínhamos antes das primeiras descobertas arqueológicas a respeito da Era dos Dinossauros). As frases (a) e (b) são descrições, ambas. Acreditar que a constância da primeira e a volatilidade da segunda nos dão condições de afirmar que há uma “coisa em si”, uma essência dinossáurica que escaparia de ser uma descrição, que estaria para além da nossa linguagem, é o passo metafísico que não precisamos dar. Se dermos esse passo, reintroduzimos a briga desnecessária que faz o metafísico criar o relativismo para poder socar como um sparring. Pois se introduzimos a linguagem da metafísica, haverá novamente o que é “interno”, “em si”, e o que é “externo”, “para nós”. Quando, com as nossas descrições de eventos causais, já eliminamos o problema à medida que soubemos usar corretamente a palavra “dinossauro” dentro de um jogo de linguagem em que o uso correto é o esse mesmo, o que de fato fizemos, para que temos de voltar com o jogo de linguagem da metafísica? Não digo que essa explicação toda é imune a objeções. Mas digo que, com Rorty, estou convencido que alguém de boa vontade deixaria de lado essa coisa de “ele caiu no relativismo”. Relativamente a ovos, a descrição de dinossauro é uma. Relativamente a nós, a descrição do dinossauro é outra. Mas, em cada caso, temos uma descrição, ou seja, uma visão do assunto – uma interpretação. Ei aí o perspectivismo: o que se entende como sendo dinossauro possui várias descrições. Há várias perspectivas para que possamos olhar um dinossauro. Conforme o momento, temos de lançar mão de uma e não de outra. Mas isso não me autoriza a dizer que uma delas daria o dinossauro em-si e outra não, pois ambas são produzidas por mim enquanto usuário da linguagem na qual a palavra dinossauro faz sentido segundo esse uso que mostrei. O outro uso, o do jogo de linguagem da metafísica, não parece nos levar a bom caminho. Além disso, o jogo de linguagem da metafísica torna o nosso jogo de linguagem comum estranho. Ora, às vezes é bom levar a sério Montaigne, quando ele diz que “é insípida toda a sapiência que não se acomoda à insipiência comum” (MONTAIGNE, 2004, p. 103).2 Referências Rorty, R. Truth and progress. Philosophical papers III. Cambridge: Cambridgre University Press, 1998, p. 87-88. Montaigne. Pequeno vade-mécum. Lisboa: Antígona, 2004, p. 103. 8


LIBERDADE E INDIVIDUALIDADE NAS GRANDES CIDADES: contribuições de Georg Simmel para o debate contemporâneo Amana Rocha Mattos* RESUMO: O presente trabalho discute o importante texto de Georg Simmel “As grandes cidades e a vida do espírito”, escrito em 1903, trazendo seus pontos principais para pensar a experiência de liberdade no espaço urbano nos dias atuais. Desde sua publicação, esse texto se tornou uma referência na área das Ciências Sociais para o estudo da Modernidade, do individualismo e da subjetivação no cotidiano das metrópoles. Entendendo que esses assuntos constituem a base para a discussão de temas como a liberdade, a independência e a autonomia, articulamos os argumentos de Simmel com essas questões, trazendo também outros comentadores de seu texto. (Apoio: CAPES) Palavras-Chave: Liberdade. Metrópoles. Modernidade. Individualismo. ABSTRACT: The present work discusses “The metropolis and the mental life”, Georg Simmel's seminal 1903 text, using its main points to underline contemporary experiences of freedom in urban spaces. From its release, Simmel's text has become a reference in the social sciences for studies of Modernity, individualism and the subjectivities produced in daily metropolis life. Positing these themes as the ground for any significant discussion about freedom, independence and autonomy, we use Simmel’s arguments, and other authors that comment on his text, as a base toward thoughts about these topics. (Apoio: CAPES) Keywords: Freedom. Metropolis. Modernity. Individualism.

.Introdução A ideia de liberdade é, no mundo ocidental contemporâneo, uma noção central para indivíduos e países. As discussões acerca do tema mobilizam pessoas, grupos e a sociedade como um todo, orientam práticas governamentais e pautam as relações internacionais. Para a democracia, a liberdade é um valor fundamental. Como condição para a convivência democrática e pacífica entre os sujeitos, a liberdade aparece como um valor importante na cidade. Entretanto, seu exercício é difícil e muitas vezes gerador de conflitos, angústia e mal-estar entre os sujeitos que se veem às voltas com as constantes *

Psicóloga, Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquiso os sentidos que jovens contemporâneos têm de liberdade, a partir da revisão do conceito na teoria liberal e das críticas a esse conceito realizadas pela teoria crítica feminista e por autores da democracia radical. Tenho pesquisado também a construção do sentido de liberdade na sociedade Brasileira a partir do exame do período histórico da belle époque carioca, na passagem do século XIX para o XX. Email: amanamattos@gmail.com


negociações de limites implicadas na convivência humana. Para os sujeitos contemporâneos, a liberdade configura-se como um termo que aglutina uma série de valores, expectativas e práticas. Em trabalho anterior (MATTOS e CASTRO, 2008), tomamos a noção senso comum de liberdade como uma formação discursiva de nosso tempo, e investigamos quais são os seus significados, que condições subjetivantes da contemporaneidade ela exprime, percebendo que em muitos sentidos ela se afasta das definições políticas e acadêmicas sobre o que vem a ser liberdade. Discutimos de que forma a experiência de liberdade vem sendo significada e vivida por jovens cariocas, que problemas surgem desse exercício, de que forma os sujeitos se sentem tocados por esses problemas. Ao entender a liberdade, a independência e a individualidade como formações discursivas da contemporaneidade que assimilam importantes concepções das teorias democrática, liberal e pragmática, procuramos identificar os impasses subjetivos e da convivência com o outro, implícitos e vivenciados na atualidade, entendendo tais impasses como tributários de uma concepção de mundo liberal e calcada numa economia de mercado. No presente trabalho, tomamos o texto “As grandes cidades e a vida do espírito” de Georg Simmel, escrito em 1903, para refletirmos sobre a constituição psíquica do indivíduo do início do século XX, habitante das grandes cidades, que se veem subjetivados pela convivência com estranhos, pela exigência de autonomia, pelo imperativo da divisão social do trabalho e, acima de tudo, que se veem envolvidos na promessa moderna de liberdade individual. Esse texto, de enorme importância para as Ciências Sociais, propõe questões muito férteis para o campo da Psicologia, uma vez que, embora já tenham se passado 108 anos do momento de sua produção, observamos as metrópoles contemporâneas com problemas e questões tributárias do projeto de sociedade moderna. Além disso, o texto descreve com grande sensibilidade os traços constitutivos da urbanidade e civilidade de 1903 (como a indiferença, ou “atitude blasé”; a intelectualização das reações, a objetificação dos vínculos e a onipresença do dinheiro permeando as relações...), o que nos faz perceber, ao longo de sua leitura, que problemas enfrentados hoje nas grandes cidades guardam profunda familiaridade com as questões narradas por Simmel, que tanto lhe chamavam a atenção. Para complementarmos a discussão do trabalho, traremos textos de Gilberto Velho (1995) e Hermano Vianna (1999) que se debruçam sobre discussões oriundas do clássico texto de Simmel, contribuindo com exemplos e explicações que enriquecerão nossa exposição. Nosso propósito é discutir as ideias centrais desses três textos e articulá-las com o problema da liberdade no mundo atual, oferecendo um campo teórico mais amplo onde se possam pensar as implicações subjetivas da valorização da experiência de liberdade na vida dos indivíduos. Para tanto, gostaríamos de fazer, 10


inicialmente, uma breve apresentação da questão da liberdade, do valor que esta assume na Modernidade e de como a democracia constitui o palco para o exercício das liberdades individuais para, em seguida, trazer o texto de Simmel e seus comentadores.

1. A liberdade como valor moderno: um breve panorama Num mundo hierarquizado como o da Idade Média, de posições sociais bem definidas e relações de poder que se legitimavam pela vontade divina, as noções de tempo e verdade eram eternizadas, tal como ilustra Tocqueville ([1840], 2000, p.38), autor francês que viveu na primeira metade do séc. XIX: “O legislador pretende promulgar leis eternas, os povos e reis só almejam erigir monumentos seculares e a geração presente se encarrega de poupar às gerações futuras o trabalho de resolver seu destino.” Com a Modernidade, este cenário social se desmonta, e os papéis a serem desempenhados pelos cidadãos já não são previamente definidos. No Estado moderno, a igualdade submete todas as classes a uma mesma lei, o que permite um intercâmbio constante de costumes e valores entre os diferentes grupos sociais. O outro já não está tão distante e a alteridade se estabelece entre tipos de uma mesma espécie, a saber, a humanidade. Todas as classes se comunicam e se mesclam todos os dias, se imitam e se invejam; isso sugere ao povo uma porção de idéias, de noções, de desejos, que ele não teria se as posições sociais fossem fixas e a sociedade imóvel. Nessas nações, o servidor não se considera jamais inteiramente estranho aos prazeres e aos trabalhos do amo, o pobre aos do rico; o homem do campo se esforça para assemelhar-se ao da cidade, e as províncias à metrópole. (TOCQUEVILLE, [1840], 2000, p. 45)

Neste corte radical com um passado arcaico e hierarquizado, a Modernidade estabelece um sujeito universal, amplia a relação do indivíduo com o todo através da ideia de humanidade e torna a filosofia, a ética e a cidade assuntos que dizem respeito a todos os indivíduos, e não mais a uma casta ou classe exclusivamente. A esse respeito, Starobinski (1994) afirma que o século XVIII foi responsável pela invenção do conceito e da experiência de liberdade. Reunindo, de um lado, o pensamento Iluminista e sua busca por fundamentar uma lei da Razão, que não subjugasse o homem aos poderes e caprichos de instâncias mundanas e que lhe desse liberdade para pensar, e, de outro, a ascensão da burguesia na sociedade europeia inaugurando a relação livre com o prazer, o crescimento e o trabalho desligados do pecado, o século XVIII forja a liberdade como algo a ser buscado na relação do homem com o pensamento, com as artes, com o Estado e com a sociedade. Segundo o autor: no plano político, como no plano moral ou religioso, nada mais parece justificar a relação arbitrária entre a autoridade e os súditos obedientes. Como dirá Kant, os homens das Luzes

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resolveram não mais obedecer a uma lei externa: querem ser autônomos, submetidos a uma lei que percebem e reconhecem em si mesmos. (STAROBINSKI, 1994, p. 18)

A ideia de igualdade na Modernidade tem papel fundamental na democratização e laicização da sociedade, tornando cada indivíduo por direito igual aos demais, isto é, cada um deve obedecer às mesmas leis, tem as mesmas necessidades e os mesmos direitos que todos os outros. Entretanto, a experiência da desigualdade econômica e social é vivida intensamente no cotidiano europeu. Fatores como a industrialização emergente, o surgimento das grandes cidades e o alargamento do fosso entre pobres e ricos, somados a uma nova percepção da liberdade, tornam a Europa, e em especial a França, um caldeirão em ebulição em meados do século XVIII. Segundo Starobinski (1994, p. 18), o ataque à liberdade na sociedade francesa estava em toda parte: “nas insolências dos ricos, na falta de habilidade dos governantes, no recurso ao aparato opressivo do poder. Descobre-se que a extrema liberdade de alguns atenta contra a liberdade de todos.” A Revolução Francesa trouxe à cena os conflitos presentes no seio da sociedade, e seus ideais – igualdade, liberdade e fraternidade – foram o mote das guerras contra a monarquia, a submissão dos cidadãos à autoridade real, os privilégios do clero e da nobreza. Sustentando a Revolução, o Iluminismo fornecia o pensamento sobre os direitos inalienáveis e naturais do homem, particularmente os direitos à liberdade individual e à propriedade privada. Segundo Cassirer (1997, p. 334), a filosofia francesa do século XVIII foi a primeira a proclamar a doutrina dos direitos inalienáveis (elaborada pelos filósofos ingleses) com entusiasmo. “E ao proclamá-la dessa maneira, inseriu-a verdadeiramente na vida política real, conferindo-lhe essa força de choque, essa potência explosiva que se manifestou nos dias da Revolução Francesa.” Ter direitos. E não apenas isso, mas conhecê-los e poder lutar por eles. Para Voltaire, pensador iluminista francês, tal é o sentido de liberdade: “No essencial, em sua acepção mais apropriada, a idéia de liberdade coincide com a dos direitos do homem. O que quer dizer, finalmente, ser livre senão conhecer os direitos do homem? Pois conhecê-los é defendê-los.” (VOLTAIRE apud CASSIRER, 1997, p. 336) O pensamento Iluminista do século XVIII consolida a importância do domínio de si, a autonomia do sujeito, e passa a visar o domínio do mundo, da natureza. A Física e a Matemática, com a enunciação das Leis da Natureza, abrem a perspectiva inédita até então de controle e previsão dos fenômenos naturais. Poder intervir no curso natural das causas e efeitos leva os pensadores do século XVIII a tomar o conhecimento como o principal instrumento de ação do homem no mundo, e a técnica daí proveniente como o caminho para o progresso e o desenvolvimento. “O porvir abre-se para novas obras de arte, para novos empreendimentos utilitários, para as grandes reformas da ordem 12


humana. Máquinas de tecer, máquinas a vapor, cidades ideais ou novas dramaturgias.” (STAROBINSKI, 1994, p. 233) É também no século XVIII que se firmam as bases para o individualismo. A preocupação com as liberdades individuais, com os direitos à propriedade e ao lucro, a valorização, a partir da consolidação da burguesia no poder, do trabalho como meio para se atingir a riqueza e do esforço individual como motor do desenvolvimento são alguns dos fatores que fortaleceram e estabeleceram o individualismo na Modernidade. A construção de uma dimensão íntima e privada, da experiência do prazer, a vivência da solidão, bem como a legitimação do sujeito racional na filosofia, que por meio apenas do pensamento poderia aceder à Verdade, contribuíram de maneira decisiva para o individualismo, em termos econômicos, psicológicos e sociais, que tem início nos séculos XVII e XVIII e adquire fôlego no século XIX, quando movimentos importantes como o Romantismo, o desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo, aliados à Revolução Industrial irão reforçar o percurso do individualismo na Modernidade.

2. As cidades modernas como espaço privilegiado para o exercício da liberdade: contribuições de Georg Simmel para pensarmos o sujeito urbano Já no primeiro parágrafo de seu texto, Simmel afirma que “[o]s problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida [...].” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 577). Para o autor, que proferia esta palestra (depois transformada em texto) no ano de 1903, a constituição das grandes cidades como espaço privilegiado de convivência e sociabilidade na passagem dos séculos XIX para XX é motivo de reflexão, e ele se interessa por entender o homem que vive nessas cidades, seu espírito, seus sentimentos, sua maneira de agir neste ambiente recente e até então pouco explorado na história da humanidade: as metrópoles. Segundo Velho, em comentário a esse texto de Simmel, o papel das cidades no surgimento das mudanças socioculturais que se apresentam para o indivíduo moderno não é meramente uma função de cenário, como um “receptáculo passivo”, mas funcionam como “produtora[s] de novas formas de sociabilidade e interação social”. Esse papel ativo na constituição dos estilos de vida urbanos se deve, como ressalta o autor, ao papel desempenhado pelo capitalismo nas mudanças realizadas em todos os setores da vida social pós-Revolução Industrial. “Certamente foi uma das 13


maiores transformações na história da humanidade, e é neste quadro que se desenvolvem as metrópoles moderno-contemporâneas.” (VELHO, 1995. p. 228). A preocupação do sujeito em preservar sua autonomia (ou, podemos ler aqui, sua liberdade) no intenso meio urbano ocorre, segundo Simmel, como uma maneira de se proteger de uma série de características que a sociabilidade urbana lhe impõe: o desenraizamento, o encontro com incontáveis estranhos diariamente, a exposição constante a estímulos de todos os tipos, a velocidade, o vai e vem das calçadas... “Assim, o tipo do habitante da cidade grande [...] cria um órgão protetor contra o desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento [...].” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 578). O entendimento aqui seria uma intelectualização das reações dos indivíduos das grandes cidades, que se defenderiam assim das “coações” da metrópole. Ao intelectualizar aquilo que chega a si, o sujeito evitaria submeter-se a emoções e afetos inconstantes, reagindo de maneira “lógica”, “racional”, “intelectual” ao que se lhe apresenta. Vemos aqui como o projeto filosófico da Modernidade, de autonomia do sujeito centrado e racional, repercute nas práticas e nos valores compartilhados pelos habitantes das cidades grandes, atualizando o estilo de vida urbano. Velho sublinha tal característica das metrópoles, afirmando que essa maneira de viver nas cidades grandes, encontrável nas metrópoles já no início do século XX, é “a expressão mais radical dos processos de individualização da modernidade”. (Velho, 1995. p. 232) Uma das características marcantes da cidade grande – e muito valorizada por seus habitantes até hoje – é a possibilidade oferecida aos indivíduos de que eles sejam “livres”, e muito mais livres do que seriam numa cidade pequena ou no meio rural, por exemplo. Isso ocorre, em grande medida, porque o estilo de vida urbano tem particularidades que estimulam e preservam a privacidade e a individualidade de seus habitantes. Uma delas é o exercício da reserva do sujeito, que evita estabelecer relações muito íntimas com personagens do seu cotidiano urbano (como vizinhos, colegas de trabalho, transeuntes, prestadores de serviço com os quais interage, etc.). Esse exercício da reserva, do recolhimento dos sujeitos para seus espaços privados de circulação, é uma das principais notas características da experiência de urbanidade inaugurada com as grandes cidades. A outra particularidade do estilo de vida urbano – intimamente ligada à primeira – é a indiferença, ou a atitude blasé. Como afirma Simmel A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o

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significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos. (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 581)

Esse fenômeno é descrito por Simmel como próprio à cidade grande. O autor afirma, inclusive, que ele deriva de uma defesa fisiológica do indivíduo frente a tantos estímulos variados que o atingem. Podemos pensar, entretanto, que se trata de uma subjetividade urbana que está sendo educada, forjada, constituída a partir de condições de trabalho, de vínculos, de trocas inteiramente novas, e que essa constituição se dá num outro registro que não o fisiológico – no registro da subjetividade. Talvez por isso mesmo, para marcar esse outro registro distinto do fisiológico em que se dá a constituição do homem urbano, que Vianna faça questão de ressaltar o quanto o poeta Fernando Pessoa distingue-se, em sua obra O Livro do Desassossego, da descrição do indivíduo blasé ou indiferente de Simmel: Em Fernando Pessoa a reação não cessa, sua vida mental continua no nível de agitação mais intenso. Não se trata mais de um indivíduo que tem os mesmos limites nervosos daqueles que Simmel pensava encontrar numa cidade pequena (e que por isso sofriam na transição para uma cidade grande). Fernando Pessoa coloca em cena um outro tipo de indivíduo, que pode reagir intensamente a vários estímulos ao mesmo tempo, aceitando o desafio da metrópole e propondo um atalho para o desenvolvimento de novas ‘culturas subjetivas’. (VIANNA, 1999. p. 112) Ora, se tal atitude é possível e nos chega através da arte, certamente não estamos falando, ao pensarmos o homem urbano, de um efeito fisiológico, mas sim de um produto, de uma montagem, de uma construção de um novo tipo de pensamento da cultura moderna. É justamente porque as características dessa nova “vida do espírito” (reserva, autonomia, indiferença) são uma produção forjada no contexto social e econômico das grandes cidades, e não uma modificação das condições fisiológicas dos habitantes do espaço urbano, que podemos encontrar sujeitos que pensam a cidade e a habitam de outra maneira, como o faz Pessoa em sua poesia, por exemplo. Ainda assim, compartilhamos da tese principal de Simmel, de que a cidade moderna produz e estimula a liberdade, a individualidade, a autonomia de seus habitantes. E ao fazê-lo, cria códigos de conduta, comportamentos, estilos de vida que não apenas preservam tais qualidades subjetivas, mas também as tornam possíveis. Com isso, um dos principais valores da Modernidade, a liberdade, atravessou o século XX e chega ao século XIX como algo a que todos os cidadãos aspiram em suas vidas: a liberdade de poder fazer o que quiser, e se realizar através de escolhas, alcançando assim a liberdade. Esse sentido de liberdade é o que é afirmado pelo pensamento liberal, e que foi nomeado por Isaiah Berlin (2002) como liberdade negativa. 15


Além de tratar das modificações subjetivas que se passam no período em que escreve, Simmel se preocupa também com as possíveis consequências da valorização das qualidades do homem urbano na convivência no espaço urbano, seja para a vida em comum nas cidades, seja psicologicamente. O trecho seguinte ilustra com clareza, nas palavras do autor, essa dualidade, ou o “reverso dessa liberdade”: Pois a reserva e indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos maiores, nunca foram sentidas tão fortemente, no que diz respeito ao seu resultado para a independência do indivíduo, do que na densa multidão da cidade grande, porque a estreiteza e proximidade corporal tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual. Decerto é apenas o reverso dessa liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande; pois aqui, como sempre, não é de modo algum necessário que a liberdade do ser humano se reflita em sua vida sentimental como um sentir-se bem. (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 585)

Da perspectiva de Simmel, no início do século XX, a solidão e o abandono seriam o preço que a liberdade cobraria dos cidadãos pela vida nas metrópoles. Ou, como ressalta Velho, o anonimato e a fragmentação da experiência social (VELHO, 1995. p. 229). Para os sujeitos, preservar a liberdade seria um projeto de vida que admitiria a fragmentação das relações, aumentando a sensação de desafiliação dos sujeitos. Essa constatação de Simmel é bem interessante, pois levanta uma questão a respeito do gozo da liberdade individual que não costuma ser suficientemente abordada, especialmente a partir do referencial da teoria liberal, onde a liberdade é valor último a ser buscada pelos indivíduos e pelas nações, e é colocada como garantia de realização, plenitude e liberdade. Ao enfatizar que a experiência da liberdade individual não é acompanhada por um “sentirse bem”, Simmel aponta para os efeitos indesejáveis da liberdade – que demanda um desenraizamento, um destacamento do sujeito das tradições, dos costumes geracionais e das relações mais coletivas, de codependência e solidariedade. Mais do que uma aventura individual, a experiência de liberdade nas grandes cidades implica uma negação de tudo o que não afirme o indivíduo (independente e autônomo) como aquele que pode gozar da vida urbana. Esse desenraizamento é realizado por cada um cotidianamente, e reafirmado nas práticas que colocam o homem como senhor de seu destino2, mas não produz bem-estar. Mas do que Simmel estaria falando, a que tipo de sofrimento subjetivo ele estaria se referindo, então, se a liberdade individual é um valor tão central nas cidades modernas? As mudanças nos modos de vida e de produção que a urbanização promove, que ressaltamos no início desse artigo, estão intimamente associadas com o sistema capitalista. Ao contrário de muitos pensadores do seu tempo que se dedicavam a elogiar as maravilhas do progresso 16


da ciência e as conquistas na cidadania promovidas pela democracia, Simmel é profundamente tocado pelos efeitos que esse novo modo do indivíduo viver, se comportar e se pensar, ressaltando as características opressivas que a onda de valorização da liberdade individual produz. As relações entre as pessoas se tornam profundamente marcadas pelo distanciamento e pelo anonimato, e essas mudanças na sociabilidade não se introduzem sem um custo psíquico, subjetivo. Além disso, a objetificação das relações produzida pelo dinheiro, como iremos discutir adiante, reifica o afastamento entre os sujeitos pelo custo e pela utilidade das relações. Se nos descolarmos do momento histórico discutido por Simmel e nos voltarmos para nossa sociedade contemporânea, percebemos que as indagações que inquietavam o autor parecem ser ignoradas no cenário atual. Mas o termo “ignoradas” aqui deve assumir uma conotação muito mais próxima da noção de recalque psicanalítico, de defesa psíquica em que o sujeito mantém inconscientes certas representações, do que de desconhecimento ou desconsideração intencional. Atualmente, a liberdade individual é tratada como a solução para todos os problemas que se originam na relação com o outro. Não devemos ignorar que a consolidação da cultura do consumo e da economia de mercado se deu no intervalo de um século que nos separa do texto de Simmel. Ainda assim, acreditamos que haja profundas similaridades entre o cenário descrito e pensado pelo autor e este em que nós vivemos. Percebemos uma notável diferença

entre a exacerbação de certas

características na reflexão que Simmel realizou de seu tempo e a que vemos ser feita, de maneira geral, sobre a liberdade e a individualidade no contemporâneo. Voltaremos a essa questão mais adiante. Em relação à metrópole moderna discutida por Simmel, ela põe em cena a igualdade dos cidadãos perante a lei, assegurando a possibilidade de que cada um possa trilhar sua própria história, traçar seu próprio futuro, e descolar-se da tradição. Por outro lado, é justamente essa “desorientação” constitutiva das relações sociais que realça o sentimento de inadequação, de estranhamento, de inconformidade tão presentes entre os sujeitos modernos.1 Como afirma Velho, “Na sociedade moderna o alto nível de especialização se, por um lado aumenta a aparente liberdade de escolha, por outro diminui, no mundo do trabalho, o campo possível de experiências individuais.” (VELHO, 1995. p. 229) Esse descolamento da vida dos sujeitos de uma suposta tradição se dá no processo de constituição das cidades, no projeto de consolidação de uma sociedade moderna. Como ingrediente principal deste processo, temos a ascensão da economia capitalista e a divisão social do trabalho, em que a especialização dos trabalhadores desvincula o homem de uma compreensão e de uma 17


integração mais plena do processo de produção e do trabalho em geral, tornando o indivíduo especialista em determinada função pontual, específica. Simmel fala do desenvolvimento, na cultura moderna, do “espírito objetivo” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 588), isto é, da importância que a técnica e a especialização adquirem na cidade, em detrimento dos vínculos pessoais e tradicionais. E se há um ingrediente que corporifica essa mudança e esse novo “espírito objetivo”, esse ingrediente é o dinheiro: Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade. (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 581-582)

O valor das coisas – e não só das coisas, mas dos serviços, dos vínculos, das pessoas – ganha, assim, uma medida comum, através da qual se pode compará-las. Neste cenário, é importante ressaltarmos, a concepção de liberdade difundida amplamente na sociedade aproxima-se cada vez mais dos valores defendidos pelo liberalismo econômico, como discutimos exaustivamente em trabalhos anteriores (MATTOS, 2011, 2006). Assim, ao almejarem a liberdade para si próprios, os sujeitos urbanos agarram-se a valores claramente derivados do vocabulário econômico: desejam a liberdade de escolha (a se realizar no consumo), a independência pessoal (a se concretizar em bens materiais e na não dependência do outro para alcançar sua estabilidade de vida), a realização pessoal (materializada em bens e serviços a serem consumidos), etc. Ainda mais importante do que percebermos a promessa do liberalismo econômico implícita em cada um desses desejos modernos, é entendermos que essa aparente “evidência” do que deve querer e buscar um indivíduo para ser feliz tem suas raízes no discurso econômico vigente, que pretende objetivar as relações a partir de um referencial comum. Como resume Simmel, “Pois o dinheiro indaga apenas por aquilo que é comum a todos, o valor de troca, que nivela toda a qualidade e peculiaridade à questão do mero ‘quanto’.” (SIMMEL, 2005 [1903]. p. 579) Considerações finais A valorização da liberdade individual em nossa sociedade contemporânea é um fenômeno que se observa nas diferentes gerações, e percebemos que ela se dá, de maneira geral, através da expectativa de que pela via da liberdade (na realização de seus gostos, desejos e escolhas) o indivíduo alcançará a felicidade. 18


Muitas são as questões que se colocam a partir dessa forte expectativa de realização individual pela liberdade. Dentre elas, destacamos as dificuldades na convivência com o outro e na aceitação de diferenças, que potencializam uma série de conflitos que podem ser observados nos níveis pessoais e coletivos de nossa sociedade. Além disso, percebemos que pouco se problematizam as consequências do exercício da liberdade individual: assim como a discussão sobre os problemas implicados na definição dos limites não parece ganhar grande destaque hoje, a tematização do malestar que acompanha a liberdade e das dificuldades do seu exercício é minimizada, dando-se destaque à valorização dessa experiência como algo que qualifica o indivíduo em nossa sociedade. O espaço em que a experiência de liberdade se dá na contemporaneidade é, eminentemente, o espaço urbano. Pensar a construção da subjetividade contemporânea significa refletir sobre os usos, as apropriações e sobre os conflitos que se dão nesse espaço. Nesse sentido, as contribuições de Georg Simmel se mostram profundamente atuais para estimular e contribuir com essa reflexão. Neste trabalho, exploramos e organizamos as ideias apresentadas por Georg Simmel em seu texto “As grandes cidades e a vida do espírito”, articulando-as às contribuições de seus comentadores, acerca da experiência subjetiva do espaço urbano, dos valores e das relações que aí se praticam e atualizam, sempre procurando perceber de que maneira o autor, ao falar do início do século passado, também está falando de problemas que se impõem a nós e a nossas metrópoles contemporaneamente. Isso é possível dado que ele escreveu sobre questões que, a nosso ver, se acirraram, se exacerbaram e se tornaram mais críticas na atualidade, estando muito distantes de desaparecer enquanto problemas. Seja na indiferença vivida ao extremo na dinâmica das cidades, seja na violência contra os grupos menos favorecidos economicamente, na tolerância sempre tênue no convívio com a diferença nos espaços públicos ou comuns, ou na profunda alienação dos indivíduos em seus espaços privados, em todos esses problemas podemos identificar as temáticas trabalhadas por Georg Simmel em seu texto de 1903. Cabe a nós pensá-las, a partir da Psicologia, com o auxílio de um referencial teórico que não isole ainda mais os sujeitos em suas experiências, tantas vezes angustiantes, na cidade, mas que procure entender o momento atual à luz de discussões mais amplas, no campo da economia, da sociologia e da história. A nosso ver, o texto de Georg Simmel traz um importante alerta para os estudos psicológicos: que não devemos tomar como evidente a experiência individual na cidade, sem pensar o contexto em que essa experiência se consolidou e o percurso que percorreu até os dias atuais.

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NOTAS 1. Nesse sentido, vale ressaltar a intensa produção literária e filosófica do existencialismo no século XX, que tematizou principalmente a liberdade como experiência inerradicável do homem moderno e urbano, assim como o seu sentimento correlato de angústia (ou a “náusea” sartriana), uma vez que, para os existencialistas, a experiência da liberdade é sempre desconcertante, e está sempre lançando o homem no vazio da indeterminação. 2. O caráter eminentemente masculino da noção de indivíduo, assim como dos conceitos de liberdade negativa, independência e autonomia, tem sido repetidamente denunciado e explicitado pela teoria crítica feminista. Para uma discussão aprofundada dessa questão, ver Coole (1993) e Hirschmann (2003).

REFERÊNCIAS BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: I. Berlin, H. Hardy, & R. Hausheer (Eds.), Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios / Isaiah Berlin (pp. 226-272). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. COOLE, D. Constructing and deconstructing liberty: a feminist and poststructuralist analysis. Political Studies, XLI, pp. 83-95, 1993. HIRSCHMANN, N. The Subject of Liberty: Toward a Feminist Theory of Freedom. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2003. MATTOS, A. R. Liberdade, um problema do nosso tempo: os sentidos da liberdade para jovens no contemporâneo. Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. ______. Fazer escolhas, ‘ser você mesmo’, ‘ter personalidade’: um estudo sobre a experiência de liberdade de jovens cariocas na contemporaneidade”. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. MATTOS, A. & CASTRO, L. Ser livre para consumir ou consumir para ser livre? Psicologia em Revista, v. 14 n. 1, pp. 151-170, 2008. SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. In: Mana – Estudos de Antropologia Social. V. 11 nº 2, out., pp. 577-591, 2005/1903. STAROBINSKI, J. A invenção da liberdade, 1700 - 1789. São Paulo: Editora da UNESP, 1994. TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Vol. II. São Paulo: Martins Fontes, 2000/1840. VELHO, G. Estilo de vida urbano e modernidade. Estudos Históricos, nº 16: Cultura e História Urbana. v. 8, jul-dez, pp. 227-234, 1995.

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VIANNA, H. Ternura e atitude blas茅 na Lisboa de Pessoa e na Metr贸pole de Simmel. In: G. Velho (org.). Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

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Artigos


JUSTIÇA E IGUALDADE EM RONALD DWORKIN: o leilão hipotético e a divisão igualitária de recursos Fabio Alves Gomes de Oliveira* RESUMO: O tema da igualdade tem sido central na discussão desenvolvida na filosofia política dos últimos tempos. De especial interesse no contexto desse debate, a relação estabelecida entre o conceito de justiça e o próprio conceito de igualdade se apresenta como alvo central, na medida em que a questão da distribuição justa em uma sociedade também se coloca. Em outras palavras, trata-se de perseguir o foco fundamental de uma teoria igualitarista da justiça. Neste trabalho pretendo analisar mais precisamente a proposta oferecida por Ronald Dworkin, no que diz respeito ao enfoque da justiça sobre a distribuição igualitária de recursos. Percebendo a importância das noções de participação cívica, desenvolvimento comum de normas, mas rejeitando os aportes como a noção de bem comum básico, Dworkin propõe um novo modelo para se compreender a esfera da igualdade na justiça liberal. Ainda sob o prisma da distribuição igualitária dos bens, e sem abrir mão do que tocam nossos anseios mais básicos sobre a justiça distributiva, este trabalho percorre a esfera da igualdade de recursos desenvolvida por Dworkin, com o propósito de analisar até onde sua teoria poderia, de fato, vislumbrar o melhor caminho para a construção de uma sociedade mais justa. Ao final deste trabalho pretendo ser capaz de apresentar a proposta da teoria dos recursos e, com isso, suscitar seus ganhos e possíveis limites. Palavras chaves: Dworkin. Igualdade de Recursos. Justiça Liberal. ABSTRACT: The theme of equality has been central to the discussion developed in political philosophy in recent times. Of particular interest in this debate, the relation between the concept of justice and the concept of equality is presented as a central target, in as much as the question of equitable distribution in a society also arises. In other words, it is pursuing the fundamental focus of an egalitarian theory of justice. In this article I intend to examine more precisely the proposal offered by Ronald Dworkin, with respect to the focus of justice on the equal distribution of resources. Realizing the importance of notios of civic participation, development of commonstandards, but rejecting the contributions as the basic notion of common good, Dworkin proposes a new model for understanding the sphere of equality in liberal justice. Even through the prism of equal distribution of property, and without giving up what touches our most basic desires of distributive justice, this work covers the sphere of equality of resources developed by Dworkin, with the purpose of considering how far his theory could in fact, envision the best way to build a fairer society. At the end of this article, I intend to be able to present the proposal of the theory of resources and thereby raise its earning potential and limits. Keywords: Dworkin. Equality of Resources. Liberal Justice.

1. Introdução Neste trabalho procurarei investigar o conceito de igualdade sublinhado na teoria de Ronald Dworkin. Defendendo a adoção da igualdade de recursos como a melhor esfera a ser resguardada neste conceito, a tese central oferecida pelo autor propõe que uma distribuição equitativa de bens é *

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ; assessor e pesquisador do Núcleo de Inclusão Social da UFRJ.

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justa quando satisfaz algumas premissas que promovam fundamentos sólidos para a esfera da igualdade eleita: a distribuição equitativa dos recursos disponíveis. Dentre os aspectos oferecidos por sua teoria, Dworkin se apóia na idéia de que as pessoas são responsáveis pelas escolhas que fazem em suas vidas. No entanto, o próprio autor admite que esta premissa não é suficiente para uma distribuição justa de bens. Isto porque Dworkin também está preocupado na influência determinante que atributos naturais, tais como o talento e a inteligência, podem ter frente à disposição dos recursos em uma sociedade. Portanto, é a partir da igualdade de recursos que Dworkin procura superar os impasses que, segundo ele mesmo comenta, John Rawls não conseguiu. Este comentário pode ser verificado logo em 1975, no seu artigo ― The original position. Neste trabalho Dworkin se opõe à Rawls em diversos pontos, dentre eles, ao procedimento de representação rawlsiano. O conceito de igualdade trazido por Dworkin se traduz basicamente na disposição de recursos que as pessoas devem possuir para que possam realizar/implementar suas escolhas pessoais. Naturalmente, este tipo de argumento contrafático utilizado pelo autor é herança do próprio John Rawls. No entanto, o mecanismo do contrato social só é utilizado quando Dworkin para tentar nos convencer de que a esfera da igualdade eleita pela sua concepção de justiça é a mais apropriada. É com Ronald Dworkin que retiramos o véu da ignorância que cobria nosso olhar do mundo para o mundo e passamos a ocupar um lugar onde nós, habitantes desse espaço e tempo, desejamos realizar uma divisão justa dos recursos que estão disponíveis. Resta-nos saber, contudo, como Dworkin irá definir e defender os critérios que determinarão a distribuição justa desses bens. O leilão começou. 2. A igualdade de recursos “What is equality? I and II”, artigos publicados em 1981, marcam os primeiros passos para o surgimento da teoria da igualdade de recursos de Dworkin. Com a idéia inicial bastante semelhante àquela percorrida por Rawls, Dworkin critica a posição utilitarista de justiça constatando que o bemestar nunca pode ser utilizado como o único critério para uma análise social bem sucedida. A igualdade de recursos defendida por Dworkin se configura, sobretudo, a partir de dois princípios básicos que permeiam toda a sua teoria da justiça: escolha e responsabilidade. A escolha como um princípio norteador fundamental tem o papel de esclarecer o que, de fato, deve ser distribuído na sociedade com a finalidade de refletir as escolhas das partes envolvidas. Este princípio permite uma avaliação sobre a relação entre a igualdade e a liberdade na distribuição das riquezas. O 24


intuito de Dworkin é demonstrar que uma distribuição idêntica de riquezas não pode ser necessariamente traduzida como uma distribuição justa. Enquanto isso, o princípio da responsabilidade implica na responsabilidade individual que cada qual tem sobre o sucesso de sua própria vida. Trata-se de um princípio relacional no qual cada indivíduo deve ser responsável pelas escolhas que fez e faz no decorrer de sua vida. Resta ao governo a criação de mecanismos para que os cidadãos alcancem os objetivos refletidos outrora nos planejamentos e opções disponíveis. Para defender e esclarecer como se daria o funcionamento de uma sociedade baseada na igualdade de recursos, Dworkin, bem como Rawls, utiliza uma situação hipotética. Em Dworkin, a situação se configura em um cenário onde um grupo de pessoas encontra-se em um local com recursos naturais suficientes para a sobrevivência de todos. Sabendo da indeterminação do tempo que essas pessoas podem viver no lugar, um acordo é feito: ninguém possui direito prévio a nenhum dos recursos disponíveis. Ou seja, não há nenhum recurso que seja exclusivamente destinado a qualquer um dos indivíduos, por qualquer razão que seja. A partir desse cenário, Dworkin cria um modelo de divisão igualitária e legítima dos bens disponíveis em uma sociedade real. Mas como fazer com que a divisão tenha uma validade do que compreendemos por justiça? O problema a ser enfrentando por Dworkin é de como viabilizar um modelo capaz de distribuição equitativa desses recursos. E é a partir do livro A virtude Soberana que sua teoria igualitária de recursos finalmente ganha corpo. O autor acredita que a virtude soberana de uma sociedade política está diretamente relacionada ao caráter igualitário que a mesma possui. A igualdade aqui passa a ser pensada não apenas como um valor compatível com a liberdade, mas, sobretudo, com os recursos que cada cidadão possui a sua disposição. O envy test, ou teste da cobiça, é inserido por Dworkin com a finalidade de validar sua proposta. A inserção deste conceito emerge com o propósito de garantir uma divisão pública dos bens disponíveis na sociedade. Este teste teria o propósito de avaliar a distribuição da seguinte forma: ao final da divisão dos recursos, se algum integrante preferir o bem adquirido por outro a divisão dos recursos não pode ser tida como igualitária. Este artifício deveria oferecer, segundo Dworkin, um meio de impedir que a divisão dos recursos privilegie algum segmento das partes envolvidas. Mas como os representantes dessa sociedade poderiam achar uma alternativa para uma divisão mecânica desses recursos? É preciso esclarecer um ponto fundamental antes de elaborar com mais profundidade a divisão dos recursos em Dworkin. É necessário dizer que o autor está imaginando uma variedade de recursos plenamente disponíveis para seus indivíduos – numa ilha deserta. Os indivíduos desta 25


sociedade são provenientes de um náufrago. E por essa razão, o desfecho proposto por Dworkin é caracterizado de forma que cada indivíduo tenha posse de um número considerável e igual de conchas. Essas conchas são utilizadas como fichas para um leilão - um método que busca mensurar os recursos necessários para cada vida em particular, observando, sem dúvida, o peso de cada recurso adquirido por um indivíduo em relação aos demais cidadãos. 3. O leilão igualitário inicial O leilão, para a teoria de Dworkin, representa o artifício entre o mercado de bens disponíveis e a divisão dos recursos entre os participantes. Para o autor, não devemos confiar apenas nas leis da disposição de mercado para se alcançar um ideal de igualdade social. Isto porque, segundo o autor, o mercado em si deixa de fora um importante atributo social a ser considerada por uma proposta mais abrangente, uma teoria da justiça: as condições dos participantes detentores de recursos para aquisição dos bens disponíveis à compra. O mercado consiste, nesse sentido, numa ferramenta que possui duas propriedades: (i) um mecanismo de correção da desigualdade de recursos gerados a partir de escolhas individuais e; (ii) o papel de demonstrar que o motivo da diferença de riquezas entre as pessoas não pode ser a diferença de talentos naturais 1, mas as contingências das escolhas de cada um. A partir desse esclarecimento, Dworkin tenta provar que sua opção é a mais igualitária possível quando nos convida a imaginar novamente a ilha deserta. Segundo ele, um leilão de bens jamais daria certo em uma ilha deserta ou evitaria a cobiça de seus participantes ou, até mesmo, jamais teria conseguido adeptos para a solução da distribuição das riquezas, se todos não dispusessem de uma mesma quantidade de conchas no início do leilão – o leilão igualitário inicial. O caráter de igualdade inicial no leilão se trata de um artifício que só pode conter a própria igualdade durante o acontecimento do próprio leilão. Já com a finalização do leilão, o que prevalece entre as relações dos indivíduos é o livre comércio. Isto significa dizer que, em pouco tempo, a igualdade de recursos almejada e alcançada na etapa do leilão será desfeita. E para isso, Dworkin constrói outra etapa para sustentar sua defesa em torno da igualdade de recursos: O seguro. 4. Sorte e azar no leilão: a necessidade do seguro Com o seguro, as pessoas têm a possibilidade de efetuar uma compra como precaução a possíveis futuros danos. Dessa forma, cada um é responsável pelos bens que optaram e pelos seguros 26


que sopesaram adquirir. Ainda que algumas pessoas da ilha optem por não adquirir algum ou qualquer tipo de seguro, a igualdade inicial, ainda assim, foi garantida no artifício do leilão. Todos possuem as mesmas quantidades de conchas e, por isso, as mesmas chances de adquirir os bens disponíveis. Cabe a cada indivíduo optar por adquirir um determinado bem e, em decorrência dessa opção, ser responsável pelos resultados positivos ou danosos dessas escolhas. E é por isso que Dworkin diz não haver razão para refutar, em nome da justiça distributiva, um resultado pelo qual quem se recusou a apostar2 possui menos do que aqueles que não se recusaram. E, assim sendo, a política distributiva defendida desenvolve uma alocação que contemple níveis iguais de bens, recursos e oportunidades de escolhas para todos os concernidos. Possíveis ressalvas: (i) Os gostos dispendiosos: Algumas considerações críticas poderiam ser direcionadas à teoria da igualdade de recursos. A mais clássica delas faz referência ao suposto cidadão que possui gostos dispendiosos, como o caso da preferência por ovo de tarambola ou da champagne, ao invés da cerveja. Esta crítica sutilmente reflete a possibilidade de notar indivíduos mais satisfeitos com a realização de escolhas não dispendiosas. Isso poderia acarretar um sentimento de injustiça, sob o ponto de vista daqueles que possuem gostos dispendiosos, ao ponto de reivindicar ao governo igual consideração. Esta igual consideração implicaria na solicitação de maior quantidade de recursos para que esses pudessem satisfazer seus gostos, tal qual indivíduos que possuem gostos menos dispendiosos. Para analisar esse possível problema, Dworkin diz que a neutralidade mais eficaz exige que a mesma parcela seja destinada a cada um dos indivíduos, de modo que a escolha entre gostos mais ou menos dispendiosos fosse elaborada por cada pessoa, sem nenhuma noção de que a parcela que lhe cabe será aumentada se escolher uma vida mais dispendiosa. (DWORKIN, 2005, p.288) Para o defensor da igualdade de recursos, a existência de indivíduos com gostos dispendiosos não fundamenta uma real premissa crítica, uma vez que gostos por ovo de tarambola ou necessidade de champagne excessivo não implicam na necessidade de procedimentos reguladores de distribuição. (ii) Deficiência física Outro problema levantado como possível entrave à igualdade de recursos se refere ao âmbito dos talentos naturais. A deficiência física, por exemplo, poderia incapacitar indivíduos para uma livre escolha de projetos de vida quando comparados aos indivíduos que gozam de uma saúde 27


plena. Ou seja, uma desvantagem natural, como o talento, parece dizer que a distribuição de uma mesma quantidade de recursos não é compreendida como uma distribuição justa. Neste ponto Dworkin tem uma tarefa complicada. A concepção da igualdade de recursos, para que seja considerada justa, parece exigir um sistema que produza desigualdades, como por exemplo, o custo diferencial de bens e oportunidades destinados àqueles com necessidades especiais. O importante aqui, no entanto, é como fazer com que essa diferenciação econômica de bens e oportunidades para alguns grupos de indivíduos, não ignore a base que fundamenta a igualdade de recursos – o leilão igualitário inicial. Neste momento, Dworkin demonstra que tipo de concepção de justiça realmente subjaz sua teoria igualitária. O autor está preocupado na questão da justiça em cada caso particular, não somente na soma agregada entre as partes da sociedade. Por isso, admite que para um avanço político seja necessário explicitar o papel da liberdade dentro de sua teoria da justiça. E para seu entendimento, a liberdade é um dos aspectos fundamentais para uma distribuição igualitária, havendo, inclusive, congruência para a própria definição do que seja uma real distribuição justa. A liberdade, de acordo com Dworkin, não deve ser compreendida como sinônimo daquilo que é permitido, pois se trata de um conjunto de direitos distintos. A liberdade é um instrumento pelo qual, se pode viabilizar um ideal de igualdade dentro de uma sociedade. E é deste modo que Dworkin traz para o debate a liberdade em companhia da igualdade de recursos. Para o autor, a liberdade só se concilia com a igualdade quando um número de pessoas opta pelo direito à liberdade. Isto porque percebem que somente com certo grau de liberdade é possível defender interesses particulares. E para Dworkin, isso faria com que as pessoas desejassem adquirir a liberdade em suas cotas de recursos. É dessa forma que essas pessoas poderiam viabilizar a concretização de objetivos. 5. Conclusão Em Dworkin observamos a escolha por uma esfera da igualdade em que recaia sobre o Estado o dever de promoção de uma comunidade política justa, que respeite a esfera privada na qual os indivíduos realizam sua liberdade para agir e desenvolver suas escolhas. Sua abordagem política elabora o procedimento do leilão em uma comunidade (a ilha deserta) disposta pela situação ideal de condições adequadas e suficientes ao processo de distribuição e ordenamento social. Diante disso, a opção pela igualdade de recursos representa a via que Dworkin acredita ser a melhor para a promoção de uma distribuição igualitária. Para isso, o autor defende a igualdade de condições para 28


todos os indivíduos efetuarem suas escolhas durante o leilão. Mas até onde a proposta de Dworkin é efetivamente sensível à escassez e crises sociais vivenciadas pelas sociedades atuais? Se em Rawls o processo de derivação a favor da justiça origina-se dos limites da razão teórica e prática e dos pressupostos da concepção política, para Dworkin a justiça é conquistada no momento em que todos os indivíduos alcançarem uma organização que proporcione a mesma capacidade aquisitiva entre os participantes do contrato. Este pode ser, sem dúvida, um importante ponto a favor da proposta oferecida por Dworkin. Com a igualdade de recursos é possível superar eventuais circunstâncias onde indivíduos poderiam naturalmente sofrer e necessitar de compensações político-sociais previstas em uma teoria da justiça inadequada. Resta-nos saber, contudo, quão inclusivo esse método pode ser. Seria possível conquistar uma sociedade efetivamente amparada pelo valor da inclusão social a partir da disposição igualitária de recursos? Esta é uma pergunta que permanece aberta e oferece um caminho a ser perseguido em próximos trabalhos. NOTAS: 1. Para Dworkin, os talentos naturais, bem como as capacidades inatas dos seres humanos não podem ser levadas em consideração na distribuição de riqueza, pois trata-se de um favorecimento advindo do acaso. 2. Aqui deve-se compreender ‘apostar’ como o ato de adquirir ou não os seguros.

REFERÊNCIAS DWORKIN, R. A virtude soberana: A teoria e prática da igualdade. Editora Martins Fontes, 2005. ______ What is Equality? Part I and II: Equality of Resources, Philosophy and Public Affairs, p. 185-243. 1981. Reprinted in Dworkin’s Sovereign Virtue Abridgement in M. Rosen and J. Wolff Political Thought ______ The Original Position. [1975]. In: DANIELS, N. Reading Rawls. Critical studies in Rawls' A theory of justice. Stanford: University Press, 1989. p.16-53. RAWLS, J. Uma teoria da Justiça. Universidade de Brasília, 1972. ROEMER, J. Theories of Distributive Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

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JAMES, RORTY, VATTIMO E A RELIGIÃO PÓS-METAFÍSICA Cristiane Maria Marinho* RESUMO: Este artigo objetiva fazer a exposição de algumas das principais reflexões de James, Rorty e Vattimo sobre a religião, presentes em algumas de suas obras que abordam a questão religiosa. E, a partir daí, demonstrar uma convergência de caráter pós-metafísico nesses pensadores no que diz respeito à experiência religiosa: no pensamento pragmático de James e Rorty, e no pensamento fraco de Vattimo e sua valorização da hermenêutica. Palavras-chave: Religião. Pós-metafísica. James. Vattimo. Rorty. ABSTRACT: The purpose of this article is to show some of the main reflections of James, Rorty and Vattimo on religion, which can be found in some of their works about the religion issue. Then, it's intended to demonstrate a convergence of postmetaphysical character of such thinkers as for the religious question: In the pragmatic thinking of James and Rorty and in the weak Vattimo's thinking and his valuation of hermeneutics. Keywords: Religion. Postmetaphysics. James. Vattimo. Rorty.

“Uma religiosidade não-metafísica é também uma religiosidade não-missionária” (Vattimo).

Introdução O objetivo do presente artigo é, em primeiro lugar, expor as principais reflexões de James, Rorty e Vattimo sobre a religião. E, em segundo lugar, demonstrar uma convergência de caráter pósmetafísico nas reflexões desses pensadores, seja pelo seu caráter pragmático seja pelo seu caráter hermenêutico, no que diz respeito à experiência religiosa Em James, a investigação fica circunscrita às obras A vontade de crer (1897) e Variedades de experiência religiosa (1902), essa última será vista a partir de um ensaio de Richard Niebuhr. Em Rorty lançar-se-á mão dos textos Anticlericalismo e ateísmo (2004), Fé religiosa, responsabilidade intelectual e romance (2007) e O pragmatismo como um politeísmo romântico (2007). Já na reflexão de Vattimo sobre religião, os textos consultados serão Acreditar em Acreditar (1996) e A idade da interpretação (2004). Para subsidiar essa investigação também será consultado o diálogo Qual é o futuro da religião após a metafísica? (2004) entre Rorty e Vattimo e mediado por Zabala, presente no livro O futuro da religião, bem como o seu prefácio, escrito por Paulo Ghiraldelli. *

Mestra em Filosofia (UFMG/UFPB); Doutora em Educação (UFC); Professora Adjunta do Curso de Filosofia da UECE. Endereço eletrônico: c-marinho2004@ig.com.br

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A metafísica pragmática da experiência religiosa de James A vontade de crer (The Will to believe) foi uma palestra proferida por James, posteriormente publicada em livro, na qual faz a defesa de adoção da crença religiosa sem que seja necessária a evidência de sua verdade, na medida em que a própria adoção da crença a torna verdadeira para aquele que crê. Já o livro Variedades de experiência religiosa consiste em uma compilação de várias palestras sobre Teologia Natural e tem como foco central discutir sobre o sentimento religioso e a sua desvalorização diante do fortalecimento do materialismo científico do início do século XX. O sentimento religioso seria uma experiência pessoal, indizível e intransferível, o que em nada lhe diminuiria face à Ciência, e proporcionaria alegria e otimismo, por isso seria útil, o que o tornaria verdadeiro. No livro A vontade de crer James afirma que considerará “a religião em abstrato, em seu caráter genérico, prescindindo de suas variedades acidentais” (JAMES, 1922, p. 1). Seu intuito maior é fazer a defesa do direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem que, por isso, seja condenado a alguma coação lógica do intelecto. A esse respeito afirma James: Durante muito tempo sustentei diante de meus alunos a legitimidade de uma fé adotada voluntariamente, e observei que na medida em que o espírito da lógica ia se apoderando deles, regra geral, começaram a rejeitar minha alegação como antifilosófica, ainda que, de fato, os mesmos que o recusaram fossem devotos convictos de alguma fé (JAMES, 1922, p. 1).

Para James, a tendência a crer, indica uma vontade em potência. Assim, a vontade faz brotar a luz que ilumina “os fechados depósitos da nossa fé”. A nossa razão fica satisfeita quando é possível, ao ser discutida nossa credulidade, achar argumentos defensivos da nossa fé. Inteligência e verdade se procuram e dão sustentação ao nosso sistema social: Queremos obter uma verdade; queremos crer que nossos experimentos, estudos e discussões devem levar-nos cada vez mais até ela, e nesta linha combatem juntas nossas vidas pensantes. Mas, se um cético pirrônico nos perguntar como conhecemos tudo isto? Acharia nossa lógica uma resposta a mão? Não, certamente que não. É uma vontade contra outra; nós vamos até a vida em busca de uma verdade ou hipótese que a vida não tem interesse algum em apresentar-nos (JAMES, 1922, p. 6).

Uma das explicações para essa vontade de crer é o peso prático que tem a crença religiosa, pois “em geral, não cremos naqueles fatos e teorias que não têm alguma importância para nós” (JAMES, 1922, p. 6). A nossa natureza não intelectual exerce decisiva influência em nossas convicções. Há tendências passionais e volitivas que precedem a crença e outras que vão atrás dela. Assim, para James, o argumento de Pascal reforça e complementa “nossa fé na missa e na água 31


benta” e somente a introspecção e a lógica não são por si mesmas os únicos fatores de nossos credos (Conf. JAMES, 1922, p. 6): Há, pois, fatos cuja existência depende, em absoluto, da chegada da fé. E se a fé em um fato pode criar o fato, é atrevida e pretensiosa a lógica que sustenta que a fé sem completa evidência científica é ‘a mais detestável imoralidade em que pode cair um ser pensante’. Tal é, contudo, a lógica com que pretendem regular nossa vida esses cientistas absolutistas (JAMES, 1922, p. 13).

Assim, também, para James, fica demonstrado que para as verdades dependentes de nossa ação pessoal, é necessária, quase indispensável, a fé baseada no desejo (JAMES, 1922, p. 13). James, nesse texto, dirigindo-se somente aos que crêem, discute também o que ele chama de hipótese religiosa como hipótese viva, que vem a ser a possibilidade da existência de Deus ser verdadeira e a religião, portanto, certa e válida. Assim, no atual estágio de conhecimento, no qual a Ciência diz que as coisas existem, a Moral sentencia que umas são melhores que outras, e a Religião afirma que as coisas mais compreensivas são as mais perfeitas, as mais eternas e que por crer na primeira proposição adquirimos uma supremacia moral, é possível observar que a religião se oferece como uma opção momentânea, e que no instante em que cremos, nos supomos desejosos de um certo bem vital, que perderíamos caso não acreditássemos. Portanto, a religião se nos apresenta como uma opção forçosa enquanto faz relação ao bem que podemos perder. Ou seja, não é possível evitar a opção religiosa declarando-nos céticos, na espera de mais provas, por que ainda assim, evitando cair no erro de admitir a religião como uma verdade, perderíamos o bem que pudéssemos adquirir através dela. (Conf. JAMES, 1922, p. 13). Dessa forma, Tentar nos submeter ao ceticismo religioso enquanto conseguimos alcançar uma ‘evidência suficiente’, equivale a dizer que, apresentada a hipótese religiosa, o mais prudente é rendermo-nos ao temor de sua errônea existência, antes que a esperança em sua certeza. [...]. Não existem, pois, tal oposição nas duas posições, em uma das quais militam todas as paixões contra a inteligência pura, senão que a esta a impulsionam também elementos passionais. E que garantias de suprema onisciência pode atribuir-se estes, para ser os guias do intelecto? Engano por engano, que provas há de que o engano pela esperança seja de pior linhagem que o engano pelo medo? Eu desobedeço o mandato da Ciência para cumprir melhor o fato em que ela funda tal gênero de opção; e sigo minha inclinação própria, guia suficiente para permitir-me, em casos como o que trato, correr meu risco (JAMES, 1922, p. 14) (Grifo nosso).

Para James, a necessidade passional da religião não deve ser tolhida por proibições, a vontade de considerar religiosamente o mundo deve ser vista como justa e como liberdade pessoal, mesmo que a fé ativa se apresente ilógica, pois O aspecto perfeito, eterno, do universo, está representado em nossas religiões como se tivessem forma pessoal. Uma vez adquirida a fé religiosa, o universo deixará de ser para nós um mero elo e será um tu, verdadeiro interlocutor invisível. Assim, ainda que em certo

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sentido, aparecemos sendo partículas passivas do universo, deste outro modo gozamos de autonomia, vindo a sermos centros ativos, independentes. (JAMES, 1922, p. 14)

A filosofia jamesiana afirma que há muita prisão nos fortes argumentos da lógica inflexível, pois “pensam que a Divindade há de falar-lhe um dia sem que eles façam nada de sua parte para reconhecê-la em algum momento de sua vida” (JAMES, 1922, p. 14). Com o sentimento religioso, que ignoramos de onde vem e de quê, cumprimos o mais sagrado dever com o universo, e parece que a essência da hipótese religiosa integra a vida. Assim, o intelectualismo puro com sua severa condenação da vontade de crer seria um absurdo, pois temos o direito de crer por nossa conta em toda hipótese suficientemente viva: Na liberdade de ‘crer no que queremos’, acaso imaginam que compreendo até a fé claramente supersticiosa, e talvez cheguem a supor que quero admitir a fé que definem as crianças no catecismo de ‘crer algo que não é certo’ (crer o que não se vê). Basta para acabar com essa torcida interpretação o esclarecimento feito em concreto; a liberdade de crer, somente compreende opções vivas, que ainda que o intelecto individual não acerte a resolver por si mesmo, nunca pareçam absurdas a quem se propõe. (JAMES, 1922, p. 14)

Assim, por conseguinte, ao considerar o problema religioso dentro da ordem prática e volitiva, uma tendência instintiva íntima, James pondera a intromissão proibitiva da Ciência sobre a religiosidade humana como uma regra absurda e ridícula corroendo os subterrâneos da Filosofia: Admitida a crença como medida da ação, tudo o que nos proíba acreditar na certeza da religião, necessariamente nos impede de fazer, construir como deveríamos, dando a esta por verdadeira. A dignidade e o valor da fé religiosa se sustentam na ação. Se a fé inspirada ou exigida pela hipótese de uma religião fosse o centro da verdade, em nada diferiria da hipótese materialista, e a fé religiosa seria inútil, supérflua, e seria perda de tempo ocupar-se dela. Eu vejo que a hipótese religiosa comunica ao mundo expressão tal, que por si mesma determina numerosas reações específicas na conduta humana, diferentes das que emanam do conceito materialista do mundo (JAMES, 1922, p. 14).

Para James, os juízos intelectuais não são infalíveis e a consciência não nos dá certezas objetivas incontestáveis vindas de órgãos tão perfeitos de conhecimento. E é por isso, dentre outras tantas coisas, que: Ninguém deve proibir a cada um sua peculiar crença, nem zombar dela; pelo contrário, a liberdade mental deve ser profunda e cortesmente respeitada; só assim prosperará a república intelectual; só com tal espírito de íntima tolerância não será um corpo sem vida toda nossa bendita tolerância externa, orgulho do empirismo; só assim progrediremos tanto no mundo especulativo como no prático (JAMES, 1922, p. 15).

O livro Variedades de experiência religiosa consiste em uma compilação de várias palestras sobre Teologia Natural e tem como foco central discutir sobre o sentimento religioso e a sua desvalorização diante do fortalecimento do materialismo científico do início do século XX. Para James, diversamene, como visto na obra A Vontade de crer, o sentimento religioso seria 33


uma experiência pessoal indizível e intransferível, mas nem por isso é inferior ou menor face à Ciencia. Outra caracterísitca do sentimento religioso é a sua capacidade de proporcionar alegria e otimismo, o que o tornaria útil e verdadeiro. Niebuhr (2010) afirma que a obra As variedades de experiência religiosa de James, composta de vinte conferências e um pós-escrito, é ao mesmo tempo desapontadora e desafiadora: “Ela é desapontadora para os leitores que desejam ter imediatamente à mão mais conclusões consideradas por James acerca da experiência religiosa. Ela é desafiadora para os leitores que estão prontos para buscar em outras partes dos escritos de James evidências adicionais acerca do que podem ser essas visões” (p. 270). Na verdade, segundo Niebuhr, esse texto não saiu como planejado por James e prometido no seu título, ou seja, fazer uma avaliação filosófica da religião, pois “a saúde ruim frustrou a realização dessa ambição, de modo que apenas a vigésima e última conferência, juntamente com o pós-escrito do autor, lidam explicitamente com suas reflexões filosóficas sobre a experiência religiosa” (NIEBUHR, 2010, p. 272). No pensamento de James, o valor das atitudes, crenças e modos de vida religiosos “só podem ser determinados por juízos espirituais emitidos diretamente sobre elas, juízos baseados primariamente em nosso sentimento imediato e secundariamente naquilo que podemos determinar de suas relações experienciais para com nossas necessidades morais e para com o restante daquilo que consideramos verdadeiro” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 275-276). Dessa forma, os critérios genuinamente válidos para fazermos juízos de valor acerca da experiência religiosa, são o que James chama ‘luminosidade imediata’, ‘razoabilidade filosófica’ e ‘prestimosidade moral’, sendo todos critérios pragmáticos. ‘Luminosidade imediata’, por exemplo, estaria relacionada às experiências profundas e marcantes nas vidas daqueles que passam por elas, traz alterações na percepção do eu e do mundo. Experiência aí significando “aquele impartilhável sentimento que cada um de nós tem do aperto do destino... girando na roda da fortuna” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 276), apreensões sensíveis de mudança, mas sempre significando ‘conhecimento’ que traz conseqüências práticas. Assim, para James, é importante julgar a vida religiosa também, e principalmente, por seus resultados. A filosofia deve refletir acerca da utilidade moral da experiência religiosa e da relação de tal experiência para com o que acreditamos ser verdadeiro. A cura de uma doença, por exemplo, por meio da união com uma ‘Presença superior’ (Conf. NIEBUHR, 2010, p. 278).

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A esse propósito, em uma carta escrita por James a Frances Morse em abril de 1900, podemos observar a seguinte assertiva: O problema que coloquei para mim mesmo é um problema difícil: primeiro, defender (contra todos os preconceitos de minha ‘classe’) a ‘experiência’, contra a ‘filosofia’, como sendo a verdadeira espinha dorsal da vida religiosa do mundo – quero dizer, a oração, a orientação, todo esse tipo de coisa imediata e privadamente sentida, contra altas e nobres visões gerais sobre nosso destino e sobre o significado do mundo; e segundo, fazer o ouvinte ou leitor acreditar naquilo que eu mesmo invencivelmente acredito: que, embora todas as manifestações especiais da religião tenham sido absurdas (quero dizer, seus credos e teorias), ainda assim a vida da religião como um todo é a função mais importante da humanidade. Uma tarefa quase impossível, temo eu, e na qual devo falhar; mas tentá-la é o meu ato religioso (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 270)

James, defendendo a experiência das coisas particulares, se coloca contra a filosofia do absoluto, do grande todo abstrato, da Totalidade. Experiência aqui se refere à sensação, percepção, sentimentos, oração, mudanças de coração, libertações do medo e alterações de atitude. A experiência é o alicerce do pluralismo metafísico pragmático de James, a ‘forma dos particulares, que é a nossa forma humana de experienciar o mundo’ (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 271). Dessa forma, a experiência tem muito mais a nos dizer que um estudo empírico da vida religiosa nos incita a realizar (Conf. NIEBUHR, 2010, p. 271) Esse pluralismo também é contemplado no que diz respeito à existência de seitas e credos religiosos, pois não há uma essência simples da religião e sim múltiplos sinais da religião: O divino não pode significar nenhuma qualidade única, ele deve significar um grupo de qualidades das quais, sendo defensores em alternância, diferentes homens podem todos encontrar missões dignas. Sendo cada atitude uma sílaba na mensagem total da natureza humana, é necessária a totalidade de nós para decifrar completamente o significado... Devemos francamente reconhecer o fato de que vivemos em sistemas parciais e que as partes não são intercambiáveis na vida espiritual (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282).

Contudo, nessa multiplicidade há de se levar em consideração o aspecto individual da experiência religiosa: “A religião, [...], deve significar para nós os sentimentos, atos e experiências de homens individuais em sua solidão, na medida em que eles se apreendem como estando em relação com o que quer que eles possam considerar o divino” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282). Esse divino, para James, é bem amplo e tem várias características: é ‘ativo’; é semelhante a um deus [godlike], quer ele seja uma divindade concreta, quer não; os deuses são envolventes; “O divino deve significar para nós apenas uma realidade primal à qual o indivíduo se sinta impelido a responder solenemente e gravemente, e nem mediante uma maldição nem uma pilhéria” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282); a resposta religiosa é enérgica e excede a atitude mental moral, pois no estado mental religioso “a vontade de nos afirmarmos e de mantermos 35


o que é nosso foi substituída por uma disposição de fecharmos nossas bocas e sermos como um nada nas enchentes e trombas-d’água de Deus” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 282); o estado mental religioso é um estado de felicidade, não como mero sentimento de fuga, pois ela não se importa mais em fugir, mas sim em proporcionar Uma felicidade superior [que] mantém em cheque uma felicidade inferior [...]. A religião, portanto, torna fácil e feliz aquilo que é necessário de qualquer modo; e se ela for a única agência que pode realizar esse resultado, sua importância vital como uma faculdade humana encontra-se vindicada além de qualquer disputa (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 283).

Há três conceitos que são importantes nas reflexões religiosas de James: conversão, santidade e misticismo. A conversão é “o processo, gradual ou súbito, pelo qual um eu até então dividido, e conscientemente errado, inferior e infeliz, torna-se certo, superior e feliz, em conseqüência de sua preensão mais firme das realidades religiosas” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 286). A sucessão de campos de consciência que constitui a alma é que possibilita a conversão. Ela ocorre em “um conjunto de memórias, pensamentos e sentimentos que são extramarginais [subliminar, subconsciente] e estão totalmente fora da consciência primária” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 287). Assim, uma consciência ultramarginal fortemente desenvolvida perturba o equilíbrio da consciência primária e explica a conversão. Essa consciência subliminar possibilita a apreensão de uma realidade mais ampla e eleva o patamar de percepção: Eu ligo a consciência mística ou religiosa à posse de um eu subliminar extensivo, com uma fina separação através da qual irrompem mensagens. Assim nos tornamos convincentemente cônscios da presença de uma esfera de vida maior e mais poderosa do que nossa consciência usual, com a qual esta última é, não obstante, contínua. As impressões e impulsos, e emoções, e excitações que recebemos dali nos ajudam a viver, elas fundamentam a segurança invencível de um mundo além dos sentidos, elas... comunicam significância e valor a tudo (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 289).

E nesse sentido, coerente com o pragmatismo, James afirma que o que importa são os efeitos que tais percepções poderiam produzir: “O mero fato de sua transcendência não estabeleceria por si mesmo nenhuma presunção de que elas fossem mais divinas do que diabólicas” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 290). O conceito de santidade, por sua vez, e o seu valor são a seqüência natural do conceito da conversão. A santidade seria o resultado ideal, embora incerto, da conversão. Na santidade, as emoções espirituais formam o novo centro de energia pessoal. É quando James reflete sobre o conceito de santidade que explicita seus ‘juízos espirituais’ sobre a experiência religiosa e que são correlatos ao que ele compreende por santidade. Entre eles estão os seguintes: (a) as religiões se ‘aprovam’ na medida em que satisfazem necessidades vitais, ‘nenhuma religião jamais deveu sua prevalência à ‘certeza apodítica’ [...]; (b) as instituições religiosas são propensas a se tornar interessadas principalmente em seus próprios dogmas e ambições

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corporativas [...]; (c) toda virtude é sujeita à corrupção [...]; (d) a caridade, por toda sua ternura, é essencial para a evolução da sociedade [...]; (e) a verdade presente no ascetismo é que ‘aquele que se alimenta da morte que se alimenta dos homens possui a vida sobreeminentemente... e enfrenta melhor as demandas secretas do universo’ [...]. ‘no geral... o grupo de qualidades santas é indispensável para o bem-estar do mundo’ (NIEBUHR, 2010, p. 290).

Por fim, nas Variedades, o conceito de misticismo ocupa o cume das investigações precedentes. Para James, a experiência religiosa pessoal tem sua raiz e seu centro nos estados místicos de consciência: “O mar original e a nascente de todas as religiões se encontram nas experiências místicas dos indivíduos, tomando a palavra mística em um sentido bastante amplo” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 291). Os estados místicos superiores, então, Apontam em direções para as quais os sentimentos religiosos até mesmo de homens não místicos se inclinam. Eles falam da supremacia do ideal, da vastidão, da união, da segurança e do repouso. Eles nos oferecem hipóteses que podemos voluntariamente ignorar, mas que, como pensadores, não podemos possivelmente derrotar. O sobrenaturalismo e o otimismo aos quais eles nos persuadiriam podem... ser afinal o mais verdadeiro dos insights sobre o significado da vida (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 292).

Assim, os estados místicos: possuem autoridade absoluta sobre aqueles que os têm; são epistemologicamente sensoriais; parecem ter uma verdade empírica; “[...] destroem a autoridade da consciência racionalista, baseada unicamente no entendimento e nos sentidos. Eles mostram que ela é apenas um tipo de consciência” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 294). E como se fora uma grande culminância de todo esse processo místico, James argumenta que a prece é a própria alma e essência da religião. A prece é a religião em ato. É uma energia que flui do alto para satisfazer determinada necessidade e acaba por se tornar operativa no mundo fenomênico: “Enquanto se admite que essa operatividade é real, não faz nenhuma diferença essencial se seus efeitos imediatos são subjetivos ou objetivos. O ponto religioso fundamental é que na prece... um trabalho espiritual de algum tipo é realmente efetuado” (JAMES APUD NIEBUHR, 2010, p. 294). O privatismo religioso e a religião como questão cultural em Rorty Castro (2008) nos lembra que para Rorty, a cultura ocidental e o modelo de intelectual passaram por diversas mudanças, nas quais o intelectual seleciona os bens simbólicos de acordo como uma hierarquia de valor: O bem simbólico de maior valor é aquele que proporciona a auto-superação e a redenção. Em outras épocas, a ciência e a religião ocuparam esse lugar no topo da hierarquia: quando buscávamos uma explicação para a nossa existência olhávamos ou para a ciência ou para a religião. Hoje, diz Rorty, nem a religião, nem a ciência fornecem as respostas, mas sim a literatura (p. 214).

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Assim, a religião não ocuparia mais o topo da relação dos bens simbólicos, e a ciência teria sido secundarizada dessa posição em virtude de ter se tornado uma auxiliar da tecnologia e da indústria. De uma forma generalizada, as ciências [...] estão subordinadas às demandas constantes por bens materiais, e pouco ou nada oferecem à criação de novos bens simbólicos. Por um largo período, a ciência ofereceu a redenção e o aperfeiçoamento moral buscado por oferecer melhores respostas do que a religião para a explicação da vida, e por apontar para a utopia de uma existência melhor. Hoje, porém, a ciência-tecnologia não tem condições de oferecer “pão ao espírito”, isto é, exemplos de auto-superação-moral, dado seu horizonte limitado pelas demandas materiais de consumo (CASTRO, 2008, p. 215)

É assim que, no texto Anticlericalismo e teísmo, Rorty explica que com o fim da metafísica, ser religioso já não significa mais ter como referência fenômenos especificamente observáveis, determinados como evidências. Baseado em Vattimo, concorda que a dissolução da metafísica da objetividade, o pensamento que identificava a verdade do ser com a manipulabilidade do objeto da ciência, possibilitou a existência de uma religião antiessencialista, movida por interesses privados, pessoais e que tenta realizar as palavras de João no Evangelho, quais sejam, Deus já não nos considera servos, mas amigos. Rorty, declarado ‘laico anticlerical’, nos lembra que não há necessidade de legitimarmos essas “interpretações pós-modernas do cristianismo, pois o conceito de ‘legitimidade’ não é aplicável àquilo que cada um de nós faz em sua própria solidão” (ZABALA, 2006, p. 42). Rorty observa que apesar das afirmações sobre o ateísmo ser algo lógico e evidente e a crença religiosa ser irracional, ele, como um secularista contemporâneo, fica satisfeito em dizer que o ateísmo é politicamente perigoso. E a religião “é irrepreensível na medida em que é privada – na medida em que as instituições eclesiásticas não tentam animar a fé por trás de propostas políticas e na medida em que os crentes e não-crentes concordam em seguir uma política de viver e deixar viver” (RORTY, 2006, p. 52). A privatização da religião deve implicar “que às pessoas religiosas cabe o direito, para certos propósitos, de ficar de fora desse jogo. Elas ganham a prerrogativa de desligar suas afirmações da rede de inferências socialmente aceitáveis que fornece justificações para fazer essas afirmações e tirar conseqüências práticas por tê-las feito” (RORTY, 2006, p. 57). E é possível encontrar a reafirmação da postura democrática dessa privatização no livro Filosofia como política cultural: A crescente privatização da religião ocorrida durante os últimos duzentos anos criou um clima de opinião no qual as pessoas têm o mesmo direito a formas idiossincráticas de devoção religiosa quanto a escrever poemas ou pintar quadros nos quais ninguém mais pode encontrar algum sentido. É característica de uma sociedade democrática e pluralista que nossa religião seja nosso assunto particular – algo sobre o qual não precisamos nem mesmo discutir com outros, muito menos tentar justificar, a menos que sintamos vontade de o fazer. Uma tal sociedade tenta deixar tanto espaço livre quanto possível para que os indivíduos

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desenvolvam seu próprio sentido sobre quem são e a que se destinam suas vidas, pedindo apenas que obedeçam ao preceito de Mill e estendam aos outros a tolerância de que eles próprios usufruem. Os indivíduos são livres para elaborar seus próprios jogos de linguagem semiprivados [...], desde que não insistam em que todos os outros também os joguem (RORTY, 2009, p. 53).

Essa privatização do exercício religioso busca a religião como exercício da amizade entre Deus e o homem, livre das imposições institucionais. A esse respeito Rorty afirma: “Quanto mais o Ocidente se torna secular, quanto menos hierocrático, mais ele cumpre a promessa dos Evangelhos de que Deus não mais nos verá como servos, mas como amigos” (RORTY, 2006, p. 57). Uma religião que esteja fora da arena epistêmica, como por exemplo, a batalha entre religião e ciência, onde não haja uma disputa entre a verdade do teísmo versus ateísmo, pode ser exatamente a mais adequada ao privatismo religioso. Inclusive porque se o senso comum é necessário para a cooperação social, a ciência é elemento viabilizador dessa cooperação. Dessa forma, afirma Rorty: A batalha entre religião e ciência conduzida nos séculos XIX e XVIII foi uma contenda entre instituições, ambas das quais afirmavam supremacia cultural. Não foi uma boa coisa para a religião e para a ciência que esta tenha vencido tal batalha. Pois verdade e conhecimento são uma questão de cooperação social, e a ciência nos dá os meios para cumprir melhor projetos de cooperação social do que o que tínhamos antes. Se a cooperação social é o que se quer, a conjunção de ciência e senso comum dos dias atuais é tudo que é necessário.” (RORTY, 2006, p. 58-59).

Rorty, que foi educado sem religião, afirma que a relutância à privatização da religião como forma de livrá-la da universalidade, é fruto do pensamento de que a religiosidade é uma nostalgia de algo como uma ‘natureza humana básica’ pré-cultural. (Conf. RORTY, 2006, p. 59). Assim, “Se abandonamos a idéia de que a questão da verdade ou a questão de Deus estão bem instaladas em todos os organismos humanos e permitimos a ambas as questões aparecerem como questões de formação cultural, então tal privatização parecerá natural e apropriada” (RORTY, 2006, p. 59). Da mesma forma, a idéia de sagrado para Rorty, tem um sentido expressamente imanente: Meu sentido do sagrado, na medida em que tenho algum, está atado à esperança de que algum dia, em algum milênio futuro, meus descendentes remotos viverão em uma civilização global em que o amor será adequadamente a única lei. Em tal sociedade a comunicação seria de domínio livre, classes e castas seriam algo desconhecido, hierarquia seria uma questão de conveniência pragmática temporária, e o poder estaria inteiramente à disposição dos acordos livres de um eleitorado alfabetizado e bem educado (RORTY, 2006, p. 60).

Assim, Rorty afirma que para o pragmatismo e a hermenêutica, após a ontoteologia, no fim da metafísica há uma conexão entre democracia e cristianismo: “Sim, penso que a atitude hermenêutica ou gadameriana é no mundo intelectual o que a democracia é no mundo político. As 39


duas podem ser vistas como apropriações alternativas da mensagem cristã que o amor é a única lei” (RORTY, 2006, p. 100). Baseado no único livro de Dewey sobre religião, Rorty pondera que “podemos vivenciar um sentido de integração em uma comunidade de causas que agrupa o universo humano com o nãohumano. Esse tipo de panteísmo romântico, [...], é a única expressão de um sentido de dependência que precisamos – reconhecer que somos parte de um todo maior” (RORTY, 2006, p. 106). Seja esse todo maior os livros que se leu ou a tradição cultural ou o universo físico. Outro elemento importante na reflexão rortyana sobre a religião é aquela que concebe a questão da existência de Deus no âmbito cultural: “Tenho sustentado que deveríamos substituir a questão ontológica sobre a existência de Deus pela questão da conveniência cultural da conversa sobre Deus.” (RORTY, 2009, p. 52). E essa questão implica o direito de um indivíduo ser religioso, mesmo que seja incapaz de justificar suas crenças religiosas a outros, mesmo que a sua religião não encontre respaldo institucional, pois: A sociedade deveria conceder a indivíduos particulares o direito de formular sistemas privados de crença, ao mesmo tempo permanecendo militantemente anticlerical. James e Mill concordam que não há nada de errado com as igrejas, a menos que suas atividades causem danos sociais. Mas, quando se trata de decidir se as igrejas existentes de fato causam tais danos, as coisas ficam complicadas. A história sociopolítica do Ocidente nos últimos duzentos anos está pontuada com controvérsias como as do Estatuto da Liberdade Religiosa da Virginia de Jefferson, a laicização da educação na França, a Kulturkampf na Alemanha e a controvérsia na Turquia sobre as estudantes usarem véus no campus da universidade (RORTY, 2009, p. 54).

Rorty afirma que essas questões requerem soluções diferentes em países diferentes e séculos diferentes, pois seria absurdo propor normas universalmente válidas para resolvê-las. No entanto, ele insiste: Um debate sobre tais questões políticas concretas é mais útil para a felicidade humana do que um debate sobre a existência de Deus. Elas são as questões que permanecem após nos conscientizarmos de que é inútil apelar para a experiência religiosa para decidir quais tradições devem ser mantidas e quais devem ser substituídas, depois de termos percebido o despropósito da teologia natural (RORTY, 2009, p. 54).

No texto O pragmatismo como um politeísmo romântico, presente no livro Filosofia como política cultural, Rorty esboça cinco teses concisas de uma filosofia pragmatista da religião. A primeira tese se refere à “vantagem da concepção antirrepresentacionista da crença [...], a concepção de que crenças são hábitos de ação -, que ela nos libera da responsabilidade de unificar todas as nossas crenças em uma única visão do mundo” (RORTY, 2009, p. 68). E, assim, se variam os propósitos atendidos pela ação, variam também os hábitos desenvolvidos que serve a esses propósitos, evitando, assim, a crença como algo essencialista e imutável. 40


A segunda tese, baseada em Nietzsche, afirma que “a tentativa, [...], de considerar a fé religiosa como simbólica e, com isso, tratar a religião como poética e a poesia como religiosa, e nenhuma das duas como competindo com a ciência, está no caminho certo” (RORTY, 2009, p. 68), pois é também uma tentativa de abrir mais espaço para a individualidade do que a já feita pelo monoteísmo ortodoxo ou pelo Iluminismo, quando pôs a ciência no lugar da religião como fonte de Verdade. Contudo, afirma Rorty, para fortalecer essa tentativa é necessário seguir o utilitarismo romântico pragmatista que abandonou a idéia de que partes da cultura satisfazem a necessidade de conhecer a verdade e outras não. Portanto, “se não há nenhuma vontade de verdade distinta da vontade de felicidade, não há maneira de contrastar o cognitivo com o não cognitivo, o sério com o não sério” (RORTY, 2009, p. 68). A terceira tese rortyana sobre a religião se baseia sobre o combate feito pelo pragmatismo à distinção entre projetos de cooperação social e projetos de autodesenvolvimento pessoal. A Ciência natural e o Direito pertencem ao primeiro grupo, e buscam aperfeiçoar a condição humana através de observação e experimento. A arte, por sua vez, é um projeto paradigmático possibilitador do desenvolvimento pessoal. Já “a religião, se puder ser desconectada tanto da ciência quanto dos costumes – da tentativa de prever as conseqüências de nossas ações e da tentativa de classificar as necessidades humanas -, poderia ser um outro desses paradigmas” (RORTY, 2009, p. 69). Ou seja, a religião poderia se tornar também um projeto de autodesenvolvimento pessoal, que não permanecesse tão distante da imanência dos homens, presa às questões universais metafísicas. A quarta tese critica a pretensa irresponsabilidade intelectual da crença religiosa em alcançar a verdade, imposta pelo dever de amarmos a Verdade. Contudo, Rorty argumenta que não há esse amor à Verdade, e sim “uma mistura do amor por se atingir um acordo intersubjetivo, o amor por vencer discussões, e o amor por sintetizar pequenas teorias em grandes teorias” (RORTY, 2009, p. 69). Portanto, se não há prova de que uma crença religiosa não alcança a Verdade, nunca constitui uma objeção a ela. Dessa forma, “a única objeção possível poderia ser o fato de que ela intromete um projeto individual em um projeto social e cooperativo [...]. Tal intrusão é uma traição da responsabilidade de um indivíduo de cooperar com outros seres humanos, não da responsabilidade de um indivíduo para com a Verdade e razão” (RORTY, 2009, p. 69). A quinta e última tese rortyana sobre a religião traz uma reflexão em torno da Verdade única como sendo a secularização da esperança religiosa tradicional que tem o poder (Poderoso/Deus) como nosso aliado e inimigo dos outros. Mas a democracia pragmatista faz objeção 41


contra a esperança de lealdade para com o poder, pois a considera “uma traição do ideal de fraternidade humana que a democracia herdou da tradição religiosa judaico-cristã. Esse ideal encontra sua melhor expressão na doutrina, [...], de que cada necessidade humana deveria ser satisfeita a menos que isso cause a insatisfação de muitas outras necessidades humanas” (RORTY, 2009, p. 70). O que deve ser tentado é a obtenção de um consenso democrático e a maximização da felicidade. A ontologia débil como transcrição da mensagem cristã em Vattimo Vattimo pensa a questão religiosa a partir do fim da metafísica, apoiado em Heidegger, Nietzsche e Pareyson, e baseando-se na importância filosófica da hermenêutica. Para tanto ele desenvolve inicialmente quatro grandes argumentos em torno da interpretação e do questionamento sobre a validade da verdade objetiva: a) a analítica existencial (primeira seção do Ser e tempo) nos torna conscientes de que o conhecimento é sempre interpretação e nada mais que isso. As coisas aparecem para nós no mundo somente porque estamos no meio dele e sempre já orientados a buscar algum sentido específico, ou seja, temos uma pré-compreensão que faz de nós sujeitos interessados e não telas neutras de um panorama objetivo; b) a interpretação é o único fato de que podemos falar: nele [...] ‘o ‘objeto’ se revela na medida em que o ‘sujeito’ se exprime, e vice-versa. [...] na interpretação, dá-se o mundo, não há apenas imagens ‘subjetivas’. [...]; c) [...] a interpretação, quanto mais queremos captá-la em sua autenticidade (Eingentlichkeit), mais ela se revela como Ereignishaft, eventual, histórica. Donde, d) se mesmo o fato de que não existem fatos, apenas interpretações é – como Nietzsche lucidamente reconheceu – uma interpretação, ela só poderá se realizar como resposta interessada a uma situação histórica determinada. Não como ato objetivo de tomar conhecimento de um fato que permanece externo a ela, mas como um fato que, ele próprio, passa a compor aquela mesma situação histórica à qual co-responde (VATTIMO, 2006, p. 64-65).

Para Vattimo, portanto, não se fala impunemente sobre a interpretação 1, pois ela redimensiona a realidade à mensagem. A eliminação da diferença entre natureza e sociedade, por exemplo, mostra que as ciências naturais estabelecem também seus paradigmas a partir de précompreensões. Assim, o fato é a interpretação e a interpretação é o fato. É dessa forma que a hermenêutica confronta a metafísica e enuncia a existência histórica. Já a importância do pensamento heideggeriano é justificada em função de sua capacidade de deixar falar o evento, o que teria o mesmo significado do niilismo nietzschiano e ambos corresponderiam ao fim da metafísica. As principais características do fim da metafísica seriam: fim do eurocentrismo; crítica da ideologia pela dissolução da consciência através da psicanálise; pluralização das agências de informação, os mass media, que, segundo Heidegger, tornam impossível uma imagem única do mundo; e o fim das metanarrativas, conforme Lyotard (Conf. MARINHO, 2009). Mas Vattimo chama a atenção para o fato de que: 42


[...] não devemos esquecer no ensinamento heideggeriano, e que Lyotard, ao contrário, negligencia, é que o fim da metanarrativa não é o despertar de um estado de coisas ‘verdadeiro’, no qual as metanarrativas não ‘existem mais’; é, pelo contrário, um processo no qual precisamos, na medida em que estamos mergulhados nele e não olhando do exterior, colher um fio condutor que servirá para projetar seus ulteriores desenvolvimentos: para estarmos dentro dele, ou seja, como intérpretes e não como registradores objetivos dos fatos (VATTIMO, 2006, p. 66).

É nessa perspectiva que Vattimo aproxima a reflexão sobre a hermenêutica às questões religiosas. Há algo decisivo nesse universo teórico apresentado que escapa à maioria dos pósmodernos, qual seja, Nietzsche e Heidegger estão inseridos não somente no âmbito do fim das metanarrativas, mas também no interior da tradição bíblica: “Não é tão absurdo sustentar que a morte de Deus anunciada por Nietzsche é, em muitos sentidos, a morte de Cristo na cruz narrada pelos Evangelhos” (VATTIMO, 2006, p. 66). E, apoiado em Dilthey, argumenta que: [...] é o advento do cristianismo que torna possível a progressiva dissolução da metafísica, dissolução essa que, em sua perspectiva, culminará em Kant, mas que é também o niilismo de Nietzsche e o fim da metafísica de Heidegger. O cristianismo introduz no mundo o princípio da interioridade, com base no qual a realidade ‘objetiva’ perderá pouco a pouco o seu peso determinante. A frase de Nietzsche ‘não há fatos, apenas interpretações’ e a ontologia hermenêutica de Heidegger não farão mais que levar tal princípio às suas conseqüências extremas. A relação da hermenêutica moderna com a história do cristianismo, portanto, não é apenas aquilo que sempre se acreditou, ou seja, o vínculo essencial que a reflexão sobre a interpretação sempre teve com a leitura dos textos bíblicos. O que proponho aqui é, ao contrário, que a hermenêutica, em seu sentido mais radical, expresso na frase de Nietzsche e na ontologia de Heidegger, é o desenvolvimento e a maturação da mensagem cristã. [...]. Podemos realmente sustentar que o niilismo pós-moderno é a verdade atual do cristianismo (VATTIMO, 2006, p. 67). (Grifo nosso)

Para a hipótese vattimiana, é com o fim do autoritarismo da Igreja, que tem marcado sua trajetória histórica, que o cristianismo pôde ter desdobrado “todo o seu efeito antimetafísico e a ‘realidade’ se reduzido, em todos os seus aspectos, a mensagem” (VATTIMO, 2006, p. 70). Assim, o sentido do cristianismo diante dessa “redução” da realidade à mensagem seria o de compreender que a realidade não é simplesmente o que está presente e de dissolver, assim, as explicações decisivas do que seja a realidade: Há nesse processo de redução dois aspectos inseparáveis: o cristianismo só tem sentido quando a realidade não é, unicamente e acima de tudo, o mundo das coisas vorhanden, simplesmente presentes; e o sentido do cristianismo como mensagem de salvação é justamente, antes de tudo, aquele de dissolver as pretensões peremptórias da ‘realidade’. A frase paulina ‘morte, onde está tua vitória?’ pode, de direito, ser lida como a negação extrema do ‘princípio de realidade’ (VATTIMO, 2006, p. 70).

Para Vattimo, é necessário, portanto, que a Igreja reconheça que o sentido redentor da mensagem cristã desdobra-se precisamente na dissolução das pretensões da objetividade. Com isso, ela poderia, por fim, resolver o conflito histórico entre verdade e caridade que tanto infelicita a vida dos homens, principalmente dos que são crentes: 43


A verdade que, segundo Jesus, nos tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem mesmo a verdade da teologia: assim como não é um livro de cosmologia, a Bíblia também não é um manual de antropologia ou de teologia. A revelação escritural não é feita para nos fazer saber como somos, como Deus é, quais são as ‘naturezas’ das coisas ou as leis da geometria – e para salvar-nos, assim, por meio do ‘conhecimento’ da verdade. A única verdade que as Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma desmistificação – visto que não é um enunciado experimental, lógico, metafísico, mas sim um apelo prático – é verdade do amor, da caritas (VATTIMO, 2006, p. 71).

Vattimo enfatiza que essa proximidade entre verdade e caridade não é algo esdrúxulo na filosofia pós-metafísica contemporânea, ela se encontra no neopragmatismo rortyano e na teoria do agir comunicativo habermasiano, por exemplo2. Para a filosofia contemporânea, a experiência da verdade acontece como a experiência de participação

em

comunidade

que

não

é,

necessariamente,

uma

comunidade

fechada.

Significativamente, na hermenêutica gadameriana a verdade acontece como uma construção entre comunidades na busca da ‘fusão de horizontes’. Isso significa, portanto, que a verdade não é uma objetividade que tem uma correspondência representativa, mas sim proposições compartilhadas pelas comunidades. Com a morte de Deus e a dissolução da metanarrativas ocorreu uma desmistificação do princípio de autoridade e dos saberes objetivos. Com isso, a “nossa única possibilidade de sobrevivência humana está depositada no preceito cristão da caridade” (VATTIMO, 2006, p. 76). A razão disso é que a caridade nos possibilita “aceitar os diferentes jogos de linguagem, as diferentes regras dos jogos de linguagem” (Ibidem, p. 81). Essa herança cristã que retorna no pensamento débil é também, e principalmente, herança do preceito cristão da caridade e da sua recusa da violência (Conf. VATTIMO, 1998, p. 36). Vattimo reafirma, portanto, que na sua perspectiva, “o niilismo pós-moderno (a dissolução das metanarrativas) é a verdade do cristianismo. O que significa que a verdade do cristianismo parece ser a dissolução do próprio conceito (metafísico) de verdade” (VATTIMO, 2006, p. 72). Para Vattimo, o cristianismo traz uma mensagem histórica da salvação. Os que seguiram Cristo, não o fizeram somente porque viram seus milagres, como os dos séculos posteriores, a crença nos ensinamentos de Jesus advém da sua própria condição de não poder ser anulada ou derrotada: “quem crê, entendeu, ouviu, intuiu que sua palavra é ‘palavra de vida eterna’” (VATTIMO, 2006, p. 73). Além dessa questão, há também o fato de que a nossa existência histórica não teria sentido sem a revelação cristã. Da mesma forma que os clássicos de literatura fazem uma cultura, “assim também a nossa cultura em seu conjunto mais amplo não teria sentido se quiséssemos amputar-lhe o

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cristianismo” (Ibidem, p. 74). Não podemos negar uma tradição aberta pelo anúncio do Cristo e a nossa pertença a essa tradição. Na verdade, ainda não conseguimos explicitar todas as conseqüências antimetafísicas do próprio cristianismo; dado que ainda não somos suficientemente niilistas, isto é, cristãos, ainda opomos à inderrogabilidade históricocultural da tradição bíblica uma ‘realidade natural’ que substituiria independentemente dela e em relação à qual a verdade bíblica deveria ‘provar-se’. [...]. É muito mais razoável pensar que a nossa existência depende de Deus porque aqui e agora não conseguimos falar a nossa língua e viver a nossa historicidade sem responder à mensagem transmitida pela Bíblia. Pode-se dizer que essa é também uma pertinência particular, que esquece a humanidade em geral e se fecha para as outras religiões e outras culturas. Mas isso acontecerá em maior grau se pensarmos que a revelação cristã é ligada a uma metafísica natural que, hoje, depois da crítica marxista da ideologia e do desenvolvimento da antropologia cultural, tem se revelado o oposto disso (VATTIMO, 2006, p. 74-75).

É nessa perspectiva que também podemos encontrar outro conceito importante na reflexão vattimiana sobre a religião. É o conceito de Kenosis, a encarnação, como renúncia de Deus à própria transcendência soberana. Esse conceito é retomado de Girard 3 que defende a idéia da encarnação como dissolução do sagrado enquanto violento (Conf. VATTIMO, 1998, p. 29). Mas o cristianismo niilista vattimiano vai além: enquanto o Deus violento de Girard é o Deus da metafísica, caracterizado pelo ser objetivo, a dissolução da metafísica é também o fim desta imagem de Deus, a morte nietzschiana de Deus: A encarnação, isto é, o rebaixamento de Deus ao nível do homem, aquilo a que o Novo Testamento chama de kenosis de Deus, deverá ser interpretada como sinal de que o Deus 4 não violento e não absoluto da época pós-metafísica tem como traço distintivo a mesma vocação para o debilitamento de que fala a filosofia de inspiração heideggeriana (VATTIMO, 1998, p. 30).

Assim, para Vattimo, a ontologia débil seria uma transcrição da mensagem Cristã. Ou seja, o pensamento fraco e o seu ser fraco seriam uma tradução da morte desse Deus metafísico duro, autoritário, objetivo, onipotente, eterno e absolutista. Diversamente, então, poderíamos pensar em um Deus fraco, flexível, subjetivo, não-absolutista e amigo. Dessa forma, a secularização, característica da história do Ocidente moderno, é um fato interior ao cristianismo, algo extremamente positivo trazido pela mensagem cristã e que conduz à concepção da história da modernidade como debilitamento e dissolução do ser. (Conf. VATTIMO, 1998, p. 32). E nesse sentido, a encarnação (Kenosis) é o símbolo do processo de secularização como processo liberador da civilização laica moderna das suas origens sagradas. E a secularização pode e deve muito bem ser compreendida como uma forma expressiva dos ensinamentos cristãos e não um distanciamento deles: A chave de todo este discurso é o termo “secularização”. Com ele, como se sabe, indica-se o processo de “deriva” que liberta a civilização laica moderna das suas origens sagradas. Mas se o sagrado natural é o mecanismo violento que Jesus veio para revelar e desmentir, é bem

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possível que a secularização – que é também perda de autoridade temporal por parte da Igreja, autonomização da razão humana em relação à dependência de um Deus absoluto, juiz ameaçador, de tal modo transcendente em relação às nossas idéias do bem e do mal a ponto de parecer um soberano caprichoso e bizarro – seja precisamente um efeito positivo do ensinamento de Jesus e não um modo de nos afastarmos dele (VATTIMO, 1998, p. 32-33).

Dessa forma, Vattimo encontra e acentua o sentido “positivo” da secularização, qual seja, o de que “a modernidade laica se constitui também e sobretudo como continuação e interpretação dessacralizante da mensagem bíblica [...], dessacralização do sagrado violento, autoritário e absoluto da religião natural” (VATTIMO, 1998, p. 33). A secularização seria a própria essência da modernidade. O filósofo italiano cita alguns exemplos representativos dessa secularização: a sociologia religiosa de Weber e a sua interpretação do capitalismo moderno sendo resultante da ética protestante; a forte ligação entre a racionalização da sociedade moderna e o monoteísmo hebraicocristão; a história da transformação do poder do Estado, passando da monarquia de direito divino à monarquia constitucional até chegar à democracia representativa. Mais adiante reitera a questão central da positividade da secularização: Um dos sentidos, ou o sentido principal, da centralidade da idéia de secularização como fato “positivo” interior à tradição cristã é, precisamente, o de negar esta imagem objetivista do retorno. Secularização como fato positivo significa que a dissolução das estruturas sagradas da sociedade cristã, a passagem a uma ética da autonomia, à laicidade do estado, a uma literalidade menos rígida na interpretação dos dogmas e dos preceitos, não deve ser entendida como um acréscimo ou uma despedida do cristianismo, mas como uma realização mais plena da sua verdade que é, recordemo-lo, a kenosis, o rebaixamento de Deus, o desmentir dos traços “naturais” da divindade (VATTIMO, 1998, p. 39).

Dessa forma, para Vattimo, a positividade da secularização está distante da afirmação da transcendência de Deus, da idéia de uma fé pura conduzindo a crença do aperfeiçoamento humano e o progressivo esclarecimento da razão. Ocorre o inverso, afirma Vattimo: “a kenosis, iniciada com a encarnação de Cristo – e já antes com o pacto entre Deus e o ‘seu’ povo – continua a realizar-se em termos cada vez mais claros, prosseguindo a obra de educação do homem para a superação da essência originária violenta do sagrado e da própria vida social” (VATTIMO, 1998, p. 41). Considerações finais A metafísica pragmática da experiência religiosa de James faz a defesa de adoção da crença religiosa sem que seja necessária a evidência de sua verdade, na medida em que a própria adoção da crença a torna verdadeira para aquele que crê, principalmente pelo peso prático que possui. Da mesma forma, defende o sentimento religioso e repudia a sua desvalorização diante do fortalecimento do materialismo científico do início do século XX. O sentimento religioso, experiência pessoal, indizível e intransferível, não é menor que a Ciência, e a sua verdade consiste 46


nele proporcionar alegria e otimismo, e daí a sua utilidade. Mas, acima de tudo, James faz a defesa do direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem que, por isso, seja condenado, pois a vontade de crer é, prioritariamente, um direito e uma liberdade pessoais. Vattimo demonstrou que, na era do fim da metafísica, a hermenêutica historicizou a filosofia, ao acabar com a distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito. Isso pode ser constatado quando o próprio Nietzsche afirma que a expressão que “não há fatos, apenas interpretações” é também uma interpretação. Para Vattimo a perda de representação da realidade se deve também ao cristianismo e ao seu princípio de interioridade que dissolveu a experiência da realidade objetiva em interpretação de mensagens: Essa hermeneutização da filosofia libertou a religião da metafísica no momento em que identificava a morte de Deus, anunciada por Nietzsche, com a morte de Cristo na cruz narrada pelos Evangelhos. Se acreditamos ainda hoje no significado salvífico dessa morte, é porque o lemos no Evangelho, e certamente não porque temos nas mãos provas objetivas do fato histórico da ressurreição. Ao recorrer a Croce, Vattimo conclui observando que o próprio pragmatismo antifundacionista de Rorty só é possível porque vivemos nessa sociedade originária da mensagem bíblica. O pragmatismo e a hermenêutica transformam-se em filosofias capazes de ultrapassar o lógos metafísico em direção a uma cultura do diálogo que não é mais animado por uma busca da verdade (ZABALA, 2006, p. 42-43).

Para Vattimo a morte de Deus corresponde ao ateísmo filosófico que, em última instância, é sinônimo do fim do fundamento último. Por isso, paradoxalmente, somente uma filosofia ‘absolutista’ pode se sentir autorizada a negar a experiência religiosa. [...] justamente porque o Deus-fundamento último, isto é, a estrutura metafísica absoluta do real, não é mais sustentável, justamente por isso é novamente possível crer em deus. Certamente, não no Deus da metafísica e da escolástica medieval, que de todo modo não é o Deus da Bíblia, isto é, do livro que justamente a metafísica racionalista e absolutista moderna havia pouco a pouco dissolvido e negado (ZABALA, 2006, p. 34).

Para o filósofo italiano, para superar os equívocos da guerra de religião é necessário, vivermos a nossa religiosidade fora do esquema do Iluminismo racionalista: “ou o fanatismo de uma fé cega (credo quia absurdum) ou o ceticismo de uma razão sem raízes e também sem vínculo efetivo com o mundo” (Conf. ZABALA, 2006, p. 38). Assim, é preciso renovar a religiosidade. Cultivar uma religião sem violência e sem a ambição do poder. Ao invés de levar adiante uma guerra pelo triunfo da fé ou se aliar a uma ideologia manipulatória, viabilizar soluções para problemas sociais, e refletir sobre os problemas econômicos do Terceiro Mundo. Deve-se abandonar a idéia de fazer triunfar uma fé sobre outra, pois “a tarefa que todos temos pela frente é reencontrar – depois da época ‘metafísica’ dos absolutismos e da identidade entre verdade e autoridade – a possibilidade de uma experiência religiosa pós-moderna, na qual a relação com o divino não seja mais poluída pelo medo, pela violência, pela superstição” (Ibidem, p. 39). 47


Vattimo e Rorty acreditam que uma religiosidade fraterna e amorosa seja possível devido a uma característica da atual era pós-metafísica: a desistência da Verdade como Representação da Realidade. Nesse âmbito, segundo Ghiraldelli, convergem as tradições filosóficas de cada um desses dois pensadores, a hermenêutica e o pragmatismo, nas quais o “verdadeiro” e o “falso” só podem ser enunciações mediadas pela invenção da linguagem de, no mínimo, duas pessoas que compartilham um mundo e uma atividade comuns e que as impele à comunicação. O Verdadeiro Conhecimento pretensamente alcançado pela metafísica teria um núcleo duro que inviabilizaria a interação das pessoas que se falam e dessas com o ambiente compartilhado e da redescrição que cada um faz desse ambiente. Assim, o realismo religioso busca mostrar a realidade eterna e imutável da Verdade em Deus ou no “Caminho Para Ele” (Conf. GHIRALDELLI, 2006). Por caminhos distintos, mas convergentes, os dois filósofos compreendem a religião em uma perspectiva imanente, sem os absolutismos metafísicos: Vattimo, socialista, aprecia considerar um fato passado: a importância da vinda de Cristo. Rorty, liberal de esquerda, gosta de santificar a esperança de um fato futuro: a ampliação pelo mundo de uma generosa sociedade livre e sabiamente igualitária. [...] Ambos acreditam [... na] idéia de que Deus está querendo deixar de nos tratar como servos para nos tratar como amigos. Vattimo vê isso na Encarnação. Rorty vê isso na Utopia Vaga. Sermos tomados como amigos é sermos considerados como aqueles que não têm de obedecer, mas como aqueles que podem viver sob uma única lei, a do amor (GHIRALDELLI, 2006, p. 10).

As nuanças pós-metafísicas do pragmatismo de James, do pensamento fraco de Vattimo e do neo-pragamatismo de Rorty, vêem a relação entre o fim da metafísica e a religião como um abandono da crença de que somente a verdade objetiva da teologia e das ciências naturais nos torna livre. Assim, A revelação escritural não contém a explicação de como Deus é e de como podemos nos salvar através do conhecimento da verdade. A única verdade que o Evangelho nos revela é o apelo prático ao amor, à caridade. A verdade do cristianismo é a dissolução do próprio conceito metafísico de verdade. Um cristianismo sem Deus representa uma fé liberta da metafísica objetivista que pensa demonstrar, com base na ‘sadia razão natural’, a existência de um ser supremo. O principal desafio da Igreja Católica na modernidade é o mesmo da ciência: também a Igreja quer valer como fonte única de verdade. As discussões sobre a demonstração da existência de Deus ou dos milagres sempre se moveram em torno da idéia de que a verdade que liberta é a verdade objetiva (ZABALA, 2006, p. 39-40). (Grifo nosso).

Para Zabala (2006), o homem pós-moderno, testemunha do fim das grandes sínteses unificantes do pensamento metafísico tradicional, pode viver sem neuroses em um mundo sem Deus e sem estruturas fixas e garantidas, de fundação única, última e normativa para o conhecimento e para a ética. Este homem não mais necessita da segurança extrema e mágica que era fornecida pela 48


idéia de Deus e, assim, aceita que a história não esteja sempre a seu favor, que não há garantia de felicidade e que o mundo é relativo e feito de meias-verdades. Dessa forma, O ideal de uma certeza absoluta, de um saber totalmente fundamentado e de um mundo organizado racionalmente é, para ele, apenas um mito tranqüilizador próprio de uma humanidade ainda primitiva. Graças à secularização, o homem desvincula-se da hierarquia criatural e de qualquer limite, seja ele cosmológico, como prevê a visão grega do mundo, seja ele teológico, como prevê aquela da Igreja. Nesse sentido, um conceito fraco de razão não seria mais conforme a pregação evangélica do amor? O próprio Paulo não hesita em afirmar: ‘quando sou fraco, é então que sou forte’ [...]. É a fragmentariedade da razão, típica do pensamento pós-moderno, que põe à disposição do homem aquele lugar vacante no qual a Igreja deveria colocar sua própria mensagem de fé para não incorrer mais em contradições” (ZABALA, 2006, p. 35).

Este homem pós-moderno, que assume a condição fraca do ser e da existência, aprende a conviver consigo e com a finitude, para além da nostalgia do fim do absoluto da metafísica. Dessa forma, a aceitação da nossa condição constitutivamente dividida, instável e plural, própria ao nosso ser, constituída de diferença, transitoriedade e multiplicidade, pode possibilitar a prática da solidariedade, caridade e ironia. Esta última compreendida aqui como descrença em relação à verdade objetiva e afirmação das verdades plurais e interpretativas. A recusa da transcendência além-túmulo valoriza o pluralismo e a tolerância evitando o autoritarismo de uma visão particular. Assim, A ‘morte de Deus’ [...] indica hoje a encarnação, a kénosis (do verbo kenóo, torno vazio), com a qual Paulo alude ao ‘esvaziar-se de si mesmo’ realizado pelo Verbo divino, que se rebaixou à condição humana para morrer na cruz. Tudo isso nos leva a uma concepção menos objetiva e mais interpretativa da revelação, ou seja, a uma concepção ‘do último deus’ (ZABALA, 2006, p. 35-36).

Assim, a atualidade da hermenêutica a partir do ponto de vista religioso, indica que a salvação não passa através da descrição e do seu conhecimento, mas sim através da interpretação. Noções como ‘comunicação’, ‘globalização’, ‘diálogo’, ‘consenso’, ‘interpretação’, ‘democracia’ e ‘caridade’ assumiram na cultura contemporânea uma tendência do pensamento a abandonar a objetividade (Conf. ZABALA, 2006, p. 36). O pensamento fraco busca a compatibilidade da privatização da fé religiosa, longe da institucionalização da fé religiosa instituída em igrejas e posições políticas. Aqui, o laicismo é anticlericalismo, ou seja, “a tendência a afirmar a completa autonomia da vida cultural, social e política em relação a qualquer igreja, o futuro da religião, segundo Rorty e Vattimo, depende da capacidade das atuais autoridades eclesiásticas de deixar que a religião se transforme em algo privado” (ZABALA, 2006, p. 37). Essa perspectiva está muito próxima a de James quando este defende o direito de cada um adotar uma atitude crente em matéria religiosa sem ser condenado pela 49


lógica ou pela ciência, mas constituindo uma verdade estabelecida pelo desejo e viabilizadora de soluções práticas. Na era pós-metafísica, também idade da interpretação, a religião enquanto questão privada se transformaria na responsabilidade diante de si mesmo e não mais diante de Deus, pois “a democracia, a hermenêutica e o cristianismo, de um ponto de vista pós-metafísico, não são métodos para a descoberta da verdade e excluem deliberadamente todas as questões concernentes ao verdadeiro” (Ibidem, p. 38). NOTAS: 1.“De um lado, ela reduz toda a realidade a mensagem – colocando fora do jogo também a distinção entre Natur- e Geisteswissenschaften, dado que mesmo as chamadas ciências ‘duras’ verificam ou rejeitam como falsas as suas proposições dentro de determinados paradigmas ou pré-compreensões. Se assim os ‘fatos’ revelam que não são mais que interpretações, por outro lado a interpretação se apresenta, ela mesma, como o fato: a hermenêutica não é uma filosofia, mas a enunciação da própria existência histórica na época da metafísica” (Vattimo, 2006, p. 65). 2. “Na filosofia pós-metafísica de hoje, assim como no neopragmatismo de um Rorty ou na filosofia do agir comunicativo de Habermas, a vizinhança entre verdade e caridade não é de modo algum uma idéia extravagante. Para esses dois pensadores e para muitos de nossos contemporâneos, não existe experiência da verdade senão como experiência de participação em uma comunidade: não necessariamente a comunidade fechada, de paróquia, de província, de família, dos comunitaristas. Como no caso da hermenêutica de Gadamer, a verdade acontece como construção sempre em curso de comunidades que coincidem em uma ‘fusão de horizontes’ (Horizontveschmelzung), que não possui nenhum insuperável limite ‘objetivo’ (como aquele da raça, da língua, das experiências ‘naturais’). O que parece cada vez mais óbvio no pensamento pós-metafísico contemporâneo é que o verdadeiro não é, sobretudo, correspondência da proposição com a coisa. Mesmo quando falamos de correspondência, pretendemos aludir a proposições verificadas no âmbito de paradigmas cuja verdade consiste antes de tudo no fato de serem condivididos por uma comunidade” (Vattimo, 2006, p. 71-72). 3.“Girard é também herdeiro de muita teologia do séc. XX, que insistiu na diferença radical entre fé cristã e ‘religião’,entendendo esta última no sentido da natural propensão do homem para se pensar dependente de um ser supremo p o qual, precisamente porque responde a esta propensão natural, acaba por não ser mais nada além de uma projeção dos desejos humanos, oferecendo-se à crítica poderosamente inaugurada por Feuerbach e depois continuada por Marx” (Vattimo, 1998, p. 29). 4.Conf. Paulo, Carta aos Filipenses.

REFERÊNCIAS CASTRO, Susana de. Visões rortyanas acerca da “cultura literária”. In: Pragmatismo e questões contemporâneas./Arthur Arruda Leal ferreira (Org.). Rio de Janeiro: Arquimedes: Grupo de Trabalho em Pragmatismo, Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Brasil), 2008. GHIRALDELLI JR, Paulo. Pragmatismo e hermenêutica. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução: Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. JAMES, William. La voluntad de creer. Traducion castellana Santos Rubiano. Madrid, 1922. Disponível em http://www.unav.es/gep/LaVoluntaddeCreer.html. MARINHO, Cristiane M. Pensamento pós-moderno e educação na crise estrutural do capital. Fortaleza, EDUECE, 2009. 50


NIEBUHR, Richard R. William James acerca da experiência religiosa. In: William James. PUTNAM, Anna (Org.). Tradução André Oides. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2010. (Companions & Companions). RORTY, Richard. VATTIMO, Gianni. ZABALA, Santiago (Org.). O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. RORTY, Richard. VATTIMO, Gianni. ZABALA, Santiago (Org.). Qual é o futuro da religião após a metafísica? In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. RORTY, Richard. Anticlericalismo e ateísmo. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. RORTY, Richard. Fé religiosa, responsabilidade intelectual e romance. In: William James. PUTNAM, Anna (Org.). Tradução André Oides. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2010. (Companions & Companions). RORTY, Richard. A política cultural e a questão da existência de Deus. In: Filosofia como política cultural. Tradução: João Carlos Pijnappel. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (Coleção Dialética). RORTY, Richard. O pragmatismo como um politeísmo romântico. In: Filosofia como política cultural. Tradução: João Carlos Pijnappel. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (Coleção Dialética). VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998. VATTIMO, Gianni. A idade da interpretação. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. ZABALA, Santiago. Uma religião sem teístas e sem ateístas. In: O futuro da religião: solidariedade, caridade, ironia. Tradução Eliana Aguiar, Paulo Ghiraldelli. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

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RICHARD RORTY E A REDESCRIÇÃO DA SABEDORIA: Ciúme de Platão, Ciúme de Proust Marcos Carvalho Lopes* RESUMO: A relação de ciúme que funda a busca de Platão por superar e colocar-se no lugar de Homero, é redescrita por Rorty, a partir da visão proustiana deste sentimento em mote para pensar como a “angústia da influência” – conceito do crítico Harold Bloom – permeia o campo filosófico. Com isso, a ânsia de desenvolver uma teoria que desvelasse verdades imutáveis e não-relacionais pode ser tomada como um mero desejo de fugir da contingência. A aceitação da contingência e a percepção da Filosofia como um gênero de escrita promoveriam uma mudança na percepção do que chamamos de sabedoria. Palavras-chave: Proust. Platão. Rorty. Ciúme. Metafilosofia. ABSTRACT: The envy has founded the search of Plato to overcome and put herself in the place of Homer, this relation is redescribed for Rorty from the Proustian vision of this feeling in a sense for thinking about how the "anxiety of influence" – a concept of critical Harold Bloom – pervades the field of philosophy. Thus, the drive to develop a theory that would unveil unchanging and nonrelational truths can be taken as an anxiety to escape from contingency. The acceptance of contingency and perception of philosophy as a genre of writing promove a change in perception of what we call wisdom. Keywords: Proust. Plato. Rorty. Metaphilosophy. Jealousy. A sabedoria não se transmite, é preciso que a gente mesmo a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma forma de ver as coisas. (PROUST, 1984, p.339)

Platão tinha ciúme de Homero e do lugar que os poetas ocupavam na cultura grega. A Filosofia nasceu desse sentimento, trazendo consigo a promessa de desenvolver uma boa sociedade que estaria livre da deformação do desejo (NUSSBAUM, 2004), afirmando a identificação socrática de virtude com conhecimento, e tomando este pressuposto como caminho de ordenação social. Para combater os poetas, Platão não tinha alternativa senão a de tecer narrativas e criar seus próprios mitos, combatendo sombras com sombras. Escrevendo contra a escrita, afirmava um saber que se fundaria na contemplação da Verdade eterna e imutável. O jovem Richard Rorty (1931-2007) escolheu aos quinze anos frequentar o curso de Filosofia buscando nele esta “verdade redentora” que a leitura de Platão havia lhe anunciado confusamente. Rorty queria encontrar um sistema de pensamento em que pudesse conciliar os seus gostos idiossincráticos (por orquídeas selvagens, por exemplo) com a busca por justiça social. A leitura de livros marxistas havia lhe colocado em dúvida sobre seu caráter moral, já que seus gostos *

Doutorando em filosofia pela UFRJ, bolsista da Capes. Mestre em filosofia pela UFG.

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privados não teriam lugar, sendo condenados em qualquer utopia, já que nelas a distinção entre privado e público é extirpada.1 Em Platão, o jovem percebeu a possibilidade de alcançar uma espécie de conhecimento que prometia ao mesmo tempo lhe garantir virtude moral. A “verdade redentora” que Rorty vislumbrava adquirir pela Filosofia seria o mesmo tipo de saber que a fé religiosa proporciona: a crença na posse de uma perspectiva privilegiada que permite ver a realidade como ela é em si mesma, e, com isso, por fim a qualquer processo de inquirição. Tinha dúvidas se essa perspectiva privilegiada vertical tomaria a forma sublime de um bem estar profundo e incomunicável ou lhe daria a posse de argumentos belos e racionais, capazes de convencer qualquer interlocutor. As duas opções apontam para o anseio de tornar-se autêntico, se distanciando da educação e cultura de sua sociedade na tentativa de transcender qualquer contexto de justificação, ocupar um lugar de “olho-de-deus”. Rorty tentou com afinco alcançar essa posição filosófica, contudo não conseguiu manter a necessária fé na Igreja da Razão, crença que seria primordial para seguir os caminhos de investigação ascética e positivista, padrão na academia (norte-americana). Suas dúvidas quanto à possibilidade de seguir o caminho de ascensão na escada platônica, das sombras e aparências para a luz e a verdade, tornaram-se mais fortes após a leitura de dois livros: A Fenomenologia do Espírito, de Hegel e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Rorty conta que por bom tempo considerou estas como sendo as “grandes realizações da espécie à qual pertencia” (RORTY, 2005, p.39). Hegel ocupou para ele o mesmo lugar dos livros marxistas, com a ideia de que também poderia “traduzir o seu tempo em pensamento” e, desta forma, contribuiu para transformar o mundo (como pretendia Karl Marx). Já Proust ocuparia, para Rorty, o lugar de suas orquídeas selvagens, ou seja, sua obsessão privada. Apesar de a primeira ser uma obra teórica e a segunda literária, as duas narrativas traziam para o jovem filósofo a percepção de algo que a tradição platônico-kantiana reprimira: a contingência. Em seu ensaio autobiográfico “Trotsky e as orquídeas selvagens”, Rorty descreve com vivacidade o encantamento provocado por esta descoberta: Era o regojizante compromisso com a temporalidade que Hegel e Proust compartilhavam – o elemento especificamente antiplatônico em suas obras – que parecia tão maravilhoso. Ambos pareciam capazes de tecer todas as coisas que encontravam em uma narrativa sem solicitar uma moral para tal narrativa, e sem perguntar como a narrativa apareceria sob o aspecto da eternidade. (RORTY, 2005, p.39-40).

O encontro com Hegel e Proust ajudou a modificar a busca que empreendia. Podemos dizer que serviram de início para a “trajetória do pragmatista”, uma espécie de auto-narrativa irônica que Rorty utilizaria como “ponto fixo”, seu “Plano Oculto”2 para encaixar em um espectro os textos que 53


lhes chegam a mão. Tal trajetória teria três fases: (1) Num primeiro momento, o “Perseguidor da Iluminação” começa a duvidar da utilidade dos grandes dualismos da filosofia ocidental e percebe que esses não devem ser superados, mas esquecidos: com a ajuda de Nietzsche, compreende tais dualismos como marcos de tentativas fantasiosas de adquirir um controle total sobre a realidade. (2) Num segundo momento, o pragmatista passa a destruir/desconstruir esse desejo de controle total, como “um simples eufemismo pretensioso da esperança masculina de oprimir as mulheres, ou da esperança da criança de se vingar da sua mamãe e do papai.”(RORTY, 1993, p.109). Aqui, o “Perseguidor da Iluminação” já pode esboçar uma risada irônica, ao perceber a origem de sua antiga compulsão por uma “verdade redentora”. (3) Num terceiro momento, a pessoa deixa de crer que seu caminho consiste de passos numa escada em direção a uma iluminação: sua trajetória seria mais próxima do resultado contingente da leitura de vários livros. Deixa para trás qualquer dimensão da busca da verdade por correspondência e se dá conta de que “há tantas descrições quanto são os usos a que o pragmatista possa ser submetido por si mesmo ou pelos outros”. Então, a avaliação de qualquer das descrições alternativas é vista como tendo por referência sua eficácia para cumprir determinado objetivo, sua utilidade para um projeto (RORTY, 1993, p.108-109). Essa trajetória descreve uma narrativa que teria sentido pedagógico, conduzindo à dúvida quanto a distinções filosóficas tradicionais, como as entre essência e aparência, que servem para sustentar a pretensão de autoridade fundacional da visão filosófica. O primeiro livro completo escrito por Rorty, A Filosofia e o Espelho da Natureza, argumenta contra a argumentação, questionando as ideias representacionistas que fundamentariam a pretensão da Filosofia de colocar-se, a partir de Kant, como juíza e guardiã da cultura, dado seu acesso privilegiado às bases epistemológicas da sabedoria. Nele, o filósofo norte-americano tenta descartar os problemas que haviam ocupado a Filosofia em sentido platônico-kantiano, como perguntas perenes por essências e princípios universais. Se não existe uma “realidade” esperando para ser “descoberta”, as descrições podem ser alteradas de acordo com os projetos que pretendemos desenvolver. Nesse contexto, qual seria a função da Filosofia? Para Rorty, a Filosofia com “F” maiúscula, que marca a pretensão metafísica de um acesso privilegiado à verdade, não teria mais lugar. Seria necessário então pensar em uma era pósfilosófica ou criar uma perspectiva diferente da sabedoria, que se afastasse da tentativa de fundar epistemologicamente o conhecimento ou se colocar como juiz e “guarda de fronteira” dos valores culturais. A filosofia, com letra minúscula, deveria se tornar finita e assumir sua historicidade, cuidando de limpar o lixo metafísico de conceitos inúteis para abrir espaço para a imaginação. 54


Em Contingência, Ironia e Solidariedade, Rorty tenta construir alguma resposta para seus anseios de juventude, rejeitando a tentativa platônica de unir justiça social e autocriação em uma única teoria. Esse livro tem mais a dever a Proust do que a Platão. Embora Rorty critique o anseio de “pedagogizar narrativas”, pressupondo um fundamento epistemológico que elas espelhariam, neste artigo pretendo utilizar Proust contra/com a “Trajetória do Pragmatista”, ou melhor, assumindo que a filosofia é um gênero literário e o filósofo um tipo de escritor, a narrativa de Em busca do tempo perdido pode ser lida como um mito que substitui a alegoria platônica como mote para uma redescrição da sabedoria. Lendo Contingência, Ironia e Solidariedade como sumarizando muitas das intuições de Em busca do Tempo Perdido, poderemos entender melhor porque invejar os poetas e os criadores de metáforas, como Proust, parece ser uma sina de quem procura a sabedoria. A principio, acho interessante assinalar as semelhanças que tanto a narrativa autobiográfica construída por Rorty quanto os romances de formação tem com o mito da busca de Parsifal pelo Santo Graal. 3 Na história deste cavaleiro, imortalizada na ópera de Wagner de mesmo nome, ele consegue alcançar o Graal por manter sua pureza de coração, caminhando entre opostos e construindo, não pela inteligência, mas pela fé, o seu saber. O Graal é seu caminho. Marcel, protagonista do romance proustiano, segue entre os caminhos de Guermantes e de Swann, entre Sodoma e Gomorra, é tentado pelas “raparigas em flor” 4 etc. (Em verdade, todos os “romances de formação” tem algo da herança de Parsifal e das lendas do Graal). Rorty queria seguir entre as opções binárias da Filosofia tradicional, entre analíticos e continentais, o belo e o sublime, realistas e antirrealistas etc. Ambos denunciam a pressuposição de que exista um caminho, uma teoria, um método, e tentam traduzir em seus termos a lição de Nietzsche sobre a aventura de tentar “chegar a ser quem se é”. Nenhum dos dois tem ou pensa ter algo como um poder moral como “pureza de coração” e o seu “Graal” não deixa de ser uma “ilusão de ótica”, uma mudança de perspectiva que tem como componente estético o ciúme. Ciúme dos precursores na arte que se quer dominar, inveja que se faz busca, que nos incita a uma tentativa de apreender o ser em uma teoria, a nos tornarmos especialistas e dominar pela inteligência o objeto de nossa obsessão (impulso presente em Swann e Marcel, especialistas em sua compulsão). Para Harold Bloom, essa “angústia da influência” torna o parricídio na poesia uma condição necessária para que o artista supere a repetição e possa ser ele

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também um criador original. Nesse sentido, para o crítico norte-americano, Proust desvenda a radical necessidade que corporifica o escritor, tendo por sintoma sua escrita: (...) a narração romanesca é inveja criativa, amor é ciúme, ciúme é o pavor de não haver espaço suficiente para si (inclusive espaço literário), e de que jamais possa haver tempo suficiente para si, porque a morte é a realidade da vida de uma pessoa. (BLOOM, 2006, p.88.)

A lição de Proust pode nos ajudar a entender a necessidade de redescrever a sabedoria, que animou o trabalho de Rorty. O escritor francês oferece em sua escrita um “antilogos”, uma “antifilosofia”, como descreve Gilles Deleuze: “Proust constrói uma imagem do pensamento que se opõe à da filosofia, combatendo o que há de mais essencial em uma filosofia clássica: seus pressupostos” (DELEUZE, 2006, p.88). O ciúme, para Deleuze, também estaria na raiz da busca pela verdade, já que tal procura nasce no ciumento que desvenda (...) um signo mentiroso no rosto da pessoa amada; é o homem sensível quando encontra a violência de uma impressão; é o leitor, o ouvinte, quando a obra de arte emite signos, o que o forçará talvez a criar, como o apelo do gênio a outros gênios. (DELEUZE, 2006, p.88)

A comunicação de um gênio para com outro não tem a forma de uma “amizade tagarela”, mas surge como desafio de enfrentamento agonístico. A tradicional Filosofia “com todo o seu método e a sua boa vontade, nada significa diante das pressões secretas da obra de arte” (DELEUZE, 2006, p.81). Tais “pressões secretas”, para Rorty, assim como para Deleuze, advêm da imaginação que desenvolve novas formas de ver o mundo. O ciúme alimenta o criador, este “divino intérprete que vigia os signos pelos quais a verdade se trai”. Tal traição é o que abre espaço para o novo, e, talvez seja traindo a sabedoria da Filosofia que poderemos recriá-la, com a amorosa violência de quem “dês-lê” (misreads) seus precursores, tomando-os como mais trigo para o moinho de seu processo de autocriação. A sabedoria do romance nos ensina a lidar com a incerteza, a diversidade, a incompletude. Como ensina Milan Kundera:

O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: “as coisas são mais complicadas do que você pensa”. Esta é a eterna verdade do romance que, entretanto, é ouvida cada vez menos no alarido das respostas simples e rápidas que precedem a questão e a excluem. (KUNDERA, 1988. p. 21-22).

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Em sua tentativa de redescrição da Filosofia em filosofia, Rorty passou do ciúme de Platão para o ciúme dos poetas, do privilégio da razão para o da imaginação. Mas essa é apenas uma escolha contingente, que não pode ser tomada como uma nova “verdade teórica”. Em entrevista, Rorty disse que Invejo os poetas da mesma forma como filósofos analíticos, do tipo de Quine, têm inveja de cientistas naturais. Uma das grandes diferenças entre filosofia analítica e não-analítica tem sido o objeto da inveja dos filósofos. Não me imagino sendo invejoso de um físico ou de um matemático, do mesmo modo que de um contador ou advogado – não interessando quão talentoso ou socialmente útil. Eu não tenho certeza se Quine se poderia imaginar tendo inveja de Blake ou Rilke.(RORTY, 2006. p.71)

O idiossincrático objeto de nossa inveja determinaria a forma de nossos interesses e o caminho que nos constitui como amigos do saber. Já que não pode argumentar a favor do tipo de sabedoria que considera mais útil, Rorty tem que contar histórias que possam ser interessantes para os demais. Seu mote é o de que a filosofia não pode nem precisa ser mais do que uma voz, um tipo de discurso, dentro da conversação da humanidade.

NOTAS 1. A utopia pede que se bloqueie o “eu” em favor do “nós”. Assim, o desejo de transformação social deve ser superior a qualquer gosto idiossincrático individual. Para realizar ou manter sua promessa de ordenação social, os projetos utópicos não podem “dar espaço à liberdade pessoal ou individual” (RIBEIRO, 2004, p. 165). 2. No debate com Umberto Eco, Richard Rorty constrói uma narrativa “semi-autobiográfica” que seria, para ele, seu ponto fixo, sua obsessão paranoica. Era uma forma de ironizar a pretensão de Eco de propor limites para a interpretação. No livro de Umberto Eco (1989) O Pêndulo de Foucault, os personagens que se entregam a semiose hermética criam um “Plano” que tem por centro a busca do Santo Graal pelos templários. Todos os eventos, para a interpretação hermética desses personagens, apontam direta ou indiretamente para este grande Plano oculto. O Pendulo de Foucault é um dos motes do debate entre Eco e o filósofo neopragmatista americano. Rorty descreve sua narrativa sobre a “Trajetória do Pragmatista” como sendo um “equivalente pessoal da história dos templários”. (RORTY, 1993, p.108) Usando os termos de Eco neste romance, diríamos que “A trajetória do pragmatista” é o Plano da semiose hermética de Rorty. 3. Nos romances do Graal, e de forma marcante na história de Parsifal fica evidente a importância dada ao individuo e a sua vontade, que o faz seguir seu caminho. Em sua história a vontade é divinizada, segundo Joseph Campell (1990, p.198) “o romance do Graal é o romance de Deus em nosso próprio coração, e nele o Cristo se transforma numa metáfora, num símbolo daquele poder transcendental que é o esteio e o ser de nossa própria vida”. A divinização da vontade exposta nas histórias do Graal é a única forma de resolver o problema da Terra Devastada. Nela a desordem e o caos advém justamente do fato das pessoas viverem uma vida sem autenticidade, deixando de seguir o que lhes pede o coração, para se curvar diante de convenções sociais (Idem, p. 201). A busca pelo Graal é uma procura por desfazer essa situação de falsidade. O Graal seria a essência da energia vital que palpita nos corações humanos. Parsifal – Percival ou Parzifal – é o cavaleiro que alcança o Graal, dele se torna guardião, assim como dos mais altos valores espirituais: compaixão e lealdade (Ibidem, p. 243). Parsifal é um “puro idiota tornado sábio pelo sofrimento” (Assim o descreve Richard Wagner em sua peça Parsifal (MILLINGTON, 1995, p. 353.), representa a superação de todas as oposições, seja entre Ocidente e Oriente, seja entre bem e mal. Parsifal seria aquele que segue perci à val, ou seja, pelo meio do vale; caminhando entre os contrários e construindo o seu próprio caminho. Na busca pelo Graal, cada qual deve fazer a sua própria rota, deve entrar na floresta e seguir seus instintos, mesmo que gire em círculos, não pode tomar a trilha de outro como a verdadeira: isso só o faria se perder ainda mais. Como explica Joseph Campell: “Pode-se obter indicações dadas por pessoas que seguiram algum caminho, mas é preciso que, obtidas essas indicações, você as traduza

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segundo o seu próprio critério, e para isso não existem livros de normas. Nessa busca fantástica – este é um romance maravilhoso, no qual cada um dos cavalheiros segue o seu próprio caminho -, quando alguém encontra o caminho de outrem e pensa; ‘ele está chegando lá’ e começa a seguir por ali, logo em seguida se vê completamente perdido, muito embora aquele outro possa ter chegado ao seu destino.” (CAMPELL, 1990, p. 199). 4. Quando Parsifal é tentado pelas “raparigas em flor”, em sua inocência pergunta “Vocês são flores? Vocês cheiram bem!”. Provavelmente são as “meninas-flor de Parsifal que inspiram o título do segundo volume de Em busca do Tempo Perdido: À sombra das raparigas em flor.

REFERÊNCIAS BLOOM, Harold. Onde se encontra a sabedoria? Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. CAMPELL, Joseph. As transformações do mito através do tempo. São Paulo: Cultrix, 1990 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ECO, Umberto Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. _____, O pendulo de Foucault. Editora Record, Rio de Janeiro, 1989. KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 MILLINGTON, Barry (org). Wagner: um compêndio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. NUSSBAUM. Martha, A República de Platão: a boa sociedade e a deformação do desejo. Porto Alegre: Bestiário, 2004 PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. Paulo: Abril Cultural, 1984.p.27. RIBEIRO, Renato Janine. “A Utopia Lírica de Chico Buarque de Hollanda.” In: EISENBERG, J (et al.) Decantando a República. v.1: Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. RORTY, Richard. Take care of freedom and truth will take care of itself. Stanford Califórnia: Stanford University Press, 2006. ______. “A trajetória do pragmatista”. In: ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993 ______. “Trotsky e as orquídeas selvagens”. In: Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005.

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UTOPIA LIBERAL DE RICHARD RORTY Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira* RESUMO: O objetivo deste artigo é contribuir tanto para uma compreensão mais aguda das críticas feitas à filosofia política de Richard Rorty quanto para uma leitura mais generosa de suas qualidades. O foco de análise serão as principais ideias expressas por Rorty em “Contingência, Ironia e Solidariedade” – o impacto do reconhecimento do caráter contingente das crenças que servem de suporte ao ideário liberal-democrático, a distinção entre público e privado, a aposta no poder das redescrições como fonte de progresso moral – bem como alguns problemas que tais ideias suscitam. Para tanto, discutirei criticamente objeções e comentários feitos por autores como Juergen Habermas, Richard Bernstein, Nancy Fraser, Christopher Voparil, James Conant, Thomas McCarthy, entre outros. Palavras-chave: Utopia. Rorty. Liberalismo. Contingência. Redescrição. ABSTRACT: The purpose of this article is to foster not only a deeper comprehension of the criticism aimed at Richard Rorty’s political philosophy, but also to suggest a more generous reading of its qualities. The main branch of analysis will be the ideas Rorty advances in “Contingency, Irony and Solidarity – the impact of acknowledging the contingency of beliefs that support liberaldemocratic values, the public-private distinction, the assumption of redescriptions as sources of moral progress – as well as the doubts they aroused. To do so, I will critically discuss objections and commentaries made by authors such as Juergen Habermas, Richard Bernstein, Nancy Fraser, Christopher Voparil, James Conant, Thomas McCarthy, among others. Keywords: Utopia. Rorty. Liberalism, Contingency. Redescription

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Karl Marx, Teses sobre Feuerbach

1. Introdução: Filosofia e Política Neopragmatistas Já foi dito que o sucesso não se faz sem controvérsia, e com o filósofo norte-americano Richard Rorty não foi diferente. Poucos intelectuais extrapolaram as fronteiras de sua própria disciplina com tanto vigor e alcance quanto Rorty. Neste percurso, Rorty foi lido das formas as mais diversas, nem sempre generosas. Polêmico, foi chamado de “pragmatista vulgar”, “pós-modernista”, “niilista”, “anti-intelectualista”, “relativista”, “cético disfarçado”, “elitista”, “caricaturista” etc. *

Antonio Claudio Engelke Menezes Teixeira é doutorando em ciências sociais pela PUC-RJ. Tem interesse em filosofia neopragmática, filosofia política moderna, sociologia do conhecimento, antropologia urbana e segurança pública no Rio de Janeiro.

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(MARGUTTI, 1998; POGEBRINSCHI, 2006; HAACK, 1995; SEMERARO, 2005). Parte das críticas acerta o alvo; outras tantas carecem de pontaria mais acurada. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é contribuir tanto para uma compreensão mais aguda das críticas feitas às insuficiências de algumas ideias de Rorty quanto para uma leitura mais generosa de suas qualidades 1. Antes, porém, uma breve introdução. Rorty ganhou notoriedade buscando mostrar que a epistemologia moderna está fundada em metáforas que mais criam problemas do que os resolvem: a metáfora de que a mente seria uma espécie de container que possuiria crenças, e a de que uma parcela especial destas crenças seria como um espelho capaz de representar corretamente a realidade (RORTY, 1994a). Tais metáforas estão no cerne daquele que é, desde Platão, o sonho que anima a empresa intelectual do Ocidente: a tentativa de livrar o pensamento das contingências da história, a busca de ideias cuja validade independa de contexto, o desejo aparentemente incurável de atingir uma perspectiva fora de qualquer perspectiva. Rorty reconhece os progressos intelectuais feitos em função desta tradição, mas diz que estamos em condições de abandoná-la, como quem descarta uma escada após utilizá-la para chegar num pavimento mais alto (RORTY, 1994b). E sugere que, em prol do aperfeiçoamento do ideário liberal-democrático, podemos substituir estas metáforas por outras, mais úteis aos nossos propósitos atuais. O ponto de partida de Contingência, Ironia e Solidariedade é a constatação da incomensurabilidade entre o público e o privado. De um lado, autores como Marx, Mill, Habermas e Rawls nos ajudaram a pensar como nossas instituições e práticas sociais poderiam ser mais justas, ou menos cruéis; do outro, filósofos como Nietzsche, Foucault e Heidegger nos ensinaram a enxergar a importância da autonomia do indivíduo, isto é, a importância do florescimento da vida humana que se liberta das amarras sociais de seu tempo e cria a si própria. Trata-se, diz Rorty, de duas perspectivas igualmente válidas, que deflagram demandas também igualmente válidas – autocriação privada e solidariedade coletiva – mas definitivamente incompatíveis entre si. Não há como imaginar uma teoria sobre a sociedade que seja capaz de sintetizar o impulso nietzschiano de implodir as convenções sociais que impedem os indivíduos de serem eles mesmos com a preocupação habermasiana de garantir as condições ideais de uma comunicação compartilhada sem distorções. Assim sendo, Rorty nos incita a pensar neste dois grupos de autores como ferramentas que servem a propósitos distintos, ferramentas que “necessitam de síntese tão pouco quanto os pincéis e os pés-decabra” (RORTY, 2007: 17). Em outras palavras, Rorty quer conciliar os vocabulários advindos do romantismo e do racionalismo iluminista, valorizando as contribuições específicas de cada um, mas 60


sem com isso pretender unificá-los numa espécie de metavocabulário. Ao contrário, sua intenção é usá-los para propósitos diferentes. O vocabulário de inspiração romântica, cujo traço distintivo é a crítica aos processos de socialização e o apelo à liberdade de autocriação do indivíduo, é útil desde que fique restrito ao âmbito privado. O vocabulário herdado do racionalismo iluminista, e tudo que veicula no sentido de fomentar um esforço social compartilhado em favor da justiça e da solidariedade, é essencialmente público. Este é um ponto importante, e Rorty insiste bastante nele: as aspirações de ambos os vocabulários devem permanecer confinadas aos seus respectivos domínios de ação. Tal demarcação rígida de fronteiras causou polêmica, do mesmo modo que as alegações de Rorty em favor de uma cultura liberal pós-metafísica, isto é, uma cultura em que os valores liberais conservem sua força a despeito de não serem socialmente percebidos como tendo um fundamento universal. Nós não precisamos, diz Rorty, de um tribunal supra-humano ao qual recorrer para tentar assegurar a validade definitiva das crenças que nos são mais caras; o consenso de nossa comunidade é o suficiente. Aqui o antifundacionismo rortyano encontra seu projeto político. Ao rejeitar a ideia de que seja possível representar a realidade como ela é em si mesma, Rorty está propondo uma visão da filosofia como o lugar de uma conversação com o objetivo de resolver problemas transitórios e apresentar propostas para a realização de utopias. Mas a impossibilidade de nos agarrarmos a fundamentos não deveria nos levar a crer que não temos bons motivos para preferir o ideário liberaldemocrático, nem que estamos condenados a um relativismo paralisante. “Uma crença”, diz Rorty, “pode continuar a ser considerada algo por que vale a pena morrer, entre pessoas plenamente cônscias de que essa crença não é causada por nada mais profundo do que circunstâncias históricas contingentes” (RORTY, 2007: 312). Tais pessoas seriam ironistas2. Eis o esquema rortyano: o reconhecimento da contingência (da linguagem, do self e dos valores que unem uma comunidade) fomenta a ironia (postura algo cética3, que informa e atravessa uma cultura historicista) que, por sua vez, irá desaguar na preocupação em estender o espaço da solidariedade, ingrediente essencial ao liberalismo democrático. O primeiro passo parece automático; de fato, qualquer pessoa que venha a reconhecer o caráter contingente das próprias crenças é levada a adotar uma atitude intelectual que, se não implica necessariamente na suspensão do juízo, ao menos impede o dogmatismo. Mas o segundo passo, o movimento da ironia em direção à solidariedade, não oferece conexão evidente. Rorty o explica através de sua concepção de progresso como o resultado do incessante processo de substituição de velhos e desgastados vocabulários por outros mais novos, adequados aos propósitos de sua época. Não apenas progresso 61


intelectual, mas também e sobretudo moral: diferentemente da maioria dos filósofos hodiernos, Rorty acredita que os avanços morais são feitos quando nos tornamos mais imaginativos, e não quando supostamente nos aproximamos um pouco mais de descobrir, de uma vez por todas, o que seria o Justo e o Correto. Quando se trata de melhorar nossa visão de mundo, nossa maneira de nos relacionarmos uns com os outros, a imaginação é a faculdade humana central. A razão apenas se movimenta dentro dos parâmetros estabelecidos pelos jogos de linguagens correntes, mas a imaginação tem o poder de criá-los (RORTY, 2007). Os avanços intelectuais e morais são portanto vistos como resultado de um processo interminável de apresentar redescrições capazes de criar novos vocabulários. Como observa Christopher Voparil (2006), a redescrição rortyana resulta da mistura entre a concepção wittgensteiniana da linguagem como uma ferramenta – uma alavanca, digamos, jamais um espelho – e a noção de Thomas Kuhn do poder transformador das revoluções conceituais. Seguindo Kuhn (2005), Rorty afirma que a mudança para um novo vocabulário não seria uma consequência direta do acúmulo de certezas e conhecimentos, ou o desenrolar natural da investigação cada vez mais racional, mas antes saltos inovadores de percepção, rupturas de paradigmas que resultam da inovação, da criação de novas maneiras de pensar. Visto dessa forma, o processo de mudança histórica deve muito à criação de novas metáforas, entendidas no sentido que Donald Davidson lhes confere4. Para além de seu poder revolucionário, a redescrição cumpriria um papel fundamental na criação de solidariedade, pois esta, segundo Rorty, não é descoberta pela reflexão, mas sim criada. Ela é criada pelo aumento de nossa sensibilidade aos detalhes particulares da dor e da humilhação de outros tipos não familiares de pessoas. (...) Esse processo de passar a ver outros seres humanos como “um de nós”, e não como “eles”, é uma questão da descrição detalhada de como são as pessoas desconhecidas e de redescrição de quem somos nós mesmos. Essa não é uma tarefa para a teoria, mas para gêneros como a etnografia, a reportagem jornalística, o livro de história em quadrinhos, o documentário dramatizado e, em especial, o romance. (...) A ficção de autores como Choderlos de Laclos, Henry James ou Nabokov fornece detalhes sobre os tipos de crueldade de que nós mesmos somos capazes e, com isso, permite que nos redescrevamos. É por isso que o romance, o cinema e o programa de televisão, de forma paulatina mas sistemática, vêm substituindo o sermão e o tratado como principais veículos de mudança e progresso morais (RORTY, 2007: 20).

Rorty entende este processo como o “declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária” (2006). Sua tese é a de que os intelectuais do Ocidente esperaram primeiro pela redenção de Deus (a crença na relação com um ente divino onisciente e onipotente), depois pela redenção da filosofia (a crença na aquisição de um conjunto de crenças capazes de espelhar a natureza), e agora, pela redenção da literatura (a produção de um conhecimento tão variado quanto os seres humanos). 62


São as narrativas, e não mais os tratados de filosofia ou os livros sagrados das religiões, os agentes responsáveis pelo alargamento de nossa sensibilidade em relação ao sofrimento e humilhação. Porém, note-se: ao afirmar que as descrições imaginativas de situações particulares são as principais fontes de progresso moral, Rorty já está unindo ironia e solidariedade. O ironista, cuja atitude intelectual é calcada na dúvida, rejeita a pretensão de qualquer alegação de conhecimento cuja validade independa de contexto. Não se arvora em nenhum universal – “razão”, “natureza humana” – para decretar sua superioridade. Ao contrário, ele sabe que a história, inclusive a história dos nossos dias, está repleta de exemplos de atrocidades cometidas em função do hábito de usar tais universais como garantia de legitimidade para interesses particulares. Quando chamado a defender os valores e conquistas da democracia liberal perante um público que lhes é hostil, o ironista não se apresenta como alguém que faz “melhor uso de uma capacidade humana universal”, mas sim como alguém que possui “uma história instrutiva para contar” (RORTY, 2005a: 122). O ironista é portanto assumidamente etnocêntrico5. Mas o que o redime é o fato de seu etnocentrismo ser o das pessoas que “foram criadas para desconfiar do etnocentrismo” (RORTY, 2007: 326). 2. Filosofia: Razão, Verdade e Contexto Rorty é frequentemente lido como o filósofo que “vulgarizou” ou mesmo “distorceu a mensagem da tradição do pragmatismo clássico” (HAACK, 2004: 41; tradução livre). Dado o relativismo subjetivista e o elogio romântico à estetização do discurso e da vida que emanaria de seus textos, diz-se que Rorty deveria ser visto não como representante do neopragmatismo, mas como um dos expoentes mais notáveis do pós-modernismo (KLOPPENBERG, 1998; POGEBRINSCHI, 2006). Tais leituras têm sua razão de ser. De fato, a filosofia de Rorty possui uma coloração pós-moderna, e no geral pouco se assemelha, por exemplo, ao pragmatismo de Peirce. Mas se por um lado é válido atentar para a filiação intelectual de Rorty, por outro a redução de suas ideias a rótulos lhes poda a compreensão. Mais produtivo é avaliar como estes rótulos vieram à tona. Comecemos, pois, pelos argumentos de Jüergen Habermas, admirador e crítico arguto de Rorty. Em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas (2002) distingue entre “razão centrada no sujeito”, uma razão pura e transcendental, invenção da filosofia grega, e “razão comunicativa”, que não é um dom biologicamente dado, e sim um conjunto de práticas sociais. Ao insistir que deixemos de pensar na razão como uma qualidade metafísica subjetiva, Habermas a socializa, como aliás já havia feito Durkheim na introdução de As Formas Elementares da Vida 63


Religiosa. A racionalidade comunicativa, afirma Habermas, está “imediatamente entrelaçada no processo social da vida porque os atos de entendimento recíproco assumem o papel de um mecanismo de coordenação da ação” (Habermas, 2002: 439). O corolário deste raciocínio é que um indivíduo não pode ser racional sozinho, assim como não pode operar sozinho dentro da linguagem. A racionalidade está inextricavelmente ao intercâmbio de justificativas, ao “jogo de dar e pedir razões”, nas palavras de Robert Brandom (apud RORTY, 2005c: 256). Rorty concorda com Habermas, dizendo que postular a razão comunicativa é afirmar que o conhecimento é aquilo que emerge como o resultado de um debate, de um consenso, e que a verdade está mais relacionada a este debate do que a uma qualidade interna do sujeito, um estado mental individual (RORTY, 2005c). Habermas distingue também entre dois tipos de discurso: o discurso considerado “sério”, que supõe alegações de validade, e o meramente poético, imaginativo, ficcional. O primeiro tipo de discurso é por definição sujeito a normas argumentativas universais; pode ser racionalmente criticado e defendido em qualquer contexto, ou seja, suas alegações podem ser discutidas por sobre uma base comum, o que torna possível o entendimento intersubjetivo. Já o discurso fundamentalmente estético é auto-referente, basta-se a si próprio: não transcende contextos subjetivos particulares a fim de estabelecer uma base universal necessária à integração social mutuamente compreensiva. Neste ponto a crítica de Habermas a Rorty começa a tomar fôlego. Ao preferir o estético ao racional, a retórica à lógica, a narrativa à inferência, e a metáfora à acuidade descritiva, Rorty estaria se embrenhando na auto-referência e no relativismo característicos dos discursos pós-modernos. Não há como escapar da razão, diz Habermas, porque não há como escapar da linguagem, e a linguagem é necessariamente racional. Com efeito, Habermas quer preservar a noção de argumento intrinsecamente melhor e a validade universal como objetivo de investigação, não apenas em função de suas convicções acerca do funcionamento da linguagem e da racionalidade, mas também por uma questão lógica. É que afirmar “não há alegações universalmente válidas” e pretender que esta seja uma afirmação universalmente válida é incorrer numa contradição auto-performativa – o que é apenas uma outra maneira de dizer que todo argumento relativista refuta a si próprio, como já se sabia na Grécia antiga. Habermas localiza aí uma dificuldade intrínseca ao projeto filosófico de Rorty. Impossibilitado de reclamar legitimidade para si nos moldes platônicos, Rorty não tem outra alternativa senão argumentar que a legitimidade de sua perspectiva, ou a justificativa para a aceitação do vocabulário que propõe, residiria na eficiência, no fato de ser um vocabulário mais 64


apropriado às condições de vida atuais. Aí o nó: pois se Rorty faz do sucesso funcional o critério de avaliação de sua própria legitimidade, então está em apuros, porque ele mesmo admite que as distinções metafísicas que pretende abandonar fazem parte do senso comum ocidental (RORTY, 1994b). Se o vocabulário platônico permanece até hoje com aderência suficiente em nossas práticas lingüísticas cotidianas, diz Habermas, é porque parece satisfazer plenamente nossas necessidades. Logo, do ponto de vista pragmático não haveria bons motivos para substituí-lo por outro vocabulário (HABERMAS, 2005: 77-78). Rorty, como vimos, tenta associar a noção habermasiana de racionalidade comunicativa à sua concepção de verdade como o resultado de um consenso intersubjetivo alcançado por meio de um debate livre, isento de coerções (unforced agreement). Mas Habermas esquiva-se deste contextualismo forte avançado por Rorty, e insiste em que há asserções cuja validade independe de contexto. Afirmando que é preciso reconhecer a diferença entre “verdadeiro” e “justificadamente tido como verdadeiro”, e evocando o uso acautelatório do predicado verdade (“‘p’ está bem justificado, mas pode não ser verdadeiro”), Habermas sugere que não devemos “assimilar verdade à aceitabilidade racional”, e sim “esticar o referente da ideia de que uma proposição é racionalmente aceitável ‘para nós’, para além dos limites e padrões de toda comunidade local. (...) De outro modo, ‘verdadeiro’ fundir-se-ia como ‘justificado no contexto presente’” (HABERMAS, 2005: 79)6. É justamente em função da inobservância da distinção entre “verdadeiro” e “justificado para nós” que James Conant (2000) dirá que o neopragmatismo de Rorty não consegue satisfazer seu próprio critério de validação. Em Contingência, Ironia e Solidariedade, Rorty elogia o clássico “1984”, de George Orwell, dizendo que trata-se de um bom exemplo de como a literatura pode aumentar nossa percepção e sensibilidade para experiências de dor, crueldade e humilhação. Conant, no entanto, observa que Rorty não ofereceria ao indivíduo que habitasse um mundo totalitário como o imaginado por Orwell recursos suficientes para julgar adequadamente sua realidade. Um dos personagens do romance de Orwell, Winston Smith, lembra de haver visto aviões na infância, antes da tomada de poder pelo Partido. Desde então, todos, exceto Winston, sofreram lavagem cerebral, passando a acreditar que os aviões foram inventados pelo Partido. Assim sendo, se afirmasse que os aviões não haviam sido inventados pelo Partido, Winston não estaria fazendo uma afirmação justificada dentro de seu contexto, porque não contaria com o consenso de seus concidadãos; estaria portanto fazendo uma afirmação falsa, segundo os critérios rortyanos. Em outras palavras, se Winston abrisse mão completamente da ideia de verdade como correspondência com a realidade de modo a abraçar o tipo de atitude intelectual que Rorty sugere, chegaria à conclusão de que o Partido 65


inventara o avião. Mas se Winston ignorasse a noção de “justificação consensual”, então teria motivos para manter intacta sua crença, que era verdadeira. Isto sugere que apesar de Rorty ter razão acerca da impossibilidade de descrevermos o mundo a “partir de lugar nenhum”, ainda restam bons motivos para que não descartemos noções como verdade e objetividade. Preservar a distinção entre “verdade como consenso” e “verdade como correspondência com a realidade” não é tentar escapar da contingência do nosso vocabulário, mas sim levar a sério o fato de que podemos dar crédito às afirmações que fazemos dentro do nosso vocabulário (MCDOWELL, 2000). Em sua resposta a Conant, Rorty (2000b) diz não acreditar que, numa sociedade totalitária como a imaginada por Orwell em “1984”, alguém tivesse condições de se apegar à “verdade dos fatos”. É por esta razão que Rorty não se cansa de afirmar a “prioridade da democracia para a filosofia” (RORTY, 2002), pois se tomarmos conta da liberdade, a verdade tomará conta de si mesma7. Seja lá o que for a Verdade, diz Rorty, nós só a conheceremos se formos capazes de garantir as condições para que o debate, qualquer debate, transcorra livre de constrangimentos ou impedimentos. Aqui, Rorty não faz mais do que repetir o elogio de John Stuart Mill (1991) ao choque de opiniões como mola mestra do desenvolvimento social. Em contextos totalitários, assevera Mill, o avanço social e intelectual só ocorre como fruto de esforços intermitentes e direcionados das lideranças políticas; em contextos de liberdade, as energias dos indivíduos desenvolvem-se nas direções as mais diversas, e o embate entre elas, se não chega a garantir o acesso à Verdade propriamente dita, ao menos possibilita a introdução de novos e férteis pontos-de-vista. A insistência de Rorty na prioridade da política para a filosofia não se apóia somente na defesa da liberdade como condição de possibilidade para uma atividade filosófica produtiva, mas também na percepção de que o seu antifundacionismo coloca a política em primeiro plano. Senão, vejamos: se o repertório dos modos de descrever a sociedade humana e suas realizações é por definição infinito, todo modelo teórico construído a priori será sempre limitado, correndo assim o risco de não levar em conta variáveis novas, imprevistas 8 (SOARES, 1994). Se assim é, então modelos e teorias não devem ser avaliados em relação a algum fundamento metafísico (necessariamente dado), mas sim por contraste, comparando seu rendimento com outros modelos e teorias, também eles contingentes. Aí a utilidade da filosofia rortyana: porque os pactos são contingentes, e as vantagens, relativas, ambos podem e devem ser avaliados de acordo com seu rendimento comparativo (SOARES, 1994). À luz deste raciocínio, podemos então relativizar a afirmação de Habermas e Conant de que o projeto de Rorty falharia em satisfazer seu próprio critério

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de satisfação. Na filosofia de Rorty, a política assume uma centralidade. E é desta centralidade que passaremos a tratar agora. 3. Política: Público, Privado, e os Limites da Redescrição As ideias políticas de Rorty lograram realizar um feito notável, qual seja, o de suscitar ainda mais polêmicas do que sua filosofia. Curiosamente, as leituras que lhes foram dispensadas, muitas das quais absolutamente diferentes entre si, o que leva o observador mais atento a se perguntar se estariam tratando do mesmo objeto, parecem afirmar uma das principais noções propostas por Rorty: a de que qualquer coisa, seja uma teoria, um fato histórico ou uma narrativa, pode ganhar contornos radicalmente novos conforme a maneira que seja redescrita. Contudo, a maior parte das críticas parece caminhar no sentido da denúncia de um Rorty elitista e conservador, verdadeiro “ideólogo do individualismo” (FILHO, 2008) que estaria “a serviço de um liberalismo pós-modernizado e de um capitalismo virtual que combatem a política” (SEMERARO, 2005:38). Já foi dito, por exemplo, que o ironismo de Rorty seria uma versão piorada, porque ainda mais niilista, “desonesta” e “inautêntica”, do esoterismo de Leo Strauss (ROGERS, 2004); ao que se poderia responder que é preciso muita criatividade para enxergar no niilismo o traço principal de um autor cuja obra é completamente transpassada pela ideia de fomentar esperança – não sem razão, um dos livros de Rorty chama-se Philosophy and Social Hope. Outro crítico observou que Rorty acredita haver adotado um posicionamento “‘ontologicamente neutro’ (...), pelo fato de limitar-se apenas a descrever, sem ideologia, o mundo com seus vários vocabulários, sem privilegiar nenhuma linguagem específica” (SEMERARO, 2005: 34). Quando na verdade trata-se justo do oposto: mais do que qualquer outro pensador de seu tempo, Rorty insistiu na ideia de que não há um modo de nos projetarmos para fora de nossas mentes, de transcendermos as contingências de nossa linguagem de modo a atingir um ponto de vista absolutamente descontaminado pela maneira através da qual aprendemos a pensar, falar e viver em sociedade. Pouco importa. A crítica prossegue assim: Em conformidade com o elitismo de Nietzsche e Heidegger, Rorty também acredita que as mudanças no mundo acontecem pelas “revoluções conceituais” (...), pela introdução de “novas metáforas”, pelas idiossincrasias dos grandes pensadores (...), sem relacioná-las às lutas concretas de grupos sociopolíticos, a complexas disputas de contrapostos projetos de sociedade, menos ainda suspeitar que muitas idéias e “metáforas” podem se originar nas ações e nas reflexões de seres humanos comuns (SEMERARO, 2005: 34-35).

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De fato, Rorty vê a mudança histórica movida pela invenção de novos vocabulários, e não os relaciona às “lutas concretas de grupos sociopolíticos”. Mas afirmá-lo “em conformidade com o elitismo de Nietzsche e Heidegger” em função disso é perder de vista o principal da sua filosofia. Ao se insurgir contra a noção tradicional de objetividade e a ideia de verdade como correspondência com a realidade, Rorty desconstrói boa parte do edifício através do qual o saber ocidental legitima a si próprio. Amplia assim o espaço de validade para discursos e narrativas contra-hegemônicos, que passam a contar com bons argumentos para se recusarem a jogar conforme as regras do discurso que tanto criticam. O critério a ser adotado na avaliação do conhecimento não deve ser calcado numa suposta adequação às coisas “como elas são”, mas sim na observância de se as ideias permitem alcançar nossos propósitos de forma mais frutífera. Muda o foco da discussão: abandona-se o método para a obtenção do saber, sua adequação a um determinado padrão de investigação que se supõe neutro e descompromissado, em favor do comprometimento da finalidade do saber em relação aos objetivos que nos são mais caros. É certamente mais produtivo voltar o olhar para aspectos mais problemáticos da obra de Rorty, como a distinção público-privado e a própria noção de redescrição, pois levantam questões sobre as quais vale refletir. Não seria o público-privado uma distinção impossível, dado que a linguagem dentro da qual o self privado constitui-se é eminentemente social, construída numa arena pública? (SHUSTERMAN, 2001). Não estaria Rorty deixando de reconhecer que os processos de individuação estão intimamente conectados aos processos de socialização? (MCCARTHY, 1995). São as inclinações particulares dos indivíduos que precisam ser protegidas das operações da esfera pública, ou o contrário? (VOPARIL, 2006). Que garantia teríamos de que anseios idiossincráticos não venham a extrapolar o domínio do privado e contaminar a vida pública, de maneira a solapar a esperança liberal? (WILLIAMS, 2003). Será que as redescrições são tudo de que necessitamos para nos aproximarmos cada vez mais de uma sociedade livre e igualitária? (Fraser, 1990). A demarcação rigorosa de uma fronteira entre o público e o privado à primeira vista causa desconforto: se há uma lição sociológica básica é a de que elementos da estrutura institucional das sociedades modernas penetram na subjetividade individual, ajudando a constituí-las. Assim, postular o divórcio entre os registros do público e do privado seria, para dizer o mínimo, uma ingenuidade. A crítica seria perfeita – se Rorty tivesse esta separação em mente. Mas ele afirma que não se trata de uma “distinção entre o círculo doméstico e o fórum público, entre o oikos e a polis”, e sim de uma distinção “entre as preocupações privadas, no sentido de projetos idiossincráticos de superação pessoal, e as preocupações públicas, essas que estão relacionadas com o sofrimento de outros seres 68


humanos” (RORTY, 2005b: 385; itálicos meus)9. Ao separar o público do privado, Rorty está evocando a distinção de John Stuart Mill entre “ações que dizem respeito a si mesmo” e “ações que dizem respeito aos outros” (CALDER, 2006: 38). Assim entendida, a distinção ganha contornos que desfazem a aparência de equívoco sociológico que, num primeiro momento, provoca um estranhamento natural. O problema não está tanto na separação entre público e privado tal como Rorty a concebe, mas sim na forma como enxerga o relacionamento entre eles. Ao restringir o questionamento da contingência do nosso vocabulário ao espaço da vida privada, dos afazeres individuais de cada um, Rorty está tentando afastar a possibilidade de que a esfera pública venha a ser tomada de assalto por paixões políticas potencialmente disruptivas. Mas que garantia teríamos de que este insulamento ocorreria? A saída de Rorty consiste em dizer que, idealmente, somente intelectuais seriam tocados pelo tipo de atitude crítica comum ao vocabulário de inspiração romântica. Mas isso não é suficiente para desfazer o nó. Estaria Rorty disposto a impedir os intelectuais ironistas de publicar trabalhos, conceder entrevistas ou vir a público “falar a verdade ao poder”, na expressão de Edward Said (2005)? A solução de Rorty, observa Thomas McCarthy (1995), é colocar a própria distinção entre público e privado dentro da cabeça dos intelectuais ironistas: em público, eles discursariam a respeito de valores e projetos compartilhados socialmente, assim contribuindo para reforçar os laços de pertencimento e solidariedade; no âmbito particular, estariam livres para usar o vocabulário irônico da autocriação da forma que mais lhes aprouvesse. “Não faz sentido especular como isso seria feito” prossegue McCarthy, “pois seria apenas explicitar os detalhes de um suicídio intelectual”. E arremata: “O objetivo [de Rorty] é manter a esfera pública liberal livre da crítica radical” (ibidem: 40-42; tradução livre). Em diapasão semelhante, Nancy Fraser conclui que: [A]s concepções de Rorty sobre a política e a teoria são complementos uma da outra. Se a teoria é hiperindividualizada e despolitizada, então a política é hipercomunalizada e desteorizada: enquanto teoria, torna-se pura poiêsis, enquanto política, pura technê. Além disso, na medida em que a teoria passa a ser o âmbito da pura transcendência, a política é banalizada, esvaziada de radicalismo e de desejo. Finalmente, na medida em que a teoria torna-se a produção ex nihilo de novas metáforas, a política deve ser meramente a sua literalização; a política deve ser somente aplicação, jamais invenção (FRASER, 2010: 16).

É inútil tentar rebater o argumento. O próprio Rorty abriu o flanco para esta crítica quando, referindo-se à obra de Mill, afirmou que “o pensamento social e político do Ocidente talvez tenha passado pela última revolução conceitual de que necessita” (RORTY, 2007: 120; itálico do autor). Rorty parece querer assegurar o monopólio seguro, porque inquestionado, dos fins liberais em público, o que expressaria o desejo de triunfo de apenas um único princípio na esfera política – algo 69


que um pluralista como Isaiah Berlin rejeitaria (VOPARIL, 2006: 122). Não obstante, podemos ainda fazer um esforço no sentido de abrir a possibilidade de uma leitura mais generosa. Ao contrário de pensadores pós-kantianos (como Habermas), para os quais a justiça se coloca como o princípio básico, Rorty elege a liberdade – negativa, como veremos – como único ideal regulativo, deixando todo o resto em segundo plano (MACCARTHY, 1995; VOPARIL, 2006). Em outras palavras, na batalha entre os vocabulários do racionalismo iluminista e do romantismo, Rorty concede a vitória a este último. Nesse sentido, quem quer que o veja como o apólogo por excelência do imobilismo e da conservação estará deixando de observar que, na escala rortyana de prioridades de valores, a liberdade vem primeiro. O problema está em prevenir os extremos a que a paixão pela liberdade pode levar. A solução que Rorty propõe é inadequada, por certo. Mas isto não deveria nos impedir de enxergá-lo como alguém que deseja ver as aspirações e reivindicações de toda produção intelectual de espírito crítico incorporadas a conta-gotas na arena pública, num ritmo constante e sobretudo equilibrado: nem lento demais, de modo a inibir a articulação em torno da demanda por reformas, nem rápido a ponto de inflamar a ânsia urgente por revoluções. Há mais, entretanto. Voparil observa acertadamente que Rorty lê Mill através de Isaiah Berlin, adotando sua visão de que a sociedade liberal é aquela que oferece espaço suficiente para que os indivíduos possam criar a si próprios e perseguir seus sonhos privados, contanto que não prejudiquem a outrem. Mas Mill, ao contrário de Rorty, enxergava o auto-aperfeiçoamento individual como uma condição necessária à reforma da sociedade e de suas instituições. Enquanto Mill “oferece uma defesa pública do privado, onde o cultivo de si é entendido como um meio de fortalecer a democracia pública, Rorty defende seus terrenos agudamente delineados [sharply delineated realms] como uma maneira de isolar as energias criativas individuais da vida pública e da luta por justiça” (VOPARIL, 2006: 115; tradução livre). Voparil observa que Rorty erra ao opor perfeição privada à busca por justiça social, pois tais impulsos não são necessariamente opostos, podendo inclusive vir a se combinar. Rorty os crê em oposição porque parte do pressuposto de que toda autocriação é fundamentalmente egoísta, caminha sempre em direção contrária ao ethos público, o que explica a necessidade de confiná-la num domínio restrito, privado10. Trata-se de duas ideias contrárias: o cultivo do self é para Mill uma ponte entre o público e o privado, ao passo que, para Rorty, é uma atitude que alargaria o abismo entre ambos. Rorty parece não se dar conta de que a maior ameaça ao funcionamento da democracia, como Mill e Tocqueville preveniam, não está no excesso de participação, no transbordamento de demandas individuais, mas na ausência delas. Em

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suma, Rorty exige que, para entrar no domínio do político, o indivíduo deixe em casa a melhor parte de si (ibidem: 134). Por fim, resta observar a aposta rortyana na força das redescrições imaginativas como fonte de progresso moral e solidariedade social. Contra Kant, para quem somente a razão poderia impor obrigações morais universais, Rorty quer resgatar “a percepção da importância, para o progresso moral, de descrições empíricas pormenorizadas” (RORTY, 2007: 317). Isto porque a solidariedade não seria uma questão de reconhecimento de uma essência naturalmente humana, ou de respeito aos ditames de uma faculdade universal (a razão); a solidariedade, diz Rorty, não é “descoberta”, mas sim criada através do aumento de nossa sensibilidade à experiência da dor, da crueldade e da humilhação sofridas por pessoas diferentes do nosso grupo social. Aqui novamente as dúvidas persistem: não foram poucos os intelectuais que questionaram, de uma maneira ou de outra, este argumento de Rorty. Tais dúvidas podem ser sumariadas em três grandes perguntas, a saber: Há de fato uma conexão estreita entre literatura e progresso moral? Redescrições podem realmente fazer qualquer coisa parecer boa ou má, dependendo dos traços que lhes sejam emprestados, como Rorty parece sugerir? Seriam as redescrições abrangentes e eficientes a ponto de tornar dispensável o trabalho teórico? O primeiro questionamento foi resumido por Nancy Fraser: “[É] realmente verdade que as sociedades que produzem a melhor literatura são também as mais igualitárias? Os interesses dos poetas e os interesses dos trabalhadores de fato coincidem tão perfeitamente? (Fraser, 2010: 8; grifo meu). Esta passagem reflete bem a confusão a que uma leitura pouco atenta do argumento de Rorty pode levar. Na verdade, Rorty nunca afirmou que as sociedades que produzem as “melhores” literaturas são necessariamente mais generosas ou igualitárias, mas sim que as visões de mundo plasmadas nas obras de escritores alargam nossa sensibilidade em relação à diferença, solapam o provincianismo intelectual e, desta forma, contribuem para o progresso moral e social. Mas o questionamento de Fraser erra o alvo também em outro aspecto. Pois o que exatamente a autora considera como sendo “a melhor literatura”? “Melhor” sob quais critérios? “Melhor” para quem? Fraser não nos diz nada a este respeito, de modo que parece seguro entender que estava se referindo ao cânone da literatura ocidental. Entretanto, a questão principal não é esta suposta relação entre sociedades igualitárias e “produção literária de qualidade”, seja lá o que isso signifique; a questão é que a literatura, não importa o grau de refino estético que apresente a nossos olhos, pode não fomentar uma visão de mundo mais generosa e solidária, como quer crer Rorty.

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Fraser teria feito melhor se houvesse mobilizado a obra de Edward Said. Em Cultura e Imperialismo, Said argumenta que o moderno romance realista ajudou, de forma quase imperceptível e por isso tão eficaz, a fabricar entre os europeus o consenso em relação ao processo de conquistar povos e territórios distantes. Retirando exemplos das obras de Dickens, Kipling e Conrad, Said expõe os vínculos entre as visões de mundo transmitidas em obras literárias e as práticas imperialistas ocidentais. “A pessoa”, escreve Said, “lê Dante ou Shakespeare para acompanhar o melhor do pensamento e do saber, e também para ver a si mesma, a seu povo, suas tradições sob as melhores luzes” (SAID, 1995: 13). E aquelas melhores luzes e tradições, que com o tempo sedimentam-se em educação, não cessavam de reafirmar a superioridade das artes, dos saberes, dos modos de vida do homem europeu. Said nos mostra que a luta pela geografia não pode ser reduzida a uma questão estritamente militar ou econômica: ela abarca sobretudo imagens, narrativas, representações. Mais do que de dinheiro ou pólvora, o imperialismo depende de uma formação ideológica que o sustente e impulsione – e as obras de romancistas analisados por Said constituíam parte ativa e importante de tal formação, ainda que elas não tivessem sido escritas tendo em vista tal objetivo. (Conrad, Dickens e Kipling, claro está, não tencionavam fomentar a empresa imperial.) É possível estender o argumento de Said à ficção do século XX e também contemporânea, pois não temos bons motivos para crer que a escrita preconceituosa e perversamente etnocêntrica tenha acabado no século XIX. Assim, não dispomos de nenhum indício que nos leve a acreditar na correção de perspectiva da produção literária, que Rorty pressupõe. O segundo questionamento, se apreciado com a atenção merecida, nos arrastaria para uma longa discussão acerca da narrativa, de sua relação com os fatos que pretende descrever 11. Ao elogiar poetas românticos em função de sua crença de que “qualquer coisa podia ser levada a parecer boa ou má, importante ou sem importância, útil ou inútil, ao ser redescrita” (RORTY, 2007 : 32), e insistir no caráter contingente dos vocabulários dentro dos quais as descrições do mundo são feitas, Rorty atraiu para si duras críticas. Vejamos, por exemplo, uma história verídica narrada por Albert Camus numa palestra na Universidade de Columbia, em 1946. Na Grécia ocupada pela Alemanha nazista, oficiais da wehrmacht preparavam-se para executar três irmãos que haviam caído prisioneiros. Assistindo à cena, a mãe implora misericórdia, ao que os soldados alemães reagem dizendo que ela poderia escolher um filho, apenas um, para ser salvo. Diante da incapacidade da mulher de decidir qual filho poupar, os oficiais se preparam para abrir fogo. Ela enfim intercede e escolhe o mais velho, porque tinha filhos para criar – e assim condena os outros dois à morte, à qual é obrigada a assistir. A pergunta, ou melhor, o desafio que se coloca à proposta de Rorty é: “Como poderia esta 72


história ser redescrita de maneira a parecer ‘boa’”? (ELSHTAIN, 2003: 147; tradução livre). Rorty, assevera Elshtain, insiste nessa possibilidade; na verdade, ele “requer esta possibilidade para sustentar seu argumento maior acerca da absoluta contingência e arbitrariedade das nossas caracterizações” (ibidem: 147). O terceiro aspecto problemático da noção rortyana de redescrição é sua insistência no fato de que ela poderia substituir o trabalho teórico, ao menos no que diz respeito ao alargamento do ideário liberal-democrático. Rorty não apenas se mostra impaciente em relação à teorização pura; ele a reputa pouco capaz de promover avanços culturais e morais. Parte desta impaciência deriva de uma atitude algo cética, expressa no reconhecimento de que não há nenhuma maneira não-circular de justificar nossas crenças liberais, e da manifesta aversão de Rorty a qualquer coisa que recenda à metafísica. Mas há também um desdém pela teorização que ultrapassa o filtro do ceticismo, um desdém que refere-se à capacidade da teoria de conquistar relevância prática. Rorty dá a impressão de sugerir, equivocadamente, que a produção teórica atual assume duas formas: ou a filosofia inutilmente presa às teias do fundacionismo metafísico, ou o pós-modernismo auto-indulgente (BERNSTEIN, 2003). O que ele não se dá conta é de que o caráter sempre vago e abstrato de suas posições – Rorty nunca desce aos detalhes, nunca penetra nos meandros – podem ser prejudiciais à esperança de sua própria utopia liberal. Nesse sentido, talvez seja lícito afirmar que, na perspectiva rortyana, cenários políticos diferentes não devem ser cotejados com a realidade, mas sim com cenários alternativos: o ironismo elimina a possibilidade de compararmos visões imaginativas com a realidade, o que lhe retira a tração crítica (VOPARIL, 2006). Assim, o problema da filosofia de Rorty não é o relativismo, mas sim que ela não nos conduz para perto da realidade. A redescrição não pode suplantar a teoria, a ponto de torná-la desnecessária, porque a teoria tem um compromisso com a realidade – falho, instável e problemático, mas um compromisso ainda assim. Não se trata aqui de afirmar que a teoria supera a redescrição, mas apenas de observar que, sem um debate teórico, reformas políticas podem facilmente transformar-se em mero ativismo à cata de soluções fáceis (BERNSTEIN, 2003). Portanto, se o que Rorty almeja é estender as conquistas liberais por meio de reformas sucessivas, então a criação de novas metáforas, apesar de necessária, não basta. É preciso também o artesanato de cunho teórico. The trouble with Rorty’s “inspirational” liberalism is that, at best, it tends to become merely inspirational and sentimental, without much bite. (...) At worst, it is a rhetorical smokescreen that obfuscates the type of serious thinking and action required to bring about liberal reform that he envisions. Inspirational liberalism without detailed, concrete plans for action tends to become empty, just as quick fixes without overall vision and careful theoretical reflection tends to become blind (ibidem: 137).

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4. Observações Finais: Desdivinização e Reencantamento do Mundo Bernstein capta um aspecto relevante do projeto de Rorty: a intenção de inspirar. Este é um dado fundamental para a compreensão de sua obra, e no entanto largamente ignorado pela maioria de seus críticos, ao menos no Brasil. Rorty escreve imbuído da missão de sacudir o pessimismo e a resignação acumulados nas últimas décadas pela chamada “esquerda cultural norte-americana”, a fim de lhe inspirar uma atitude crítica voltada para problemas reais. Se ele é vago demais, não é por inaptidão ou desleixo intelectual; se não expõe propostas concretas, não é porque tenha se deslumbrado com suas próprias ambições metafilósoficas. Rorty pretendeu realizar um movimento anterior, cujo objetivo era despertar seus companheiros intelectuais de esquerda para a necessidade de cultivar a esperança na democracia liberal e, ao mesmo tempo, a obrigação de trazer sugestões criativas para reformá-la12. Contra o pessimismo resignado, o compromisso cívico secular: Rorty segue o exemplo de Dewey e Whitman no sentido de buscar resgatar o orgulho nacional norteamericano e a esperança no aperfeiçoamento de suas instituições liberais. Orgulho nacional não como patriotismo rasteiro, mas disposição para se engajar nas lutas da nação; esperança não como mero sentimento, mas como crença – entendida no sentido peirceano, um hábito de ação – acerca do futuro (COOKE, 2004). Num livro importante mas pouco lido no Brasil, Rorty (1999) reconhece que o recente projeto intelectual da esquerda, estruturado em torno de questões como “representação” e “diferença”, ajudou a tornar os EUA um país menos cruel, posto que menos condescendente com as práticas da humilhação, discriminação e sadismo. Mas esta mesma esquerda, na esteira de autores como Nietzsche e Foucault, teria caído em profunda desesperança e resignação, transformando-se em uma intelligentsia passiva, espectadora alienada das lutas concretas dos subalternos. “Se eu fosse a oligarquia republicana” diz ele, “gostaria que a esquerda gastasse todo o seu tempo pensando sobre questões de identidade de grupo, em vez de pensar sobre salários e horas de trabalho” (RORTY, NYSTROM, PUCKETT, 2006: 54). É verdade que Rorty não apresenta planos concretos sobre salários e horas de trabalho. Mas esta não é nem sua vocação, nem sua intenção. Ao propor uma maneira de conciliar os vocabulários do romantismo e do racionalismo iluminista, que pode ser vista também como uma tentativa de equilibrar as contribuições subjetivas da teoria crítica com as qualidades objetivas da ordem liberal-burguesa, Rorty está tentando persuadir os defensores de ambos os vocabulários a fecundarem-se mutuamente, e não fecharem-se sobre si próprios, dogmaticamente convictos de sua respectiva superioridade. As soluções encontradas por Rorty para 74


levar a cabo seu intento nem sempre são exatamente bem sucedidas. Mas o reconhecimento de suas insuficiências não deveria nos levar a ignorar o desejo que o anima, o desejo de inspirar um senso de orgulho e otimismo dentro do espírito crítico, contribuindo para renová-lo. Isto se coaduna com seu projeto filosófico maior, cuja preocupação é intervir na realidade com o intuito de imaginar soluções transitórias para problemas transitórios. Rorty é muito mais modesto do que julgam seus críticos. Tal modéstia se expressa em sua proposta de abandonar as seduções do pensamento “vertical” – a busca por uma Verdade redentora, seja nas alturas da metafísica, seja nas profundezas da alma humana – em prol de um pensamento “horizontal”, que não supõe ou requer uma instância transcendente de validação. Rorty nos exorta a abandonar o impulso ao absoluto, comum à “grandiosidade universalista” e à “profundidade romântica”, e a nos contentar em exercitar nossa “finitude humanista”, pois não há responsabilidade maior do que a que assumimos para com o nosso semelhante (RORTY, 2005c). “Não espere pelo Julgamento Final”, escreveu Albert Camus. “Ele acontece todos os dias”. Esta é a inspiração que transborda dos textos de Rorty. Em A Filosofia e o Espelho da Natureza, Rorty quis desdivinizar o mundo; posteriormente, em Contingência, Ironia e Solidariedade, buscou reencantá-lo (VOPARIL, 2006). Já no final da vida, afirmou que a única maneira de criticar regras culturais vigentes é fazendo referência a noções utópicas, mostrando assim o quanto certas promessas continuam esperando sua realização (RORTY e MENDIETA, 2006). Sua utopia liberal reivindica as promessas surgidas na esteira dos ideais de liberdade e igualdade, que ainda aguardam realização. Como Marx, para quem as contradições da modernidade só poderiam ser resolvidas com o adensamento da própria modernidade, e não com a fuga dela (BERMAN, 1986), Rorty acreditava que os problemas inerentes ao mundo regido pelos valores liberais e democráticos seriam solucionados não através da invenção radical de outros mundos, mas sim com reformas graduais que promovessem o aprofundamento de tais valores. Notas: 1.

A extensão e profundidade da obra de Rorty impõe certos limites. Neste trabalho, deixarei de lado o

estofo analítico que impulsiona A Filosofia e o Espelho da Natureza a fim de concentrar a análise em seus escritos de corte mais político, sobretudo Contingência, Ironia e Solidariedade. Desde já, gostaria de agradecer aos comentários e críticas de Susana de Castro. Infelizmente, não pude responder aqui de maneira satisfatória; espero fazê-lo futuramente. Assumo, é claro, inteira responsabilidade pelas insuficiências deste artigo.

2.

Rorty define o ironista como alguém que preenche três requisitos, a saber: i) mantém dúvidas

permanentes e radicais em relação ao vocabulário final que usa para descrever o mundo e as pessoas, dado que foi

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impactado por outros vocabulários também considerados finais; ii) sabe que tais dúvidas não podem ser desfeitas através de seu atual vocabulário; e iii) “na medida em que filosofa sobre sua situação, [o ironista] não acha que seu vocabulário esteja mais próximo da realidade do que outros, que esteja em contato com uma força que não seja ele mesmo” (RORTY, 2007: 134).

3.

Para um exame da relação entre ironia e ceticismo, ver MARGUTTI, 1998 e WILLIAMS, 2003.

4.

Davidson (1992) afirma que as metáforas não possuem sentidos diferentes dos seus sentidos literais,

não têm um lugar fixo no jogo de linguagem corrente e, por esta razão, não podem ser nem refutadas nem confirmadas. São candidatas a valor de verdade que, se forem aceitas, vão aos poucos adquirindo um uso habitual até conquistarem um lugar no jogo de linguagem estabelecido, quando então perdem seu caráter metafórico e se literalizam. Nesse sentido, metáforas seriam operadores que possibilitariam a introdução de perspectivas inéditas de pensamento, veículos para a introdução de ideias tão novas que acabam por estabelecer os parâmetros de julgamento pelas quais elas próprias serão avaliadas posteriormente (RORTY, 2007).

5.

Quando confrontado com a crítica de que seu elogio etnocêntrico às liberdades burguesas não se

baseava em um estudo mais cuidadoso de outras tradições e culturas (PEERENBOOM, 2000), Rorty assim respondeu: “That is an understatement. It is based on no study at all of those traditions and cultures, but only on my impression that wherever bourgeois freedoms and the culture of rights have gotten a grip, people have liked the results pretty well. No country has tried them and willingly given them up again, any more than any patient whose headaches have been relieved by aspirin has ever decided to cease using it” (RORTY, 2000a: 90).

6.

Estou ciente de que minha exposição do debate Habermas-Rorty é superficial. Creio que, dados os

objetivos deste artigo, não poderia ser de outro jeito: qualquer reflexão aprofundada sobre tal debate nos levaria aos intrincados meandros da filosofia da linguagem de Donald Davidson, de quem Rorty retira os argumentos que lhe servem de suporte. Para um resumo mais completo do diálogo entre Habermas e Rorty, inclusive com uma ótima introdução à filosofia de Davidson, ver GHIRALDELLI, 2007.

7.

No original: “If we take care of freedom, truth will take care of itself” (RORTY, 2000b: 347).

8.

Poder-se-ia argumentar, seguindo um falibilismo como o de Popper, que a refutação sucessiva de

modelos e hipóteses teóricas nos levaria à verossimilhança, de modo a garantir se não um destino final, ao menos um porto seguro para uma determinada área da investigação. O problema com esta noção, como observou Giddens (1998), é que a ideia de que estaríamos nos aproximando cada vez mais da verdade à medida que hipóteses sejam testadas e refutadas só é defensável se acreditarmos que o número de hipóteses da qual podemos dispor é finito. Do contrário, isto é, se as hipóteses são infinitas, a noção de “aproximação” em relação à Verdade deixa de fazer sentido.

9.

A este respeito, Rorty declarou o seguinte numa entrevista: “A má interpretação original veio de

Nancy Fraser, que disse: ‘Rorty não se dá conta de que o pessoal é político’. Acho que ela e eu estávamos indo em sentidos opostos. Eu pensava em um sentido de privado, algo como a definição de Whitehead para a religião: ‘o que você faz com a sua solidão’. Fraser pensava no privado como a cozinha ou o quarto de dormir, em oposição à praça do mercado e ao escritório. Não havia nenhuma relevância para aquilo que eu estava dizendo” (RORTY, NYSTROM e PUCKETT, 2006: 86).

10.

Aqui é preciso fazer uma ressalva, a fim de evitar um possível mal entendido. Se Rorty de fato opõe

a perfeição privada à busca por justiça social, que dizer de sua insistência acerca da importância da redescrição para o

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progresso moral e social? Não haveria aí uma contradição no argumento de Voparil (e minha também, por subscrevê-lo)? Dois esclarecimentos se fazem necessários. Primeiro: não devemos confundir “oposição” com “blindagem” ou “impermeabilidade” absoluta; dois terrenos podem ser “opostos” e ainda assim fecundarem-se mutuamente. É o que acontece no caso da distinção público/privado de Rorty, na qual, como já foi observado, o privado deveria vir se entranhar no público num ritmo lento e constante, como um “conta-gotas”. Segundo: redescrições que servem a propósitos de progresso social não necessariamente surgem de um desejo idiossincrático por perfeição privada (elas podem, por exemplo, advir apenas de um devaneio, uma epifania, ou tão somente do desejo de imaginar um futuro diferente). Agradeço ao parecerista da Revista Redescrições por haver me chamado a atenção sobre a necessidade de explicitar melhor esta questão.

11.

Teríamos que discutir, apenas para começar, a existência ou não de constrangimentos inerentes aos

fatos históricos, constrangimentos estes capazes de impedir sua redescrição futura em termos radicalmente diferentes. Para uma introdução ao assunto, visto por ângulos opostos, ver ECO, 2005 e WHITE, s/d/p.

12.

O que aliás explica a incrível freqüência com que Rorty faz uso do pronome “nós” em seus escritos:

“nós, deweyanos”, “nós, liberais democratas”, “nós, humanistas”, “nós, intelectuais burgueses ocidentais” e assim por diante (VOPARIL, 2006).

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Tradução

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UM ARCO DO PENSAMENTO: a trajetória de Rorty do Materialismo Eliminativo para o Pragmatismo Robert Brandom*1 Richard Rorty costumava dizer que era um exemplo perfeito do ouriço de Isaiah Berlim 2: ele realmente teria sempre uma mesma ideia. Considerando a diversidade e vasta gama de tópicos aos quais Rorty se referia – abrangendo epistemologia, metafísica, filosofia da mente, toda história da filosofia e da cultura em geral, literatura, política e mais – tal alegação poderia parecer literalmente inacreditável. Mas penso que há um núcleo de verdade nisto. Porque seu pensamento segue uma trajetória quase balística, que começa muito cedo – bem antes de A Filosofia e o Espelho de Natureza – que o leva até a forma madura do seu pragmatismo. Sua obra tardia pode ser vista como resultado do prolongamento da meditação sobre as lições que poderiam ser tiradas do seu trabalho inicial. Rorty seguiu implacavelmente a lógica de seu raciocínio, não importa onde ela o levasse, continuando a extrair consequências muito tempo depois da mudança que promoveu na direção do pensamento de muitos pensadores, tendo-a invertido do modus ponens para o modus tollens. De fato, um traço que compartilhou com seu colega em Princeton, David Lewis, é a frequência com que ambos, mais do que quase qualquer outro filósofo de sua geração, consideraram necessário lembrar aos seus ouvintes – como memoravelmente afirmou Lewis, que "um olhar fixo de incredulidade não é um argumento". É claro que, o tipo de intensidade, resolução e implacável obstinação que frequentemente provocam este tipo de olhar fixo tem sido o ponto de partida de algumas de nossas mais elevadas aventuras filosóficas – basta pensar em Spinoza, Hobbes e Berkeley, ou em Kant, Hegel, e Nietzsche. Temos uma boa ideia, afinal, sobre onde Rorty queria chegar. 3 Ele achava que a maior contribuição que os filósofos haviam dado para a cultura em geral havia sido o Iluminismo. O que foi mais importante naquele mar de mudanças conceituais é que desistimos da ideia de que as normas que regem nossa conduta teriam sua fonte em algo não-humano (sendo elas alguma coisa imposta sobre nós por uma vontade divina) e passamos a ver que nós mesmos precisamos assumir a responsabilidade por estas normas – que precisamos deliberar uns com os outros e decidir que tipo de seres queremos ser, e o que demos fazer. Rorty foi finalmente levado a clamar por um segundo *

Robert Brandom é professor na Univeridade de Pittsburgh, autor de diversos livros como Makind it explicit (1994) e Between Saying and Doing: Towards an Analytic Pragmatism.(2008).

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Iluminismo: que estenderia para nossas concepções teóricas acerca do conhecimento o mesmo insight que animou as criticas construtivas do primeiro Iluminismo aos modos tradicionais de interpretar a esfera prática. Sobre isso Rorty pensa também que precisamos achar modos de nos livrar da imagem de humanos como responsáveis por algo não-humano. No lado teórico, a autoridade putativa não-humana em relação a qual nós nos achamos submetidos não é Deus, mas a Realidade objetiva. É claro que nenhuma reconceituação pode nos livrar do atrito com aquilo que Dewey chamou "situações problemáticas". Porém deveríamos compreender essa restrição como uma característica de nossas práticas e não como algo externo, nos obrigando do exterior.

Nós

precisamos deliberar coletivamente e decidir o que nós podemos dizer, em grande medida da mesma maneira que o primeiro Iluminismo nos ensinou sobre a necessidade de deliberar coletivamente e decidir o que poderíamos fazer. E a razão é a mesma nos dois casos: qualquer coisa diferente desmerece nossa dignidade como criaturas auto-determinadas. Que linha de pensamento levou Rorty a esta surpreendente conclusão? Minha hipótese é esta: suponho que principia com as idéias por trás do materialismo eliminativo ao qual ele já havia chegado antes de 1970. Tendo sido um bebê de fraldas vermelhas, Rorty sempre se encaminharia para ser um revolucionário conceitual. Seu primeiro alvo foi a filosofia da mente, onde ele, sozinho, veio com uma resposta verdadeiramente nova para o antigo problema mente-corpo. 4 Colhendo uma figura de linguagem de Hegel, Nietzsche fez o famoso anuncio de que Deus está morto. O que havia de singular nisto não era ateísmo; longe disto. Mas sim o compromisso com o ter havido um Deus, cuja própria existência dependia de nossos pensamentos e práticas.

Quando nós modernos

começamos a viver, agir e acreditar de maneiras diferentes, Deus saiu de nossas vidas – e assim, o pensamento radical deixou de existir. Desta forma, Rorty afirmou (contra, por exemplo, os behavioristas wittgensteinianos) que nós temos, sim, mentes cartesianas. Mas este fato ontológico depende de nossas práticas sociais. É inteligível – e talvez mesmo aconselhável – que deveríamos mudar aquelas práticas, em maneiras que implicariam que nós "perdemos nossas mentes." Rorty considera que Descartes introduziu uma concepção moderna original da mente (como parte da "virada subjetiva" que precedeu a nossa "linguística"). O gênero das "pensées" cartesianas que subsume fenômenos tão diversos, como pensamentos e sensações na qualidade de espécies é definido pela "incorrigibilidade como marca do mental” – como o título de seu clássico ensaio sobre isto.5 Ninguém está em condições de substituir minha honestidade quanto a relatos contemporâneos em primeira pessoa acerca de meus estados mentais correntes. (Esta é, naturalmente, a mesma característica que levou Wittgenstein a negar a inteligibilidade das alegações 83


de que quaisquer de nossas declarações possam ser tomadas como relatos sobre coisas que exibiriam este tipo estranho de privacidade.) O pensamento, que é decisivo para Rorty, é ambíguo. O primeiro elemento é a ideia de que a incorrigibilidade neste sentido seria um fenômeno normativo: uma questão de autoridade incontestável de certos relatos. O segundo é uma ideia do pragmatismo social que ele originalmente credita ao Esclarecimento: condições normativas assim como autoridade são sempre instituídas através de práticas sociais. É perfeitamente inteligível (em oposição a Wittgenstein) que alguns de nossos proferimentos teriam essas duas características, a de serem relatos e incontestavelmente fidedignos. Porém, isso não se dá devido ao antecedente intrinsecamente metafísico nem ao caráter ontológico daquilo de que elas são relatos. Este é o motivo pelo qual nós podemos dizer precisamente o que temos de fazer de modo a tratar uma classe de nossos relatos como incontestavelmente fidedignos: como incorrigíveis. Tratá-los assim institui esse tipo de status normativo. Mas isso é nossa criação. Rorty pensa que os gregos antigos não tinham mentes cartesianas. Estas nos foram dadas pelo arranjo de nossas práticas de modo a instituir normas com este caráter distintivo, nós podemos dispensar se mudarmos aquelas práticas para permitir que outros tipos de evidência tenham peso de indicativo comprobatório na contestação de relatos anteriormente tomados como incorrigíveis. Ironicamente, e radicalmente, Rorty faz isto com o que é mais próprio do cartesianismo, o privado e sagrado do sujeito se transfere para o poder plástico, que às vezes é reivindicado por estar acima de outras coisas, por exemplo, como o poeta favorito de Rorty, Yeats, exprimiu6 God-appointed Berkeley that proved all things a dream, That this pragmatical, preposterous pig of a world, its farrow that so solid seem, Must vanish on the instant if the mind but change its theme; [Berkeley, enviado por Deus, demonstrou que todas as coisas são um sonho, Que este pragmático, absurdo e porco mundo, estas criaturas que parecem tão sólidas, Desaparecem em um instante se a mente muda de tema;]7

A mente Cartesiana é real, mas ela é algo contingente, um produto opcional de nossas práticas sociais mutáveis. Penso que neste ponto Rorty começou uma extensa investigação sobre a relação entre o que chamou de vocabulários, de um lado, e ontologia, de outro – uma relação que, a exemplo do materialismo eliminativo, mostrou ser demasiado complexa para ser apreendida por uma “correção teórica do olhar”, segundo a qual, tanto faz como as coisas sejam objetivamente, teria autoridade sobre o que podemos dizer acerca delas. Ele prosseguiu guiado por um modo de ver a ontologia através de lentes normativas, e compreendendo a normatividade de um modo social pragmatista. Da 84


vantagem oferecida por esse comprometimento metodológico estratégico, uma ordenação tripartida da ontologia aparece. Coisas subjetivas (cartesianas) são aquelas acerca das quais cada indivíduo conhecendo-e-agindo como sujeito tem incontestável autoridade. Coisas sociais são aquelas sobre as quais comunidades têm incontestável autoridade. Então não é compreensível que se afirme que os Kwakiutl estão errados sobre o que seria um gesto de saudação aceitável em sua tribo. Não há fatos sobre esse tipo de correção social para além e acima das atitudes práticas coletivas que levem a considerar ou tratar alguns gestos como saudações. Finalmente, coisas objetivas são aquelas sobre as quais nem indivíduos nem comunidades têm autoridade incontestável, mas são elas mesmas que exercem autoridade sobre exigências que, em sentido normativo, que falantes e pensantes é que são responsáveis por aquilo que contam como sendo sobre estas coisas. Agora estou em posição para formular mais cuidadosamente minha tese principal sobre o fio argumentativo que leva Rorty do seu pensamento inicial para aquele que desenvolveu posteriormente. Penso que ele continuou aplicando essencialmente as mesmas considerações, mutatis mutandis, que ele fizera para o campo subjetivo, desta tripartida ontologia, para o campo objetivo. Uma vez que distinções ontológicas foram estabelecidas em termos normativos de autoridade e responsabilidade, o pragmatismo social em relação às normas acarreta como consequência, a transferência do privilégio de certa substância categorial para a categoria ontológica do social. O pragmatismo considera que as condições normativas que distinguem as três categorias ontológicas – as estruturas de autoridade e responsabilidade características de cada uma – sejam, elas mesmas, coisas que caem na categoria do social. As regras e práticas para construir e contestar os vários tipos de afirmações pertencem às comunidades linguísticas que implantam os vocabulários em questão. Assim, entre os tipos ontológicos do individual-subjetivo, social-intersubjetivo e objetivo, o social é primus inter pares.8 Que tipo de posição teríamos afinal se tentássemos fazer o mesmo movimento a respeito da categoria objetiva que Rorty fez para o subjetivo com seu materialismo eliminativo? Acho que ele efetivamente oscilou entre duas posições. Aqui é importante lembrar que algumas das perspectivas de Rorty são mais escandalosas que outras – mas nenhuma é menos. A visão mais escandalosa é a de que a estrutura de autoridade e responsabilidade que constituem a objetividade é efetivamente incoerente. Quando pensamos de um ponto de vista pragmatista sobre o que isso requereria, vemos que não é possível para nós instituir tal estrutura. Pois isso requer conceder autoridade a alguma coisa não-humana, alguma coisa que meramente está lá, para coisas intrínseca e normativamente inertes, que deveriam estar em uma caixa com a indicação de Wittgenstein “considerada apenas 85


como um pedaço de madeira”. Grande parte da retórica de Rorty parece se comprometer com uma perspectiva deste tipo. O que é inteligível é um consenso cognitivo teórico sobre vários pontos (ainda que contingente, parcial e temporário). Mas a idéia de algo que não pode entrar em uma conversação conosco, para a qual não podemos dar ou perguntar por razões, como se ditasse aquilo que deveríamos dizer não está entre aquelas a que, finalmente, poderíamos dar um sentido. É a idéia de que nós somos sujeito (responsável) por uma autoridade no final das contas irracional – algo cuja completude cognitiva é, só por conta de sua irracionalidade, ininteligível. A realidade como a moderna tradição filosófica a construiu (“apenas um pedaço de madeira”) é o tipo errado de coisa para exercer a autoridade racional. Esta é o que nós fazemos uns com os outros. Essa é a lição que nós deveríamos ter aprendido sobre Deus a partir do primeiro Iluminismo, e seria preciso um segundo Iluminismo para nos ensinar como aplicar aquela lição com relação à Realidade Objetiva: o candidato a sucessor de nossa sujeição, não provém agora da Igreja, mas da Ciência. Rorty se consolou frequentemente depois de ataques sobre seu caráter intelectual, fomentados por aqueles que viam em suas ideias um perigoso irracionalismo (como se rejeitando a ideia de restrições não-humanas externas, isso significasse que não poderíamos mais encontrar sentido na ideia de restrições manifestadas em nosso dar e perguntar aos outros por razões) com o pensamento daqueles filósofos do início dos tempos que foram seriamente condenados como imoralistas, por sustentarem que a matéria conteria seus próprios princípios de movimento. 9 Nós acabamos por aprender, afinal, que o tipo de ateísmo envolvido em rebaixar essa função do divino para a esfera humana não precisa levar a que corra pelas ruas um selvagem imoralismo.Talvez um dia nos possamos aprender a deixar de lado também nosso terror inicial e aprender a viver com uma reconstrução dos aspectos de nossas práticas que a estrutura normativa de objetividade originalmente postulava explicar. Mas esta não é a única maneira de aplicar as lições anteriores ao caso em questão. Talvez seja um avanço cultural para nós, considerar ininteligível que um mero fato – mesmo o fato de que Deus nos criou (supondo que seja um fato), juntamente com tudo o mais – deveria ser suficiente para dar a Ele autoridade moral sobre nós, para determinar quem deveríamos ser e como deveríamos viver nossas vidas. Como afinal, na era pós-feudal, nós podemos entender a conexão entre os dois que é firmemente unida na concepção de nosso Senhor? Mas se nós não olharmos para o Iluminismo original e sim para o materialismo eliminativo como nosso modelo, parece que uma lição diferente emerge. Pois a reinvindicação era precisamente não de que a estrutura subjetiva da autoridade individual que institui eventos mentais como incorrigíveis seriam ininteligíveis. Pelo contrário: 86


podemos entender exatamente como nós devemos considerar ou tratar uns aos outros para instituir essa estrutura e assim a categoria ontológica das coisas que exercem autoridade desse tipo. A exigência era a de que essa estrutura seja contingente e opcional, e que por isso seja possível, e sob circunstâncias concebíveis, seja mesmo aconselhável que mudemos nossas práticas de modo a instaurar uma diferente estrutura de autoridade. Como seria se tomássemos essa atitude com relação à estrutura normativa que constitui a objetividade? Nesta linha, não se pode negar que a noção de objetividade faz sentido. Seria melhor investigar que estruturas das práticas sociais mereceriam contar como sendo o lugar onde instituímos uma dimensão especial de avaliação normativa de nossas performances, de tal modo que esta autoridade sobre se elas estão corretas juntamente com essa dimensão deferida para algumas coisas (em geral) não-humanas, as quais nós então neste sentido normativo achamos que conta como falar ou pensar sobre algo. Procurar-se-ia observar se esta estrutura de práticas sociais normativas, uma vez identificada, poderia ser vista como opcional, no sentido de que haveriam alternativas que seriam ao menos inteligíveis. E poder-se-ia então determinar se existem quaisquer considerações ou circunstâncias que possam tornar atraente, desejável ou eficaz alterar ou descartar práticas que exibem esta estrutura, em favor de alguma que tenha uma forma completamente diferente. O ponto chave é a exigência do pragmatismo social de que a normatividade é sempre instituída por nossas práticas e atitudes práticas – as condições normativas são, em última análise, estatutos sociais – isto não implica que sejam somente os humanos que instituíram aquelas condições podem exibi-las ou possuí-las. A noção de responsabilidade de uma autoridade não humana, em principio, não é minada pela visão do Iluminismo pragmatista de que quaisquer destas estruturas dependem de atitudes humanas que a levam ou tratam como algo fidedigno.

Considerem-se

oráculos. Xamãs da antiga China colocavam cascos de tartaruga no fogo e, então inspecionavam as rachaduras buscando similaridades com caracteres ideográficos, procurando respostas que teriam autoridade sobre pesadas interrogações factuais sobre o futuro. Na Europa, cometas e o avistamento de pássaros raros foram ocasionalmente investidos com tremenda significação normativa e significado. Na medida em que o sentido normativo é posto por nós, podemos colocá-lo onde nos apraz – porém imprudentemente. A pergunta, ao que me parece, não é se nós podemos investir autoridade em coisas não-humanas: tomá-las de modo que nos mesmos sejamos na prática responsáveis por elas, de um modo que isso nos faça responsáveis por elas. Claro que podemos. É um pouco como podemos instituir uma dimensão de avaliação sobre o que dizemos e fazemos que seja corretamente compreendida como concedendo autoridade semântica e epistêmica em relação à 87


sua correção, como para aquelas coisas que nós então, neste distinto sentido normativo, consideramos como pensar e falar sobre. Que estrutura ou constelação de atitudes práticas sociais devem contar para tomar ou tratar algumas coisas como representantes, no sentido de que avaliações de sua correção dependem (tem apelo sobre, são responsáveis por) de objetos e fatos que são assim representados por eles? Haverá tantas respostas a essa pergunta como há sentidos para 'representação'. Se nós aprendemos alguma coisa desde que Descartes pôs este conceito no centro de atenção da filosófica moderna, é que existem muitos de tais sentidos. Podemos perguntar então sobre cada um deles, até que ponto o reconhecimento da responsabilidade de alguns de nossos estados, de sua correção neste sentido, dos vários aspectos do mundo (incluindo nossos companheiros de práticas discursivas) é um caso contingente, opcional. A que tipo de empobrecimento expressivo nos condenaríamos se desistíssemos de reconhecer (e assim instituirmos) uma distinta estrutura de autoridade semântica e responsabilidade para coisas em grande parte não-humanas e fatos característicos de espécie de representação referencial? Acho que ainda temos um longo caminho a percorrer (no quarto século depois de Descartes) no delineamento desta espécie de condição normativa e, assim, responder ao questionamento crítico feito por Rorty sobre isso. O que é importa é que, a minha própria resposta em Making it Explicit é de que, uma vez adequadamente compreendida, podemos ver que a dimensão referencial representacional do conteúdo semântico é algo central, essencial e aspecto inevitável do jogo de pedir e dar razões próprios dessa prática discursiva enquanto tal. Essa é uma característica transcendental no sentido de ser uma condição necessária da possibilidade de os interlocutores navegarem através das inevitáveis (e produtivas) diferenças de compromissos pressupostos entre falante e ouvinte, para que possamos usar cada um as asserções do outro, como premissas em nossas próprias inferências. Isto é constitutivo da noção de informação que pode ser transmitida fazendo alegações uns aos outros. Nesta leitura, as duas teses principais de Rorty são compatíveis com o reconhecimento da existência de uma estrutura objetiva e representacional da autoridade semântica. Pois, primeiro a dimensão referencial, representacional, denotativa da intencionalidade, é compreendida como uma estrutura normativa. Aquilo sobre o que falamos ou pensamos, a que nos referimos ou representamos, é aquilo a que estamos outorgando um tipo característico de autoridade sobre a correção de nossos compromissos, ao longo de uma dimensão distinta da avaliação normativa que instituímos pela adoção daquelas atitudes práticas de nos fazermos responsáveis por aquilo que, neste sentido, conta como coisas com que nos comprometemos. E, em segundo lugar, nós 88


entendemos que fazendo isso, tornando-nos responsáveis por coisas não humanas, reconhecendo sua autoridade, como algo que nós fazemos – tal como conferir a elas um tipo semântico distinto de status normativo, adotando atitudes sóciopráticas, normativas. A única questão que permanece diz respeito à engenharia social: que forma nossas práticas precisam tomar para instituir esse tipo de status normativo? Este é um tipo de questionamento deweyano para o qual Rorty teria dado boasvindas. NOTAS: 1. Tradução de Marcos Carvalho Lopes. Brandom gentilmente autorizou a tradução e publicação deste artigo inédito, disponível em sua página pessoal (http://www.pitt.edu/~brandom/index.html) com o título “An Ark of Thought: From Rorty’s Eliminative Materialism to his Pragmatism”. 2. A referência é o famoso artigo de Isaiah Berlim “O ouriço e a raposa” (The Hedgehog and the Fox) publicado em 1953. 3. Estou pensando na linha de pensamento apresentado por Rorty com o título “Anti-autoritaismo em epistemologia e ética” (“Anti-authoritarianism in Epistemology and Ethics”) em suas Ferreter Mora Lectures, de 1996 na Universidade de Girona. 4. Em contraste com o funcionalismo, que possui muitos pais. 5. Brandom se refere ao ensaio de Rorty “Incorrigibility as the Mark of the Mental”. 6. “Blood and Moon”, In: The Winding Star. 7. Tradução literal (N. do T). 8. Compare o judiciário, que pelo menos desde Marbury contra Madison, foi levado a exercitar a autoridade última na determinação do que cai dentro da própria esfera do executivo, legislativo e ramos judiciais do governo norteamericano. 9. c.f. o excelente livro de Jonathan Israel sobre Espinosa: ISRAEL, Jonathan. Radical Enlightenment: Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750. Oxford: Oxford University Press, 2001.

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O GIRO NEOPRAGMATISTA*1 David. L. Hildebrand Há um consenso geral de que o renascimento do pragmatismo no século XX produziu duas versões prontamente identificáveis. Uma é usualmente chamada pragmatismo “clássico” (ou simplesmente “pragmatismo”), e a outra “neopragmatismo” (a qual chamarei “pragmatismo linguístico”). Esta mais nova forma de pragmatismo pode ser avaliada pela resposta a três questões: 1. Como o pragmatismo linguístico “atualiza” o pragmatismo clássico? 2. Por que o pragmatismo linguístico rejeita a “experiência” como uma noção filosófica útil? 3. Por que o pragmatismo linguístico está equivocado sobre a “experiência”? Isto é, por que a experiência é indispensável ao pragmatismo? Minha alegação é a de que a experiência é metodologicamente inseparável do pragmatismo, e de que o pragmatismo linguístico pode negligenciar ou extirpar a experiência apenas às custas de tornar o pragmatismo abertamente teórico, isolado da ação prática. Assim, o pragmatismo linguístico revisaria o pragmatismo pela supressão de várias características que explicam o renovado e difundido entusiasmo por ele. O pragmatismo linguístico O desenvolvimento do pragmatismo linguístico pode ser atribuído principalmente, se não inteiramente, a Richard Rorty. Em 1995, Rorty escreveu: Eu linguisticizo tantos filósofos pré-giro-linguístico quanto posso, a fim de lê-los como profetas da utopia na qual todos os problemas metafísicos terão sido dissolvidos, e a religião e a ciência terão cedido seu lugar à poesia2.

Para muitos de fora da comunidade filosófica americana, o pragmatismo rortyano tornou-se virtualmente sinônimo do próprio pragmatismo. Dado este fato e os limites deste artigo, deverei tratar a formulação do pragmatismo linguístico de Rorty mais como um tipo do que como um caso. *

Tradução de Filipe Milagres Boechat, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço para correspondência: Estrada da Boiuna, 519, casa 22. Taquara/Jacarepaguá. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 22723-021. Tel.: (21) 9488-2003. Currículo: http://lattes.cnpq.br/8473520379317311 Email: filipeboechat@gmail.com.

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O pragmatismo linguístico revisa o pragmatismo em três movimentos básicos. Primeiro, aplaude-se pragmatistas tais como James e Dewey por repudiarem uma gama de métodos e objetivos da filosofia tradicional. Segundo, renuncia-se às suas tentativas de reconstruir o que não deveria ser reconstruído. Por fim, aceita-se que apenas a linguagem é capaz de fornecer o material da filosofia. Este passo completo, pode-se criar livremente, mesmo poeticamente, para servir ao fim que convier. Menos do que repetir as bem conhecidas críticas do pragmatismo à tradição, permitam-nos seguir adiante a fim de que consideremos as renúncias do pragmatismo linguístico. O pragmatismo fez mal, assim se conta, ao reconstruir ideias tradicionais tais como "experiência", "realidade" e "pesquisa" ― os antiquíssimos projetos filosóficos que ele buscaria desmascarar. Tivessem os pragmatistas abandonado tais projetos estéreis, eles poderiam ter criado argumentos mais persuasivos e duradouros contra a tradição. A fixação de Rorty neste problema está em dividir Dewey em uma boa e uma má metade. O bom Dewey foi crítico: da evidência, do fundacionismo e dos defensores dos dualismos. O Dewey mau foi o Dewey reincidente, misturando explicações metafísicas positivas de "pesquisa", "situação" e, talvez pior do que tudo, de "experiência". Rorty escreve: [Dewey] nunca escapou da noção de que o que ele próprio disse sobre a experiência descrevia o que a experiência parecia ser propriamente, enquanto que outros diziam que experiência era uma confusão entre os dados e os produtos de suas análises. [...] Porém uma explicação não-dualista da experiência, do tipo que o próprio Dewey propôs, era um verdadeiro retorno a die Sache selbst 3.

Defendo Dewey dessa acusação na seção seguinte. O que é importante para o pragmatismo linguístico é a afirmação de que esses movimentos essencializantes (típico de muitos pragmatistas clássicos) podem ser evitados pela utilização do "giro linguístico". Rorty escreve: A filosofia analítica, graças a sua concentração na linguagem, foi capaz de defender certas teses cruciais do pragmatismo melhor do que James e Dewey. [...] Focalizando nossa atenção na relação entre a linguagem e o resto do mundo menos do que entre a experiência e a natureza, a filosofia analítica póspositivista foi capaz de romper mais radicalmente com a tradição filosófica 4.

Assim, a solução de Rorty ao problema da incomensurabilidade dos vocabulários filosóficos é a adoção de um vocabulário linguístico (servindo, assume-se, como uma lingua franca metafilosófica). De alguma maneira, este vocabulário deveria estar desprovido, por sua própria conta, de qualquer bagagem metafísica. Rorty escreve: "Linguagem" é uma noção muito mais conveniente do que "experiência" para as coisas holísticas e antifundacionais que James e Dewey quiseram dizer. Isto porque a

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maleabilidade da linguagem é uma noção menos paradoxal do que a maleabilidade da natureza ou dos "objetos". Tomando o [...] "giro linguístico" e enfatizando que nenhuma linguagem é mais intrinsecamente relacionada à natureza do que qualquer outra, filósofos analíticos como Goodman e Putnam têm sido capazes de tornar os argumentos antirealistas comuns a Dewey e [T. H.] Green mais plausíveis do que o fizeram ambos 5.

O pragmatismo linguístico, portanto, evita termos filosóficos que se referem a entidades ou efeitos não-linguísticos. Ao invés disso, este se pergunta como podemos "retecer crenças" usando novos e melhores "vocabulários". Por exemplo: Toda conversa sobre fazer coisas com objetos necessita, em uma consideração pragmatista da pesquisa “sobre” objetos, ser parafraseável em termos de retecer crenças. Nada além de eficiência será perdido em tal tradução... 6

Esta interpolação por um vocabulário linguístico simplificaria as coisas ao insistir que os referentes sejam expressos no mesmo vocabulário. A efetividade da linguagem é medida com mais linguagem – e não pela divisão do mundo em “coisas” e “contextos”, ou em “blocos maciços e textos frouxos” 7 “Retecer uma rede de crenças”, diz Rorty, “é… tudo que podemos fazer.” 8 Tivesse Dewey realizado o giro linguístico, sustenta Rorty, ele poderia ter evitado buscas infrutíferas por diferenças topológicas entre pesquisas e abster-se de tentar descrever algum método “melhor”. Ele teria percebido que o progresso científico resulta não de um “método” aprimorado (ela própria, uma noção duvidosa), mas do “desenvolvimento de vocabulários particulares.” 9 O custo do pragmatismo linguístico O pragmatismo linguístico tem claramente um charme. Ele promete retirar a filosofia de uma situação extremamente difícil, facilitar a comunicação e dissolver velhos enigmas. Promete, além disso, adequação a uma nova experiência ― uma vez que tudo é caracterizado através da linguagem, a linguagem deve ser adequada à experiência. Antes de defender a experiência como uma parte ineliminável do pragmatismo, deixe-me concluir esta exposição do pragmatismo linguístico indicando o que eu considero suas principais deficiêcias. Em primeiro lugar, existe o movimento de um (compreensível) ceticismo em relação a encontrar um solo último de garantia ao postulado dúbio de que a linguagem é ubíqua. Em Consequences of Pragmatism, Rorty interpreta que Derrida, Wilfrid Sellars, Gadamer, Foucault e Heidegger concordam todos que as tentativas de se chegar por detrás da linguagem a algo que a “sustenta”, ou que nela se “expressa”, ou com o qual se poderia esperar estar “adequada”, falharam todas 10.

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Todavia, Rorty faz, logo em seguida, a seguinte afirmação: A ubiquidade da linguagem diz respeito à linguagem mover-se em direção às lacunas deixadas pela falha de todos os vários candidatos à posição de “pontos de partida naturais do pensamento, pontos de partida que são anteriores a e independentes da maneira como uma cultura fala ou falou 11 .

Num salto apressado, Rorty move-se da observação empírica de que ninguém chegou a um ponto objetivo para comparações entre a linguagem e o mundo à afirmação metafísica de que a linguagem é ubíqua – isto é, que “contexto é tudo o que temos” e “só se pode pesquisar coisas após uma descrição” 12. Esta inferência não é segura. Como observou Hilary Putnam, se Rorty está certo ao dizer que comparar a linguagem e o pensamento com a realidade é um projeto ininteligível, é igualmente ininteligível afirmar que é impossível fazê-lo. No entanto, Rorty faz precisamente isso. Segundo Putnam, “Rorty permanece cego para a maneira pela qual sua objeção do realismo metafísico partilha da mesma ininteligibilidade 13. Se a comparação é “ininteligível”, eis aí uma questão difícil. De grande importância para o pragmatismo é o fato de que o ponto de partida do pragmatismo linguístico de Rorty é teórico e não prático. Por “teórico” eu compreendo isto: todas as declarações de Rorty ― de que (1) a linguagem é ubíqua, de que (2) tudo é contexto, (3) de que nada extra-linguístico pode ser mencionado em argumentos filosóficos ― falham por decorrerem de generalizações empíricas da experiência. Ao invés disso, sua plausibilidade reside em sua presunção, em lugar da investigação. Rorty corretamente chama de “falhas” os pontos de partida tradicionais, porém sua visão de que a linguagem pode agora mover-se “em direção às falhas” revela sua aceitação tácita de uma abordagem teórica tradicional. Do meu ponto de vista, a adoção de tal abordagem, em lugar de uma abordagem experimental e prática, é o erro fundamental do pragmatismo linguístico [14]. E tudo isso começa com a extirpação da experiência do pragmatismo deweyano. Por que o pragmatismo linguístico rejeita a “experiência” Antes de defender a reconstrução da experiência de Dewey, é importante lembrar duas razões pelas quais ela foi rejeitada pelos pragmatistas linguísticos e outros. Alguns, dadas suas muito distintas visões de mundo, acharam-na incompreensível; outros a compreenderam mal, tomando-a como uma noção metafísica tradicional que autorizaria uma descrição absoluta da realidade. Rorty sustenta a última perspectiva, argumentando que a experiência era a maneira teórica de Dewey de dissolver dualismos filosóficos insolúveis. Rorty escreve que, para Dewey, 93


deve haver um ponto de vista a partir do qual a experiência possa ser vista [...] o qual [...] tornará impossível para nós descrevê-la nessas formas equivocadas que geram os dualismos sujeito-objeto e mente-matéria [...] Este ponto de vista assemelhar-se-ia à metafísica tradicional, provendo uma matriz neutra permanente para a pesquisa futura. [...][dizendo] “eis aqui o que a experiência realmente é, antes da análise dualista tê-la feito parecer funcionar” 15.

Na leitura cética de Rorty, a experiência era um substituto para a desacreditada noção de substância, e Dewey “deveria ter abandonado o termo experiência antes do que redefini-lo [procurando] noutro lugar a continuidade entre nós e os brutos” 16. Rorty acredita que não o haver abandonado foi infeliz, afastando seu esforço do aspecto fundamental capturado por suas criticas à tradição. Tomar o desvio linguístico teria ajudado Dewey a abster-se de ancorar a justificação na experiência e permitido que ele reconhecesse que, como afirma Rorty, “nós podemos eliminar problemas epistemológicos eliminando a pressuposição de que a justificação precisa repousar em algo distinto das práticas sociais e necessidades humanas”17. Os pragmatistas deveriam, além disso, ver que tudo o que as pesquisas precisam é “a realização de uma mistura apropriada de acordo nãoforçado com desacordo tolerante” 18. Em suma, os pragmatistas deveriam substituir Objetividade por Solidariedade. Por que a “experiência” é indispensável ao Pragmatismo Tendo discutido os métodos do pragmatismo, devo agora defender a experiência como parte essencial do pragmatismo. Os escritos de Dewey sobre a experiência eram extensos e revolucionários. Ele conduziu os filósofos ao reconhecimento da dimensão somática (ou nãodiscursiva) da experiência19; expandiu a estética e a ética, dirigindo a discussão para longe de valores estáticos em direção à função processual de valoração. No que concerne ao tópico de hoje, o pragmatismo linguístico, a experiência é crucial em razão de sua relação com o método filosófico. Uma defesa da experiência pode começar por notar que ela é fenomenologicamente mais valiosa. O significado visado é bem ordinário. Rorty adianta que a “experiência” não é visada como “uma matriz neutra e permanente para a pesquisa futura”, nem como outro intermediário teórico qualquer entre a aparência e a realidade. A experiência deve ser tomada como sinônimo de coisas e eventos ordinários. Dewey escreve que O homem comum certamente não considera barulhos ouvidos, luzes vistas etc., como existências mentais; mas não as vê também como coisas conhecidas. Que elas sejam apenas coisas é o bastante para ele. […] Sua atitude para com estas coisas como coisas envolve não estar em relação com uma mente ou um conhecedor. (MW 6: 108) 20

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Para atualizar este ponto, substitua “linguístico” por “mental”. O homem médio não ouve barulhos, luzes ou carros como “fragmentos de linguagem” ou “movimentos num jogo de linguagem”. Tidas, são como são experienciadas. Como disse R.W. Sleeper, “não é a experiência que é experienciada, mas coisas e eventos, e o contexto circundante com o qual podemos ‘lidar’... por meio da pesquisa transacional” [21]. A “experiência” é radicalmente empírica ao não ser de maneira nenhuma radical. Isso aponta para o que Ortega y Gasset chamou “minha vida”: um contínuo de coisas, eventos, relações e transações. Minha vida são tidos, feitos, ditos e conhecidos, e enquanto posso me referir à minha vida (como na melancólica ruminação “Essa é minha vida...”) não posso permanecer por detrás ou sobre ela enquanto o faço. A recognição deste continuum constitui outra maneira pela qual a experiência é o mais próximo: nisto que ela tacitamente recomenda um método que nem oferece nem autoriza explicações grosseiras que permanentemente abstraem os conceitos de seus contextos práticos ― p.e., “cor” em “vibrações”, “dor” em “estador mentais” ou “falar sobre objetos” em “falar sobre crenças.” Como método, a experiência desvia as energias filosóficas de definições especulativas em direção a uma denotação engajada e conscienciosa do que é concretamente presente. O valor [...] da noção de experiência para a filosofia é que ela afirma a finalidade e a compreensividade do método de apontar, encontrar, mostrar e a necessidade de ver o que é apontado e aceitar o que é encontrado de boa fé e sem desprezo. (LW 1: 372)

O que Dewey encontra, de fato, “de boa fé e sem desprezo” é que o experienciar ocorre de maneira tanto “tida” (ou “sofrida”) e “conhecida.” [N]o processo de viver, tanto a absorção numa situação presente e a resposta que levam em conta seus efeitos sobre […] experiências posteriores são igualmente necessárias para a manutenção da vida. [...][S]ituações são imediatas em suas ocorrências diretas, e, além disso, mediam e são mediadas num contínuo temporal que constitui a experiência da vida. (LW: 14.30)

Agora, essas duas ideias cruciais ― de que a filosofia deveria começar pela denotação antes do que pela suposição teórica e que a observação indica uma diferença genérica entre experiências reflexiva e não-reflexivas ― são ambas anatemáticas para o pragmatismo linguístico. Ambas, no entanto, têm sido amplamente mal-compreendidas. Alguns vêem a ênfase de Dewey sobre o começo denotativo como simplista ― Como pode a realidade simplesmente ser apontada? Dewey elaborou que a denotação “não é tão simples e direto como apontar um dedo ― ou bater numa mesa”, mas é, antes, “ter tais ideias como apontar e guiarse pelo uso como métodos para alguma situação diretamente experienciada.” (LW 3: 82-83) 95


A segunda objeção, mais tenaz (tanto para pragmatistas realistas quanto pragmatistas linguísticos) é a de que “experiência” é uma noção fundacionista. Essa má compreensão decorre da convicção de que qualquer tentativa de descrever “ter” ou não experiências discursivas requer um ponto de partida privilegiado (i.e., extra-experiencial). Mas tal ponto de partida violaria o naturalismo de Dewey, levando ao que Douglas Browning chama “o paradoxo fenomenológico”. Browning escreve: [C]omo pode [Dewey] descrever adequadamente nossas experiências imediatamente vividas e pré-reflexivas sem admitir uma postura para examiná-las que, sendo reflexiva e retrospectiva, não pode contribuir para isso, mas, antes, desvelá-las, não como foram experienciadas na intimidade de nossa vivência delas, mas como “objetos” que vemos externamente? 22

Sendo ela própria um ato (linguístico) reflexivo, a descrição necessita colorir todo assunto pré-reflexivo que ela descreva. Uma vez que a filosofia ― aí incluído o pragmatismo ― comenta apenas por meio de símbolos reflexivos, ela não pode iluminar este nível da experiência (se isso pode mesmo ser mostrado existir). Na medida em que Dewey assim o fez, ele agiu de má-fé. Essa acusação atinge o núcleo do pragmatismo de Dewey e deve ser o ponto mais importante a esclarecer e defender. Essa defesa poderia começar pela citação de uma lição de “The Postulate of Immediate Empiricism.” Lá, Dewey argumenta que a realidade da coisa não é unicamente uma questão de ser aquilo que está para ser conhecido; outros modos de experienciação são tão importantes quanto na constituição da realidade. (A repulsa, enquanto uma experiência que resiste à caracterização precisa, é tão real quanto a teoria dos direitos.) No momento em que os críticos reconhecem o ponto de Dewey (a igual realidade de modos não-racionais de experienciar), eles devem então admitir que Dewey não precisa escolher entre oferecer tanto uma anatomia precisa e final do não-discursivo ou nenhuma de todo. A caracterização de tais experiências pode proceder empiricamente: observe, proponha, teste e revise. É dado, assim crê Dewey, que nós nunca definimos exaustivamente as experiências primárias ― suas completudes passam com seus momentos ― mas podemos nos aproximar delas, conscientes do fato de que aproximações permanecem ou decaem baseado em sua instrumentalidade para uma pesquisa particular. O principal ponto é que mesmo a pesquisa metafísica pode ser feita pragmaticamente, ou seja, sem premissas axiomáticas. Dewey, relembra-nos Sleeper, “estava tentando trabalhar fora de uma metafísica de existência sobre a base do sucesso de uma pesquisa já em prática” 23. Todas as pesquisas começam in media res: a metafísica pragmatista pode servir como um guia “apenas após o 96


terreno ter sido explorado, e somente após ter feito [o guia] poder servir [...] a futuras explorações” 24

. Se esta conexão entre pesquisa e metafísica é levada a sério, torna-se claro que a

experiência não é a pedra de toque para algum fundacionismo secreto da metafísica de Dewey. Isso não é o que Wilfrid Sellars chamou de “episódio de auto-autenticação não-verbal” (i.e., mais um candidato à certeza). Antes, para Dewey, a garantia epistemológica não reside ou repousa sobre a experiência: ela decorre de e remete à verificação experimental. Além disso, uma proposição está garantida se ela “concorda” com seu problema, mas os pragmatistas linguísitcos devem lembrar que isto é garantia-pela-ação e não garantia-pelo-discurso-intersubjetivo. O “acordo”, escreve Dewey, “é acordo em atividades, e não a aceitação intelectual do mesmo conjunto de proposições. […] Uma proposição não ganha validade em razão do número de pessoas que a aceitam” (LW 12: 484, ênfase minha). Enquanto Dewey não estabelece uma distinção categórica entre linguagem e ação (a linguagem é claramente uma espécie de ação para Dewey), ele deixa pouco espaço para a noção restrita dos pragmatistas linguísticos de garantia-como-um-acordo-intersubjetivo-no-interior-deuma-coletividade. Normas de garantia são moldadas por circunstâncias culturais e históricas, situações experienciadas são sua última medida, e tais situações sempre extrapolam as fórmulas presentes. Estes argumentos não convencerão os pragmatistas linguísticos a endossar a experiência, a menos que façam um deslocamento fundamental, metodológico: eles precisam adotar um ponto de vista prático. A contemplação da posição de Dewey não é suficiente ― ele precisam ser convidados a tentar experimentá-lo e ver como ele se sai. “Todo conhecimento intelectual”, escreve Dewey, “é, antes, um método para conduzir um experimento, e […] argumentos e objeções são, antes, estímulos para induzir alguém a tentar um determinado experimento ― isto é, recorrer a um problema nãológico e não intelectual”. (MW 10: 325 n.1, ênfase minha.) O fato de que a experiências dá-se de várias maneiras ― estética, moral, discursiva, não-discursiva ― não é nem antinatural, nem exclusivamente o produto da prática linguística. Mas porque hábitos de descrição e caracterização estão tão profundamente arraigados, o pragmatismo linguístico irrita-se com a ideia de que a linguagem está constrangida por um mundo de descrição desafiador, e talvez até duvide desse mundo. Deste predicamento ― a incomunicabilidade do não-linguístico ―, Dewey afirma que é inerente, de acordo com o empiricismo genuíno, na relação derivada do discurso com a experiência primária. Qualquer um que recuse ir além do universo do discurso […] priva a si mesmo da compreensão do que seja uma “situação”, tal como questão diretamente experienciada. (LW: 14.30-31)

97


Se o pragmatismo linguístico adota tal ponto de partida, ele começará a evitar a arena prática onde os termos devem finalmente boiar ou afundar. Evitar esta verificação é contrapragmático porque bloqueia a via da pesquisa. Conclusão: experienciando uma redireção para o método filosófico A vida, tal como a vivemos, encontra-se amplamente fora de nosso controle. Ela nos impõe o bom, o mau, o belo e o feio. Uma vez que temos significativamente maior controle sobre teorias do que sobre a experiência, nós desenvolvemos uma propensão a utilizá-las para ilustrar nossos desejos. Contra isso, a experiência compromete o pragmatismo com uma falibilidade radical; desafia abordagens totalizantes que declaram que “tudo é contexto” ou “toda experiência é um caso linguístico” ou “tecer uma teia de crenças é […] tudo o que se pode fazer.” Isso não proibe nem o realismo nem a legitimação, mas insiste que ambos devem ser defendidos, como coloca Joseph Margolis, “em um espírito relativista, histórico e anti-universalista” [25]. Se alguém se inscreve para o ideal do filósofo-como-mosca, segue-se que só pode cumprir essa obrigação se não se está emaranhado em intermináveis disputas escolásticas. Uma mosca deve ser livre para seguir o cavalo. A experiência como método encoraja este ideal com a recorrente admoestação para tratar de questões políticas e sociais, ajudando a garantir que "o lugar de trabalho, os problemas e os assuntos particulares da filosofia cresçam dos estresses e tensões na vida da comunidade [...] e que [...] seus problemas específicos variem de acordo com as mudanças na vida humana que estão sempre acontecendo e que às vezes constituem uma crise e um ponto de inflexão na história humana". (MW: 12,256). NOTAS 1. Este artigo é uma versão resumida e revisada de “Avoiding Wrong Turns: A Philippic Against The Linguistification of Pragmatism”, apresentado na conferência “John Dewey: Modernism, Postmodernism and Beyond”, no Behavioral Research Council (Great Barrington, MA, July, 2001) e está baseado em Dewey, Pragmatism, and Economic Methodology, editado por Elias L. Khalil (New York: Fordham University Press, 2003). 2. Richard Rorty, “Response to Hartshorne.” In: Rorty and Pragmatism: The Philosopher Responds to His Critics, editado por Herman J. Saatkamp (Nashville: Vanderbilt University Press, 1995), 35. 3. Consequences of Pragmatism: Essays: 1972-1980. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982), 7980. 4. Rorty, “Comments on Sleeper and Edel,” Transactions of the Charles S. Peirce Society 21, no. 1 (Winter 1985): 40. 5. “Comments on Sleeper and Edel,” 40. Apesar, porém, da dubiedade de Rorty a respeito do conceito de “experiência”, ele está disposto ainda assim a atribuir à linguagem a tarefa de enriquecê-la. Em “Response to Hartshorne”, Rorty afirma que Hartshorne define uma verdade necessária como aquela “com a qual qualquer experiência concebível é ao menos compatível”. Minha objeção é que nós ainda não temos qualquer ideia do que é ou do que não é

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uma experiência concebível. Porque penso no enriquecimento da linguagem como o único meio para enriquecer a experiência, e porque penso que a linguagem não tem limites trancendentais, penso a experiência como potencial e infinitamente enriquecível. (“Response to Hartshorne” em Rorty and Pragmatism, 36, ênfase minha.) 6. Rorty, Objectivity, Relativism, and Truth, (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 98. 7. Objectivity, Relativism, and Truth, 98. 8. Objectivity, Relativism, and Truth, 101. 9. “Comments on Sleeper and Edel,” 41. 10. Consequences of Pragmatism, xx. 11. Consequences of Pragmatism, xx. 12. Objectivity, Relativism, and Truth, 99-100. A alegação de que a linguagem captura adequadamente a experiência é compartilhada por outro, como Wilfrid Sellars (“toda consciência é um assunto linguístico”) e Hans-Georg Gadamer (que enfatiza “a essencial linguisticidade de toda experiência humana do mundo”), e Jaques Derrida (não pode haver um “hors-texte”, “uma realidade […] cujo conteúdo pudesse tomar lugar, pudesse ter tomado lugar fora da linguagem.”) Ver Sellars, Science, Perception, and Reality (London: Routledge and Kegan Paul, 1963), 60; Gadamer, Philosophical Hermeneutics (Berkeley: University of California Press, 1976), 19; e Derrida, Of Grammatology (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1976), 158. Essas passagens foram-me trazidas à atenção por Richard Shusterman, em “Dewey on Experience: Foundation or Reconstruction?” In: Dewey Reconfigured: Essays on Deweyan Pragmatism (New York: SUNY Press, 1999), 210. 13. Hilary Putnam, Words and Life. Editado por James Conant (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994) 299, 300. 14. Assim, o pragmatismo linguístico compartilha um território com as epistemologias contra as quais Dewey situou-se. “A epistemologia moderna”, escreveu Dewey, “leva à visão de que as realidades devem elas próprias ter uma compleição teórica e intelectual ― e não prática.” (MW 4: 127) 15. Consequences of Pragmatism, 80, ênfase minha. 16. “Dewey between Hegel and Darwin” em Rorty and Pragmatism, 7. 17. Consequences of Pragmatism, 82. 18. Objectivity, Relativism, and Truth 41. 19 Ver, por exemplo, Bruce Wilshire “Body-Mind and Subconsciousness” em Philosophy and the Reconstruction of Culture, ed. John J. Stuhr (Albany: SUNY Press, 1993), 266; ver também Richard Shusterman “Dewey on Experience: Foundation or Reconstruction?” em Dewey Reconfigured: Essays On Deweyan Pragmatism, ed. Casey Haskins e David I. Seiple (New York: SUNY Press, 1999). 20. Do volume 6 de John Dewey: The Middle Works, 14 vols. (Carbondale: Southern Illinois U. Press, 197688), 108. Referências futuras ao trabalho de Dewey usarão as abreviações MW ou LW. LW refere-se a John Dewey: The Later Works, 17 vols. (Carbondale: Southern Illinois U. Press, 1981-91). 21. “Rorty’s Pragmatism: Afloat in Neurath’s Boat, But Why Adrift?” Comunicações da Charles S. Peirce Society, vol. XXI, no. 1 (Winter, 1985): 14-15. 22. Manuscrito, página 29. Em breve, como “Introduction” no relançamento de The Influence of Darwin on Philosophy de John Dewey (Carbondale: Southern Illinois University Press, 2003). 23. Ralph W. Sleeper, “Rorty’s Pragmatism: Afloat in Neurath’s Boat, But Why Adrift?” Comunicações da Charles S. Peirce Society, vol. XXI, no. 1 (Winter, 1985): 17. 24. Sleeper, “What Is Metaphysics?” Comunicações da Charles S. Peirce Society 28, no. 2 (Spring 1992): 184. 25. Joseph Margolis, “A Convergence of Pragmatisms”Em Frontiers of American Philosophy, Vol. 1, ed. por Robert W. Burch e Herman J. Saatkamp, Jr. (College Station: Texas A&M University Press, 1992), 38.

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Michael Linn Eldridge* (1941-2010) James Campbell Michael Eldridge nasceu na cidade de Oklahoma OK em 13 de outubro de 1941. Morreu inesperadamente em sua casa em Charlotte, NC, no dia 18 de setembro de 2010 de uma embolia pulmonar que se desenvolveu ao quebrar sua perna num acidente em seu quintal. Ele começou a educação superior no Harding College em Searcy, AR, onde se graduou em 1964 como um bacharel em linguagens bíblicas. Em seus estudos posteriores, no Abilene Christian College, recebeu um grau BD da Yale Divinity School em 1969. Na ordem dos “Discípulos de Cristo”, Mike passou os próximos cinco anos no ministério de Baltimore, MD, trabalhando sucessivamente em duas igrejas, uma que pertencia aos Discípulos e a outra da United Church of Christ. Eventualmente, ele andou da igreja à comunidade organizando o trabalho da (para a) cidade de Baltimore. Mike, então, ensinou ética na Ethical Culture Fieldston School no Bronx de 1975 a 1978. Mike retornou à educação superior em 1978, fazendo, também, seu primeiro curso de Filosofia e eventualmente fazendo um mestrado em Filosofia pela Columbia University em 1980. Foi premiado com um PhD pela Universidade da Flórida com quarenta anos em 1985 com a dissertação intitulada: “Philosophy as Religion: A study in Critical Devotion” (Filosofia como Religião: Um estudo em Devoção Crítica). Após alguns anos como instrutor na Flórida. Mike entrou num duro mercado de trabalho; e na tentativa de maximizar seu conhecimento de grego e latim, ele se ofereceu como professor de filosofia antiga. O meu primeiro encontro com Mike foi nesse ponto, quando ele passou alguns dias em Toledo numa desafortunada entrevista de emprego em minha Universidade. Baseado neste breve encontro, eu não duvido que tenha se tornado um excelente professor de filosofia antiga se seguisse nesta mesma linha, mas todos nós sofreríamos uma grande perda (no pragmatismo). Em 1986 Mike empregou-se para ensinar filosofia no Spring Hill College em Mobile, AL, e ensinou lá até 1989. Ele então se mudou para Queen’s College em Charlotte, onde lecionou com aparente sucesso – aproximando-se, em 1993, do direito a posse de uma disciplina com um recorde numa cadeira efetiva recebendo um prêmio de “Professor do Ano” – até 1994, quando diferenças teológicas com a administração presbiteriana levaram-no a sua demissão. Mike desembarcou na *

Tradução de Eustáqui José e Rebeca Virna.

100


Universidade da Carolina do Norte em Charlotte como conferencista permanente, uma posição que conservou até sua aposentadoria em 2008. Mais do que um titular naquela função, ele estava profundamente envolvido na vida do Departamento e na Educação Universitária. Ele serviu, por exemplo, por muito tempo como coordenador na Universidade de Filosofia. Durante seus anos em Charlotte, Mike foi também um scholar muito ativo. Suas publicações incluíram: Transforming Experience: John Dewey’s Cultural Instrumentalism (Vanderbilt University Press, 1998); a “Introdução” para o Segundo volume do The Correspondence of John Dewey (InteLex, 2001); e numerosos artigos e entradas na enciclopédia sobre vários aspectos da filosofia americana e a situação da alta educação americana. Mike também administrou a website: www.obamaspragmatism.info. Na cena filosófica internacional, Mike serviu como conferencista na Universidade de Szeged, Hungria (2004). Também foi participante convidado em numerosas conferências internacionais. Entre os países que ele visitou como um embaixador da filosofia americana estão: Cuba, Brasil, Finlândia, Eslováquia, Polônia, Alemanha, República Tcheca, Hungria, Turquia, China e Coréia do Sul. Algumas das memórias de nossas viagens juntos – em adição, naturalmente, ao trabalho filosófico real – incluído um painel para um congresso em Porto Alegre, Brasil, onde Mike apreciou ter sua imagem mostrada em uma tela imensa sobre sua cabeça enquanto falava; uma viagem de ônibus por uma comunidade pobre perto de Xangai, quando Mike se molhou por ter sentando perto de uma janela quebrada; uma refeição silenciosa a base de carne de cervo sob o sol da meia noite de Helsinki; e a missão pelo melhor sorvete de todos em Cádiz.

Por vários anos, Mike foi muito ativo nas programações dos encontros anuais da Sociedade para o Avanço da Filosofia Americana. Ele eventualmente foi eleito para o cargo de secretário, posição que ocupou com bastante entusiasmo e dedicação de 2006 a 2010. Quando ele renunciou ano passado, foi homenageado pela Sociedade com o prêmio Josiah Royce por sua lealdade em muitos anos de serviço. Diferente de alguns filósofos cuja vida e trabalho parecem projetos distintos, Mike revelou muito de si em seus escritos. Seus tópicos eram os seus, não desenhados sobre o que estava ‘no ar’; seu estilo era pessoal, lento e cuidadoso. O que eu gostaria de fazer com meu tempo restante neste artigo era desenvolver um retrato parcial de Mike esboçando algumas de suas ideias filosóficas sobre temas como educação superior, mudanças políticas e renovação religiosa. 101


Começando pela educação superior. Mike escreveu uma revisão detalhada do meu volume sobre os primeiros anos da American Philosophical Association¹. Sua análise começou de forma nada promissora como segue: "Este não é um livro que todos deveriam ler";mas Mike salva a si mesmo quando ele continua escrevendo que é um livro que "qualquer pessoa que se preocupa com a

nossa

estudar cuidadosamente "².

profissão" e Podemos

como ela

chegou

considerar,

a sua

situação atual "deveria

por exemplo, seu resumo minucioso

da natureza e funcionamento das faculdades mais tradicionais:

A filosofia acadêmica nos Estados Unidos no século XIX foi concentrada com maior freqüência em pequenas universidades e estava confinada a um único curso ministrado pelo Ministro-presidente Protestante. E por "pequenas" e quero dizer realmente pequenas. As faculdades, em muitas das vezes não tinham mais do que meia dúzia de colegas professoras treinados e educados. Eles se viam como sendo transmissores de conhecimento, em vez de produtores originais do mesmo. A filosofia que era ensinada teve suas origens na Europa e foi uma síntese instável, em última analise, do empirismo, do Cristianismo e da metafísica de uma realidade que está além da experiência. Foi, acima de tudo, de orientação prática e anticética. Esse senso comum realista escocês, como era conhecido, foi considerado seguro e necessário para a educação de um cavalheiro cristão, que era o objetivo da faculdade produzir. A filosofia não era feita para sua própria causa; era para uma parte especial da comunidade, isto é, um segmento profissional e economicamente educado da sociedade. Isto apoiou a orientação evangélica da comunidade, permitindo seus professores e alunos abraçarem plenamente a evolução científica e tecnológica do momento³.

Este mundo acadêmico estava sendo incomodado pelo darwinismo, o mais alto criticismo bíblico, e pelas muitas mudanças na área industrial e social resultantes da Guerra Civil. Para uma deweyano como Mike este momento representou uma grande possibilidade de redesenhar um sistema de ensino superior - com a filosofia em seu núcleo - para desenvolver uma concepção alternativa do bem social. Sabemos, evidentemente, que as coisas sucederam de forma diferente; que os líderes (e talvez os membros) da Western Philosophical Association e da American Philosophical Association estavam

mais

interessados

numa investigação filosófica restrita e em desenvolver “trabalhos originais." Como Mike escreveu: A atenção para o ensino, a produção de livros didáticos, a transmissão das realizações filosóficas passadas tudo dentro de um entendimento convencional da cultura- eram o que eles estavam buscando ir além. Estas foram as ênfases das faculdades. Esses filósofos profissionais recentes estavam desenvolvendo um grupo de apoio que lhes permitissem ser uma parte da nova educação rigorosa e científica que emergia do fim do século XIX … essa profissão transformada valoraria a investigação original também através das salas de aula e fóruns públicos. O que a filosofia se tornou no século XX não foi um mero acidente; foi, na verdade, uma profissão bem pensada mesmo que alguns de nós agora questionem a sabedoria desta ação planejada. 4

102


Esta abdicação de uma função pública pela profissão filosófica incomodava Mike. Tanto porque retirava da filosofia uma tarefa social mais importante quanto privava aqueles que foram tão engajados de alguma ajuda filosófica. Passando agora para o trabalho de Mike na filosofia política, todos nós sabemos que ele encontrou suporte em Dewey para resolver os problemas da mudança social. (Duvido que ele tivesse encontrado ajuda semelhante em Platão

e

Aristóteles, caso

tivesse

continuado na

filosofia antiga). Um dos temas para o qual Mike retornava sempre era o comentário de Dewey de que ele não tinha tentado "praticizar a inteligência", mas sim "intelectualizar a prática”5. Mike tomou desta distinção que a prática social era o nosso interesse primário, embora muitas vezes ela seja impensada e míope. Nós agimos por hábito, mas às vezes nossas maneiras habituais de agir deixam de ser formas eficazes de satisfazer as nossas necessidades." Nestes casos, quando há"uma discrepância entre os nossos interesses e satisfações " precisamos examinar nossas práticas e encontrar uma melhor adequação entre meios e fins". Quando decidimos que a diferença entre os dois tornou-se muito grande devemos"repensar o que estamos fazendo", seguindo as sugestões de Dewey para "deliberação e experimentação6.

O

tema da complexidade da mudança inteligente foi outro

aspecto importante do

pensamento social de Mike. Ele observa repetidamente que nós temos o poder de modificar o nosso futuro: "não temos de pegar apenas o que vier". Nós podemos desenvolver nossos interesses usando "algumas

atividades para alcançar os

outros", e “

seu campo

de ação

indireta é

a

inteligência"7. Mike percebeu, no entanto, que mudança inteligente não significa necessariamente mudança pacífica: Eu cresci numa sociedade segregada. Lembro-me de escolas separadas para negros e brancos, banheiros e bebedouros separados, e confrontações raciais violentas. Não penso que o movimento pelos direitos civis dos anos cinqüenta e sessenta poderia ter o sucesso que teve em transformar aquela situação desesperada, deplorável sem alguma coisa a mais que discussão, comunicação e boa vontade. Nós precisávamos das confrontações, por vezes dolorosas, que geralmente eram ocasionadas pelas táticas agressivas do movimento pelos direitos civis.

Mike continua, contudo, que “educação, se estamos falando de educação de escola que ocorre por deliberação pública, é preferível à mudança violenta, particularmente se a violência é permitida prevalecer e deslocar os esforços deliberativos”8 O terceiro tema central é o foco de Mike há longo prazo.

Como ele escreve, o

objetivo de uma tecnologia política democrática é criar uma ordem social que liberta os indivíduos; 103


isto não é mera vitória política. “O objetivo da política democrática é "a ampla distribuição de poder, e não sua concentração. "Para Mike, o melhor meio disponível para distribuição de energia foi" Tornar inteligível a prática política "através da adoção de orientações estratégicas, tais como: (1) Ser mais cuidadoso com políticos idealistas e operativas, pois ambos separam ideais e métodos. (2) perceber que nem a situação existente nem uma suposta alternativa são absolutas. A situação atual foi originada pela atividade humana; portanto, pode ser reconstruída… (3) empregar o questionamento social tanto para identificar a prática a ser mudado (incluindo suas condições e consequências) como o fim a ser realizado em vista (4) Usar o questionamento social para criar um público… Públicos não são dados ou encontrados; eles são criados através da comunicação aberta e informada e pela auto-identificação no que se refere a necessidades e propósitos comuns. Públicos são feitos, não surgem, e são feitos através do questionamento. (5) Procurar por solos conciliadores – isto é comuns. (6) Empregar meios democráticos para realizar fins democráticos9.

Mike também escreveu sobre o lugar da filosofia nesse processo da mudança social inteligente: “a tarefa do filósofo social é encorajar o desenvolvimento do método da inteligência social; isto não é esgotar soluções 10. Aqui nós temos uma aparente – mas só aparente – ruptura com Dewey. Mike diz que não devemos tomar as sugestões de Dewey como sugestões para nós. O que nós precisamos fazer é abordar “os problemas do seu tempo e aprender a partir do método que ele empregou”.

Temos,

assim, de

filosofia cultivar métodos trabalhar em nossos

enfrentar dois compromissos distintos. "É a

para lidar

com os

problemas comuns".

respostas programáticas em Dewey é não

problemas

humanos;

Confundir estas compreender o

tarefa de

é tarefa

duas tarefas e

a

de todos procurar

seu método. "Ele falou sobre

situações particulares, usando seus métodos filosoficamente cultivados"11. Essas situações não são as nossas - embora sua abordagem continue a ser valiosa. Um terceiro Mike era o

da

tema que

religião.

desempenhou um grande

E aqui ele

também encontrou

a

papel na perspectiva filosófica de ajuda nos

trabalhos de

Dewey. 104


Talvez aproveitando sua experiência pessoal Mike escreveu sobre a preocupação de Dewey "com aqueles que tinham abandonado crenças tradicionais e não estavam nas igrejas, mas que ainda se consideravam - ou desejavam

ser - religiosos". Ele

os religiosos na auto-definição corrente e que Mike tentou, era

"a

submerso em momentos da

da

emancipação

experiência comum", o cultivo

de

viu um

um

papel importante

comunidade. O dos elementos

senso de

um todo

vida. Esta emancipação tem sido

a

para

que Dewey defendeu, religiosos dentro

maior que

é muitas

da vezes

tarefa do naturalismo –

que

Mike descreve como "oposição ao sobrenaturalismo, associação com a ciência e humanidade como parte integral da natureza"13- por pelo menos um século. Mike escreve que Dewey "estava

tentando encontrar um

meio

termo entre a

sua

sensibilidade secular e a herança religiosa convencional de seu público leitor"14. Para aqueles de uma atitude religiosa - entre os quais eu colocaria Mike - esta busca continua. Mike era um pragmatista que chegou atrasado para a filosofia; mas ele se tornou um filósofo que nos ajudou nesta busca. James Campbell Universidade de Toledo, EUA Março de 2011.

NOTAS

. James Campbell, A Thoughtful Profession: The Early Years of the American Philosophical Association (Chicago: Open Court, 2006). 2. “When Philosophy Became What It Is Today,” Transactions of the Charles S. Peirce Society, XLIII/2 (Spring 2007), pp. 375-381. Essa passagem aparece na p. 376. 3. Idem., pp. 376-377. 4. Ibid., pp. 378, 380. 5. Transforming Experience: John Dewey’s Cultural Instrumentalism (Nashville: Vanderbilt University Press, 1998), p. 5. Eldridge is drawing here from Charles Frankel, “John Dewey’s Social Philosophy,” New Studies in the Philosophy of John Dewey, ed. Steven M. Cahn (Hanover, NH: University Press of New England, 1977), pp. 3-44. 6. “Dewey on Race and Social Change,” Pragmatism and the Problem of Race, ed. Bill E. Lawson and Donald F. Koch, (Bloomington: Indiana University Press, 2004), pp. 11-21. Essa passagem aparece na p. 16. 7. Transforming Experience, p. 200.

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8. “Thick Democracy Too Much? Try Pragmatism Lite,” Education for a Democratic Society, ed. John Ryder and Gert-Rüdiger Wegmarshaus, (Amsterdam: Rodopi, 2007), pp. 121-129. Essa passagem aparece na p. 127. 9. Transforming Experience, pp. 113-114. 10. “Dewey on Race and Social Change,” p. 19. 11. “Dewey’s Limited Shelf Life: A Consumer Warning,” In Dewey’s Wake: Unfinished Work of Pragmatic Reconstruction, ed. William J. Gavin, (Albany: SUNY Press, 2003), pp. 25-39. Essa passagem aparece na p. 37. 12. Transforming Experience, pp. 147-148, 13. “Naturalism,” Blackwell Guide to American Philosophy, ed. Armen T. Marsoobian and John Ryder (Malden, MA: Blackwell, 2004), pp. 52-71. Essa passagem aparece na p. 52. 14. Transforming Experience, p. 168.

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Resenha

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Resenha DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro, Martins Fontes, 2010. – (Coleção Todas as Artes). 646 pág. por Inês Lacerda Araújo A arte é a mais universal e mais livre das formas de comunicação [...] é a extensão da função dos ritos e cerimônia unificadores dos homens [...] ela também conscientiza os homens de sua união uns com os outros na origem e no destino (John Dewey).

A publicação original da obra Arte como Experiência data de 1934. Finalmente o leitor brasileiro tem acesso às reflexões de Dewey sobre teoria da arte. Em geral toda a obra de Dewey recebe pouca atenção da parte de editores, reflexo de críticas apressadas que têm sido feitas ao pensamento de Dewey em particular, e ao pragmatismo norte-americano de modo geral. A revitalização da escola no Brasil se deve a uma apreciação mais isenta de professores e intelectuais com relação ao pragmatismo. Grupos de estudo sobre James, Dewey, e sobre um dos representantes mais recentes do movimento, R. Rorty vêm contribuindo para esse despertar. O mesmo pode-se dizer da Revista Redescrições, publicação quadrimestral do GT Pragmatismo e Filosofia Americana. Em tradução competente, a longa obra de Dewey vem acompanhada de uma introdução de Abraham Kaplan (1919-1993), e, no final de notas e referências do próprio autor, o que soma 646 páginas. Kaplan se refere à má compreensão que teve o pragmatismo nos EUA, confundido com oportunismo, busca de sucesso material, quando é um movimento filosófico de renovação, que tem em Dewey um de seus expoentes. Atentar para as consequências e mostrar a interação entre organismo e ambiente, essas são as propostas de Dewey, longe de uma filosofia do interesse material imediato do homem de negócios norte-americano. A arte faz parte, ela integra os propósitos e valores da vida, nasce dos processos de interação entre o organismo e o meio, a que Dewey chama de experiência. Na introdução, A. Kaplan mostra que Dewey combate os dualismos, pois vê uma continuidade entre duplos, entre díades, como homem e ambiente, natureza e sociedade, a arte e a ciência. A experiência ativa e dinâmica é a base para arte. Kaplan enxerta seus próprios exemplos, como quando expõe as razões que levam Dewey para argumentar sobre a correlação entre matéria e forma. Ressalta que Dewey analisa o “artístico” de preferência ao “estético” ao preservar o distanciamento com que devem ser empregados os princípios da interpretação da arte, que não serve a propósitos políticos, não é o meramente útil. Afasta tanto as interpretações realistas, quanto as que reduzem a arte à função representativa. Nada mais estranho ao pragmatismo, analisa Kaplan, do que 108


a concepção vulgar de que não passa de um utilitarismo e que, portanto, nada teria a dizer sobre arte, uma vez que ela é inútil. Pelo contrário, Dewey reserva à arte um lugar especial na construção de seu pensamento e de suas obras, e este lugar é o da experiência, conceito chave para a compreensão de suas ideias. No prefácio Dewey informa que a obra é resultado de uma série de dez conferências que pronunciou na Universidade de Harvard. Os textos são longos, com numerosos exemplos, bastante expositivos, e que vão num crescendo: as noções e conceitos se explicitam e se firmam a cada um dos catorze capítulos em que a obra foi organizada. É preciso compreender seu ponto de partida, ao qual ele recorre ao longo de toda a obra. Por isso é fundamental ler “A criatura viva” (capítulo 1), pois nele vem exposta a tese central de Dewey. Toda criatura viva recebe e sofre a influência do meio, e a isso Dewey chamou de experiência. Há uma continuidade entre os eventos e atos do cotidiano. A arte é também uma forma de experiência que alcança dimensão estética. O Partenon, por exemplo, representa a cultura grega, seus atos e experiências; o que se vê em museus foi algo que serviu a povos, fruto de sua habilidade, de seus cultos, danças, rituais, música, arquitetura, inseparáveis de sua vida. Os museus serviram a princípio para ostentar o poder, em geral de impérios. Mais recentemente, a arte se transforma em moeda de troca pelos colecionadores. Com isso os objetos artísticos ficam “desvinculados da experiência comum e servem de insígnias de bom gosto e atestados de uma cultura especial” (p. 60); daí o abismo entre os dois tipos de experiência, a comum e a estética, vem daí a falsa assunção de que arte é contemplação. A proposta de Dewey é reverter essas noções e situações, a arte, diz ele, liga-se às experiências cotidianas. Sua teoria indaga acerca da natureza da produção artística, como ela surge e evolui a partir de ações comuns e necessárias à vida, à adaptação ao meio, à satisfação de necessidades. Há uma ordem, um equilíbrio das energias, quando o organismo chega a essa estabilidade, e “traz em si os germes de uma consumação semelhante ao estético” (p.77). Significados se incorporam aos objetos criados, o artista neles vê potencialidades, passa a cultiválos. Dewey recorre com frequência à diferença entre arte e ciência, esta se ocupa com situações e problemas em que contam a observação, o pensamento indaga e investiga. Em contraste, a experiência estética brota da ordenação segundo padrões que surgem na interação entre organismo e meio. A solução de tensões e conflitos leva a uma harmonia, a um prazer quando há uma adaptação.

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A vida fornece as fontes da experiência estética; a energia, a prontidão, toda essa vitalidade é gerada pela troca ativa e alerta com o mundo: “a experiência é a arte em estado germinal” (p.84). Por isso não tem lugar na teoria estética de Dewey nada de transcendente e etéreo. No capítulo 2 ele vai às raízes da divisão corpo/mente, sensível/inteligível, inferior/superior. Filósofos como Platão, e moralistas desprezam os sentidos, o gozo, o impulso e os apetites. Ora, os sentidos abrem para a atividade, para a lida com os materiais sensíveis que são meios para a ação, na qual a mente tem um papel ativo, ela extrai e preserva significados e valores que surgem daquela interação. Não há por que temer as experiências vivas e sufocá-las por debaixo do intelecto e da mente puros. No homem, tempo e espaço fazem parte de necessidades que tem a vida consciente de transformar os estímulos orgânicos em meios para expressar e comunicar. A arte usa as energias e materiais da natureza, amplia a vida, une significado com impulso e necessidades, produção de artefatos, sendo, desde os povos antigos um norteador da humanidade. A experiência completa inclui o fazer, o ver, o expressar. Dewey combate a hostilidade e o preconceito contra a arte útil e contra as práticas e técnicas consideradas inferiores, que reserva a pura contemplação às classes superiores. Segundo ele, a cultura avançou juntamente com os processos vitais, com as experiências com o meio e a natureza. Na obra de Emerson e Thoreau, na arquitetura há essa relação sensorial; na poesia de Keats, não há separação entre sensibilidade, imaginação, raciocínio, intelecto e intuição. Há experiências singulares há um fluxo. O mesmo se dá com as obras de arte, há unidade, há especificidade. E isso é “ter uma experiência”, tema do capítulo 3. Ideias não são algo fluido, puramente mental, elas formam um fluxo como fases afetivas e práticas, expressas em símbolos. A qualidade estética não é exterior nem diversa do prático, nem do intelectual, pertence aos movimentos vitais, algo emocional e parte integrante de uma experiência complexa. A interação criatura/meio resulta em adaptação, há um padrão, há uma estrutura, em que a ação expressa e amplia as experiências, do que resulta inteligência, habilidade, sensibilidade. E tudo isso tem a ver com o artístico e o estético. A arte como produto e servi à apreciação, ao prazer estético. Esse resultado distingue a arte do fazer técnico e da produção espontânea. O artista controla o que faz e dirige sua produção a alguém, julga o efeito que a percepção da obra pode produzir. Na experiência intelectual conta a relação entre partes para chegar a uma conclusão. Já na estética há um crescendo, um ritmo com um desfecho, que resume uma etapa e leva a outra. Por isso Dewey valoriza “O ato de expressão” (capítulo 4), que nasce de nossas impulsões, da busca de satisfação, da superação de obstáculos, os quais, com a resistência do meio, levam a ter que refletir para agir, guiar-se por objetivos, planejar a ação. As coisas se transformam em meios, 110


assumem significados, e são expressas. Na expressão artística há construção, controle, tempo de criação, uso do material que o artista acumulou e que a emoção seleciona em atos que abstraem nos objetos algo comum. É isso que confere à arte, universalidade. Sem emoção, não há arte, apenas habilidade, mas essa emoção leva em conta a proporção, ordenação e equilíbrio. Disso resulta melhoria para uma comunidade. A disputa de teorias estéticas entre as que defendem a pura expressão subjetiva e as que defendem que arte é pura representação de algo externo, não faz sentido. Ambas as teorias são criticadas por Dewey no capítulo 5. O significado na arte reside na expressão de uma experiência, uma obra de arte “constitui uma experiência” (p.184) na medida em que realiza imediatamente uma intenção. Dewey exemplifica com uma carta em que Van Gogh descreve para seu irmão a paisagem que pretende representar. O resultado, o quadro, expressa em cores e pinceladas o que na paisagem impressionou o pintor. Ele põe na obra suas experiências, segue um ritmo, o que ele vê é esteticamente modificado e não representado como se fosse uma foto do real. O artista tem do objeto uma experiência nova, ele revê ou re-apresenta no objeto um tema com significado próprio, resultado de sua “visão imaginativa”. Ele pode traduzir o objeto em termos de planos, fusão de cores, mesmo na arte abstrata, nela também há cor, extensão, ritmo, movimento. Cézanne reordena a percepção, escolhe o que será expresso. E isso sem perder a referência ao mundo, às coisas, suas qualidades e estruturas. Dewey critica também o associacionismo que parte da sensação como fonte do conhecimento e da arte. A visão é sempre uma percepção; reconhecer e ligar objetos faz parte essencial dos processos vitais que a arte renova e transforma em novas experiências de vida. “No fim das contas, as obras de arte são os únicos meios de comunicação completa e desobstruída entre os homens, os únicos passíveis de ocorrer em um mundo cheio de abismos e muralhas que restringem a comunhão da experiência” (DEWEY, p.213). Cada arte tem um tipo de linguagem e de comunicação entre o objeto, o artista e o público. O material produz um novo modo de ver, sentir e apreciar. Por isso não há separação entre a matéria e a forma, defende Dewey no capítulo 6, sobre substância e forma. O tema não se confunde com a substância ou matéria. Se o tema é uma paisagem, o que ela evoca são emoções, a forma ou veículo transformam o objeto em algo novo. A crítica artística pode e deve analisar matéria e forma como distintas, mas sem esquecer que estão profundamente ligadas. A separação entre matéria e forma remonta às filosofias antigas, Platão considerava a forma como essencial, e a matéria como mutável, caótica, sensível. A verdadeira natureza das coisas é 111


inteligível. A teoria estética, influenciada por Platão e Aristóteles, contrapõe matéria incompleta, à forma, completa e coerente. Objetos industriais têm forma adaptada ao uso, a função estética não é a primeira escolha do designer, há que considerar a finalidade e os modos de composição ou construção. Na obra de arte as relações e formas se combinam com os materiais ou objetos relacionados, são inseparáveis, a não ser por uma análise posterior. Qualidades sensórias na arte são expansíveis, não se prestam para o meramente decorativo. Na arte há seleção, organização, estímulos conectados em um quadro de referencial que despertam a emoção, às vezes admiração. Desrespeitar isso leva ao grotesco ou vulgar. Às vezes o que se considera matéria em uma obra de arte, serve como forma em outra. A relação entre elas é a mesma que existe entre sofrer ou ficar sujeito a uma ação, de um lado, e agir de outro lado. A interação entre ser vivo e o meio, para Dewey, é o parâmetro por excelência, tanto para conhecer, como para agir, tanto para criar arte e objetos de uso, como para transmitir e comunicar significados. A obra de arte “mantém viva, simplesmente por ser uma experiência plena e intensa, a capacidade de vivenciar o mundo comum em sua plenitude. E o faz reduzindo a matéria-prima dessa experiência à matéria ordenada pela forma” (p. 257). A forma tem uma “história natural”, (capítulo 7), ela resulta de ações e reações as mais diversas na natureza e na sociedade, onde houver integração de forças que conduzem a uma realização plena da experiência de um evento ou situação, há forma. Na arte a forma expressa a tensão, antecipação e resistência, próprios de toda ação inteligente, que Dewey resume no conceito de ritmo, presente em todas as obras de arte. O ritmo vem da contínua e ordenada variação de mudanças, energias que resistem uma à outra, pausas, equilíbrio e simetrias. Todas essas qualidades são próprias da expressão estética. No canto, na música e no teatro, essas emoções são diretamente despertadas em uma plateia, outras artes são duradouras, como a arquitetura e as artes plásticas. Quando um ritmo se impõe, há criação, a tensão entre homem e meio diminui. Esse dinamismo, a arte não pode perder. O eu ativo impõe ritmo tanto nas artes relacionadas ao espaço, como as relacionadas ao tempo, pois o ritmo não é mecânico, e sim dinâmico, organizador de forças e energias, como ele mostra no capítulo 8 (“A organização das energias”). O ritmo traz a novidade, não aquela facilmente digerível dos best-sellers, mas as variações que criam novos padrões. Nada limita a arte, exceto o material e a intenção do artista. Entre todas elas há uma substância comum, o fato de seu produto ser matéria na qual foram organizadas energias distribuídas no espaço e no tempo. Estes não existem, 112


não são entidades em si e fixas, o que há é o movimento das coisas, agir e reagir de um organismo vivo com seu meio. Fica evidente o naturalismo deweyano. Depois de mostrar o que há em comum, nosso autor se volta para as peculiaridades e particularidades das artes. Ele é contra classificações, todas elas restringem algo ou são inapropriadas. Assim, diferir as artes visuais das auditivas, as espaciais das temporais, as representativas das não representativas, qualificativos como superior ou inferior, delimitar entre o que é prosa e o que é poesia – são rótulos que empobrecem as diferentes manifestações artísticas. As diferenças existem, mas não os compartimentos. A persistência e a expressão de estabilidade da vida são próprias à arquitetura, na escultura há uma organicidade, na pintura, luz, cor e um largo poder de expressão. A prosa de Dewey quase se torna literária neste capítulo, quando expõe a força da música, o impacto da vibração desta que é a arte mais disseminada e com ampla gama de meios. A literatura expressa uma “força intelectual superior”, as palavras têm uma “carga quase infinita de implicações e ressonâncias” (p.422), e na poesia assumem “uma energia de expressão quase explosiva” (p.423). Enfim cada uma das artes explora a energia própria do material usado como meio de expressão. Dewey critica as concepções filosóficas que consideram haver uma profunda escansão entre mente, eu, espírito e tudo o que é corpóreo e material. Para ele não há um eu puro, mas sim atividades da mente com suas capacidades exploratórias; o eu não possui propriedades intrínsecas, todas as suas operações se devem à interação entre organismo e meio. A distinção alma/corpo, a distinção entre a classe intelectual que contempla as ideias, e os artesãos que lidam com a técnica, está na base da teoria estética que reduz a arte à pura contemplação racional, distante da ação e da emoção. Para Dewey a arte envolve elementos intelectuais, emocionais e os da sensibilidade. Não há antítese entre práticas e usos, os artesãos se expressam esteticamente, e até mesmo os produtos industriais podem ter qualidade estética. A obra de arte resulta da imaginação e funciona imaginativamente, alarga e concentra a experiência, assim inicia Dewey o capítulo 12, chamado “O desafio à filosofia”. As filosofias da estética devem levar em conta tanto os aspectos da imaginação como os do controle, tanto as emoções, quanto experiências com o objeto. Assim, a arte não pode ser definida unicamente pelo aspecto lúdico, há a livre criação do eu, mas ela é ordenada pelo material que só se torna arte pela fusão do subjetivo com o objetivo ao produzir uma nova experiência. Novamente Dewey se posiciona contra a tese da representação do objeto pela mente, e contra a tese de que a arte é conhecimento. A arte transforma o saber pela visão imaginativa e emocional, ela é expressão. 113


O capítulo que merece ser lido por todos que se dedicam à crítica da arte, é o 13 (“Crítica e percepção”). Dewey define com sensibilidade e inteligência a função da crítica e os modos mais adequados de exercê-la. É preciso preparo, “uma formação rica e uma visão disciplinada” (p.512). Há os que se escandalizam e não conseguem lidar com novas modalidades de expressão, os que confundem técnica com forma, os que confiam apenas em sua impressão pessoal. O crítico deve ser cauteloso ao formular seus juízos, sincero, bem informado; ele detalha, unifica, analisa, conhece as diversas tradições e procura evitar que a predileção pessoal e partidarismo atrapalhem seu julgamento. Deve evitar todo e qualquer reducionismo, o ideológico, o sociológico, o político. O uso de categorias externas à arte, como as psicológicas, e explicar a obra pela biografia, também prejudicam a crítica da arte. No último capítulo “Arte e civilização”, Dewey eleva o tom, enaltece a arte, a qual, como expressão, “é uma manifestação, um registro e uma celebração da vida de uma civilização, um meio para promover seu desenvolvimento e também o juízo supremo sobre a qualidade dessa civilização” (p.551). Retorna ao tema das atividades de que nascem as artes, imbricadas com as necessidades e as condições de experiências vitais. Percorre as artes de diversas civilizações, desde a egípcia e a grega, passando pelo medievo. Neste período o poder de agregação da religião permitiu um grande desenvolvimento das artes. É pela arte que se entra nos componentes mais profundos de civilizações remotas e estranhas à nossa experiência, o que leva a romper barreiras e permitir a comunicação entre culturas. A marca da modernidade são os produtos industriais que podem ocasionar revoluções estéticas pela melhor adaptação às necessidades. Resta a questão da produção que visa o lucro privado. Dewey defende a participação dos trabalhadores “na produção e na administração social dos bens que ele produz” (p.576) o que mudaria o conteúdo da experiência que entra na criação de objetos. Isso mostra que a arte tem função social, e como tal, deve ser incorporada ao sistema de relações sociais. O poder da produção artística e intelectual é maior do que o poder da reflexão moral. Pelo poder da imaginação, ao despertar desejos e emoções, a arte vai além das evidências, transforma e transcende hábitos arraigados. Por todas essas novidades que traz a reflexão de Dewey sobre arte como experiência, aliada a numerosos exemplos de obras e de artistas, vale a leitura. Além disso, trata-se de uma concepção original, calcada no pragmatismo, no naturalismo e no evolucionismo. O conceito chave de sua filosofia pragmatista é o de experiência, sem ela não há vida, sem ela não há arte.

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana

Ano II, número 4, 2011 ISSN: 1984-7157

Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro

O filósofo Michael Linn Eldridge (1941-2010)

www.gtdepragmatismo.com

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