Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano II, número 2, 2010 ISSN: 1984-7157
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Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA) Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva - UFPI Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Foto da capa: Mirian Carvalho Lopes
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Revista Rede s criçõe s Revista on line do GT de Pragm ati s m o e Filosofia Norte- Americana
Ano II, número 2, 2010
Sumário Editorial
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Artigos: 1. Nancy Fraser e a teoria da justiça na contemporaneidade – Susana de Castro
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2. A possibilidade de políticas de reconhecimento no pensamento de Ronald Dworkin: uma resposta à Nancy Fraser – Henrique Brum
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3. Uma análise crítica do idealismo de Axel Honneth em defesa da democrática paridade participativa de Nancy Fraser – Frederico Graniço
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4.Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça -Antoine Lousao 37 5. Há solução para o antagonismo entre redistribuição e reconhecimento?- Príscila Teixeira de Carvalho 57
Resenha: RORTY, Richard. Uma ética laica. Trad. Mirella Traversin Martino. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2010. – por Eustáquio José da Silva 73
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Editorial Este segundo número do segundo ano da Redescrições é o primeiro número temático da revista. Os artigos aqui presentes giram em torno das propostas teóricas da filósofa norte-americana Nancy Fraser, especialista em filosofia política contemporânea e feminismo, e professora de ciência política e ciência social do New School for Social Research em Nova Iorque. Grande parte dos artigos deste número gira em torno da questão da justiça distributiva versus reconhecimento e do debate de Fraser com Axel Honneth sobre esse tema. Mas, além disso, os autores deste número trataram também de relacionar questões de Fraser com outros autores contemporâneos como Amartya Sen, Charles Taylor ou Ronald Dworkin. Esperamos manter essa prática de fazer um número temático por ano, deixando os outros três para temática livre desde que relacionada à linha da revista. Boa leitura!
Os editores
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Artigos
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NANCY FRASER E A TEORIA DA JUSTIÇA NA CONTEMPORANEIDADE Por Susana de Castro Resumo: Neste artigo a autora mapeia o debate entre teorias políticas contemporâneas da justiça a partir dos conceitos chaves de reconhecimento e distribuição. Mostra a teoria normativa da justiça de Nancy Fraser, chamada de ‘paridade participativa’. Esta Teoria reúne elementos distributivos e de reconhecimento. No final, aborda as críticas de Zerilli às teorias feministas universalistas e a filiação de Fraser ao pragmatismo. Palavras chaves: reconhecimento, distribuição, feminismo, justiça. Abstract: In this paper the author maps the debate in contemporary political theories about justice through the key concepts of recognition and distribution. It shows the normative theory of justice by Nancy Fraser, called ‘parity of participation’. This theory aggregates elements of both recognition and distribution’ theories. At the end, it deals with the critics of Zerillli about the universalistic feminist theories and shows the affiliation of Fraser with pragmatism. Key-words: recognition, distribution, feminism, justice. Nancy Fraser, ao lado de Seyla Benhabib, Iris Young e outras feministas americanas estão preocupadas em situar as questões de gênero dentro do universo maior acerca dos impasses da justiça no mundo atual, principalmente nas democracias ocidentais. Em seus ensaios Fraser faz um mapeamento preciso de quais seriam as principais correntes e questões da filosofia política e da teoria da justiça atuais. 1. Redistribuição versus reconhecimento As duas principais correntes de filosofia política contemporâneas são as encabeçadas por John Rawls e Axel Honneth. O primeiro, J. Ralws, propõe com sua obra principal, Uma Teoria da Justiça, um modelo de organização social e política liberal centrado na noção de justiça redistributiva. Para Rawls, uma sociedade bem ordenada é aquela na qual existam mecanismos compensatórios e regulatórios legais capazes de diminuir as desigualdades econômicas e igualar as oportunidades de emprego. Axel Honneth, autor de Luta por reconhecimento, a gramática moral dos conflitos sociais, traz a questão da justiça para o plano psicológico. Segundo Honneth, a questão central da justiça não é o da distribuição econômica, mas sim a do ‘reconhecimento’. O cerne da 6
questão do reconhecimento é a noção de identidade. Para Honneth está claro que a identidade de cada um é construída pela aceitação/reconhecimento do outro. Se um grupo ou um indivíduo não tem sua identidade, seu modo de ser, respeitado pelo grupo hegemônico isso automaticamente configura uma situação de injustiça. As questões de justiça das sociedades contemporâneas tendem a se pautar mais por revindicações de reconhecimento cultural do que por reivindicações salariais ou redistributivas. Hoje, os grupos sociais estão cada vez mais diferenciados e com uma pauta de reivindicações específicas. Os movimentos das mulheres, dos negros e dos homossexuais, para citar apenas os três mais conhecidos, exigem que a sociedade os reconheça como cidadãos iguais, com iguais direitos de casamento, educação, trabalho, que os grupos culturais hegemônicos. Para Fraser, essa luta pelo reconhecimento identitário, ainda que legítima e necessária, favorece a fragmentação e o enfraquecimento do movimento político mais amplo, que almeja combater as formas de exploração capitalista. Propõe uma união das questões distributivas com as questões culturais. Segundo Fraser, vigora na atualidade um sentimento de que as questões de distribuição são questões que dizem respeito somente a questões morais e de política econômica, e as questões de reconhecimento dizem respeito somente a questões éticas, de busca de felicidade pessoal. O defensor de cada posição reivindica uma prioridade do seu tema sobre o outro e acredita que qualquer um que queira unificar as duas questões padecerá de “esquizofrenia filosófica” (Fraser, 2007, p. 105). Para Fraser é possível unir as duas questões sem cair em um estado de “esquizofrenia”. É importante frisar que Fraser não defende em seus textos um modelo distributivo liberal, mas sim uma via media, entre as políticas socialistas transformadoras e as políticas reformistas liberais. Esta via media é chamada por ela de ‘reforma não reformista’ (Fraser, 2003, p. 78 e seg.). Para Fraser está claro que as injustiças possuem duas faces, ou duas dimensões, uma dimensão econômica e outra cultural, ou, em outras palavras, uma dimensão de classe e outra de status. Assim, a mulher dona de casa que não recebe nenhum tipo de remuneração por seu trabalho doméstico sofre um tipo de exploração econômica, mas ao mesmo tempo, ela sofre os efeitos da dominação cultural masculina que desvaloriza o trabalho doméstico por considerá-lo inferior ao outros tipos de trabalho exercidos pelos homens. A mesma coisa podemos dizer da situação do homossexual. Em um primeiro momento, diríamos que a maior injustiça que o homossexual sofre é a injustiça cultural ou de status, pois os valores heterossexuais são predominantes na sociedade. Seja na representação da família ideal e do relacionamento afetivo da propaganda, seja na própria legislação sobre as uniões afetivas, o modelo difundido de relacionamento afetivo e de preferência 7
sexual é predominantemente o heterossexual. Mas, por outro lado, há também uma dimensão econômica envolvida. O profissional bem remunerado que resolve assumir a sua preferência sexual sabe que corre o risco de ser preterido quando surgirem chances de promoção. A bidimensionalidade das questões de injustiça perpassam todos os casos. Em função do reconhecimento dessa bidimensionalidade intrínseca, Fraser propõe um modelo de paridade participativa (Fraser, 2003, 2007). 2. A paridade participativa
Segundo Fraser, a questão do reconhecimento cultural de grupos minoritários1 não é uma questão ética, mas sim moral. Ela não diz respeito à busca pessoal pela felicidade e auto-realização, mas sim ao desenho institucional justo. O desenho institucional, isto é, as normas e regras que organizam as instituições públicas, quaisquer que elas sejam, só será justo na medida em que todos os segmentos da sociedade, sejam eles de grupo majoritários ou de grupos minoritários, tenham a possibilidade de participar de maneira igualitária na formulação dessas regras. Essa é a única forma de combater os padrões culturais excludentes que perpassam as regras das instituições. Não compete aos formuladores de política pública interferir nas crenças e no imaginário dos indivíduos; eles podem ser tão homofóbicos, racistas ou sexistas quanto queiram, no entanto os padrões culturais excludentes devem ser banidos das instituições. Esse banimento dos padrões culturais excludentes não se dará apenas por sabedoria e benevolência dos dirigentes e gestores públicos. Na medida em que os cargos públicos de representação sejam ocupados exclusivamente pelos segmentos hegemônicos da população, a tendência é que não haja a moralização das regras institucionais. Fraser (2007, p. 36) deixa claro que seu modelo moral de reconhecimento não invalida as reivindicações de justiça econômica. Assim, estabelece que para que seja possível criar um regime de paridade participativa é necessário tanto que certas condições objetivas, quanto certas condições intersubjetivas, sejam satisfeitas. As condições objetivas são aquelas que excluem níveis de dependência econômica e desigualdade que impeçam a igualdade de participação, isto é, que excluem arranjos sociais que institucionalizam a privação, as grandes disparidades de renda, riqueza, e tempo de lazer, impedindo a possibilidade de algumas pessoas de interagirem com outras como iguais. 1
Até que ponto podemos chamar as mulheres, que compõe a metade da população mundial, de grupo minoritário? Essa é uma questão controversa. Porém é correto falar que do ponto de vista do poder, esse quantitativo não influencia em nada.
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A condição subjetiva para a igualdade de participação requer que os padrões institucionalizados de valores culturais expressem igual respeito por todos os participantes e garanta a oportunidade igual para que cada qual alcance a estima social. Ambas as condições são necessárias para a paridade de participação. A satisfação de apenas uma delas não é suficiente. Fraser defende uma concepção bidimensional da justiça orientada para a norma da paridade de participação, que leve em consideração tanto o aspecto econômico, quanto o cultural da justiça, mas sem reduzir um ao outro. 3. Feminismo e capitalismo Em um artigo recente, “Feminism, capitalism and the cunning of history” (NLR, 56, 2009), Fraser parece atribuir ao feminismo identitário, ou culturalista, o da chamada ‘segunda onda’ do feminismo, um papel atuante na fase neoliberal do capitalista. Segundo Fraser a segundo onda do feminismo surgiu no início da década de 70, dentro do contexto de crítica ao capitalismo estatal. Por capitalismo estatal, ela entende os Estados do bem estar social que surgiram após a segunda grande guerra nos chamados países do ‘primeiro mundo’. Tais economias e sociedades do bem estar possuíam quatro grandes características: o economismo, isto é, a ideia de que o poder público político deveria regular o mercado econômico; o androcentrismo, isto é, a ideia de que as políticas salariais deveriam estar voltadas para o homem trabalhador que com o seu salário deveria ser capaz de sustentar toda a família; o estatismo, isto é, a visão empresarial estatal do Estado, provido de um número grande de profissionais tecnocratas que determinavam as políticas públicas econômicas; e, por último o westphalianismo, isto é, a defesa de nações-Estados com suas fronteiras nacionais bem claras que definia um padrão de cidadania próprio. A segunda onda do feminismo vai rejeitar todos esses quatro pilares do capitalismo estatal. Contra o economismo, dirá que não existem apenas injustiças econômicas, mas o pessoal também é político e sujeito a relações de injustiça. Contra o androcentrismo, denunciará a divisão de gênero do trabalho que exclui as mulheres das profissões melhor remuneradas e não reconhece a necessidade de remuneração pelo serviço doméstico. Contra o estatismo, revindica e cria novas formas de agir e fazer política que não perpassam pelos escritórios e departamentos do Estado. Essa novas formas de fazer política estavam inseridas dentro do contexto político da contracultura que reivindicava uma autonomia de ação política e a diminuição da presença do Estado nas formas de organização sociais 9
e privadas. Contra o westphalianismo, reivindicava uma justiça transnacional, e uma solidariedade feminina internacional (‘sistehood is global’). Em que pese a conveniência dessas críticas ao capitalismo estatal do bem estar social, ela abriu espaço, e foi coetânea, para o ‘novo espírito do capitalismo’ da década de 80. Capitaneados pelos governos de Reagan, nos Estados Unidos, e de Thatcher, na Inglaterra, essa novo espírito promoveu reformas que desmantelaram a rede de segurança social e previdenciária do governo. Promoveu, além disso, a desregulamentação do mercado e a privatização das empresas estatais. Esse modelo espalhou-se pelo mundo, obrigando os países endividados a realizar reformas que livrassem o Estado de encargos sociais. Segundo Fraser, as críticas acima referidas do feminismo ao capitalismo do bem estar social foram resignificadas pelo novo espírito desregulador e privatista do novo capitalismo de tal forma que sua força emancipadora foi abalada. Assim, por exemplo, a crítica ao sistema salarial centrado no homem (androcentrismo) como o único provedor foi reapropriada de modo a abrir espaços no mercado de trabalho às mulheres. Ocorre que o espaço de trabalho cedido foi o de trabalhos subalternos e mal pagos na indústria e no comércio. Por outro lado, a crítica ao economismo levou os movimentos feministas a privilegiarem as questões do reconhecimento e da cultura. Ao descartar a relevância em pé de igualdade das questões de distribuição, o feminismo tornou-se uma discussão acadêmica e pouco relacionada com as desigualdades econômicas e injustiças das mulheres ao redor do mundo. Neste ponto Fraser compartilha da crítica de Richard Rorty (1999) ao culturalismo de uma maneira geral, por este ter se afastado do movimento dos trabalhadores (ver Fraser, 2007, p. 15), mas ao contrário deste, reconhece que a questão da justiça hoje não se reduz a questão da distribuição, mas também está associada à luta pelo reconhecimento, como expusemos acima. 4.
Pragmatismo democrático-feminista-socialista Em “Rumo a uma teoria feminista do julgamento” (2009), Linda Zerilli defende o
feminismo multiculturalista contra o que ela chama de novo universalismo feminista. Seus principais alvos são as filósofas Martha Nussbaum e Seyla Benhabib, no entanto, é evidente que a proposta de um (feminismo) reconhecimento moral de Fraser poderia ter sido muito bem alvo dessa mesma crítica. Segundo Zerilli o problema das novas universalistas é o de acreditarem que precisam de uma teoria transcontextual de julgamento para que possam dar força políticas às suas conclusões e 10
reivindicações. Temem cair no relativismo se assumirem uma postura anti-essencialista e cultural, mas, segundo Zerilli, não alcançam a almejada objetividade e imparcialidade de seus julgamentos: (. . .) o etnocentrismo reaparece na visão antiessencialista da cultura desses novos universalistas sob a forma de contextos locais que se tornaram supérfluos a partir do ponto de vista de qualquer articulação de critérios normativos comuns. (2009, p.99)
Na visão de Zerilli, portanto, qualquer esforço de normatividade não escapará ao ímpeto de assumir um só critério de escolha, e ao fazer isso estará necessariamente deixando de lado as questões que não se encaixem nesse critério. Segundo Zerilli, porém, nosso julgamento não ficará paralisado diante da impossibilidade de assumir critérios transcontextuais que eliminem o risco do relativismo, desde que aceitemos uma validade provisória para nossos julgamentos, isto é, que eles estejam sujeitos a críticas e aceitação dentro da arena de disputa política. Fraser afirma (2007, p. 120) que a paridade participativa é universalista, seja porque inclui todos os parceiros na interação, seja por que pressupõe igual valor moral dos seres humanos. Esses são critérios mínimos que não comprometem o conteúdo do julgamento moral. Esse conteúdo não pode ser definido a priori. O que define o tipo de reconhecimento a ser reivindicado em um campo de forças políticas e sociais depende, para Fraser, da abordagem do problema com o “espírito de um pragmatismo informado pelas compreensões da teoria social” (idem, ibidem). Em outras palavras, é preciso sempre contextualizar o debate e fazer uso das informações correntes sobre o problema em jogo. Para o pragmatista, nesse sentido, tudo depende do que as pessoas são reconhecidas hoje em dia necessitam a fim de serem capazes de participar como parceiros na vida social. E não há razão para assumir que todas elas necessitem da mesma coisa em qualquer contexto Em alguns casos, elas podem necessitar de serem aliviadas de excessiva distinção atribuída ou construída, Em outros casos, elas podem necessitar de que suas particularidades, até agora não reconhecidas, sejam levadas em consideração. ( 2007, p. 123)
Em “Solidarity or Singularity? Rorty between Romanticism and Technocracy” (1989), Fraser define melhor o que ela adota no seu pensamento da filosofia pragmatista. No final desse ensaio ela fornece uma receita para o que seria um pragmatismo democrático–socialista-feminista e fala sobre cada um de seus ingredientes. Apesar de neste ensaio criticar a posição liberal e androcêntrica de Rorty, aceita um grau zero de pragmatismo como importante. Segundo ela, o pragmatismo é uma visão antiessencialista com respeito aos conceitos da filosofia tradicional, tais como razão, verdade, natureza humana e moralidade. O pragmatismo considera que tais categorias são construídas histórica e socialmente. Mas é preciso radicalizar a democracia e não acreditar que suas instituições sejam autorreguladoras e imparciais, posição adotada pelo meliorismo pragmatista.
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Conclusão: A despeito de sua reivindicação de um universalismo moral, não penso que Fraser discorde essencialmente da Zerilli de que não podemos assumir uma posição transcontextual de julgamento, já que ela adota a crítica ao essencialismo do pragmatismo e seu método de contextualização dos problemas. Por outro lado, me parece que a sua visão bidimensional da justiça, a visão segundo a qual a paridade participativa é o critério de justiça que pode abrigar tanto as condições objetivas da justiça distributiva, quanto as condições intersubjetivas do reconhecimento é uma posição mais apropriada do que a pura política da justiça como reconhecimento do feminismo culturalista. Em países como o Brasil, com enormes disparidades econômicas, seria uma grande alienação acharmos que a questão cultural se sobrepõe à econômica. Referências bibliográficas: FRASER, Nancy. “Solidarity or Singularity? Richard Rorty between Romanticism and Technocracy”. In: Fraser, Nancy. Unruly Practices: Power, Discourse, and Gender in Contemporary Social Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989. P. 93- 108. -------------------. “Reconhecimento sem ética?”. Trad. Ana C. F. Lima e Mariana P. Fraga Assis. In: Lua Nova, 70. São Paulo, 2007. P. 101-138. ---------------------. “Feminism, Capitalism and the Cunning of History”. In: New Left Review, 56. 2009. P. 97-117. --------------------. “Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation”. In: Fraser, Nancy e Honneth, Axel. Redistribution or Recogntion? A politicalPhilosophical Exchange. Nova Iorque, Londres: verso, 2003. P. 7- 109. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento, a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2009 (2ª. edição). RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. RORTY, Richard. Achieving our Country. Leftiest Thought in Twentieth-Century America. Cambridge, Londres: Harvard University Press, 1999. ZERILLI, Linda. “Rumo a uma teoria feminista do julgamento”. TRad. André Villalobos. In: Revista Brasileira de Ciência Política: Gênero e Política. No. 2. Brasília, julho/ dezembro, 2009. P. 89-118.
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A POSSIBILIDADE DE POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO NO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN: uma resposta à Nancy Fraser Henrique Brum Resumo: Neste artigo procuro, a partir das observações de Nancy Fraser e Iris Young sobre os limites e possibilidades de integração das teorias do reconhecimento às teorias liberais, acoplar uma teoria do reconhecimento nos moldes da de Axel Honneth ao sistema político de Ronald Dworkin. Para tanto, exponho brevemente a teoria da Igualdade deste e seu corolário referente à Liberdade para, então, usar uma brecha deixada por um dispositivo teórico (o Princípio da Independência) de modo a permitir e endossar políticas de reconhecimento. Argumento que essa abordagem possui a clara vantagem de ligar deontologicamente o reconhecimento à Igualdade, fazendo do mesmo uma questão de Justiça. Por fim, tento responder a quatro objeções que poderiam ser feitas a tal intento e às teorias que o baseiam. Palavras-chave: Dworkin, Fraser, Honneth, Igualdade, Reconhecimento. Abstract: In this paper I intend, from the observations of Nancy Fraser and Iris Young concerning the limits and possibilities of integrating recognition theories to liberal ones, to connect a theory of recognition like Axel Honneth’s one to Ronald Dworkin political system. For so, I expose briefly the latter’s Equality theory and then I use a gap left by a theoretical device (the Independence Principle) in order to allow and endorse recognition policies. I argue that this approach has a clear advantage in deontologicaly linking recognition to Equality, making from the former an issue of Justice. To conclude, I try to respond four objection that might be made against this intent and against the theories that base it. Keywords: Dworkin, Fraser, Honneth, Equality, Recognition. Introdução: Em seu artigo “From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a ‘Postsocialist’ Age.”2, Nancy Fraser identifica duas tendências no atual cenário das teorias políticas. De um lado, estariam teóricos cuja atenção estaria mais voltada para as disparidades socioeconômicas, tais como as desigualdades de riquezas e de renda. Estes compreenderiam uma ampla fatia do espectro político, 2
FRASER, Nancy.From redistribution to recognition? Dilemas of justice in a ‘Post-Socialista’ age. New Left Review, 212, julho/agosto 1995.
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do pensamento marxista aos liberais igualitários atuais (Rawls, Sen, Dworkin), e, por prescreverem que algum conjunto de bens (riquezas, recursos...) seja redistribuído na sociedade segundo determinado critério para sanar injustiças, defenderiam a chamada “redistribuição”. De outro, teóricos que estariam mais atentos a injustiças de caráter cultural ou simbólico, como o racismo, o machismo ou a homofobia. Por prescreverem que a sociedade reconheça certa condição de determinado grupo de pessoas, defenderiam o chamado “reconhecimento”. Fraser, no entanto, sabe que muitos dos teóricos de ambos os lados preocupam-se tanto com um aspecto da injustiça quanto com outro, de modo que tal divisão soa por vezes artificial. Guiada pelas observações de Iris Young, ela cita, por exemplo, as “bases sociais do autorrespeito” no pensamento de Rawls ou o “senso de self” em Amartia Sen3. O objetivo deste artigo é mostrar como no pensamento de outro liberal, Ronald Dworkin, a existência de um mecanismo distributivo pode dar origens a políticas de reconhecimento. Para tanto, farei um breve resumo da teoria liberal de Dworkin, baseada na chamada “Igualdade de Recursos” e em seguida argumentarei que o chamado “Princípio da Independência”, presente na parte da teoria que diz respeito à liberdade política, pode ser interpretado (e agir como) um mecanismo de reconhecimento. A Igualdade de Recursos:4 A teoria de Dworkin parte da aceitação quase universal do chamado Princípio Igualitário Abstrato, que estipula que o Estado deve demonstrar interesse em melhorar a vida dos cidadãos e deve fazer isso demonstrando igual consideração por todos. Os conflitos entre as diversas teorias políticas decorreriam de como interpretar tal princípio (Quem são “todos”?, O que é demonstrar igual consideração?). Para o autor, a melhor maneira de respondê-lo é através da Igualdade de Recursos, e para explicar este conceito ele lança mão de um célebre exemplo. Imaginemos um grupo de náufragos em uma ilha deserta. Diante da possibilidade de ficarem presos lá por muitos anos, decidem repartir os recursos da ilha entre si. Mas qual a melhor distribuição? Poderiam reparti-los igualmente entre si, mas isso poderia não satisfazer todas as necessidades dos cidadãos (quem fosse vegetariano, por exemplo, poderia desejar mais coqueiros e 3
Para uma melhor exposição das observações de Young, ver: YOUNG, I. M. Unruly Categories: A Critique of Nancy Fraser’s Dual Systems Theory. New Left Review I/222, March-April 1997 e seu Justice and the Politics of Difference, Princenton, 1990. 4 Para uma visão mais detalhada da Igualdade de Recursos ver: DWORKIN, A Virtude Soberana. São Paulo, Martins Fontes, 2005.
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menos vacas do que a média). Ademais, este tipo de divisão não reflete uma questão básica de justiça: a de que nesses casos um terceiro agente (o Estado) faz a distribuição entre as pessoas, mas quem sofre as conseqüências boas e más de tal distribuição são as próprias pessoas, o que é claramente injusto, pois se as consequencias recaem sobre as pessoas, nada mais justo do que deixar que elas escolham os bens que achem mais convenientes. No entanto, Se fosse assim, isso geraria consequências para a comunidade, pois o uso de um recurso singular por uma pessoa impede que o mesmo seja usufruído por outras, de modo que é preciso conciliar essas duas questões de justiça. A solução para esse impasse é o leilão igualitário. No caso do exemplo, os náufragos escolheriam uma pessoa para ser o leiloeiro. Este dividiria todos os recursos da ilha em parcelas pequenas o bastante para satisfazer os vários tipos de planos, mas não tão pequenas a ponto de não servirem para nada. Em seguida, combinaria com os cidadãos a adoção de um Teste da Cobiça: nenhum resultado do leilão seria válido se ao final do mesmo alguém cobiçasse o quinhão de outrem. A seguir se distribuiria entre as pessoas um igual número de objetos sem valor para servir como moeda (conchas, no caso). Feitas essas considerações, se iniciaria o leilão propriamente dito, com cada um dando lances pelos diferentes recursos à disposição. Caso o leilão terminasse e o teste da cobiça não estivesse satisfeito, este se iniciaria novamente com novos ajustes para melhorá-lo, até que isso ocorresse. Por fim, o leilão terminaria, e ninguém preferiria a parte de ninguém. Dessa maneira, fica assegurado que cada um colha os frutos bons e maus dos recursos que escolheu (e, consequentemente, da vida que quer levar para si), e apenas os do que escolheu. No entanto, para isso, não adianta somente garantir a igualdade na linha de partida. Sorte, talento e deficiências podem comprometer a igualdade a longo prazo. Para sanar tal problema, Dworkin imagina um sistema de tributação baseado em um mercado hipotético de seguros. Por esse sistema, as pessoas comprariam apólices contra o azar, contra a chance de desenvolverem deficiências ou ainda contra a chance de não alcançarem com seu talento todas as possibilidades que acham que podem. A partir dessas respostas seriam criados impostos com o valor da quantia imaginada, e que recompensariam com o valor da apólice hipotética aqueles que de fato fossem atingidos por tais imprevistos. Integrando a Liberdade5:
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Para uma melhor exposição deste ponto, ver DWORKIN, idem, cap.3.
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Após desenvolver sua teoria da igualdade, Dworkin passa a explicitar o lugar da liberdade nela, a fim de evitar os freqüentes confrontos entre uma e outra. Para tanto, o autor rejeita o argumento tradicionalmente utilizado nesses casos, que coloca a liberdade como sendo do interesse dos cidadãos para em seguida afirmar que esta deve ser protegida em favor desses interesses. Ele protege a liberdade de uma maneira perigosamente contingente: caso as pessoas não quisessem a liberdade, (como de fato não querem em várias situações em que esta é sacrificada em favor de outras virtudes como segurança e eficiência) ele perderia a sua força. O projeto de Dworkin é derivar a liberdade diretamente do Principio Igualitário Abstrato. Para isso, ele parte de um problema relacionado ao leilão igualitário. Imaginemos que o leiloeiro tenha decidido lotear os terrenos em grandes propriedades. Tanto quem quer construir uma mansão quanto quem quer um chalé deve comprar o mesmo terreno, de modo que o que quer o chalé poderia questionar a própria divisão dos lotes. Perceba-se que aqui o que está em questão é o próprio sistema paramétrico de regulagem da propriedade privada, e não o resultado do leilão em si, de modo que trata-se de uma injustiça para com a qual o teste da cobiça é cego (nenhum do dois quer a parte de outro, mas com os recursos economizados na compra de um terreno menor, o dono do chalé poderia fazer outras coisas). Não se pode, no entanto, declarar arbitrariamente que o segundo padrão é melhor e recomendar sua adoção, já que este também gerará consequências distributivas que favorecerão alguns e prejudicarão outros. É preciso uma razão para tanto, e a razão está no próprio objetivo da Igualdade de Recursos. Esta foi concebida para que as pessoas colham os frutos bons e maus das escolhas que fizeram (e apenas estes), de modo que o segundo claramente cumpre melhor esse papel. Isso leva ao primeiro de uma série de princípios para integrar a liberdade à Igualdade de Recursos: O Princípio da Abstração. Este diz que os recursos devem ser leiloados em sua forma mais abstrata e reduzida possível para refletir os reais custos destes para a realização dos planos do indivíduo e seu impacto na comunidade. Isso, porém, tem consequências profundas sobre a liberdade. Talvez eu não queira comprar um violão se não puder usá-lo para fazer músicas de protesto. Assim, não só o tamanho, mas a forma e maneira de uso dos recursos também fazem parte do sistema paramétrico. Portanto, o Princípio da Abstração recomenda que todos os recursos sejam leiloados de maneira que permita a seus donos o uso mais livre possível, a não ser em caso de grave ameaça à integridade dos outros cidadãos, e aqui entra o segundo princípio, o da Segurança, também originado diretamente do Princípio Igualitário Abstrato. Dworkin elenca outros princípios oriundos do Princípio Igualitário Abstrato para proteger a liberdade. Por exemplo, um grande mérito do leilão é o de dar às pessoas a oportunidade de escolher 16
baseadas em suas próprias preferências, em vez de querer adivinhar o que elas escolheriam em determinada situação. No entanto, às vezes, descobrir quais são suas verdadeiras preferências pode ser mais difícil do que parece. Os gostos estão a todo o momento sujeitos a manipulações ou simples mudanças, de modo que é preciso criar parâmetros para decidir quando os cidadãos estão prontos para iniciar o leilão. Neste aspecto, o Princípio da Autenticidade cumpre um papel importante. Diz que, como os resultados do leilão e das operações posteriores a ele só são realmente igualitários se refletirem as verdadeiras preferências individuais, a melhor maneira de se chegar a estas é garantir aos participantes o maior acesso possível às informações que desejam, bem como a liberdade de se expressarem e ouvirem a opinião alheia, a fim de que o processo deliberativo produza convicções mais sólidas. Isso tem impacto direto na questão das liberdades, já que garante a proteção das liberdades de expressão e não expressão (ou seja, a proteção contra a vigilância estatal na vida privada), associação pessoal, social, política, íntima e religiosa e o mais amplo acesso às artes e ao conhecimento. Imagine-se que o leiloeiro saiba que um dos participantes comprará um terreno para lá instalar uma fábrica muito poluidora e que se seus vizinhos soubessem desse fato, poderiam fazer lances conjuntos pelo terreno. Porém, como não sabem, não se unirão, e o resultado, então, não é o que se teria em um leilão com ampla base informacional. É aí que entra o Princípio da Correção. Para resolver este problema, o leiloeiro poderia mexer nos parâmetros de liberdades e restrições, adotando medidas de zoneamento de terreno, ou tornando a poluição passível de processo judicial. Liberdade, Independência e Reconhecimento:
É o último dos princípios que nos interessa e que é a razão de ser desse trabalho. O Princípio da Abstração pode dar margem à existência de formas de discriminação. Ele permitiria, por exemplo, que racistas comprassem terrenos para gerar recintos onde os negros fossem impedidos de entrar. E a Correção, por sua vez, impediria os negros de dar lances por tais terrenos a fim de evitar a segregação, pois entenderia que se os brancos soubessem do fato, dariam lances mais altos pelos mesmos. No entanto, um leilão que permita e até apóie este tipo de resultado está claramente contra o Princípio Igualitário Abstrato. Para evitar que isto aconteça, existe o Princípio da Independência. Ele controla a Abstração, impedindo-a de incluir entre as liberdades para uso dos bens a de fazê-lo para discriminar minorias, e impedindo a Correção de adotar medidas que protejam atitudes discriminatórias. 17
Isto não significa, porém, que o Princípio da Independência seja apenas um mecanismo ad hoc para evitar conseqüências indesejáveis à Igualdade de Recursos. Pode também ser visto como uma solução no âmbito das deficiências. Ser vítima de preconceito pode ser visto como uma deficiência, de modo que alguma forma de compensação passa a ser exigida pela teoria. Como, porém, o ressarcimento financeiro via mercado hipotético de seguros não pode resolver o problema (não se pode lidar com o status social assim), a melhor forma de fazê-lo é a prevenção pela proteção, e por isto recorre-se ao Princípio da Independência, não como um adendo ad hoc à teoria, mas como uma extensão dela. Obviamente, esse mecanismo é, de início, claramente distributivo. Previne que o arranjo dos recursos seja tal que permita atos discriminatórios. No entanto, ao reconhecer que problemas de status social não podem ser resolvidos pela transferência de recursos (não por acaso a solução para esse impasse é a prevenção contra uma distribuição discriminatória), o autor abre espaço para que o Princípio da Independência seja expandido para endossar também demandas por reconhecimento.6 Expandindo o Princípio: Proponho, então, que o princípio seja expandido e reconceitualizado. Uma boa maneira de recolocá-lo formalmente seria: I) O Princípio Igualitário Abstrato estipula que o governo deve demonstrar interesse em melhorar a vida dos cidadãos, e que deve fazê-lo demonstrando igual consideração por todos. II) Porém, uma política que trate a todos como uma massa uniforme não consegue captar certas nuances dos cidadãos que podem ser fundamentais para a constituição de suas identidades. Portanto, não adentrar nesse terreno que vai além do igual tratamento formal é não demonstrar interesse pela melhoria da vida dos mesmos. III) A única maneira, entretanto, de fazê-lo demonstrando igual consideração por todos é considerar cada cidadão não apenas em seu status juridicamente conferido, mas também em sua estima individualmente atribuída, de modo a atentar para as nuances supracitadas.7 IV) Portanto, do Princípio Igualitário Abstrato deriva o novo Princípio da Independência, que estipula que o governo deve não apenas evitar situações discriminatórias, mas também gerar e endossar políticas que afirmem as individualidades e a estima dos cidadãos. 6
Talvez esse espaço deixado não seja tão inconsciente quanto meu texto possa fazer parecer. Nas páginas 219 e 220 d’ A Virtude Soberana, Dworkin escreve: “O Princípio da independência (...) controla o princípio da correção ao insistir que não se pode justificar como necessário nenhum parâmetro limitador para se chegar a um resultado ao qual se chegaria em um leilão com perfeitos conhecimentos e nenhum custo organizacional, se só se alcançasse tal resultado porque os lances refletiriam um desprezo ou antipatia por quem estivesse sujeito a desvantagens ou sofresse devido à restrição.” (DWORKIN, Ibid., grifos meus) . Perceba-se como o vocabulário é parecido com o dos teóricos do reconhecimento. 7 Isso nos leva a uma teoria do reconhecimento nos moldes da de Honneth. Para uma melhor exposição da mesma, ver: HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003. Pgs159-211.
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De modo a aprofundar a análise teórica, desenvolverei os estágios um a um: I)
Dworkin não fornece nenhuma razão pela qual adotar o Princípio Igualitário Abstrato, não parece ser o caso que precise fazê-lo. Sua aceitação quase universal permite-nos começar já a partir dele. Claro que as mais variadas teorias políticas discordarão em muitos dos seus aspectos, como: a) Quem são “todos”? b) O que significa demonstrar interesse pela melhoria da vida dos cidadãos (incluiria, por exemplo, medidas paternalistas, ou que “protegessem o indivíduo de si mesmo”?)? c) O que significa demonstrar igual consideração por todos? d) Em que aspectos todos merecem ser tratados como iguais? Etc. Entretanto, o Princípio é abstrato o suficiente para se encaixar em quase todas as teorias contemporâneas. De fato, seu alto grau de abstração é propositalmente talhado para isto, ainda que isso enxugue quase todo o seu potencial normativo.
II)
Esse passo também não é exatamente novo. Várias teorias normativas têm apontado para a necessidade de se ir além da igualdade formal a fim de garantir a igualdade de fato na sociedade, não deixando as diferenças sociais, culturais e econômicas implodirem o igual tratamento. Novamente, a profundidade desta igualdade ampliada será o ponto de divergência entre as teorias adeptas de um conceito substantivo de justiça. Perceba-se, no entanto, que o passo dado aqui já toma uma direção diferente da tomada pela maioria das teorias supracitadas, que focam suas intervenções em políticas de redistribuição. Aqui se encaminha explicitamente para o endosso de políticas de reconhecimento, embora estas últimas também possam ser endossadas por outros mecanismos (como de fato são na teoria de Dworkin e outros liberais). Tal caminho, perceba-se, não apresenta nenhuma dificuldade conceitual.
III)
O terceiro passo decorre do anterior. Se a preocupação é atentar para as características que são constitutivas das identidades dos indivíduos8, não faz o menor sentido tentar fazê-lo através do tratamento idêntico dado pelo sistema jurídico à pessoa na simples condição de cidadão. É preciso ir mais além e considerar cada cidadão em sua individualidade. Chega-se aqui a uma questão fundamental: Se a igualdade exige que todos sejam tratados com igual consideração, e o passo 2 diz que devem ser levadas em conta as características que
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Para uma descrição mais detalhada do que seriam tais características, ver: HONNETH, idem, especialmente caps.: 5 e 6.
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formam a individualidade (que, por sua vez, exigem soluções individualizadas), como conciliar as duas coisas? Como é possível apelar para a igualdade a fim de tratar cada um diferentemente? A resposta, no entanto, já é dada no próprio passo 2. Se se adotou de antemão um conceito substantivo de justiça, em nome da igualdade em algum nível (no caso de Dworkin, o dos recursos) não apenas podemos, mas devemos dar tratamento diferenciado a cada pessoa, de modo a atingir a igualdade no âmbito almejado9. IV)
Ao se juntar o Princípio Igualitário Abstrato com os passos 2 e 3 fica claro que o Estado não deve se contentar em evitar situações discriminatórias. Deve ir além e promover políticas que garantam a estima dos cidadãos e o reconhecimento de suas individualidades. Não fazê-lo é não demonstrar interesse na melhora da vida de seus concernidos (o que é absurdo) ou não fazê-lo demonstrando igual consideração por todos (o que é imoral), pois ao não fazer nada o Estado tacitamente dá mais apoio àqueles que têm o reconhecimento garantido (homens brancos heterossexuais, por exemplo). A questão do reconhecimento é inevitável, e escolher ficar de fora é já marcar uma posição a favor e uns e não de outros.
Ainda que essa reformulação seja ainda muito primária, ela já possui de início duas vantagens importantes. Primeiramente, fundamenta as demandas por reconhecimento derivando-as diretamente do Princípio Igualitário Abstrato e colocando-as, portanto, como uma exigência da Igualdade. Isso as embasa naquele que talvez seja o solo mais sólido do pensamento político ocidental. Em segundo lugar, permite integrar a teoria do reconhecimento no seio das teorias deontológicas e normativas, nos moldes da teoria da ação participativa de Nancy Fraser 10, de modo a reforçar sua base. 9
Uma possível objeção a esse passo seria que o âmbito escolhido por Dworkin (os recursos), e os escolhidos por todas as teorias prioritariamente distributivas não permitem que se dê o passo 3. Isto porque se se trata de um âmbito prioritariamente distributivo, o conjunto de intervenções sociais que serão realizadas para garanti-lo deve ser organizado em um esquema igualmente distributivo, pois este é pensado justamente para assegurar a igualdade no âmbito principal, de modo que seria cegueira analítica tentar introduzir políticas de reconhecimento nesse estágio. Porém, a objeção não vê que para Dworkin o conceito de “Recursos” vai além do significado usual da palavra. A Igualdade de Recursos separa claramente a pessoa (seus desejos, planos e aspirações, etc) e suas circunstâncias (condição social, cultural e econômica, cor, sexo, etc), igualando as últimas de modo que a pessoa possa, com seu justo quinhão, escolher a vida que quer levar. Nesse sentido, as condições para a formação de uma individualidade com autoconfiança, autorrespeito e autoestima (usando o esquema conceitual de Honneth) podem muito bem serem vistas como fazendo parte das circunstâncias, pois, assim como educação e nutrição, são condição para a própria formação da pessoa. Por isso, devem ser levadas em conta no cômputo geral dos recursos, assim como se reconhece que um deficiente deve ter mais recursos para que se tente amenizar sua desvantagem natural. No capítulo 2 de A Virtude Sberana tem-se ma ótima explicação sobre o conceito dworkiniano de Recursos. 10 Para uma visão da teoria da autora ver: FRASER, N. e HONNETH, A.Redistribution or Recognition?. London: Verso, 2003. Cap. 1. Ver também FRASER, N. “Reconhecimento sem Ética?.Lua Nova. São Paulo, 70: 101-138, 2007.
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Possíveis Objeções: Tento responder aqui a algumas das objeções que poderiam ser levantadas à maneira como Dworkin lida com o problema do status social, bem como à minha reformulação desta. I)
É imoral tratar o fato de se sofrer preconceito como uma deficiência: Esta crítica afirma que ao lidar com o fato de se sofrer preconceito como uma forma de deficiência, a teoria acaba legitimando involuntariamente o preconceito, pois colocaria este fato (e, junto com ele, a característica que o originou) como um defeito da pessoa que o sofre, e não dos preconceituosos. No entanto, essa crítica rasteira (e por isso mesmo comecei por ela) não percebe o óbvio: Em nenhum momento se disse que se trata de uma deficiência. O que Dworkin argumenta é que, por tratarem-se, em ambos os casos, de características que afetam a igualdade e que estão fora do âmbito das escolhas individuais, ambas podem ser tratadas de forma estruturalmente semelhante, pois a Igualdade de Recursos tem um compromisso de fazer com que apenas essas escolhas influenciem a vida das pessoas, devendo tudo o que está fora de seu âmbito ser mitigado ao máximo. E, nesse caso específico, problemas semelhantes levam a soluções diferenciadas, já que o próprio autor reconhece que não se pode lidar com o status social com a simples transferência de recursos (o que talvez valesse para algumas deficiências, embora outras demandassem, com a vigência do novo Princípio da Independência, políticas de reconhecimento específicas para elas).
II)
A extrapolação do pensamento de Dworkin não é válida: De maneira simples, esta objeção afirma que a extrapolação foi além das possibilidades da teoria dworkiniana. Alega que, por mais que por vezes se expresse com um vocabulário típico dos teóricos do reconhecimento, o autor em nenhum momento está preocupado com essas questões. Tanto que sua solução para o fato de o problema do status social não poder ser resolvido pela redistribuição de recursos é ainda e essencialmente distributiva. Não haveria, então, espaço para o reconhecimento, mesmo neste caso. Assim, querer forçar uma brecha para o encaixe de uma teoria do reconhecimento no Princípio da Independência é não querer ver as limitações da teoria de Dworkin. E a resposta para ela, é, a meu ver, igualmente simples. Não 21
importa se Dworkin se preocupa efetivamente com as questões de reconhecimento ou não (sinceramente, penso que não). O importante aqui é que ao se admitir que as soluções distributivas não dão conta do problema do status social, abre-se uma brecha para a introdução das questões de reconhecimento, e não há motivo algum para não se explorá-la, radicalizando o Princípio da Independência. De fato, a construção permite que exijamos reconhecimento porque faz parte das políticas de um Estado alinhado com o Princípio Igualitário Abstrato a estima dos cidadãos em sua individualidade. E a valorização não apenas do que eles têm de igual, mas também o que têm de diferente. III)
Mesmo com a adoção da versão expandida, a teoria de Dworkin continua a ser essencialmente uma teoria da redistribuição: Essa objeção alega que mesmo com a adoção das modificações propostas aqui. A teoria dworkiniana continua presa ao costume tradicional na Filosofia política de pensar que todos os problemas se resumem a questões distributivas, prescrevendo-lhes soluções que recorram à redistribuição. Porém, é justamente a constatação dessa limitação da teoria que, juntamente com a brecha aberta pelo Princípio da Independência, nos move para o seu aprimoramento, pois a introdução do reconhecimento na mesma é viável e, pelo menos aparentemente, não problemática. Ademais, todo(a) autor(a), ao discorrer sobre certos problemas, preocupa-se primariamente com certas questões, de modo fatalmente serão deixadas de lado outras que estão fora do foco principal. De fato, Fraser por vezes adverte os teóricos do reconhecimento para o esquecimento por parte destes das questões distributivas. Por outro lado, a própria Fraser já foi acusada de ser ainda primariamente distributiva.
IV)
Trata-se de uma teoria do reconhecimento por demais individualista: Esta objeção não se dirige apenas à minha reformulação do Princípio da Independência, mas ao próprio modelo de Reconhecimento proposto por Honneth11. Alega que essa abordagem coloca a questão do reconhecimento como algo relativo a indivíduos, o que seria inadequado, visto que a maioria das demandas são feitas em nome de e para grupos. Dessa forma, certas demandas comunitárias não seriam cobertas por esse tipo de teoria. Para respondê-la, é preciso primeiramente atentar
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Para uma exposição detalhada da teoria do reconhecimento de Honneth, ver: HONNETH,A. . Luta por Reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003.
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um fato. Dworkin é um liberal, e, portanto, sua teoria da Igualdade (e as teorias Ética, de Liberdade, e Democracia que a seguem) é centrada primariamente no indivíduo (ainda que notemos no autor uma preocupação com a comunidade só comparável, talvez a de Sen). Logo, nada mais coerente do que basear também no indivíduo a teoria do reconhecimento que se quer acoplar ao seu sistema. Ademais, fazê-lo evita o problema da reificação da cultura e/ou da comunidade, uma das críticas centrais feitas aos comunitaristas. Conclusão: As questões sobre o reconhecimento são alguns dos mais interessantes assuntos da filosofia política contemporânea. Explorá-las, no entanto, pode nos levar a soluções inesperadas. Este artigo explorou uma delas. A partir das observações de Nancy Fraser e Iris Young 12 sobre os limites e possibilidades de integração das teorias do reconhecimento às teorias liberais, procurou-se acoplar uma teoria do reconhecimento nos moldes da de Axel Honneth ao sistema político de Ronald Dworkin. Para tanto, foi exposta sucintamente a teoria da Igualdade deste e seu corolário referente à Liberdade para, então, valer-se de uma brecha deixada pelo Princípio da Independência de modo a permitir e endossar políticas de reconhecimento. Argumentei que essa abordagem possui a clara vantagem de ligar deontologicamente o reconhecimento à Igualdade, fazendo do mesmo uma questão de Justiça. Por fim, tentei responder a quatro objeções que poderiam ser feitas a tal intento e às teorias que o baseiam. Claro que trata-se aqui de uma versão primaria, e por isso mesmo, despretensiosa, do argumento. Mas, como argumentei na sessão anterior, havia uma possibilidade deixada em aberto pelo autor, e nenhuma razão para não explorá-la. Bibilografia: DWORKIN, A Virtude Soberana. São Paulo, Martins Fontes, 2005. FRASER, Nancy.”From redistribution to recognition? Dilemas of justice in a ‘Post-Socialista’ age”. New Left Review, 212, julho/agosto 1995.____. “Reconhecimento sem Ética?”.Lua Nova. São Paulo, 70: 101-138, 2007. ____. e HONNETH, A.Redistribution or Recognition?. London: Verso, 2003.HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003. YOUNG, I. M. Unruly Categories: A Critique of Nancy Fraser’s Dual Systems Theory.New Left Review I/222, March_April, 1997 . ____. Justice and the Politics of Difference, Princenton, 1990.
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Ver nota 2.
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UMA ANÁLISE CRÍTICA DO IDEALISMO DE AXEL HONNETH EM DEFESA DA DEMOCRÁTICA PARIDADE PARTICIPATIVA DE NANCY FRASER Frederico Graniço13 RESUMO: O presente artigo busca uma análise crítica do debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sumarizado no livro lançado em 2003 conjuntamente pelos dois pensadores14. A argumentação atual se referirá aos textos, ali contidos, “Social Justice”, de Nancy Fraser, e “Redistribution as Recognition”, de Axel Honneth15. ABSTRACT: This article attempts a critical analysis of the debate between Nancy Fraser and Axel Honneth summarized in the book launched in 2003 jointly by the two thinkers. The current argument will refer to the texts, contained therein, "Social Justice", by Nancy Fraser, and "Redistribution to Recognition", by Axel Honneth. 1) Resumo da questão entre os autores Nancy Fraser e Axel Honneth, em seu livro, têm por objetivo a compreensão da relação entre “redistribuição” e “reconhecimento”. Entendem por redistribuição econômica a necessidade por re-divisão das riquezas socialmente produzidas, esta seria a principal reivindicação dos movimentos sociais nos últimos dois séculos. Já o reconhecimento seria uma demanda que se popularizou mais recentemente, desinteressada na redistribuição da riqueza reivindica respeito nas relações sociais – onde de um lado clama-se por igualdade de tratamento e, de outro, por reconhecimento da diferença. A respeito deste objetivo central de tecer a relação entre redistribuição e reconhecimento, Fraser defende um “dualismo perspectivo” onde um eixo não pode ser reduzido a outro, mas podem (e devem) ser ligados num conceito amplo de justiça que os subsuma sob o objetivo normativo da 13
Frederico Graniço é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, e mestrando do programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro sob orientação da prof.ª Dr.ª Susana de Castro. Email: fredgranico@yahoo.com.br. Frederico Graniço holds a BA in Social Sciences from the Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, and is graduating in Science Graduate Program in Philosophy at the Universidade Federal do Rio de Janeiro under the guidance of prof. Dr. Susana de Castro. Email: fredgranico@yahoo.com.br. 14 FRASER, N; HONNETH, A.: 2003. 15 Referentes aos primeiro e segundo capítulos. Os nomes completos destes capítulos são, respectivamente, ‘Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, Participation’ e ‘Redistribution as Recognition A Response to Nancy Fraser’.
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“paridade participativa” – conceito análogo ao “discurso não-coagido” de Jürgen Habermas. Já Honneth considera ilegítima a distinção entre cultura e economia, propõe um “monismo normativo” onde a economia é entendida como
resultado das inter-relações sociais legitimadas
intersubjetivamente por três esferas do reconhecimento – amor, lei e estima. Honneth em seu discurso reconstrói a formação da sociedade moderna como a diferenciação entre três esferas de reconhecimento autônomas: 1) o amor é a esfera afetiva colocada em movimento por decorrência do fim das amarras do status nas relações sociais medievais; 2) a legalidade é resultado do discurso burguês sobre a necessária igualdade de condições legais entre os seres humanos; 3) já a estima social é a re-interpretação do status medieval, com a diferença revolucionária de que aqui os sujeitos são avaliados por suas realizações e não por seus laços de parentesco. São estas três esferas de reconhecimento que ancoram a legitimação dos discursos sociais atuais, por isso a base normativa da teoria crítica deve partir desse consenso moral estabelecido. Já Nancy Fraser em seu discurso busca demonstrar a irredutibilidade das questões culturais às econômicas e vice-versa. Feito isso através de exemplos empíricos, busca uma abordagem teórica que dê conta da diferenciação entre estes dois eixos de justiça e também da inter-relação patente entre eles. Através de seu “modelo de status” abandona a questão da formação identitária dos sujeitos mal-reconhecidos e se volta para os resultados institucionais da ausência de paridade participativa decorrente desse mal-reconhecimento. Com isso busca um critério normativo deontológico para o diagnóstico e solução dos problemas de mal-reconhecimento: é mal-reconhecido todo sujeito que por conta de uma filiação identitária é negado como um par nas relações sociais, soluções justas devem eliminar essa desigualdade sem a formação de nenhuma outra desigualdade de relações. Passemos a uma análise crítica do debate. Num primeiro momento salientarei o conjunto de problemas decorrentes do idealismo honnethiano. No segundo momento defenderei a boa solução fraseriana de um ‘dualismo perspectivo’. A exceção será a questão entre “ética” e “moralidade deontológica"; aqui serei fiel à posição de Richard Rorty na deflação do incondicional, concedendo a Honneth, pace Fraser, a necessidade de uma antecipação da boa vida para qualquer tarefa avaliativa atual. 2) Os Erros Idealistas de Axel Honneth. 2.1 – Seu Idealismo Sociológico
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Axel Honneth se esforça na defesa de sua chamada “Teoria Crítica”, todavia quero mostrar neste trabalho que o adjetivo “crítica” não é apropriado à sua teoria. No curso de sua caracterização dos princípios normativos intersubjetivos contemporâneos, Honneth volta-se para a formação da sociedade moderna. Esta representaria um “progresso moral” para a humanidade por criar a esfera da igualdade legal e por desvincular a esfera da estima social do status de parentesco. Por focar nas distinções entre capitalismo e feudalismo (e não nas semelhanças), sua explanação só representaria teor crítico se estivesse contestando a legitimidade moral de um Senhor Feudal, mas em referência à contemporaneidade o discurso honnethiano mais obscurece que clarifica. Exacerbando as distinções entre medievo e modernidade, Honneth falha na tarefa crítica de perceber as continuidades da dominação social. Atendo-nos a estas continuidades percebemos que o discurso honnethiano é carregado de eufemismos: o princípio da “igualdade legal” poderia ser chamado “princípio da hipocrisia” – desde quando já está claro que a igualdade legal não se sustenta sem uma igualdade ampla de condições –, e o princípio da “realização meritocrática” poderia ser chamado “princípio da exploração” – porque a organização econômica capitalista não favorece o trabalho, mas sim a propriedade. Essa não é só uma questão formal de nomenclatura, pois Honneth parte destes princípios supostamente progressistas para concluir, falsamente, que o capitalismo liberal é o “ponto de partida legitimado para a política ética”. Com isso faz parecer que o desenvolvimento social não requer nenhum tipo de ruptura com a sociedade atual, mas tão-somente o desenvolvimento de suas três esferas de reconhecimento: amor, lei e realização. Honneth vincula toda possibilidade de argumentação racional a estas esferas de reconhecimento mal denominadas (porque mal compreendidas) resolvendo que somente discursos embasados na ideologia burguesa hegemônica podem servir ao aprimoramento social. “If deep-seated claims of this kind are always socially shaped – in the sense that the content of the expectation is always influenced by institutionally anchored principles of recognition – then these principle always give rise to practical grounds that make up the rational web of sphere-specific discourses of questioning and justification.” (HONNETH:2003 145)
O problema é que, assim, novamente afasta o adjetivo “crítica” de sua teoria; pois se a única possibilidade de questionamento está na utilização da linguagem burguesa hipócrita de legitimação, então a tarefa mais difícil será exatamente a crítica do que está posto. Resta como possibilidade uma 26
crítica reformista de ‘aprimoramento’ das incompletudes da modernidade, sendo varrida a possibilidade de uma crítica radical. Assim Honneth inventa uma monolítica esfera intersubjetiva hegemônica burguesa e conclui que toda argumentação racional precisa partir destes princípios. Com isso reduz a estrutura econômica atual a um consenso moral intersubjetivamente estabelecido sobre a esfera de reconhecimento da “realização meritocrática” (nosso princípio da exploração). “Not only wich activities can be valued as ‘work’, and hence are eligible for professionalization, but also how high the social return should be for each professionalized activity is determined by classificatory grids and evaluative schemes anchored deep in the culture of bourgeois-capitalist society.” (HONNETH:2003 154)
Mas isso nos leva à falsa conclusão de que a razão para traficantes de alta patente possuírem rendimentos superiores a professoras ginasiais e bombeiros, é o desrespeito cultural das cidadãs e cidadãos pela profissão de ensinar e salvar vidas enquanto super-valorizam o ‘importante’ ofício da distribuição ilegal de drogas e armas. Assim, Honneth decide, a reivindicação distributiva deve assumir a forma da argumentação legal e/ou da re-interpretação do princípio de realização. Reduzindo o campo da luta distributiva a um espectro idealista culturalista, acaba por condenar à esquizofrenia o maior movimento social da América Latina (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). Pois, desde quando as ocupações de terra não necessariamente mobilizam argumentos da legalidade (hipocrisia) burguesa nem possuem por objetivo imediato um debate sobre o princípio de realização (exploração) – são sim ações concretas de democratização dos meios de produção – escapam à tipologia honnethiana de reivindicações. Honneth se equivoca a tal extremo por ter decidido abandonar a existência de uma dimensão econômica política e estruturalmente conflituosa na sociedade. Desde quando tudo se baseia na cultura social, não existem imposições militares, econômicas, políticas ou estruturais de qualquer tipo. Ao contrário, o mundo atual está profundamente legitimado pois sua base de sustentação é exatamente a razão socialmente estabelecida: “Since the central institutions of even capitalist societies require rational legitimation throught generalizable principles of reciprocal recognition, their reproduction remains dependent on a basis of moral consensus – which thus possesses real primacy vis-à-vis other integration mechanisms, since it is the basis of the normative expectations of members of society as well as their readiness for conflict.” (HONNETH:2003 157)
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Ora, se o capitalismo está embasado na “legitimação racional através de princípios gerais de reconhecimento recíproco” e sua reprodução depende da “base de consenso moral”; então já não há necessidade alguma de crítica – ainda mais porque esse consenso moral tem prioridade frente a outros mecanismos de integração. O profundo e triste engano de Honneth está relacionado a uma má compreensão histórica das turbulentas transformações revolucionárias que retiraram o poder do feudo passando-o para as mãos burguesas. O filósofo acredita que essa transformação foi, mais uma vez eufemicamente, resultado do “mercado e dos novos pensamentos”, simplesmente abstraindo toda a luta popular. Esquecendose da aliança entre burguesia e nobreza no episódio paradigmático da Revolução Francesa, vende a ideia de que a ascensão burguesa é responsável pelo “progresso moral” da modernidade – quando na verdade os interesses burgueses representam há muito os principais entraves à democracia, à ecologia, à paz, à igualdade étnica, entre outros. Como se não bastasse essa enxurrada idealista, Honneth também resolve que o “poder persuasivo” e a “incontestabilidade de razões morais” são o verdadeiro motor da história (p. 149). A esse respeito me contento em fazer duas perguntas: a primeira é sobre o “poder persuasivo” da “incontestabilidade de razões morais” no evento da invasão estadunidense ao Iraque ou no Holocausto, a segunda é sobre o número de mortos. 2.2 – Seu Idealismo Epistemológico. Partindo deste tacanho idealismo sociológico, onde todos os sujeitos necessariamente se referem a uma forma hegemônica de legitimação16, Honneth percebe que qualquer justificação normativa advinda deste arcabouço é dubitável. Desde quando os sujeitos estão contingencialmente imersos numa sociabilidade histórica questionável, já não podemos confiar em seus discursos normativos. Como solução para o antigo “problema do corpo” (seja o corpo físico ou o corpo social) temos o antigo caminho redentor do mundo das ideias! “In this second case, it can no longer simply be a matter of spelling out already-existing, socially anchored principles of justice in all their plurality; rather, what is at stake is the central, far more
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Sem complexidade, sem discursos e ideologias conflitantes, sem posição de classe, sem sujeitos em realidade, pois nessa compreensão todos se resumem a objetos completamente passivos da ordem social (menos os filósofos, como será mostrado).
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difficult task of developing normative criteria out of the plural concept of justice, by means of which contemporary developments can be criticized in light of future possibilities.” (HONNETH:2003 183)
Sendo assim, para fugir do “presentismo míope” das “reivindicações relativistas de justificação”, é necessário um critério normativo para o desenvolvimento da “constituição moral da sociedade”. A pergunta, é claro, é como construir tal critério – por definição necessariamente acima da opinião dos sujeitos (aqui tomados como meros objetos da sociedade). Esse critério normativo tácito, Honneth nos diz, pode ser fornecido por sua “teoria do reconhecimento”; que parte de uma “fenomenologia das experiências sociais de injustiça” (p. 114). Essa teoria tem a vantagem de “identificar o descontentamento social” de modo “independente do reconhecimento público” – isso porque trabalha precisamente com o tipo de “considerações moralpsicológicas” que Fraser deseja evitar (p. 125). Vemos então que Honneth conclui com a necessidade de uma análise fenomenológica das experiências de injustiça. Porque se o discurso normativo social se refere necessariamente ao discurso legitimado socialmente, então teríamos um círculo bem pequeno de justificação – posto que o injusto seria tão-somente tomado em relação à ordem social vigente. Para resolver este problema (de ter transformado os sujeitos em objetos de uma ordem social monolítica), Honneth apela a uma concepção sobre a “natureza intersubjetiva dos seres humanos” (p. 138): “But, on the other hand, this restriction to only a form of justification seems to entirely lose sight of the normative perspectives from which individuals decide how far they can follow the established principles of public justification in the first place. It is as if the generally accepted reasons need not correspond to the normative expectatons that the subjects bring – in a certain way on their own – to the social order.” (HONNETH:2003 130)
Pronto, Honneth amarrou a análise normativa das reivindicações de justiça a uma abordagem “moral-psicológica” dos indivíduos. Agora está em condições de responder conceitualmente quais “expectativas normativas os sujeitos geralmente têm da ordem social”. E, como sabemos, a boa fenomenologia é aquela que responde as coisas sem nenhuma “restrição histórica” (p. 125) e “livre de contextos hermenêuticos” (p. 126). Ora, passemos à crítica, o problema aqui é claro! Toda a argumentação honnethiana cai por terra com uma simples pergunta: o que o leva a crer que seu empreendimento teórico fenomenológico é mais capaz de dizer o que as pessoas consideram desrespeito do que elas mesmas? 29
O senhor Honneth acredita que estudando a psicologia interior dos seres humanos “em geral” será capaz de esboçar um fundamento normativo para todo o mundo, e isso melhor do que qualquer um dos seres humanos “particulares” – mesmo que organizados em movimentos populares e discutindo organicamente suas questões – poderiam fazer. Partindo das críticas de Rorty e Fraser a esta postura platônica, permitam-me chamar isto de ‘autoritarismo acadêmico’. Se relembrarmos a genialidade psicanalítica de Freud, veremos que o papel do terapeuta não é afirmar acima do paciente seus problemas, mas ao contrário dialogar com este paciente para que ele próprio autonomamente tome consciência de si expressando suas questões. A Teoria Crítica deveria se manter nesta linha de diálogo íntimo com os movimentos sociais, em vez de se preocupar procurando fundamentos a-históricos para as experiências de injustiça17. Honneth ignora isso e, através desse malabarismo teórico, resolve , por um lado, que a filiação da teoria crítica social aos movimentos sociais é “perigosa” (p. 115), por outro que a principal reivindicação popular se refere à “honra” muito mais que à “situação material”. Assim fica completamente desacreditada a conclusão de Honneth de que as metas normativas do progresso moral deveriam ser a “individualização” e a “inclusão social”. Além de ter faltado uma argumentação convincente para que preferíssemos a “individualização” (e não, por exemplo, a democratização) da sociedade, a própria estratégia fenomenológica de estipulação dos princípios normativos do progresso moral parece cúmplice de um teoricismo demasiado a-crítico e autoritário. Em realidade a tipologia de Honneth não está muito preocupada em convencer, basta descobrir as raízes fenomenológicas das experiências de injustiça e, em seguida, modificar a vida das pessoas de um modo que talvez nem elas mesmas saibam que desejavam. Mas a “individualização” é um termo completamente questionável como meta moral, principalmente em tempos onde assistimos resultados nefastos do individualismo crescente e falta de senso coletivista em nossa sociedade18. E, por outro lado, “inclusão social” é um termo criticamente esvaziado, com o qual o dono do Banco Mundial e o presidente de um possível Partido Comunista Brasileiro concordariam igualmente – fica faltando exatamente a tarefa crítica de perguntarmos: que tipo de inclusão ‘cara pálida’? 3) A democracia de Fraser entre o fundamento e o procedimento 17
Para a relação entre Teoria Crítica e psicanálise veja ROUANET, Sérgio Paulo. “Teoria Crítica e psicanálise” / – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983. 18 E digo isso linguisticamente, como ator argumentativo que joga propostas interpretativas e aguarda o feedback de uma audiência que sonha ser a mais democrática possível; pois não sei exatamente o que ‘fenomenologicamente’ Honneth poderia dizer que estou pensando agora enquanto simplesmente olho para o objeto computador.
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Honneth se coloca em tão maus lençóis por conta de sua preocupação em justificar normativamente as metas das políticas públicas, em distinguir os bons dos maus movimentos sociais; quer, como bom filósofo, fazer isso sem precisar perguntar às pessoas o que elas sentem – quer descobrir o que elas sentem por trás das palavras, num misto de fenomenologia, sociologia e psicologia. Fraser, partindo de uma ética do discurso e de um pragmatismo democrático, caracteriza este tipo de postura como monológica e platônica, de outro lado situa uma postura aristotélica dialógica. “Finally, the Platonic stance neglects the importance of democratic legitimacy; effectively usurping the role of the citizenry, it authorizes a theoretical expert to circumvent the deliberative process by which those subject to the requirements of justice can come to regard themselves as the latter's authors.” (FRASER:2003 71)
Assim conclui que a postura aristotélica é preferível. Todavia, Fraser nos diz, esta pode recair em “formalismos vazios” por rejeitar “conteúdos substantivos” rápido demais, insistindo no “procedimento democrático que tem pouco a dizer sobre a justiça” (p. 71). Por isso, embora melhor que o platonismo, o aristotelismo também não seria a melhor saída. O ideal seria o velho caminho do meio – uma apropriada “divisão do trabalho entre teóricos e cidadãos”: “Yet it is possible to state a rule of thumb: when we consider institutional questions, the task of theory is to circumscribe the range of policies and programs that are compatible with the requirements of justice; weighing the choices within that range, in contrast, is a matter for citizen deliberation.” (FRASER:2003 72)
Embora a posição de Fraser seja preferível à monológica honnethiana, me preocupa sua resistência ao que chama de “procedimentalismo vazio”. Neste ponto eu não quero argumentar, em defesa da democracia, que o “procedimentalismo vazio” é preferível a qualquer “conteúdo substantivo”; mas sim que não existe nem pode existir um tal procedimentalismo vazio. Qualquer proposta política carrega consigo conteúdos substantivos, não há algo como uma proposta sem conteúdo ou neutra: se dizemos que as decisões devem ser tomadas pelas pessoas democraticamente,
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há aqui inúmeros conteúdos substantivos querendo se afirmar19. Defendemos com isso algo de bastante específico: que todos os sujeitos devem possuir dignidade igual na tomada de decisões. Por isso estranho quando Fraser divide o trabalho entre “teoria” e “deliberação cidadã”, fazer esta distinção é acreditar que filósofos fazem algo de categorialmente distinto das demais pessoas. Este é um ponto confuso no pensamento fraseriano, pensa que “there are no clearly marked borders separating political theory from the collective reflection of democratic citizens” (p. 71), mas se não existem “bordas claras”, existem então bordas tênues?
Sustento, partindo de Rorty, que não haja
algo como um limite categorial para essa distinção; o máximo que posso pensar é que um filósofo competente terá argumentos realmente bons quando em comparação com um sujeito que, por ventura, dedique pouco tempo ao pensamento crítico. Mas nesse caso não é necessário falar em nenhuma “divisão de trabalho entre teóricos e cidadãos”, pois o teórico só pode ter vantagem na deliberação democrática em referência a sua capacidade de convencimento dos demais participantes – e esta é precisamente a base da democracia. Pode-se ceder que em alguns casos os sujeitos decidam permitir que um perito explique os meandros de determinado problema sobre o qual medidas serão tomadas, mas aqui também não é necessário falar em “limite da democracia”, pois esta vantagem no tempo de fala do perito – por definição – também está submetida às decisões democráticas. Ou seja, é recomendável que o perito se cale quando a maioria assim desejar. Neste ponto Fraser se aproxima do engano de Honneth quando este pergunta retoricamente: “(...) what would be the implications for the categorial framework of a critical social theory if, at a particular time and for contingent reasons, problems of distribution no longer played a role in the political public sphere?” (FRASER:2003 117)
O problema aqui é que ambos estão subestimando a democracia. Ora, as pessoas – animais inteligentes que são – só abandonarão as reivindicações distributivas se estas deixarem de lhes ser um problema. A possibilidade de abandonarem uma questão problemática é absurda e não precisa ser cogitada. Cogitá-la, como Honneth, faz parecer que o nosso maior problema atual é a ausência de um fundamento para a justiça, que falta às pessoas um senso de justiça que possibilite a democracia – mas nosso problema não é a ausência de tal fundamento, mas sim a existência de poderes políticos interessados na ausência democrática. 19
O debate sobre a verdade entre os filósofos Richard Rorty e Jürgen Habermas é bastante pertinente neste ponto. Embora endosse a ‘epistemologia’ rortyana, propus em outro lugar que o filósofo se equivoca quando faz o pragmatismo parecer algo de vago e tênue, desprovido de conteúdos substantivos. A este respeito indico meu artigo de 2009: Entre verdade e democracia: Os debates Rorty & Habermas. Disponível em http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/edicao3.htm.
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A abordagem fraseriana versa precisamente sobre a competência democrática para as decisões. Em referência a posições populistas e autoritárias, Fraser nos diz: “Both those approaches are monological, vesting in a single subject the authority to interpret the requirements of justice. In contrast to such approaches, the status model treats participatory parity as a standard to be applied dialogically, in democratic processes of public deliberation. No given view —neither that of the claimants nor that of the “experts”—is indefeasible. Rather, precisely because interpretation and judgment are ineliminable, only the full, free participation of all the implicated parties can suffice to warrant claims for recognition.” (FRASER:2003 43)
Por isso considero que Fraser, com seu modelo de status baseado na reivindicação por paridade participativa, segue no caminho certo. Todavia complica um pouco as coisas no modo de sua argumentação. Ela quer que as interpretações dos “requerimentos de justiça” sejam dialógicas, mas insiste – a meu ver desnecessariamente – numa concepção de justiça deontológica. Pensa assim porque considera que “sob as condições modernas do pluralismo de valor” seria “sectário” vincular o reconhecimento à auto-realização: “No approach of this sort can establish such claims as normatively binding on those who do not share the theorist's conception of ethical value.” (FRASER:2003 30). Mas essa forma de colocar as coisas entra em conflito com a posição dialógica defendida por Fraser. Compreendamos então a posição de Fraser: considera que as cidadãs e cidadãos devem decidir sobre o leque de possibilidades para o empreendimento da “justiça”, mas a conceitualização desta justiça e a circunscrição do alcance das políticas públicas, cabem à deontologia e aos teóricos. Há aqui uma contradição desnecessária, pois não há meios para fundamentar absolutamente a ‘justiça’. Essa concepção de justiça, Fraser nos diz, é retirada do espírito moderno da “liberdade subjetiva”, mas este espírito não precisa estar acima da opinião dos sujeitos; ao contrário, ele só se sustentará se estiver intimamente integrado à opção dos sujeitos. Aqui é necessária a sutileza de perceber que a democracia pode cuidar de si mesma20. 20
Tugendhat em suas Lições de Ética (1996) nos diz: “(...) se o bem não é mais dado previamente de modo transcendente, parece então que é apenas o recurso aos membros da comunidade que por sua vez não pode ser limitada e que, portanto, deve fornecer o princípio do ser bom para todos os outros – e isto quer dizer também para seu querer e seus interesses. Formulado de maneira taxativa a intersubjetividade assim compreendida passa a ocupar o lugar do previamente dado de maneira transcendente e parece assim constituir o único sentido que ainda resta de preferência objetiva.” (p.95) E acrescenta uma justificativa para a insistência dos filósofos na dedução transcendente: “Estamos inclinados a isto [deduzir de algum outro lugar] por causa de nossa proveniência de morais tradicionais e porque como crianças, primeiro, crescemos no contexto de uma compreensão de moral ao menos em parte autoritária. Assim, terminamos esperando de uma outra parte uma simples fundamentação (da razão) em analogia com um apoio pela
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Para clarificar a questão tomemos um exemplo prático de Fraser. “Such tactical considerations aside, the case of same-sex marriage presents no conceptual difficulties for the status model. On the contrary, it illustrates a previously discussed advantage of that model: here, the norm of participatory parity warrants gay and lesbian claims deontologically, without recourse to ethical evaluation—without, that is, assuming the substantive judgment that homosexual relationships are ethically valuable. The self-realization approach, in contrast, cannot avoid presupposing that judgment, and thus is vulnerable to counter-judgments that deny it.” (FRASER:2003 40)
Há aqui algumas complicações desnecessárias. A ideia de uma justiça deontológica acima da opinião dos atores é desnecessariamente autoritária. A distinção que posso ver nesse caso é entre ‘coisas que não gosto’ e ‘coisas que não admito’, pois a distinção entre ‘concepção de justiça’ e ‘concepção de boa-vida’ faz parecer que devemos tratar as duas coisas em separado. Mas a meu ver o mais interessante é propor que devemos tratar as duas coisas juntas. Nesse caso devemos acreditar que democratizando as mídias, as escolas, as condições de vida e dignidade, democratizando a sociedade, então – a cada passo – as soluções encontradas pelas pessoas serão mais e mais próximas de uma boa concepção de justiça integrada a uma boa concepção de boa vida. Não há necessidade de afirmar uma instância distinta da opinião dos atores, com autoridade sobre estes atores, ao contrário, é necessário que os atores sociais tomados igualmente assumam os poderes que, atualmente, são facultados a atores “especiais” simplesmente por possuírem a propriedade privada. Acho que essa forma de colocar as coisas é fiel ao projeto fraseriano de subsumir redistribuição e reconhecimento sob uma perspectiva de justiça democrática (neste caso nãodeontológica). Mas vejamos um pouco mais porque Nancy Fraser, no início de sua explanação, toma o caminho dessa distinção entre justiça e boa vida: “Norms of justice are universally binding; like principles of Kantian Moralität, they hold independently of actors’ commitments to specific values. Claims about self-realization, on the other hand, are usually considered to be more restricted. Like canons of Hegelian Sittlichkeit, they depend on culturally and historically specific horizons of value, which cannot be universalized.” (FRASER:2003 28)
autoridade.” (p. 92)
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Ela própria concede que esse contraste, entre Moralidade e auto-realização, “em parte”, é uma “questão de perspectiva” (p. 28). Gostaria de propor que essa questão é ‘completamente’ uma questão de perspectiva. Não há uma moralidade, como a kantiana, desvinculada da história e da opinião dos sujeitos: esta concepção é resquício de um indesejado autoritarismo. Nesse sentido a defesa de Honneth da necessidade de uma antecipação da boa vida para qualquer avaliação normativa parece sensata – excetuando sua proposta de construir tal “antecipação” a partir de uma fenomenologia empiricamente orientada, mais útil e mais coerente é construí-la democraticamente, a partir das arenas de discussão públicas; nesse caso, pace Honneth, os movimentos populares são sim fontes legítimas de argumentação. Para concluir gostaria de expressar uma dúvida mais prática sobre a argumentação de Fraser. Soa-me perfeita sua explanação sobre o dualismo perspectivo e a necessidade de que a esquerda integre as lutas por redistribuição e reconhecimento, de modo a construir uma nova sociedade – enfim democrática. É bastante progressista sua distinção entre políticas afirmativas e transformativas, que clarificam a inutilidade do reformismo. A questão que trago é sobre a possível eficiência da estratégia proposta por Fraser em sua conclusão: as reformas não-reformistas. Fraser acredita que, através de reformas com vistas a médio e longo-prazo, é possível uma transformação substantiva da realidade capitalista de opressão e miséria: “These would be policies with a double face: on the one hand, they engage people's identities and satisfy some of their needs as interpreted within existing frameworks of recognition and distribution; on the other hand, they set in motion a trajectory of change in which more radical reforms become practicable over time.” (FRASER:2003 79)
A esse respeito Fraser argumenta que a social-democracia no período fordista optou por essa estratégia, mas não teve tempo de ver seus frutos por conta da ascensão neoliberal. “Although none of these policies altered the structure of the capitalist economy per se, the expectation was that together they would shift the balance of power from capital to labor and encourage transformation in the long term. That expectation is arguable, to be sure. In the event, it was never fully tested, as neoliberalism effectively put an end to the experiment.” (FRASER:2003 80)
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Minha questão é se realmente faltou tempo para ver os resultados do experimento, ou se o advindo neoliberalismo não pode ser compreendido como parte do experimento, que teria então falhado. Quer dizer, políticas públicas progressistas em meio à lógica do capital são – por definição – empreendimentos dificultados. Quanto mais resultados práticos tais políticas alvejarem, maior será a rejeição do poder vigente. Tal estratégia das reformas não-reformistas exigiria um nível organizacional estupendo e permanente dos movimentos populares para, co-existindo com o capital, vencer-lhe as batalhas em nome de cada nova política pública de democratização. No Brasil temos o caso do golpe militar de 64, quando o capital nacional aliado ao capital internacional (principalmente Estados Unidos) resolveram que a ‘democracia’ estava indo longe demais. Assim sendo, penso que a questão sobre a possibilidade das reformas não-reformistas é a questão sobre o futuro do capitalismo: podemos esperar um aprimoramento da democracia neste sistema ou, ao contrário, ele tende – se deixado solto – ao incremento da espoliação e submissão21? Que nível organizacional seria necessário para convivermos com os interesses do capital e garantirmos avanços homeopáticos na sociedade? Não haveria uma estratégia que exigisse dos movimentos populares um nível organizacional mais focalizado num movimento radical de ruptura que eliminasse a co-existência autoritária do poder do capital e, assim no longo prazo, não nos exigisse uma dificultada mobilização permanente paralela à exploração e opressão? Aqui me refiro a uma estratégia de independência semelhante à adotada por Cuba. Deixo estas questões em aberto.
Bibliografia GRANIÇO, Frederico. A Verdade no fim da linha e a urgência democrática: Estudos sobre o debate Habermas & Rorty de 2000. In: Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana. Ano 2, Número 1, 2010. FRASER, N; HONNETH, A. Redistribution or Recognition. A political-Philosophical exchange. Londres/Nova York: Verso, 2003. TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
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Ainda mais nos tempos atuais onde assistimos ao crescente monopólio do poder econômico por uma classe mínima de mega proprietários transnacionais.
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SOBRE A IMPORTÂNCIA INTRÍNSECA DAS DECISÕES DEMOCRÁTICAS PARA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA – uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser Antoine Lousao* Resumo: Nancy Fraser e Amartya Sen desenvolvem conceitos substantivos de justiça cuja pedra de toque é a participação democrática. Porém, os dois autores discutem as questões de justiça partindo de perspectivas e debates totalmente distintos. Através da ampliação da base informacional para a consideração da liberdade, Amartya Sen se situa em uma discussão com as teorias do public choice e com os utilitaristas – criticando o modelo de maximização da utilidade e de ponto social ótimo. Com sua teoria das políticas transformativas/desconstrutivas, Nancy Fraser provoca uma discussão com as políticas afirmativas e as teorias do reconhecimento – criticando a idéia de identidade psicológica (self) como base da justiça. A abordagem comparativa dos textos dos dois autores permite compreender seus respectivos alcances e limites. Essas diferenças se exprimem com respeito à intensidade crítica em relação ao liberalismo político, ao grau de universalismo das teorias, e à possibilidade de traduzi-las em diretrizes de políticas públicas. Palavras-chave: democracia, justiça, reconhecimento, políticas afirmativas. Abstract: Nancy Fraser and Amartya Sen develop substantial concepts of justice based on participative democracy. Despite this common concern, each of them discuss justice from different start points. Amartya Sen sets the debate on the importance of informational basis for freedom degree evaluation, disagreeing with public choice theories and the utilitarianism – criticizing the maximin model and the concept of social optimum. In a different approach, Nancy Fraser makes objections to affirmative action and the theories of recognition, criticizing the use of the concept of self as a foundation for justice. Her critical model is based on deconstruction and transformation of traditional categories. The analyses of both theories may lead us to a better comprehension of their respective reach and limits. The differences between them concern both critical intensity towards political liberalism, universalism degree, and ability to inspire public policies improvements . Keywords: democracy, justice, recognition, affirmative policies. Notas :
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* Mestre em Filosofia Política pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), Mestre pelo Institut d’Études Polítiques de Paris (Sciences Po), doutorando de Ética e Filosofia Política pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Introdução: A partir da perspectiva aberta por John Rawls1, com sua proposta de organização da cooperação social com base em regras distributivas fundamentadas racionalmente, diversos autores desenvolvem teorias da justiça2 segundo critérios normativos rivais. Cada autor propõe um ordenamento da sociedade que lhe parece mais legítimo e justificável politicamente. Essas teorias examinam a questão da justiça visando um suposto ponto ótimo de distribuição de determinados recursos, mas raramente integram nesses recursos a importância intrínseca da capacidade decisória para a vida dos indivíduos. Na maioria dos casos tal capacidade é vista somente como um instrumento de deliberação ou barganha para a obtenção de outros recursos materiais e simbólicos considerados como fundamentais. A capacidade decisória só se relaciona com a justiça exteriormente, sem integrar a definição de seu conteúdo. Do outro lado do espectro teórico, alguns autores3 buscam fundamentar a teoria da justiça em uma teoria da democracia, seguindo nesse ponto o caminho pioneiramente trilhado por Robert Dahl 4. No entanto esses autores acabam muitas vezes defendendo uma visão puramente processualista da justiça, esvaziando-na de seus conteúdos morais substantivos herdados das tradições liberal, republicana ou socialista. No amplo espectro de perspectivas criado pelas teorias inovadoras dos anos 1960 e 1970, como a de John Rawls no campo da justiça e a de Robert Dahl no campo da democracia, fica aberta a questão do tipo de democracia que pode servir de pedra angular para a organização de uma sociedade justa. Dito de maneira inversa, que racionalidade moral pode dar sentido ao regime democrático? Uma vez que a questão da justiça na esfera social está relacionada a uma determinada definição da cidadania, as investigações sobre essa questão exigem ainda a consideração dos limites dos traços dominantes da noção de cidadania sustentados ao longo da segunda metade do século XX pelas sociedades de consumo e bem-estar. Novas exigências de pluralismo e diversidade surgidos de sociedades democráticas em profunda transformação fazem evoluir a noção de cidadania condizente com os novos conceitos de justiça. 1
RAWLS (1971). Em relação ao vasto debate sobre justiça, citemos apenas as referências cujo debate com Amartya Sen e Nancy Fraser é diretamente abordado no presente artigo e nos principais textos dos dois autores aos quais ele se refere: RAWLS (1971 e 1993-96), DWORKIN (1977), TAYLOR (1989), HONNETH (1992). 3 Por exemplo ACKERMAN (1991), HABERMAS (1992). 4 DAHL (1972 e 1989). A teoria empírica da democracia centrada nas bases decisórias foi pioneiramente desenvolvida por Robert Dahl, que sugere uma reorganização teórica dos conceitos políticos de modo a submeter as problemáticas de justiça aos problemas teóricos da democracia decisória. 2
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Movidos pela necessidade de pensar um modelo democrático capaz de formular políticas públicas que atendam as demandas mais diversas, aceitando o desafio de pensar os limites dos paradigmas de democracia e de cidadania mais difundidos, Nancy Fraser e Amartya Sen desenvolvem conceitos substantivos de justiça cuja pedra de toque é a participação democrática. Esses dois autores têm portanto uma preocupação comum: pensar uma racionalidade para a participação democrática que integre a definição substantiva de justiça nas relações sociais e na formulação de políticas públicas. Ambos os autores têm ainda a preocupação de adotar um ponto de vista universalista, levando ao mesmo tempo em consideração a grande diversidade dos indivíduos e grupos. Ao considerar a importância da diversidade e da pluralidade para a formulação de questões e soluções políticas, ambos criticam o caráter limitado das políticas afirmativas e distributivas tradicionais, que acabam reforçando os isolamentos sociais ao invés de eliminá-los. Essa crítica leva ambos a considerar o caráter limitado dos modelos tradicionais de cidadania, baseados em traços psicológicos ou hipóteses econômicas por demais simplistas5. Assim, ambos visam uma ação política ampliada capaz de reduzir as desigualdades sociais e políticas, a partir de um ponto de vista crítico sobre as teorias tradicionais. Ao definirem essas desigualdades, ambos recorrem ao vocabulário da dominação e da exploração. Enfim, para eliminar essas desigualdades através de uma democracia ampliada, ambos defendem a aplicação de políticas multi-setoriais e integradas (sobretudo nas áreas de educação, saúde e assistência no caso de Nancy Fraser; também mostrando uma preocupação com as políticas fiscais e financeiras no caso de Amartya Sen). Apesar dessas semelhanças de propósitos percebidas em uma primeira abordagem dos textos6, Nancy Fraser e Amartya Sen discutem as questões de justiça e democracia partindo de perspectivas e debates totalmente distintos. Enquanto Amartya Sen adota um modelo agregativo, baseado nas decisões individuais, Nancy Fraser adota um modelo de deliberação dialógica. Enquanto Amartya Sen parte de uma discussão com as teorias do public choice e com os utilitaristas – criticando o modelo racional de escolha individual, de maximização da utilidade e de ponto social ótimo que essas teorias defendem – Nancy Fraser parte de uma discussão com as teorias do reconhecimento – criticando o modelo de identidade psicológica que molda seus princípios de justiça. No primeiro caso, Amartya Sen busca compreender a justiça a partir de uma teoria da 5
Os principais alvos dessas críticas são TAYLOR (1989) e HONNETH (1982) no que diz respeito à teoria do reconhecimento, e RAWS (1971), no que diz respeito à teoria da justiça distributiva. 6 Tomamos como base de análise FRASER (1995, 2000, 2003 e 2007) e SEN (1979, 1992, 1996, 1999 e 2003).
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escolha com base informacional, integrando indicadores heterodoxos do bem-estar social na medição da desigualdade e apontando para a importância da responsabilidade coletiva em relação às capacidades decisórias individuais. A contemplação das diversidades econômicas, de gênero e de outros tipos advêm da discussão com as teorias tradicionais da escolha e da decisão, inspiradas nas teorias do consumidor dos economistas marginalistas7. No segundo caso, Nancy Fraser desenvolve a partir de uma discussão com as teorias do reconhecimento uma releitura da teoria de classes que a leva a considerar o problema dos ordenamentos sociais segundo o princípio de paridade participativa. Essa paridade depende de certas representações simbólicas com força institucional, ao mesmo tempo em que contribui para moldar essas mesmas representações: “it is unjust that some individuals and groups are denied the status of full partners in social interaction simply as a consequence of institutionalized patterns of cultural value in whose construction they have not equally participated and which disparage their distinctive characteristics asigned to them.”8
Assim, os modelos de decisão, de democracia e de distribuição desenvolvidos por cada um dos autores está fundamentado em debates distintos e em modelos distintos de racionalidade. Nos pontos críticos em que se encontram, os dois autores desenvolvem posições divergentes e objeções recíprocas, por exemplo sobre questões de gênero, de pobreza, de políticas públicas sociais. Sendo assim, uma abordagem comparativa das duas teorias pode ser esclarecedora em relação a sua originalidade, alcances e limites para a compreensão dos vínculos entre democracia, decisão e justiça. O pensamento de Nancy Fraser tem uma dimensão desconstrutiva 9. Ele visa o entendimento crítico das categorias baseadas em dicotomias tradicionais, aplicando esse método interpretativo a questões de gênero, opção sexual e grupos. Essa proposta inaugura uma tentativa de repensar em profundidade a racionalidade da interação social, com alternativas conceituais ao pensamento liberal, e assumindo ao mesmo tempo heranças do pensamento republicano igualitário. Por outro lado, ela exige certa diferenciação para cada caso de diversidade considerada e tem alcances práticos menos imediatos. A solução defendida por Amartya Sen se apóia nas teorias criticadas para ampliar sua 7
Os principais economistas da chamada revolução marginalista são Jevons, Mengers e Walras. Essa abordagem, tida como base da micro-economia, emprega funções derivadas para analisar as decisões de consumo e produções, que permite mensurar o aumento da utilidade, da produtividade ou do rendimento por unidade superior de bem consumido ou de fator de produção empregado. 8 FRASER, (2003), p.29. 9 Inscrevendo-se abertamente na tradição desconstrutivista baseada nos escritos de Jacques Derrida, por exemplo em L’Ecriture et la différence, Paris, Seuil, 1967 e Marges- de la philosophie, Paris, Minuit. 1972.
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base racional, assumindo alguns conceitos herdados da tradição liberal. Assim, a teoria da base informacional não questiona radicalmente a tradição filosófica. Tem porém o mérito de propor um critério único (universal) para abordar a questão da diversidade e da igualdade na formulação de políticas públicas tangíveis, obtendo assim maior alcance na formulação e justificação de programas políticos. Enfim, essas diferenças são repercutidas no papel conferido à capacidade decisória dos indivíduos em relação à justiça: na teoria de Nancy Fraser, esse papel não é ilimitado, cabendo prioritariamente à especulação teórica o questionamento crítico das categorias políticas (mesmo se os bens sociais são discutidos publicamente). Na teoria de Amartya Sen, é a própria discussão democrática que formula as categorias da política, além de seus problemas, demandas e soluções. 1. Democracia, decisão e justiça: Amartya Sen e Nancy Fraser consideram a problemática da justiça a partir da determinação de ordenamentos sociais, valores e necessidades construídos na interação social. Os dois autores dão à democracia um valor intrínseco e não meramente instrumental com respeito à justiça. Porém, a maneira como cada um desenvolve o seu modelo de participação e o papel específico que cada um reconhece à democracia já indicam algumas divergências entre suas teorias. Em Nancy Fraser, é proposto um modelo de justiça baseado no status assumido dentro da cooperação social10, e medido segundo a capacidade participativa. Como Amartya Sen, Nancy Fraser aborda o problema da justiça e da participação democrática a partir dos limites das teorias que fazem uma leitura das questões de justiça exclusivamente sob o ângulo da distribuição ou exclusivamente sobre o ângulo do reconhecimento. Trata-se de restituir a complexidade das questões e de perceber que na prática os dois tipos de justiça (e injustiça) se misturam e se reforçam mutuamente (dialeticamente). O desenvolvimento de uma teoria multifacetada com respeito aos aspectos da justiça a serem levados em consideração no debate democrático levam a uma releitura das categorias sociais desenvolvidas na segunda metade do século XX. Em contraposição às ortodoxias marxista e keynesiana dominantes, a autora tem a preocupação de pensar a especificidade dos status individuais nas interações sociais da “era pós-socialista”: “Unlike stratification theory in postwar US sociology, for example, I do not conceive status as a prestige quotient that is ascribable to an individual and compounded of quantitatively measurable factors, including economic índices such as income. In my conception, in contrast, status represents 10
FRASER (2003), 1. II, p. 28-29.
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an order of intersubjective subordination derived from institutionalized patterns of cultural value that constitute some members of society as less than full partners in interaction. Unlike Marxist theory, likewise, I do not conceive class as a relation to the means of production. In my conception, rather, class is an order of objective subordination derived from economic arrangements that deny some actors the means and ressources they need for participatory parity.”11
No entanto, se a participação democrática é considerada pela autora como pedra de toque fundamental para a justiça e a qualidade da cidadania, seu campo de atuação fica bem delimitado à escolha entre as opções de ordenamentos sociais. Cabe à teoria especulativa e não à democracia o papel de esclarecer a compatibilidade dos programas políticos com os requisitos de justiça. Ou seja, a discussão democrática não tem valor absoluto para decidir o que é aceitável politicamente e socialmente, ficando restrita à escolha entre opções desenvolvidas pelo pensamento crítico independente: “when we consider institutional questions, theory can help to clarify the range of policies and programs that are compatible with requirements of justice; wheighing the choices within that range, in contrast , is a matter for citizen deliberation.”12
Assim como Nancy Fraser, Amartya Sen parte da determinação da responsabilidade social pela necessidade de assegurar a cada indivíduo a possibilidade de tomar parte no processo decisório democrático que determina as escolhas sociais e os valores e prioridades entre opções conflitantes. O que está em jogo para o autor é o debate sobre os fins em última instância a serem almejados pela sociedade. Para Amartya Sen, isso inclui tanto o conceito de justiça a ser adotado como os meios e processos pelos quais os fins estabelecidos são implementados e avaliados. Nessa perspectiva, notase que a democracia tem um papel irrestrito na definição da justiça e na determinação da responsabilidade social. Esse papel irrestrito resulta de uma re-interpretação num sentido amplamente democrático do conceito de Razão Pública, originalmente desenvolvido por John Rawls13. O regime democrático é ao mesmo tempo objeto de decisão e critério de responsabilização coletiva. No caso de Amartya Sen, o desenvolvimento de uma teoria da justiça que busca ampliar o espectro de considerações teóricas acerca das demandas sociais nas democracias também leva o 11
FRASER (2003) p.49. FRASER (2003) p.72. 13 RAWLS (1971), SEN (2003) p. 12. 12
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autor a questionar as categorias sociais dominantes na segunda metade do século XX, vinculadas a um ideal tradicional de sociedade de bem-estar. Sua proposta se traduz na troca dos diferentes critérios disponíveis (como bens primários e utilidades) por um critério mais amplo e fundamental: as capacidades, definidas como “um conjunto de vetores de funcionamentos, refletindo a liberdade da pessoa para levar um tipo de vida ou outro” 14. Os funcionamentos realizados constituem o bemestar de uma pessoa, e a capacidade para realizar funcionamentos (todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constitui a liberdade da pessoa – as oportunidades reais – para ter bem-estar: “A capacidade é principalmente um reflexo da liberdade para realizar funcionamentos valiosos. Ela se concentra diretamente sobre a liberdade como tal e não sobre os meios para realizar a liberdade, e identifica alternativas reais que temos.”15
Essa “liberdade de bem-estar” pode ter relevância direta na análise ética e política. A organização social deve ser feita de maneira a permitir o desenvolvimento das capacidades dos indivíduos. Nessa perspectiva, a capacidade decisória não é um mero meio, mas um requisito de bem estar. Escolher pode em si ser uma parte valiosa do viver, e uma vida de escolhas genuínas pode ser considerada como sendo mais rica. Amartya Sen está preocupado tanto com a participação dos indivíduos na democracia quanto com suas escolhas privadas. A preocupação de Amartya Sen com as decisões privadas individuais como base de compreensão da participação democrática é claramente estranha à teoria de Nancy Fraser. Para Amartya Sen, a participação política ganha em relação à justiça um valor intrínseco (tornar a existência do indivíduo mais rica), instrumental (responsabilização dos poderes públicos em relação às liberdades individuais) e construtivo (formação dos valores e compreensão das necessidades, dos direitos e deveres de cada um)16. Se a importância da participação política para a definição da justiça é comum aos dois autores, as maneiras de considerar as funções da democracia divergem claramente. Para compreender melhor os pontos de convergência e os pontos de divergência entre as duas teorias, é necessário apreciar seus respectivos modelos de participação e de decisão, assim como as compreensões da razão pública17 que as sustentam. Ambas as teorias defendem o debate público. 14
SEN (1992), p. 80. SEN (1992) p.89. 16 SEN (2003) p.87. 17 A expressão “razão pública” é empregada por Nancy Fraser em FRASER (2003) p. 43, e por Amartya Sen em SEN (2003) p.12. Os dois autores retomam o conceito proposto por John Rawls, mas cada um muda sensivelmente seu significado de acordo com as premissas de sua própria concepção da democracia. 15
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Amartya Sen se refere com freqüência à importância da discussão pública e da troca de idéias 18, enquanto Nancy Fraser defende a noção de deliberação em um sentido dialógico19 (diferente de um modelo de deliberação que visaria qualquer tipo de consenso). Ao afirmar a importância da discussão pública, ambos os autores a consideram como um meio de inovação das problemáticas políticas e de definição dos objetivos sociais a serem atingidos, permitindo romper o conservadorismo sustentado por uma definição rígida de bens primários. Para Nancy Fraser, a deliberação com base discursiva e dialógica, observando a exigência de paridade participativa (e ao mesmo tempo favorecendo o alcance dessa exigência), leva a uma recusa do modelo econométrico de decisão, baseado na definição de preferências pelo indivíduo com busca de um ponto ótimo. Por outro lado, o modelo participativo de Nancy Fraser não se confunde com um regime político onde cada indivíduo ou grupo define o que é melhor para si com base em sua identidade. Ao discutir a validade dos dois modelos como fundamento político – teoria da decisão e reconhecimento de identidades – Nancy Fraser procura minimizar o papel exercido pelas diferentes decisões privadas na participação democrática. A justiça não é determinada pela agregação de preferências privadas mas pela forma própria do debate público. Portanto o modelo político não é agregativo. Já para Amartya Sen, a demonstração da possibilidade de agregar preferências individuais para formar escolhas coletivas constitui um ponto central da teoria. A importância da discussão pública para a definição das questões políticas e do próprio conceito de justiça também leva o autor a criticar os modelos métricos propostos pelas teorias da decisão. No entanto, Amartya Sen não recusa completamente esses modelos, buscando antes ampliar suas premissas e o campo de liberdade humana considerado. Amartya Sen discute a possibilidade de escolhas sociais sem abandonar a exigência de liberdade decisória individual defendida pela tradição liberal, analisando os meandros dos modelos decisórios defendidos por essa tradição. Ao contrário de Nancy Fraser, o autor busca basear as macro-decisões sociais na agregação das diferentes concepções de bens que sustentam as micro-decisões privadas. Essa diferença expressiva entre as duas teorias está relacionada tanto às respectivas racionalidades políticas adotadas quanto aos respectivos debates teóricos no qual elas se inserem.
18
SEN (1999 e 2003). FRASER (2003), p. 42-43. A seção evoca explicitamente o debate com as teorias da decisão no seu título: Decision or democratic deliberation. 19
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2. Debates contextuais: igualdade de recursos, diversidade de identidades: Amaryta Sen e Nancy Fraser desenvolvem suas teorias a partir da constatação da insuficiência dos termos do debate sobre cidadania, justiça e democracia na segunda metade do século XX. Porém, os debates em que se insere cada um dos dois autores para mostrar a limitação dos paradigmas vigentes não é o mesmo. Amartya Sen parte da crítica das teorias igualitárias que ao assumirem um princípio formal de igualdade desconsideram a existência de desigualdades e diversidades. Nancy Fraser parte da crítica das teorias da diversidade que consideram os problemas de desigualdade como problemas de identidade individual ferida. Assim, os dois autores partem de pólos opostos do debate, buscando equilibrá-lo. Com respeito à evolução das questões de democracia e justiça na segunda metade do século XX, Nancy Fraser parte da constatação que a batalha por reconhecimento se tornou a forma paradigmática do conflito político20, valorizando problemas de nacionalidade, etnia, raça, gênero e sexualidade, e substituindo os conflitos de classe. A problemática da dominação cultural substitui a problemática da exploração capitalista. Porém, a autora lembra que tais conflitos ocorrem em contextos de desigualdade material exacerbada, com condições desiguais de saúde, educação, emprego, renda e propriedade (tanto no nível de cada país como globalmente). Daí a importância de desenvolver uma crítica das teorias puras do reconhecimento, ou uma teoria crítica do reconhecimento que defenda políticas culturais da diferença somente na medida em que possam ser combinadas com políticas sociais de igualdade. Tal teoria requer a consideração conjunta das questões de reconhecimento e distribuição, rejeitando teses polarizadas. A perspectiva desenvolvida por Nancy Fraser procura combinar a denunciação da injustiça sócio-econômica promovida por teorias que estão comprometidas com algum tipo de igualitarismo21, com teorias que denunciam a dominação cultural, o não-reconhecimento e o desrespeito, baseandose em problemas de representação, interpretação e comunicação22. Ao mesmo tempo, os problemas de reconhecimento deixam de ser do ponto de vista político um problema de identidade ferida para se tornar um problema de igualdade perante as oportunidades de participação na formação dos valores. Amartya Sen também defende uma teoria democrática com propósitos igualitários, mas trata de maneira distinta a questão da relação entre igualdade e diversidade, partindo da crítica do caráter 20
FRASER (1995) p. 68. Segundo Nancy Fraser, essa vertente teórica é representada por autores como Karl Marx, John Rawls, Amartya Sen e Ronald Dworkin. In FRASER (1995) p.71. 22 Esse argumento visa os autores de inspiração hegeliana que compreendem o reconhecimento como uma questão de auto-realização, e a falta de reconhecimento como uma lesão à identidade pessial e à subjetividade. São visados principalemente TAYLOR (1989) e HONNETH (1992). 21
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restrito das teorias da justiça distributiva e do igualitarismo formal 23 (pelos limites desses últimos em relação à consideração da diversidade humana). Segundo Amartya Sen, as investigações da igualdade falham ao considerar a diversidade humana como um problema secundário, e ao suporem uma uniformidade antecedente (a idéia de que todos os homens são criados iguais). A consideração da igualdade sob um certo aspecto é dependente do espaço específico de avaliação que se está adotando. As características da desigualdade em espaços diferentes (tais como renda, riqueza, felicidade, etc.) tendem a não convergir devido à heterogeneidade das pessoas. A igualdade em termos de uma variável pode não coincidir com a igualdade na escala de outra. As oportunidades iguais podem resultar em rendas bastante desiguais. A diversidade generalizada dos seres humanos acentua a necessidade de lidar com a diversidade de foco na avaliação da igualdade. Dessa constatação fundamental surgem importantes debates com as teorias utilitaristas, distributivas e do bem-estar, e com as teorias das escolhas sociais (public choices)24. Com respeito ao primeiro debate25, trata-se de adotar um critério mais adequado e mais amplo para a consideração dos problemas de justiça, condizente com exigências de pluralidade democrática no plano das escolhas individuais e das decisões coletivas. O utilitarismo restringe seu alcance ao colocar a questão da justiça em termos de maximização da utilidade, não considerando a pluralidade de preferências e não valorizando o ato e a abrangência da escolha em si (mas apenas seu objeto final)26. Amartya Sen reconhece os aportes fundamentais da teoria de John Rawls e sua compreensão da justiça como equidade em relação aos limites do utilitarismo. Porém, o autor defende a necessidade de focalizar a teoria sobre as extensões da liberdade alcançada (o que requer levar em consideração a pluralidade existente das pessoas) ao invés de simplesmente nos meios para alcançála (bens primários). Duas pessoas que detenham o mesmo pacote de bens primários podem ter
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SEN(1992). Com respeito ao primeiro debate, SEN (1992, 1996 e 1999). Com respeito ao Segundo debate, SEN (1979, 1996, 1999 e 2003). 25 Por exemplo em SEN (1992) p. 94-97. 26 Daí a importância de desenvolver um pensamento crítico sobre a restrição da base informacional a um critério único como a utilidade. Por exemplo, o princípio de Pareto, aparentemente não-sujeito à controvérsias, tem como única base informacional a utilidade, e por isso pode entrar em conflito com outras exigências elementares, relativas por exemplo ao respeito das liberdades pessoais (uma vez que o princípio só reconhece o mérito da liberdade em função de sua associação contingente com a utilidade). In Sen (1999). As objeções ao utilitarismo levam Amartya Sen a questionar, além dos princípios de Pareto, o modelo de decisão baseado na teoria neo-clássica do consumidor, e em particular as representações de decisões segundo curvas de indiferença, com suas taxas marginais de substituição entre bens. Com respeito a esse tipo de representação, Amartya Sen chama a atenção para seus limites em termos de grau de decisão e articulação. Mesmo com o aperfeiçoamento do modelo de maneira a aumentar os graus de decisão, não é eliminado o problema da indecidibilidade devido a valorações parciais dissonantes. in SEN (1992). 24
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diferentes liberdades para buscar suas respectivas concepções do bem, quer essas concepções coincidam ou não. Com respeito ao segundo debate (sua discussão com as teorias do public choice, em particular o seu debate com Kenneth Arrow)27, trata-se de defender a possibilidade da formação de escolhas coletivas de maneira a assentar a igualdade democrática na responsabilidade social e na determinação coletiva dos valores, questões sociais e prioridades. Contra as teorias da impossibilidade das escolhas coletivas, Amartya Sen defende o papel da discussão pública na determinação das escolhas sociais sob responsabilidade da coletividade. A liberdade individual não é só um meio de realização das decisões coletivas (determinação de valores e prioridades) ou finalidades individuais, mas também objeto de responsabilidade da coletividade. Enfim, da combinação entre decisões individuais com bases informacionais ampliadas, de um lado, e responsabilidade coletiva, de outro, surge uma teoria das escolhas coletivas: a compatibilidade dos princípios em discussão depende na maioria dos casos do grau de combinação possível entre bases informacionais distintas dentro das decisões sociais. Ao centrar sua teoria sobre as liberdades individuais, as comparações entre as liberdades desfrutadas por diferentes pessoas passa a fornecer a base agregativa necessária para as escolhas sociais. A organização social, segundo Amartya Sen, tem a missão de reconhecer os conflitos de interesses na sociedade e de elaborar uma solução eqüitativa para esses conflitos através de uma distribuição mais justa das liberdades individuais28. Portanto, as teorias de Amartya Sen sobre a justiça e a democracia se inserem num debate sobre os modelos de decisão, a igualdade formal entre indivíduos, a determinação de preferências e a maximização da utilidade, enquanto Fraser se concentra numa reflexão sobre os paradigmas da dominação nas teorias da justiça centradas na identidade (self). O que essa análise dos debates contextuais revela é a diferença de propósitos entre os dois autores: consideração da diversidade na aplicação de políticas igualitárias para um, desconstrução das diferenças no intuito de minar as políticas fundamentadas na identidade, para outro. Se os diferentes pontos de partida adotados pelos dois autores levam ambos a valorizar a diversidade das condições e das aspirações humanas na busca da realização pessoal dos indivíduos, 27
Em SEN (1979), o autor formula objeções (que incluem demonstrações matemáticas) ao teorema de Kenneth Arrow que demonstra a impossibilidade, dadas algumas hipóteses, de fundamentar escolhas coletivas sobre a agregação de escolhas individuais. Os trabalhos pioneiros no campo dos paradoxos da decisão foram desenvolvidos no século XIX por Borda e Condorcet. 28 Ibid.
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assim como a importância da democracia para levar em consideração essa diversidade, eles se baseiam em modelos distintos e acabam chegando a soluções diferentes em termos de políticas públicas. É nesse ponto que os dois autores divergem em definitivo.
3. Políticas públicas e transformação: A comparação entre os dois autores no que diz respeito às soluções de políticas públicas para os problemas de justiça e de capacidade decisória nos regimes democráticos apresenta uma importante similitude prática: a ênfase em políticas multi-setoriais. Uma mesma crítica é feita: as soluções distributivas focadas unicamente em questões de renda gerenciam os conflitos ao invés de eliminá-los29. Essa similitude está relacionada com a constatação do caráter multi-facetado dos problemas de dominação social e política, comum a ambos os autores. Porém, essa solução está assentada em bases conceituais claramente distintas em um e em outro caso, e resulta em paradigmas diferentes de democracia e de direitos individuais. Uma vez que se posiciona no debate entre reconhecimento e distribuição, Nancy Fraser é levada a discutir as questões de políticas públicas segundo seu alcance nesses dois aspectos. Isso a leva a estabelecer uma distinção fundamental entre políticas afirmativas e políticas transformativas. Segundo a autora, a afirmação consiste em remédios focados em reparar conseqüências injustas dos arranjos sociais sem interferir no quadro subjacente que os genera. A transformação, por sua vez, consiste na re-estruturação dos quadros sociais que generam a injustiça30. Enquanto a primeira solução defende um reconhecimento específico dos grupos e indivíduos, a segunda solução defende a desconstrução das dicotomias conceituais que produzem os efeitos de dominação social. As políticas afirmativas revelam seus limites por não questionar as bases estruturais da dominação. O mesmo ocorre com as políticas distributivas tradicionais (classificadas como um tipo de política afirmativa), que acabam reforçando a divisão entre grupos. Diferentemente dessas soluções tradicionais, as políticas públicas multi-setoriais minam a distinção de classes, induzem transformações e promovem a solidariedade entre os indivíduos e grupos31, modificando o senso de pertencimento, filiação e identidade de cada um.
29
SEN (1996) e FRASER (1995). FRASER (1995) p. 82. 31 Nesse ponto, Nancy Fraser opõe as políticas de reconhecimento específico defendidas pelo multiculturalismo e as políticas de desconstrução. Cita como exemplo a desconstrução da dicotomia hetorosexual/homosexual, em oposição à política de afirmação gay. Em outro campo politico, a autora cita como exemplo o caráter limitado das mudanças na divisão do consumo sem re-estruturação dos modos de produção. in FRASER (1995) p. 83-84. 30
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A distinção entre políticas transformativas e afirmativas, combinada à distinção entre distribuição e reconhecimento, dá lugar a uma tipologia de políticas públicas em quatro categorias, que resultam das combinações dois a dois entre os quatro termos das distinções: o Estado liberal de bem-estar (com políticas afirmativas distributivas), o Estado multiculturalista (com políticas afirmativas de reconhecimento), o socialismo tradicional (com políticas transformativas de redistribuição) e as políticas de desconstrução (políticas transformativas de reconhecimento), sendo essas últimas as únicas verdadeiramente capazes de minar a diferenciação entre grupos. Embora o dilema entre políticas afirmativas e políticas transformativas seja real, podendo gerar conflitos práticos, esses dois modos de ação também podem ser complementares 32. Dependendo do contexto, uma mesma ação afirmativa pode reforçar o efeito de diferença e a ordem estabelecida, ou então ser combinada a outras ações num âmbito transformador. Um programa de renda mínima pode deixar inalterada a estrutura de propriedade capitalista ou ter um efeito transformador a longo prazo sobre a relação trabalho/capital. Um programa de licença maternidade pode reforçar a divisão de trabalho entre os gêneros ou ter uma ação transformadora se combinada com um programa de implementação de creches públicas33. No entanto, podemos notar que esses exemplos de ações afirmativas não são baseados na afirmação de identidades morais, mas de grupos sociais em situação de desvantagem. Assim, os exemplos usados pela autora indicam que, mesmo quando vislumbra o caráter válido de ações afirmativas, Nancy Fraser não se refere à afirmação de identidades morais possivelmente feridas (conforme defendido pelas chamadas teorias do reconhecimento).
34
Outro exemplo desenvolvido pela autora é mais instigante quanto à sua posição
a respeito das políticas afirmativas e sua definição das mesmas: o “affaire foulard” (proibição do porte de qualquer sinal religioso nas escolas francesas, incluindo o véu portado por mulheres muçulmanas). A autora se declara em favor da posição laica, classificando-a de afirmativa por favorecer a integração das mulheres. Porém, a proibição do uso do véu não corresponde à definição tradicional de política afirmativa, mas se enquadra na tradição republicana francesa e seu princípio de laicismo, ambos assentados em uma concepção universalista e fortemente anti-particularista de cidadania. Se Nancy Fraser admite a complementaridade entre afirmação e transformação, sua definição das políticas afirmativas é no mínimo incomum.
32
Nesse ponto, observamos uma diferença de análise entre os diversos textos. Enquanto em FRASER (1995) observa-se uma dicotomia rígida entre políticas afirmativas e políticas transformativas, em FRASER (2003) essa dicotomia é mais branda, e o caráter possivelmente complementar dos dois tipos de políticas é afirmado. 33 FRASER (2003), 1. IV 34 Ibid.
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De acordo com a autora, a combinação de políticas de distribuição e reconhecimento a curto prazo com políticas transformativas a longo prazo permite responder a reivindicações de base da sociedade e ao mesmo tempo promover reformas mais profundas das estruturas sociais, que de outra forma seriam impraticáveis. Essa combinação dos dois tipos de políticas constitui a Via Media proposta. As políticas transformativas são propícias a coalizões e evitam as divisões dos movimentos sociais, eliminando os efeitos perversos que podem ser gerados por políticas puramente afirmativas (que adicionam direitos de acordo com especificidades, sem questionar os fundamentos das diferenças estabelecidas entre indivíduos e grupos). Segundo Nancy Fraser, a solução transformativa é bem adaptada para pensar problemas como a discriminação de gênero ou de “raça”, e é também propícia para casos de indivíduos que pertencem a várias categorias ao mesmo tempo. Frente à questão da diversidade e os limites das políticas afirmativas e distributivas usuais, Amartya Sen adota uma solução distinta. Não se trata de ultrapassar os limites dessas políticas desenvolvendo um questionamento crítico sobre o fundamento das identidades, mas de operar uma seleção (através do próprio processo democrático) de critérios de igualdade e de traços secundários de desigualdade para fins de formulação de políticas públicas35. É essa preocupação metodológica e prática que dirige a formulação da teoria. Tal procedimento envolve a consideração de elementos invariantes (ou que se deseja invariantes) e de elementos considerados incidentais em cada indivíduo. Além disso, essa seleção visa estabelecer prioridades de políticas democráticas, uma vez que o critério de igualdade selecionado como relevante pode implicar em desigualdades em outros planos de consideração. Nesse ponto, Amartya Sen identifica uma dificuldade metodológica: a identificação de particularidades dos grupos ou indivíduos na consideração da pluralidade humana pode levar a tipos de diversidade muito diferentes, até o limite da idiossincrasia, com o risco de qualquer tentativa de classificação para fins práticos terminar em desordem empírica. Daí a necessidade de desconsiderar uma série de diversidades para fins de formulação de políticas públicas (por exemplo limitando a atenção a variações intergrupais). Por um lado essa solução não tem o mesmo alcance desconstrutivo que a solução de Nancy Fraser em relação às classificações sociais. Por outro lado, a teoria de Amartya Sen, segundo ele próprio, é propícia à transformação de casos de falta de liberdade enraizada, onde a dominação está sedimentada culturalmente a ponto de não ser mais percebida como tal 36. A ampliação da base 35 36
SEN (1992), p. 204-207. SEN (1992), p. 96.
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informacional de consideração da liberdade individual pode revelar situações de injustiça até então não percebidas pela coletividade. Enfim, a solução de Amartya Sen deixa ao debate democrático toda a responsabilidade do trabalho crítico sobre as categorias sociais e as políticas que delas dependem. Ainda com respeito às diferenças em relação à solução de Nancy Fraser, pode-se dizer que a solução desenvolvida por Amartya Sen é mais acomodatícia do que desconstrutiva. Já no caso de Nancy Fraser a solução passa pela rejeição dos modelos tradicionais do liberalismo e do comunitarismo. Embora os dois autores critiquem os limites das teorias restritas da distribuição ou do reconhecimento e defendam uma concepção ampliada das problemáticas políticas, no caso de Amartya Sen esse projeto é realizado através da ampliação da base informacional considerada (as visões utilitaristas e os bens primários são a visão de um lado do problema, a serem integradas em uma visão mais ampla), sem invalidar as abordagens previamente realizadas por utilitaristas, welfaristas, etc. Porém, a assunção dessa herança política não impede o autor de pensar a democracia para além de seu modelo institucional do Ocidente37, em prol de uma definição desse regime em termos de debate público que abarca várias tradições38. Enfim, uma vez que o objetivo de Amarya Sen é antes a ampliação da base informacional considerada para a avaliação da desigualdade, do que a desconstrução das particularidades, sua proposta resulta na importância da publicação de informações diversificadas e de dados sociais múltiplos. Essa é uma preocupação teórica que se traduz de maneira prioritária em termos técnicos para a formulação e a avaliação de políticas públicas39. Já no caso de Nancy Fraser, a teoria não se traduz em uma metodologia clara para a difícil tarefa pública de avaliação social. 4. A questão do gênero: As diferenças entre os dois autores na abordagem do vínculo entre justiça e democracia, assim como na consideração da diversidade humana no campo político, podem ser ilustradas pelas diferentes considerações que esses autores fazem a respeito das questões de gênero. Segundo Nancy Fraser, a noção de política transformativa é particularmente propícia à compreensão das questões relacionadas ao gênero, uma vez que essas são questões de 37
Sobre as bases históricas das democracias liberais, herdadas principalmente das revoluções Inglesa, Americana e Francesa, ver MANIN (1992). 38 O projeto de pensar a democracia para além de seu modelo “ocidental” é um ponto central em SEN (2003), como dá a entender o próprio título da obra: Democracy and Its Global Roots. 39 SEN (1992 e 1996).
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reconhecimento que se traduzem em diferenças na distribuição de recursos, inclusive de recursos políticos. Portanto são questões que se reduzem em última instância a problemas de distribuição, ao contrário por exemplo da discriminação contra os homossexuais, que transpõe barreiras econômicas (ainda que possa ser tornada mais difícil em contextos de pobreza). Segundo Nancy Fraser, as questões de gênero (assim como as questões de “raça”) são questões ambivalentes, pois colocam os movimentos sociais diante de uma escolha: lutar pelo reconhecimento ou pela abolição da diferença. Essa alternativa pode provocar a cisão nos movimentos sociais, enfraquecendo-os. Ao revelar os limites dessa alternativa, a solução transformativa permite ir além, questionando os fundamentos da própria idéia de gênero. Para Amartya Sen, as questões de gênero também são questões de discriminação que resultam em problemas distributivos. O autor ressalta que essa desigualdade distributiva não se limita à renda mas compreende também outros benefícios diferenciais, como na divisão do trabalho dentro da família e na extensão da assistência ou educação recebidas, no domínio sobre o próprio corpo, e até no diferencial nos índices de mortalidade em certas sociedades. No entanto, a principal diferença entre a tese dos dois autores em relação aos problemas de gênero é o lugar que esses problemas ocupam dentro de sua teoria geral. Enquanto para Nancy Fraser as questões de gênero se encaixam de maneira particularmente adequada no trabalho do pensamento crítico transformativo, para Amartya Sen esses problemas são apenas mais um problema de não reconhecimento da pluralidade na consideração dos problemas de desigualdade. Em princípio, as questões de gênero não se distinguem de outras no que diz respeito às limitações da maneira como são consideradas pelas políticas distributivas e afirmativas tradicionais (como a pobreza, a diversidade cultural, etc. ), sendo portanto um exemplo da desigualdade a ser considerado junto com outros casos que possam vir a se manifestar pelas vias democráticas e pelos índices sociais ampliados. A diferença fundamental na compreensão das questões de gênero entre os dois autores – caso paradigmático para um, caso ilustrativo para outro – demonstra assim a diferença de abordagem dos princípios de racionalidade e modos de colocação em prática da justiça e do fortalecimento da capacidade decisória nos regimes democráticos. Considerações finais: sair do liberalismo?
A abordagem comparativa dos textos de Amartya Sen e Nancy Fraser permite compreender seus respectivos alcances e limites, segundo as diferenças entre os modelos de racionalidade pública 52
empregados pela teoria transformativa/desconstrutiva, de um lado, e pela teoria de ampliação da base informacional, de outro. Dada a preocupação comum com a capacidade participativa dos indivíduos para a realização da justiça (e outros traços comuns entre as teorias que acompanham essa preocupação), podemos nos perguntar: que modelo de democracia devemos empregar para pensar que justiça? Que premissas adotamos e até onde podemos ir com cada uma das duas soluções? Qual das teorias tem mais êxito na crítica dos limites das teorias distributivas ou afirmativas tradicionais? Ambas as abordagens permitem a crítica das teorias tradicionais da afirmação e da distribuição, que reforçam (ou no melhor dos casos gerenciam) os conflitos políticos e sociais e as desigualdades ao invés de eliminá-los. Ambas permitem a crítica de um modelo restrito de cidadania baseado na teoria pura do consumidor (do cidadão como homo-economicus), superando com esses argumentos uma crítica central feita às teorias que sustentam as sociedades de consumo da segunda metade do século XX40. No entanto, as duas teorias adotam perspectivas divergentes com respeito à consideração da relação entre decisões individuais e escolhas coletivas. Enquanto Nancy Fraser defende um modelo não agregativo de democracia, baseado na deliberação dialógica (sem busca de consenso), Amartya Sen desenvolve um modelo agregativo onde as escolhas sociais estão baseadas em última instância nas preferências e concepções de bens que sustentam as decisões individuais. Nancy Fraser centra sua perspectiva de justiça no problema da participação. Isso permite a crítica de certas teorias da identidade e do reconhecimento, como a de Charles Taylor e Axel Honneth, escapando dos limites dos argumentos da justiça centrados num modelo psicológico de identidade (self). Por outro lado, permite a crítica das teorias distributivas que adotam um ponto de partida supostamente neutro em relação às identidades, e cujo paradigma é constituído pela Teoria da Justiça de. John Rawls, em particular com o procedimento do véu da ignorância41. Em comparação com a teoria de Amartya Sen, podemos dizer que o caráter desconstrutivista da teoria de Nancy Fraser lhe dá um alcance crítico maior em relação aos modelos políticos tradicionais. Nessa perspectiva, a teoria de Nancy Fraser constitui um autêntico esforço para sair dos quadros conceituais tradicionais do liberalismo – assentados sobre um modelo clássico de direitos, de liberdade e de escolhas individuais – enquanto a teoria de Amartya Sen incorpora em certa medida a herança do pensamento liberal, se contentando de ampliar a compreensão de suas noções 40
Nesse ponto, ver por exemplo a crítica de Michael Sandel, sobre o caráter redutivista das sociedades pós-keynesianas em relação à cidadania, in SANDEL (1996). 41 RAWLS (1971).
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elementares – por exemplo ao assentar sua teoria sobre a liberdade individual de escolha, ou ao lembrar a importância da liberdade de exercer oposição aos governos para a garantia da liberdade em geral. Ao ampliar as teorias vigentes e ao buscar soluções acomodatícias, a teoria de Amartya Sen pode acabar restringindo sua capacidade criativa em relação a modelos políticos. Não obstante essa característica, a teoria não se limita a um modelo ocidental de democracia, como vimos. É preciso ainda trazer algumas nuanças a essas considerações. As posições políticas defendidas por Nancy Fraser muitas vezes retomam os preceitos do igualitarismo republicano, vinculando-se assim claramente a uma tradição política (como no exemplo do “affaire foulard” analisado). Por outro lado, Amartya Sen não se contenta de reproduzir o modelo político liberal ampliando seu acesso a um maior número de indivíduos. Uma das críticas feitas pelo autor a algumas propostas de desenvolvimento e de erradicação da pobreza diz respeito justamente ao caráter insuficiente da ampliação do modelo liberal sem um questionamento de suas bases fundamentais42. Se por um lado Amartya Sen herda alguns princípios da tradição liberal, sua empreitada crítica não se contenta de expandir o alcance social do modelo, formulando duras críticas a seus fundamentos. Além disso, o papel conferido por Amartya Sen à democracia não tem restrições, cabendo aos processos democráticos de discussão e de decisão constituir a própria base informacional que serve de alicerce para a identificação de problemas políticos. Já para Nancy Fraser, o papel da deliberação democrática está restrito à seleção das melhores opções políticas, deixando para a teoria o trabalho da crítica social e política. Com respeito a outro aspecto das duas teorias, pode-se dizer que o modelo de Nancy Fraser se aplica a um número mais restrito de problemáticas do que o modelo de Amartya Sen, não reduzindo todos os casos de diversidade a um mesmo princípio fundamental a ser levado em conta pela democracia e pela justiça. Assim, o grau de universalismo da teoria é menor. A economia do argumento não abarca a mesma extensão de casos. Em relação à teoria de políticas transformativas de Nancy Fraser, a teoria da consideração das desigualdades sobre bases informacionais ampliadas permite mais abrangência, pensando a partir de um mesmo princípio a grande variedade dos casos (renda, gênero, sexualidade, nacionalidade, etc.). O argumento é por assim dizer mais econômico do ponto de vista de sua racionalidade. A economia racional do argumento não é uma virtude em si, 42
Podemos citar a esse respeito o comentário esclarecedor feito por Amartya Sen em uma conferência dada no Insitut d’Etudes Polititques de Paris (Sciences Po) em junho de 2007, a respeito do modelo de microcrédito desenvolvido por Mohamed Yunus (que havia dado uma conferência no mesmo local alguns meses antes). Amartya Sen afirmava então situar-se à esquerda de M. Yunus no espectro político, uma vez que esse último não questionava os fundamentos do modelo político liberal, contendando-se de difundir seu acesso.
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mas contribui para sua maior aplicabilidade na esfera da ação política e lhe dá maior capacidade de justificação em relação às políticas democráticas. Enfim, pode-se questionar a capacidade da teoria sobre políticas transformativas de sustentar por si só a formulação de políticas públicas, dado seu caráter mais crítico do que normativo. A maioria dos exemplos de aplicações políticas dados por Nancy Fraser remetem a políticas universalistas comuns nos países que visam o bem-estar social (como impostos progressivos, pleno emprego, etc.), ou em outros casos sugerem a combinação de políticas afirmativas e políticas transformativas43. Ao partir do que já existe em termos de teoria da desigualdade e da justiça, a solução de Amartya Sen permite um foco mais importante na implementação de políticas públicas, com efeitos práticos mais tangíveis, como mostra sua defesa da divulgação de indicadores de desenvolvimento para além do PIB e sua contribuição técnica nesse sentido. Referências bibliográficas: ACKERMAN, Bruce, Nós, O Povo Soberano – Fundamentos do Direito Constitucional, Belo Horizonte, Del Rey, 2006 (edição original 1991). ACKERMAN, Bruce, Social Justice in the Liberal State, Harvard University Press, 1980. ARROW, Kenneth J., Social Choices and Individual Values, Macmillan, NY, 1963. BARBER, Benjamin, Strong Democracy: Participatory Politics for a New Age, University of California Press, 1984. BARBER, Benjamin, The Conquest of Politics: Liberal Philosophy in Democratic Times, Princeton NJ, Princeton University Press, 1988. BENHABIB, Seyla (org), Democracy and Difference, Contesting the Boundaries of the Political, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1996. BERLIN, Isaiah, Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969. DAHL, Robert, Poliarquia: participação e oposição, São Paulo, Edusp, 1997 (edição original 1972). DAHL, Robert, Democracy and its critics, Yale University Press, 1991 (primeira publicação 1989). DWORKIN, Ronald, Is Democracy Possible Here?, Principles for New Political Debate, Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2006. DWORKIN, Ronald, Uma Questão de Princípio, São Paulo, Martins Fontes, 2005. DWORKIN, Ronald, Levando os Direitos a Sério, São Paulo, Martins Fontes, 2002 (edição original 1977). 43
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HÁ SOLUÇÃO PARA O ANTAGONISMO ENTRE REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO? Is there any solution for antagonism between redistribution and recognition? Príscila Teixeira de Carvalho Doutoranda em Filosofia pelo IFCS-PPGF/UFRJ Resumo: Demandas por Redistribuição associam-se às ideias de justiça social, emancipação política e econômica. Devedoras da filosofia marxiana desde a década de 1990, dividem o cenário político com reivindicações por Reconhecimento da Identidade, que por sua vez associam-se à ideia de florescimento humano e inspirando-se na filosofia de Hegel. Será possível falarmos de injustiça tanto na dimensão econômica quanto na cultural? Sobre que fundamento filosófico poderíamos compor tais reivindicações em uma única agenda de reivindicação política? Esse trabalho pretende mapear o surgimento do suposto antagonismo aqui mencionado, bem como apresentar a proposta de conciliação das mesmas, defendida pela filósofa Nancy Fraser. Palavras-chave: Reconhecimento; Identidade; Redistribuição; Igualdade Social; Nancy Fraser. Abstract: Demands for redistribution are related to ideas of social justice, as well as economical and political emancipation. Inheritance of the Marxist philosophy since the 90’s, these claims share political scenario with those for recognition of identity, which are related to the idea of human flowering, inspired in the philosophy of Hegel. Would it be possible to talk about injustice in both, economical and cultural dimensions? Under which philosophical fundamentals would such claims be addressed in the same political agenda? This paper tries to follow the birth and causes of the antagonism of both of the positions mentioned above, as well as to present the proposal of philosopher Nancy Fraser to help understand them. Key words: Recognition; Identity; Redistribution; Equality Social; Nancy Fraser. O surgimento de demandas por Reconhecimento não significa que a humanidade tenha resolvido problemas historicamente vinculados à desigualdade social. Esses foram ligados inicialmente à falta de condições materiais necessárias para qualidade de vida, tais como má 57
distribuição de renda, falta de pleno acesso ao trabalho, à educação de qualidade e ao lazer. Além dessas demandas não atendidas, assistimos ou somos notificados da existência de exploração nãosustentável dos recursos naturais, hábitos diários de consumismo demasiado, excesso de produção de lixo e outros grandes impactos ambientais que se consolidaram há anos como práticas de estragos, alguns deles irreversíveis ao planeta e da vida nele presente, comprometendo as atuais gerações – principalmente a qualidade de vida dos mais desassistidos – e, não só das atuais gerações, como das futuras também. Algumas vezes tais práticas resultam em mortalidade. Ainda hoje se descobre a existência de trabalho escravo, infantil e de exploração sexual da infância. Sabemos que algumas pessoas são capazes de manter essas práticas mesmo sendo proibidas, fazendo isso em proveito de sua ganância e, quiçá também, com algum outro tipo de satisfação hedonista bizarra. Em meio a esse quadro nada agradável, temos ainda que dar conta das demandas por reconhecimento da identidade. Mas no que consiste uma preocupação por redistribuição? E por reconhecimento? A concepção geralmente atribuída à ideia socialista de que educação de qualidade para todos, igual distribuição de renda e oportunidade, divisão dos meios de produção e acesso à gestão dos cargos políticos e públicos sejam as principais demandas de planejamento político presente nas agendas dos que sonham com outros modelos de sociedade, deixou de ser hegemônica nas orientações sobre o que vem a ser uma sociedade justa. Desde o século XX, essa concepção de justiça começa a dividir o cenário de reivindicações com as defesas pelo reconhecimento, organizadas em torno de demandas específicas de etnicidade, gênero, nacionalidade, raça, orientação sexual, entre outras. Essa mudança fez com que se construísse um quadro de segregação e desentendimento entre cidadãos, militantes e teóricos que advogam a satisfação da justiça social pela via da Redistribuição ou de Reconhecimento. Na defesa da agenda política das demandas por Reconhecimento, o filósofo Charles Taylor desenvolveu uma teoria na qual os valores são apontados como norteadores da estrutura social. Taylor denuncia que as instituições e a vida em sociedade são atravessadas e constituídas por uma dinâmica simbólica na qual as pessoas são obrigadas a buscar reconhecimento também no âmbito privado, uma vez que estaria em jogo não só a própria identidade dos sujeitos como a construção do respeito mútuo. A vida social entendida dessa forma é regida por princípios morais unidos por “configurações” que determinam a relação entre concepções de bem e construção da identidade. Tal relação delineia as escolhas, reações morais e modos de julgar, já que as configurações em que estão imersas funcionam como orientação das condutas sociais. Taylor sustenta que "pensar, sentir, julgar
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no âmbito de tal configuração funciona como a sensação de que alguma ação, modo de vida ou modo de sentir é incomparavelmente superior aos outros"22. Segundo Souza23,Taylor situa na moralidade de cada época e cultura uma forma de construção da autocompreensão dos sujeitos de então. As convenções e valorações morais de cada época funcionariam como um padrão a ser adotado por todos igualmente ou de forma muito hegemonizada, influenciando diretamente na individuação de cada um. Também em razão desse processo cultural, de tamanha influência na concepção que cada um terá de si mesmo, do fenômeno e da relação de troca que se dará a partir daí, Taylor propõe que seja concedido o respeito, não à igualdade, mas ao que fazemos com ela, ou seja, a diferença. A concepção de desenvolvimento do eu em Taylor está embasada nas ideias de interioridade e autenticidade. Taylor aposta que essas só podem se desenvolver plenamente se houver reconhecimento da diferença. A concepção de reconhecimento defendida pelo filósofo Axel Honneth se assemelha à posição de Taylor, uma vez que valida a ideia de que os contextos normativos são definidores de práticas sociais. Honneth aponta a influência desses contextos na vida dos sujeitos e ressalta que a realização dos mesmos se dá a partir da própria troca intersubjetiva. A necessidade de ser reconhecido submete o sujeito ao resultado das interações na construção de si mesmo. Essa ideia é devedora da filosofia de Hegel no tocante à intersubjetividade, já que para Hegel as relações humanas, sejam elas familiares ou sociais (interação social e funcionamento do direito), viram embates dinâmicos e a partir deles cada sujeito constrói sua autoimagem. Em Luta por Reconhecimento, Honneth constrói sua argumentação a partir da interrogação sobre o “por que os homens se engajam em movimentos sociais?” e conclui pela relação desses – tal qual fez Hegel – com a construção da moralidade social e com a experiência do sentimento de desrespeito. Honneth se apoia principalmente nas obras hegelianas, tais como Maneiras cientificas de tratar o direito natural e Sistema da vida ética, para demonstrar a relação entre os conflitos, reconhecimento e intersubjetividade. Nas palavras de Honneth e Hegel, respectivamente: ...só graças à aquisição cumulativa de autoconfiança, autorrespeito e autoestima, como garantem sucessivamente as experiências das três formas de reconhecimento, uma pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos (HONNETH. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, p. 266). (...) eu não posso saber se minha totalidade, como de uma consciência singular na outra consciência, será esta totalidade sendo para-si, se ela é reconhecida, respeitada, senão pela manifestação do agir do outro contra minha totalidade, e ao mesmo tempo o outro tem de manifestar-se a mim como uma 22 23
TAYLOR, As fontes do self: a construção da identidade moderna, p. 32 SOUZA, Uma teoria crítica do reconhecimento, p.137.
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totalidade, tanto quanto eu a ele (HEGEL apud HONNETH, Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, p. 63).
Sobre a estrutura do pensamento de Honneth, Ricardo Fabrino Mendonça explica: Aos três reinos do reconhecimento, Honneth associa, respectivamente, três formas de desrespeito: 1) aquelas que afetam a integridade corporal dos sujeitos e, assim sua autoconfiança básica; 2) a negação de direitos, que mina a possibilidade de auto-respeito, à medida que inflige ao sujeito o sentimento de não possuir o status de igualdade; e 3) a referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, que afeta a auto-estima dos sujeitos (MENDONÇA, Reconhecimento em debate: os modelos de Honneth e Fraser em sua relação com o legado Habermasiano, p.169-185).
Para Honneth a relação entre conflitos, reconhecimento e intersubjetividade não é bem explorada nos estudos sobre fundamentos normativos do senso de justiça, ficando alijada das preocupações teóricas e políticas: já nos começos da sociologia acadêmica, foi cortado teoricamente, em larga medida, o nexo que não raro existe entre o surgimento de movimentos sociais e a experiência moral de desrespeito: os motivos para a rebelião, o protesto e a resistência foram transformados categoricamente em ‘interesses’, que devem resultar da distribuição desigual objetiva de oportunidades materiais de vida, sem estar ligados, de alguma maneira, à rede cotidiana das atitudes emotivas (HONNETH, Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, p. 255) Marxism, then, the leaning toward utilitarian anthropology allows granting collective interest to a social class, the antithetical position lacks any concepts for forming hypotheses regarding the potential causes of the sense of social injustice (HONNETH, The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts, p.124).
Embora Honneth acabe encontrando o preenchimento dessa lacuna no fundamento da relação entre respeito e normatividade da moral em Habermas, ele apresentará sua própria defesa da relação com os conflitos sociais e com o autorrespeito, amparada na ótica hegeliana de Reconhecimento, uma vez que Honneth não encontra em Habermas – ao menos da forma que lhe interessa imediatamente – uma relação entre essa dinâmica de entendimento intersubjetivo e a formação de identidades. Habermas, seguido por Honneth e por Fraser, toma uma posição crítica com relação à ideia marxiana do que seria a mudança da dinâmica estatal, especificamente na relação entre infraestrutura e superestrutura. Segundo a leitura marxiana, nessa dinâmica estaria o germe da transformação social. A necessidade de redistribuição, bem como a participação nos processos de decisão política, são importantes para Habermas, mas não é a esses que ele delega a função emancipatória da exclusão e da exploração social. Habermas atribui esse potencial à cultura e as interações sociais, nas quais prevalece a ação comunicativa voltada para o entendimento, construída pelo uso racional e intersubjetivo da linguagem. Ainda assim, isso não significa que Habermas estabeleça como âmago 60
de seu projeto a construção de identidades, de estima social ou de Reconhecimento, mesmo que associados à normatividade da moral ou ao agir comunicativo. Como para Honneth, é fundamental a defesa do Reconhecimento interpretado daquela forma, bem como associado ao desenvolvimento moral da sociedade, as noções de desrespeito e de não-reconhecimento são apresentadas como comprometedoras no processo da construção da dignidade do sujeito e fundamentais em seu entendimento da noção de injustiça. Embora tanto o Reconhecimento quanto a Redistribuição sejam importantes para a agenda social, ambos aparecem no cenário político como representantes de objetivos antagônicos e, por vezes, contraditórios. Enquanto a defesa do Reconhecimento se baseia na ideia do respeito à diferença, a defesa da Redistribuição tenta promover o oposto: a igualdade do tratamento político e econômico. Esse é o cerne inicial do antagonismo que tem prevalecido entre essas duas posições. Porque essas demandas por justiça social, a histórica e a atual, apresentam-se como duas agendas de reivindicações paralelas? Por que há conflito de prioridade entre uma e outra? Por que não são partes de uma mesma agenda política? Desde meados da década de 1990, existe esse antagonismo teórico entre ambas as posições. A concepção marxista sobre a injustiça social é a concepção mais hegemônica e histórica, como vimos acima. Ela aponta a necessidade de redistribuição da renda e da produção do trabalho entre “patrão e proletariado” como solução para que a classe proletária oprimida e explorada seja extinta e dê origem a uma sociedade sem classes e, portanto, mais justa. A origem de tal injustiça está, segundo essa concepção, ancorada pela política econômica adotada no regime capitalista que é gerador das desigualdades sociais. Na perspectiva do Reconhecimento, a ideia de que a justiça seja unicamente uma questão de ajuste econômico não é suficiente, pois não atende às demais necessidades das pessoas. O arranjo conceitual, nesse caso, está focado na diferença e não na igualdade, uma vez que os padrões vigentes de virtude e moralidade sociais não geram os mesmos direitos de estima e reconhecimento a todos, mas apenas àqueles que correspondam a esse padrão. Injustiças ocorrem tanto na vida cultural quanto na vida econômica de uma sociedade. Embora necessitem de providências diferentes, ambas se inter-relacionam. Existem pessoas abastadas que sofrem dificuldades de aceitação social em função de pré-conceitos culturais, assim como existem pessoas que nutrem valores hegemônicos e vigentes socialmente sem ter acesso ao aparelho social do Estado e às condições para uma vida material boa e, portanto, não gozam da plena realização ou de condições para o florescimento humano. Essa ideia de florescimento humano, ao 61
lado de justiça é tão dependente de boas condições materiais quanto de respeito e aceitação social. Portanto está tão ligada ao Reconhecimento quanto à exigência de Redistribuição. Para Nancy Fraser há algumas tentativas por parte dos teóricos igualitários – Marx, Rawls, Amartya Sem e Dworkin – em conceituar e propor soluções para as injustiças socioeconômicas, fornecendo recursos para o aspecto valorativo e simbólico das justiças culturais. Entretanto não é propósito seu comprometer-se com nenhuma posição teórica no que se refere à análise da acomodação dessas duas posições a princípio conflitantes; antes ela pretende apenas manter um entendimento igualitário geral sobre as injustiças econômicas. Fraser seguirá no caminho de mostrar que o resultado da relação entre as duas formas de injustiça acaba sendo a formação de “um ciclo vicioso de subordinação cultural e econômica”. Por isso, não pretende endossar ou rechaçar a política da identidade para defender a Redistribuição ou vice-versa. Primeiro ela faz uma análise conceitual dessas. Depois, passa a defender uma teoria crítica que possa acomodar às demandas por Redistribuição a necessidade de Reconhecimento, passando a interpretar essa última como parte necessária da luta pela igualdade social. Ela defende esse procedimento porque diz entender que Justiça requer ambas as demandas apresentadas erroneamente como antagônicas. Logo, acomodar os aspectos emancipatórios das duas posições é fundamental. Em Reconhecimento sem ética, Fraser declara para seu leitor que seu objetivo é criar uma concepção mais aberta de justiça para nela incluir e conciliar as reivindicações das agendas da Redistribuição e do Reconhecimento. Procedendo à análise conceitual que explica os supostos aspectos inconciliáveis das duas posições, Fraser recorre a um conjunto de reflexões éticas, ou seja, da filosofia moral, para pensar os fundamentos das concepções de Redistribuição e de Reconhecimento. A ideia de Redistribuição está ligada ao campo da moralidade, já a ideia de Reconhecimento está ligada ao campo da ética, conclui. Onde mora a distinção entre ambas? Tratar-se-á, como alega Zigmunt Bauman 24, apenas de filigranas filosóficos ou há alguma relação entre esta distinção e o fundamento das posições aqui estudadas? Neste trabalho a leitura é de que não se trata de meras filigranas, sejam elas de quaisquer status ou área de conhecimento. Pelo contrário, o entendimento aqui é o mesmo de Fraser, de que a compreensão da distinção entre moral e ética possibilita, por sua vez, a compreensão da base argumentativa presente tanto na defesa do Reconhecimento quanto na base argumentativa dos que advogam a defesa da Redistribuição e da relação de ambas – cada uma a sua maneira – com a noção 24
BAUMAN , Comunidade – A busca por segurança no mundo atual, p. 73.
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de justiça. Por isso estabelecer-se uma distinção conceitual entre ambas é fundamental, bem como a clareza sobre as mesmas, além de não se compreender os fundamentos que a sustentam e permanecer na mera troca de opiniões e visões distintas. Dando prosseguimento a esta análise conceitual, passamos a localizar a moral no campo do questionamento sobre o justo, o correto, ou seja, do questionamento sobre o que seria válido não só para um sujeito isoladamente, mas para uma coletividade. Saber deliberar o que é justo – válido para mim e para os outros – se faz a partir de uma perspectiva de tratamento e entendimento da igualdade entre todos. Assim, o questionamento ético sobre a moral refere-se ao que é válido para o espaço da convivência social, da possibilidade de universalização dos direitos e de alguns valores morais caros à garantia da igualdade, uma vez que, se todos são iguais, o que vale para um, a princípio, deve valer para todos. Já a ética é o espaço da individualidade na construção de valores. É, portanto, o campo do bem, da concepção de vida boa que cada pessoa descobre para si, da liberdade de escolha dos valores que estão disponíveis ou que estão sendo criados e pensados. Numa sociedade convivem várias concepções éticas, ou seja, várias concepções de vida boa e esse espaço para a individualidade deve ser preservado. Por isso Fraser distingue a prioridade que cada um dá à escolha de sua profissão, amor, estilo de vida, etc. Como lembra Habermas, a ética refere-se a um tipo de uso da razão prática. Na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, encontramos a defesa da ideia de que um cidadão deve guiar-se por ideal de vida boa, mas partir da referência de seu grupo social. O cidadão deve buscar uma forma de integrar-se ao projeto coletivo, respeitando ao mesmo tempo suas opções em particular. A partir desse universo de entendimento já podemos situar a defesa que é feita para a ideia de Redistribuição como fruto de uma concepção moral, isto é, numa concepção de justo, correto, de algo que pode e deve ser universalizado para todos, respeitando a ideia de que todos são iguais e que, portanto, merecem igual tratamento. Também é possível, dado o entendimento da diferenciação entre moral e ética aqui ressaltada, situar a defesa pelo Reconhecimento como a tentativa de garantir o direito à criação e adesão a uma concepção de bem em particular. Todas as concepções de bem que não concorram com a concepção de Justo partilhada socialmente seriam reconhecidas como legítimas. Uma concepção de bem é uma concepção que possui fundamentos éticos, portanto. Fraser mostra que não deveria haver conflitos entre a dimensão moral e a dimensão ética. De fato se prevalece o conflito entre as demandas de Redistribuição e Reconhecimento, em alguma medida, prevalece uma discussão sobre concepções particulares de vida boa, que pode pôr em risco a 63
concepção de Justo da coletividade. Quando isso acontece, há impasses e conflitos e, muitas vezes a instituição do direito é chamada a intervir, visto que permanece aberta a dificuldade de estabelecimento de prioridades. A despeito do quadro de antagonismo entre essas defesas, Fraser coloca a seguinte questão: “(...) se os paradigmas da justiça, associados à moralidade, podem lidar com as reivindicações pelo reconhecimento da diferença – ou se é necessário, ao contrário, voltar-se para a ética”25. Esse quadro conceitual gera a fundamentação e o entendimento que vêm sendo situados de forma antagônica, visto que nem os defensores do Reconhecimento Ético da Diferença, nem os defensores da Moral Política da Redistribuição chegam a um acordo de composição das agendas de necessidades. Segundo Fraser, Moralitat kantiana de um lado – normas de justiça universalmente vinculantes – e Sittlichkeit hegeliana – horizontes de valor e concepções de bem como base das escolhas e da vida social –, de outro, sustentam duas formas diferentes de normatividade”: Os filósofos deontológicos e os teóricos políticos liberais insistem que o correto deve ter prioridade sobre o bem, já os comunitaristas e os teleologistas replicam que a noção de uma moralidade universalmente vinculante, independente de qualquer ideia de bem, é conceitualmente incoerente (FRASER, Reconhecimento sem ética, In Teoria Crítica do séc. XXI. Jessé Souza e Patrícia Mattos, p.115).
De um lado os teóricos que advogam a justiça distributiva entendem que estão respeitando a moralidade política necessária à justiça social; de outro lado, os teóricos que defendem as reivindicações de reconhecimentos das diferenças entendem que o direito à adesão a valores e práticas socialmente não hegemônicas é uma questão de justiça, uma vez que essa necessita de juízos de valores e não só distribuição de recursos. Por isso, reconhecimentos das diferenças se associam à fundamentação ética em contraposição à fundamentação de ordem moral. O isolamento das posições se mantém na sustentação de que bastaria corrigir a distorção de origem da situação de injustiça social e posteriormente sua consequência no outro campo, que o problema estaria automaticamente corrigido. Logo, seria uma mera questão de descobrir a origem da injustiça, se é de Reconhecimento ou de falta de recursos econômicos. Para Taylor, por exemplo, o Reconhecimento é o aspecto primordial, pois como lembra Fraser, os que advogam a defesa do Reconhecimento, o respeito à diferença geraria igualdade de estima social. De acordo com Fraser, se tratarmos as coisas assim, continuaríamos no dilema:
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FRASER, Reconhecimento sem ética, em Teoria Crítica do séc. XXI, p. 115.
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“Essa situação exemplifica um fenômeno mais amplo: o desacoplamento bem-fundido entre a política cultural e a política social, e entre a política da diferença e a política da igualdade (....). Nesses casos somos apresentados a uma escolha entre esse ou aquele: a redistribuição ou o reconhecimento? Política de classe ou da identidade? Multiculturalismo ou igualdade social?” (FRASER, Reconhecimento sem ética, p. 114).
A extensão e generalização da estima social é oximórica, isto é, contraditória e paradoxal, como sugere a palavra grega. Por isso não me parece que outra característica possa traduzir melhor a falta de sentido de tal extensão. Fraser foi muito feliz nessa caracterização. A forma como Taylor constrói sua defesa de tal extensão da estima social, corrobora a leitura que Fraser faz de sua implausibilidade e dimensão oximórica: nonrecognition or misrecognition (...) can be a form of opression, impresioning someone in a false, distorted, reduced mode of being. Beyond simple lack of respect, it can inflict a grievous wound, saddling people with crippling self-hatred. Due recognition is not just a courtesy but a vital human need (TAYLOR apud FRASER, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista, p. 250).
Fraser reconhece que a maioria das teorias sobre injustiça social não inclui adequadamente os problemas de Reconhecimento, embora tentem, como vimos acima. Segundo ela, apesar dos teóricos igualitaristas já citados, como Rawls, Dworkin e Sen, apreciarem não só a alocação de recursos, mas também a importância do status social e buscarem – cada um a seu modo – a acomodação dos aspectos culturais, essa acomodação não tem sido suficiente para responder as questões do antagonismo que se construiu entre as duas agendas de reivindicação. Fraser salienta que esses teóricos pretendem compor as agendas por entenderem que são complementares, mas acabariam sendo acusados de provocar uma “esquizofrenia filosófica”. Entretanto, há casos em que demonstram claramente tal necessidade de acomodação. São os casos em que pessoas e segmentos sociais são ambivalentes, no tocante aos dois paradigmas acima tratados, por sofrerem igualmente: 1) Injustiças por falta de igual tratamento, na medida em que não lhes é ofertada as mesmas condições e oportunidades de escolarização, trabalho e qualidade de vida e que, por isso mesmo geram consequentes desvantagens socioeconômicas em sua vida adulta e menores condições de qualidade de vida e de florescimento humano; 2) Não-reconhecimento cultural, seja em função de sua opção sexual, seja por se tratar de discriminação de gênero, cor de pele, origem étnica, etc. Segundo Fraser, em casos como esses, não bastam apenas correções de ordem redistributiva ou mesmo de seu reconhecimento ético, como medidas isoladas. De alguma forma essa situação 65
demonstra a necessidade de compatibilidade entre as duas posições. A exemplo de casos como esse, que, aliás, não são raros e nem isolados, podemos citar: A desvantagem econômica das mulheres restringe sua voz, impedindo participação igual na fabricação da cultura, em esferas públicas e na vida quotidiana. O resultado é um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica. Reparar injustiças de gênero requer mudanças na economia política e na cultura (FRASER, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista, p.261).
Desvantagens econômicas das famílias matrifocais são geradas a partir de uma política que toma como lógica as demandas masculinas. No caso das mulheres, é preciso que haja estrutura no aparelho estatal que dê conta de suas demandas específicas para que iguais condições de oportunidades e desenvolvimento em relação aos homens seja realidade. Essa distorção socioeconômica se origina no não-reconhecimento de sua especificidade e necessidades enquanto gênero. A ideia aqui não é, definitivamente, defender a total dissolução das diferenças de gênero, como se não existissem e não determinassem uma prerrogativa de políticas específicas para mulheres, que dessem a essas condições de igualdade com os homens, em vez de tratá-las como se tivessem apenas necessidades que esses têm, essencializando os seres humanos a partir da ótica masculina. Tampouco é o caso de fazer uma polarização ou antagonismo entre necessidades geradas por modos de ser e existir de mulheres versus necessidades de ser e existir de homens. Cabe entender que, para que ambos tenham condições iguais de florescimento, é preciso que suas demandas sejam atendidas especificamente, dando-lhes tratamento, condições e oportunidades iguais. Pretendo mostrar que as propostas de solução para uma política de combate à injustiça dependem de uma correta análise sobre a origem das injustiças sociais. As soluções por Reconhecimento delineadas por “políticas afirmativas”, mantêm a diferença social existente, enquanto que a solução por Reconhecimento delineadas por “políticas transformativas” possibilitam diminuir as diferenças sociais a longo prazo. As “políticas afirmativas” para reconhecimento e para distribuição de recursos são adotadas pelo Estado de Bem-Estar Liberal, que Fraser reconhece nos EUA e diferencia do Estado de Bem-Estar Social-democrata, por um lado, e por outro, do Estado de Bem-Estar Conservador Corporativista. Para acomodar as duas posições até aqui antagônicas, será preciso responder às reivindicações por reconhecimento como reivindicações de justiça dentro de uma compreensão expandida da justiça, trazendo a política do reconhecimento para o terreno da Moralitat. É o que faz Fraser. Mas como isso é possível?
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Primeiro ela propõe desvincular a ligação entre Identidade e Reconhecimento, que subjaz na defesa do modelo atual do segundo conceito, uma vez que no modelo atual é o grupo social que o exige. Segundo Fraser, esse modelo é controverso porque deposita ênfase na estrutura psíquica em detrimento da estrutura e da interação social. Esse peso dado ao aspecto psíquico tende a segregar os grupos e diminuir a troca cultural entre os diversos segmentos sociais, criando segregações, despolitizando o problema e colocando-o numa arena da construção psíquica e individual. Feita, assim, a defesa do Reconhecimento fica restrita à defesa de certas concepções éticas de vida boa, como se fossem desvinculadas da interação no contexto social em que estão. A dinâmica de estruturação da vida social, como por exemplo a divisão urbana de bairros para brancos e bairros para negros me faz concluir que de fato a defesa ética da diferença em detrimento de uma concepção moral de justiça é predominante há muitos anos nos EUA, diferente do que sempre ocorreu no Brasil, onde as demandas vinham sendo tratadas como necessidade de direitos iguais para condições do florescimento humano, sem esse aspecto segregador dos seguimentos sociais que sempre existiu naquele país. Assim fica mais confortável endossar o entendimento de Fraser, segundo o qual a estratégia daquele modelo de Reconhecimento cria segregação e não interação. Concordo que essa forma de comunitarismo acabaria servindo a políticas que criam antagonismos entre grupos sociais, diminuindo o diálogo e a interação ao invés de promover o respeito mútuo às diferenças e inclusão social de certos grupos não reconhecidos. Isso acaba criando um paradoxo: tentar acabar com a exclusão causada pelo não Reconhecimento a partir de uma postura que não colabora para sua inserção e sim para uma forma de Reconhecimento acompanhado de isolamento. A proposta de Fraser, ao contrário, propõe interpretar Reconhecimento como uma questão de status social. Segundo esse novo modelo, o “Modelo de Status”, o que deve ser reconhecido é o status dos membros dos grupos como iguais e plenos parceiros na interação social. Isso implica a mudança da ideia central de Reconhecimento como defesa da identidade de um grupo, e da dimensão psíquica dessa, para a defesa do Reconhecimento da plena aceitação e parceria dos membros desse grupo. O não Reconhecimento dentro desse entendimento significaria, como argumenta Fraser, a subordinação social de certos grupos e o impedimento desses em participar e ter uma vida em iguais condições ao restante da sociedade. Nas palavras de Fraser: Ver o reconhecimento como uma questão de status é examinar os padrões institucionalizados de valor cultural por seus resultados na posição relativa dos agentes sociais. Se e quando tais padrões constituem esses agentes como pares, capazes de participar no mesmo nível um com o outro na vida social, então podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status. Quando em contraposição, padrões institucionalizados de valor cultural, constituem alguns agentes como inferiores, excluídos, completamente diferentes ou simplesmente invisíveis, consequentemente
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como menos que parceiros plenos na interação social, então podemos falar em nãoreconhecimento e subordinação de status (FRASER, Reconhecimento sem ética, p. 118).
Assim, no “Modelo de Status” o não Reconhecimento é entendido a partir do momento em que não haja paridade de participação entre os membros de uma mesma sociedade, como em casos de discriminação de gênero, de etnia, de credo, de orientação sexual. Fraser cita, a exemplo disto, os casos de leis matrimoniais que excluem as uniões entre o mesmo sexo, as políticas de bem-estar social que estigmatizam as mães solteiras como parasitas sexualmente irresponsáveis, as práticas de policiamento como os “delineamentos raciais”26. No entanto, Fraser não propõe tratar Reconhecimento como igualdade social e incluir a partir daí qualquer tipo de reivindicação como legítima. Ela ressalva que, tal qual os liberais, ela não reconhece a legitimidade do tipo de reivindicação por Reconhecimento que não respeite direitos humanos. Esses estariam excluídos da agenda legítima de Reconhecimento. O entendimento aqui é que tanto direitos humanos como soberania popular são ambos focados como prioridade na concepção de Fraser. Segundo Fraser: “As reivindicações por reconhecimento no modelo de status buscam (...) desinstitucionalizar padrões de valor cultural que impedem a paridade da participação e substituí-los por padrões que a favoreçam”27. Ela não pretende desinstitucionalizar os valores embutidos na ideia de direitos humanos, o que faz total sentido, já que negociar tais valores equivaleria a negociar a idéia de direito a igualdade de tratamento. Talvez caiba falar em agregar direitos na atual concepção de direitos humanos, mas não em abrir mão do que já é reconhecido. E isso é inegociável. A paridade de participação é a garantia de um padrão normativo capaz de analisar a legitimidade das reivindicações presentes em conflitos, diferente do modelo proposto por Charles Taylor e por Axel Honneth. Nesses modelos predominam a defesa da diferença com a defesa do reconhecimento da igual estima social para todos. Nessa encontra-se o segundo erro da posição defendida por esses autores. A primeira, como já vimos, é vinculação da ideia de construção da identidade a uma espécie de essencialização da diferença. Sobre a segunda vinculação insustentável entre reconhecimento e individuação cabe ressaltar, conforme diz Fraser, que o igual respeito social não significa igual estima por todos. Tomo a liberdade de mudar a formulação da argumentação que a autora do “Modelo de Status” faz quando defende a negativa de que “(...) evita-se a visão de que todos possuem direitos 26 27
FRASER. Reconhecimento sem ética, In Teoria Crítica do séc. XXI, p.118. Idem
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iguais à estima social”28 para a formulação que diz: “evita-se a visão de que todos possuem naturalmente, isto é, a priori, direitos iguais à mesma estima social”. Faço isso com pretensão de lhe ser fiel em sua intenção original, qual seja, a de mostrar que a ideia de direito igual à igual estima social é insustentável (os grifos são meus): Aqui estou admitindo a distinção (...) padrão na filosofia moral entre respeito e estima. Segundo esta distinção o respeito é universalmente devido a cada pessoa em virtude da humanidade compartilhada; a estima, em contraste, é concedida diferencialmente com base nos traços, realizações ou contribuições específicas das pessoas. Assim (...) a injunção para estimar todos igualmente é oximórica (FRASER, Reconhecimento sem ética, p. 122).
A argumentação de Fraser mostra que a condição para a estima social depende justamente das diferenças de postura, que podem agradar a cada um de acordo com seus valores e visão de bem e não por ser um valor subsidiado por uma posição política moral que dependa de ser endossada socialmente para a convivência social harmoniosa. Nesse caso, não é legítima a base moral do argumento, já que a estima social é relativa, variando conforme orientação valorativa de cada um, ou seja, conforme a concepção ética adotada. Se essa for atribuída de todos para todos, não será atribuída a ninguém, uma vez que é impossível estimar um comportamento ético x (segundo alguns valores éticos, estéticos...) e, ao mesmo tempo, o comportamento ético não-x, ainda que ambos sejam morais e até válidos legalmente. As realizações, contribuições e comportamentos éticos x receberão maior estima social de pessoas que depositem sua adesão aos valores subsidiários dessas contribuições, comportamentos e realizações. O mesmo vale para a estima social relativa às contribuições, comportamentos e realizações não-x, y e z. Para Fraser, diferentemente de Honneth, o Reconhecimento requer que “todos possuam direitos iguais para exercer estima social sob condições justas de oportunidades iguais”29 (os grifos são meus). Essas condições são o centro da questão e não propriamente o seu resultado – a estima social –, uma vez que a igualdade de oportunidade configura como importante em matéria de justiça e não o que se faz com ela ou o resultado das escolhas a partir das mesmas condições de agir. Mas quais seriam as vantagens da adoção do “Modelo de Status” defendido por Nancy Fraser?
28 29
FRASER. Reconhecimento sem ética, In Teoria Crítica do séc. XXI, p.118. FRASER, Reconhecimento sem ética, Em Teoria Crítica do séc. XXI. Jessé Souza e Patrícia Mattos, p. 123.
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Segundo Fraser algumas vantagens de um tal modelo em detrimento do atual Modelo de Identidade seriam: 1)
Evitar essencializar as identidades que pleiteiam reconhecimento, na medida
em que o que merece ser reconhecido não são seus valores em si, como de nenhum outro grupo, e sim o respeito à livre opção por alguma concepção de bem, desde que essa não comprometa a integração social e o bem-estar de outrem. 2)
Conciliar as agendas do Reconhecimento e da Redistribuição de recursos e
condições econômicas, promovendo relações simétricas, através de uma guinada moral, cujo núcleo de sustentação é a paridade de participação; 3)
Desinstitucionalizar os padrões culturais que impedem a paridade de
participação, promovendo maior diálogo entre os diversos segmentos e agrupamentos culturais e reconhecendo igualdade de status entre todos; 4)
Permitir que se justifiquem as reivindicações por reconhecimento como
moralmente vinculantes e respeitadoras do panorama moderno, no qual predomina uma pluralidade axiológica em detrimento da adoção de uma determinada concepção de bem. Assim pretende-se dar lugar a uma composição de demandas tão caras a qualquer política voltada a atender a justiça social e a doação de plenas condições para o florescimento humano, sem com isso ter que se situar em algum nicho de poder ou discurso especializado sobre o mesmo. Antes, entendendo que ambos, Reconhecimento e Redistribuição são complementares e cooriginários na satisfação das necessidades sociais e individuais para o desenvolvimento humano. Referências bibliográficas: BAUMAN, Zigmunt. Comunidade – A busca por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2003. FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. Tradução de Márcia Prates. In Jessé Souza (org.). Democracia Hoje: novos desafios para a teoria contemporânea democrática. Brasília: UNB, 2001, p. 245-282. ____________. “Reconhecimento sem ética”. In Jessé Souza e Patrícia Mattos (org.). Teoria Crítica do séc. XXI. São Paulo: Annablume editora, 2007, p. 113-140. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade I e II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 2003. 70
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2009. MENDONÇA, R. F. “Reconhecimento em debate: os modelos de Honneth e Fraser em sua relação com o legado Habermasiano”. Revista de Sociologia Política. no.29 (Nov. 2007). SOUZA Jessé. Uma teoria crítica do reconhecimento. São Paulo: Lua Nova, nº 50 (2000). ___________. (org.) Democracia Hoje: novos desafios para a teoria contemporânea democrática. Brasília: UNB, 2001. ___________. e Mattos, Patrícia (org.). Teoria Crítica do séc. XXI. São Paulo: Annablume, 2007. TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997. _______________ . Multiculturalism and the Politics of Recognition, Princeton: Princeton University Press, 1992.
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Resenha
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RESENHA: RORTY, Richard. Uma ética laica. Trad. Mirella Traversin Martino. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2010. Eustáquio José da Silva1 A expectativa é a de uma carta: o remetente é o próprio texto a ser resenhado e o destinatário uma sociedade ainda religiosa, nominalmente a nossa sociedade brasileira, na qual o texto ganha o valor e a serventia necessária para que o leiamos e o tenhamos como referência de leitura de nossa realidade. Fruto de uma conferência em Turim pronunciada por Richard Rorty e com a introdução de Gianni Vattimo, o texto foi primeiro lançado em 2008 sob o nome de “Um-etica per Laici” e traduzida em 2010 com o título de “Uma ética laica” por Mirella Traversin Martino. A publicação deste texto adere à necessidade que temos de lidar com a questão ética e esta enquanto pensada desprovida de sua intrínseca relação com um ideário platônico-religioso de “ponto fixo moral” inerente e imanente ao homem afixado por um ser transcendente e poderoso. Responder a esta questão quando estamos diante de uma pluralidade de coisas e de situações e quando várias relações estão reinvidicando seu espaço social torna-se necessário, e por que não uma ética laica? O texto pretende tratar da relação conflituosa na sociedade, ou melhor dizendo nas sociedades, entre concepções fundamentalistas (estritamente religiosas ou relacionadas a estas de alguma forma) que o Rorty define como “ideais válidos enquanto alicerçados numa realidade, no real” defendidas pelo papa Bento XVI como nascidas na própria “natureza humana” e na necessidade de um ponto fixo e verdadeiro que seria uma moral universal e os relativistas que negariam esta afirmação. A despeito da crítica recebida nas questões formuladas no final da conferência, Rorty se referia a possibilidade, a partir de uma ética laica, de convivência entre as duas perspectivas e a não tentativa de fundamentar toda a realidade possível (e plural), como era o modus operandi da filosofia e da própria igreja historicamente, numa única visão, a saber; a visão transcendentalista da moral numa natureza humana. Sob a reclamação de que a democracia, e a sua verdade relativizada, estavam sendo impostas como a única verdade válida a todos, o cardeal Ratzinger criticava o crescimento desta corrente ética 73
taxando-a de possível desagregação da natureza humana deixando-a desprotegida diante de uma realidade.
Para Rorty a reclamação de Ratzinger não se sustenta justamente porque pensadores
como ele, James, Santayana, Habermas e Dewey estavam preocupados em garantir as possibilidades de uma pessoa frente ao seu progresso moral e intelectual garantindo o direito à satisfação dos desejos, desde que não ferissem os desejos alheios de serem realizados. Satisfazer os desejos não teria o sentido de um absolutismo do relativo e de um enfraquecimento da moral que funciona enquanto demonstra o que se deve fazer, segundo a perspectiva fundamentalista apontada por nosso autor, mas significa primeiramente munir o homem da liberdade possível para ir buscar o maior ponto de felicidade possível. Daí se podem inferir duas coisas: 1. A nossa impossibilidade de buscar marcos universais e no máximo podermos apenas procurar aumentar o número de pessoas com as quais nos identificamos e nesses grupos buscar satisfação de desejos e conseqüente felicidade derivada desta. 2. A ideia de que toda a questão ética passa primeiro pela questão dos desejos e esta deve ser vista caso a caso como na postura preconceituosa contra os homossexuais, o machismo, a segregação racial e social entre outras coisas. A nossa ideia de ética deve abranger dar voz ao máximo de pluralidades possível sem que, com isso, privemos alguém de direitos de satisfação de seus desejos. Essa sempre foi uma atitude questionada por quem defende a fórmula platônico-religiosa de ver a moral e o ser humano. O título proposta à conferência por Rorty explicita bem a sua reação a este fato: “Espiritualidade e Secularismo” deixa clara a intenção de que a busca de Rorty é também por formas de espiritualidade que não sejam ligadas necessariamente à religião, a uma forma universal de ver as coisas. Aqui em comum com André Comte-Sponville 2, Rorty quer uma forma de espiritualidade possível sem o crivo religioso. A proposta rortyana é a de uma espiritualidade que busque progresso no âmbito horizontal e não para uma ascensão vertical proposta por fundamentalistas. É preciso saber que para Rorty relações religiosas, místicas, poéticas e filosóficas, como postas neste texto, são produtos da imaginação humana (criação humana) e que estas são partes importantes para o progresso humano no campo moral e intelectual. O homem produz pela imaginação linguagens novas que o auxiliam a crescer e a melhorar a sua vida e a de quem o circunda. Enquanto exercendo este papel todo ser humano contribui para o progresso moral e diminui as distâncias que as segregações preconceituosas e baseadas numa ótica petrificada da razão ou de uma verdade exterior à história e ao tempo proporcionam.
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Por que uma ética laica? Porque somente uma ética laica permite que falemos numa realidade mais democrática e menos desigual e mantém como valores a serem seguidos apenas a solidariedade e o respeito como ideais possíveis e não um amor incondicional ao próximo apenas possível em discursos. E esta mesma ética laica permite a sobrevivência de duas coisas numa sociedade: 1. A presença de diversas formas de expressão e linguagens incluindo a própria concepção religiosa, pois não poderemos escolher em definitivo que caminho seguir sem que levemos em conta os desejos locais e acentuados historicamente que queremos realizar. 2. Que a partir desta pensemos o ser humano incluindo homens, mulheres, heterossexuais e homossexuais, ricos e pobres sem que precisemos até destes pares descritos e vendo simplesmente como seres humanos dispostos a buscar algo que é comum a todos: a busca da felicidade possível a partir da realização de seus desejos. Remeter este texto, como numa carta, à sociedade religiosa brasileira é a minha singela indicação de que somente quando buscarmos este entrelaçamento de diversas formas de discurso, diversos discursos, é que poderemos falar em progresso em nossa realidade. A própria concepção de ética que temos seria mais ligada ao homem e não a um fundamento platônico extratemporal e suprasensível, mas a uma realidade tangível e na qual estamos sempre. Uma ética para laicos não significa que todos o sejam, mas que a ética se coloque como dentro das questões humanas e não na sua suposta neutralidade anterior e a intenção rortyana em defender este tipo de reflexão ética seria algo a ser melhor visto em nossos dias. NOTAS: 1- Mestrando em filosofia no programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE 2- COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo;
Editora Martins Fontes, 2009. Neste texto Comte-Sponville defende a visão de uma noção de “comunidade”, necessária a uma sociedade que queira se manter, independente de uma religião. A noção de comunidade seria o cimento que uniria diferentes formas de ver o mundo diante de uma única sociedade possível. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo; Editora Martins Fontes, 2009
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano II, número 2, 2010 ISSN: 1984-7157
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
www.gtdepragmatismo.com
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