Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 1, 2011 ISSN: 1984-7157
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA) Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editor convidado: Frederico Graniço Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Foto da capa: Bruna Medeiros Ferraz
2 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 1, 2011
Sumário Editorial __________________________________________________________________ 4 Notas & Comentários Corpos do futuro e o futuro do corpo: Metáforas corporais no cinema de horror e de ficçãocientífica e os seus usos para a intervenção / invenção de direitos civis no âmbito da diferença / deficiência física - Márcio Pizarro Noronha_________________________________________ 7
Artigos: 1. Filosofia, corpo e arte: um convite a conversação - Sérgio Oliveira ___________________ 30
2. Pragmatismo: Uma filosofia da ação – Edna Nascimento_____________________________ 42
3.As Influências do Pensamento de John Dewey no cenário educacional brasileiro - Viviane Batista Carvalho___________________________________________________________________ 58
4. El Pensamiento de Rorty ante la Crisis Ambiental. Una réplica a C. A. Bowers - José María Filgueiras Nodar __________________________________________________________________ 78
5. Liberdade individual e a Despolitização das Escolhas: uma reflexão - Amana Rocha Mattos _________________________________________________________________________ 99
Resenha: Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Hans Ulrich Gumbrecht. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, agosto de 2010. 206 pp. - por Susana de Castro____________________________________________________________ 107
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EDITORIAL
Olá! Com grande prazer apresentamos o primeiro número do terceiro ano da Redescrições – revista online do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana. Trazemos desta vez, além dos artigos e resenha, algumas novidades. A partir desta edição, a Redescrições assumirá a regularidade quadrimestral, ou seja, contaremos três publicações por ano. Além disso, cabe ressaltar que, atualmente, a Revista está indexada no portal de periódicos da Capes, e nos repositórios Latindex e DOAJ (Directory of open Acess Journals), o que lhe proporciona uma boa vizibilidade. E ainda além disso, estamos todos na expectativa de nossa qualificação no Qualis da Capes, no final de outubro! Tudo isso corrobora para a valorização da Revista Redescrições e de seus participantes. Para abrir a presente edição, convidamos o Doutor Marcio Pizarro com seu artigo Corpos do futuro e o futuro do corpo. O autor trata da temática do corpo a partir da abordagem conceitual pragmatista da „redescrição‟. Busca, numa análise antropológica munida deste instrumento pragmático, formas de redescrever a verdade referente ao corpo utilizando-se do poder inventivo contido nos filmes de horror. Ainda sobre a temática do corpo, Sérgio Oliveira apresenta artigo que reflete sobre a concepção filosófica do corpo. Exprime um histórico que parte da concepção platônica e pitagórica, e que chega até Nietzsche, John Dewey e, contemporaneamente, Richard Shusterman. Com isso, Sérgio fornece também um bom exemplo do poder pragmatista de redescrever práticas e objetos. Seguindo o conceito de pragmatismo, passamos a um plano mais histórico e teórico com o artigo de Edna Nascimento, intitulado “Pragmatismo: Uma filosofia da ação”. A autora traça um histórico do desenvolvimento deste conceito nos Estados Unidos, em fins do século XIX. Traça ainda as principais características do pragmatismo de Charles Sanders Peirce, de Willian James e John Dewey. No curso dessas caracterizações, a autora disserta sobre o debate dos pragmatistas com as teorias racionalista e idealista em filosofia. O quarto artigo desta edição é de Viviane Batista: As influencias do pensamento de John Dewey no cenário educacional brasileiro. O trabalho traz a caracterização do 4 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
pensamento educacional deste autor e um histórico do contato de suas teorias com a educação brasileira. Na sequência, num debate bastante contemporâneo, José María Filgueiras analisa a utilidade do pensamento de Richard Rorty para a crítica à crise ambiental. No artigo El pensamiento de Rorty ante la crisis ambiental, Filgueiras critica C. A. Bowers por uma leitura de Rorty equivocada em alguns pontos e que, por isso, o teriam levado a uma caracterização erronia da filosofia rortyana enquanto “frívola, pouco interessante ou perigosa” para esta temática ambiental. Finalizando os artigos, Amana Mattos segue a discussão da questão ambiental tão séria à população brasileira e mesmo mundial. Seu artigo, Liberdade individual e a despolitização das escolhas: uma reflexão, questiona o sentido coloquial da „liberdade‟. Envereda, assim, em uma polêmica sobre o uso individualista da „liberdade‟ e o uso coletivista da mesma. A importância do tema se torna patente a partir da situação ambiental crítica contemporânea, exemplificada neste artigo com a questão do uso de agrotóxicos. Nesse sentido Amana recorre à ilustração bastante embasada do documentário de Silvio Tendler, O veneno está na mesa. Ali, nos diz Amana, a liberdade individual é cerceada pela ausência de uma política coletiva adequada. Finalmente, fechando esta edição, temos uma resenha de Susana de Castro sobre o livro de Hans Ulrich Gumbrecht, Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Boa leitura!
Frederico Graniço Editor convidado.
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Notas & Comentários
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CORPOS DO FUTURO E O FUTURO DO CORPO. Metáforas corporais no cinema de horror e de ficção-científica e os seus usos para a intervenção / invenção de direitos civis no âmbito da diferença / deficiência física.1 Marcio Pizarro Noronha2 Resumo: Redescrições do corpo humano inventariadas no campo fílmico, do cinema de horror e de ficção-científica (FC), e os modos como estes usos metafóricos da corporeidade nos limites do humano / não-humano sugerem, pela via da criação de novos vocabulários a reinvenção do corpo e do humano. Dentro de uma perspectiva pragmatista norte-americana, os vocábulos produzidos no interior dos media – em obras de grande alcance e popularidade – podem ser extremamente úteis na produção de estratégias de redescrição da verdade referentes ao corpo e ao estatuto do humano. Investigando estas linguagens emocionalmente centradas dos filmes e os usos transgressivos da linguagem, a perspectiva de trabalho é a de reconhecer linhas de fuga e de força neste abuso imaginativo, capazes de amplificar o entendimento social do que é dado como da ordem da natureza e da verdade. O não-humano amplia o espaço lógico de invenção do humano, através da categoria estética da monstruosidade, como fronteira e como exagero. Esta invenção artística permite ao antropólogo investigar estratégias de invenção de novas identidades morais para os grupos sociais portadores de diferenças físicas, dadas socialmente como relevantes e estigmatizadas no estudo de próteses e órteses corporais. Palavras-Chave: cultura visual; corpo humano; filmes de ficção-científica e de terror; direitos humanos; pragmatismo 1
Este artigo foi originalmente produzido para a IV REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL (2001), na UFPR. Foi publicada uma primeira versão dele na revista CAMPOS REVISTA DE ANTROPOLOGIA SOCIAL, Edição Especial, número 03, ano 2003, ISSN 1519-5538, numa publicação da UFPR com a FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA. A versão atual sofreu poucas alterações em relação ao texto original. 2 Atua na pesquisa interartes, intermídias e processos de subjetivação na contemporaneidade (relações arte, psicanálise e pensamento pós-psicanalítico) e em história, teoria e estética-filosofia da arte. Escreve sobre os temas arte & corpo, arte & psicanálise, arte & natureza, estudos de performance e de dança, estéticas romântica, moderna e a arte contemporânea, biografia de artistas e autobiografias. Dr. em Antropologia - USP (1999), Dr. em História - PUCRS (1998), Ms. em Antropologia - UFSC (1992), Esp. em Teoria da Comunicação - Jornalismo - PUCRS, Esp. em História RS - FAPA, Grad. em História - Lic. Plena e Bacharelado - PUCRS (1987). Psicanalista. Prof. Adj. da Universidade Federal de Goiás, no Campus Samambaia. FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA, curso de Licenciatura em Dança. Atua na área de História, Teoria, Crítica e Estética (disciplinas de História da Dança, História da Dança no Brasil, Introdução à História da Arte, História da Arte III – História da Dança, no curso de Direção de Arte – EMAC UFG). Professor e pesquisador do PPG História (M/D) – Faculdade de História – UFG. Atuou nos Programas de Pós-Graduação em Cultura Visual (FAV UFG) e em Música (EMAC UFG), nas disciplinas de Teoria da Cultura Visual, Análise da Criação Contemporânea, História, Historiografia e Teoria Interartes, Estudos do Videoclipe. Líder do GP CNPq INTERARTES SISTEMAS E PROCESSOS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE e Vice-Líder do GP CNPq LITERATURA E CULTURA CONTEMPORÂNEAS. Membro dos Grupo de Pesquisa CNPq: LITERATURA E CULTURA CONTEMPORÂNEAS (CNPq – ULBRA RS); FRUIÇÃO EM DANÇA (CNPq – UFV MG); NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE – (CNPq – UFU – MG). Realiza curadorias e gestão de projetos expositivos. É autor de textos para teatro, escreveu e dirigiu o espetáculo multimídia BOD[Y]STERIA (2006/2007) e em 2011 realiza a direção artística do Grupo de Dança POR QUA (Goiânia), com o projeto DANÇANDO ARQUIVOS PRIVADOS: NARRATIVAS PARA REAPRENDER A ANDAR. Autor do livro Pragmatismo e ciências sociais (edição independente). CV: http://lattes.cnpq.br/2875707762585409
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I.
Estética em abordagem pragmatista. Isso é Shakespeare, não Família Soprano. Melhor ainda, confie nas palavras. Use as palavras. Ouça o que estão dizendo. Isso é horrível! Ela diz que mataria o próprio filho para conseguir o que quer. É terrível! Mas ela sente paixão. Paixão! Paixão! Onde está a sua paixão? Eles estão ardendo! São movidos pela paixão. Sei que hoje em dia é difícil nos sentirmos assim. Não somos movidos pela paixão. Somos... Nem ao menos somos gelados. Somos voyeurs tépidos. Como a água da torneira. Por exemplo, se eu descobrisse que meu marido tem uma amante, o que eu faria? Nada. Iria trabalhar. Continuaria a levar a vida. Choraria tomando meu café LATTE. Esse é o problema da atualidade. Não lembramos o que é ser consumido pelo desejo. Esquecemos o que é a paixão. [...] E, pelo amor de Deus, arrisquem-se de alguma forma durante o fim de semana. (Fala da personagem Diana in: HEIGHTS, Direção Chris Terrio, 2004/2005; traduzido por Por conta do destino)
Confie nas palavras. Use as palavras. Ouça o que está sendo dito. Pense e dance. Faça algo com as informações que você recebe do mundo e dos outros diariamente. E tome este empreendimento com paixão amorosa. Não faça apenas o caminho do desejo à fantasia. Corra alguns riscos através do que está sendo dito e faça algo no que você está dizendo. Confie nas palavras e tome-as enquanto parte das suas ações. Logo no começo do filme a personagem uma atriz, diretora teatral e professora universitária nos convoca ao agir. Assim, sua fala fílmica pode ser um guia para o que temos como objeto de nossa reflexão. Este texto-ensaio quer, inicialmente, ressaltar a extrema importância da contribuição da Filosofia Social Pragmatista para o campo das Ciências Sociais, com ênfase na Antropologia Social e suas pesquisas empíricas no que tange ao universo das diferenças culturalmente traçadas a respeito do corpo e da realidade física individual. Mas também intenta demonstrar as importantes transformações na abordagem do estético e de uma estética propriamente dita de cunho pragmatista. Seguindo as afirmações sugeridas por Hans Joas, num artigo denominado “Interacionismo Simbólico”, identificamos o pragmatismo como sendo o fundamento de uma teoria social experimental criando uma escola pragmática de sociologia e antropologia, na Escola de Chicago e seus posteriores desdobramentos.3 O pragmatismo é uma filosofia da ação. [...] Decerto, o pragmatismo não se mostra menos crítico em relação ao utilitarismo do que os teóricos clássicos da sociologia. Todavia, não ataca o utilitarismo por causa do problema da ação e da ordem social, mas por causa do 3
Ressalto aqui a importância da reflexão desenvolvida por Joas no sentido de traçar o significado histórico-cultural e epistemológico da Filosofia Social Pragmatista para o campo em desenvolvimento das Ciências Sociais norte-americanas. Encontro em suas afirmações a mesma perspectiva encetada no meu livro Pragmatismo e Ciências Sociais, reconhecendo nesta Escola Filosófica uma verdadeira transformação do/no pensamento moderno. 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
problema da ação e da consciência. O pragmatismo desenvolveu o conceito de ação a fim de superar os dualismos cartesianos. Desse empreendimento surgiu uma compreensão da intencionalidade e da sociabilidade radicalmente diferente da compreensão do utilitarismo. O conceito de racionalidade e o de ideal normativo desse modo de pensamento inserem-se teoricamente na idéia de ação auto-regulada. A teoria pragmática da ordem social é, pois, orientada pela concepção do controle social no sentido de auto-regulação e solução de problemas coletivos. Essa concepção de ordem social é moldada por idéias sobre democracia e estrutura de comunicação nas comunidades científicas. (JOAS, 1999: 132-3)
Desse modo, a crítica pragmatista sustenta a impossibilidade da manutenção do programa filósofico cartesiano para a constituição da ciência, substituindo o método da dúvida cartesiana (e seu decorrente ceticismo) pelo método das pré-concepções e do questionamento de nossos sistemas de crenças, enraizando a situação cognitiva em situações experienciais concretas. Deixa assim de pensar em termos de uma abstração do “eu pensante” para substituí-lo por uma abordagem “relacional e humana num campo acional, onde a verdade é uma resultante”. Tal como na fala para os alunos da classe de teatro, Diana a professora-artista enraíza a linguagem num contexto de experiência e se pergunta quais os limites do compartilhamento. Ela remete para a experiência que é descrita na linguagem (descrita e inscrita). Mas, também, afirma o contexto contemporâneo no qual somos sujeitos e dentro do qual estamos lendo o texto, sujeitos leitores e intérpretes ativos, correlacionando a cognição atiginda com os limites da nossa própria experiência – no caso específico, a experiência do desejo e da paixão nas diferenças entre a época de Shakespeare e a época atual (contexto novaiorquino pós 11 de setembro). Ela pede, ou melhor, convoca imperativamente a leitura da paixão, apontada por ela como ausente do sujeito tépido do mundo atual. A verdade relacional será obtida no momento em que os leitores puderem realizar a travessia cognitiva no interior de sua própria realidade e daí, possam obter do texto shakesperiano, a experiência de uma metáfora. É da vida ampliada e amplificada destes jovens atores pós 11 de setembro que se pode promover uma apreensão significativa do texto e, portanto, da experiência subjetiva individual e coletiva, traçar o modo como um filme ou um texto teatral – nestes termos, o filme que comenta a peça teatral traça diversos níveis de metacomentários – pode nos reencaminhar da leitura à experiência e vice-versa.
De fato, o que muda é toda a relação entre cognição e realidade. O conceito de verdade já não expressa a correta representação da realidade na cognição, que pode ser considerada uma espécie de metáfora de uma cópia; expressa, antes, um aumento do poder de agir em relação a um ambiente. Todas as etapas da cognição, da percepção sensorial, através da 9 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
extração lógica de conclusões até a auto-reflexão, devem agora ser concebidas de outra maneira. [...] Em sua psicologia, James não considerou a ação como ponto de partida, mas o puro fluxo da experiência consciente. Formulou, entretanto, análises extraordinariamente profundas e intrigantes que mostravam a seletividade da percepção e a distribuição da atenção como função dos objetivos do sujeito. [...] Dewey critica uma psicologia que julga ter encontrado seu objeto no estabelecimento de relações causais aparentemente normativas entre estímulos ambientais e reações orgânicas. Dewey nega que possamos, legitimamente, conceber as ações como somatório das fases de estimulação externa, processamento interno de estímulos e reações externas. A esse „modelo de arco reflexo‟ opõe a totalidade da ação: é a ação que determina quais os estímulos relevantes dentro do contexto definido pela própria ação. (JOAS, 1999: 134-135)
Neste sentido, a ação não pode ser definida como sendo uma conduta, uma representação ou uma prática. O modelo pragmático dá o caráter qualitativo e plástico das ações humanas sem negar a importância dos hábitos e do ethos, numa interação simbolicamente mediada entre o mundo individual e o mundo coletivo. Assim, uma abordagem estética pragmática privilegia a concepção da experiência. A arte vista a partir da experiência permite incluir no campo estético objetos não definidos como sendo artísticos. Abandonando as concepções miméticas e as artefactuais da arte, declinando das afirmações referentes à lógica do conceito de arte e não colocando a questão nos termos de uma abordagem da Teoria da Prática Social ou uma Teoria da Cultura, para a qual a arte é uma formalização de uma determinada prática sociocultural e de uma narrativa histórica (a mais importante narrativa da arte é a da História, Teoria e Crítica de Arte), os autores pragmatistas valorizam a experiência estética. Experiência aqui é o que marca nossos sentidos e se imprime em nossa imaginação. E isto não se limita aos artefatos historicamente determinados como sendo artísticos, ultrapassando o campo da prática artística e derivando do funcionamento experiencial. Tal como afirma Diana, no filme, aquilo que carece na leitura dos alunos no momento de interpretar a cena diz respeito ao modo como eles se afastaram de suas própria experiências, do tempo presente, das sensações, sensibilidades e sentimentos compartilhados por uma época, para fazer abrir o texto vivo novamente. E isso não apenas algo da arte, formalizável nas linguagens artísticas, mas algo que ultrapassa seu campo e remete para a extensão sensorial da vida. Cada sujeito e cada grupo possuem um fundo de percepções, orientações e significações – que fazem parte de uma cultura e entram em todos os processos interacionais cultural e simbolicamente mediados – vindas de diferentes lugares do 10 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
mundo da vida – da experiência de vida, no sentido de William James – e que fundamentam nossa apreensão experiencial esteticamente constituída. Assim, podemos experimentar uma obra de arte como também podemos experimentar a natureza, o corpo humano, os ritos, os esportes, as festas cívicas, a mídia da cultura popular, os eventos de massas, a decoração, a culinária, as tatuagens, os segredos da cosmética, a marcenaria, a pesca, todas elas sentidas e percebidas como obras de arte. A vida prática comum é esteticamente constituída pelo equipamento sensorial e motor humano. Como também a cultura estética criada na arte e fora dela será de grande utilidade para definir grandes campos sensoriais nos processos históricos, tais como o desenvolvimento do amor romântico, os cultos públicos, todos eles formas da História da Sensibilidade. O que está implícito neste processo de abertura do campo estético é a proximidade existente entre a arte, a realidade, a vida social, a vida em comum. E, mais ainda, de nos lembrar de quem somos ou de quem estamos sendo agora enquanto fruímos a arte e a vida. O que se valoriza na experiência é a capacidade de reengatar o sensorial, o emocional e o corporal no campo da vida prática, da vida ética, dos processos cognitivos e da ação social e política. A arte como experiência descentra o lugar do artefato e o coloca numa rede relacional entre sujeitos produtores-receptores que constroém e reconstroém ativamente os objetos estéticos, levando em conta os contextos sociais e subjetivos e as intencionalidades variáveis e difusas. A arte passa a ter assim uma relação comprometida com a experiência e esta, por sua vez, ao seguir os rumos de uma estética pragmatista, faz as correlações entre o campo estético, a reflexão acerca do sonho e da utopia e o tema da esperança. Obras populares, de e para as massas, ou, talvez, seja melhor ainda, afirmar, obras produzidas visando promover efeitos nas multidões – nas grandes levas humanas espalhadas através do planeta – exigem a conjugação de sentimentos de vocação universalizante bem como a busca da construção de linguagens capazes de afirmar parâmetros democratizantes no entendimento do que está sendo dito. Tal como numa clínica do sensível a expressão filosófica procura através da leitura de filmes promover um resgate do campo dos sonhos – da imaginação e da imaginação utópica – bem como promover atos de solidariedade. Assim, uma estética pragmatista é uma estética política e seu uso é poder reformular constantemente o modo como compartilhamos e usamos as imagens, as palavras, as coisas e as performances humanas. 11 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Um filme e diversos filmes acedem diretamente ao campo ético-estético-político do pragmatismo. Neles palavras-imagens-performances são postas em jogo e em movimento, e, em nós, a experiência fílmica é causa de narratividade bem como causa de sensação-afecção. Assim, compartilhamos narrativamente o que vemos-ouvimossentimos, enquanto falamos sobre a experiência da assistência. Mas também, temos uma experiência de caráter sensorial-motor, uma “scinestesia”, dentro da qual, relembramos que mente e corpo não se encontram separados.
II. A concepção da metáfora no pensamento de Richard Rorty.
Dentro desta concepção de experiência desenvolvida pelo pragmatismo temos algumas diferenças e desdobramentos. Segundo Ghiraldelli, Peirce tinha uma concepção predominantemente experimental da experiência, fundada numa perspectiva científica. James via experiência como resultante do mundo da vida, como um senso amplo de concordância com o mundo, envolvendo percepções e hábitos e vivências. Dewey somou as duas perspectivas colocando a vivência em constante processo de aprendizagem – pela via de um método experimental -, que constitui-se fundamentalmente num processo de asserção e confirmação, utilizando de sistemas de crença e confiança, por um lado, e, a capacidade avaliativa (espírito científico, criativo, paradigma da mudança em Dewey), por outro. Assim, todos os procedimentos humanos, desde os configurados metodicamente até os mais ordinários fazem parte de um campo experiencial. Esta experiência vai adquirir, no pensamento pragmatista contemporâneo, um caráter duplo de ação e de linguagem. Os pragmatistas, como Richard Rorty, pesquisam o campo da significação. Eles investigam aquilo que a filosofia analítica determinou como sendo uma filosofia da linguagem mas de um ponto de vista pragmatista e, portanto, do uso e das redes de significação (semântica). A linguagem é investigada como sendo uma ação humana no sentido amplo deweyano. Do ponto de vista pragmatista, o significado de algo não necessita ser substantivado mas precisa ser traduzível. Estamos no campo da tradutibilidade semântica.
Todavia, como sabemos agora, Rorty vai além de simplesmente aplaudir a semantização pragmática do tema da verdade. Ele quer mesmo que, ao termos feito isso, possamos dar o 12 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
assunto por encerrado. Ele entende que o último reduto da metafísica, o último reduto da dualidade – a distância entre justificado e verdadeiro – não deveria ser levada a sério. Não deve ser resolvido, mas ultrapassado (até porque, como um bom kuhniano, Rorty não entende o termo „resolver‟ em outra fórmula que não ultrapassar). Isto é como dizer „eis aí um nó, mas será que para tirar os sapatos precisamos desatá-lo? Será que não é só dar uma empurradinha no calcanhar e o sapato sai e o nó é deixado de lado?‟ E aí o nó não atrapalha mais. Mas quais são os nós e laços que nos atrapalham? Ora, os nós e laços estariam na nossa perda de segurança. E a nossa perda de segurança e de conforto metafísico ocorreria quando não pudéssemos mais colocar elementos lingüísticos de um lado e elementos não-lingüísticos do outro e em seguida dizermos que temos um esquema, da ordem do lingüístico, que capta e representa fidedignamente o nãolingüístico do outro lado, o conteúdo (note bem, a sentenças-T não fazem isso!) O problema, para Rorty, não é tentar mostrar como esse esquema funciona – isto seria um problema para os ainda epistemólogos e metodólogos – mas, sim, dizer como ele pode muito bem ser algo que rouba energia de nossas conversas e de nossas ações. (GHIRALDELLI in: RORTY, 1999: 30-31)
Assim, a tradutibilidade pensada aqui não é a da tradução de fato em conceito, ou, de não-lingüístico (mundo da vida, experiência) em lingüístico (esquema, conteúdo). Não estamos falando de uma tradução de uma matéria em outra matéria diferente. Estamos pensando em como Rorty se utiliza da filosofia analítica para a constituição de uma teoria não substantiva do significado. Ou seja, que no ato da conversação significativa não precisamos dos significados efetivos para produzir significados. Podemos obter isto de modo lógico. O que fica explícito nesta perspectiva de trabalho é o envolvimento entre as sentenças lingüísticas e a observação de comportamentos lingüísticos e de outros comportamentos dos usuários de uma língua constituindo um dicionário envolvente (linguagem, contextos, intenções). Nesta perspectiva a apreensão, pela via da metáfora parece ser extremamente útil para o nosso uso no campo da tradução. De certo modo, Clifford Geertz já havia apontado nesta direção e os autores pósmodernos em antropologia reforçam este caráter. Mas Geertz havia dado um caráter de relativismo cultural a seu entendimento da tradução cultural. Em Rorty, o relativismo é criticado. O que ele faz é pressupor a necessidade do desenvolvimento de linguagens de tradução e de meios de tradução. Ele não está contente com o estado atual do mundo e coloca esta posição como algo que o faz divergir do relativismo, uma filosofia de caráter não intervencionista. Em Rorty não importa o quanto sabemos mas o que fazemos e qual as motivações que nos levam a
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fazê-lo. Como a metáfora entra neste âmbito acional? Em primeiro lugar, o que entendemos por metáfora? No
Dicionário
Técnico
da
Comunicação
encontramos
a
seguinte
definição:“Passagem do sentido da palavra do próprio para o figurado, devido a comparação tácita. Vínculo intelectual que liga a linguagem e o mito. Transposição verbal de um conceito a outro. Alegoria na qual umas palavras são tomadas em sentido próprio e outras no figurado.” (ALMEIDA, 1987: 196) No Dicionário de Filosofia encontramos: “Figura de retórica que designa um objeto pelo nome de outro com o qual tem uma relação de analogia ou, mais brevemente: „um termo por outro‟, de acordo com a fórmula de Lacan, que demonstrou que, no inconsciente, o deslocamento obedece ao mesmo funcionamento.” (DUROZOI e ROUSSEL, 1996: 322) No sentido rortyano da tradução, toda ela é metafórica pois se coloca como jogo de substituições e de semelhanças entre termos no interior de contextos acionais e de fala. O dicionário proposto é ele mesmo uma grande metáfora de uma comunicação possível, não limitada ao entendimento de um significado último ou de uma representação estável da realidade.
Desse modo, Rorty concorda com as preocupações estéticas presentes no pensamento de Lyotard, valorizando o senso estético e literário. A posição do novelista / ficcionalista, tomada como o melhor lugar para a produção de discursos capacitados na arte da inclusão de uma racionalidade dialógica (Kundera encontrando com Bakhtin, num sentido metafórico para o próprio desenvolvimento das teorias), é um elemento caracterizados do pensamento rortyano. Mas há uma diferença crucial entre Lyotard e Rorty. A orientação lyotardiana perde-se, ela própria, no estetismo nobre das vanguardas artísticas, que renunciam a sua ação no mundo, terminando por fazer do contraponto com Habermas um modo de Lyotard, ele próprio, auto-intitular-se uma outra versão da herança erudita de Theodor Adorno. A aposta acrítica nas esgotadas manifestações da arte erudita afastam Lyotard, conscientemente, de qualquer posicionamento democratizante. Rorty está muito menos preocupado com o futuro da arte do que com a capacidade desta de agir esteticamente sobre nossos conhecimentos e modos de viver. Há uma espécie de vitalismo na posição pragmatista quanto ao domínio das artes. Assim, arte passa a ser uma metáfora que explica um jeito de fazer e viver. O discurso literário e artístico reconhecido como tal tem o papel social de levar ao seu limite o procedimento que instala uma ação comunicativa. Ele é uma espécie de reduto estratégico de renovação e de alimentação de nossas falas cotidianas. E podemos encontrar este critério tanto em presença de grandes obras da cultura ocidental, quanto nas formas populares e de massa da cultura da segunda metade do século XX e do início do século XXI. Rorty deixa grande margem para as formas culturais inventadas por nós – a imprensa moderna, a história em quadrinhos, o cinema, a fotografia -, enxergando-as, todas, como capacitadas para fazer valer o seu amplo espaço social e deixando passar novas versões do nosso próprio mundo. (NORONHA, 2001: 166-167) 14 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Metáfora, seguindo uma abordagem lógica, constitui-se em silogismo metafórico ou forma local e particular da lógica. Este modo do pensamento se apresenta na poesia, na arte, nos sonhos, no humor, na religião e na esquizofrenia, segundo Gregory Bateson. Nesta perspectiva, silogismos metafóricos são o “modo dominante para comunicar la interconexión de las ideas en todas las esferas preverbales”. (BATESON, 1994 :40)
Creo que la primera persona que realmente vio esto com claridad fue Goethe, quien observó que si examinamos una col y un roble (dos clases de organismos bastante diferentes, pero así y todo plantas ambas que florecen) comprobamos que la manera de hablar sobre cómo las dos plantas se relacionan es diferente de la manera en que la mayor parte de las personas habla sobre dichas plantas. Hablamos como si la Creatura fuera realmente pleromática: 4 hablamos sobre „cosas‟ sobre hojas o tallos, y tratamos de determinar qué són esas cosas. Ahora bien, Goethe descubrió que una „hoja‟ se define como aquello que crece de un tallo y presenta un brote en su ángulo; lo que luego emerge de ese ángulo (de ese brote) es de nuevo un tallo. Las unidades correctas de descripción no son la hoja ni el tallo, sino que son las relaciones que éstos guardan entre sí. [negrito é meu] Tales correspondencias nos permiten considerar otra planta – una patata, por ejemplo – y reconocer que la parte que comemos de ella en realidad corresponde a un tallo. Del mismo modo, se nos ha ensenado a la mayor parte de nosotros en la escuela que un sustantivo es el nombre de una persona, lugar o cosa, pero deberían habérsenos ensenado que un sustantivo puede estar en varias clases de relaciones con otras partes de la proposición, de manera que toda la gramática podría definirse como sistema de 4
Bateson afirma o contraste entre Criatura e Pleroma, seguindo uma proposta de Carl Gustav Jung. Nesta compreensão há uma relação homológica – lógica formal – entre o pensamento e o mundo material, fazendo de todo o processo de evolução biológica e embriológica um processo mental. Para este autor, processo mental é informacional e comparativo, a fórmula “a diferença que faz uma diferença”. O mundo do Pleroma é o da matéria inanimada, descrito por leis físico-químicas e não contém descrições. Pleromas podem ser descritos e utilizados como sinais, índices e ícones mas eles, por si só, nada podem fazer. No mundo das Criaturas estas usam e contém informações. A Criatura é matéria animada e designa “ese mundo de explicación en el cual los fenómenos mismos que se describen son fenómenos gobernados y determinados por la diferencia, la distinción y la información. Aunque existe un aparente dualismo en esta dicotomía de Creatura y Pleroma, es importante tener presente que estas dos esferas no están en modo alguno separadas o puedan separarse, salvo como niveles de descripción. Por un lado, todo lo de la Creatura existe dentro del Pleroma y por obra de éste; el empleo del término Creatura afirma la presencia de ciertas características de organización y comunicación que no son ellas mismas materiales. Por outra parte, el conocimiento del Pleroma existe sólo en la Creatura. Podemos abordar ambas esferas sólo en combinación, nunca separadamente. [...] Creatura y Pleroma no son, como „el espíritu‟ y la „materia‟ de Descartes, sustancias separadas, pues los procesos mentales exigen disposiciones de la materia para darse, exigen zonas en las que el Pleroma está caracterizado por la organización que lo hace susceptible de ser afectado por la información así como por sucesos físicos.” (BATESON, 1994: 31) Esta proposição leva a uma compreensão da epistemologia como sendo uma comparação entre diferenças (informações) e não mais entre matérias (objetos). A tarefa eminentemente antropológica é a da comparação entre diferentes sistemas de construção do conhecimento, envolvendo os hábitos epistemológicos de cada cultura em seu modo de pensar, o que faz de toda a epistemologia um processo local – cultural-social e pessoalsubjetivo. O que temos aqui é justamente um processo que demonstra a diferença entre o mapa -o nome o sentido – o significado que não corresponde ao território – à coisa nomeada. Nos processos locais estamos falando de lógica da metáfora. Silogismos metáforicos são lógicas locais ou particulares e não são silogismos categóricos. No silogismo categorial o indivíduo é classificado e identificado universalmente a uma classe determinada. No silogismo de metáfora aventam-se múltiplas possibilidades de entendimento por substituição. Eles são o modo predominante da comunicação na esfera pré-verbal, funcionando sempre como "afinidades eletivas", "leis de correspondência". Para um maior desenvolvimento destas questões, ver El temor de los Angeles: epistemologia de lo sagrado, de M. C. Bateson e G. Bateson (Barcelona: Gedisa, 1994). 15 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
relaciones y no atendiendo a las cosas. [negrito é meu] Esta actividad de nombrar, que probablemente no poseen otros organismos, es en realidad una especie de pleromatización del mundo vivo. Y obsérvese que las relaciones gramaticales son del tipo preverbal. 'Él buque chocó contra un arrecife' y 'zurré a mi hija' están ligados por una analogía gramatical. [...] Por supuesto, mi afirmación de que toda la comunicación preverbal y no verbal depende de metáforas y/o silogismos de la hierba no significa que toda comunicación verbal sea - o debería ser - lógica o no metafórica. La metáfora recorre toda la esfera de la Creatura, de modo que cualquier comunicación verbal contiene necesariamente metáforas. Y la metáfora, cuando está revestida con el ropaje de las palabras, agrega aquellas características que pueden lograr el verbalismo: la posibilidad de clasificación, la posibilidad de diferenciar sujeto y predicado y la posibilidad de marcar explícitamente el contexto. [negrito é meu] Por último, con las palabras, se da la posibilidad de volcar lo metafórico y el modo poético en el símil. Es lo que Vaihinger llamaba el modo como si de la comunicación, la cual se convierte en algo diferente cuando se agrega el como si. En una palabra, se convierte en prosa y entonces hay que respetar y obedecer precisamente todas las limitaciones de los silogismos que prefieren los lógicos, los silogismos categóricos y todo lo demás. [negrito é meu] [...] El acto mismo de traducción - el acto de pasar del silogismo de la hierba al silogismo categórico, de la metáfora al símil y de la poesía a la prosa - puede llegar a ser él mismo sacramental, una metáfora sagrada para una determinada posición religiosa. [...] (BATESON, 1994: 40-42)
Estamos diante de uma problemática de lógica particular ou local que, na esfera da signficação, designa uma apreensão etnográfica da realidade. Conhecemos etnograficamente na medida em que apreendemos na particularidade e em contexto. Assim, o exemplo batesoniano se completa no entendimento dos marcianos de Rorty. Para os marcianos, as comunicações no âmbito metafórico garantem o entendimento necessário sem a compreensão de todos os registros dos procedimentos classificatórios determinados por uma determinada forma culturalmente marcada do pensamento - a ciência. Marcianos podem compreender e se relacionar, através de uma metalinguagem, com uma cultura Outra, sem ter de compreender todas as implicações classificatórias de uma língua. O dicionário é uma ação em superfície, de translação - tradução de uma coisa em outra. Este
procedimento
metacomunicacional
garante
a
possibilidade
de
conhecimentos capacitadores para a existência em comum, o maior interesse das funções humanas. Parece dizer com isto, numa confluência entre Bateson e Rorty, que o mundo se organiza metaforicamente. Bateson se utiliza da lógica da metáfora para falar do mundo biológico. Rorty se utliza da metáfora para nos afirmar que este é o modo mais apropriado de "fazer sentido". E Bateson reafirma que este é efetivamente o modo como está organizado biologicamente o mundo das Criaturas. 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
O objetivo batesoniano é o de contar histórias que melhor traduzam as possibilidades relacionais do/no mundo biológico. O objetivo rortyano é o de contar histórias que sejam capazes de remeter para os usos socialmente estáveis da linguagem convencionada (hábitos, convenções) e o giro lingüístico implicado neste procedimento metafórico. Assim, o propositor força os limites do entendimento social de uma determinada expressão, remetendo para uma implosão do contexto situacional da fala em questão promovendo, através do novo uso da linguagem, uma perspectiva de novo uso social. Por exemplo, quando Mary Shelley escreveu Frankenstein, o monstro feito texto escrito, o monstro do romance em sua dimensão grotesca e generosa, bem como sua capacidade para o mais pleno amor e a maior fúria, enfim, toda a construção metafórica desta figura acaba por promover uma situação limítrofe em torno do humano. A inumanidade é uma metáfora para os valores humanos e revela a nossa incapacidade em relação à (in)tolerância para com as diferenças físicas entre os seres humanos. Há uma finalidade política e de comunidade humana nesta manifestação artística do romantismo e que sobrevive e se revigora a cada momento em que a metáfora é acionada. (NORONHA, 2001: 34-35)
Esta ordenação metafórica permite a inclusão de um número infinito de descrições alternativas. A razão metafórica permite apreender de modo ampliado as nossas descrições somadas a conjuntos diferenciados e outros de descrições - o que chamamos, no pragmatismo, de descrições alternativas ou outras versões da história. Estas descrições atingem, segundo Bateson, nossos enquadres empáticos, envolvendonos em diferentes origens relacionais para os objetos em questão. O que está em jogo, em última instância, é uma apreensão da realidade não como um conjunto de objetos (perspectiva que se mantém na trajetória do racionalismo cartesiano aos diferentes estruturalismos) mas como relações entre histórias (narrativas). Seres humanos pensam as coisas a partir de histórias, ou seja, para usarmos um exemplo de Bateson, quando falamos de uma concha não falamos do objeto mas falamos do desenvolvimento, das milhares de histórias que cada uma das linhas evolutivas representam. Diz ele:
[...] la concha contiene la narración de su crecimiento individual dentro de su forma geométrica, así como contiene la forma de su evolución. [...] Mencionaste también la columna vertebral, de manera que las historias del desarrollo y evolución del ser humano están también en la conversación. Pero aunque en realidad no menciones el cuerpo humano, hay configuraciones comunes que constituyen una base de reconocimiento. Eso es lo que quise decir - o parte de lo que quise decir - cuando anos atrás declaré que cada persona es su propia metáfora central. Me gusta esa concha porque es como yo, pero también porque es muy diferente. (BATESON, 1994: 46)
A perspectiva de se pensar as histórias como modelos adequada à transformação
17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
destes modelos enquanto descrições e as referentes estratégias de redescrição é o entendimento da metáfora, como a uso aqui. A metáfora é o próprio entendimento relacional entre a história contada e as maneiras como: -
os vocabulários são usados de modos novos sugerindo corpos novos;
-
são acrescidos novos elementos nos vocabulários a partir de práticas de outra
ordem que não a lingüística; -
corpos antigos sugerem reintepretações continuamente inventadas e assim
por diante.
III. Metáforas, novos vocabulários, novos corpos. Os filmes de horror e os de FC como casos paradigmáticos-metafóricos no sentido pragmatista. Um estudo de caso: o Frankenstein e A noiva de Frankenstein, de James Whale, e, Deuses e Monstros, de Bill Condon.
No Frankenstein de 1931 (James Whale) observamos diferentes modos de apresentação do corpo. O corpo é, inicialmente, identificado com o mundo dos mortos. Nas imagens iniciais, um enterro e um cemitério mostram-nos os emblemas do que está por vir. As caveiras em forma de estátua e o crucificado remetendo a Cristo nos dão ainda o pano de fundo religioso, de onde a profanação e a ciência surgem como dilema moral. Logo em seguida, a mesma morte é identificada aos estudos de anatomia e a aula de dissecação. Ali, mortos ficam expostos para a visão e experimentação humana. Uma polarização logo se forma, buscam-se corpos nos cemitérios e busca-se o cérebro no laboratório. A ambição científica é a de desenvolver a capacidade de criar a vida a partir da morte. O cadáver do recém-morto deixa a situação da ciência na margem da criminalidade, na eminente possibilidade de destruir para recriar. Em realidade, não se fala de criação mas de recriação a partir de pedaços que já estiveram vivos. O Dr. Heinrich (Henry) Frankenstein é uma espécie de bricoleur. Fazer monstros não é atividade científica mas ação da bricolage. O corpo é recriado com as mãos. As mãos substituem metaforicamente o sexo. O cirurgião é um costureiro que reúne partes de 18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
corpos diferentes, destituídas de qualquer sentido de ordem física. Mãos que se desassemelham conduzem a impossibilidade do espelho para alcançar qualquer tipo de integridade física. O sujeito não se reconhece em suas próprias partes. As mãos também identificam sinais de humanidade. É o seu uso correto e o desenvolvimento de suas habilidades motoras que distingue a humanidade (a preeminência do polegar direito). O Frankenstein médico possui o máximo desta habilidade costureiro-cirurgião utiliza-se do instrumental médico habilmente. O Frankenstein monstro não a possui. Suas mãos são diferenciadas e não sabe usá-las corretamente. Suas mãos pedem mas também são usadas prioritariamente como instrumento de defesa. Aprender com as mãos pode ser também matar. Neste sentido, os usos podem se inverter: o Criador vira Destruidor. Frankenstein médico faz o monstro com suas próprias mãos e depois quer usá-las para detê-lo. Neste movimento, é acompanhado de todo um bailado de mãos que se erguem para pedir justiça e para carregar tochas e armas na busca do monstro criminoso. Merleau-Ponty nos fala de toda esta fenomenologia das mãos em seus textos sobre a arte.5 Duas questões de origem também estão postas no filme e são utilizadas de modo simples: as mãos e o fogo. Associados ambos os elementos com a origem da humanidade (lembremos 2001 e A Guerra do Fogo, no âmbito do cinema) aparecem constantemente na cosmologia do Frankenstein (1931). Além disso, o filme faz uso de toda a mística dos cérebros sadios e dos cérebros doentes. O filme se passa no contexto visual do século XX, na Alemanha, mas faz uso de uma concepção de Fisiognomonia que pertence aos séculos anteriores, encontrando nos órgãos os traços do caráter. Nas personagens do laboratório encontramos a presença de um Dr. Henry Frankenstein marcado por uma gestualidade gay (um estilo queer), um assistente de nome Fritz marcado por sua corcunda (deficiência física associada a uma forma expressiva que sugere deficiência mental) e um monstro – o “Frankenstein” – feito de pinos e partes de corpos costurados, sugerindo a anti-natureza do fato de sua existência. O monstro não é parte da natureza e isto fica perceptível no conflito que este mantém com o Fritz, “monstruosidade” da natureza. Este é um universo povoado pelas margens: caveiras, esqueletos, cadáveres, gays, corcundas e monstros fazem parte de um outro mundo, um mundo de freaks. O filme termina com a consciência de uma filiação vinda de uma ausência de 5
Lembrar aqui que o diretor do filme, James Whale, foi também o criador da imagem do Frankenstein. Há uma forte associação estética com os traços e a visível força do desenho e do expressionismo artístico alemão, admirado por Whale. Whale gostava de pintura e desenho e começou sua carreira com cenografia, ainda na Europa. A importância da atividade visual nos seus filmes é marcante 19 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
procriação, numa continuidade geracional que não é da ordem da natureza. O filho criado – a Criatura – surge da ordem do Pleroma – do mundo inanimado. Ele é o rejeitado e o enjeitado, o não-aceito. Tal como uma Joana D‟Arc ele é queimado ao final da primeira história mas agora não na cruz mas no moinho cujas pás fazem o desenho de um X ou de uma CRUZ GREGA. No filme A Noiva de Frankenstein (1935), Whale continua afirmando o caráter romântico de uma natureza selvagem e indômita, na qual podemos ver “o ar cheio de pequenos monstros”, tal como diz a personagem de Mary Shelley que é também a Noiva do Monstro. O segundo filme continua apresentando uma seqüência de figuras marcadas pelo diferencial físico. O corcunda Fritz é substituído pela empregada da mansão, Minie, uma mulher manca identificada por intérpretes do filme como uma espécie de drag-queen da época. Surge também um outro cientista, o Doutor Pretorius. Henry criou um homem descobrindo o segredo da vida – eterna – a partir da morte, descobrindo a unidade através da diversidade, da junção de pedaços mortos ele recria um inteiro vivo. Pretorius cria “vida de laboratório”, seres humanos de proveta, em tamanho reduzido. São como homúnculos ou seres criados como plantas em vidros. Ele quer unir sua capacidade de encontrar as justas proporções e a criação de um cérebro artificial com a capacidade de Henry para produzir um corpo em tamanho natural e criarem juntos uma mulher, a companheira do monstro, a noiva de Frankenstein monstro. Outro diferente fisicamente é o violinista cego que mora isolado numa cabana na floresta. Ele diz que “ver é estranho”. O encontro do monstro com o cego permite a complementaridade pela negatividade: um não pode ver e o outro não pode falar. A amizade se produz entre os diferentes excluídos socialmente por suas diferenças físicas. O cego agradece a Deus por aquele que todos denominam como sendo o Mal em sua manifestação – o monstro. Aqui há uma série de configurações valorativas: amizade / bom versus solidão / mal; fogo / bom versus fogo / mal; beber, fumar, ouvir música tudo isto é bom. A presença de outros humanos tira o convívio entre o cego e o monstro. Frankenstein, homem feito de cadáveres reunidos, foge para o cemitério. Ali, reencontra a paisagem do início do primeiro filme: corpos feito estátuas, corpos feito morte. “Eu amo os cadáveres, eu odeio os vivos.”, diz o monstro. Ele reconhece na paz de uma cripta os seus amigos e o seu ambiente. 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Pretorius cria um cérebro perfeito mas sem a vida. Ele precisa da eletrobiologia de Henry para dar vida à parte mais complexa da anatomia, o coração. Nota-se novamente o uso de uma teoria médica mais antiga que o contexto do filme, misturando as referências de diferentes passados da História da Medicina. O coração é visto como a parte mais complexa do corpo enquanto que o cérebro pode ser reproduzido artificialmente, em laboratório. O cérebro é artificial – A.I. – e o coração é natural – é preciso o coração quente de um recém-morto. Para criar uma vida é preciso destruir outra. A ciência como magia requer um coração ainda quente, como nos ritos de feitiçaria e como em Branca de Neve, onde a madrasta exige o coração como prova da morte e como complemento para o seu feitiço. Desse modo, outro corpo é criado, pelas mãos de dois homens, na ausência de uma mulher e criando uma mulher. A partir do eletromagnetismo os dois homens criam este corpo feminino coberto por ataduras, um corpo mumificado, pronto para a vida eterna e depois apresentado como sendo a mulher ideal – representada no filme pela mesma atriz que faz a Mary Shelley. Aqui há todo um jogo de referenciações. A mãe do monstro, a escritora Mary Shelley vira sua companheira. O monstro ganha um pai, Henry Frankenstein – cujo nome é trocado pois no livro ele chama-se Victor Frankenstein e no filme este é o nome do seu melhor amigo e apaixonado secreto de sua noiva, Elizabeth. Neste jogo, fica explicitada a brincadeira queer de James Whale. Trocar os nomes, burlar identidades deixando margem para a triangulação amorosa idealizada: dois homens e uma mulher, Byron – Shelley e Mary; Henry – Victor – Elizabeth; Henry – o Monstro – a Noiva; Pretorius – Henry – a Noiva. O casal não é visto como a parceria ideal mas o triângulo. A mulher é o terceiro termo erótico mas não sexualmente ativo. A relação sexual homossexual deve ser complementada pela visão estética de uma feminilidade recriada a partir do mundo masculino gay. Whale apresenta aqui a fórmula muito conhecida entre os homossexuais da chamada “mulher-bicha”, uma mulher que vive entre dois amigos, parceiros sexuais, contentando-se em aparecer aos olhos dos outros como sendo cobiçada por dois homens ao mesmo tempo.6 6
Este é um fenômeno muito presente no conjunto de relações homossexuais. Quase todo homossexual, mesmo quando em conjunção marital com outro homem, possui uma “melhor amiga”, sempre presente na sua casa e na sua vida. Nos anos 1990, esta figura da “mulher-bicha” espalhou-se pelas boates gays ganhando notoriedade e mídia como fenômeno cultural. Eram mulheres solteiras e sem parceiro sexual, geralmente heterossexuais, que preferiam circular apenas em boates gays, contentando-se em dançar e até mesmo ficar com um homem homossexual. Geralmente, esta mulher traz ao homem um status perante os outros homossexuais. O homem é mais valorizado pela atratibilidade feminina da sua companheira. Na maior parte das vezes, este jogo não inclui intercurso sexual entre a mulher e um ou dois homens. Os homens fazem da mulher mais um elemento do seu código de sedução e reconhecimento mútuo. 21 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Ao final, toda esta crítica à moral sexual familiar acaba permanecendo no reino da exclusão. O triângulo com Henry se desfaz para constituir entre Pretorius, o monstro e a noiva. Todos eles são os diferentes. E a diferença pertence à morte. Henry volta ao binarismo do jogo sexual convencionado e foge com Elizabeth. O terceiro termo é excluído desta semiótica geral para retornar ao binarismo mas como um elemento recalcado ele permanece tragicamente presente. A vida e a procriação sempre trarão consigo a morte. Em Deuses e Monstros, filme de Bill Condom, baseado no romance que conta a vida do diretor James Whale, a história se completa. Whale é um diretor fora do circuito de Hollywood, vivendo em sua casa, com uma governanta. A história começa quando ele volta do hospital, após um derrame cerebral. O derrame não atingiu as capacidades físicas mas a zona do cérebro que se pensa a si mesmo, a memória e as sensações. Whale passa a viver uma tempestade de sensações que anunciam o retorno do passado com toda a sua intensidade, desde a imagem até os odores – ele vê, ele conversa, ele sente odores, ele torna novamente presente o passado distante, por meio de alucinações. Neste seu retorno, a casa tem um novo membro, um jardineiro, Clay Boone, um ex-fuzileiro com uma tatuagem no braço. Aqui fixa-se novamente o padrão triangular de Whale: o diretor – a governanta – o jardineiro, reunidos num triângulo (o triângulo dos homossexuais na guerra transformado em signo de luta junto do arco-íris), triângulo amoroso onde o fica deixado de fora é o ato sexual em si. Ambos, diretor e jardineiro iniciam uma amizade (Friend? Friendship?) e contam mentiras acerca de seus passados. Whale quer desenhar a cabeça de Clayton. Ele diz não se interessar pelo corpo. Misturam-se passado e filmes. O filme diz: “o ar está impregnado de monstros”. O passado volta e impregna o ar de Whale de monstros da memória. O derrame causa nostalgia e o que foi ocultado passa a retornar sem aviso e sem piedade. Whale enxerga Clay como um possível Dr. Henry Frankenstein em seus sonhos e se vê a si mesmo como o monstro. Ele vê Clay substituindo o seu cérebro velho por um novo, o jardineiro vira cirurgião e muda o cérebro de Whale. Tudo faz com que o diretor passe a nos mostrar a sua própria obra como sendo uma “cómedia sobre a morte, onde a única figura nobre é a do próprio monstro, o Frankenstein, o nobre e incompreendido”. Talvez, como ele próprio em sua escolha pela liberdade sexual e de atitude – um diretor camp numa Hollywood que tudo permite sem que seja visto ou nomeado – ou como o próprio Boone – um homem que também 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
fugiu do seu passado e da sua própria história para viver em Hollywood, esperando alguém que pudesse lhe oferecer uma história. Nesta troca de histórias, onde o passado se desenterra sozinho, as mentiras vão sendo substituídas pelas memórias de cada um destes homens, que se olham e se reconhecem em posições inversas. Whale é o diretor, Boone o desconhecido. Whale é o homossexual e, portanto, o não-viril. Boone é o heterossexual e, portanto, o macho. Whale é o que possui uma mente doente ficando restrito a uma corporeidade aparentemente frágil mas sobrevivente. Boone tem o corpo aparentemente forte e uma mente sadia mas que pouco compreende dos jogos e ardis do diretor – bem como os jogos da sua namorada, na cena do bar. Nestas conversas Boone vai se mostrando o mais frágil e Whale o mais forte. Whale foi verdadeiramente à guerra e ele sobreviveu a todo o seu passado. Suas memórias de guerra são freqüentemente associadas ao gênero do Horror Film. Guerra e sexualidade se misturam na construção deste gênero. Boone não foi à guerra, ficou com apendicite. Ambos possuem uma espécie de ódio nomeado pelos seus pais. Whale por ter se percebido muito cedo como alguém diferente numa família que lhe era inóspita e Boone pelo pai ter rido dele, tomando-o como um fraco. Os corpos masculinos são bastante acentuados neste filme. Os corpos da memória, os corpos do sexo, os corpos dos soldados nas trincheiras, o corpo do amado – Leonard Barnett, um corpo morto numa cerca de arame, no riso macabro da morte (a comédia da morte que fazemos da guerra), tal como nas gravuras de Goya (Desastres da Guerra). As estátuas dos cemitérios retornam alegoricamente nas pinturas em cópia feitas pelo diretor e nesta busca por uma corporeidade gélida – o corpo como estátua grega.7 O corpo de Clay é ainda um corpo humano e, talvez por isso, a impossibilidade do desenho. A arte deve retirar a humanidade, resfriá-la. Assim, Whale traz a máscara da I Grande Guerra e oferece a seu jardineiro nu, para que possa fazê-lo um não-humano. O que podemos estar vendo? Não apenas a tentativa de apagar a humanidade mas a tentativa de apagar o rosto humano e seus traços, a devolução do olhar. Mascarado, Whale reencontraria a corporeidade pagã em sua inteireza e poderia tratar de experimentar este corpo em toda a sua voluptuosidade sem rosto – sem nome. Ele queria fazer de Boone o seu monstro, invertendo o primeiro sonho e designando ao 7
Nesta perspectiva, nota-se toda uma estetização da nudez, tal como a apresenta Kenneth Clark em sua obra clássica sobre o nu. O corpo nu não é apenas destituído de vestimenta ou apresentado sexualmente. A visão do sexo é estetizada e matizada por este emblema da procura de algo mais que humano, um super-humano ou um desumano. Assim, monstros são exageros da humanidade, um excesso de humanidade que está associado ao mito do Frankenstein. Não é à toa a história de Whale fazer referência à Alemanha e toda a contextualização da guerra. 23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
homem forte o papel de CRIATURA. Este é o jogo do PLEROMA – CRIATURAS (CRIATURA E CRIADOR NO MESMO CIRCUITO). Este é o jogo de uma criatura que, fazendo do Outro, um Segundo Monstro, o coloca como agente de sua destituição como coisa viva, criatura, para retornar ao pleroma, matéria inanimada, pedaços de carne, cadáver. Este é o jogo para ser morto. Whale enfim nomeia a sua brincadeira – o seu curto-circuito – e pede a morte pelas mãos do “monstro”. Mas Clay não suporta tamanho ato e chora. O monstro é Whale. Ele é super-humano e forte. Ele é o incapaz de suportar a sua própria decrepitude – ele não consegue mais jogar, seu cérebro o trai, trazendo as partes (veja-se aqui os pedaços de que é feito o monstro são também os pedaços recortados da memória) que ele havia ocultado, desvelando para si e diante do Outro a sua própria história como mentira. A metáfora da vida que construímos não como história pessoal mas como história recontada e reencenada é a própria história do cinema de Hollywood. No sonho, Clay agora ganha o lugar do monstro e leva Whale pela mão, colocando-o junto a seus mortos, na trincheira. Whale reencontra o seu amado Leonard Barnett, o amor que ele havia apagado junto com toda a sua história. Quatro corporeidades cruzam nesta história: a corporeidade homossexual, a corporeidade alucinatória / da memória furiosa (como o Funes, de Jorge Luis Borges), a corporeidade neuronal-cerebral-da biologia e a corporeidade estética, entre o físico e o escultórico. Nestes cruzamentos surge o corpo monstruoso, seja ele físico, seja ele artístico, seja ele virtual, seja ele sexual. E todos eles apenas se reúnem na morte, não a morte pelo fogo, como a do Frankenstein, mas a morte pela água, do corpo boiando na piscina, restituído ao seu elemento arquetipal materno, uterino. Mas não há qualquer contenção final no arquétipo. O que há é excentricidade, fuga do centro. A monstruosidade permanece incontida. Num texto de Alberto Manguel vemos as histórias de Lavínia Fontana e de Antonietta (Tognina) Gonsalvus. Tognina era uma moça peluda – uma mulher-loba – mostrada como objeto de curiosidade nas cortes no século XVI. Filha de uma descendência de lobos, pessoas que sofriam de uma doença que cobria todo o corpo de pelos. Em quase todas as ilustrações e pinturas que aparece sua imagem é colocada na condicionante dos “horrores da natureza”, das “criações defeituosas de Deus”, “exemplo da ira de Deus”, “aberração da espécie”, “monstro”. Como imagem tinha o sentido moral de avisar aos pecadores, como objeto tinha o sentido de despertar a curiosidade científica e mórbida presente em qualquer outro ser humano diante da diferença 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
enunciada. Objeto moral e objeto do museu biológico, figuras como esta acabam por tornar dificultosa a nossa capacidade de estabelecer a fronteira entra a humanidade e a inumanidade. Estas histórias fabulares e míticas aparecem também num gênero poético, no dizer de Manguel:
Cerca de três ou quatro décadas antes da publicação do livro de Columbus, surgiu na França uma forma poética nova, o blason, uma descrição lírica de uma das partes do corpo. Ao lado dos aspectos fisionômicos tradicionais que eram alvo dos elogios na poesia dos trovadores – o rosto, as mãos, o pescoço, os olhos, a boca e os dentes -, emergiram então o cul e a con – as nádegas e a vagina. [...] O blason cantava o corpo de proporções divinas. Mas, muito além ou abaixo dessas medidas e matizes ideais, a figura humana se convertia em um monstro: grande ou pequeno demais, braços e pernas insuficientes ou excessivos, gordo demais ou demasiado peludo. Um tratado babilônico do terceiro milênio antes de Cristo divide os monstros em monstros por excesso, monstros por carência e monstros duplos. Excesso também podia significar a aquisição de traços que normalmente não condizem com uma face. A famosa mulher barbada do circo teve ancestrais célebres e numerosas.[...] (MANGUEL, 2001: 126-127)
Estas figurações da selvageria tentam nos mostrar por exemplo visual e didático o perigo e a maravilha do mundo, a irrupção de uma novidade e uma sentença de morte. O que nos faz lembrar dos limites auto-impostos quando vivemos em sociedade e dentro da qual decidimos o que é nobreza e o que é barbárie. No limite, estamos dentro do reino do maravilhoso, das mil e uma noites, na qual devemos e podemos encontrar uma humanidade mais profunda – “a capacidade do riso no encontro com a morte, revelando a nobreza do monstro em sua incompreensão e em sua ausência de lugar no mundo dos vivos / mundo dos normais / dos que se olham no espelho e reconhecem uma imagem inteira” – que quer se mostrar para nos lembrar e nos fazer compreender a existência da Outridade. Ao final de sua história, Manguel conta acerca de um quadro da mesma pintora Lavinia Fontana. Ele diz:
No que é, talvez, o mais famoso retrato social feito por Fontana, o da família Gozzadini, o cãozinho no meio insiste em desviar nossa atenção das emoções, um tanto desassossegadas no rosto de todos os modelos. O cão repousa, mimado e sociável, em um emaranhado de mãos, que não se mostram obviamente ameaçadoras. Porém, mais no fundo, além da porta e seguindo pelo corredor, quase imperceptível na penumbra, há um outro cão, sua sombra distante, que não se mostra mais como um mero animal de estimação, mas completamente só, isolado da reunião civilizada e oficial, o cão negro da família, por assim dizer, o que guarda e vela os segredos, o que se encontra fora do círculo do comportamento social aceitável. O gênio de Fontana consiste nisso: em seu retrato de Tognina, modelo público e parente secreto, a menina e o cão, a bela e a fera não estão mais cindidos. O aberrante não precisa se esconder, o ser social não precisa fingir, o lado claro e o lado escuro podem se expor a céu aberto. Na pintura esplendidamente compassiva de Fontana, os dois lados se fundem em um só e olham firmes para o passado, para o presente e para o futuro do espectador, em uma afirmação do seu ser polimorfo. (MANGUEL, 2001: 136-137)
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Nos Deuses e Monstros, a fusão de filme sobre filme – Frankenstein sobre Whale e Whale sobre Frankenstein – anuncia novamente a presença do incivilizado, do selvagem e do polimorfo. O “cão negro” em Hollywood, a estética queer e camp de Whale, sua homossexualidade, fora do circuito do politicamente aceitável nas relações entre as máscaras volta à cena como memória e alucinação e como memória e narrativa. A alucinação abre as comportas do passado e faz recontar a história. Agora o fingimento e a mentira sobre o “si mesmo” vão sendo subsumidas em outras versões, a versão do encontro entre Whale e Clay. O monstro pode ser o médico, o médico pode ser o monstro, numa outra versão de Stevenson. O monstro pode ser Whale e pode ser Clay. Todos somos monstros, pleromas e criaturas. Voltando ao começo: qual o sentido metafórico que encontro aqui? O do próprio encontro e o do sentido da amizade. A amizade entre o cego e o monstro, cada qual destituído parcialmente ou exageradamente ocupado por seus próprios equipamentos físicos. O cego é monstro pela falta. Frankenstein é monstro pelo excesso. Whale e Clay também são monstros e vivem, em suas memórias, povoados por monstros de seus passados, “cães negros” avisando algo do fundo do quadro, do fundo da selvageria. A amizade é constituída de gestos. Gestos de aprender com o outro a respeito do mundo e de si mesmo, do que é bom e do que é ruim. O filme de horror, em sua queda no gosto de massas, permite uma acessibilidade imediata à compreensão e à compassividade em relação a estas diferenças físicas, tanto as do excesso quanto as da falta. Assim, sua experiência pode obter este caráter destinatório rortyano de produção de um senso democratizante. A metáfora da amizade cria uma história louca sobre o inaceitável encontro entre o cego e o monstro, entre o diretor homossexual e o jardineiro heterossexual, abusando das palavras que existem para oferecer a elas uma significação nova. Quem desejaria ser amigo de um monstro?
Rorty entende que não basta a extensão de direitos. A tolerância e o fim da crueldade necessitam de ações mais ousadas. Na maior parte das vezes, uma ação contra a crueldade depende da invenção de direitos. Então, precisamos pedir mais a essas pessoas. Precisamos que elas atuem não apenas como profissionais, mas sim como poetas e gênios – elas vão ter de criar novos vocabulários. Há direitos jamais sonhados que só podem virar direitos a serem reivindicados quando um novo vocabulário alternativo emerge. Os professores, por sua vez, podem ser aqueles que alertam os jovens para esses novos vocabulários. Ações que, no final, possam resultar na criação de novos direitos, em prol da tolerância, em geral são ações que necessitam ser suficientemente fortes para, usando as palavras de Rorty, „mudar as reações emotivas instintivas‟ – educar, reeducar, em processo contínuo e infinito. Rorty entende que um modo de fazer isso é providenciar uma nova linguagem, novos vocabulários. Com a expressão uma „nova linguagem‟ ele não está querendo apontar apenas para o uso de novas palavras mas, principalmente, para o uso criativo e abusivo da 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
linguagem existente, o que implica na utilização de palavras familiares mas de um modo que inicialmente soa à maioria como completamente louco. (GHIRALDELLI, 1999: 64-65)
Assim, filmes de horror são obras populares e de e para as massas. A descrição alternativa de Whale reinventou a imagem da monstruosidade, não como o Mal simplesmente mas como a complexa expressão de nossa imagem não refletida em espelhos, nossas próprias costuras identitárias, nossa precariedade e nossa fragmentação permanente. Frankenstein é uma reinvenção do vocabulário que permite pensarmos na justeza de que haja lugar para esta diferença e para esta presença. A diferença física deve poder se apresentar não como estranheza e lembrança moral do pecado e do erro mas como outra possibilidade do ser em sua manifestação fenomênica, como lembrança de que não há uma única forma para a espécie humana que vive. Assim, a metáfora da amizade entre os diferentes se torna a fábula moral da liberação das formas que aqui vivem em suas diferentes corporeidades.
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Artigos
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FILOSOFIA, CORPO E ARTE Um Convite à Conversação Sérgio Oliveira RESUMO Trata-se, com este texto, de apresentar alguns momentos da abordagem do tema do corpo pelo discurso filosófico. Se, por um lado, faz-se observar, aqui, que a Filosofia surge do desejo de transcender a contingência e a limitação do que por ele é apreendido, por outro, é igualmente correto reconhecer que novos momentos desse grande campo de reflexões permitem que se flagre um retorno do corpo, cuja relevância, de início, fora recalcada. Com base em uma perspectiva mais contemporânea, a saber, o pragmatismo de Richard Shusterman, sugere-se, por fim, a possibilidade de o corpo assumir papel orgânico e emancipatório no projeto de uma estética da existência. Palavras-chave: Filosofia e corpo; arte; estética da existência; pragmatismo de Richard Shusterman ABSTRACT This paper aims at presenting some moments in the philosophical discussion about body. If it is really true that philosophy arises from the impulse to escape from the contingency and the limitations of the body, it is equally correct to find the recognition of the relevance of this subject in other moments of philosophical reflection. Based on a more contemporaneous perspective, Richard Shusterman‟s pragmatism, at the end of this text, it is suggested the possibility of conceiving body in a more organic and liberating way – more precisely, as taking part in the project of an aesthetics of existence. Keywords: Philosophy and body; art; aesthetics of existence, Richard Shusterman‟s pragmatism.
Preferi sempre a matéria à forma. Palpar e absorver são para mim modos de apreensão mais emocionantes do que ver e ouvir. Penso que esta característica não advoga em favor da qualidade da minha alma, mas humildemente o confesso. Michel Tournier. Sexta-Feira ou Os limbos do Pacífico.
Todo aquele que procure falar sobre o corpo, a partir da filosofia, experimentará de imediato uma espécie de conhecido mal-estar. O ponto é que, desde as origens pitagóricas desta forma de pensamento, tal objeto de investigação foi quase que invariavelmente, visto de modo negativo: um obstáculo a ser vencido, se o que se deseja é o conhecimento1. Suas exigências desviantes, suas paixões desorientadoras, a variação
Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada, em julho de 2010, no Encontro Nacional do GT Pragmatismo e Filosofia Americana, realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Bacharel em Psicologia (UFRJ). Mestre em Filosofia (PUC-Rio). Doutor em Filosofia (PUC-Rio). Professor do curso de pós-graduação lato sensu em Filosofia Moderna e Contemporânea da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSBRJ). 1 Cf. HACKFORTH, 1994, p. 4 e 5. Segundo este comentador, a tradição órfica concebe a purificação em termos de observações rituais e do recurso a abstinência, como, por exemplo, da ingestão de carne. Os pitagóricos acrescentam a ideia de que a ascese da alma exige o conhecimento da ordem divina do universo. Os pitagóricos – e este é o ponto aqui – conceberão o conhecimento como um modo de purificação dos elementos mundanos com que a alma se encontra mesclada, em sua condição decaída. 30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
dos humores que o constituem figuraram, desde esse início em diante e quase de maneira ininterrupta, como contradições ao apelo da sabedoria, a qual se colocará, muito rapidamente no discurso dos filósofos, em termos de uma contemplação da Verdade universal. De acordo com este gênero de discurso, a visão dessa Grande Verdade subtrai-se por completo às possibilidades do corpo, objeto tão frágil e facilmente corruptível, movido sempre por interesses particulares, incapaz, enfim, de apreender o que não é limitado. Ela, a Verdade, só poderia ser alcançada pela psyché, pela porção mais racional da alma. Podemos, de pronto, reconhecer os efeitos para os quais concorre tal descrição. O que temos, desde então, é uma hierarquia inventada pela imaginação de tais pensadores: louvar em discursos a nobreza do destino da alma ali era não cessar de maldizer o corpo (soma), que passava assim a ser considerado como “túmulo”, “prisão”, “cárcere” (sema). Basta, para abonarmos esta afirmativa, lembrar o que é dito no Fédon2, de Platão, acerca deste objeto feito esquife e do qual a alma se tenta evadir por meio de uma purificação (katharsis). A propósito, é exatamente a este exercício de ascese que se dá o nome de filosofia no referido texto: “filosofar é aprender a morrer”. Bem entendido, trata-se de aprendizado que visa à desidentificação com tudo aquilo que é perecível e ao reconhecimento de si na Ideia. O impulso metafísico com que se define a filosofia implica, portanto, aí, a mortificação do corpo. Teremos de esperar Nietzsche, no século XIX, para redescrever este impulso metafísico e, graças a essa redescrição, podermos ver nele a própria traição da vida. Lembremos ainda que a filosofia, neste sentido, pelo menos em sua vertente pitagórico-platônica, parece ter violentado por completo as ideias anteriores de “corpo” e “alma”. Queremos dizer com isto que esta identificação da alma racional com o que é “o próprio do homem”, com o que o distingue, longe de ser evidente e intuitiva, não era em absoluto verdadeira, por exemplo, para o homem homérico3. Isto pode ser, a
2
Embora esta ligação entre soma e sema já figure no Górgias (cf. 493a), um diálogo de que se sabe, seguramente, ser anterior ao Fédon, é mesmo este último texto o mais abertamente hostil, de toda a obra de Platão, ao corpo. 3 Hackforth (Op. cit., 1994, p. 4, nota 2) informa que a concepção de psyché como a essência de um homem é decididamente pós-homérica, embora seja independente da tradição pitagórica e talvez mais antiga que esta, podendo ser encontrada em poetas como Simonides e Anacreonte. No entanto, o mesmo Hackforth assinala que, “como o Professor Dodds observa (...), „nos escritores áticos do quinto século, assim como em seus predecessores ionianos, o self que é denotado pela palavra psyché é normalmente o self emocional mais que o racional‟, e não é concebido como separado do corpo”. 31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
propósito, constatado logo na abertura da Ilíada, tendo-se em conta as palavras com que o poeta se refere ao que ocorre aos heróis, eles mesmos, por conta da ira de Aquiles: Canta-me a cólera – ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida, causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados e como pasto das aves. (...)4
Que estas almas que baixam às regiões ínferas estão longe de continuar a serem os pujantes heróis que foram nesta terra pode ser ainda atestado no momento em que “o espectro do mísero Pátroclo”, no Canto XXIII da mesma Ilíada, aproxima-se de Aquiles: o primeiro se refere às almas no Hades como “as imagens cansadas dos vivos”. Saliente-se que este fantasma de Pátroclo, embora ainda guarde a grande estatura, os olhos fúlgidos e o agradável da voz do tempo de escudeiro do claro Pelida, muito significativamente, não cessa de falar de si mesmo como um morto: suas preocupações ali estão, todas, a se concentrar no seu sepultamento e no destino de suas cinzas.5 O que se quer afirmar, com estes exemplos, é que a vida, a verdadeira vida, no texto homérico, se exprime nos feitos concretamente executados dentro desta existência. O Hades, lugar para onde se encaminhavam as almas de todos os mortos, era concebido como um abismo de noite e de escuridão, lugar trevoso de inconsciência, de gemidos agudos e desumanos, “mundo de fantasmas sem força e sem brilho”6. Mundo nada invejável, portanto. Para exemplificá-lo, lembremo-nos de que, na Odisseia, Aquiles, apesar de ter sido honrado pelos deuses por sua “bela morte” e de estar ali a reinar, confessa a Ulisses a infelicidade de qualquer que seja a alma confinada naquelas turvas regiões. Revela-nos, com esse seu discurso às portas da morada sombria, mais uma vez, que, pelo menos em se tendo em conta os poemas homéricos, a vida merecedora de ser saboreada era a que se situava dentro do jogo e da peleja humanos7 – 4
HOMERO. Ilíada. Canto I, 1-5. A tradução a que se recorrerá aqui, neste trabalho, tanto da Ilíada como da Odisseia, será a do Professor Carlos Alberto Nunes. Conforme procuramos mostrar, sublinhando partes da passagem citada, as almas dos heróis (e com isto o poema refere-se ao duplo sem força dos mesmos) baixam aos Infernos, mas eles próprios continuam a servir de pasto aos animais. 5 HOMERO. Ilíada. Canto XXIII, 59-101. Cf., ainda, a nota 6 do presente trabalho. 6 Conforme nos lembra VERNANT, 1991, p. 57. 7 Isto fica claro, ao menos, em duas passagens da Ilíada. A primeira se refere à forma lamentada com que o fantasma de Pátroclo deixa a vida. Lê-se exatamente no Canto XVI, após aquelas últimas palavras do herói dirigidas a Heitor (855-857): “(...) cobriu-o com o manto de trevas a Morte,/ e a alma, dos membros saindo, para o Hades baixou, lastimando/ a mocidade e vigor que perdera nessa hora funesta”. A segunda passagem é muito conhecida e já foi mencionada no corpo do presente texto. Trata-se daquele momento da Ilíada em que o filho de Tétis, após Odisseu referir-se à felicidade de que o julga cumulado, honrado que foi como a um deus, exercendo sobre os mortos “mando inconteste”, diz a este em tom amargo: “Ora 32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
elogio inconfundível da imanência; atitude a ser invertida pelo projeto metafísico platônico. Difícil imaginar maior apreço às cores terrenas da vida. A alma que se esvai com o sangue do guerreiro derrubado, aí, neste contexto, recordemo-nos sempre disto, é tão-somente um duplo empalidecido do que fora o herói. Em contrapartida, quando Platão posiciona a filosofia como o único caminho para que se ordene o microcosmo da alma humana, como o exercício par excellence para que essa se remova da confusão em que normalmente se encontra enleada e passe a espelhar a perfeição dos movimentos eternos do macrocosmo, tudo isto se inverterá. A aplicação a essa forma de vida essencialmente purificadora será concebida como o único investimento humano capaz de encontrar justificação. Todas as outras formas de vida, por se mostrarem incapazes de providenciar tal elevação, passam a ser vistas como malogradas. Os homens que, de forma desregrada, se dedicaram aos vis prazeres, após a morte, continuariam submetidos à implacável e intermitente roda de nascimentos. Ainda que tenham sido secularizados os elementos mistéricos desta perspectiva8, a imagem da filosofia como o exercício privilegiado para a ascese intelectual e como discurso capaz de colocar-se como árbitro de todos os outros modelará, com o decorrer dos séculos, o imaginário ocidental. A filosofia desdenhará todos os outros discursos que limitem sua atenção ao que é efêmero por oposição ao que se pretende como eterno assim como o fará com relação a todos os objetos que se inscreverem no circunstancial frente ao que se julga representar o necessário e com relação a todos os homens que se importarem, em suas pesquisas, com o que é acidental por contraste à investigação das supostas essências. É bem verdade que, vez por outra, tanto idealismo metafísico viu-se contraposto por algumas correntes de pensamento e que podemos mesmo estar contando a história da filosofia pelo ponto de vista do vitorioso, esquecendo-nos, assim, daqueles que não venhas, solerte Odisseu, consolar-me da morte,/ pois preferira viver empregado em trabalhos do campo/ sob um senhor sem recursos, ou mesmo de parcos haveres,/ a dominar deste modo nos mortos aqui consumidos.” (Odisseia, Canto XI, 488-491). Que diferença da forma com que o Sócrates platônico haverá de cantar a morte: neste “canto de cisne”, a filosofia, pelo menos a exposta no Fédon, é digna de todos os elogios, já que o curara das distrações contingentes com que sua alma, enganosamente, se identificara. A alma, aí, encontra-se purificada e identificada com o Ser que contempla imediatamente. Como sublinhado anteriormente, a alma, o duplo sutil do corpo quando deixa a vida, a se julgar pelos poemas homéricos, tem destino diferente e muito menos desejável: impalpável e inconsciente, esse mero simulacro agita-se num reino todo feito só de escuridão. 8 Segundo o pitagorismo, a alma não devidamente purificada de seus elementos não-divinos continuaria presa à roda dos nascimentos, podendo mesmo reaparecer sob uma forma inteiramente diversa muito abaixo da anterior. Uma alma humana, assim, poderia se achar, num novo momento, presa ao corpo de um animal, conforme as faltas que veio a cometer na vida prévia. Platão, no seu Fédon, de Platão, se vale desta imaginação pitagórica. 33 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
continuam a ser vistos como dissidentes de alcance menor em confronto com a tradição platônica9. O materialismo de Epicuro, proposto no fim do IV século a.C., seu elogio a uma vida humana que nada deve aos deuses, e a identificação, operada por sua filosofia, da própria sabedoria com a colheita de prazeres simples, pode ser um desses momentos de confronto. O vinho e o pão partilhado pelos companheiros do precioso círculo, o queijo com que se poderia dar uma festa, a felicidade experimentada na proximidade entre os amigos e com a lembrança da qual alguém, quando enfermo, poderia mitigar suas dores10 são exemplos de que nem só à sombra da devoção ao divino e da diminuição de todo gênero de prazeres viveu o corpo dos filósofos. Ao menos este grupo de filósofos helenistas parecia desfrutar de seu quinhão de alegria com seus corpos satisfeitos, estendidos num jardim ensolarado e nutridos por uma dieta que também faz as vezes de uma ética da amenidade. A propósito do papel do corpo neste contexto, é Michel Onfray quem nos recorda, numa passagem de sua Contra-História da Filosofia, que, “muito antes de Nietzsche, que experimenta e teoriza essa evidência no prefácio a Gaia Ciência, Epicuro afirma que filosofamos com um corpo e que ninguém se torna sábio a partir de um estado corporal qualquer”11. Também os Ensaios de Michel de Montaigne, homem da Renascença, insurgemse contra a desmesurada espiritualidade com que tanto a tradição platônica quanto a cristã imaginaram a justificação da vida humana e podem aqui assinalar um outro momento da imaginação filosófica sobre o corpo. Montaigne procurará observar como a realidade fisiológica pode se mostrar o substrato último da filosofia de um sujeito. O homem não é ser abstrato; sua realidade faz dele uma criatura mais frágil do que lhe sugere a distorção de seu orgulho. A inconstância do corpo é a deixa para o filósofo adotar um ceticismo com relação a toda a glorificação anterior da razão; seus imperativos fazem de toda a idealização do homem uma impossibilidade. Montaigne
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Michel Onfray é tão oportuno quanto contundente com relação a esse ponto. Ele diz: “A história mostra que é complacente com os ganhadores e impiedosa com os perdedores. (...) A historiografia da filosofia não escapa a essa lei do gênero. (...) É espantoso que a filosofia, tão pronta a criticar os historiadores ou os geógrafos sobre a maneira de praticar sua arte, os cientistas sobre a de considerar os usos corretos da epistemologia, caia por sua vez na esparrela de evitar aplicar em sua paróquia o que ensina às capelas da vizinhança! Pois não é do meu conhecimento que exerça as certezas de sua seita submetendo a história de sua disciplina ao fogo cruzado de um trabalho crítico capaz de se dar conta da maneira pela qual é escrito. Por que razões então a filosofia coloca empecilhos ao ensino de sua historiografia? Qual é o interesse em dissimular os segredos de fabricação de um corpus unificado? O que esconde a vontade de manter afastado da razão raciocinante o processo de construção de uma filosofia apresentada como única, canônica e objetiva, unívoca e incontestável?” (ONFRAY, 2008, p. 11 e 12). 10 Como aquelas que torturaram o próprio Epicuro em sua vida. 11 ONFRAY, 2008, p. 171. 34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
segue bem atento a toda sorte de condicionamentos de que podem depender o juízo e as faculdades da alma. A tristeza, a melancolia, os achaques que nos perturbam, tudo isto pode estar na base de pensamentos que cremos serem as determinações de uma vontade consciente. Em Montaigne, a realidade de um corpo demasiado caprichoso parece ferir nossa ilusão narcísica. A alma não consegue ultrapassar o funcionamento peculiar e não raro traiçoeiro daquele a que está inevitavelmente atada: Por isso que o espírito tem o privilégio de fugir à velhice, aconselho-o quanto posso a fazêlo; que mesmo nessa idade floresça e frutifique, como o agárico em árvore morta. Mas receio ter de me haver com um traidor; está tão intimamente ligado ao corpo, que se desvencilha continuamente de mim para segui-lo e participar de sua decadência. Chamo-o de lado então, e o adulo. Em vão. Por mais que me esforce para afastá-lo dessa ligação demasiado íntima, apresentando-lhe Sêneca e Catulo, as mulheres e as damas da corte, quando seu companheiro tem uma cólica, ele a sente também; sua própria atividade específica como que se retesa. Nenhuma vida vem dele se o corpo não vive igualmente. 12
Não há motivo para sentirmos vergonha por sermos simplesmente humanos. Segundo Allain de Botton, a filosofia de Montaigne visa exatamente a ensinar essa lição simples. Ela pode ser vista como uma filosofia de reconciliação entre os domínios do corpo e da alma, postos numa guerra civil pelas tradições anteriormente mencionadas, a saber, a platônica e a cristã: “em vez de tentar nos cindir em duas partes, deveríamos cessar de travar uma batalha sangrenta com o invólucro físico desconcertante e aprender a aceitá-lo como um fato imutável de nossa condição, nem tão terrível nem tão humilhante”13. Contudo, será mesmo com Nietzsche que testemunharemos a crítica mais explícita e radical à condenação perpetrada sobre o corpo pela metafísica platônica e cristã. Com este pensador, o corpo passa ser pensado como “uma grande razão” e o espírito a ser visto como um efeito dela. O espírito é, assim, um pequeno instrumento de que se vale um corpo concebido como uma pluralidade de afetos, como uma sabedoria desconhecida, como um soberano que destitui o eu consciente da condição de senhor em sua própria casa, antecipando a imaginação freudiana da psicanálise. As peripécias do pensamento passam a ser vistas como “simples rodeios” para que o eu verdadeiro do corpo obtenha seus fins: “o corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade”. Isto significa também dizer que mesmo aqueles que desprezam o corpo não o fazem por vontade própria: foram os afetos tristes de seus corpos adoecidos que lhes impuseram a sina de uma imaginação tão pouco afeita à vida. 12 13
MONTAIGNE, 1996, p. 185. BOTTON, 2001, p. 142.
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É que o metafísico, ao localizar a Verdade em um nível que se aparta da realidade empírica, ao inventar este outro domínio que só contempla com o Olho da Alma, embora, através deste discurso, com grande elegância, tenha se livrado da contradição inevitável deste mundo, não parece estar expondo, segundo Nietzsche, outra coisa senão seu fundo horror à vida. Tudo o quanto faz pode ser redescrito como significando que este mundo, tal como se apresenta – intenso, caótico, plural, desnorteador – ele, o metafísico, não o suporta. Reiteramos: é exatamente por isso que se pôs a fabular outro mundo – abstrato, ideal. Não por outra razão o chamou de “mais verdadeiro”. Nietzsche vê no desprezo do metafísico pela dimensão da experiência do mundo a ação inconsciente de um corpo que se obstina em dar as costas ao que se lhe oferece como campo de criação e potência de alegria14. Não há qualquer nobreza no desprezo que os filósofos metafísicos votaram ao corpo; trata-se aqui de um mal que Nietzsche julga saber diagnosticar na história do pensamento ocidental. O metafísico parece estar alienado, portanto, de uma possível descrição sua. É Michel Onfray, novamente, quem nos lembra de quão longe vai, em A Gaia Ciência, a suspeita nietzschiana acerca dos afetos que moveriam o pensamento metafísico:
Nietzsche, mais do que qualquer outro filósofo, falou do papel determinante do corpo na elaboração de um pensamento, de uma obra. Logo de início estabelece uma afinidade entre fisiologia e ideia: “Os disfarces inconscientes das necessidades fisiológicas sob a máscara da objetividade, da ideia, da pura intelectualidade, podem tomar proporções terríveis – e muitas vezes me indaguei se, no final das contas, a filosofia até então não teria consistido apenas em exegese do corpo e mal entendido do corpo”. A metafísica como resíduo da carne.15
Bem entendido, o corpo a que Nietzsche se refere não é um corpo que se esgota nas performances mecânicas hoje admiradas – um corpo-espetáculo, suporte de novas mercadorias da sociedade de consumo e, ele próprio, também uma mercadoria. Parece mais acertado pensá-lo como corpo atravessado por aquilo a que Freud chamou de pulsões; um corpo pulsional, um corpo de afetos, portanto. Dizemos isto porque o corpo ao tratamento do qual dedica tantas páginas em Ecce Homo é aquele que vibra e se exalta com a dieta adequada, com o clima propício e a paisagem aprazível, com a distração útil16. Não se trata aqui, pelo menos com Nietzsche, de uma exaltação do
14
Cf. “Dos Desprezadores do Corpo” em NIETZSCHE, 2000, p. 59-61. ONFRAY, 1990, p. 88. 16 Cf., particularmente, as seções 1, 2 e 3 de “Porque Sou Tão Inteligente” em NIETZSCHE, 1995, p. 3542. 36 15
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corpo atlético em absoluto. Tampouco, com o elogio da comida do Piemonte ou do relato dos benefícios de um copo de água das fontes vivas de Nice, Turim e Sils (há momentos de confessa antipatia, nestas passagens, com relação à cerveja e até ao vinho), quer-se apresentar um conjunto de dicas para algo como “a melhoria da qualidade de vida”, expressão tão ao gosto do juízo moderno. O encorajamento pelo ar seco e pelo céu puro de Paris, da Provença, de Florença ou de Atenas não nos deveria levar a imaginar uma viagem turística por estes lugares tão agradáveis ao filósofo: não estamos diante de um guia. Tomar essas belas passagens de Ecce Homo de forma tão literal é esquecer o fim para o qual trabalham. Trata-se de um texto libertário à medida que seu autor, já alheio a todo o idealismo e seguindo atento à alegria que quer para seu corpo, que longe está de ser vigoroso, procura dar curso aos afetos que permitem a criação e que para ela ativamente trabalham. Insistimos: não estamos a nos referir, com Nietzsche, a um corpo pujante em sua plástica, mas a um corpo solar, eloquente, erotizado pelo gesto criador. Não seria contraditório, por exemplo, pensarmos aqui no corpo de Frida Kahlo como a ilustração precisa dessa força criadora. Conhecemos-lhe a história: a poliomielite, contraída ainda aos seis anos, que lhe deixa uma lesão na perna direita, e o terrível acidente de ônibus, aos dezoito, que lhe atinge, de modo particularmente agudo, coluna, costelas, pélvis e outra vez a perna. Sabemos também dos coletes (de gesso, de couro, de aço) e das dezenas de cirurgias a que se submeteu numa vida de apenas 47 anos. Não obstante esses imensos reveses, Kahlo veio a se metamorfosear na “alma do México”. Sua dor foi elaborada em arte. Avesso da resignação, sua pintura insiste em prosseguir o ato de criação, de pulsação como a evidenciada por uma natureza luxuriosa, tropical, habitada por monos, pássaros e frutos coloridos, exuberantes. Evidentemente que há a dor representada em quadros pungentes, mas, até aí, as voltas do pincel podem ser pensadas assertivamente como os passos de dança sobre o inevitável abismo. E é aqui que chegamos a um ponto particularmente interessante. Interessante à medida que ele pode se apresentar como motivo para a conversação entre os profissionais que se propõem a intervir, através de suas práticas, sobre os corpos e uma nova tradição de pensadores que, redimindo-se da grande dívida da filosofia com este obscuro objeto de seu desdém, revisitam-no, abertos às possibilidades transformadoras contidas na experiência corporal. Sobre este tópico, então, podemos formular os seguintes problemas: Como imaginar o corpo numa relação orgânica, criativa com o
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mundo? Poderia a arte ajudar na construção dessa relação? Um corpo poemático, expressivo, que não seja o resíduo, a sobra, o resto da operação de louvação contínua da mente e que se mostre integrado às palavras ressignificadoras, à resistência ao infrene consumo contemporâneo das sensações e à busca de um estilo próprio – uma ética da singularização17. Entre os pensadores dessa referida nova tradição encontra-se o filósofo neopragmático Richard Shusterman18. Shusterman se insurge contra aquela tradição, ainda dominante, de imaginar a arte como exercício contemplativo de certas obras que, por conta exclusivamente de suas características intrínsecas, se apresentariam como esteticamente diferenciadas. Insurge-se, portanto, contra uma concepção estética que implica o distanciamento entre o sujeito e o objeto. A propósito, essa concepção distanciada de fruição pode ser atribuída ao privilégio da visão sobre todos os outros sentidos “menos espirituais”, uma hierarquia que os filósofos gregos tanto ajudaram a difundir em nossa cultura19. Contrapondo-se a este modelo, Shusterman imagina a experiência como o conceito-chave para uma redescrição mais útil da vivência da arte. Retomando Dewey explicitamente, dá prosseguimento a pretensão deste de “reencontrar a continuidade entre a experiência estética e os processos normais da vida”. Por mais que tendamos a pensar na arte de maneira demasiado espiritual, permanece útil, segundo Shusterman, ouvirmos atentamente a recomendação daquele pioneiro do pensamento pragmático para considerar a arte não como tendo um fim em si mesma, mas como contribuindo para a reconstrução e reorganização da experiência. Conforme Shusterman, a arte serve à vitalidade do organismo humano, à medida que procura enriquecer sua experiência, permitindo a construção de formas mais gratificantes e integradoras de este lidar com as circunstâncias que enfrenta. A arte é um refinamento da natureza, uma demonstração de delicadeza de um corpo, a evidência da
17
Não há necessidade de se pensar aqui tão exclusivamente na singularização de indivíduos. Trataremos, a propósito, da singularização de todo um grupo, com consequências ético-políticas bastante distintas das do culto ao individualismo, com o exemplo explorado mais adiante. 18 A referência básica para apresentar a posição de Shusterman, aqui, será a sua obra Vivendo a Arte: O Pensamento Pragmatista e a Estética Popular. 19 Segundo um ensaio de Hans Jonas, “The Nobility of Sight”, o privilégio conferido pelo pensamento grego ao vocabulário da visualidade teve, entre outras consequências, a elaboração do próprio conceito de objetividade. De acordo com a exposição que Martin Jay nos faz acerca desse texto, a razão é que “a externalidade da visão evita o envolvimento direto com o objeto de sua contemplação”, diferentemente do que ocorre com o tato. Ora, se uma cultura faz da ótica o modelo das ciências, é porque ela não cessa de incitar o privilégio deste sentido sobre os demais, passando, por força disso, a considerar como crucial “a distinção entre sujeito e objeto bem como a crença na apreensão neutra do último pelo primeiro” (JAY, 1993, p. 25). Esta distinção terá imensa repercussão sobre o modo de imaginarmos a arte. 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
inteligência de um ser vivo, mas nunca na forma de um juízo livre e desinteressado. Nos termos com que Shusterman sugere que passemos a falar dela, a arte envolve a ampliação significativa da experiência e é mesmo para esta função global e unificada que serve – ênfase no verbo, sem dúvida, pois estamos diante de um pensamento pragmatista. Desenvolvendo essa estética de vezo naturalista, o autor nos diz:
O papel da arte não é o de negar as raízes e as necessidades naturais ou orgânicas do homem, a fim de alcançar alguma experiência etérea, mas sim o de oferecer uma expressão satisfatoriamente integrada a nossas dimensões corporais e intelectuais, as quais, segundo Dewey, nós cometemos o doloroso erro de separar. O objetivo da arte é “servir a criatura toda em sua vitalidade unificada”.20
Nesta perspectiva, a estética não se dirige para qualquer realidade à parte dos problemas práticos, não se recusa à possibilidade de cumprir uma função importante dentro das condições concretas de vida que levamos. A estética não precisa ser imaginada em oposição ao cotidiano e aos processos vividos nele; não requer ser pensada como um domínio de intelectuais ociosos e devidamente treinados para o juízo do gosto. A arte, se não motivada, é alienante. Como muito bem diz Dewey, citado por Shusterman: “Os inimigos da estética não são nem o prático nem o intelectual. São a rotina, a monotonia e a ociosidade; a submissão às convenções nos procedimentos práticos e intelectuais.”21 A estética é reinvenção de si e do grupo no sentido de poder experimentar o mundo de forma mais integrada, consistente e interessante. Não se trata mais, portanto, de imaginarmos a arte como uma coleção de objetos a serem, de modo sempre distanciado, fruídos unicamente num museu ou em salas de concerto. A experiência mais vital da arte não se traduz pelo culto fetichista a determinados itens que merecem ser preservados por conta de alguma excelência que tenham alcançado. Não se imagina mais a arte, com Shusterman, como um produto reificado. Este filósofo não a coisifica. A arte, aqui, é antes tratada, lembrando-se os termos de Dewey, como “uma qualidade da ação”22. Colocada desta forma, a arte se deixa definir como uma ação de envolvimento do corpo a propor novos arranjos para a vida – arranjos que não se precipitam em objetos de valor eterno (os “objetos de arte”), mas que podem ser continuamente reinventados. Shusterman sublinha esse ponto:
20
SHUSTERMAN, 1998, p. 234. Shusterman está citando Art and Experience, de John Dewey, ao final desta passagem. 21 SHUSTERMAN, 1998, p. 243, nota 17. 22 Cf. SHUSTERMAN, 1998, p. 259, nota 34. 39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
O primeiro propósito de Dewey ao definir a arte como experiência estética foi o de romper a sufocante dominação da concepção museológica da arte, cujo poder é reforçado por nossa preocupação excessiva com as obras de arte consagradas. Afinal, a experiência estética excede claramente os limites das belas-artes e seus objetos.23
A experiência estética, assim concebida, poderia ser testemunhada nos cantos de trabalhadores do campo que, embora simples, refletem, em suas letras, seu mundo e suas esperanças. Pode ser igualmente flagrada na poesia ritmada dos grupos de rap (o exemplo preferido de Shusterman), a qual resiste inteligentemente à forma tacanha com que são descritos os grupos oprimidos a que seus representantes pertencem, reinventando toda uma identidade de grupo em termos diferentes daqueles das narrativas oficiais. Pode ser observado nos criativos graffiti que cobrem as paredes da cidade (transformada, com eles, em uma grande tela) ou, ainda, no orgulhoso break – as duas outras pontas do tripé que constituem o movimento hip-hop. O corpo aí entra em cena: criador, politizado, aguerrido. Trata-se de arte que reinventa identidades, fundadas em laços fraternos e trazendo a vitalidade do corpo dos integrantes de grupos que, literal e metaforicamente, propõem novos passos. Se decidirmos seguir a sugestão de redefinir a arte como reorganização da experiência da vida concreta, não há razão para não vermos nestes exemplos ótimos referentes para o termo. Pelo menos, bem melhores do que nossas experiências de visitas ao museu ou às galerias locais, se, após o contato com tais exposições, continuamos a sair de lá para a mesma vida institucionalizada e burocrática da qual momentaneamente procuramos fugir. Ganhamos menos em pensar na arte como fuga temporária de um cotidiano que se mantêm idêntico e alienante do que imaginando sua função como reinvenção da vida. Ao modo de encerramento deste breve texto e à guisa de um convite para a reflexão, talvez possamos nos perguntar se as práticas dos que propõem uma intervenção sobre o corpo também não se beneficiariam de um encontro com a arte, assim concebida como reinvenção da experiência. Para além do corpo performático, pensado em termos de desempenho e eficiência e com todos os conhecidos subprodutos excludentes desta concepção, perguntamo-nos se não seria interessante para esses profissionais pensarem o corpo em termos mais poéticos, no sentido etimológico desta última palavra.
23
Cf. SHUSTERMAN, 1998, p. 259. 40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
REFERÊNCIAS
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PRAGMATISMO: UMA FILOSOFIA DA AÇÃO Edna Maria Magalhães do Nascimento1
RESUMO: O presente artigo discute a contribuição dos filósofos americanos William James, Charles Sanders Peirce e John Dewey acerca da constituição de uma filosofia da ação: o pragmatismo. O estudo apresenta a cena filosófica de surgimento do pragmatismo, um estudo do conceito de pragmatismo e realiza uma caracterização dos chamados pragmatistas clássicos, especialmente, o debate que eles promovem com as vertentes racionalistas e idealistas. A finalidade é a apresentação do pragmatismo como alternativa às querelas filosóficas intermináveis que não contribuem para a efetiva ação do pensamento sobre o mundo. Deste modo, aponta-se uma alternativa para pensar uma educação de base pragmatista. Palavras-chave: Pragmatismo, experiência, ação, educação. ABSTRACT: This article discusses the contribution of American philosophers William James, Charles Sanders Peirce and John Dewey about the creation of a philosophy of action: pragmatism. The study presents the philosophical stage for the emergence of pragmatism, a study of the concept of pragmatism and a characterization of so-called classical pragmatists, especially, they promote the discussion with the rationalistic and idealistic aspects. The purpose is the presentation of pragmatism as an alternative to endless philosophical disputes that do not contribute to the effective action of thought about the world. Thus, it points to consider an alternative to a basic education pragmatist. Keywords: Pragmatism, experience, action, education William James em suas conferências sobre pragmatismo fazia questão de reiterar que o pragmatismo é “um novo nome para os velhos modos de pensar”. Isso não é retórico. O pragmatismo guarda em sua essência a própria designação que os antigos dão à filosofia. Ou seja, uma atividade intelectual altamente comprometida com os temas e os problemas concretos da humanidade. Uma atividade que é medida pela capacidade de o pensamento operar no mundo. Ele argumentava que não havia algo essencialmente novo sendo apresentado, pois o pragmatismo se harmoniza com muitas filosofias antigas. Desse modo,
[...] Sócrates foi adepto do método pragmático. Aristóteles empregou-o metodicamente. Locke, Berkeley e Hume fizeram contribuições momentâneas à verdade por seu intermédio. Shadworth Hodgson insiste em que as realidades são somente o que sabemos delas. Esses 1
Professora da Universidade Federal do Piauí – UFPI Departamento de Fundamentos da Educação – DEFE/CCE Doutoranda em Filosofia pela UFMG magaledna@yahoo.com.br 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
precursores do pragmatismo, porém, usaram-no de maneira fragmentária: apenas o preludiaram. Não foi senão em nossa época que se generalizou, tornou-se consciente de uma missão universal, aspirou a um destino conquistador. Acredito nesse destino, e espero poder terminar transmitindo-lhes toda a minha fé (JAMES, 1989, p.19).
O termo pragmatismo, derivado do grego prágma, significa „fazer‟, denota ação, ato ou caso. Conforme a antropologia pragmática de Kant, pragmatismo é a ética prática. Na definição kantiana, o horizonte pragmático representa à adaptação do conhecimento à finalidade moral, aos fins da vida prática, do agir. Charles S. Peirce chegou ao pragmatismo filosófico refletindo sobre a Crítica da Razão Pura, de Kant. Ele concordava com Kant que o pragmatismo “é estar em relação com algum objetivo humano” (PEIRCE, 1983). Partamos, portanto, do conceito de pragmatismo com estes elementos da versão kantiana, mas entendendo que na formulação de Peirce o pragmatismo assume outra tradição filosófica, bem distinta dos racionalismos e dos idealismos da filosofia continental. Assim, aproveitaremos esta finalidade situando o pragmatismo como a maneira como o conhecimento, o saber racional, esta relacionado com a ação humana, com a conduta humana, atribuindo-lhe uma finalidade racionalmente prática. O pragmatismo surgiu nos Estados Unidos no final do século XIX e começo do século XX, mais precisamente, em 1870, quando um grupo de intelectuais de Cambridge, Massachusetts, se reunia para discutir filosofia. Esse grupo, de maneira irônica se autodenominou The Metaphysical Club [Clube Metafísico] - uma alusão crítica à metafísica clássica e ao mesmo tempo uma tomada de posição em defesa de uma metafísica pragmática. O grupo incluía, entre outros pensadores, William James, Charles Sanders Peirce, Oliver Wendell Holmes Jr. e Nicholas Saint John Green. São diversas as versões e caracterizações do pragmatismo, entretanto em que pese essas distinções entre seus propositores, os pragmatistas têm em comum, dentre outras questões: a oposição às filosofias especulativas; uma revisão do empirismo; a superação da filosofia contemplativa pela racionalidade científica; a objeção ao ceticismo, bem como a formulação de uma nova concepção de verdade (SHOOK, 2007). Foi justamente este espírito que mobilizou os intelectuais de Cambridge, nos anos 70, uma época em que o agnosticismo campeava e a metafísica continuava presa às questões da imutabilidade do ser e das evidencias racionais independente da experiência. O pragmatismo ganhou adepto em todo o mundo, a escola se expandiu e tem
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representantes em vários países. Além dos representantes estadunidenses de que estamos tratando, o pragmatismo obteve referência na Inglaterra através de F. C. S. Schiller (1864-1937), filósofo que após temporada na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, retornou à Inglaterra para desenvolver seu pragmatismo humanista, influenciado por James. Na França, o pragmatismo também obteve bastante aceitação, vários pensadores concordavam intelectualmente com os princípios do pragmatismo, dentre eles destacamos Henri Bergson, Maurice Blondel, Émile Boutroux, Pierre Duhem, Henri Poincaré e Georges Sorel. Na Itália, precisamente em Florença, formouse um grupo forte e bem articulado de pragmatistas que ficou conhecido pela publicação, em 1903, da revista Leonardo, fundada por Giovanni Papini e Giuseppe Prezzolini. Além dessas referências, a filosofia de Dewey e Mead teve um grande impacto num ramo da filosofia alemã – a antropologia filosófica.
O Pragmatismo de Peirce
Charles Sanders Peirce parte de uma abordagem semiótica para caracterizar que a verdade é uma questão de correspondência e coerência entre os fatos e as nossas crenças. Ele escreve que em meio ao contexto filosófico marcado pelo agnosticismo, com tanta soberba contra todas as metafísicas, costumavam se reunir às vezes no seu gabinete e outras no de W. James, com o propósito de trabalhar a doutrina metafísica muito mais pelo lado científico (PEIRCE, 1983). Tanto Peirce quanto James estavam conscientes de que a metafísica poderia ser desenvolvida com base na vertente científica. Entretanto, Peirce concebia a sua filosofia muito mais como um método do que como uma teoria da verdade, de maneira que ele assegurava que não pretendia desenvolver uma teoria metafísica, o seu pragmatismo deveria ser uma espécie de técnica auxiliar à compreensão dos problemas filosóficos e científicos. O desejo era a formulação de um método que pudesse assentar as disputas metafísicas. Desse modo, o pragmatismo desenvolveu a opinião que a metafísica seria amplamente clarificada quando os filósofos começassem a adotar a medida dos efeitos práticos para se obter a concepção total do objeto. Com essa expectativa difundiu-se a formulação perciana na qual se esperava pôr a termo “às disputas filosóficas que a mera observação dos fatos não pode decidir, e na qual cada parte afirma que a outra está 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
errada” (PEIRCE, 1983). Os intelectuais de Cambridge, tendo a frente o próprio Peirce, compreendiam que o debate filosófico marcado pelo emaranhado de doutrinas e disputas teóricas não assegurava um consenso ou acordo entre as formulações, de maneira que, como consequência disso se obtinha um fazer improdutivo marcado por disputas filosóficas vãs. Para superar as contendas metafísicas seria necessária a adoção de outro método em filosofia. O pragmatismo teria esse desafio. Peirce é considerado fundador do pragmatismo. Ele tomou de empréstimo a designação feita por Alexandre Bain (1818-1903) de que as crenças são hábitos de ação. Conforme Bain2, uma crença é “aquilo com base em que um homem está preparado para agir”. Ele propunha abandonar a visão herdada de que as crenças são puramente intelectuais e passa a situá-las como sendo fases da nossa vontade e tendências que temos para agir. Tanto Peirce, Green e Wright passaram a usar nas suas reflexões a teoria das crenças de Bain cujo corolário pode ser traduzido com a máxima: “ação é a base e o último critério da crença.” Ele afirmava que a crença é uma atitude ou disposição que nos leva a agir. Desse modo, o pragmatismo de Peirce pode compreendido como sendo dividido em dois períodos (DE WAAL, 2007). O primeiro é o período relativo à afirmação da famosa máxima pragmatista, que foi popularizada na versão jamesiana vinte anos mais tarde (1898), mas que originalmente está designada nos seguintes termos:
Para determinar o sentido de uma concepção intelectual devem-se considerar as consequências práticas pensáveis como resultantes necessariamente da verdade da concepção; e a soma dessas consequências constituirá o sentido total da concepção.(PEIRCE, 1983, p. 7)
A partir de então ele passou a enfatizar em suas reflexões intelectuais a necessidade de considerar os efeitos práticos que se pode pensar como produzidos pelo objeto de nossa concepção, de tal maneira que a concepção desses efeitos é a concepção total do objeto. A máxima pragmatista de Peirce pode ser compreendida muito mais como um critério de significação do que como uma teoria da verdade. Esta é possivelmente a diferença entre Peirce e James que leva este último a reformular a máxima vinte anos depois. Peirce concebe o pragmatismo como um método capaz de 2
Alexander Bain (1818-1903), filósofo e psicólogo escocês, publicou The Senses and the Intellect (1855) [Os Sentidos e o intelecto] e The Emotions and the Will (1859) [As emoções e a vontade], textos pioneiros da psicologia inglesa. 45 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
elucidar os significados obscuros do exame e seus efeitos na condução humana (PEIRCE, 1983). Na sua ótica, um método que pudesse determinar os significados das proposições e pudesse determinar também que qualquer concepção intelectual depende do teste de suas consequências práticas, ou seja, daquilo que pode resultar, sendo que, necessariamente, a verdade dessa concepção é a soma das consequências que constituirá todo o significado da concepção (PEIRCE, 1983). Peirce procurou mostrar através de sua máxima pragmática um caminho ou um método para determinar ou fixar o significado de nossos conceitos; era uma contribuição a uma teoria do significado. Esse período da filosofia de Peirce pode ser sintetizado através de seus dois memoráveis ensaios, respectivamente, The fixation of Belief [A fixação das Crenças] (1877) e, How to Make Our Ideas Clear [Como tornar claras nossas ideias] (1878), ambos da série IIlustrations of the Logic of Science [Ilustrações da Lógica da Ciência]. Neles Peirce marca, em linhas gerais, a doutrina do pragmatismo, afirmando que as nossas crenças são, na verdade, regras de ação, pois, para evidenciarmos o nosso pensamento, é preciso conhecer os efeitos práticos positivos dos objetos sobre as condutas humanas. Embora Peirce não tenha usado diretamente o termo pragmatismo nestes ensaios, eles contêm as bases da doutrina pragmatista. No ensaio The fixation of Belief [A Fixação das Crenças], Peirce desenvolve uma consistente argumentação contra a filosofia cartesiana. Comprometido com uma perspectiva filosófica distinta da metafísica clássica, ele ataca o texto emblemático dessa tradição, ou seja, As Meditações, de René Descartes e mostra a necessidade de uma profunda reavaliação da filosofia, uma vez que é possível asseverar os limites do pensamento, sua impossibilidade de conhecer mediante um conceito absolutista, tal qual o de ideias claras e distintas, ideias “puras” abstraídas de qualquer experiência, sem qualquer constrangimento externo. Desse modo, destaca quatro objeções que o ajudarão a desenvolver o tema da fixação das crenças (PEIRCE, 1992). Peirce advoga que: não temos poder de intuição; não temos poder de introspecção; não podemos pensar de outra maneira a não ser por meio de signos e não temos concepção nenhuma sobre o absolutamente incognoscível. O segundo período da sua produção intelectual começa com a virada do século XIX para o século XX, em plena fase de popularidade do pragmatismo. Peirce sente-se desapontado com a interpretação corrente do pragmatismo e se esforça para divulgar sua própria versão. Buscando se distinguir de seus contemporâneos denomina sua filosofia 46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
de pragmaticismo. Em 1903, Peirce proferiu seis conferências sobre pragmatismo em Harvard e dois anos mais tarde publicou: What Pragmatism Is, [O que é Pragmatismo], Issues of Pragmaticism [Questões de Pragmaticismo] e Prolegomena to an Apology of pragmaticism [Prolegômenos a uma apologia do pragmaticismo3. Desde então rejeita o termo pragmatismo de maneira que, no ensaio What Pragmatism Is (1905) [O que é o Pragmatismo], Peirce abandonou de vez o termo. Ele acreditava que mediante a profusão de termos e o seu uso indevido seria mais adequado preservar a sua filosofia adotando a denominação de pragmaticismo. A opção em adotar uma nova nomenclatura ao termo se deve a sua intenção de diferenciar-se das demais versões de sua época, mais precisamente, o pragmatismo de William James e a versão de F. C. Schiller. Peirce caracterizou o seu pragmatismo em duas vertentes: na primeira, o pragmatismo metodológico, que é basicamente uma teoria do significado, e, na segunda, o pragmatismo metafísico, a teoria da verdade e da realidade.
William James: o pragmatismo como método para assentar as disputas metafísicas
Enquanto Peirce caracterizou o pragmatismo como um método para determinar os significados das proposições e se amparou numa doutrina semiótica do conhecimento, William James ampliou o significado da verdade, trouxe para o pragmatismo a doutrina humanista e demarcou a sua condição de verdade, isto é, a verdade corresponde ao que é vantajoso ao pensamento ou àquilo que gera uma relação satisfatória com a realidade, de tal forma que a vantagem e a satisfação estejam vinculadas ao que é útil, ao prático. Em outras palavras, a verdade corresponde ao que é bom (JAMES, 1979). A verdade deve ser útil se considerada em termos práticos, os seus efeitos são as sensações que devemos esperar e as reações que devemos preparar O percurso intelectual de James vai dos estudos da fisiologia à psicologia, na qual escreveu sua obra principal Princípios de Psicologia (1890) e desta à filosofia. James é um autor importante para uma investigação sobre a obra de Dewey, pois são vários os aspectos do pragmatismo
3
Conforme Cornelis de Waal, Peirce passa a viver isolado na pequena cidade de Milford, Pensilvânia e sem sequer alunos seus para levar suas ideias adiante, assim, as últimas tentativas de impor o seu pragmaticismo exerceu pouco efeito sobre o desenvolvimento do pragmatismo para a maior parte do século XX (DE WAAL, 2007, p. 50). 47 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
desses autores que se unificam, como veremos a seguir. Os pragmatistas clássicos aqui trabalhados chamam atenção para a experiência. Peirce leva em conta a experiência ao cabo da investigação. Tanto James quanto Dewey darão à experiência a função de teste da verdade, é nela que estão dadas as condições de verdade. James apresenta o pragmatismo como um método e uma teoria da inquirição. Ele foi o primeiro a usar o termo pragmatismo de forma impressa. Assim, por ocasião da Conferência Philosophical Concepto and Pratical Results (1898) [Concepções Filosóficas e Resultados Práticos], ele apresentou o pragmatismo à comunidade intelectual norte-americana atribuindo a sua autoria a Charles Peirce. Nessa conferência James mostrou qual o método a ser adotado por aqueles que almejam a verdade. Para ele, deve-se ter em mente o princípio do pragmatismo. O que segue é uma adaptação da máxima peirciana elaborada para servir aos propósitos da Psicologia de James:
Para atingir uma clareza perfeita em nossos pensamentos em relação a um objeto, pois, precisamos apenas considerar quais os efeitos concebíveis de natureza prática que o objeto pode envolver – que sensações devemos esperar daí e, que reações devemos preparar. Nossa concepção desses efeitos é, para nós, o todo de nossa concepção do objeto, na medida em que essa concepção tenha afinal significação positiva (JAMES, 1979, p.18).
William James, em oito conferências sob o título de Pragmatism [Pragmatismo] (1907), apresenta a sua sistematização filosófica do pragmatismo.
Muitas ideias
desenvolvidas por James nessas conferências são compartilhada por Dewey e viceversa. Ele se refere ao pragmatismo tanto como método quanto como uma teoria da verdade e destaca os dilemas vividos pela filosofia entre as disputas de “temperamentos” (JAMES, 1979). A filosofia é, ao mesmo tempo, a mais sublime e a mais trivial das empreitadas humanas. Nessa exposição, a partir da primeira conferência, James considera que a adoção do método pragmático traria como consequência uma nova postura em termos filosóficos, isto porque ele considera que o predomínio de uma posição filosófica em detrimento de outra, isto é, os dualismos que são recorrentes na filosofia ocidental são provocados por questões de “temperamento” humano. As intermináveis disputas filosóficas, as divergências que acompanham as diferentes opções teóricas podem ser explicadas pelas disputas entre os distintos temperamentos. A história da filosofia é a história da colisão de temperamentos humanos (JAMES, 1979). Diante disso, têm-se diferentes tipos de sensibilidade ou de temperamentos que 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
configuram os dilemas e conflitos que caracterizam as disputas filosóficas. Esses antagonismos de pensamento podem ser comparados aos seguintes tipos de espíritos, ternos e duros. Da tradição racionalista se deduz o espírito terno e da tradição empirista e materialista o espírito duro. Assim, a tradição filosófica legou esses temperamentos em duas distintas áreas: uma representada pelo temperamento principista, ou seja, o temperamento dos racionalistas, que seguem princípios; e outra pelo temperamento dos espíritos materialistas, ou seja, pelos empiristas, que seguem fatos. O pragmatismo surge como alternativa ao dilema racionalismo versus empirismo. A filosofia pragmática, conforme James, é uma via intermediaria entre as vias opostas do racionalismo e do empirismo, numa tentativa de conciliar divergências. James reivindica uma filosofia que não somente exercite os poderes da abstração intelectual, mas que estabeleça alguma conexão positiva com o mundo real, o mundo de vidas humanas finitas (JAMES, 1979). Assim, o método pragmatista consiste num instrumento para assentar as disputas metafísicas, uma vez que de outro modo, se estenderiam interminavelmente. A questão adotada pelos pragmatistas é diferente dos filósofos especuladores e fundacionistas, uma vez que estes defendem uma natureza intrínseca da verdade, uma substância que precisa ser revelada pela razão, pois está encoberta por meio de um “véu”, ou pelas sombras da “ignorância empírica”. James reformula essa questão, descartando a ideia de encontrar uma verdade face a face e formula a seguinte questão: “que diferença prática faz se eu adotar uma perspectiva ou outra? Na verdade, o que importa são as aplicações na vida prática dos conhecimentos e das crenças (JAMES, 1979). Ao retomar Peirce para esclarecer a doutrina do pragmatismo, James enfatiza que ele depois de salientar que nossas crenças são realmente regras de ação, destacou que para desenvolvermos o significado de um pensamento necessitamos apenas determinar que conduta ele está apto a produzir, ou seja, o seu resultado é aquilo que para nós é o seu único significado. Assim, precisamos considerar que efeitos cabíveis de natureza prática o objeto deve envolver, que sensações devemos esperar daí e que reações devemos preparar (JAMES, 1979). Nossa concepção do objeto, seus efeitos, é para nós a concepção do todo do objeto, na medida em que essa concepção tenha uma significação positiva. Este é o princípio do pragmatismo formulado por Peirce através de sua máxima já anunciada, e
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que passara despercebida por mais de vinte anos até que James trouxe à baila na Universidade da Califórnia. O que significa o método pragmatista: mais do que um resultado particular, o método pragmático significa uma atitude, uma orientação. James amplia seu significado dando-lhe a conotação de método como uma “atitude de orientação” (JAMES, 1979). A atitude de olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das “categorias”, das supostas necessidades e de procurar pelas últimas coisas, ou seja, seus frutos, as suas consequências, os fatos (JAMES, 1979). James apresenta a lógica indutiva para explicar o pragmatismo enquanto teoria da verdade. Neste sentido, expõe o cenário de desenvolvimento das teorias científicas, mostrando a sua evolução e demonstrando como essas explicações, isto é, como as próprias leis da natureza são resultados de contendas cientificas; de maneira que diante da idéia de cientificações do mundo, essas leis são consideradas aproximações com a realidade e não espelho do mundo. A multiplicidade das formulações enseja novas contendas teóricas, desse modo, essas teorias não são transcrições da realidade, são traduções do mundo pela linguagem humana (JAMES, 1979). James adentra a teoria da verdade citando Schiller e Dewey acerca de suas formulações sobre ideias e crenças. Nesse contexto, James mostra claramente a aproximação entre a filosofia e a ciência postulada por Dewey. “As idéias não são senão partes de nossa experiência, elas tornam-se verdadeiras na medida em que nos ajudam a manter relações satisfatórias com outras partes da nossa experiência”(JAMES, 1979, p.22). A verdade deriva de ideias e crenças, que ao se consolidarem através de nossas experiências tornam-se “verdades velhas”, pois novas crenças surgem estabelecendo relações mais satisfatórias com a realidade, ou seja, isto ocorre quando uma nova verdade surge como resultante do somatório das experiências anteriores. Assim, ele resgata a ideia de que o pragmatismo é mais do que um método, é uma atitude, uma orientação, uma teoria da verdade. Desse modo, para James, o pragmatismo sente-se mal longe dos fatos; não é confortável ao pragmatismo atuar na base das abstrações, o pragmatismo é uma teoria da complexidade, como se diz pós modernamente, pois, enquanto o racionalismo se apega à lógica e o empirismo se agarra aos sentidos externos, o pragmatismo está disposto a “tomar tudo”.
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Dewey: o pragmatismo instrumentalista.
John Dewey não era um membro do clube metafísico de Cambridge. Enquanto seus contemporâneos do referido clube, escreviam, publicavam, ministravam conferências sobre a filosofia, Dewey estava engajado no seu projeto educacional. A trajetória de John Dewey é bem distinta dos dois pragmatista apresentados (Peirce e James). Sabe-se que antes de aderir ao pragmatismo filosófico Dewey já poderia ser considerado um filósofo pragmatista, e isto pode ser dito em função da aplicação da ação e da atividade em sua filosofia da educação. Chegou ao pragmatismo pela via social e política decorrente do seu engajamento nas questões comunitárias4. Nosso autor foi exaustivamente citado por Richard Rorty, na sua obra seminal de inauguração do neopragmatismo, Philosophy and the Mirror of Nature [A Filosofia e o Espelho da Natureza] (1979) como um filosófico terapêutico, denominação que Rorty dá àqueles pensadores que contribuíram com novos mapas do terreno em termos filosóficos. Não há uma separação epistemológica entre sua obra educacional e sua obra filosófica, no entanto, vamos considerar assim para efeitos meramente explicativos. Sua obra educacional5 se estende durante toda a sua vida, seja nos escritos, nas conferencias, nas experiências pedagógicas, nas reformulações curriculares, nos princípios revolucionários da educação nova. Para ser fiel ao postulado pragmatista o qual defende, Dewey articula as ações educacionais com os princípios filosóficos do pragmatismo. A Educação é o espaço de aplicação da doutrina pragmatista, é o laboratório de aprendizagem da democracia, de aprendizagem do pensar, conforme Dewey. Dewey reflete em sua obra um homem de seu tempo muito preocupado com as
4
Em Chicago Dewey se envolveu ativamente com a Hull House - um estabelecimento social para melhorar as condições sociais da empobrecida classe trabalhadora. A Hull House era uma instituição de ensino superior que inicialmente tinha um currículo de humanidades e cultura geral e posteriormente foi adaptada para atender as necessidades da sociedade industrial. Pode se dizer que a instituição foi pioneira na educação progressiva. Em 1896, Dewey ajudou fundar a Escola Laboratório da Universidade de Chicago. Uma escola planejada para testar suas teorias pedagógicas e psicológicas e em 1937 presidiu a comissão para investigar as acusações de conspiração feita pelo governo soviético contra Leon Trotsky, além de outras causas políticas e sociais no cenário da vida americana. (WAAL, 2007, p. 154) 5 Meu Credo Pedagógico (1897); A Escola e a Sociedade (1899); Como Pensamos (1910); Democracia e Educação (1916); Experiência e Educação (1938), dentre outras. 51 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
questões culturais e com formação moral e educacional do povo. O ambiente cultural6 em que viveu é testemunha da sua constante preocupação e de seu interesse por uma filosofia mais engajada aos temas sociais e políticos. A sua obra, eminentemente filosófica, complexa e de escrita hermética, pode ser caracterizada pelo constante busca de outra metafísica, especialmente a atenção com a noção de experiência, de natureza, com novas condições de verdade em oposição aos temas clássicos da filosofia. Ela começa a ser produzida no início do século XX, com os Studies in Logical Theory [Estudos em Teoria Lógica], em 1903; Reconstruction in Philosophy [Reconstrução em Filosofia] (1920); Experience and Nature [Experiência e Natureza] (1925) e Logic: The Theory of Inquiry [Lógica: Teoria da Inquirição] (1938). O seu legado para a tradição pragmatista é constituído, em grande parte, pelo seu engajamento em um amplo programa de investigação, organicamente concebido, escrevendo e refletindo sobre temas que vão desde questões metafísicas às questões sociais, políticas e educacionais, as artes e a religião. Dewey contribuiu para a consolidação do pragmatismo ao postular a luta contra as posturas dos dualismos da filosofia ocidental, tendo como traço principal a sua opção antimetafísica, na acepção clássica. Segundo George R. Geiger, não se pode negar os equívocos que as pessoas têm fabricado acerca das ideias de Dewey. Muito do que se escreve com o título de deweyanismo pouco tem a ver com a filosofia do homem chamado John Dewey. Ao desenvolver uma linguagem não técnica em filosofia e discutir temas educacionais e sociais, Dewey se submeteu a uma série de interpretações estereotipadas e vulgares da sua obra. Assim, categorias como aprender fazendo, educação por projetos, a escola centrada na criança, interesse e esforço, dentre outras que dominaram a cena pedagógica, são interpretadas com imprecisões e distorções( GEIGER, 1959). Muitos críticos não aceitam que a filosofia da educação de Dewey pode figurar ao lado de grandes expressões da pedagogia como Jean Jacques Rousseau. Preferem seguir atribuindo-lhe estereótipos: há vários clichês relacionados ao pragmatismo de Dewey, tais como a verdade é o que funciona ou a crítica de que ele desenvolveu uma 6
É inevitável referenciar, para compreender Dewey, a conjuntura da época marcada pela 1ª Guerra Mundial ( 1914-1918); a Revolução Russa (1917); a emergência de regimes totalitários na Europa: o fascismo na Itália (1922); o nazismo na Alemanha (1933), a Guerra Civil Espanhola (1933-1939); a 2ª Guerra Mundial (1939- 1944); a criação da Organização das Nações Unidas – ONU (1945); a fundação do Estado de Israel (1948), etc. É por conta desse cenário que ele almeja uma mudança na natureza do conhecimento e a defesa de uma filosofia operativa (DEWEY, John, 1959, p. 129). 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
“filosofia vulgar tipicamente americana” ou até mesmo “uma filosofia do imperialismo capitalista”. Em meio a tudo isso aparecem também alguns rótulos mais sofisticados, como os de materialista, realista, relativista moral, niilista, naturalista, etc (GEIGER, 1959). Nas obras Reconstruction in Philosophy7 e Experience and Nature8, Dewey desenvolve um esforço crítico de objeção à epistemologia tradicional por meio da crítica à noção de conhecimento entendido como representação que a mente faz da realidade. Ele se opõe ao dualismo mente versus conhecimento, principalmente na teoria da verdade como cópia da natureza, que visa associar a verdade com a expressão fidedigna da coisa representada. A noção que Dewey oferece para superar os dualismos da filosofia tradicional tem como ferramenta principal a inteligência atuando no sentido de resolver problemas e fornecer sentido, num contínuo fluxo da experiência. Com essa categoria ele reconhece a força vital que impulsiona os organismos na atividade de produção da vida. Portanto, influenciado pelos estudos do evolucionismo e em particular pelos esquemas darwinistas, Dewey desenvolve seu projeto de reconstrução da filosofia com a finalidade de superar a noção clássica de uma racionalidade intrínseca às coisas e doadora de sentido. Assim, pode afirmar que o pensamento surge de uma imperiosa necessidade prática. Essa necessidade prática nos remete à condição humana, que é derivada da interação que o homem estabelece com o ambiente tendo em vista sua sobrevivência. Assim, Dewey elabora um retrato histórico e científico sobre a formação da consciência humana, como algo não dado, mas sim construída num longo e dramático processo. O homem não é o “dono da razão” ou um ser superior com uma vocação transcendental, mas um organismo que se desenvolveu num contínuo processo de amadurecimento de seus esquemas biológicos, sociais, históricos enquanto atributos de interação ambiental. O conhecimento é um processo natural, não deve ser visto como algo resultante de um sujeito representacionista, mas sim como produto das relações das existências ou dos diversos eventos, ou seja, como um problema natural, que deve ser estudado com base em métodos naturais. Dewey, assim como James, explica que a metafísica clássica se manteve numa 7
Dewey publica , em 1920, o livro Reconstruction in Philosophy, edição de Henry Holt & Co., Nova Iorque (obra reeditada em Boston, em 1949, Beacon Press). 8 Publica, em 1925, o livro Experience and Nature, edição de Open Court Publishing Co., Chicago. 53 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
trilha primitiva, presa a um desejo mítico, onde os homens estariam guiados pelos discursos do encantamento, de princípios eternos e perpétuos, sob os quais pudessem repousar diante destes absolutos; Deus, matéria, razão, energia. Em contrapartida, defendem que nada para o pragmatismo pode ser tomado como absoluto, nenhuma expressão será usada em definitivo, de cada proposição, de cada palavra, procura-se encontrar seu valor prático (JAMES, 1979). Será no âmbito da teoria da verdade de James que identificaremos os elementos do pragmatismo de Dewey, o qual consiste em formular uma teoria da verdade associada aos seus usos e relações. Conforme a teoria de James assumida por Dewey, mergulhamos na nossa experiência com as crenças que herdamos de nossos ancestrais e com as nossas também. Elas vão determinar o que percebemos; o que percebemos determina o que fazemos; e o que fazemos de novo determina o que experimentamos; assim, as coisas vão se sucedendo. Como frisamos, há um fluxo contínuo no qual adicionamos novas experiências, novas informações à nossa ação, e avaliamos se estas adições são dignas ou não. Por isso, os pragmatistas se consideram criadores, uma vez que acrescentam elementos à realidade. Estão preocupados com a realidade desde que ela seja entendida como feitura humana e não pelo seu núcleo sensível ou suprassensível. Entretanto, visando se distinguir da vertente jamesiana, Dewey nomeia o seu pragmatismo de instrumentalismo, uma filosofia da ação. Por essa lógica, a verdade deve ser entendida como um acréscimo feito à realidade e não como uma mera cópia da mesma. Dewey argumenta que o conhecimento deriva de uma realidade complexa, marcada por conexões entre as coisas e entre o sujeito e as coisas. O conhecimento não pode mais ser visto como derivado de uma consciência ou de um sujeito representante. O conhecimento é uma ferramenta que tem vários usos, envolvendo o conjunto dos processos de investigação. O que as coisas são é justamente o que se visa saber ao cabo de uma investigação. O termo conhecimento deixa de ser apropriado, uma vez que investigação é o termo mais adequado. Segundo Dewey, só faz sentido perguntar sobre como ou o que são as coisas dentro de um contexto de investigação. Sua filosofia envolve uma permanente rejeição aos conceitos abstratos, categorias apriorísticas, princípios perpétuos, entes transcendentais, etc. Como assevera Dewey, “a função primordial da filosofia é a de explorar racionalmente as possibilidades da experiência; especialmente da experiência humana coletiva.” 54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
(DEWEY, 1959). Ele concentra seus esforços na tarefa de negar que o pensamento possua fundações estáticas, perpétuas, imutáveis. Dewey rejeita os projetos filosóficos que busquem verdades eternas. Para ele, esse tipo de filosofia que depende de uma herança platônica é simplificadora, uma vez que tudo aquilo que não pertence ao esquema da imutabilidade, da ordem, da necessidade ou da perfeição é considerado inferior e reduzido à aparência, ao secundário, ao errôneo, ao ilusório. Estes sistemas filosóficos antigos não atendem às necessidades da moderna sociedade, pois “refletem as concepções pré-científicas do mundo natural; a situação pré-tecnólogica do mundo da indústria e a situação pré-democrática do mundo político em que suas doutrinas tomaram forma” (DEWEY, 1959). O conceito de experiência é central na obra de Dewey. A experiência não pode ser vista como distinta da natureza, ela é algo que penetra a natureza e aí se expande sem limitações. Tudo que existe é resultado de um processo de relações mútuas, pelos quais os corpos agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente. O pragmatismo de Dewey não separa a natureza da experiência (DEWEY, 1979). Esses conceitos foram tomados como incompatíveis pela tradição filosófica, uma vez que, de acordo com ela, a experiência é descrita como algo não natural. Desse modo, essa tradição impôs uma separação entre a experiência humana e a natureza. Dewey assume o desafio de reverter essa noção e pensar um naturalismo empírico ou um empirismo naturalista, ou ainda, como ele também denomina essa tendência, um humanismo naturalista, cuja tarefa é a de se opor a uma tradição que vê como absurda a associação entre a natureza e a experiência. Dessa maneira, Dewey considera que tanto o racionalismo quanto o empirismo separam os conceitos experiência e natureza. Para os racionalistas, a experiência é não apenas algo acidentalmente superposto à natureza, mas forma um véu ou tela que nos separa da natureza, a menos que possa ser “transcendida”. Para os empiristas, a experiência também é apresentada em situação desvantajosa, neles a “natureza é pensada como algo completamente material e mecanicamente determinado” (DEWEY, 1979). A propósito da teoria instrumentalista de Dewey, convém lembrar que para ele não importa o nome que atribuamos à nossa capacidade racional, a razão ou a inteligência correspondem às manifestações de nossas interações com o ambiente quando visamos a um fim, primordialmente à sobrevivência e ao gozo dos bens
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naturais. Os estágios do pensamento são aspectos funcionais da solução prática de problemas, à medida que os homens encontram instrumentos mais eficazes para interagir com o mundo. Ao propor uma nova maneira de fazer filosofia, Dewey mostra que ela poderia ter-se dedicado ao estudo da experiência vivida, mas esteve sobrecarregada e saturada com o seu legado de produções da reflexão de gerações passadas. Ela esteve “ocupada” com suas interpretações, sistematizações, classificações, devido ao pensamento sofisticado da tradição. Para superar essa situação, será exigida uma Reconstrução da Filosofia nos moldes propostos por Dewey, para que essa sabedoria possa superar o tradicionalismo naquilo que ele tem de inadequado e resgatar na tradição as filosofias históricas e do devir, que tiveram mais sucesso na explicação e no oferecimento de resultados para ajudar na ação do homem no mundo.
Observações Finais
Mostramos a cena filosófica de surgimento do pragmatismo, através de uma caracterização dos pragmatistas clássicos (James, Peirce, Dewey). Nosso propósito foi investigar as teorias pragmatistas da verdade, nas versões de seus principais propositores para nos auxiliar na reflexão sobre o problema de filosofia da educação de base pragmatista. Adotei como recurso considerar o pragmatismo como uma alternativa à metafísica clássica e ao agnosticismo, ou mesmo considerar como queriam seus autores, que o pragmatismo se constitui num método para assentar as disputas metafísicas. As principais categorias intelectuais como experiência, conhecimento, verdade, natureza são mostradas pela ótica de uma filosofia da experiência. Destacamos a posição de Peirce na constituição de uma teoria do significado, e na versão de William James aprofundamos a investigação sobre o método pragmático e a maneira como ele se opõe aos dualismos da filosofia tradicional. Através desse percurso compreendemos melhor as ideias de Dewey no tocante ao objeto principal da reflexão a reconstrução social da filosofia em beneficio de uma filosofia da educação pragmatista. REFERÊNCIAS DE WAAL, Cornelis de. Sobre Pragmatismo. São Paulo: Edições Loyola, 2007. DEWEY, John. Experience and Nature. 2ª edição. New York: Dover publications, 1958. 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
________. Experiência e Natureza. 2ª edição. Trad. Murilo Otávio Paes Leme, Anísio S. Teixeira, Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1979. ________.Essays in experimental logic.2. Ed. Chicago: Chicago University Press. 2004. ________. Reconstrução em filosofia. 2ª edição. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959. ________. Reconstruction in Philosophy. New York. Henry Holt and Company, 1957. ______. Vida e Educação. 10ª edição. Trad. Anísio S. Teixeira. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1978. EDMAN, Irwin. John Dewey: sua contribuição para a tradição americana. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1990. JAMES, William. Pragmatismo e outros textos. 2ª edição. Trad. Jorge Caetano da Silva e Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1985. GEIGER, G. R. John Dewey in Perspective - a reassessment. N. York; Toronto; London: Mc Graw-Hill Book Co., 1958. PEIRCE, Charles Sanders. De pragmatismo ao pragmaticismo. In: Semiótica. 2.ed. Trad. Jose Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva. 1990. PEIRCE, Charles Sanders. Escritos coligidos. Tradução de Armando Mora D‟Oliveira e Sérgio Pomerangblum. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 8. (Coleção Os Pensadores). RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton: Princeton University Press, 1979. SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Trad. Fábio M. Said. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
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AS INFLUÊNCIAS DO PENSAMENTO DE JOHN DEWEY NO CENÁRIO EDUCACIONAL BRASILEIRO Viviane Batista Carvalho1 RESUMO: Este artigo foi escrito a partir dos estudos realizados durante a pesquisa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Londrina. Os resultados obtidos com essa pesquisa vieram a se tornar a dissertação intitulada O pragmatismo de John Dewey e a Educação infantil Municipal de Londrina: relações possíveis? Os estudos em específico, deste artigo, procuram delinear como o pensamento educacional deweyano teve entrada em nosso país e a partir de que autores foi propagada as suas idéias. O artigo também faz uma breve relação entre a escrita do documento O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: ao povo e ao Governo e as idéias educacionais proposta pelo filósofo norte americano John Dewey. Palavras-chaves: John Dewey, Escola Nova, Manifesto dos Pioneiros. ABSTRACT: This article was written from research studies conducted during the Master's in Education from State University of Londrina. The results from this research were to become the dissertation entitled The pragmatism of John Dewey and Children's Education of Londrina County: relationships possible?. Studies in specific, this article seeks to outline how the Deweyan educational thought was coming into our country and from what the authors was propagated their ideas. The article also makes a brief relationship between the writing of the document The Manifest of the Pioneers of New Education: the people and government and educational ideas proposed by the North American philosopher John Dewey. Keywords: John Dewey, New School, Manifesto of the Pioneers
É inegável o fato de que o pensamento de John Dewey tenha influenciado de alguma maneira a educação no Brasil. Suas idéias estiveram presentes em discussões no cenário educacional do país desde 1930, mas mesmo antes já influenciava importantes filósofos e educadores brasileiros. Para Machado no prefacio do livro de Barbosa John Dewey e o Ensino da Arte no Brasil (2002, p. 10), “A contribuição de Dewey permanece maior que suas sucessivas interpretações, resiste ao movimento intelectual que ora o esquece, ora o traz novamente à luz, como vem acontecendo nos dias de hoje”. Mas como seu pensamento chegou até o Brasil? De que forma suas idéias foram propagadas a educadores de todo o país? Ainda hoje podemos dizer que sua filosofia da educação está presente na concepção de educação de muitos professores? A resposta a 1
Pedagoga, Professora da Rede Municipal de Educação de Londrina e da Faculdade Norte Paranaense (Uninorte), Especialista em Educação Infantil, Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina. 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
essas questões é o que pretendemos discutir nas próximas páginas. Embora esse artigo não seja um estudo minucioso da passagem das idéias deweyanas no Brasil, é possível constatarmos alguns pontos que contribuem para o esclarecimento das questões acima colocadas. Alguns pensadores brasileiros tiveram importante destaque no que tange à divulgação da filosofia de Dewey no país. Alguns livros desses pensadores são estudados freqüentemente em muitos cursos de formação de professores até os nossos dias. Revistas e periódicos contribuíram para a propagação das idéias deweyanas e algumas reformas educacionais deram vida a alguns pressupostos de sua teoria. Cunha (2002, p. 248) revela que: O Brasil pode não ter sido importante para John Dewey, mas podemos dizer, seguramente, que o filósofo-educador norte-americano desempenhou um relevante papel no desenvolvimento da mentalidade dos educadores brasileiros especialmente nos anos de 1930. Rememorar a herança deweyana é uma tarefa frutífera nos dias de hoje, quando a educação tem sido invadida por abordagens tecnológicas supostamente progressistas.
Nesse sentido é que abaixo exploramos alguns pontos de destaque quanto à entrada e permanência do pensamento de Dewey no Brasil.
1 Alguns Autores/Educadores/Filósofos que Contribuíram para a Propagação das Idéias Deweyanas no Brasil.
Entre os pensadores brasileiros de maior destaque quanto à propagação do pensamento educacional de Dewey em nosso país, não podemos deixar de citar o nome de Anísio Teixeira, para Henning (2009, p. 2):
O pragmatismo de Dewey, [...] estrelou com grande presença, especialmente através de Anísio Teixeira, intelectual atuante no movimento da Escola Nova; este, já a partir da década de 20, se constituindo em um conjunto de medidas e ações para o enfrentamento do tradicionalismo educacional e o estabelecimento de um novo modelo renovador mais consoante com os novos tempos.
Para Chaves, (1999, p. 86) “[...] é fato que os pressupostos teóricos de Anísio Teixeira acerca da escola que desejava ver implantada no Brasil depreendem-se das premissas elaboradas por John Dewey [...]”. Anísio Spínola Teixeira nasceu em Caetité, na Bahia no ano de 1900, se formou em direito em 1922 e procurou em sua cidade natal uma vaga como procurador. Em 1924 foi convidado pelo então governador do Estado da Bahia Goés Calmon para assumir a direção da Inspetoria Geral de Ensino do estado. 59 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Tal convite, acabou o aproximando do setor educacional o que o levou a ser um homem dedicado a procurar resolver os problemas educacionais do Brasil. Para Chaves (1999, p. 88) nessa época já é possível perceber na forma como procurou administrar a Inspetoria Geral de Ensino da Bahia alguns pressupostos que o ligaram ao filósofo John Dewey. Entre eles pode-se destacar: [...] a sua compreensão acerca da função social da escola, que faz com que o sistema de ensino esteja a serviço da reconstrução não apenas da instrução como também da sociedade. Outro aspecto importante que o aproxima de Dewey é o fato de querer conhecer, por meio de pesquisas e diagnósticos, a realidade das escolas que administra. Não sabia trabalhar no vazio e no incerto, uma vez que, enquanto homem de ciência, o seu projeto educacional deveria ser baseado em largo material científico, elaborado a partir dos dados colhidos nas pesquisas que sua administração coordenava.
Após deixar a Inspetoria de Ensino na Bahia, Anísio foi cursar Ciências da Educação na Columbia University nos Estados Unidos da América, onde entrou em contato com as idéias de Dewey pela primeira vez. Para Pagni (2000, p. 232) “Nesse curso, Anísio Teixeira pôde fazer um estudo mais sistemático sobre as teorias da educação e teve a oportunidade de conhecer a filosofia e ser aluno do próprio John Dewey”. Ao voltar para o Brasil, entusiasmado com a filosofia deweyana, Anísio Teixeira procura empreender uma reforma educacional dentro do país. Para isso, ele contará com a ajuda de outros pensadores como Lourenço Filho (1897-1970) e Fernando de Azevedo (1894 -1974). Juntos eles dividiram a história do Manifesto dos pioneiros da Escola Nova de 1932. Anísio escreveu vários livros nos quais se percebe claramente a influência dos ideais deweyanos no que se refere principalmente à educação escolar. Em Educação não é Privilégio (1957) o autor versará sobre a importância de se proporcionar a igualdade de oportunidades para todos os indivíduos da sociedade e não somente para uma classe privilegiada. Outro livro de muito sucesso é Pequena Introdução à Filosofia da Educação: a escola progressiva ou a transformação da escola (1968). Nesse livro encontram-se facilmente preceitos fundamentais da filosofia da educação de Dewey, como os conceitos de democracia e experiência. Tanto para Dewey como para Teixeira a educação só pode ser pensada à luz destes dois conceitos. Conforme Cunha (2002, p. 248), este livro marcou a trajetória de Teixeira “[...] como pensador deweyano”. Outro livro de destaque onde se encontra vários elogios tecidos à figura de Dewey é Educação e Mundo Moderno (1969). Na página 21 lemos a seguinte declaração: 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
John Dewey, a quem coube a formulação mais demorada e mais completa desse Método de filosofia (mais do que sistema filosófico), muito se esforçou para afastar as confusões e desinteligências, e a sua contribuição foi decerto das maiores, se não a maior, na empresa de integrar os estudos filosóficos de nossa época no campo dos estudos de natureza científica, isto é, fundados na observação e na experiência, na hipótese, na verificação e na revisão constante de suas conclusões (TEIXEIRA, 1969, p. 21).
Para além da importância demonstrada na situação acima elencada, somente a título de esclarecimento, ressaltamos que o Método de filosofia a que Teixeira se refere é o do pragmatismo. Por muitos anos Anísio Teixeira ocupou vários cargos importantes no cenário político, cultural e educacional brasileiro, onde disseminou veementemente seu ideal reformador de educação, segundo Barbosa (2002, p. 62), nesse período Teixeira “[...] pôde por em prática muitas idéias de Dewey”. Dentre as suas inovações encontramos os seguintes aspectos: 1. A idéia de “democracia como uma forma de vida baseada na experiência conjunta e na intercomunicação”; 2. A idéia de desenvolvimento da individualidade através da interação orgânica com o meio ambiente; 3. A idéia de educação contínua; 4. A idéia de ciência como forma de perquirição.
Em alguns relatos sobre esse Anísio Teixeira consta que muitas vezes seus opositores atacavam a figura de Dewey e o seu pensamento com o intuito de atacar o próprio intelectual brasileiro2·. Durante todo o tempo em que Anísio se dedicou a causa educacional pode se perceber sua conexão com o ideário deweyano. Teixeira morreu no Rio de Janeiro em 11 de março de 1971. A causa de sua morte no laudo oficial consta como acidente, embora as circunstâncias não tenham sido bem identificadas, pois seu corpo foi encontrado no fosso de um prédio sem hematomas que comprovassem sua queda. Embora possamos afirmar que Anísio Teixeira tenha sido o maior representante da filosofia de Dewey no Brasil, não podemos dizer que ele foi o único. Segundo Barbosa (2002, p. 65), “Desde 1927, referências e citações das obras de Dewey são encontradas em documentos brasileiros”. Nesse sentido, outros nomes tiveram destaque no cenário educacional nacional - é o caso de Lourenço Filho.
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Sobre esse assunto consultar: BARBOSA, Ana Mae Tavares. John Dewey e o Ensino da Arte no Brasil. 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 65 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Manoel Bergström Lourenço Filho nasceu no interior do Estado de São Paulo na cidade de Porto Ferreira no dia 10 de Março de 1897. Filho de um comerciante, Lourenço também foi uma das pessoas que contribuíram para a disseminação do pensamento de Dewey no Brasil. Juntamente com Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo participou do movimento da Escola Nova no país. Em 1915 Lourenço Filho teve sua primeira experiência com o ensino público no local onde nascera, embora já tivesse se revelado como educador ao ministrar aulas particulares para testes de admissão. Ele é dono de uma vasta lista de publicações e traduções. Participou da assinatura do documento Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. Preocupava-se com o ensino primário e a importância da liberdade dos programas de ensino. Seus escritos eram envolvidos em torno de temas que iam desde a educação infantil até a Universidade, passando pela alfabetização de jovens e adultos, questões administrativas escolares, formação de professores, ensino de educação física, literatura entre outros. Estudioso das teorias modernas de ensino e seus precursores, Lourenço Filho conhecia a produção de pensadores como: Émile Durkheim (1858-1917), Édouard Claparède (1873-1940), Henri Paul Hyacinthe Wallon (1879-1962), Bertrand Arthur Willian Russell (1872-1970), Ovide Decroly (1871-1932), Maria Montessori (18701952), entre outros. No entanto, na presente pesquisa procuramos ressaltar o conhecimento e a simpatia que possuía pelo pensamento de Dewey. Em seu livro Introdução ao Estudo da Escola Nova: bases, sistemas e diretrizes da pedagogia contemporânea de 1930, é possível notar nitidamente o conhecimento de Lourenço Filho sobre Dewey: A primeira tentativa de explicação a esse respeito aparece num escrito de Dewey datado de 1895, sob o título “O interesse em relação a vontade”, o qual mais tarde, veio a ser desenvolvido na tão conhecida monografia “o interesse e o esforço”. [...]. Em ambos, procura especialmente responder aos que se contrapunham à idéias de um ensino com base em atividades interessadas dos alunos, porque acreditavam que isso destruiria o sentimento de esforço e o cultivo da vontade. Nesse modo de ver, explicava Dewey, há um erro de observação. Interesse e esforço não se contrapõem um ao outro. São duas faces de uma mesma realidade. O que se chama interesse é o aspecto interno da experiência, o que move o educando e assim é por ele sentido; o que se chama esforço é o aspecto externo pelo qual podemos observar a situação funcional resultante (FILHO, 1978, p. 198-199).
O que se observa é que Lourenço possuía a leitura dos escritos de Dewey, e mais do que isso, se entusiasmava com suas idéias. Outro ponto que podemos destacar se encontra na página 24 desse mesmo livro, na qual Lourenço cita as experiências realizadas junto a Universidade de Chicago como fator importante para a elaboração da 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
teoria da escola nova no Brasil. Na nota de rodapé podemos encontrar os seguintes escritos “[...] nessa escola experimental desenvolveu John Dewey os seus primeiros trabalhos pedagógicos de que se dará adiante circunstanciada notícia” (FILHO, 1978, p. 24). Na página 135, Lourenço irá citar alguns elementos da teoria de Dewey e irá defender alguns princípios referentes à questão da “comunidade em miniatura”, à “importância do trabalho conjunto” de uma turma de alunos e dos “jogos recreativos” Em tudo isso irá utilizar-se do autor norte-americano. Em relação à origem do sistema de projetos, Lourenço também fará menção ao autor e destacará a sua contribuição quanto a essa forma de conduzir o processo de ensino-aprendizagem. Na página 215, Lourenço Filho citará o livro Experiência e Educação de John Dewey como um elemento compositor das teorias formadoras da escola nova principalmente no que tange à questão de crescimento (desenvolvimento), ressaltando principalmente uma das missões dos educadores. Na página 253, ao fundamentar as bases comuns da renovação educacional e política, Lourenço Filho irá se utilizar do conceito de democracia utilizado no livro Democracia e Educação do filósofo americano. Introdução ao Estudo da Escola Nova: bases, sistemas e diretrizes da pedagogia contemporânea, não foi o único escrito de Lourenço Filho em que as idéias deweyanas se fizeram presente, mas talvez seja o de maior importância a ser lembrado. Outro artigo escrito por Lourenço Filho que faz menção a figura do educador é Dewey e a Pedagogia Americana encontrado no livro do próprio filósofo Vida e Educação traduzida para o português em 1959. Nesse artigo, na página XI lemos a seguinte declaração feita por Lourenço Filho sobre a figura de Dewey: Mas o mestre americano não se apresenta apenas como sociólogo e filósofo; é um psicólogo sutil, de doutrinas que nos parecem precursoras das mais modernas teorias com base experimental. Sua doutrina acêrca do Interêsse e do Esfôrço, de que trata precisamente uma das partes deste volume, embora escrita há muitos anos, continua a ser coisa nova para a maioria dos espíritos que aprenderam a velha psicologia atomística, que nos inculca compreensão estática dos fenômenos do pensamento.
Lourenço Filho morreu em 3 de agosto de 1970 de colapso cardíaco no Rio de Janeiro quando tinha 70 anos. Entre seu círculo de relações pessoais iremos encontrar as figuras de Monteiro Lobato, Sampaio Dória, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, outro importante pensador brasileiro no cenário educacional que também teve contato e propagou o pensamento deweyano.
63 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Nascido em 1894, Fernando de Azevedo vem de uma família tradicional de sua cidade natal, São Gonçalo de Sapucaí em Minas Gerais.
Ele
foi
o
fundador
da
Associação Brasileira de Educação (ABE) em 1924, instituição que promoveu várias Conferências da Educação. Nessas conferências ocorriam discussões importantes quanto a reformulação e renovação pedagógica da educação brasileira. Em 1927 Fernando de Azevedo foi chamado para assumir o cargo de Diretor da Instrução Publica do Distrito Federal. Nesse cargo procurou reformular a educação do Rio de Janeiro até 1930. Após essa data ele fica a encargo da direção da série Atualidades Pedagógicas, da Cia Editora Nacional. Também
se destacou por ser
organizador e diretor da Biblioteca Pedagógica Brasileira e da Coleção Brasiliana, uma admirável iniciativa editorial. Fernando de Azevedo publicou por todo o país, artigos importantes a respeito da educação. O seu feito mais importante foi redigir o documento intitulado Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: ao povo e ao governo, que, em muitos aspectos, se assemelha ao ideário deweyano, o que veremos logo adiante. Ele morreu no dia 18 de setembro de 1974 na cidade de São Paulo com 80 anos. Muitos
outros
autores/educadores/filósofos
tiveram
destaque
no
setor
educacional brasileiro vinculando as idéias de Dewey, porém devido ao fato de não podermos discorrer sobre todos, isto nos custaria um novo artigo, destacamos aqui somente os principais. Segundo Cunha (1986, p. 81) as influências das idéias de Dewey estão presentes nesses três pensadores brasileiros: É no pedagogismo inerente ao movimento que nos leva a confrontá-lo com os ideais escolanovistas europeus e principalmente norte-americano. Aqui é importante destacar que os expoentes do movimento brasileiro nunca negaram as influências recebidas, e, principalmente Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho deixam esta influência bem definida em suas obras.
Ainda segundo Pagni (2000, p. 232), “Tanto Fernando de Azevedo quanto Anísio Teixeira [...]” e eu acrescentaria Lourenço Filho, “[...] tiveram experiências administrativas, ocupando cargos públicos semelhantes. Dessa forma, podiam intentar reformas que fossem marcantes e anunciassem um novo espírito para a educação nacional”. Esses homens influenciaram não só educadores de todo o país em sua época, como continuam através de suas obras a influenciá-los até os dias atuais. Muitos outros pensadores importantes no setor educacional brasileiro também tiveram suas vidas influenciadas por esses intelectuais, é o que declara Henning (2009, p. 4) a respeito de 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Teixeira ao dizer que suas idéias “[...] propagadas em suas obras acabam por atingir outros marcantes intelectuais como, por exemplo, Paulo Freire (1921-1995), em anos posteriores”. Se procurarmos um pouco mais com certeza, poderemos falar a mesma coisa de Lourenço Filho e Fernando de Azevedo.
2 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e suas Relações com o Ideário Educacional Deweyano.
Em 1932 foi publicado no Brasil um importante documento para o setor educacional, intitulado Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: ao povo e ao governo3 esse documento tinha por intuito promover uma reforma educacional no país. Escrito por Fernando de Azevedo também contou com a participação de muitos outros intelectuais em destaque naquela época. Estes intelectuais estavam preocupados com as transformações econômicas, políticas e sociais pelas quais o país passava e acreditavam que a educação não conseguiria acompanhar tais mudanças. O Manifesto acabou se tornando o ponto auge do movimento renovador e era composto de um conjunto de concepções acerca da educação, esboçando algumas medidas a serem tomadas em relação à função educativa que se constituía um dos pontos mais relevantes do documento. Em relação aos fatos históricos que culminaram com a redação do Manifesto e sua publicação consta que, em 1931 entre os dias 13 a 20 de dezembro a Associação Brasileira de Educação (ABE) realizou a IV Conferência Nacional de Educação no Rio de Janeiro. Neste mesmo ano Francisco Campos (1891-1968) havia assumido a chefia do recém criado Ministério da Educação e Cultura e esteve presente na Conferência juntamente com o Chefe do Governo provisório Getúlio Vargas. De acordo com Cunha (1986, p. 65), essas duas presenças na conferência “[...] emprestou-lhe uma grande importância”. Naquele evento Getulio Vargas e Francisco Campos pediram aos participantes para examinar o “[...] problema da educação brasileira e de seus rumos na política educacional”4. A partir desse pedido um grupo de pessoas se encarregou de “[...] elaborar uma declaração de princípios e um programa de política educacional. O anteprojeto do documento seria elaborado por Fernando de Azevedo e, publicado em 3
[...] seu redator diz dirigir-se a um público específico, ao povo e ao governo – como aparece no subtítulo – de quem esperam apoio e o comprometimento com as suas idéias e propostas (PAGNI, 2000, p. 88). 4 Ibidem, p. 65. 65 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
1932 [...]”5. Segundo o próprio redator do texto do Manifesto, Fernando de Azevedo:
Êsse documento público que teve a mais larga repercussão, foi inspirado pela necessidade de precisar o conceito e os objetivos da nova política educacional e desenvolver um esforço metódico, rigorosamente animado por um critério superior e pontos de vista firmes, dando a todos os elementos filiados à nova corrente as normas básicas e os princípios cardeais para avançarem com segurança e eficiência nos seus trabalhos. Não é apenas uma bandeira revolucionária, cuja empunhadura foi feita para as mãos dos verdadeiros reformadores, capazes de sacrificar pelos ideais comuns a sua tranqüilidade, a sua energia e a sua própria vida; é um código em que se inscreveu, com as teorias da nova educação infletidas para um pragmatismo reformador, um programa completo de reconstrução educacional, que será mais cedo ou mais tarde a tarefa gigantesca das elites coordenadoras das fôrças históricas e sociais do povo, no seu período critico de evolução (AZEVEDO, 1958, p. 50).
Tal documento foi assinado por políticos, educadores, cientistas, artistas, entre outras áreas de atuação que eram consideradas pessoas influentes naquela época. Ao todo mais de 26 intelectuais, sendo 23 homens e 3 mulheres contemplaram o documento com suas assinaturas. Entre este grupo de pessoas podemos destacar: Afrânio Peixoto (1876-1947), Sampaio Dória (1883-1964), Anísio Teixeira (1900-1971), Lourenço Filho (1897-1970), Roquete Pinto (1884-1954), Frota Pessoa (1917-2010), Júlio de Mesquita (1892- 1969), Raul Briquet (1887-1953), Delgado de Carvalho (1884- 1990), Almeida Júnior (1850-1899), Noemy da Silveira (1902-1988), Hermes Lima (1902-1978), Venâncio Filho (1894-1946), Cecília Meirelles (1901-1964), Edgar Sussekind de Mendonça (1896-1958), Armanda Álvaro Alberto (1892-1974) e Paschoal Lemme (1904-1997). A história nos mostra que de todos os que assinaram o documento, apenas Paschoal Leme, Hermes Lima, Frota Pessoa, Venâncio Filho e Anísio Teixeira foram consultados por Fernando de Azevedo ao escrever o Manifesto, mas todos o assinaram sem restrições. As palavras contidas nesse documento trazem muitas das idéias de Dewey em sua formulação. Para Pagni (2000, p. 147) “[...] na exposição e problematização do texto [...] percebe-se claramente [...] na sua redação, [...] uma apropriação muito singular do pragmatismo e da filosofia da educação de Dewey”. O Manifesto não abrangia somente aspectos políticos-educacionais, mas contemplava também aspectos políticos-ideológicos, aspectos pedagógicos, além de defender as diretrizes essenciais para um plano nacional de educação, o qual era intitulado Plano de Reconstrução Educacional. Para Pagni (2000, p. 89) “[...] o Manifesto, além de um „documento político‟, constitui-se também num texto filosófico5
Ibidem, p. 65. 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
educacional, haja vista suas pretensões doutrinárias, onde se pode identificar à gênese da filosofia da educação da Escola Nova Brasileira”. Ao lermos e estudarmos o Manifesto podemos dizer que em vários aspectos, esse documento simpatiza com as idéias deweyanas. Cunha (2002, p. 255) afirma que o “[...] Manifesto expressou as idéias políticas, filosóficas e educacionais que vinham sendo defendidas desde os anos de 1920 “[...]. Dentre as muitas noções ali apresentadas havia várias idéias cuja inspiração deweyana era inegável”. Entre os itens que a autora aponta para a semelhança entre o documento e o pensamento de Dewey pode-se destacar: [...] defendia-se um tipo de escola que fosse vinculada ao meio social, que respeitasse as aptidões naturais dos educandos, uma pedagogia baseada na atividade espontânea da criança, que satisfizesse as necessidades individuais. Ao mesmo tempo em que preconizava a necessidade de um currículo que seguisse a lógica psicológica da criança, o Manifesto enfatizava que os professores deveriam estar sintonizados com o ideal de reconstrução da ordem social e política por intermédio da educação e insistia na necessidade de os educadores possuírem conhecimentos sobre o indivíduo e sobre a sociedade, o que lhes permitiria atuar sobre o estrato psicológico individual tendo em mira um projeto de sociedade.
Ainda para Pagni (2000, p. 34), a fim de conferir legitimidade “[...] ao discurso e a prática dos Pioneiros da Educação Nova”, Fernando de Azevedo procurou bases filosóficas no pragmatismo deweyano. Assim, ele faz a seguinte declaração: “Desse modo, o pragmatismo é apropriado por Fernando de Azevedo para legitimar as idéias e o projeto político e pedagógico defendidos pelo seu grupo e expresso nas linhas do Manifesto”6. Logo no início dos escritos de Fernando de Azevedo intitulado Introdução ao Manifesto de 1932 encontramos uma citação do próprio Dewey, o que comprovaria a influência dos pressupostos apresentados pelo documento do pensamento do filósofo. No segundo parágrafo lemos: “[...] apesar das limitações de ambas, estará aí a salvação do homem, na adaptação de sua vida às descobertas e invenções mecânicas, „que governam as fôrças naturais e determina a marcha dos acontecimentos‟ (J. Dewey)”, (AZEVEDO, 1958, p. 43). Além disso, ainda podemos encontrar outras passagens em que é possível fazermos tal análise. No que concerne a crítica a escola tradicional encontramos a seguinte advertência colocada no Manifesto relatando que este documento “[...] não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha 6
Ibidem, p. 34.
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estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida”7. Dewey sempre se revelou contrário ao modelo tradicional de ensino, em quase todos os seus escritos é possível encontrar algumas palavras que expressam a não aprovação feita pelo filósofo da escola dita tradicional, em Liberalismo, Liberdade e Cultura (1970, p. 236), por exemplo, encontramos a seguinte afirmação feita pelo autor: Não se pode negar que as escolas – em sua maior parte – dedicaram-se à difusão da informação “feita” e ao ensino dos instrumentos da leitura. Os métodos usados para adquirir tal informação não são os que desenvolvem capacidade de exame e de comprovação de opiniões. Pelo contrário, são positivamente hostis a isto. Tendem a embotar a curiosidade nativa e a sobrecarregar os poderes de observação e experimentação com tal massa de material desrelacionado, que eles nem sequer operam com a efetividade que se encontra em muitos iletrados.
Ainda podemos encontrar outros pontos redigidos no Manifesto que se assemelham ao pensamento educacional deweyano. Um deles se refere ao caráter biológico da educação. Segundo o documento: Desprendendo-se dos interêsses de classes, a que ela tem servido, a educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de Ernesto Nélson, deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do individuo, para assumir um “caráter biológico”, com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a todo o individuo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social (AZEVEDO, 1958, p. 64).
De acordo com Amaral (1990, p. 61) “Não podemos nos esquecer da influência evolucionista na filosofia de Dewey”. Cunha (1994, p. 29) também salienta que teoria deweyana se encontra “[...] sob o efeito da biologia”, pois com o desenvolvimento dessa área percebeu-se que “[...] a existência de vida é sinônimo de atividade, o que implica esforço continuo de adaptação do ser vivo ao meio ambiente, processo este que requer ação permanente ativa do organismo” e nesse caso continua o autor “Quando Dewey se reporta à existência de uma psicologia baseada na biologia, ele tem em mente as descobertas da fisiologia associadas à ciência psicológica [...]”8. Outro conceito presente na teoria de Dewey e que se encontra no texto do Manifesto é a defesa de um caráter democrático para a educação, no texto do documento brasileiro podemos ler: “A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia democrática"9. A grande meta dos pioneiros era uma escola democrática que pudesse dar oportunidade a todos e pudesse 7
Ibidem, p. 64. Ibidem, p. 29. 9 Ibidem, p. 64. 8
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fazer com que seus alunos vivenciassem princípios democráticos. Semelhantemente encontramos no livro El hombre y sus problemas escrito por Dewey (1961, p. 42) a seguinte constatação: “Es obvio que La relación existente entre democracia y educación es recíproca, mutua, y esto de uma maneira vital. La democracia constituye em si misma un principio educativo, un modelo y una forma de educación”. Outra preocupação dos pioneiros da educação nova se refere à importância de se dar a educação não mais um caráter literário e verbalista, mas um caráter e um “[...] espírito nitidamente científico [...] numa série fecunda de pesquisas e experiências, os princípios da educação nova, pressentidos e às vezes formulados em rasgos de síntese, pela intuição luminosa de seus precursores” (AZEVEDO, 1958, p. 70). Dá-se grande valor ao método científico como a melhor forma de se conduzir o processo pedagógico: A partir da escola infantil (4 a 6 anos) até a Universidade, com escala pela educação primária (7 a 12) e pela secundária (12 a 18 anos), a “continuação ininterrupta de esforços criadores” deve levar à formação da personalidade integral do aluno e ao desenvolvimento de sua faculdade produtora e de seu poder criador, pela aplicação, a escola, para a aquisição ativa de conhecimentos, dos mesmos métodos (observação, pesquisa e experiência), que segue o espírito maduro, nas investigações científicas10.
Dewey (1979b, p. 303) também defendeu um espírito científico para a educação, segundo ele “Os homens, se quiserem descobrir alguma coisa, precisam fazer alguma coisa aos objetos, precisam alterar as condições deste”. Nessa afirmação ele aponta para um caminho do ensino e da aprendizagem a partir do método científico e continua declarando que a “lição do método do laboratório é a lição que toda educação deve aprender”, para ele “O método do laboratório é a descoberta das condições sob as quais o labor e o trabalho podem tornar-se intelectualmente fecundos e não mero reprodutores de coisas exteriores”11 Os conceitos de experiência, vida e crescimento, a importância de se ver o aluno como o centro da escola, são conceitos essenciais da teoria deweyana e esses também se fazem presente na redação do Manifesto. Parece mesmo que o seu redator faz algumas alusões às palavras do próprio Dewey: A nova doutrina, que não considera a função educacional como uma função de superposição ou de acréscimo, segundo a qual o educando é “modelado exteriormente” (escola tradicional), mas uma função complexa de ações e reações em que o espírito cresce de “dentro para fora”, substitui o mecanismo pela vida (atividade funcional) e transfere para a criança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da educação. A escola, vista desse ângulo novo que nos dá o conceito funcional da educação, deve oferecer à criança um meio vivo e natural, “favorável ao intercâmbio de 10 11
Ibidem, p. 73. Ibidem, p. 303.
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reações e experiências”, em que ela, vivendo a sua vida própria, generosa e bela de criança, seja levada “ao trabalho e à ação por meios naturais que a vida suscita quando o trabalho e ação convêm aos seus interesses e às suas necessidades” (AZEVEDO, 1958, p. 70).
Para Dewey é através da experiência que (1979a, p. 209) “[...] se prova o valor dos conhecimentos ou dos dados e das idéias; que em si mesmos eles são hipotéticos ou provisórios”. Ainda para ele é possível inferir que “[...] a educação significa a empresa de suprir as condições que asseguram o crescimento ou desenvolvimento – a adequação da vida”, nesta linha de pensamento ele anuncia “A tendência a aprender-se com a própria vida e a tornar tais as condições da vida que todos aprendem com o processo de viver, é o mais belo produto da eficiência escolar"12. Ainda, sobre a centralidade do processo de aprendizado estar na figura do aluno, Dewey (1979a, p. 43) faz a seguinte declaração: “Aprender é próprio do aluno: só ele aprende, e por si; portanto, a iniciativa lhe cabe. O professor é um guia, um diretor; pilota a embarcação, mas a energia propulsora deve partir dos que aprendem”. Outro ponto relevante a destacarmos se refere à questão da “comunidade em miniatura”. Dewey ao falar sobre o como as crianças poderiam aprender os princípios democráticos, exalta a criação de uma “comunidade em miniatura” dentro da escola. Somente desta forma os alunos poderiam vivenciar esses princípios e aplicá-los em sua vida. Para ele: A defesa [...] da educação por meio de atividades construtoras contínuas, estriba-se no fato de que elas abrem ensejo para restabelecer-se um ambiente social. Em vez de uma escola localizada separadamente da vida como lugar para se estudarem lições, teremos uma sociedade em miniatura, na qual o estudo e o desenvolvimento sejam os incidentes de uma experiência comum (DEWEY, 1979b, p.394).
Semelhantemente o Manifesto destaca: A escola que tem sido um aparelho formal e rígido sem diferenciação regional, inteiramente desintegrado em relação ao meio social, passará a ser um organismo vivo, com uma estrutura social, organizada à maneira de uma comunidade palpitante pelas soluções de seus problemas. Mas, se a escola deve ser uma comunidade em miniatura, e se em toda a comunidade as atividades manuais, motoras ou construtoras “constituem as funções predominantes da vida”, é natural que ela inicie os alunos nessas atividades, pondo-os em contato com o ambiente e com a vida ativa que os rodeia, para que eles possam, desta forma, possuí-la, apreciá-la e senti-la de acordo com as aptidões e possibilidades13.
Como pudemos notar, alguns conceitos presentes na filosofia da educação de Dewey foram sem sombra de dúvidas lembrados na redação do Manifesto, não somente pelo conhecimento que o seu autor e seus signatários tinham do filósofo norte12 13
Ibidem, p. 55. Ibidem, p. 71. 70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
americano, mas porque de certa forma concordavam com suas idéias. É significativo ressaltarmos nesse momento que os próprios pioneiros tinham noção do quanto seria difícil por em prática os ideais expressos no documento, mas nas próprias palavras de seu redator: Animava-nos em 1932 um ideal, sob cuja inspiração se mobilizavam fôrças e se promoviam reformas, mas não nos nutríamos de ilusões. O sentido do real sempre nos acompanhou de perto nos impulsos idealistas. Conscientes das dificuldades que se levantavam à execução dos mais audaciosos planos de reforma, não víamos nelas senão motivos para avançarmos na mesma 14.
Após a publicação do Manifesto o próprio Fernando de Azevedo, seu redator, se surpreendeu com o entusiasmo com que o documento foi recebido: Lançado o Manifesto, para atender ao apelo de uns e ao desafio de outros, se não nos faltaram incompreensões e hostilidades, foram inúmeras as adesões provenientes de quase todos os Estados e altamente significativo o acolhimento, por parte da imprensa e dos meios educacionais, em que só nos surpreenderam o calor e o entusiasmo (AZEVEDO, 1958, p. 87).
É claro que houveram manifestações contrárias ao manifesto, vindas principalmente de alguns intelectuais católicos que viam nesse documento a probabilidade da diminuição do poder da Igreja no cenário educacional, visto que já há algum tempo havia um movimento que procurava desvincular a educação dos ideais religiosos. Embora nem todos os pontos levantados no documento tenham sido levados para a prática, não podemos descartar a sua importância para a educação de nosso país. Na verdade devemos concordar com Cunha (1986, p. 21) ao afirmar que “[...] o movimento renovador educacional que, como já vimos, teve seu ápice com a divulgação do Manifesto dos Pioneiros, assinala a perspectiva de uma nova era na educação brasileira”. Apesar do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova já ter completado 79 anos desde a sua publicação, em muitos aspectos ele ainda se faz atual, muitos pontos ainda merecem nossa atenção e carecem ser alcançados.
3 O Movimento da Escola Nova no Brasil Muitos dos signatários que assinaram o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” protagonizaram reformas educacionais que foram registradas de norte ao sul do país. A junção de ideais reformadores quanto à educação brasileira desencadeou um 14
Ibidem, p. 94.
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movimento, que já ocorria em outros países conhecido como “Escola Nova”. O intuito de explorarmos nesse momento essas reformas educacionais ocorridas no Brasil entre as décadas de 30, 40 e 50, não é o de explicar o que ocorreu em cada uma delas, nem o de salientar as medidas que foram tomadas no interior dessas, o intuito principal é o de salientar a presença do pensamento deweyano nessas reformas, e isto será feito de uma maneira simples e breve. Segundo Barbosa (2002, p. 72) a Escola Nova no Brasil poder ser: [...] definida como filosoficamente baseada em Dewey, psicologicamente em Claparède e metodologicamente em Decroly. Esta afirmação baseia-se na análise dos escritos publicados para divulgação da Escola Nova. Nunca houve no Brasil uma propaganda sobre educação tão constante e enfática. Os jornais publicavam diariamente notícias e artigos a respeito da renovação educacional. Alguns deles mantinham uma coluna permanente sobre educação e freqüentemente os editoriais eram dedicados aos problemas do ensino renovado. Apareceram então as primeiras revistas especializadas em educação. Coletei entre jornais de São Paulo e Rio de Janeiro mais de 2 mil noticias e artigos a respeito de escolas, ensino e educação, entre 1927-1930. São constantes referencias a Dewey, Claparède e Decroly. Claparède e Decroly foram ambos influenciados por Dewey.
Buscavam os reformadores, a democratização da sociedade através do surgimento de uma escola democrática voltada para todos. Essa era uma das principais metas que os intelectuais almejavam alcançar. Para Moreira (2002, p. 63) “O esforço por considerar na análise da educação as características dos indivíduos e as demandas de uma socialização voltada para a construção de uma sociedade democrática é um dos traços fundamentais da Nova Escola”. O movimento apresentava críticas veementes ao ensino tradicional e procurava um novo modelo de educação, que em sua síntese deparava-se em muitos aspectos com o pensamento deweyano. Para Cotrim (1989, p. 224) o movimento pedagógico da Escola Nova tinha por “[...] objetivo substituir a educação tradicional, autoritária, intelectualista e passiva [...]”, por uma educação que fosse mais liberal e que se preocupasse em “[...] desenvolver a personalidade integral do aluno e despertar-lhe a participação ativa no processo de aprendizagem”15. As reformas educacionais de cunho escolanovista não aconteceram no país de uma só vez atingindo todo o território nacional, elas começam “[...] de forma fracionada nos Estados, onde alguns de seus futuros dirigentes chegaram a assumir posições de destaque na Administração” (CUNHA, 1986, p. 59). Entre as principais reformas podemos destacar a de Francisco Campos em Minas Gerais, Fernando de Azevedo no
15
Ibidem, p. 224. 72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Distrito Federal (Rio de Janeiro), Carneiro Leão em Pernambuco, Lourenço Filho no Ceará e em São Paulo, Sampaio Dória em São Paulo e as de Anísio Teixeira nos estados da Bahia, Ceará e também no Distrito Federal. Essas reformas que levam os nomes de seus promotores, não foram as únicas. Alguns desses intelectuais promoveram reformas em mais de um estado. Segundo Barbosa (2002, p. 68) todas elas de algum modo apresentavam pontos convergentes com a teoria deweyana: No Brasil, a idéia de reformar a sociedade começando pela reforma do homem, através da reforma do sistema de ensino escolar, foi a manifestação mais evidente de entusiasmo e confiança nos poderes da educação e constitui uma bandeira de luta durante os períodos pré-democrático e democrático entre 1927 e 1935. Nessa época, as idéias de Dewey foram amplamente aceitas e operacionalizadas em todo o país por educadores que tiveram oportunidade de conhecê-las [...].
A Reforma Francisco Campos em Minas Gerais iniciou-se em 1927 quando o próprio Francisco enviou cinco professores aos Estados Unidos estudar no Teacher’s College, o “[...] objetivo não era a obtenção de um diploma, mas a preparação para executar uma reforma apropriada” (BARBOSA, p. 71). Para uma das professoras integrantes desse grupo “[...] as concepções de Dewey impregnavam todas as atividades e cursos do Teacher’s College”16 o que demonstra a aproximação com o pensamento do filósofo norte-americano. Outra reforma muito importante é proposta por Fernando de Azevedo entre 1927 e 1930 no Distrito Federal (Rio de Janeiro). Muitos autores destacam a similitude entre as medidas tomadas nessa reforma com alguns preceitos da teoria deweyana. Segundo Cardoso (2005, p. 4): Durante a sua gestão na direção da Instrução Publica ocorreu uma reforma educacional consubstanciada no Decreto 3281, de 23 de janeiro de 1928, que atingiu, além do ensino técnico profissional, também o ensino primário e o normal. Essa reforma, segundo o próprio Fernando de Azevedo, foi inspirada pelas teorias de E. Durkheim, na França, de Kerschensteiner, na Alemanha, e sobretudo, de J. Dewey, na América do Norte e pretendia alterar profundamente a sociedade brasileira.
Já a Reforma Educacional ocorrida em Pernambuco no ano de 1928, proposta por Carneiro Leão trazia a teoria deweyana como seu pano de fundo. De acordo com Barbosa (2002, p. 158-161) ao planejar essa reforma Carneiro Leão “[...] pode ser considerado um discípulo de Dewey”, pois empreendeu medidas que em muitos casos se assemelham ao pensamento de tal autor. A Reforma de Sampaio Dória também trazia em seu bojo elementos da teoria de Dewey. Isso se dava principalmente na configuração como esse pensador concebia a 16
Ibidem, p. 71.
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forma de ensinar, embora esse não fosse a sua única preocupação. Dória também se inquietava com a questão da igualdade de oportunidades e a reconstrução social pela educação. Segundo Barbosa (2002, p. 79) Sampaio Dória procurava “[...] delinear um sistema metodológico que relacione a evolução mental da criança com a preocupação de Dewey de disciplinar os impulsos infantis através do reconhecimento e da reflexão”. O próprio Sampaio declarava que seu método baseava-se em uma passagem do texto “The school and society”17 de Dewey, que colocamos a seguir: É comum nas crianças o desejo de se expressarem pelo desenho e pela cor. Se nos limitarmos a deixá-las dar vazão a esse instinto permitindo que atue sem controle, o desenvolvimento da criança será puramente ocasional. É necessário, mediante crítica, sugestões e perguntas, excitar nela a consciência do que já fez e do que deve fazer. Suponhamos: uma criança desenha uma árvore. Seu desenho será típico de uma criança: uma linha vertical e retas horizontais de um e outro lado. Levemos agora a criança a observar as árvores para compará-las com o desenho feito e, assim, examinar conscientemente seu trabalho. Ela estará agora apta a desenhar árvores observadas e não convencionais, porque a observação obriga ao trabalho combinado da memória e da imaginação, produzindo expressões gráficas de arvores reais. (DEWEY apud BARBOSA, 2002, p.79)
Em relação às reformas empunhadas por Lourenço Filho e Teixeira nos Estados da Bahia, Ceará, São Paulo e também no Distrito Federal (Rio de Janeiro), ficaria repetitivo delinear que essas possuíam um caráter eminentemente deweyano, visto já termos discutidos anteriormente a adesão desses intelectuais ao pensamento do filósofo norte-americano. Sobre essas reformas e outros que ocorreram no interior do país, Cunha (1986, p. 61) afirma:
Em 1922/23 vamos encontrar Lourenço Filho no Ceará, reorganizando o ensino primário e Anísio Teixeira na Bahia, onde inicia suas atividades de reformador, que atingirão sua plenitude no Distrito Federal (1932/35), já de volta de sua viagem de estudos aos Estados Unidos da América. Também encontramos Carneiro Leão, no Rio de Janeiro e Lisímaco da Costa, no Paraná, todos voltados para a renovação da educação que variavam no grau de intensidade, no conteúdo e objetivos, mas buscavam a educação nova, promovendo reformas parciais ou globais, mas todas centradas no ensino primário e nos seus problemas. Como iniciativa do Governo Federal, encontramos em 1925 a reforma João Luiz Alves ou Rocha Vaz, que se caracterizava por: participação do governo central na luta contra o analfabetismo; implantação do regime seriado, reorganização do ensino superior. Em 1927 a educação brasileira em seu processo de “construção” e não de “reconstrução” como afirma Valmir Chagas, apreciaria duas reformas bem dentro do espírito escalanovista: a de Fernando Azevedo, no Distrito Federal e de Mário Casassanta e Francisco Campos, em Minas Gerais.
17
A referência a que nos reportamos é encontrada, a partir das indicações de Barbosa (2002) In: DEWEY, John. The school and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1922. p. 41.
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Vale a pena lembrar que à medida que essas reformas iam ocorrendo em todo o país, as idéias de Dewey eram cada vez mais sendo disseminadas entre educadores e profissionais da educação em todo o território nacional. A liderança empunhada por todos aqueles que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova geraram repercussões na imprensa brasileira alcançando uma maior extensão do pensamento do filósofo por toda a nação brasileira. Para Cunha (1986, p. 62-63), “As idéias renovadoras adotadas pelas reformas [...] abalaram os alicerces do marasmo educacional em que se encontrava o país”. Todavia, importa-nos recordar que apesar dessas idéias terem influenciado gradativamente o pensamento educacional brasileiro, principalmente no século XX, isso não quer dizer que as reformas ou o próprio Manifesto tenham se mantido firmes aos seus objetivos. O que se viu na prática foi a distorção ou má interpretação de muitos conceitos por aqueles que os aplicaram na realidade. Muitos professores acabaram concluindo que o aluno poderia aprender por si próprio sem precisar da contribuição do professor, deixando esses a mercê do próprio entendimento em relação aos vários conteúdos ocorrendo na prática o famoso laissez faire. Também é importante lembrar que a educação pensada por Dewey requer recursos pedagógicos imprescindíveis para o desenvolvimento das aulas, o que as escolas do Brasil não tinham condições de adquirir ou mesmo manter. Talvez, por esse motivo, Dewey tenha sido tão mal visto por muitos intelectuais que se seguiram, após a divulgação dessas idéias no Brasil. Barbosa (2002, p. 169) destaca que “A influência de Dewey foi recebida erradamente desde o início”. Nesse ponto somos obrigados a concordar com Moreira quando diz que as reformas educacionais propostas são “[...] em grande parte confinadas ao mundo das idéias, ao invés de aplicadas efetivamente. Quiçá a questão de por que certas teorias não são traduzidas na prática seja tão importante quanto saber por que outras o são” (2002, p. 183). De qualquer forma importa salientar que o Movimento da Escola Nova no Brasil trouxe grandes contribuições para o avanço do nosso sistema educacional, pois a partir dessas reformas começou-se a pensar um novo tipo de educação onde o interesse do aluno, a formação para uma vida democrática, entre outros temas passaram a ser importantes para o processo educacional. Alguns pontos da teoria deweyana nunca foram completamente esquecidos. Para Lorieri (2009, p. 80) algumas idéias continuam presentes no “[...] discurso educacional brasileiro”. Essas idéias se referem
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principalmente “[...] ao pensamento e ao professor reflexivo, à educação para o pensar, à necessidade de ligação entre as vivências dos alunos e os conteúdos estudados nas escolas e outras”. Atualmente, assim como destaca Lorieri (2009, p. 81), ainda podemos encontrar locais onde o pensamento de Dewey se faz presente em vários estudos e pesquisas: A partir da década de 1990, surgem no Brasil grupos de estudos e de pesquisas sobre o pragmatismo que incluem estudos sobre Dewey. Por exemplo, o Centro de Estudos do Pragmatismo da Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PPGF/PUC-SP); a linha de pesquisa em Ciência Cognitiva, Filosofia da Mente e Pragmatismo, na Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília (Unesp-Marília); o projeto de pesquisa Pragmatismo, filosofia e educação: as interfaces entre experiência, reflexão e políticas de ensino, na Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Há exemplos de disciplinas em cursos de formação de professores que tratam do pragmatismo e de Dewey: no PPGE da Universidade Federal Fluminense (UFF) é oferecida a disciplina Filosofia Política em Dewey, Gramsci e Rorty; no curso de especialização Fundamentos de uma Educação para o Pensar, da PUC-SP, é oferecida a disciplina A Proposta de Educação para o Pensar de Dewey. Há, ainda, trabalhos de pesquisa recentes, comunicações em congressos e reuniões cientificas e novas publicações na forma de livros e artigos. Quanto a publicações, registrem-se os trabalhos de Amaral (1990), Barbosa (2002), Cunha (1994, 1999, 2001, 2003) Lima (2003), Pagni e Brocanelli (2007) e Pogrebinschi (2005).
Devemos acrescentar a essa lista o Grupo de Pesquisa Pragmatismo e Positivismo e suas Relações com a Educação da Universidade Estadual de Londrina, coordenado pelos professores doutores Leoni Maria Padilha Henning (Departamento de Educação) e Sérgio Tiski (Departamento de Filosofia), no qual a pesquisa que deu origem a esse artigo é vinculada.
Considerações Finais
Ao partir para o final deste artigo pode se perceber que o pensamento do filósofo John Dewey teve grande repercussão em território brasileiro e que vários movimentos contribuíram para sua entrada em nosso país. Mesmo atualmente não se pode descartar o avanço que trouxe no setor educacional daquela época. Suas idéias proporcionaram contribuições significativas para o trabalho desenvolvido por muitos professores no diaa-dia de muitas salas de aula. Ao estudar, por exemplo, a influência desse filósofo no trabalho com crianças pequenas em Centros de Educação Infantil percebeu-se muitas semelhanças entre o seu pensamento e o que é praticado nas escolas de educação para crianças pequenas. Ainda é preciso averiguar e aprofundar melhor essas pesquisas com o intuito de descobrir até que ponto a educação pensada por Dewey se encontra presente na educação da atualidade. 76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
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EL PENSAMIENTO DE RORTY ANTE LA CRISIS AMBIENTAL: Una réplica a C. A. Bowers Dr. José María Filgueiras Nodar1 RESUMO: As leituras sobre o impacto das idéias de Rorty na ética ambiental são um exemplo da incompreensão do trabalho de Rorty mostrado por muitos de seus críticos. Neste artigo vamos mostrar por que é assim, comentando a interpretação que C. A. Bowers fez a determinados aspectos do neopragmatismo rortiano. Ao mesmo tempo, tentaremos descubrir alguns aspectos positivos para a filosofia ambiental que surgen do pensamento de Rorty, quando visto de jeito mais caridoso. Palavras-chaves: Richard Rorty. Ética ambiental. C. A. Bowers. Neopragmatismo. Sentimentalismo moral. RESUMEN: Las lecturas acerca del impacto de las ideas de Rorty sobre la ética ecológica son un ejemplo de la incomprensión que muchos críticos muestran ante la obra de este autor. En este artículo trataremos de mostrar por qué esto es así, comentando la interpretación que realiza C.A. Bowers de ciertos aspectos del neopragmatismo rortiano. Al mismo tiempo, trataremos de encontrar algunos aspectos positivos para la filosofía ambiental que se desprenden del pensamiento de Rorty, cuando es visto bajo una luz más caritativa. Palabras clave: Richard Rorty. Ética ambiental, C.A. Bowers. Neopragmatismo. Sentimentalismo moral. ABSTRACT: Lectures about the impact of rortyan ideas on ecological ethics can be understood as an example of the miscomprehension of Rorty‟s work showed by many of his critics, and in this paper we will try to show why this is the case, by criticizing the interpretation of C.A. Bowers about certain features of Rorty‟s neopragmatism. At the same time, we will try to find out some positive aspects for environmental philosophy that Rortyan thought yields, when it is observed under a more charitable light. Keywords: Richard Rorty. Environmental ethics. C. A. Bowers. Neopragmatism. Moral sentimentalism.
En el ensayo autobiográfico “Trotsky y las orquídeas silvestres”, Richard Rorty se lamenta de la incomprensión que muchos otros filósofos manifiestan con respecto a su obra. Los intelectuales conservadores, afirma, lo consideran irracionalista e irresponsable, capaz de poner en peligro los valores morales de sus lectores. Por su parte, los izquierdistas lo ven como un pensador complaciente, cuya obra tiene poco que decir a los grupos vulnerables y en general se adapta bien al liberalismo propugnado por
1
José María Filgueiras Nodar es Doctor en Filosofía Contemporánea por la Universidad Autónoma del Estado de Morelos (México). Su tesis, presentada en enero del 2007 con el título de La reconstrucción historiográfica de la epistemología en Richard Rorty, fue dirigida por José Miguel Esteban Cloquell. Actualmente, es Profesor-Investigador de Tiempo Completo Titular A en la Universidad del Mar (Bahías de Huatulco, México). Correo electrónico: jofilg@huatulco.umar.mx 78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
gente como Ronald Reagan o los yuppies. Rorty (1998, p. 27) se toma estos ataques con humor: “si hay algo de verdad en la idea de que la mejor posición intelectual es aquella atacada con igual vigor por izquierda y derecha, entonces estoy en buena forma”. A nosotros nos preocupa que el ecologismo, una posición que en muchos sentidos corta transversalmente tanto a la izquierda como a la derecha, también comience a considerar a Rorty como un pensador frívolo, poco interesante, o peligroso, pues en nuestra opinión no es ninguna de las tres cosas. Para mostrar una de las interpretaciones que nos preocupan, hemos seleccionado un ejemplo especialmente significativo. Se trata del artículo “Assessing Richard Rorty´s ironist individual within the context of the ecological crisis”, en el cual su autor, C.A. Bowers, se pregunta si existe en la obra rortiana, concretamente en su tratamiento de la figura del ironista, algún aspecto que podamos utilizar para enfrentar la crisis ecológica. La lectura de Bowers no nos parece acertada en algunos puntos de relevancia, y en este artículo trataremos de mostrar por qué, al tiempo que intentaremos rescatar algunos aspectos que podrían desprenderse de una lectura más amistosa de la obra de Rorty y que nos parecen especialmente aprovechables para los debates actuales en ética ambiental. Con miras a lograr estos objetivos, hemos organizado el trabajo en tres partes: en (1) presentaremos la exposición de Bowers, mientras que en (2) y (3) expondremos algunas de nuestras críticas a la misma, primero a la lectura que Bowers hace de la teoría davidsoniana de la metáfora y después comentando ciertos aspectos de detalle, como el antropocentrismo de Rorty o la aceptación por parte de éste de la idea moderna del Progreso.
1. Según Bowers (2003, p. 6), el liberalismo rortiano, “una de las formulaciones más nihilistas y reaccionarias del liberalismo moderno”, tiene sus raíces en los puntos de vista de Donald Davidson acerca del lenguaje, especialmente en su teoría de la metáfora. Por ello, antes de presentar los comentarios de Bowers es necesario recordar muy brevemente dicha teoría, así como la lectura que Rorty hace de la misma. Como sabemos, Davidson (1990, p. 245) considera que las metáforas no tienen otro significado que el literal, de modo que “significan lo que significan las palabras (…) y nada más”. Davidson defiende su tesis de un modo negativo, criticando a quienes afirman la existencia de un significado metafórico más allá del literal. Su conclusión es
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que “lo que distingue a la metáfora no es su significado sino su uso: en esto es como la aserción, la insinuación, la mentira, la promesa o la crítica” (Davidson, 1990, p. 257). La lectura de Rorty comienza por reconocer que Davidson sitúa la metáfora “fuera del alcance de la semántica” (1996e, p. 224). Para entender esta frase, debemos recordar la famosa imagen quineana del ámbito del significado como un claro en la espesa selva del uso. Desde esta perspectiva, lo que interesa a Rorty es que la metáfora no está sola en ese espacio, sino que lo comparte con otros habitantes, entre los cuales se encuentran numerosos sonidos propios de la naturaleza, como los truenos o los ladridos. Este hecho le permite naturalizar la comprensión de las metáforas, al concebirlas “según el modelo de los acontecimientos no conocidos en el mundo natural –causas de cambio de creencias y deseos- en vez de según el modelo de las representaciones” (RORTY, 1996e, p. 224)2. Ahondando en esta idea, Rorty (1996e) presenta una tipología de lo que denomina „ruidos no conocidos‟ y señala lo que sucede cuando éstos se integran en el contexto de las prácticas lingüísticas habituales. Los casos que cita son los siguientes: (i) la primera vez que se escucha el canto de un pájaro desconocido por la ciencia; (ii) la primera vez que un poeta expresa alguna frase imaginativa; (iii) el primer uso intencional de una frase aparentemente falsa (como „el hombre es un lobo‟); y (iv) la primera aparición de una frase paradójica (como „la tierra gira alrededor del sol‟), que no obstante acabará por convertirse en una obviedad con el paso del tiempo. Cada uno de estos ruidos se integra de una manera diferente en las prácticas lingüísticas: (i) nunca adquirirá un significado no-natural, pero sí podrá ocupar un lugar en los relatos causales de las personas; (ii) amplía el repertorio lingüístico de quienes han leído o escuchado esa frase, modificando el comportamiento de las mismas, si bien de un modo sutil; al pasar a (iii) se entra en el sellarsiano espacio lógico de las razones, ya que cuando los hablantes se familiarizan con la frase, de modo que ésta comienza a ser usada (y no sólo mencionada), dicha expresión adquiere normatividad: puede considerarse correcta e incorrecta, puede incluirse en argumentos o citarse para justificar creencias, etc.; el caso (iv), por su parte, sirve a Rorty para expresar la diferencia entre las paradojas, que comienzan como conclusiones de argumentos y poco a poco van siendo utilizadas como premisas, y las metáforas, que aparecen sin razones que las justifiquen, pero que al 2
No entraremos, por el momento, en los detalles de la crítica rortiana a lo que él denomina „representacionalismo‟, cuyo comentario nos haría salir de los límites de este artículo. Recomendamos leer a McDermid (2000) y Filgueiras (2007b). 80 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
replicarse de persona a persona van cobrando sentido y, por así decir, literalizándose, de modo que cruzan la frontera entre las causas de las creencias y las razones para creer. El análisis de este proceso de literalización metafórica proporciona a Rorty un modelo para explicar la evolución cultural. Las metáforas aparecen sin tener un lugar definido en ninguno de los juegos de lenguaje en curso, pero sí tienen un papel relevante, en ciertos casos protagónico, en los que se juegan a partir de su nacimiento, juegos a cuya creación habrá contribuido de manera destacada la metáfora en cuestión. Así pues, las metáforas “amplían [nuestro] espacio lógico” (RORTY, 1996d, p. 169) cuando son literalizadas, es decir, cuando se convierten en metáforas muertas. Debido a ello, Rorty las considera el principal motor del cambio cultural: ninguna revolución en la ciencia, en las artes o en cualquier otro campo de la cultura puede darse en ausencia de la ampliación de las posibilidades descriptivas que suministran las nuevas metáforas. Probablemente los romanos se riesen la primera vez que escucharon a un cristiano decir que „el amor es la única ley‟, igual que muchos astrónomos tildaron de escandalosa la afirmación „la tierra gira alrededor del sol‟; siglos después, sin embargo, estas frases se consideraban como algo obvio e indudable. Lo que sucedió en ese intervalo fue que las metáforas tuvieron éxito, es decir, consiguieron que quienes las aceptaban pasaran a redescribir el mundo en función de las mismas. Las metáforas, puede decirse en espíritu rortiano, crean nuevos mundos culturales y por tanto nuevas personas y nuevas sociedades3. Dicho esto, podemos pasar ya a presentar los comentarios de Bowers. Según este autor, la relevancia de estudiar el modo en que Rorty lee la teoría davidsoniana de la metáfora radica en que dicha lectura nos permite entender a cabalidad la naturaleza contingente de cualquier lenguaje usado por los seres humanos. A su vez, la aceptación de la contingencia del lenguaje es uno de los elementos clave para entender la figura del ironista y éste, por su parte, es el elemento clave de la concepción rortiana de la sociedad. Así pues, si queremos entender el liberalismo de Rorty debemos comenzar por analizar el estudio de la metáfora realizado por Davidson. Un estudio que Bowers considera erróneo, sobre todo, debido a su tratamiento del lenguaje como un fenómeno independiente de la cultura, lo cual le impide dar cuenta del modo en que los patrones de ésta son vivenciados por los miembros de una cultura como parte de su naturaleza. Al respecto, este autor presenta unas reflexiones que 3
Esta es una de las tesis de fondo de Contingencia, ironía y solidaridad. El ensayo “Feminismo y Pragmatismo”, incluido en Verdad y Progreso, también ofrece un excelente ejemplo del funcionamiento de este mecanismo de literalización metafórica, aplicado a un problema político-moral. 81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
considera propias de la corriente principal de los estudios sobre la metáfora, encaminadas a mostrar que éstas funcionan de una manera diferente a la propuesta por Rorty y Davidson. Las metáforas, dice Bowers, sí poseen contenido cognitivo, y lo poseen porque proporcionan esquemas para la comprensión. Las metáforas raíz (o cosmovisiones, o paradigmas) de cualquier grupo cultural ejercen una gran influencia en el proceso de pensamiento analógico de sus miembros y, a través de éste, en el nivel del discurso y del comportamiento ordinario. Para ilustrar esta consideración toma como ejemplo a la cultura Kwakiutl, cuyo universo se organiza ontológicamente en torno a una metáfora de base: todos los seres vivos se encuentran inmersos en un proceso caracterizado por comer y ser comido por otros seres. Siguiendo a Stanley Walens, Bowers señala también que esta metáfora o principio sirve para relacionar entre sí a todos los habitantes de dicho universo, al tiempo que les atribuye a todos una cierta responsabilidad moral (en términos de controlar sus comidas). Otros ejemplos, como la comparación del universo con un reloj hecha por Johannes Kepler, o la referencia de William Harvey al corazón como una bomba, le sirven a Bowers (2003, p. 12) para defender la idea de que las metáforas “proporcionan esquemas que conectan el pensamiento/experiencia individuales con los niveles simbólicos más profundos de una cultura o grupo”. Una conexión, además, que se lleva a cabo sin que el sujeto sea consciente de ello. Bowers explica el paso de las consideraciones lingüísticas de Davidson-Rorty al terreno sociopolítico centrándose en la figura del ironista, alguien que, como decíamos, acepta la contingencia de su propio lenguaje último y consecuentemente se pregunta si está usando de una manera eficiente las metáforas disponibles en su entorno cultural, al tiempo que, como poeta fuerte trata de proponer nuevas y originales metáforas. Detrás del ironista se halla, como hemos dicho, una determinada visión de la contingencia que, en opinión de Bowers, transforma a las metáforas en meras herramientas sin contenido cognitivo alguno, susceptibles únicamente de un tratamiento instrumental. Y el ironista es la clave de la versión rortiana del liberalismo, en la cual el pegamento que mantiene unida a la sociedad es el reconocimiento de que todo individuo debe poder dedicarse libremente a la auto-creación, para lo cual necesita un mínimo de comodidades burguesas, que a su vez requieren de compromisos mínimos por parte de sus habitantes, generalmente respeto por los proyectos colectivos de búsqueda del bienestar. Basándose en esta lectura de Rorty, Bowers lanza una serie de críticas contra el 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
liberalismo rortiano, críticas que en última instancia tienen que ver con su incapacidad para enfrentar adecuadamente la crisis ecológica. Según Bowers, esta versión del liberalismo es un producto de numerosas presuposiciones provenientes de la tradición judeocristiana y también de la Ilustración. Una de ellas es la idea del Progreso. La influencia sobre Rorty de este mito tan arraigado en la civilización occidental, nos dice, se manifiesta en diversos motivos de su obra, como por ejemplo la victoria de los ironistas en su lucha con los metafísicos, la comparación que realiza entre el lenguaje y la evolución biológica y, de modo muy significativo, la relación del propio Rorty con la tradición, especialmente en estos tres aspectos:
La actitud “ilustrada” de Rorty, que siempre tiende a considerar a la tradición como un peso muerto y algo negativo.
La identificación del sentido común, que viene a significar poco menos que la aceptación acrítica de las normas existentes, con la tradición, que de este modo pasa a ser entendida como una fuente de autoridad ajena al individuo.
El hecho de que el propio Rorty se encuentra enmarcado en una tradición, la “tradición anti-tradición” (Shils, citado en BOWERS, 2003, p. 15), famosa por considerar ilegítimas a numerosas formas de conocimiento (como por ejemplo las teológicas y poéticas).
La figura del ironista, continúa Bowers, también refleja otra presuposición común a muchas variedades del liberalismo, como es que los individuos reflexivos actúan de forma buena. Este optimismo se refleja en el modo en que Rorty reconcilia el interés en la autocreación con la cuestión de la responsabilidad hacia los demás miembros del grupo social, a través de la conocida dicotomía entre lo público y lo privado, en la cual ninguno de los dos ámbitos tiene prioridad sobre el otro. Para Bowers, las posiciones morales de Rorty (que aquél considera relativistas 4) sólo podrían defenderse con base en la presuposición que acabamos de mencionar, la cual no está justificada si se atiende a los datos proporcionados por la historia. Otro aspecto de la concepción rortiana de las comunidades que reviste gran
4
Este es un punto que no trataremos de forma explícita en nuestros comentarios críticos. Para profundizar en el presunto relativismo de Rorty, tanto en el plano epistemológico como en el moral, recomendamos leer “Pragmatismo, Relativismo e Irracionalismo” y “Ética sin obligaciones universales”, incluidos en la bibliografía. 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
importancia a la hora de enfrentarnos con la crisis ecológica es que éstas, afirma Bowers, sólo incluyen en su seno a los seres humanos. Para Bowers, este hecho debe a la aceptación por parte de Rorty de la metáfora de un universo antropocéntrico, la cual ignora importantes aspectos ecológicos, como la interdependencia de los seres humanos con las demás formas de vida, ante los cuales el relativismo o nihilismo de Rorty comienza a perder pie. No es este el caso de otros pensadores, como Aldo Leopold, quien se atreve a proponer un absoluto moral expresado en términos de la comunidad biótica en su conjunto, o Gregory Bateson y su concepción ecológica de la mente, totalmente ajena al individualismo rortiano, que Bowers identifica con la visión aislacionista del ser humano propia de la tradición liberal. Según Bowers, ambos autores podrían ser citados como contrapunto del liberalismo antropocéntrico de Rorty, mostrándonos que éste no es, ni mucho menos, la única forma de ver el mundo. Las culturas primarias [primal cultures] constituyen, a juicio de Bowers, una alternativa aún más interesante a la visión liberal. A pesar de que estas culturas son muy diferentes entre sí, existen algunos rasgos compartidos por casi todas ellas, los cuales tienen que ver con el modo en que cada cultura se adapta a su entorno natural. Bowers señala tres características de estas culturas en las cuales podrían basarse las sociedades occidentales para crear nuevas formas de relacionarse con el medio ambiente. Fijándonos en ellas, dice, podemos apreciar en qué sentido las culturas primarias llevan ventaja sobre el pensamiento de Rorty (que es visto por Bowers como estereotípicamente occidental) a la hora de hacer frente a la crisis ecológica. Las tres características que destaca Bowers son las siguientes:
Los miembros de las culturas primarias no experimentan con nuevas tecnologías o ideas, ni tampoco ven el futuro como un ámbito de posibilidades en constante crecimiento. Al contrario, se preocupan por repetir los modelos que funcionaron en el pasado, de modo que sean capaces de garantizar la supervivencia de las generaciones futuras.
Las metáforas de fondo de las culturas primarias sitúan al ser humano dentro del mundo natural, sin separarlo o ponerlo a cargo del mismo, sino subrayando su interdependencia con las demás formas de vida. Este hecho obliga a quienes se guían por consideraciones tecnológicas a nunca perder de vista las morales y espirituales.
Las culturas primarias prefieren desarrollar la danza, la literatura y el arte, lenguajes 84 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
espirituales que muestran cómo vivir en equilibrio con el medio, en detrimento de la actividad política, que Bowers considera como lo característicamente occidental.
Este último aspecto nos conduce a las reflexiones finales de Bowers: la figura rortiana del ironista promueve una mayor politización de la vida cultural, y esto parece ser justo lo contrario de lo que ocurre en las sociedades capaces de mantener relaciones equilibradas con el medio ambiente natural. Cuestionar las prácticas sociales que promueven dichas relaciones conlleva el riesgo de relativizarlas, con lo cual éstas perderían toda su autoridad. El ejemplo que pone Bowers es muy claro al respecto:
Cuestionar la cosmología y las ceremonias que mantienen el sistema del templo para regular el agua de irrigación que es esencial para los ecosistemas de Bali (…) puede crear más individuos ironistas (el objetivo de Rorty) pero amenazaría los patrones de producción de comida que dependen de la compleja integración de ciclos sociales y naturales desarrollada desde hace varios siglos por los balineses (BOWERS, 2003, p. 20).
De este modo, las bases epistemológicas del pensamiento de Rorty llevarían a aumentar el experimentalismo político, en vez de sustentar la política en una moral que defienda las relaciones equilibradas con la naturaleza. Según Bowers, entonces, y ésta parece ser la principal conclusión de su texto, las culturas primarias aparecerían como mejores guías que Rorty para afrontar la crisis ecológica.
2.
Antes de comenzar nuestra crítica, quisiéramos exponer un punto en el que coincidimos plenamente con Bowers5: la crisis ambiental es el reto más decisivo que la humanidad enfrenta en nuestros días, y presumiblemente lo seguirá siendo en las próximas décadas. Al respecto, nos parece que el recuento de problemas ambientales que realiza al principio de su artículo resulta muy pertinente, habida cuenta que éstos no han cesado de incrementarse desde la publicación del mismo. Sin embargo, y a pesar de que nosotros también nos sentimos extrañados ante la aparente falta de preocupación de Rorty por los temas ambientales, al menos si lo calificamos por la escasez de referencias a dicha problemática, no estamos de acuerdo con Bowers (2003, p. 7) cuando afirma 5
La extensa producción de Bowers tiene muchos aspectos interesantes, y no es nuestra intención juzgarla, mucho menos a partir de un único artículo; lo que queremos hacer en este texto es tan sólo señalar algunos aspectos de su lectura de Rorty que no nos parecen correctos. 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
que las ideas de Rorty “deben ser juzgadas” ante el trasfondo proporcionado por la crisis ambiental. Reconocemos, desde luego, lo acuciante de enfrentar esta crisis; pero también que la obra de los filósofos puede ser evaluada haciendo uso de muy diferentes criterios, no sólo según la utilidad para afrontar un determinado problema de su época, por importante que éste sea. En el caso de un pensador pragmatista, que pone esta contribución de la filosofía como una de las pocas cosas rescatables de la disciplina, extraña la despreocupación por un tema tan destacado, pero ello no debería hacernos olvidar que, en principio, cada filósofo es libre de tratar los temas que desee. Quizá, pudiera aventurarse, Rorty crea que existen problemas cuya resolución es más urgente. A juzgar por algunas de sus declaraciones, tal hipótesis resulta plausible6. Para comenzar nuestra crítica, quisiéramos mencionar un par de aspectos que, creemos, estarán presentes a lo largo de todo nuestro comentario. Primero, debemos recordar que Bowers toma una parte muy pequeña de la obra de Rorty como blanco de sus críticas. Contingencia, ironía y solidaridad, pese a su importancia, es sólo una etapa (¿una “campaña”7?) dentro de una obra compleja y con un gusto manifiesto por moverse rápidamente entre tema y tema. Debido a ello, observar otros lugares de la misma nos permitirá profundizar en algunas de las ideas vertidas en el libro que Bowers toma como referencia, matizando a veces su significado. El segundo aspecto que compromete la interpretación de Bowers, especialmente en lo que se refiere a la lectura de la teoría davidsoniana de la metáfora hecha por Rorty, de la que hace depender el liberalismo rortiano es que, a nuestro juicio, no se puede entender adecuadamente dicha lectura sin conocer las líneas generales de la reconstrucción de la historia de la filosofía hecha por Rorty (véase FILGUEIRAS, 2007a). Dedicaremos unas líneas a exponer esta reconstrucción. Como sabemos, nuestro autor entiende el desarrollo de la filosofía occidental como la historia de una rebelión de tintes parricidas (véase RORTY, 2000c, pp. 33-38), en la cual un grupo de pensadores, a los que denomina globalmente pragmatistas se levanta contra una tradición opresiva, la tradición platónico-kantiana. Esta tradición, según Rorty, se habría vertebrado en torno a tres concepciones, las cuales vinculan a 6
Por ejemplo, cuando Andrzej Szahaj (2006, p. 160) le pregunta a Rorty si es optimista o pesimista con respecto al futuro, nuestro autor afirma: “De hecho, muy pesimista (…) No veo cómo se va a evitar una guerra nuclear o cómo las naciones pobres se elevarán al nivel de las ricas”. Cf. Stanczyk (2006) para ver más ejemplos de los problemas que parecen preocupar a Rorty en mayor medida que la crisis ambiental. 7 Véase Rorty (1998b) y Esteban Cloquell (1997) para ahondar en la caracterización de las campañas y su relación con los movimientos. 86 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Platón con Descartes, y a ambos con Kant, arrastrando a todos sus seguidores y herederos a un laberinto de pseudoproblemas (como el problema del mundo externo, la distinción mente/materia o las diversas polémicas sobre el realismo). Dichas concepciones son: (i) el esencialismo, o la idea, expresada en términos rortianos, de que las cosas sólo pueden ser descritas de una sola manera; (ii) el fundacionalismo, es decir, la idea de que el conocimiento necesita una base más fuerte sobre la cual apoyarse; y por último (iii) el representacionalismo, la idea de que conocer es lo mismo que representar adecuadamente la realidad. Los pensadores etiquetados por Rorty como pragmatistas han ido desmontando pacientemente cada una de estas ideas, en una historia que sería demasiado larga como para resumirla aquí. Baste con decir que Rorty incluye en este grupo no sólo a los pragmatistas clásicos como Peirce, James o Dewey, sino también a autores como Hegel, Heidegger o Derrida. A efectos de nuestra exposición, interesa recorrer brevemente el camino de la crítica a la tradición platónicokantiana dentro de lo que por comodidad podemos denominar 'filosofía analítica'. La filosofía analítica, cuyo nacimiento es visto por Rorty (2001) como un retorno al kantismo y a su intento por encauzar a la filosofía en el seguro camino de la ciencia, después de los excesos provocados por la influencia de Hegel, tiene como pensadores más destacados en sus orígenes a Bertrand Russell y Ludwig Wittgenstein. Es en la obra de éste donde se puede percibir con claridad el paso de una posición platónico-kantiana (por usar la terminología de Rorty) a otra más afín con el pragmatismo (véase p. ej. RORTY, 1993). Concretamente, apreciaremos este movimiento al analizar, desde una óptica rortiana, el paso de la teoría pictórica del lenguaje del primer Wittgenstein (2001) a la teoría de los juegos de lenguaje propuesta por
el
segundo
(WITTGENSTEIN,
1999).
En
ésta,
se
ha
superado
el
representacionalismo que vinculaba a Wittgenstein con la tradición kantiana, y se ha sustituido por algo, que aunque Rorty se resiste a considerar plenamente pragmatista, abre el camino a ulteriores aportes en esta línea. Davidson será, en opinión de Rorty (véase por ejemplo RORTY 1998d), el autor que más lejos va a llevar esas intuiciones pragmatistas de Wittgenstein, aunque Quine (1995) y Sellars (1956) le ayudarán en esta tarea. El primero con la crítica de los dos dogmas del empirismo, que elimina para siempre la diferenciación entre verdades analíticas y verdades sintéticas, y Sellars con la conocida crítica del mito de lo dado, que hace tambalearse la idea de que la experiencia sensorial, por sí misma, proporciona una base a las pretensiones de conocimiento.
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La obra de Davidson es vista por Rorty como la culminación de la rebelión pragmatista (véase RORTY, 1996d; FILGUEIRAS, 2007a). Davidson es para nuestro autor quien da el golpe decisivo a la tradición platónico-kantiana y nos abre a un mundo filosófico nuevo. Un mundo en el cual el lenguaje ya no es visto como un tertium quid entre el yo y las cosas, y que debido a ello pone al ser humano en contacto directo con su entorno. Un mundo que sólo admite a la causación como relación válida entre yo y entorno, y que por ello considera a la representación, de un modo plenamente antiesencialista, como una especie de "quinta rueda" (RORTY, 1996c, p. 141). Un mundo, también, que resulta compatible con el evolucionismo darwiniano, de modo que facilita la naturalización de la filosofía. Por ejemplo, cuando Davidson sitúa a la metáfora “fuera del alcance de la semántica”, la ubica en continuidad con otros muchos fenómenos naturales, un aspecto del que Rorty es plenamente consciente y que considera altamente destacable. Así, en el caso de la teoría davidsoniana de la metáfora, el punto relevante, y probablemente el que Rorty toma más en cuenta, es que las metáforas no representan nada. Davidson no niega que las metáforas produzcan los efectos que usualmente suelen señalarse. Aceptando un aspecto de la caracterización de Max Black, por ejemplo, nos dice que “proporcionan una especie de lente (…) a través de la cual vemos los fenómenos relevantes” (DAVIDSON, 1990, p. 260). Lo que Davidson (1990, p. 260) discute es que las metáforas hagan “su trabajo en virtud de tener un significado especial” (Rorty diría „representacional‟). Las metáforas no tienen necesidad de conducir un mensaje oculto: “como una imagen o un golpe en la cabeza, una broma o un sueño o una metáfora pueden hacernos apreciar un hecho, pero sin representar o expresar ese hecho” (DAVIDSON, 1990, p. 260, énfasis añadido). Si exigimos que para atribuir contenido cognitivo a una metáfora es necesario que ésta represente algo, entonces Davidson niega que las metáforas posean contenido cognitivo. Pero probablemente este criterio se vea como demasiado estrecho al reparar en que (i) toda metáfora tiene un significado literal, como adecuadamente señala Davidson, y (ii) las consecuencias o efectos de ese significado literal son extremadamente importantes para el desarrollo de nuevos paradigmas científicos y nuevas formas sociales; en suma, de nuevos mundos culturales. Desde esta perspectiva, las metáforas irían mucho más allá de su contenido cognitivo, especialmente si éste se define de una manera tan restringida. Reparar en las consecuencias, además, nos hace ver cómo algunos aspectos citados 88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
apreciativamente por Bowers son compatibles con la visión rortiana. Sucede esto cuando, por ejemplo, comparamos las afirmaciones de Walens sobre los Kwakiutl, con la lectura kuhniana del desarrollo de la ciencia, que Rorty no sólo acepta en el marco de los estudios sobre la ciencia, sino que parece extrapolar a la totalidad de la cultura, convirtiéndola así en uno de los ejes de su pensamiento. Según Kuhn (2004) los paradigmas guían la actividad de los científicos, les hacen ver las cosas de una determinada manera, modificando sus experiencias a un grado comparable al de una conversión, y hasta los ponen a trabajar en mundos diferentes. A primera vista, parece posible un acercamiento entre la teoría de Rorty y la propuesta de Bowers, especialmente teniendo en cuenta la importancia que aquél otorga a ciertas concepciones kuhnianas. Por ello, creemos que las consideraciones de Bowers sobre la metáfora no constituyen necesariamente un punto de fricción destacado entre ambos autores. Desde luego, las tesis de Rorty acerca de la evolución cultural presentan problemas, pero éstos no parecen ser relevantes para lo que interesa a Bowers. Una consideración en la misma línea: en opinión de Bowers (2003, p. 10) Rorty considera que las metáforas deben evaluarse en “términos puramente instrumentales”. Estamos de acuerdo en que la visión de Rorty con respecto a este tema puede caracterizarse como instrumentalista, pero no nos parece que lo sea en el sentido banal del término, sino en un sentido semejante al de Dewey. Que éste es uno de los autores a los que más admira Rorty, así como uno de los que le proporcionan más temas a nuestro autor (véase FILGUEIRAS, 2007a), es algo que con dificultad puede ponerse en duda. Desde luego, sí existen problemas con la lectura rortiana de Dewey (lo mismo que con su versión particular del pragmatismo); tales dudas tienen que ver, en muchas ocasiones, con las distorsiones que Rorty introduce en los autores estudiados, con el fin de convertirlos en portavoces de su propia filosofía. Sin embargo, también hay textos en los que Rorty ofrece consideraciones muy próximas al pensamiento de Dewey, lo cual muestra de modo patente su afinidad con el mismo. “La indagación intelectual como recontextualización” es sin duda uno de ellos. En este escrito, Rorty nos ofrece, como adecuadamente lo caracteriza Esteban (2006: 138), una “teoría holística de la dinámica de creencias” de corte netamente deweyano. Esta manera de concebir la investigación, aunque claramente instrumentalista, es muy difícil de adecuar al sentido trivial del término „instrumentalismo‟. Desde esta perspectiva, las metáforas, por supuesto, son instrumentos para el cambio cultural, pero no meros instrumentos en el sentido trivial
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que parece adjudicarles Bowers. Para cerrar este apartado, quisiéramos también expresar nuestra extrañeza ante un aspecto de la interpretación que de Davidson nos da Bowers. Nosotros no creemos que Davidson considere al lenguaje como un fenómeno independiente de la cultura. Ya que justificar esta impresión sería una tarea bastante ardua, nos apoyaremos en las declaraciones de un gran conocedor de la obra de Davidson, como es Carlos Moya. Para este autor, “el carácter social del lenguaje y del pensamiento es subrayado por Davidson con toda claridad. Sólo en el marco de la relación intersubjetiva en un mundo común a los sujetos puede haber pensamiento, conceptos y significado” (MOYA, 1992, p. 36). Creemos que partiendo de este carácter social del lenguaje no sería difícil dar el salto a la dimensión cultural del mismo, por lo que gran parte de las críticas de Bowers dejarían de ser aplicables. La compatibilidad de la lectura rortiano-davidsoniana con ciertos aspectos destacados por Bowers constituiría también un apoyo para esta idea. Una vez más, como ya hemos dicho, se mostraría que la crítica de Bowers en este punto no es demasiado relevante para el tema.
3.
Dicho esto, expondremos ahora, de un modo sintético, nuestras principales críticas a algunos aspectos concretos de la lectura de Bowers, comenzando con la tesis que culmina su exposición: las culturas pre-modernas son mejores guías que Rorty a la hora de enfrentar la crisis ecológica. Lo primero que debe recordarse al respecto es que no todas las culturas premodernas han sido capaces de desarrollar formas armónicas y sustentables de relacionarse con el ambiente. Desde luego, existen numerosos casos de culturas que sí lo han logrado (un ejemplo destacado serían los Hopi de Arizona, tal y como nos cuenta HUGHES, 2001, p. 27), pero hay otros muchos ejemplos en sentido contrario. Al respecto, Witold Jacorzynski nos recuerda casos como la completa deforestación de la isla de Pascua o la extinción de diversas especies: los perezosos en Puerto Rico e Hispaniola, los moa en Nueva Zelanda, las aves-elefante en Madagascar, etc. Su conclusión, que nos parece aceptable, es que “la evidencia paleoarqueológica muestra que algunas de las sociedades, no occidentales y no industriales, se habían maladaptado a su medio ambiente y en consecuencia contribuyeron a la extinción de los animales, deforestación, degeneración de las tierras y/o a la destrucción de sus propias 90 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
sociedades” (JACORZYNSKI, 2004, p. 190). Esta clase de consideraciones deberían constituir una advertencia frente a la tesis general de Bowers, la cual debería matizarse en mayor medida. Aun dejando de lado esta primera advertencia, nos encontramos, además, con que la tesis de Bowers plantea problemas acerca de su puesta en práctica. Tal y como muestran Stables y Scott (2001, p. 221), hay que responder a dos cuestiones básicas: ¿se trata de “recrear por completo los contextos culturales” de las culturas primarias, convirtiendo nuestras sociedades en premodernas? ¿O más bien se trata de adaptar algunos elementos provenientes de las culturas primarias y combinarlos con otros elementos, tanto modernos como postmodernos, de nuestra cultura? Es imposible contestar afirmativamente a la primera pregunta, como acertadamente reconoce el propio Bowers (citado en STABLES y SCOTT, 2001, p. 271), al afirmar que “no podemos copiar a las culturas premodernas directamente”. Querámoslo o no, buena parte del mundo ya ha pasado por la modernidad, así como por la Revolución Industrial, y, en palabras de Stables y Scott (2001, p. 276), “no podemos revivir los sueños de sostenibilidades pasadas”. Esto, creemos, es algo poco susceptible de ponerse en duda. En cuanto a la segunda pregunta, parece que constituye un legítimo campo de aplicación de las concepciones rortianas, puesto que nos adentra en el terreno de la negociación y el pluralismo propio de las sociedades democráticas. Para decidir qué elementos se eligen y cuáles se excluyen, se necesita un diálogo entre diferentes posturas y, previamente, la existencia de diversas posturas desde las que discutir. Este segundo requisito se cumple de manera natural en una sociedad liberal como la defendida por Rorty: los ironistas y los poetas fuertes constantemente propondrán nuevas descripciones, capaces de arrastrar la cultura en una u otra dirección. Ofrecemos un ejemplo que se aplica a la discusión en curso: como sabemos, la ecología profunda se autodenomina así en oposición a la ecología superficial (véase NAESS, 1973), caracterizada por su antropocentrismo. En este sentido, y sin ahondar en los detalles conceptuales ni históricos, el esquema puede adaptarse fácilmente a la perspectiva rortiana: había una corriente ecologista caracterizada por lo que Naess consideraba cierta superficialidad, y éste (un poeta fuerte) alza la voz para separarse de la misma, iniciando así una tendencia que ha dado grandes frutos. Si, por poner un ejemplo, a Naess no se le hubiera permitido exponer sus puntos de vista, jamás habría aparecido dicha tendencia. Más aun, si se hubiera censurado a gente como Rachel Carson,
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Christopher Stone, Lynn White Jr. y tantos otros adelantados del pensamiento ambiental, es posible que nunca hubiera aparecido un movimiento ecologista. Teniendo en cuenta ejemplos como los citados, creemos que es fácil ver por qué la postura rortiana sobre el cambio cultural tiene más ventajas que inconvenientes, incluso a la hora de enfrentar la crisis ecológica. Pasando ahora al primer requisito de los que habíamos señalado arriba, cabe recordar que uno de los puntos más fuertes del pensamiento moral de Rorty es, precisamente, el pluralismo y la consiguiente apertura de su filosofía al diálogo, a la conversación. Como afirma Rafael del Águila (1998, p. 13) en su “Introducción” a Pragmatismo y Política, la principal estrategia de Rorty a la hora de enfrentar problemas sociales (o para el caso ecológicos, los cuales tienen una fuerte componente sociopolítica) “se condensa en una sola pregunta: «¿Se le ocurre a usted algo mejor?», discutámoslo”. Al cuestionar la utilidad del experimentalismo rortiano, Bowers aparentemente cierra las puertas a esta clase de diálogo, o lo limita en gran medida. Quizá resulte oportuno retomar aquí los comentarios de Luc Ferry (1992, p. 33), quien como sabemos, considera que la ecología profunda lleva implícitos algunos gérmenes de fundamentalismo y que por ello puede acabar “expresando opiniones totalmente dogmáticas, y aun francamente autoritarias, pese a que la mayoría de sus líderes profesen opiniones pacifistas”. Si leemos correctamente a Bowers, éste acusa a Rorty de ser reaccionario precisamente por negarse a seguir de manera ciega la autoridad de la tradición (al menos de las tradiciones con un trasfondo de relaciones armónicas con la naturaleza). Así expresada, es una acusación bastante extraña, pero que se entiende bien teniendo como marco el presunto fundamentalismo citado por Ferry. No estamos seguros de ello, pero tal vez sea cierto que algunos aspectos de la ecología profunda pudiesen contener semillas de dicho fundamentalismo. Desde luego, la marcada distinción en el diagrama del delantal de Naess (2005) entre el nivel de las cosmovisiones y los restantes niveles no da pie para una interpretación semejante. Pero algunas de las críticas de Bowers a Rorty nos hacen ver la plausibilidad de esta acusación. Si no se puede dialogar sobre (o incluso politizar) ciertos temas, parece que el único camino para lograr cambios sociales es la coerción. En este punto, y a pesar de que habría bastante que discutir acerca de ello, nos parece más apropiada la postura rortiana, en concreto su apuesta por el diálogo y la educación sentimental, de la que hablaremos enseguida. 92 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Bowers podría replicar que sus acusaciones se deben al hecho de que ve a Rorty envuelto en muchos de los prejuicios más perjudiciales de la Ilustración, como el mito del Progreso o el antropocentrismo. Sin embargo, esto tampoco nos parece aceptable. Por un lado, la modernidad, a pesar de sus numerosos elementos negativos, no puede condenarse globalmente. Habría que separar con cuidado aquellos aspectos dignos de condena de aquellos otros que pueden rescatarse e incluso ser celebrados. Esta consideración, a nuestro juicio, está próxima al tono de ciertas partes del artículo de Stables y Scott (2001). Por otro lado, no creemos que Rorty cargue con tantos prejuicios modernos como parece asumir Bowers. Respecto al mito del Progreso, es muy poco lo que hay que decir, teniendo en cuenta la definida y rotunda apuesta de Rorty por la contingencia, presente en toda su obra. Bowers (2003, p. 13) entiende las referencias de Rorty a la evolución biológica como expresiones de un presunto “sentido de progreso” que lo anima, pero es muy difícil ver las cosas de este modo cuando reparamos en el tratamiento rortiano de la contingencia, que precisamente exagera el hecho de que no hay criterios estrictos para juzgar las novedades que continuamente van apareciendo8, de modo que hablar de tal sentido de progreso tiene, valga la redundancia, poco sentido. Quien lo dude, debería leer sus reflexiones sobre la relación de la filosofía con el futuro, por ejemplo las que expone en “La verdad sin correspondencia” (véase RORTY, 1997, pp. 14-15 y 35-37). En cuanto al antropocentrismo, Rorty expresa su posición de un modo bastante claro en uno de los textos clave de su pensamiento moral, “La justicia como lealtad ampliada”, con un ejemplo referido a los derechos de los animales no-humanos. Casi todos, dice, damos en parte la razón a los vegetarianos, y pensamos que los demás animales también tienen derechos. Pero si resultase que, debido a una mutación, alguna especie animal de repente se volviese una amenaza para la supervivencia de los seres humanos, nadie protestaría demasiado ante el exterminio de dicha especie. Cuando las cosas van bien, tendemos a ampliar el círculo de nuestras lealtades; pero cuando se ponen difíciles, nos vamos cerrando en círculos cada vez más excluyentes, llegando a limitarnos, en última instancia, a nuestros familiares o seres más queridos. Como sabemos, Rorty propone un mecanismo para evitar este proceso de cerrazón y aumentar la capacidad inclusiva de nuestros círculos: la educación sentimental. Es cierto que cuando Rorty se refiere a este mecanismo pone ejemplos como las mujeres, los 8
Muchas de las críticas a Rorty, en particular las realizadas en los terrenos de la epistemología y de la ética, se centran precisamente en este hecho. 93 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
afroamericanos o los gays, es decir, ejemplos de seres humanos (véase p.ej. RORTY, 2000a). Pero no es difícil extender las consideraciones de modo que el círculo se amplíe hasta incluir a todos los seres sentientes, a todos los seres vivos e incluso a los elementos abióticos que sustentan a éstos. En el mundo de hoy, tal ampliación del círculo parece estar produciéndose ya de manera efectiva, como muestra la mayor preocupación del público por los problemas ambientales, destacada por diversos autores, así como la inclusión de cuestiones ecológicas en las agendas políticas nacionales e internacionales (véase STABLES y SCOTT, 2001). A nuestro juicio, el recurso a la educación sentimental como herramienta para lograr una ampliación del círculo de nuestras lealtades morales en una dirección no antropocentrista es un aspecto del pensamiento de Rorty que sin duda tiene serias consecuencias al nivel de la educación ambiental y que no se ha estudiado lo suficiente. Asimismo, debemos recordar también que el antropocentrismo no es necesariamente un impedimento para ser conscientes de la crisis ecológica y luchar contra la misma. Los resultados de las investigaciones sociales prestan apoyo a esta idea; así, Kempton et al. (1995) encuentran que un 97% del público general entrevistado en su estudio está de acuerdo con la idea de que debemos proteger el ambiente pensando sobre todo en nuestros hijos. Por su parte, Minteer y Manning (2003) hallan que la preocupación por las generaciones futuras es la ética ambiental que genera un mayor grado grado de acuerdo entre los entrevistados, así como la considerada de mayor importancia. Datos como estos nos muestran que, en la práctica, el antropocentrismo no es por sí mismo un obstáculo para la preocupación por los problemas ambientales. A un nivel más teórico, sabemos también que en el pensamiento ambiental existen posturas coherentes y merecedoras de interés que parten, precisamente, del antropocentrismo. El pragmatismo ambiental (véase LIGHT y KATZ, 1996; Light, 2003), que presume de su agnosticismo con respecto a la cuestión del valor intrínseco, y que trata de convertir a la filosofía ambiental en una fuerza capaz de ayudar a la resolución de los problemas ambientales, podría ser un buen ejemplo de estas posturas. Aunque sin duda se necesitaría de mayor elaboración, creemos que el pragmatismo ambiental presenta numerosos puntos de contacto con la versión rortiana del pragmatismo, y que por ello pueden ser consideradas compatibles. Esto sería un punto que daría apoyo a nuestras consideraciones. Han quedado pendientes nuestros comentarios acerca de las dos últimas razones 94 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
que ofrece Bowers para justificar su consideración de que las culturas premodernas son más útiles que el pensamiento de Rorty a la hora de enfrentar la crisis ecológica, a saber, (i) la existencia de cosmovisiones que destacan la interdependencia de humanos y entorno, y (ii) su preferencia por lenguajes como la literatura y el arte. Respecto al primer punto, creemos que el darwinismo de que hace gala Rorty en numerosos lugares de su obra nos muestra su aceptación de una cosmovisión naturalista, que trata de llevar hasta las últimas consecuencias en el terreno filosófico. A pesar de los posibles resabios antropocentristas con los que todavía pueda cargar, creemos que la aceptación del evolucionismo ubica a la filosofía rortiana en un camino de fructíferas posibilidades para el tratamiento de la crisis ecológica. Un camino, además, en el que está acompañado por grandes pensadores pragmatistas, como Dewey, cuyo concepto de situación derriba la vieja dicotomía entre sujeto-objeto, haciéndonos ver la integración de ambos en una sola unidad, o Davidson, cuyas aportaciones en esta línea ya hemos destacado arriba. En referencia a (ii), sólo quisiéramos recordar que, cuando Rorty especifica los medios a través de los cuales llevar a cabo la educación sentimental, habla siempre de cosas como reportajes periodísticos, películas u obras literarias, y no de leyes, tratados políticos o argumentaciones filosóficas. Así pues, lo que Bowers muestra como dos aspectos ventajosos de las culturas premodernas, resultan ser puntos en común con el pensamiento rortiano. Unidos a la discusión previa sobre el experimentalismo y el diálogo, creemos haber mostrado en qué medida la interpretación de Bowers nos parece desencaminada, al tiempo que hemos destacado también ciertos rasgos positivos del pensamiento de Rorty. Y es que, después de toda esta exposición, quisiéramos finalizar recalcando que, a pesar de ser cierto que Rorty no ha mostrado en sus textos demasiado interés por los problemas ecológicos, bastantes aspectos de su pensamiento son perfectamente aplicables a dichos problemas. Aunque nuestro principal empeño en este caso era defender a Rorty de una lectura que no nos parecía acertada, creemos necesario unirnos a quienes, como Stables y Scott, subrayan que Rorty puede ser entendido como un pensador tan útil como cualquier otro (incluyendo a quienes asumen y defienden las concepciones de las culturas primarias) para enfrentarnos a la crisis ecológica. El pluralismo y la democracia, a los que Rorty ha defendido con tanto empeño a lo largo de su vida, así como su consistente apuesta por la conversación y la educación sentimental son por sí mismos algunos de los caminos más efectivos para lograr
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cambios en las sociedades, y por ello merecen ser rescatados en el crítico contexto al que nos enfrentamos. Este rescate puede necesitar de cierta ayuda teórica, proveniente por ejemplo del post-humanismo propuesto por Stables y Scott o del pragmatismo ambiental de Light y Katz, entre otras muchas opciones, pero no debería excluirse de antemano, como parece pretender Bowers.
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AGRADECIMIENTOS Agradecemos a Ileana Conde Rubio, la jefa de la biblioteca del campus de la Universidad del Mar en Huatulco, su gran ayuda a la hora de localizar bibliografía escurridiza.
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LIBERDADE INDIVIDUAL E A DESPOLITIZAÇÃO DAS ESCOLHAS: uma reflexão Amana Rocha Mattos
1
RESUMO: Tomando as questões levantadas no documentário “O veneno está na mesa”, de Silvio Tendler (2011), relacionadas ao uso de agrotóxicos no Brasil e seu impacto sobre a população, proponho uma reflexão sobre a valorização da liberdade individual enquanto liberdade de escolha do indivíduo, pensando como essa noção de liberdade afasta os cidadãos de questões de interesse coletivo – e, consequentemente, do campo da política. Palavras-chave: Liberdade, escolha, individualismo, política ABSTRACT: Addressing the questions raised by Silvio Tendler's documentary "O veneno esta na mesa" (2011) regarding the use and population impact of agrotoxins in Brazil, I suggest an reexamination of the valorization of individual freedom as a freedom of choice, and how this conception of freedom divides citizens from collective pursuits and, consequently, the political realm. Key-words: Freedom, choice, individualism, politics Em
nossa
sociedade
atual,
o
reconhecimento
dos
cidadãos
passa,
invariavelmente, pela liberdade exercida pelos indivíduos em suas vidas privadas e em suas escolhas. Isso significa que, no mundo em que vivemos, aqueles que são vistos como mais livres são aqueles que têm mais espaço garantido no espaço público, nas relações sociais, além de gozarem de mais prestígio. O uso do termo “livre”, aqui, não é feito sem delimitação de seu sentido: ser livre no contemporâneo é uma noção complexa, que traz as marcas da concepção de liberdade própria da teoria liberal, assim como do projeto filosófico iluminista. Essas marcas se misturam aos sentidos que vão sendo dados à noção de liberdade no seu uso corriqueiro, na apropriação dessa ideia feita pelas pessoas em suas vidas. Entretanto, quando se fala em liberdade hoje, é possível identificar a influência direta dessas duas correntes teóricas – teoria liberal e filosofia iluminista – nos sentidos dados ao termo. No que diz respeito à influência liberal, a liberdade se aproxima da independência individual, da possibilidade de fazer escolhas ilimitadas, de não ser constrangido ou impedido por outras pessoas ou grupos. Em relação à influência iluminista, ser livre está relacionado à autonomia, à capacidade de tomar decisões 1 Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sou psicóloga, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pesquiso os sentidos que jovens contemporâneos têm de liberdade a partir da discussão do conceito na teoria liberal e das críticas a esse conceito realizadas pela teoria crítica feminista e por autores da democracia radical. Email: amanamattos@gmail.com . 99 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
racionais e de se responsabilizar por elas. É certo que em nosso cotidiano essas referências conceituais se fazem presentes, mas como linhas que vão costurando o que se entende por liberdade nas experiências ordinárias. Essa “costura” vem me intrigando há tempos, e nos últimos anos me dediquei a pesquisar o que os jovens, especificamente, entendem por liberdade (MATTOS, 2011). No caso dos jovens, o problema da liberdade está atravessado por questões que se colocam para suas experiências enquanto jovens: como posso ser livre se dependo de alguém? Como vou me responsabilizar por minhas escolhas se tenho responsáveis? Como afirmar aquilo de que gosto de forma legítima, se o lugar que ocupo na sociedade é de alguém que, de certa forma, ainda não fala propriamente por si? O que é curioso nos resultados que obtive no trabalho de campo com os jovens – a saber, que eles reconhecem que ser “totalmente livre” é uma ficção, pois sempre se depende de alguém, sempre se está ligado a outras pessoas – é que isso também se aplica aos adultos, a esse momento da vida em que se estaria credenciado à participação na sociedade e em que o sujeito é capaz de fazer suas escolhas com responsabilidade. De um lado, a insistente valorização de um modelo de indivíduo totalmente livre e independente; de outro, os problemas que a ação livre coloca para a relação com o outro, para a ideia de mútua dependência entre os sujeitos. A pergunta que tenho me feito constantemente é: o que fica de fora da ideia de indivíduo livre enquanto alguém que faz escolhas individualmente e se responsabiliza por elas?
Pensar a noção de indivíduo é central para qualquer estudo que pretenda discutir a sociedade contemporânea. Tal como uma chave para o entendimento de todos os fenômenos sociais, políticos e culturais, a noção de indivíduo moderno vem, há pelo menos três séculos, orientando as ciências humanas na explicação do homem. Para aqueles que, como eu, se encontram no campo da Psicologia, a noção de indivíduo é não apenas um lastro, mas um ponto de partida e, muitas vezes, uma linha de chegada. Tradicionalmente, a Psicologia se esmerou por explicar as motivações e as emoções, a percepção, o pensamento e a linguagem do indivíduo (deixando de fora, muitas vezes, a discussão de fenômenos sociais e coletivos mais complexos). Mais do que isso, a Psicologia moderna se dedicou a explicar a formação, o desenvolvimento normal do indivíduo, até que ele chegue a ser um cidadão. 100 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Toda essa aposta moderna no indivíduo como motor da sociedade tem consequências. Como ressalta Benjamin Constant (1985) em seu texto “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, de 1815, a valorização da liberdade individual e da esfera privada é uma característica das democracias modernas, enquanto que a democracia na Grécia Antiga era marcada pela busca da igualdade política entre seus cidadãos e pela preocupação destes com as matérias públicas, que diziam respeito à polis. Ao ressaltar essa diferença, Constant adverte para as consequências da valorização da vida privada na modernidade: envolvidos com a realização pessoal e com a garantia de suas liberdades (de ir e vir, de expressão, de crença...), os indivíduos correm o risco de se desinteressarem das questões coletivas, dos problemas do espaço público, se limitando a uma relação utilitarista com a política, em que esta seria o palco de disputa, pela via da representação, de diferentes interesses individuais, organizados em grupos e partidos. Dois séculos depois da publicação desse texto de Constant, vemos que suas preocupações continuam atuais. Graças à cultura do consumo, que se consolidou no século XX nas sociedades ocidentais, temos fortes razões para suspeitar que a hipervalorização da esfera privada promove um distanciamento cada vez maior dos indivíduos de problemas coletivos. A possibilidade de fazer escolhas segundo os gostos individuais, a materialização dessas escolhas em bens de consumo ou em estilos de vida e a busca incessante pela felicidade e pelo prazer através do consumo são algumas das principais preocupações dos indivíduos na contemporaneidade. A apropriação da ideia de liberdade feita pela cultura do consumo é notável. A escolha livre passa a ser a escolha entre opções disponíveis – isto é, opções disponíveis no mercado. A publicidade produz demandas por bens até pouco tempo inexistentes. A obsolescência dos objetos impulsiona o desejo e o consumo de novas marcas e modelos. A afirmação de si através das escolhas realizadas e consumidas atesta o estilo de vida do indivíduo e, com isso, evidencia sua liberdade. A problematização da relação dos indivíduos com a cultura do consumo, assim como a discussão sobre sua alienação nessa relação não é nova. Teóricos marxistas, autores da Escola de Frankfurt, e mais recentemente os estudos pós-coloniais vêm discutindo essa temática de diferentes maneiras. Inspirada por muitas dessas leituras, gostaria de levantar aqui um aspecto desse problema, desejando provocar futuras reflexões, muito mais do que me propondo a dar conta da questão, qual seja: a concepção de liberdade individual como exercício da escolha livre pelos indivíduos é 101 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
uma concepção que promove a despolitização do conceito de liberdade. Por despolitização aqui quero dizer uma desvinculação do ato com questões coletivas, que ultrapassam o indivíduo que naquele momento realiza a escolha. Para
desenvolver
essa
ideia,
proponho
tomarmos
o
recém-lançado
documentário de Silvio Tendler (2011) sobre a grave questão do uso de agrotóxicos no Brasil, “O veneno está na mesa”2. A partir de questões levantadas no filme relacionadas à política pública de incentivo ao uso de defensivos e substâncias químicas nocivas à saúde e ao meio ambiente na agricultura, gostaria de refletir sobre os discursos e as práticas que colocam a escolha individual como principal meio de realização dos sujeitos, pensando como a valorização desse tipo de liberdade afasta os cidadãos de questões de interesse coletivo – e, por isso mesmo, de difícil negociação. A questão central do documentário é que, no Brasil, a agricultura – seja na produção em larga escala, seja na agricultura familiar – utiliza grandes quantidades de agrotóxicos, inseticidas, defensivos químicos na produção, e essas substâncias chegam, invariavelmente, à mesa dos consumidores. A denúncia feita pelo diretor, respaldada por entrevistas com acadêmicos, gestores públicos, profissionais de saúde e trabalhadores rurais, é de que no Brasil o uso de substâncias químicas no cultivo de frutas, verduras e legumes ultrapassa indiscriminadamente as margens de segurança, além do fato de que é frequente a utilização de substâncias proibidas nas lavouras. Na prática, isso significa que os trabalhadores rurais e as pessoas que lidam diariamente com o cultivo, a distribuição e a comercialização de frutas, legumes e verduras, estão sendo expostas a substâncias venenosas, que são reconhecidamente causadoras de uma série de doenças crônicas e mesmo letais. Isso também significa que as pessoas que consomem esses produtos estão sendo expostas a substâncias tóxicas que não supõem estarem presentes nos alimentos, ao menos nas quantidades altíssimas em que se encontram, de fato. Antes de prosseguirmos nos argumentos do documentário de Tendler, gostaria de voltar a um ponto que trouxe inicialmente. Em nossa sociedade, inserida na cultura do consumo, a liberdade é pensada e vivida como um direito e uma experiência individual. Assim, ser livre é fazer escolhas, é se realizar através dessas escolhas, é exprimir sua individualidade por meio das escolhas feitas. A ação livre é não apenas um privilégio do indivíduo – nesse sentido, as vivências culturalmente coletivas são vistas
2 O documentário, feito por Tendler em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, está disponível para ser assistido no site You Tube (www.youtube.com), de graça. 102 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
como cerceando a liberdade do indivíduo, como ocorre com as práticas religiosas ou tradicionais – mas algo que, para se concretizar, depende da individualidade e da privacidade da escolha. Dito isso, vale também lembrar que os discursos de exaltação da escolha individual atravessam a educação (enquanto formação de um futuro indivíduo profissional), a saúde (quando responsabilizam o indivíduo por sua saúde nas escolhas que faz), a sexualidade (exortando à felicidade e à satisfação, mas estabelecendo normas que devem ser seguidas individualmente), e tantos outros campos. Assim, a ideia de ser livre implica a construção de si através da escolha consciente – isto é, responsável, consequente com os efeitos dessa escolha – entre opções disponíveis. Como vivemos numa cultura do consumo, a disponibilidade de alternativas se dá, na maior parte das vezes, no mercado. Mas voltemos à questão dos alimentos. Uma das maiores recomendações de profissionais de saúde hoje, baseados em estudos e pesquisas, é que as pessoas tenham um estilo de vida saudável para evitar doenças e problemas de saúde. Os principais carros-chefe desse estilo de vida são a prática de exercícios físicos e o consumo de alimentos naturais, incluindo muitas frutas, legumes, verduras e produtos não industrializados. Essa orientação vem sendo seguida à risca por muitas pessoas que, com isso, se percebem fazendo escolhas mais saudáveis, promovendo mudanças em seu consumo cotidiano que trarão consequências para sua qualidade de vida. O primeiro impacto que um vídeo como “O veneno está na mesa” causa nas pessoas é de estupefação: “Então tudo o que eu pensei estar fazendo corretamente não adianta para nada?!”. De fato, é impossível não se indignar com os resultados de exames laboratoriais que indicam a presença de substâncias tóxicas no leite materno de mulheres que consomem os alimentos à venda no mercado brasileiro. Entretanto, o filme permite algumas reflexões mais profundas, que se articulam com a questão da despolitização da escolha individual que levantei inicialmente. Um dos principais a priori da liberdade de escolha individual na teoria liberal é a possibilidade de que a escolha seja consciente. Isso significa que o indivíduo precisa saber quais são as opções que lhe estão disponíveis e quais são as consequências que cada uma delas acarreta se for escolhida. Entretanto, esse modelo individualizado de escolha-esclarecimento começa a se mostrar ineficaz quando outros fatores entram em jogo. A grande denúncia do documentário de Tendler é de que existem enormes interesses econômicos na utilização não apenas de agrotóxicos venenosos, em grandes 103 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
quantidades, na produção de alimentos no Brasil (estima-se que cada brasileiro consuma cerca de 5,2l de agrotóxicos por ano), mas também de sementes transgênicas, que requerem a aplicação de uma série de defensivos químicos nocivos à saúde. Esses interesses econômicos de empresas multinacionais são garantidos em nosso país por meio de subsídios do governo, redução de impostos e incentivos para que o pequeno agricultor utilize os produtos comercializados pelas grandes empresas em sua lavoura. São muito fortes os depoimentos de trabalhadores rurais que falam de como são obrigados a comprar sementes transgênicas de determinadas empresas multinacionais – e todo o pacote de produtos químicos que o cultivo dessas sementes demanda – para conseguirem financiamento do governo para suas lavouras. Esse cenário perverso levanta sérias questões para a ideia de escolha de uma alimentação natural e saudável, feita pelo consumidor que vai ao supermercado ou à feira. Um ponto interessante que o documentário discute é a possível alternativa dos alimentos orgânicos. Atualmente, devido à completa ausência de incentivos públicos para a produção em larga escala de alimentos livres de agrotóxicos, os produtos orgânicos são muito caros, e seus preços são proibitivos para a população em geral. Entretanto, mesmo o consumidor que puder pagar por essa alimentação diferenciada e optar por comprar apenas alimentos orgânicos – julgando com isso estar garantindo um estilo de vida saudável, mesmo que nem todos possam ter acesso a ele – não se encontra fora dessa engrenagem. Se formos considerar apenas as implicações individuais, vale lembrar que a imensa maioria dos alimentos processados e industrializados disponíveis no mercado tem como matéria-prima alimentos transgênicos e/ou cultivados com agrotóxicos. De alguma forma, essas substâncias chegam à mesa das pessoas – no pãozinho do café da manhã, na margarina, no leite de soja em caixinha. Além disso, a utilização de agrotóxicos contamina o solo, os lençóis freáticos e o ar – especialmente quando aplicados sem controle, como o filme denuncia que ocorre no campo brasileiro de maneira geral. Essa contaminação residual fica no ambiente, e impacta na saúde das pessoas – mesmo daquelas que só consomem produtos orgânicos. A questão que fica evidente ao final do filme é que estamos diante de um problema muito sério de saúde pública. Entretanto, as maneiras de se lidar com ele não podem ficar no âmbito das escolhas individuais, que se realizam no domínio privado da escolha do cardápio, da compra de supermercado, do preparo dos alimentos. A valorização da liberdade individual, nesse caso como em tantos outros, tira o problema 104 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
do campo político, do embate de posições conflituosas e da luta por questões coletivas, restringindo-o à redoma da vida privada, em que o isolamento dos indivíduos oferece uma pálida sensação de segurança. Para enfrentar questões como essa, não é possível abrir mão da esfera pública – de discussão, de desentendimento, e de disputas – para que a regulação do mundo comum (através das leis, das políticas públicas) seja mais democrática. Nesse espaço, talvez seja possível lutar por um outro sentido de liberdade, que não o da escolha individual.
REFERENCIAS MATTOS, A. “Liberdade, um problema do nosso tempo: Os sentidos da liberdade para os jovens no contemporâneo”. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. CONSTANT, B. “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”. Revista Filosofia Política, n. 2, pp. 9-25, 1985 [1815]. TENDLER, S. “O veneno está na mesa” [Documentário audiovisual]. 50 min. Brasil, 2011.
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Resenha
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RESENHA – Susana de Castro Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Hans Ulrich Gumbrecht. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, agosto de 2010. 206 pp.
A primeira coisa que chama a atenção neste livro é a sua capa. Nela o leitor se depara com uma foto em preto em branco do rosto do autor. Achei estranha essa escolha, incomum para os padrões usuais de capa de livros de filosofia, normalmente neutras e impessoais. Achei que talvez pudesse ter sido uma opção do editor brasileiro, mas depois verifiquei que se trata da mesma capa do original inglês (Stanford University Press, 2004). A escolha, portanto, não havia sido aleatória. O leitor entenderá o porquê da opção pela capa com o rosto do autor na medida em que for lendo o livro. O objetivo do livro é o de reconfigurar “algumas condições de produção de conhecimento nas Humanidades”, isto é, forjar uma nova epistemologia para as ciências humanas. Busca apontar para possibilidades não hermenêuticas e não metafísicas de conhecimento. A ligação entre a hermenêutica e a metafísica fica clara quando Gumbrecht define metafísica como a “atitude, quer cotidiana, quer acadêmica, que atribui ao sentido dos fenômenos um valor mais elevado que à sua presença material”. A hermenêutica é o método preponderante de conhecimento nas humanidades; um texto traz sentidos que devem ser postos a descoberto pelo intérprete treinado. A técnica interpretativa é a principal ferramenta das ciências humanas, mas não precisa ser a única. A centralidade que essa técnica dá ao sentido e ao pensamento, a sua desconfiança com relação à materialidade (e ao corpo), faz com que seja correto atribuir-lhe uma atitude metafísica, no sentido acima referido de metafísica. A intuição de que poderia haver outras formas de abordagem dos fenômenos das ciências humanas que não fosse exclusivamente através do sentido e da interpretação, não surgiu do nada, na meditação silenciosa do acadêmico. Gumbrecht dedica o primeiro capítulo de seu livro a descrever os acontecimentos decisivos (a “pré-história”) que o foram conduzindo ao longo de uma década em direção à produção de presença como forma de conhecimento nas humanidades. O autor relata eventos que ocorreram em Dubrovnik (cidade da antiga Iugoslávia, atualmente localizada na Croácia) e no Brasil. Entre todos os acontecimentos relatados, destaca-se a decisão tomada durante um passeio pela cidade de Dubrovnik, em 1985. Neste dia um grupo de acadêmicos 107 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
conseguiu dar nome a um „remédio‟, “materialidade da comunicação”, para uma angústia comum, a distância do mundo e de seus objetos provocada pela onipresença da interpretação e do sentido em suas respectivas áreas de atuação acadêmica. Esse seria o tema do próximo encontro em Stanford. Com a expressão “materialidade da comunicação” Gumbrecht e seus amigos conseguiram verbalizar a possibilidade de tratar a comunicação nas ciências humanas não somente desde a perspectiva da busca de sentido para a fala e o texto (as duas materialidades mais comuns no meio acadêmico). Descortinava-se assim um novo horizonte em cujo âmbito o autor desde então orientou seu trabalho, na busca de novos conceitos para a tarefa de lidar com um modo de comunicação via matéria dos fenômenos, via percepção da matéria, do modo como afeta nossos sentidos. Esse afetar da percepção pelos objetos espaciais é o que caracteriza a produção de presença, e esse afetar não é mediado pelo conceito, pelo pensamento ou pela cultura, é, portanto, vazio de conteúdo. Presença é “a relação espacial com o mundo e os seus objetos”. Não há do lado do observador uma intencionalidade atuante em busca de sentido quando ocorre a produção de presença, mas tão pouco se pode dizer que a presença ocorra na pura materialidade. Gumbrecht arrisca a “sujar as mãos” quando para descrever o fenômeno da produção da presença fora do esquema sujeitoobjeto traz de volta o conceito aristotélico de substância. Apesar de a substância ser um tabu nas ciências humanas, isto é, um conceito considerado de mau gosto na atual era da pós-modernidade, marcada pela preponderância da perspectiva construcionista, Gumbrecht não vê outra alternativa para sair da asfixia do binômio „sujeito – objeto‟ (como ficará claro no decorrer do livro, a descrição da produção de presença se adéqua principalmente à análise dos efeitos comunicacionais de objetos espaciais, tais como espetáculos teatrais e esportivos, e obras de arte). Além da noção aristotélica de substância, o recurso mais inspirador para desenvolver a reflexão acerca da presença é a noção heideggeriana de Ser. Heidegger teria sido o primeiro filósofo pós-metafísico, que desenvolve sistematicamente um conjunto de conceitos para concorrer com o primado do sujeito separado do mundo em voga nas ciências humanas. Um dos grandes trunfos desse livro é o de conseguir sintetizar de maneira clara e precisa o grande embate de ideias que ocorre na passagem da Idade Média para a Primeira Modernidade e da Primeira Modernidade para a Segunda Modernidade. Esse relato deixa claro que as motivações por trás da história das mentalidades produzem critérios distintos de produção de conhecimento. De uma maneira geral, Gumbrecht 108 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
defende que na Idade Média a autodescrição do homem não envolvia sua separação do mundo, enquanto na modernidade o homem passa a se considerar como observador do mundo e produtor ativo de conhecimento. Essa alteração na ótica de autorreferência tem grandes efeitos na produção de conhecimento, que deixa de ser pautada pela materialidade e pelo corpo, pela crença de que a matéria comunica, e passa a ser orientada pela noção de que por trás da materialidade há um sentido que precisa ser desvelado e somente o homem é capaz de realizar isso. Quando o homem na modernidade passa a se considerar estranho ao mundo, surge uma distância entre ele e as coisas. Estas, por outro lado, deixam de ter a capacidade de aparecerem por conta própria; as coisas só são autorizadas a „ser‟ algo, na medida em que o homem, o sujeito pensante, lhes autoriza existência ao dar-lhes sentido. Na passagem da Primeira Modernidade para a Segunda surge uma nova autodescrição do homem, segundo a qual além de ver o mundo de fora, ele também se vê vendo o mundo. Há, assim, um observador de primeira e outro de segunda ordem. O segundo observador põe em xeque uma série de questões não problematizadas na primeira modernidade, como as diversas perspectivas acerca de um objeto ou a diferença entre a experiência conceitual e a percepção. As ciências humanas vão resolver esse problema de dois modos. Com relação ao primeiro problema, ela vai passar a adotar o método narrativo como modelo de investigação. A narração ao invés da pura descrição de fatos permite que o narrador inclua diversas perspectivas em uma só narrativa. Com relação ao problema da incompatibilidade entre a percepção e a experiência, as ciências humanas vão optar por preferir como critério para o conhecimento os dados da experiência conceitual. A partir de então as ciências humanas passam
a
adotar
a
perspectiva
fenomenológica
idealista
que
conduzirá
contemporaneamente à perspectiva construtivista, segundo a qual a matéria pode ser transformada de acordo com a vontade do homem, sua cultura. Gumbrecht vê afinidades (e diferenças) entre o seu pensamento e o de alguns pensadores contemporâneos, tais como Umberto Eco, Jean-Luc Nancy, Gianni Vattimo e Judith Butler. Mas o autor central para a proposta de Gumbrecht de criação de uma alternativa não dualista de conhecimento nas ciências humanas é Martin Heidegger. Para Gumbrecht, a noção de Ser em Heidegger substitui a centralidade da noção de verdade das filosofias metafísicas, marcadas pela ênfase na racionalidade, pela desconsideração da percepção como fonte de conhecimento e, consequentemente, pela desconsideração do espaço e da matéria percebidos como fonte de conhecimento. De 109 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
certa maneira, Gumbrecht deixa subentendido que a sua visão e a de Heidegger representam uma retomada de um modo de autorreferência humano próprio da época medieval, quando o homem se via parte do mundo e não excêntrico a este. Se em Ser e Tempo encontramos o rompimento com a dualidade cartesiana „sujeito e objeto‟ através da análise do ser-aí (Dasein), isto é, do ser-no-mundo, e não separado do mundo, do homem, a análise estrita do Ser só aparece no ensaio A origem da obra de Arte. Gumbrecht oferece ao leitor nessa parte do livro uma análise clara dos objetivos da filosofia de Heidegger. Finalmente, depois de ter ido ao passado pessoal e o da filosofia, e chegado ao presente das ciências humanas, Gumbrecht termina seu livro falando do futuro das humanidades. Ao invés de falar das humanidades de uma maneira em geral, ele prefere falar de três de suas áreas disciplinares, a estética, a história e a pedagogia. Cada qual apresenta um modelo de configuração específica de produção de presença. O fenômeno estético (incluindo aqui o espetáculo esportivo) produz presença de modo epifânico, ou seja, na forma de eventos. Esses eventos são inesperados e únicos, não voltam a ocorrer, mas quando ocorrem provocam fascinação. A fascinação é o resultado de uma tensão entre a efemeridade da presença e a consciência da singularidade do fenômeno, isto é, a impossibilidade de compará-lo com outra ocorrência. Nesse momento epifânico o estado do espectador e do artista/jogador é o de sintonia com as coisas do mundo. Em um momento em que estamos saturados de sentidos, as artes e os esportes têm esse poder de nos devolver às coisas do mundo. Por outro lado, a produção de presença na história se dá através da presentificação do passado, enquanto que a produção de presença na pedagogia se dá através da dêixis, ou seja, o professor não antecipa o sentido da experiência ao aluno, mas apenas orienta-o a estar preparado para o possível surgimento do ser (que logo se esconde). Estar preparado para o possível surgimento do ser significa alcançar um estado de concentração (insularidade) e serenidade que permita o esvaziamento da consciência, a abertura para o nada. O ser surge do nada, isto é, ele surge desde um lugar que não está preenchido pela cultura e pelo sentido. O livro de Gumbrecht me fez lembrar a Arte como experiência do John Dewey e o Estética pragmatista de Richard Schusterman. Ambos dão um papel central aos sentidos, à percepção e ao corpo na experiência estética. Mas, diferente dos dois pragmatistas, Gumbrecht não acha que a estética e a ética possam andar juntas ou que os fenômenos estéticos possam ser edificantes. 110 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 1, 2011 (Nova Série)
Este livro é altamente recomendável para todos os que buscam, como o autor, alternativas para o método e o vocabulário das ciências humanas, excessivamente centrados na análise e interpretação do sentido do texto.
Por Susana de Castro
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano III, número 1, 2011 ISSN: 1984-7157
Editor convidado: Frederico Graniço Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. E Susana de Castro
www.gtdepragmatismo.com
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