Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 2, 2011 ISSN: 1984-7157
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA) Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editor convidado: Fabio Mourillhe Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: Alexandre Rabelo
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 1, 2011
Sumário Editorial
5
Artigos 1.O mito moderno da Mulher Maravilha - Susana de Castro
7
2.A arte dos quadrinhos – Fabio Mourilhe
15
3.Entre o sonho e devaneio - Luis Felipe Castro Alencastro
26
4.O Bravo e o Notável: heroísmo, nivelamento existencial e a superação do herói - Fábio François
37
5.Rawls, Nozick, Tio Patinhas e outros bilionários: riqueza, justiça distributiva e liberdade - Heraldo Aparecido Silva
66
Tradução Quadrinhos e cartum: uma forma de arte democrática- J. Maggio
74
Resenha VIANA, Nildo. e REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011. 184p. Por Marcos Carvalho Lopes 81
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Editorial
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EDITORIAL
Este número da revista Redescrições traz um dossiê com trabalhos dos principais integrantes de um grupo que vem se dedicando a trabalhar no limite que se dá entre uma prática filosófica e as HQ. Os artigos aqui incluídos mostram, contudo, não um panorama específico de registro do 1º Colóquio Internacional Filosofia e Quadrinhos, mas um momento de passagem que forma um circuito do que foi com o que há de vir. Os artigos de Susana de Castro, Luis Alencastro e Fabio François, por exemplo, trazem um aprofundamento e ampliação do exposto em nosso primeiro encontro. O meu trabalho e o de Heraldo, por sua vez, apontam diretamente para o 2º Colóquio. No caso de Heraldo, por ser novo membro a se integrar ao grupo e no meu caso por trazer em meu artigo a temática que servirá de base para o próximo Colóquio. A constância, presença e afinação destes pesquisadores em torno desta temática mostra a sua consolidação.
Fabio Mourilhe Editor convidado
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Artigos
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O mito moderno da Mulher Maravilha Susana de Castro Resumo: Considerando a perspectiva grega androcêntrica a partir da qual esse mito é tradicionalmente narrado, as Amazonas seriam mulheres selvagens, descendentes do deus da guerra Ares. Capazes de retirar um dos seios a fim de manusear melhor o arco e flecha, eram consideradas inimigas dos homens. A personagem em quadrinho Mulher Maravilha surge no meio da Segunda Guerra, em dezembro de 1941. Seu autor W. M. Marston atribui-lhe uma origem guerreira como princesa das Amazonas, Diana, filha da rainha Hipólita. Ela decide abandonar seu reino para acompanhar o capitão Steve Trevor, membro da inteligência do exército. Os quadrinhos refletiam o momento político conturbado e a Mulher Maravilha, munida dos superpoderes das Amazonas, encarna o ideal militar de bravura. Suas missões estarão relacionadas à guerra e seu disfarce será o de uma tenente da marinha que usa óculos, Diana Prince. Neste trabalho, procurarei explorar os limites e as modificações entre os dois mitos, o grego e a sua versão americana. Há claramente uma mudança na perspectiva do narrador do mito. Se no mito grego a mulher é temida por seu ódio aos homens, no segundo, o de Marston, ela colabora com os homens. Por que a mudança e em que medida essa medida reflete os ideais da mulher contemporânea, são algumas das questões que guiam este artigo. Palavras-chave: Mulher-Maravilha, feminism, mitologia grega. Abstract: Considering the andocentric Greek perspective by which this mythos is traditionally narrated, the Amazons would be savage women, descendents of the god or war Ares. Capable of rooting out the breast to better handle bow and arrow, they were considered enemies of men. The comic-book character Wonder Woman appears initially amid the World War 2 in December of 1941. W. M. Marston, the author, gave her a warrior origin as princess of Amazons, Diana, daughter of Queen Hypolita. She decided to resign her reign to join Captain Steve Trevor, member of the service of intelligence of the army. The comic books reflected a complex political moment and Wonder Woman, armed with the super powers of the Amazons, incarnated the military ideal of bravery. Her missions were related to the war and her disguise was a navy lieutenant with glasses named Diana Prince. In this work, I will explore the limits and differences between mythos, the Greek and the American version. It is noticeable the change of perspective of the narrator. In the Greek mythos, the woman is feared by her hatred to men, and in the second, the Marston Mythos, she collaborates with men. Why this change happened and how it can reflect the ideals of contemporary woman are some of the problems that will guide this article. Keywords: Wonder-Woman, feminism, Greek mythology. Lia compulsivamente HQ na infância. Sempre que vinha nos visitar, meu tio Antonio trazia HQ em edições de luxo, de capa dura. Lembro-me especialmente de um exemplar que nos trouxe da peça Romeu e Julieta de Shakespeare em quadrinhos. Meu gosto era eclético, lia tanto Mad e Mafalda, quanto Tio Patinhas. O irmão mais velho da minha vizinha tinha um armário com pilhas de revistinha e eu sempre pegava novas
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com ele para ler. O jornaleiro me deixava trocar a revista que tinha acabado de comprar, por outra que ainda não havia lido. Tão absorvida ficava com a leitura que se alguém viesse falar alguma coisa comigo enquanto estivesse lendo, não ouvia. Uma hora esse hábito acabou. Quando meus pais se separaram, passamos a ter TV em casa, presente de outro irmão da minha mãe, o tio Val. Troquei as HQ pelas séries de ação da TV e pelos livros de horror de Stephen King. Mas o prazer que a leitura de HQ provocava em mim ficou cravado na memória. Há alguns anos atrás comprei o exemplar de capa dura do Watchmen na FNAC na esperança de reavivar aquele prazer infantil. Li até a metade. Outras leituras mais prioritárias foram surgindo e relegando o projeto nostálgico ao esquecimento. Tudo isso mudou quando Fábio Bola me chamou para participar este ano de uma mesa sobre HQ e Filosofia na Comicon. Esse convite abriu para mim a possibilidade de resgatar a memória afetiva da minha leitura prazerosa das HQ, atualizar meu conhecimento sobre as novas publicações e, principalmente, associar tudo isso aos meus interesses acadêmicos. Como venho me dedicando ao estudo do feminismo, propus apresentar um ensaio sobre a Mulher Maravilha. No dia da nossa apresentação na Comicon, o criador da série X-Men, Chris Claremont, respondendo a perguntas da platéia, insistiu que sua criação tinha como objetivo principal o divertimento (entertaiment) do leitor. Ficaria satisfeita com essa resposta se me colocasse somente desde a perspectiva daquela garota de oito ou dez anos que lia HQ compulsivamente, mas como mulher adulta, ela me parece insuficiente. As HQ, tanto as chamadas ‗graphic novels‘, voltadas para um público leitor adulto e vendidas nas livrarias especializadas, quanto as tradicionais, vendidas em banca de jornais, possuem ‗mensagens‘ que podem ser analisadas, criticadas e, ao mesmo tempo, divertir. O relacionamento do leitor individual com a obra não é estático (STULLER, 2010, p.73). Além disso, como feminista, posso tanto concordar que a apresentação das heroínas das graphic novels é, em geral, apelativa e sexista, quanto apreciar a mesma leitura pelo fato da protagonista da aventura ser uma mulher. Pessoalmente, minha relação com as HQ é tanto de prazer, quanto intelectual, ainda que o segundo se sobreponha ao primeiro e gere um tipo de prazer específico. Enquanto intelectual, quero investigar as forças sociais que estão por trás da criação individual e realizar um trabalho de critica feminista da cultura comercial de massa. No prefácio de livro Wonder Women -- feminism and super heroes, a 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
feminista americana Lillian S. Robinson relata como conseguiu sair de uma situação de perigo e extremo desconforto físico ao imaginar o que faria a Mulher Maravilha na sua situação. Essa anedota à primeira vista prosaica revela um elemento central da gênese da super heroína. A criação da MM é resultado de um ato deliberado de crítica ao universo masculinista dos super heróis em quadrinhos. A Mulher Maravilha ‗nasce‘ em 1941, na All Star Comics #8 (Figura 1), quando o editor da All American Comics (conhecida depois como DC Comics), Max Gaines, contrata o psicólogo, doutor por Harvard, William Moulton Marston como consultor para assuntos educacionais, após ter lido sua entrevista à revista ―Family Circle‖. Nessa entrevista, Marston critica o fato de a maioria dos super-heróis serem homens e das mulheres nas HQ serem relegadas a papéis secundários. Além disso, afirma que do ponto de vista psicológico a maior ofensa das HQ era sua ‗masculinidade sanguinolenta‘ (blood-curdling masculinity). Para ampliar o potencial educacional das HQ seria preciso introduzir em seu universo personagens femininos multidimensionais. O objetivo de Marston com a criação da Mulher Maravilha foi o de que ela servisse de modelo para as garotas: ―Nem mesmo as garotas querem ser garotas, enquanto ao nosso arquétipo feminino faltar força, coragem e poder . . O remédio óbvio é criar um caráter feminino com toda a força do Super Homem, além de toda sedução de uma mulher bondosa e bonita‖ (MARSTON apud ROBINSON, p. 46).
Figura 1- All Star Comics #8. DC Comics, 1941.
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Para a criação da MM, Marston utiliza-se de um tipo particular de gênero narrativo: o épico modernizado (ROBINSON, 2004). Revisita a mitologia grega, adaptando-a a seus interesses narrativos. Sua fonte principal é o mito das Amazonas. Se hoje atribuímos às Amazonas um valor positivo, isso se deve em grande parte ao trabalho de Marston na criação da MM. Segundo o mito original das Amazonas, estas teriam sido guerreiras com poderes extraordinários, para mulheres. Viviam da caça e da guerra e em companhia só de mulheres. Ao mesmo tempo em que admiradas por seus poderes incomuns, eram também temidas por não aceitarem os papéis tradicionais de mãe e esposa. Para o imaginário popular grego eram mulheres selvagens e desqualificadas. Marston inverte o valor do mito, dando-lhe um caráter positivo e edificante ao associar-lhe à origem da MM. MM é, na verdade, a princesa Diana, filha da rainha das Amazonas, Hipólita. Na sua versão, a protetora das Amazonas é a deusa Afrodite, deusa do amor e da beleza, e não, como no mito grego original, Ares, deus da guerra. Segundo Marston, Afrodite e Ares dividiam o governo da terra. Ares e seus homens escravizavam as mulheres até o dia em que Afrodite criou com suas próprias mãos uma raça de super mulheres, mais fortes do que os homens. Ela dá à chefe das amazonas o seu próprio cinturão, o que as torna invencíveis. No mito grego, em seu nono trabalho, Heracles teria combatido e vencido as Amazonas, na versão de Marston, ele seduz a rainha Hipólita e lhe rouba o cinturão. Os gregos, então, comandados por Heracles, subjugam às Amazonas. Hipólita implora a Afrodite que lhes ajude. Afrodite atende ao pedido, mas as obrigada a usar daí em diante os braceletes com os quais os gregos as acorrentaram para lhes lembrar eternamente do erro que cometeram. As Amazonas vão, então, para a Ilha Paraíso e lá vivem em paz, sem a presença de homens. Marston altera novamente o mito ao afirmar que Afrodite tem o poder de criar a vida do nada. Nenhum Deus grego gera do nada, como o Deus cristão. Deuses e semideuses são gerados como os mortais, em relações ‗normais‘, heterossexuais, com poucas exceções. Uma delas é o nascimento da deusa Atena, nascida diretamente da cabeça de Zeus, e a outra, o de Afrodite, que nasce da espuma do sêmen de Zeus despejado no mar. Ambas são protetoras das Amazonas no mito segundo Marston, mas ambas não nascem de alguma mãe. Não há sinal na mitologia grega de deusas ou mortais parindo sem terem sido fecundadas por um macho. Na história de Marston, porém, a princesa Diana é gerada pelo sopro de vida que Afrodite dá à figura esculpida por Hipólita. Além disso, como todas as outras 10 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Amazonas, bebe da fonte da juventude e torna-se imortal. Na versão de Marston, as Amazonas são modelos de civilidade enquanto os homens gregos são brutos e violentos. No mito original grego a relação é a inversa. As mulheres Amazonas são apresentadas como mulheres andrógenas que rejeitam a instituição do casamento. Diana se apaixona pelo Major Trevor e acaba abandonando a ilha para poder estar ao seu lado e combater os inimigos da liberdade. Na América, assume uma falsa identidade, como tenente Diana Prince. Enquanto Mulher Maravilha, traja botas de cano longo e um uniforme com as cores da bandeira americana. Bonita e destemida, em sua identidade secreta, ao contrário, é uma mulher tímida, recatada e apaixonada. A história da MM representa tanto um heroísmo feminista, pois as Amazonas combatem e rejeitam viver sob o patriarcado (como as Amazonas não podem trazer nenhum homem para a Ilha em que moram, MM fica impedida de se casar com o major por quem se apaixonou), quanto um heroísmo cívico, pois a princesa Diana abdica de sua imortalidade para combater os inimigos da democracia. Em plena Segunda Guerra, os inimigos em solo americano eram os espiões do eixo, japoneses ou alemães. Diana é enviada a América por sua mãe e sob os auspícios de Afrodite e Atena para ajudar na causa do ―último bastião da democracia e dos direitos iguais para as mulheres‖. Apesar do reconhecido pionerismo de Marston, seu apelo ao heroísmo feminino foi bem recebido na sociedade americana porque havia uma atmosfera política propicia. Com os homens no front europeu, a sociedade americana estimulava a participação das mulheres no mercado de trabalho. A fragilidade de sua posição fica clara, com a mudança social e política na América pós-guerra, quando mídia e sociedade de uma maneira geral conclamam justamente o oposto, a saber, o retorno das mulheres aos seus lares e a seus papéis domésticos tradicionais, de esposa e mãe. Quando Marston morre em 1947, a MM vai sofrer a sua primeira grande mudança sob a autoria de artistas que escreviam apenas o que a sociedade convencionava como o correto. A personagem da Mulher Maravilha aparecerá seguidas vezes mais preocupada com seu relacionamento com o Major Trevor do que com suas missões humanitárias. ―Este era um esforço com o objetivo de normalizar o papel doméstico da mulher americana, e seus suplementos, sua identidade tradicional de gênero, com suas bases heterossexuais e ética do consumo. Reforçando instituições discriminatórias, a mass media, a propaganda, a psicologia popular e a prática terapêutica, ao lado da religião tradicional, todas apresentam variações sobre o mesmo tema acerca do modo normal e correto de ser uma mulher do pós-guerra‖ (ROBINSON, 2004, p. 47).
Nessa atmosfera conservadora, o psicanalista judeu-alemão, Dr. Frederic
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Wertham lança em 1954 o livro Seduction of the Innocent, no qual acusa as HQ de serem prejudiciais à educação das crianças. Por causa da campanha de Wertham muitos heróis são aposentados e outros remodelados. E os próprios editores criam o Comics Code Authority. Wertham usou seu trabalho em uma clínica psiquiátrica no Harlem voltada para jovens de alto-periculosidade e suas famílias, para embasar sua tese de que as HQ estimulavam a violência. Não só a violência, mas também comportamentos sexuais desviantes. No livro, identifica uma relação homoerótica entre Batman e Robin, e estimulo ao lesbianismo na relação entre MM e suas ajudantes Etta Candy e as Holliday Girls pela forma como seguidas vezes resgatam umas as outras das situações de perigo. Sempre que precisava de ajuda, MM enviava sinais telepáticos para que as estudantes do Holliday College viessem lhe socorrer. Essa atmosfera de ‗sisterhood‘ criada por Marston, bastante avançada para época, pois quebrava com a visão solitária da heroína que faz tudo sozinha, foi interpretada de uma maneira oposta por Wertham: ―Ela é fisicamente muito poderosa, tortura homens, tem sua própria seguidora feminina, é a mulher cruel, ‗fálica‘. Enquanto ela é uma figura ameaçadora para os meninos, ela é um ideal não desejável para as garotas, sendo exatamente o oposto de que se supõe que as garotas devam querer ser‖ (WERTHAM apud MADRID, p. 190).
O ápice da remodelagem da MM segundo o gosto puritano da época ocorre na edição número 105 (abril, 1959) (Figura 2). Nessa edição, a origem da MM é completamente modificada e todo o pano de fundo do mito das Amazonas é eliminado. Nessa primeira nova versão, MM não nasce de uma mãe em um processo de partogênese, mas sim de pais mortais humanos. Seus poderes são dons especiais que recebe dos deuses, e não poderes comuns a toda uma raça de mulheres (Robinson, 2004, p. 79). Esse declínio dos ideais de Marston vai continuar até 1972, quando sob influencia da transformação do feminismo em movimento de massa a DC Comics retoma os ideais antigos com a nova série intitulada ―New Adventures of the Original Wonder Woman‖ # 204 (Figura 3). Entre a edição 105 e a 204, há, porém, mais uma grande etapa revisionista, chamada de ―The New Wonder Woman‖, ou ―The Diana Prince Era‖. Essa etapa inicia-se coma edição número 178 de 1968 (Figura 4). Seguindo a influência da atmosfera social, e comercial, trazida pela chama ‗revolução sexual‘, os editores dessa nova Mulher Maravilha resolveram torná-la mais humana e mais sexy. Assim, nessa versão ela abandona todos os seus poderes e adereços para poder ficar na 12 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
América. Aqui ela vai combater o crime fazendo uso de artes marciais. Abandona seus trajes tradicionais. Sob a fachada de dona de uma boutique, passa a usar roupas da moda e a combater principalmente vilãs femininas (STULLER, 2010, pp. 37-38).
Figura 2- Wonder Woman #105. DC Comics, 1959.
Figura 3- Wonder Woman #204. DC Comics, 1973.
Figura 4- Wonder Woman #178. DC Comics, 1968.
O retorno a MM original com seus trajes tradicionais e apetrechos especiais (o laço da verdade, o avião invisível etc.) ocorre, como foi dito na edição número 204 (janeiro-fevereiro, 1973). Nessa versão sua ajudante não é mais a infantil Etta Candy, mas a afro-americana Nubia. Nessa versão o pano de fundo da história da origem da MM é completamente resgatado e as ações da MM e de Núbia são envolvidas com as das Amazonas. Outras transformações ocorrerão, principalmente com o visual da MM nas décadas seguintes até a presente data. Devemos nos lembrar que na história recente das HQ dois eventos vão provocar profundas transformações, a revolução Marvel com os personagens criados por Stan Lee na década de 1960. Ele tirou as histórias de HQ do enquadramento maniqueísta comum (bem versus mal), trouxe ironia e metalinguagem para as HQ, a começar pela criação dos personagens do ‗O quarteto fantático‘. Incorporou na narrativa das aventuras momentos nos quais ‗o lado negro‘, de medo, insegurança ‗existencial‘ e angústia dos heróis é mostrado – lembremo-nos aqui do inseguro Peter Parker, alias Homem Aranha. Em 1986, DC Comics dá o troco a Marvel com uma nova série, ―A crise dos universos infinitos‖. A Mulher Maravilha é a primeira heroína das HQ. Antes dela já havia surgido Sheena, a rainha das selvas, mas a Mulher Maravilha é a primeira colocada em tempo 13 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
de existência, sete décadas, e a que mais visibilidade recebeu em termos de assiduidade de suas revistas. O fato de ela persistir, ainda que com altos e baixos, por tanto tempo, a eleva a uma categoria de ícone que as outras heroínas da HQ, como She-Hulk, Invisible Woman, Elektra, não possuem. As HQ dos super-heróis visam é claro a venda, por isso os temas que abordam devem estar de acordo com o gosto do público leitor. Como esse público leitor é na maioria masculina, as histórias seguem o gosto masculino. Mas é possível detectar avanços nessa área, com aumento do público leitor feminino e principalmente com a participação de artistas mulheres na redação e concepção das HQ. A percepção de Moulton permanece a certa, enquanto as mulheres só tiverem papéis secundários nas HQ, as garotas vão se identificar com os Homens-Aranha e Batmans, personagens corajosos e fortes. A psicologia feminina nesse sentido não é muito diferente da masculina. Tanto quanto o homem, a mulher quer realizar feitos gloriosos, ser heroína da humanidade. Ainda que isso de fato só ocorra na imaginação e na fantasia, a possibilidade de imaginar em si esse potencial tem efeitos extremamente positivos na auto-estima do leitor.
Referencial bibliográfico: MADRID, Mike. The supergirls. Minneapolis: Exterminating Angel Press, 2009. ROBISON, Lillian S. Wonder Women: feminism and superheros. Nova Iorque, Londres: Routledge, 2004. STULLER, Jennifer K. Ink-Stained Amazons and Cinematic Warriors: Superwomen in modern mythology. Londres: I.B.Tauris, 2010.
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A arte dos quadrinhos Fabio Mourilhe1
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo pensar a questão da arte nos quadrinhos em sua especificidade e problemática particular, considerando a possibilidade da presença de aspectos de uma arte erudita e uma arte popular, nas HQ, em harmonia. Propostas de vanguarda nos quadrinhos parecem apontar não para ―ansiedades adolescentes‖, mas ―ansiedades estéticas‖; e uma ―impureza plena‖ indica aparentemente uma possibilidade de assegurar uma resistência contra tentativas de purificação estética que visam evitar misturas de campos distintos no âmbito dos quadrinhos. Palavras-Chave: Arte popular, Estética, Histórias em quadrinhos. Abstract: This paper aims to consider the question of art in the comics in their specificity and particular problem, considering the possibility of simultaneous and harmonic presence of aspects of fine art and folk art in comics. Avant-garde proposals in comics seem to point not to “teenage anxieties”, but to “aesthetic anxieties”; and a “full impurity” apparently seems to indicate a possibility of securing a resistance against attempts to aesthetic cleansing aimed at avoiding mixtures of different fields within comics. Keywords: Popular art, Aesthetic, Comics.
Introdução
Após as perseguições que se intensificaram nas HQ na década de 1950, temos um panorama onde os quadrinhos passaram aparentemente a ser reconhecidos como manifestações artísticas. Contudo, deve-se atentar para alguns posicionamentos específicos nas áreas correlatas que apresentam posicionamentos dúbios quanto a uma concepção artística nos quadrinhos e uma relação problemática como a arte erudita.
Arte e/ou quadrinhos
Os quadrinhos são uma manifestação cultural artístico-literária que vem se desenvolvendo desde o final do século XIX, junto a perseguições e condenações que lhe marcam e caracterizam. Sua pretensão a um status artístico emerge a partir das confluências com as artes plásticas (considerando as diversas apropriações por parte de pintores (o que para CARLIN & WAGSTAFF (1983, p.9) parece ser suficiente para 1
Doutorando em Filosofia – PPGF / IFCS / UFRJ
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conferir aos quadrinhos um status de arte); com as exposições e o interesse por parte de diretores de museus em ―ampliar seu público‖ a partir destas intercessões, apesar do posicionamento de críticos de arte e destes mesmos diretores de museu em tachar os quadrinhos ―como ‗arte degenerada‘ (low art)‖ (ARMSTRONG (1983, p.7)); e com a valorização dos originais de artistas, que foi posterior à censura e à autocensura do Comics-Code, marcos que conferiram fragilidade e mudaram a direção do mercado. Um movimento de censura aos quadrinhos teve, contudo, como alvo decisivo (porém não exclusivo) uma HQ que conduzia uma narrativa direcionada a um público adulto e não assumida pela indústria desta forma até a década de 1950. O gênero de terror apontava para a emergência de um novo tipo de HQ que Carlin & Thompson (1983, p.42) parecem apontar como uma proposta elitizada, ao colocar que elas se distanciavam das ―fantasias adolescentes repetitivas de poder e fantasias infantis inocentes‖ (CARLIN & THOMPSON, 1983: p.42) anteriores e onde era perceptível o cuidado para com um resultado estético diferenciado (nas mãos de Jack Davis, Graham Ingels, Al Williamson, Wally Wood etc) do que se costumava encontrar, por exemplo, nos gibis de super-heróis, assumindo uma postura estética distinta destes últimos. Todas as críticas proferidas ao longo das primeiras décadas do século XX, livros editados (como o de Wertham, ―Seduction of the innocent‖) e os resultados do Subcomitê do Senado que investigava a delinquência juvenil (―United States Senate Subcommittee on Juvenile Delinquency‖) em 1953 serviram para compor um panorama desfavorável para as HQ, as HQ vistas como prejudiciais à criança e a toda a sociedade, o que fundamentou e auxiliou na composição de razões que desacreditavam os quadrinhos como forma legítima de arte. Noël Carrol (2001, pp.19-20), por exemplo, apenas concebe os quadrinhos como arte se eles trouxerem ―alegorias secretas (de ansiedades adolescentes) complexas‖ que mereçam ser decifradas. Contudo, não assume e defende de fato os quadrinhos, colocando que o ―ônus da prova estaria com o cético, que deve mostrar que estas supostas alegorias seriam misturas fantásticas ou que... seriam algo estranho, supondo que estas misturas garantiriam uma resposta sofisticada o suficiente para serem consideradas como interpretação‖ (CARROL, 2001, p.20).
Assim, Carrol, expõe como premissa de sua argumentação alegorias que são por ele questionáveis junto a misturas (que podem ser pensadas em consonância com as críticas sofridas pelos quadrinhos em termos de fusão entre imagem e texto, cultura 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
popular e erudita, misturas entre gêneros etc.) também colocadas em xeque. Apesar da validade de sua forma artística que parece evidente, Groensteen (2000, p.29) mostra diversas situações onde os quadrinhos são acusados constantemente de serem infantis, vulgares ou insignificantes ao longo do século XX nos países de língua francófona. Além destes tipos de questionamento, temos alguns dos mais relevantes ensaios teóricos sobre quadrinhos onde os autores assumem os quadrinhos (de uma forma geral) como mídia popular descartável, tendo como exceção – aqueles que não se enquadrariam desta categoria – os expoentes da área, incluindo os mais próximos de uma experimentação artística ou postura revolucionária (CARLIN (2005, p.27); CARLIN & THOMPSON (1983, p.42); FEIFFER (1965, p.72)). Por este viés, Carlin (2005, p.27) define por isolamento e negação o que seriam quadrinhos artísticos: uma mídia gráfica criada a partir de formas gráficas harmoniosas, formas estas que permitiriam a narração de histórias que visam o puro entretenimento. ―Krazy Kat‖ (Figura 5) ou ―Little Nemo‖ (Figura 6), por exemplo, para ele, teriam sido trabalhos ―tão sofisticados e importantes como qualquer arte realizada na mesma época‖, ou seja, o valor artístico estaria condicionado a uma comparação com obras de arte ou movimentos artísticos. Assim, o valor artístico de ―Little Nemo‖ estaria em sua arquitetura Moderna e nas distorções ali veiculadas, o valor de ―Polly and her pals‖ (Figura 7) estaria nas abstrações e enquadramentos inusitados, e o valor de ―Gasoline Alley‖ (Figura 8) e ―Kin-der-kids‖ (Figura 9) estaria nas referências a movimentos artísticos.
Figura 5- Krazy Kat. George Herriman, 1939.
Figura 6- Little Nemo in the Slumberland. Winsor McCay, 1905.
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Figura 7- Polly & Her Pals. Cliff Sterrett, January 30 1927.
Figura 8- Gasoline Alley. Frank King, 1931.
Figura 9- Kin-Der-Kids. Lyonel Feininger, 1906.
Embora semelhante, o posicionamento de Feiffer (Ibid) assume na verdade uma postura irônica ao definir as revistas em quadrinhos como ―lixo‖ (―existem exceções, mas as revistas em quadrinhos que não são ‗lixo‘ não duram muito tempo‖). ―Acusá-las de alguma coisa que elas (assumidamente) já são não é acusação alguma. 18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Não existe um lixo que não foi corrompido, lixo moralmente válido ou lixo educativo‖. A adjetivação como ―lixo‖ a que Feiffer se refere (em relação às revistas em quadrinhos) pode ser percebida em Carlin (2005) como uma conformação estética e padronização (resultante do sucesso dos quadrinhos, tanto nas tiras como nas revistas em quadrinhos). Contudo, com o acréscimo de uma sofisticação narrativa e eventuais reflexos das experimentações iniciais, temos o que Carlin denomina de expressão artística nos quadrinhos, tendo como mote a inovação formal e a expressão pessoal, como em Crumb, Spiegelman e Chris Ware. Spiegelman, indo além dos temas que se popularizaram com os quadrinhos underground (sexo, drogas e violência), assume um caráter quase artístico com a revista Raw (Figura 10), na medida em que foram tratadas meticulosamente questões relacionadas à cor e impressão, bem como aspectos incluídos artesanalmente em cada número, como cortes improváveis na capa. Indica assim um novo posicionamento para os quadrinhos que se distanciava de fato de uma produção em massa. Deve-se, contudo, considerar este viés não como um progresso estético ou artístico e sim como uma tendência que se desvela em um momento específico que pode diferenciar o que seria um caráter popular dos quadrinhos, ou simplesmente levar a uma popularização de certas tendências, como ocorreu de fato a partir da década de 60 nos quadrinhos mainstream, com a Op Art no trabalho de Jim Steranko (Figura 11) ou no hiper-realismo (Figura 12) que se popularizou.
Figura 10- Raw vol. 1 #7. Art Spiegelman, 1985.
Figura 11- Nick Fury: Agent of S.H.I.E.L.D. Marvel Comics, 1968.
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Figura 12- JLA Liberty and Justice. Alex Ross, 2003.
Apesar deste posicionamento onde aparentemente seria necessária uma inovação formal e de uma expressão pessoal nos quadrinhos para que estes fossem considerados como arte, temos os quadrinhos como manifestação popular, uma forma de manifestação popular que pode ser entendida como aquela que pode atender aos leitores, na medida em que as imagens podem exercer um papel facilitador na representação das histórias. Contudo, um caráter mais popular das HQ parece, conforme a perspectiva de Carlin, colocar em xeque a possibilidade e seu papel em contribuir para uma ―história da arte Americana‖. A questão é saber se em seu papel de arte popular isso seria necessário. Além disso, uma arte popular também pode se articular como reflexo de aspectos sócio-culturais e políticos da sociedade. Seja nas práticas de enfrentamento e criticidade histórica de ―Yellow Kid‖ (Figura 13) ou nos conflitos familiares de ―Bringing up father‖ (Figura 14), quando, podemos dizer, temos a valorização de uma expressão popular em sua ―impureza plena‖ e/ou um viés caricatural assumido de forma positiva, conforme se deu em manifestações anteriores aos dos quadrinhos, como em Hogarth, Gillray e Angelo Agostini, defesa antes já exposta por Baudelaire (1855): uma ―beleza indefinível‖ dos trabalhos que buscam intencionalmente representar uma feiúra moral ou física. 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Figura 13- Yellow Kid. Outcault, 1896.
Figura 14- Bringing up father. George McManus, 1935.
Deve-se considerar, contudo, que o caráter inovador de certos trabalhos não o desqualifica como popular em termos de sucesso ante o público (diferente do indicado por Adorno (1968)), apesar de que uma grande aceitação não ocorre sempre com trabalhos experimentais, como em Krazy Kat. Seu papel em meio aos outros seria o de mostrar novas possibilidades de construção que são eventualmente incorporadas e transformadas em regras (―McKay estabeleceu a norma e as exceções‖ (CARLIN, 2005,
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p.68)). Contudo, isto não implica, conforme Adorno (1968, p.334), que isto leve a um progresso artístico. Se for possível falar em uma norma para os quadrinhos, podemos considerar um aspecto que, apesar de não perpassar todas as HQ, as caracteriza em grande parte, a simplicidade. Tanto do texto como da imagem, bem como da junção destes dois modos que formam a mensagem, o que para McCloud (1994, p.30) seria útil na popularização de uma identificação específica, uma amplificação através da simplificação. Além disso, os quadrinhos como arte popular devem ser pensados em termos do suporte a que eles estão vinculados, o que permitiu a sua popularização. O jornal, mídia de massa, cumpre inicialmente este papel para as tiras em quadrinhos. Com o surgimento das revistas em quadrinhos, temos um suporte próprio que permitiu ampla disseminação. Posteriormente, a Internet e o formato do livro assumiram este papel. Considerando esta relação intrínseca dos quadrinhos com a mídia de massa, temos um desafio à convenção de que a arte não faria parte deste contexto. Para Adorno (1968, p.59), a arte Moderna deve ser impopular, por estar ligada às vanguardas da arte. A própria tradição artística, para ele, envolve uma renovação constante onde a novidade é incorporada à tradição. Como resultado, temos uma arte que só pode ser alcançada por uma elite privilegiada. Assim, Adorno define arte de acordo com um progresso histórico e todas as manifestações populares são consideradas como inferiores, kitsch ou divertimentos de uma indústria cultural. Propõe, assim, uma divisão entre uma arte ―verdadeira‖ e uma arte ―falsa‖, que substitui a primeira e é destinada a uma massa cega. Trata-se de uma visão exclusivista de uma arte erudita que manteria o domínio de uma legitimidade estética. O que para Groensteen (2000, p.33) seriam possíveis agravantes de um comprometimento das HQ perante a interpretação da arte pelas autoridades legitimadoras e pelos críticos de arte, na verdade são aspectos que podem atestar uma legitimidade própria: seu caráter híbrido entre texto e imagem, sua ambição narrativa, sua origem na caricatura e sua aparente falta de definição do público-alvo a que se destina. Para Pettibon (2005), como forma artística, os quadrinhos não precisam de uma validação de uma cultura erudita com suas condições e permissões e nem precisam figurar como peças de museu, pois pertencem a um outro domínio e tem uma outra função distinta daquela de ser emoldurada ou figurar em uma vitrine. 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
A própria utilização da denominação de arte para os quadrinhos implica em uma sujeição a julgamentos de valor questionáveis por parte dos críticos de arte eruditos, como arte barata ou ―muito popular‖. Shusterman (1998, pp.43-44) (via Dewey) traz a experiência estética como aspecto de maior relevância do que uma tradição ou evolução da história da arte, pois toda a tradição só redundou, conforme Danto (1996), em uma redução e exclusão em um caminho de purificação que levaram ao fim da arte. Assim, segundo Shusterman (Ibid), poderíamos tentar, após o fim desta arte institucional, resgatar uma arte legítima para uma experiência estética legítima, considerando ―as formas que a história oficial da arte e suas instituições elitistas privaram durante muito tempo de respeitabilidade‖. Assim, uma arte popular pode ser resgatada sem ter de recorrer a uma estética erudita dominante e sim em função da experiência estética que ela nos oferece, que, no caso dos quadrinhos, para Groensteen (2000, p.36), envolve não apenas um prazer com a história, mas também prazer com a arte, uma emoção estética fundada na apreciação da expressividade da composição. Nos quadrinhos, contudo, atualmente, não é possível falar em uma cultura essencialmente popular que se distanciou da cultura erudita, em função da incorporação constante de influências que fazem dos quadrinhos uma afronta contra qualquer tentativa de distinguir rigidamente artes maiores e populares, colocando em questão a noção de tais critérios.
Conclusão
As perseguições sofridas pelas HQ indicam aspectos que auxiliariam na desligitimação das HQ por aqueles que têm o poder de determinar o que seria arte, com críticas nem sempre positivas, ecoando no posicionamento de críticos de arte e filósofos especializados em estética. Certas fusões entre artes plásticas e HQ, em ambos os lados, colocam em xeque divisões estritas entre arte popular e erudita, questionando as separações mais essencialistas impostas pelos responsáveis pela definição institucional de arte. Classificações como uma arte degenerada (antes do contato com a arte erudita) indicam uma pretensão inconcebível para o momento atual, onde os quadrinhos têm espaço garantido em exposições e onde o número de estudiosos da área e espaço em universidades vem crescendo.
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Se considerarmos a historia das HQ, pode-se perceber certos exemplos onde um comportamento de vanguarda ou suas influências se fazem sentir. Como propostas elitizadas ou não, estes exemplos parecem apontar não para as ―ansiedades adolescentes‖ que, segundo certos filósofos caracterizariam grande parte das HQ, mas para ―ansiedades estéticas‖. Deve-se considerar a possibilidade de harmonia nas formas diversas das HQ e não apenas naquelas que se referem a uma arte erudita. Uma expressão artística para além de uma simples inovação formal parece apontar para a experiência estética, quando não se exige mais uma referência externa de uma arte erudita aos quadrinhos, apesar de qualquer destes aspectos poderem ser incluídos. Quanto à participação em uma história da arte, a presença das HQ é possível e até determinante de novas correntes e tendências, porém para que os quadrinhos sejam considerados obra de arte (ou mesmo serem assim categorizados) não há a obrigatoriedade de um diálogo com uma história da arte qualquer. Assim, considerando sua relação com esta história, não é a partir desta relação que há uma obrigatoriedade ou uma determinação de sua condição estética. Ao assumir uma ―impureza plena‖ ou sua condição como ―lixo‖ em termos estéticos, nas HQ talvez seja possível brecar qualquer tentativa de purificação estética ou
resistência
a
misturas
entre
elementos
de
diversos
níveis
distintos.
Também percebemos nas HQ uma renovação constante, porém esta não é determinante e muito menos obrigatória. Por mais que sejam inseridos aspectos inovadores, estes não indicam necessariamente uma impopularidade. E, por outro lado, existe um compromisso com uma simplicidade que também pode levar a uma idéia de purificação que restringe a expressividade e a popularidade das HQ. Assim, apesar da preocupação em entender esteticamente as HQ, deve-se assumir que seu espectro artístico não se restringe mais a um âmbito popular ou erudito, ou de alta arte ou arte degenerada, mas pólos distintos em simultaneidade.
Referencial bibliográfico: Adorno, Theodor. Aesthetic Theory. New York: Continuum International Publishing group, 2004 (1968). Armstrong, Tom. ―Foreword‖. In: The Comic Art Show: cartoons in painting and popular culture. New York: Whitney Museum of American Art, 1983. Baudelaire, Charles. ―On the essence of laughter and, in general, on the comic in the plastic arts‖. In: The painter of Modern life and other essays. London: Phaidon, 1964 (1855). Carlin, John. ―Masters of American comics: and art history of twentieth-century 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
American comic strips and books‖. In: Masters of American comics. ed.: John Carlin, Paul Karasik, Brian Walker. Los Angeles: Hammer Museum and the Museum of contemporary art, 2005. Carlin, John. Thompson, Kim. Nothing is sacred: From EC to underground comix. In: The Comic Art Show: cartoons in painting and popular culture. New York: Whitney Museum of American Art, 1983. Carlin, John. Wagstaff, Sheena. Introduction. In: The Comic Art Show: cartoons in painting and popular culture. New York: Whitney Museum of American Art, 1983. Carrol, Noël. Beyond aesthetics: philosophical essays. New York: Cambridge University Press, 2001. Danto, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edusp, 2006 (1996). Feiffer, Jules. The great comic book heroes. Seatle: Fantagraphics, 2003 (1965). Groensteen, Thierry. ―Why are comics still in search of cultural legitimization‖. In: Comics & culture: analytical and theoretical approaches to comics. ed.: Anne Magnussen, Hans-Christian Christiansen. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2000. McCloud. Scott. Understanding comics: the invisible art. New York: William Morrow Paperbacks, 1994. Pettibon, Raymond. ―Eisner by Pettibon‖. In: Masters of American comics. ed.: John Carlin, Paul Karasik, Brian Walker. Los Angeles: Hammer Museum and the Museum of contemporary art, 2005. Shusterman, Richard. Vivendo a Arte: o Pensamento Pragmatista e a Estética Popular. São Paulo: Editora 34, 1998.
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Entre o sonho e devaneio Luis Felipe Castro Alencastro Resumo: A partir das noções bachelardianas de Sonho e Devaneio, este artigo relaciona a crítica da psicanálise e da representação por Deleuze e Guattari com momentos-chave do arco de narrativas de ―Sandman‖. Reavaliando o papel do onírico em seu enredo, encontramos abertura para uma nova teoria do trágico nos quadrinhos - a possibilidade de encarar o Sonho como a circularidade do trágico, e o Devaneio como a linha de fuga para além dessa circularidade. Palavras-chave: Bachelard, sonho, Deleuze, Sandman. Abstract: From the Bachelard notions of Dream and Daydream, this article relates the critique of psychoanalysis and representation, by Deleuze and Guattari, with key moments in the narrative arc of “Sandman”. Reassessing the role of dream in his plot, we find the opening for a new theory of the tragic in the comics - the chance to face the Dream as the circularity of the tragic, and Daydream as the escape line beyond this circularity. Key-words: Bachelard, dream, Deleuze, Sandman.
O sonho e o devaneio em Bachelard Bachelard (1960, p.60) distingue os conceitos de devaneio e sonho como as diferenças que existem na relação comportamental do ser humano em relação ao dia e à noite, com diferenças de repouso, onde o dia como seus devaneios lúcidos é feito para repousarmos dos sonhos noturnos, pois no sonho apenas o corpo repouso, a alma não. A abertura indicada por Bachelard para o sono é uma porta aberta para fantasmas, onde o dia seria necessário para mandá-los embora ou desentoca-los. O devaneio do dia, por outro lado, está relacionado a uma tranqüilidade lúcida e repousante, onde a alma pode descansar. O sonho noturno parece estar associado a uma sombra de um sonhador que perdeu seu próprio eu. O devaneio, por outro lado, é uma atividade onírica na qual vigora uma clareza de consciência com um sonhador que mantém presente em seu devaneio. ―Mesmo quando o devaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora do tempo e do lugar, neste caso é o próprio sonhador do devaneio o que se ausenta‖ (Ibid, p.144), um sujeito que se ausenta para dar lugar à imagem. Em termos de sonho noturno, Bachelard (Ibid, p.145) coloca que se uma consciência escurece, diminui e adormece, ela já não é uma consciência, diferente do devaneio que nos permite ter uma consciência de nós mesmos. A consciência poética pode despertar a partir de milhares de imagens dos livros. 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
No devaneio, temos uma trans-subjetividade com uma aceleração de imagens dentro ode si. O sujeito fica maravilhado com as imagens poéticas – não descritivas, mas poemáticas – sem uma narrativa, mas com uma consciência imaginante que afasta tudo oi que foi aprendido e de uma imagem poética da qual se desconsidera as causas anteriores, porém revela-se sua importância e originalidade em relação com a imaginação. O devaneio é uma manifestação da anima, repleta de imagens (Ibid, p.61), já que a apreensão de imagens em anima nos põe em devaneio contínuo. Para Bachelard, o inconsciente do homem encontra expressão como personalidade interior feminina. Um devaneio não se conta, é preciso escrevê-lo com emoção com sua primitividade e inocência. As drogas, para Bachelard (Ibid, p.7), apenas mascaram o ser da inspiração. ―O devaneio poético escrito quando é transposto para a página literária vai ser um devaneio transmissível, um devaneio inspirador‖. No adormecimento propiciado pelo devaneio, o inconsciente sofre um declínio, para retomar sua ação nos sonhos do verdadeiro sonho (Ibid, p.11). ―O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos‖, uma ontologia da imagem direta do mundo, formada em um mundo mítico e sem narração. ―Dá ao eu um não-eu‖ que encanta o eu do sonhador e que os poetas nos partilham. ―Em face de um mundo real, pode-se descobrir em si mesmo o ser da inquietação‖, transmitindo uma ―confiança de estar no mundo‖ (Ibid, p.13). ―Mas o devaneio, em sua própria essência, não nos liberta da função do real? Se o considerarmos em sua simplicidade, veremos que ele é o testemunho de uma função do irreal‖ (Ibid), função do irreal esta que absorve e assimila o real. Com a imaginação e sua função do irreal no mundo do devaneio, segundo Bachelard (Ibid, p.14), ganhamos confiança. O devaneio cósmico é um fenômeno da solidão. ―Basta um pretexto – e não uma causa – para que nos ponhamos e ‗situação de solidão‘‖ (Ibid), uma solidão sonhadora. Aqui, as recordações são como quadros. Em termos de solidão também é possível perceber uma diferença entre sonho e devaneio. O sonho permanece carregado das paixões mal vividas na vida diurna. A solidão, no sonho, ―tem sempre uma hostilidade. É estranha. Não é verdadeiramente a nossa solidão‖ (Ibid). O devaneio nos ajuda a escapar do tempo. O espírito faz sistemas e agencia experiências diversas para tentar compreender o universo, se instruindo com o passado do saber. Não há correspondência entre saber e
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poesia. A alma, por outro lado, não vive o fio do tempo. ―Encontra seu repouso nos universos imaginados pelo devaneio‖ (BACHELARD, 1960, p.15). Elogio do esquecimento e da leveza – Nietzsche, Bergson e Calvino O início da segunda dissertação de Genealogia da Moral versa sobre o dramático e violento surgimento da memória no homem, que teve de vencer a resistência ativa do esquecimento. Longe de constituir uma espécie de ruído na comunicação de fatos passados ao presente, o esquecimento é ―uma força inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso sentido‖ (NIETZSCHE, 1887, p.22) e permite a digestão do peso da existência. ―O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico - de nada consegue ‗dar conta‘...‖. Num primeiro momento, Nietzsche relaciona esse peso que é necessário digerir às funções orgânicas, ―à luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir‖, o que remete em Bergson ao salto sui generis que soube separar das funções animais, concentradas no hábito, uma área livre na mente para hesitações, divagações e especulações. Em A Evolução Criadora esse salto é descrito com uma analogia surpreendente: ―A máquina a vapor primitiva, tal como Newcomen a havia concebido, exigia a presença de uma pessoa exclusivamente encarregada de manobrar as torneiras, seja para introduzir o vapor no cilindro, seja para ali jogar a chuva fria destinada à condensação. Conta-se que uma criança empregada nesse trabalho, e bastante aborrecida por ter de fazê-lo, teve a idéia de ligar por cordões as manivelas das torneiras ao balancim da máquina. Desde então a máquina abria e fechava suas torneiras ela própria; funcionava sozinha. Agora, um observador que tivesse comparado a estrutura dessa segunda máquina à da primeira, não teria visto mais que uma ligeira diferença de complicação entre elas. (...) Mas se endereçamos um lance de olhos às crianças, vemos que uma está absorvida por sua vigilância, que a outra está livre para divertir-se ao seu bel-prazer, e que, desse lado, a diferença entre as duas máquinas é radical, a primeira mantendo a atenção cativa, a segunda dispensando seus serviços. É uma diferença de mesmo tipo, cremos nós, que podemos encontrar entre o cérebro do animal e o cérebro humano‖ (BERGSON, 1907, pp. 199-200).
Veremos com Deleuze que uma segunda instância desse esquecimento deve ser buscada fora das funções orgânicas stricto sensu – na luta contra a organicidade teleológica da busca por semelhança e fidedignidade nos testemunhos, da representação precisa das coisas passadas a palavras. Ítalo Calvino, em sua conferência sobre a Leveza (2007, p.15) fala de sua dificuldade inicial em escrever, dificultada pelo compromisso de falar dos ―fatos da vida‖, de remeter ao ―pesadume, à opacidade, à inércia do mundo‖. Foi-lhe necessário 28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
transformar esse peso em instrumento para a leveza, tal qual Perseu ao decapitar a Medusa e passar a usar sua cabeça como arma contra os inimigos. (CALVINO, 2007, p.17) O esquecimento ativo da fabulação, da ficção, que contrapõe ao peso do fidedigno a leveza da criação, deve ser voluntário como o devaneio em Bachelard. De fato, ele é o próprio devaneio. Em Sandman, o personagem Morpheus reina sobre os sonhos, mas também sobre as estórias. Sua biblioteca contém, como no conto de Jorge Luis Borges, todas as obras que existiram e as que não existiram, e é descrita sua associação com Shakespeare (Sandman #13), pela qual o bardo inglês teria obtido inspiração para suas peças. Crítica da representação psicanalítica – O Anti-Édipo e o significante despótico Na crítica de Deleuze e Guattari à psicanálise, especial lugar é destinado à questão do significante. As livres associações descobertas por Freud no inconsciente produtivo foram logo reduzidas a um ―impasse de univocidade‖ (DELEUZE & GUATTARI, 1972, p. 77). A produção é submetida à representação. As diferenças entre as múltiplas atualizações do inconsciente são planificadas em prol de uma suposta semelhança originária a um trauma primeiro, ao ―teatro de Édipo‖ que já se presume de antemão como o termo da busca. ―É como se Freud tivesse recuado frente a este mundo de produção selvagem e de desejo explosivo, e quisesse introduzir aí, a qualquer custo, um pouco de ordem, a ordem clássica do velho teatro grego‖ (Ibid, p.77).
O expediente de interpretação dos sonhos é estruturado para responder à pergunta ―o que isto quer dizer‖, e não ao ―para que isto serve‖ das relações (Ibid, p.238). Os autores chamarão esse regime de signos de significante despótico. O problema tem de ser talhado sob medida para a solução previamente estipulada, para assim garantir a circularidade do jogo da representação. ―Pergunta-se: quais são as boas condições da cura? Um fluxo que se deixa carimbar por Édipo; objetos parciais que se deixam subsumir sob um objeto completo, ainda que ausente, falo da castração; cortes-fluxos que se deixam projetar em um lugar mítico; cadeias plurívocas que se deixam bi-univocizar, linearizar, pendurar num significante; um inconsciente que se deixa exprimir; sínteses conectivas que se deixam tomar por um uso global e específico, limitativo (...) Pois o que significa ―então era isso que isto queria dizer‖? Esmagamento do ―então‖ por Édipo e pela castração. Suspiro de alívio: veja, o coronel, o instrutor, o professor, o patrão, tudo isto queria dizer isso, Édipo e a castração...‖ (Ibid, p. 94).
Da mesma forma, o investimento primordial do desejo, que se dá no campo
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social (Ibid, p.363) é desconsiderado em prol de uma individuação do sintoma, que elege o sonho narrado no consultório do psicanalista como ―foro privilegiado‖ para a busca das representações (Ibid, p.464). É contudo no devaneio desperto que se está imerso nas relações sociais, e o inconsciente pode mostrar sua dimensão política, que é fundamentalmente produção e criação (Ibid, p.451). O problemático como saber específico da ficção Em seu trabalho teórico A Arte do Romance, Milan Kundera postula uma diferença fundamental entre o saber filosófico e/ou histórico e o literário, que remete ao paradigma deleuzeano do pensamento fundado no problemático e em sua potência, ao invés de falsos problemas feitos sob medida para respostas estáticas. ―O problema como problema é o objeto real da idéia‖ (DELEUZE, 1968, p.277) Pelas questões que suscitam sem a obrigação de respondê-las, Kundera reconhece uma trajetória temática nos romances desde Cervantes, passando por Diderot e Sterne, para marcar uma profunda mudança de orientação de Proust e Joyce de um lado para Kafka de outro: ―Joyce analisa algo de ainda mais inatingível que o ―tempo perdido‖ de Proust: o momento presente. Aparentemente não existe nada de mais evidente, de mais tangível e palpável do que o momento presente. E no entanto, ele nos escapa completamente. (...) Fala-se muito da sagrada trindade do romance moderno: Proust, Joyce, Kafka. Na minha opinião, essa trindade não existe. (...) é Kafka que abre a nova orientação: orientação pós-proustiana. (...) De que modo K é definido como ser único? Nem por sua aparência física (não se sabe nada dela), nem por sua biografia (não a conhecemos), nem por seu nome (ele não tem um), nem por suas lembranças, suas tendências, seus complexos. Por seu pensamento interior? (...) toda a vida interior de K. é absorvida pela situação em que ele se encontra preso, e nada do que possa ultrapassar essa situação (...) nos é revelado‖ (KUNDERA, 1986, pp.30-31).
Kafka conseguiu realizar a ambição fracassada nos surrealistas, fundir o sonho e o real (Ibid, p.22). Os surrealistas buscavam na representação freudiana do inconsciente um modelo para seus próprios métodos, que portanto teriam de ser também representações. A libertação kafkiana do jugo da verossimilhança faz do romance o lugar onde ―a imaginação pode explodir como num sonho‖ (Ibid, p.22, grifo nosso). A conquista de Kafka não está, portanto, subordinada a uma ambição de fidedignidade na descrição efetiva de um sonho, como na escrita automática ou nas alegorias surrealistas de objetos parciais. A imaginação explode como num sonho, mas no mundo desperto. Não são objetos que se assemelham, mas um mesmo processo de produção que se atualiza em duas instâncias: o inconsciente, que produz o sonho, e a imaginação, que produz o devaneio – entendido portanto como devir-sonho da 30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
consciência. ―A narração onírica; digamos antes: a imaginação que, liberada do controle da razão, do cuidado com a verossimilhança, entra nas paisagens inacessíveis à reflexão racional. O sonho é apenas o modelo dessa espécie de imaginação que eu considero como a maior conquista da arte moderna. Mas como integrar a imaginação descontrolada no romance que, por definição, deve ser um exame lúcido da existência?‖ (Ibid, p.79).
A exata situação de ―O Processo‖ não tem correspondência no mundo ―real‖. Ela é uma exacerbação, a exploração radical de uma possibilidade, sua problematização ad absurdum. O problema, explorado enquanto problema pelo romance, é a maneira do pensamento lidar com o indecidível. Gilbert Simondon coloca nesse indecidível a fonte da individuação, a anterioridade da relação a seus termos. O esquema hilemórfico de Aristóteles, matriz da fenomenologia em Kant, reflete e corrobora a ânsia humana por um saber feito de respostas, ―um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis‖ (SIMONDON, 1989, p.14), estruturado na medida de nossa percepção, julgamento e planos de ação. ―Ao nível do ser, tomado antes de qualquer individuação, o princípio do terceiro excluído e o princípio da identidade não se aplicam; estes princípios não se aplicam a nada além de ao ser já individuado, e eles definem um ser empobrecido, separado em meio e indivíduo; eles não se aplicam, assim, ao todo do ser, isto é, ao conjunto formado ulteriormente pelo indivíduo e pelo meio, mas somente àquilo que, do ser pré-individual veio a ser indivíduo. Nesse sentido, a lógica clássica não pode ser empregada para pensar a individuação, pois ela obriga a pensar a operação de individuação com conceitos e relações entre conceitos que só se aplicam aos resultados da operação de individuação, considerados de maneira parcial.‖ (Ibid, pp.35-36)
Sem essa necessidade de verossimilhança ao suposto originário já individuado que autorize uma teleologia, o saber específico da ficção / do devaneio é por natureza dinâmico e produtivo. Os personagens de uma ficção são os pontos de contato entre esses vetores relacionais e problemáticos: assim como nós, são criados a partir das relações num processo constante de individuação.
Morpheus: rei dos sonhos ou personificação do devaneio? O arco de graphic novels Sandman estrutura-se em torno do drama do Rei Sonho, Morpheus: um ser supra-divino, um dos sete chamados ―perpétuos‖ (endless), personificações de princípios que regeriam a vida no universo. Seus nomes em inglês começam todos com a letra D: dos mais velhos aos mais novos, Death, Destiny, Dream, Destruction,
Desire,
Despair
e
Delirium
(Desencarnação/Morte,
Destino,
Devaneio/Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio). Morpheus, na Grécia mitológica, uniu-se à ninfa Calíope e esta lhe deu um 31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
filho, Orfeu. Como no mito já bem conhecido, ele não se conforma pela perda de Eurídice e desafia o comando de seu pai, indo à morada dos mortos para trazê-la de volta. Com o fracasso do plano, Orfeu se isola dos homens e é eviscerado pelas bacantes em fúria. Dele sobra apenas sua cabeça, viva e consciente, que Morpheus visitará para deserdá-lo e amaldiçoá-lo com a impossibilidade de morrer. Por volta da Idade Média, Destruição resolve deixar seu reino, dizendo que os homens podem lidar com sua ―dádiva‖ sem ninguém no comando. Isso afeta profundamente Morpheus, que encara seus deveres com uma seriedade absoluta. É de se salientar que ele não se mata; a morte de um perpétuo coloca outra ―pessoa‖, outra personalidade, em seu lugar. Ao contrário, fazendo-se nômade Destruição mantém o caos em seu reino abandonado.1 No tomo Vidas Breves, Delírio interpela Morpheus para tentarem – no tempo atual – achar Destruição e pedir que ele volte. Ocorre que a única forma de descobrirem seu paradeiro é através de Orfeu, o oráculo da família dos perpétuos. Morpheus então, transtornado a ponto de Delírio ter de chamá-lo à razão, vai ao encontro do filho depois de milhares de anos. Orfeu fornece a informação, mas em troca pede que seu pai o mate. A morte de Orfeu, entre outros incidentes que seria muito extenso descrever aqui, invoca as Fúrias, divindades gregas que vingam o assassinato de pessoas por seus parentes. Permanecendo em seu posto, Morpheus será destruído. Ele tem a alternativa que Destruição já apontara: tornar-se um nômade entre os reinos alheios, sem pouso fixo – o que equivaleria a assumir seu aspecto de devaneio nas linhas de fuga da criação constante, do esquecimento ativo. Essa saída é lembrada por Nuala, uma fada que serviu o Rei dos Sonhos por vários anos e era apaixonada por ele, numa passagem riquíssima em interpretações (Sandman #67) (Figura 15). Premido pela culpa da morte do filho e pela responsabilidade em relação a seu reino – pela má consciência nietzscheana, portanto 1
Seria pertinente o estudo da relação entre a decisão de Destruição e a pesquisa etimológica feita por Giorgio Agamben do termo ‗bando‘ e seus derivados no livro Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Já na continuação desse estudo intitulada O Sacramento da Linguagem, Agamben inverte a relação comumente aceita entre os etnólogos de que a origem do juramento como ato de fala dá testemunho de uma religiosidade ancestral, mostrando, ao contrário, que Deus é uma função surgida a partir do advento da linguagem, um lastro necessário entre as palavras e as coisas – os próprios deuses gregos deviam obedecer ao juramento, ao horkhos. A tragédia de Morpheus, o Rei das Estórias, se baseia nessa necessidade de cumprir os juramentos, como o de matar seu filho em troca do paradeiro de Destruição; de cumprir as incumbências, as responsabilidades, que em última análise fundam entre palavras e coisas a verossimilhança fundamental para o surgimento das próprias estórias. 32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Morpheus declina.
Figura 15- Sandman #67. Neil Gaiman, 1993.
Conclusão – os pares antitéticos, ou os Perpétuos e a mudança Na ocasião do encontro de Morpheus e Delírio com Destruição (Sandman #48) (Figura 16), este os leva para contemplar as estrelas à noite. Ao pedido do rei dos sonhos para que ele volte a ocupar suas funções como um dos Perpétuos, Destruição responde: - Os Perpétuos? Os Perpétuos são idéias. Os Perpétuos são padrões de formas de onda. Os Perpétuos são temas recorrentes. Os Perpétuos são ecos da escuridão, e nada mais (...) nossa irmã [Morte] define a vida, do mesmo modo que Desespero define a esperança, ou Desejo define o ódio, ou como Destino define a liberdade. - E o que eu [Morpheus] defino, pela sua teoria? - A realidade, talvez? (GAIMAN, 1993, p. 16) (Figura 17).
Figura 16- Sandman #48. DC Comics, 1992.
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Figura 17- Sandman #48. DC Comics, 1992. 34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Como vimos em Simondon, a individuação separa em pólos opostos sujeito e objeto, indivíduo e meio. Essa polarização, entretanto (como a física quântica já corrobora em seu campo de saber específico2), é posterior à relação entre ambos, ao devir paradoxal que só quando se estabiliza de alguma forma, tornando-se semelhante a si mesmo, pode produzir indivíduos, sejam eles coisas, personagens ou pessoas. É tratando dessa forma os caracteres ficcionais, como explorações radicais de possibilidades de relações, que o saber específico da ficção ganha importância. Como numa construção em abismo, a história do Rei das Estórias pode ser lida como uma luta entre as forças restritivas do sonho e as forças libertadoras do devaneio, com vitória trágica das primeiras. Preso às suas funções atávicas e ao teatro grego da formação edipiana, Morpheus irá ao encontro das Fúrias – entidade tripartite ligada não por acaso à vingança (ao não-esquecimento) e à família – para expiar com a morte sua ―má consciência‖. Mas essa vitória trágica é, por outro lado, a demonstração de uma possibilidade radical; é a exploração da maior das questões, a da própria individuação, da constituição do ser como semelhante a si, senhor de seus atos e sujeito de sua história. Desse ângulo o peso se transmuta em leveza, e podemos contemplar a imagem direta do ―mundo dos mundos‖ enquanto testemunhamos o mesmo processo em nós mesmos, dando nosso eu ao ―não-eu‖ do devaneio e da criação – definida em Sandman pelas palavras do senhor da Destruição. Referencial bibliográfico: AGAMBEN, Giorgio. O sacramento da linguagem. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011. ______________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008 (1995). BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996 (1960). BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005 (1907). CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras, 2007. 2
A substituição em física do modelo de tempo reversível de Newton e Einstein pelo tempo não-reversível da termodinâmica foi a base para a teoria quântica. Começou-se a perceber que incluir a variável temporal em sistemas de equações reversíveis é contraditório com a própria idéia de medição, que só pode ocorrer num momento X relacionado com a memória não-reversível de um passado Y (PRIGOGINE, 1996, p. 78). Além disso, a própria medição condiciona seu resultado (GLEISER, 2011, p. 251); a maneira mais correta de definir ―partícula‖ seria, portanto, ―aquilo que o medidor de partículas foi feito para medir‖: a estabilização do pré-individual em sujeito e objeto da medição. 35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 1987 (1968). DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-édipo. São Paulo: Ed. 34, 2010 (1972). GAIMAN, Neil. Sandman #48. New York: DC Comics, 1993. GLEISER, Marcelo. Empirical incompleteness and the laws of nature. In: Alberto Santoro: a life of achievements, org.: CARUSO, F. et al,. Rio de Janeiro: AIAFEX Editora, 2011. KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Cia das Letras, 2011 (1986). NIETZSCHE, Friedrich W. A genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Cia das Letras, 2011 (1887). PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. São Paulo: Ed. Unesp, 2009 (1996). SIMONDON, Gilbert. L’individuation psychique et collective. Paris: Ed. Aubier, 1989.
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O Bravo e o Notável: heroísmo, nivelamento existencial e a superação do herói Fábio François1 Resumo: Este é um exercício preparatório para uma reflexão sobre o tema do niilismo na contemporaneidade a partir do enredo da história em quadrinhos Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. Com base numa aplicação livre da hermenêutica existencial proposta por Martin Heidegger, considera-se a estrutura cultural do herói em sua função instauradora de horizontes compartilhados de compreensão ontológica, a qual se daria segundo uma dinâmica reiterável de contraposição ao perigo de desvanecimento destes horizontes. Ao fim, propõe-se que o esgotamento deste potencial instaurador encontra uma de suas expressões no gênero narrativo dos super-heróis. Palavras-chave: Watchem, Heidegger, Niilismo Abstract: This is a preparatory exercise for a reflection on the theme of nihilism in contemporaneity in the comic book storyline of Watchmen by Alan Moore and Dave Gibbons. Based on a free application of existential hermeneutics proposed by Martin Heidegger, it is considered the cultural structure of the hero in his building function of shared horizons of ontological understanding, which would happen according to a repeatable dynamic of opposition to the danger of fading of these horizons. Finally, it is proposed that the depletion of this building potential finds one of its expressions in a narrative genre of superheroes. Key-words: Watchem, Heidegger, Niilism.
―O Super-homem existe e ele é americano‖! Esta exclamação expressa a profunda transformação que marca de modo irreversível o mundo ficcional em que se passa a história de Watchmen. Nesta configuração possível dos fatos, o advento do Dr. Manhattan teria assegurado a hegemonia do Ocidente sobre todo o planeta, teria instaurado inovações tecnológicas que tornariam tudo que era significativo passível de se tornar obsoleto e teria alterado de modo aterrador nosso modo de compreender o mundo e nossa própria existência. Do muito do porque se pode dizer o quanto esta obra foi impactante no gênero das histórias em quadrinhos, é recorrente se observar que Watchmen mostra de modo verossímil e ricamente detalhado como seria o nosso mundo se ao menos um super-herói existisse de fato. Mas não seria impertinente perguntar, se o quadro que eu descrevi acima também não serve para descrever as mesmas perplexidades com que o mundo real se vê às voltas hoje em dia. É certo que em nosso mundo um ―Super-Homem‖ como o dos quadrinhos da DC Comics não existe, mas parece incontornável admitir que no século passado o Ocidente impôs seu 1
Doutorando em Filosofia (PPGLM/UFRJ), site: www.fitak7.blogspot.com email:fitak7@gmail.com
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modo de produção ao resto do mundo e assimilou todas as culturas em seu jogo de mercado, que os avanços da ciência cada vez mais desafiam o que tínhamos por natural e sagrado, que os parâmetros de sentido que dispomos para compreender nosso destino no mundo são relativizados e abolidos de modo cada vez mais trivial. Neste caso, talvez não fosse exato dizer que Watchmen mostra apenas como o mundo poderia ter sido, já que algo de decisivo e inquietante na contemporaneidade em que de fato vivemos parece estar em questão nas suas páginas. Ocidentalização e mercantilização da humanidade, avanço irrestrito e irrefreável da tecnologia sobre nossa liberdade, esvaziamento de valores, tudo isso conhecemos também em nosso mundo real e nada disso se explica por si mesmo no que tem de decisivo e inquietante. Talvez, portanto, o decisivo e inquietante se esconda no próprio elemento fantástico do enredo de Watchmen, o gênero narrativo que esta obra revolucionou e, implicitamente, tematizou o próprio esgotamento. Protagonista de narrativas ficcionais fantásticas, o super-herói não existe. No entanto, o super-herói guarda alguma pertinência, que nos cabe elucidar, com o herói, o qual muitas vezes, existe e, pensam alguns, de um modo que nos desperta algum tipo de reverência. Deste modo, refletir sobre super-heróis pode nos ajudar a compreender a nosso próprio respeito, nós, que não existimos meramente como as coisas dispostas no mundo e indiferentes à própria sorte, mas que estamos empenhados no questionamento por nossa existência: quem somos nós, que ora questionamos? O que nos compete? Pelo que respondemos? O que se nos destina? Explicar como e por que este gênero narrativo surgiu nesta era e neste lado do planeta, especificamente na nação que conquistou a supremacia militar e econômica do Ocidente, pode nos ajudar a compreender muito da maneira como já estamos conduzindo este questionamento na nossa cultura. Super-heróis guardam alguma pertinência com heróis. Que relação é esta? Estão heróis e super-heróis sob um mesmo gênero, como diferentes espécies? Seria os superheróis uma evolução? Ou uma decadência? Se quisermos ser honestos neste primeiro momento do questionamento, temos que reconhecer que por enquanto dispomos apenas de palavras. E o que as palavras podem nos sugerir agora é que o super-herói é a superação do herói por alguém, ou talvez até mesmo algo, que não sabemos bem o que seja. Como e porque cabe e se impõe em nosso tempo a superação do herói, é algo que só podemos começar a discutir uma vez que tenhamos compreendido o herói em seus fundamentos e repercussões, quer dizer, elucidando o que é, de onde se origina e a que 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
se destina o herói.
1. Heroísmo na contemporaneidade: o herói cotidiano e o herói do passado recente
Super-heróis não existem, mas heróis, em algum sentido, sim. Ou pelo menos, existem pessoas concretas cujos feitos e realizações são reconhecidos e recordados como ocasiões em que o heroísmo se dá. Na cotidianidade que nos é mais imediata, o heroísmo ainda não é uma ideia carente de relevância e força para motivar nossos projetos, atitudes e convicções. Há mesmo situações específicas em que o heroísmo é de algum modo esperado, eventualmente celebrado, e até mesmo exortado, como nas guerras e nos desastres naturais. Há profissões que parecem, por princípio, reivindicar em seus fundamentos mais puros, alguma disposição do profissional para com esta ideia, como seria de se esperar dos policias, investigadores, bombeiros e militares. De modo geral, pensa-se que estas ocasiões e formas de vida combinam e confrontam, o perigo e a coragem. O confronto entre o perigo e a coragem não define o heroísmo, apenas é o que habitualmente consideramos ser a ocasião propícia para que ele venha a se dar. Mesmo alguém que seja cético sobre as implicações morais e idealistas do tema, não vai recusar que ele gira em torno de pessoas específicas cujos atos foram interpretados como especialmente significativos por uma comunidade ou uma cultura, mesmo que seja apenas para esvaziar esta interpretação de fundamento e confirmação. Esta é uma questão que terá que voltar no curso deste exercício. Por ora, convém focar nestas pessoas que foram, ou podem vir a ser, heróis, o que elas fizeram ou que se lhes espera que façam. Geralmente a objeção cética aqui vem a pretexto de uma crítica do Estado e das instituições militares, que recorrem de modo sistemático ao simbolismo ligado ao tema. Tentemos um exemplo, entre outros, que se fez reverenciar justamente por resistir à autoridade destas instituições. João Cândido Felisberto, o Almirante Negro. Quem foi João Cândido? Observemos que uma resposta a esta questão é tanto mais significativa quanto melhor nos conduz ao contexto em que João Cândido se faz digno de ser questionado, quanto melhor mostra que este contexto é algo que nos vincula e se faz ouvir. A frase-resposta da criança que memoriza para a prova, ―foi o líder da Revolta da Chibata‖, pode estar correta, na medida em que, no gabarito da prova, está previamente
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ordenada à frase-questão ―Quem foi João Cândido?‖, mas pode não ter significado algum para esta mesma criança ou para o seu professor, se não os conduz ao resgate do horizonte compartilhado em que João Cândido diz respeito a ambos. Uma resposta interessante aqui requer um esforço de síntese do curso de uma vida em torno de um momento especialmente decisivo e das repercussões deste momento ao que antecede e convoca a quem pergunta e a quem responde. Tentarei aqui um esboço. Negro, filho de escravos libertos, nasceu no interior do Rio Grande do Sul, oito anos antes da Abolição. Aos 14 anos, recomendado por Oficiais que contaram com sua ajuda na captura de um criminoso, ingressa na Marinha, onde se destaca pela disciplina e habilidade como timoneiro. Em 1910, revoltosos com a manutenção dos castigos físicos degradantes, marinheiros de diversos navios se amotinam de modo coordenando, tomando o comando das respectivas embarcações e se reunindo numa esquadra rebelada que sitiou a capital do Brasil por 4 dias, exigindo, sob pena de bombardeio à cidade, que se extinguisse o castigo da chibata na Marinha, um resquício da escravidão que representava a continuidade da hierarquia racial dos oficiais brancos e de origem aristocrática em relação aos praças pobres e, em sua grande maioria, negros. João Cândido se destaca como líder, idealizando a revolta e comandando a esquadra revoltosa do Encouraçado Minas Gerais, maior navio da armada brasileira. Sem meios de defesa, o governo brasileiro aceita as reivindicações e concede anistia aos rebelados, nominalmente, ao menos. Nos dias e anos que se seguem ao fim da revolta, os marinheiros que tomaram parte da mesma são sistematicamente perseguidos, presos e torturados, mediante pretextos e subterfúgios que dissimulavam o intento premeditado de fazer com que pagassem pela ousadia anterior. Ainda por volta de 1910, João Cândido e outros 17 marujos são mantidos por 18 meses na Ilha das obras, recolhidos numa cela subterrânea escavada em rocha viva. No local é administrado cal virgem. Dos 18 ocupantes, só João Cândido e outro colega sobrevivem à morte por asfixia e condições degradantes. Depois de absolvido das acusações forjadas pelo comando da Marinha, João Cândido é expulso da corporação para viver discriminado e perseguido, sendo ao longo da vida repetidas vezes preso pelo pretexto da ocasião ou recolhido ao manicômio. Aos 89 anos morre no anonimato imposto pela Marinha a ele e a quem mais insistisse em recordar e esclarecer a Revolta da Chibata e o destino dos seus protagonistas. Só recentemente tem sua memória e dignidade restauradas publicamente. No 40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
contexto da já tardia tentativa que se verificou nos últimos anos de saldar a dívida histórica da escravidão no Brasil, manifesta na reivindicação por ações afirmativas e políticas de inclusão para a população negra brasileira, resgatar do esquecimento o legado do Almirante Negro se impôs como um imperativo moral. Em 2007 é determinada a inscrição do nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria, mantido na Praça dos Três Poderes, em Brasília. No mesmo ano é inaugurada nos jardins do Museu da República estátua em sua homenagem, que hoje está situada na Praça XV, Rio de Janeiro. Em 2008 é promulgada Lei que lhe concede anistia postmortem. Permanece ainda pendente a reintegração do nome de João Cândido ao quadro da Marinha do Brasil, bem como a reparação civil para seus descendentes. Afinal, creio que hoje não falta quem acredite que João Cândido fez mais pelo Esclarecimento político no Brasil do que qualquer um dos tradicionalmente laureados patronos do Estado brasileiro que viveram em sua época. Na verdade, tenho certeza, eu mesmo tenho-me firme nesta convicção2. Temos aqui uma resposta minimamente consistente à questão, ―quem foi João Cândido?‖. Ela se expressa numa história do passado mas que se faz ouvir no presente. Nós mesmos, enquanto brasileiros, temos uma história, que está em aberto e passa atualmente por acontecimentos decisivos, e neste caso, decisivos são acontecimentos que resgatam e recolocam em termos mais amplos e profundos nossa identidade como brasileiros. A história de João Cândido vincula a nossa, nos chama do passado e nos inspira para o futuro. Sua história não é uma sequência extensiva e arbitrária de acontecimentos, mas sim uma unidade narrativa coordenada em torno de um acontecimento decisivo, a Revolta da Chibata, que nos vincula no seu ecoar inspirador para as transformações políticas e sociais que se fazem hoje reivindicar. João Cândido é lembrado como alguém que, neste momento de decisão, recusou o habitual e o conveniente, e respondeu à situação em sua singularidade, com vistas às questões que hoje nos mobilizam: a justiça, a liberdade e a verdade. Resgatando o seu legado, recolocamos o horizonte de singularização em que questionamos pelo que nos é mais próprio, nós, brasileiros, que estamos aqui questionando. Por tudo isso, podemos dizer, que João Cândido é um herói para o nosso povo. Duas condições, portanto, determinam o modo como nos remetemos aos nossos heróis e o modo como estes nos fazem fazem chegar os seus feitos. O herói nos fala 2 Hemeterio & Gadelha Neto, 2009. 41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
através de uma história que nos vincula, nos fala de um passado que ainda se faz repercutir. E sua história nos vincula porque, assumindo o herói sua singularidade mais extrema, instaura o acontecimento a que remetemos a nossa própria singularidade histórica, que nos antecede e que se abre para as tarefas em aberto. Podemos fixar isso de modo mais sucinto: o herói, se fazendo ouvir do passado, nos convoca ao questionamento por nossa singularidade mais extrema e abrangente3. Não teremos chegado a uma interpretação ampla e eminentemente crucial do heroísmo se não recuperarmos as intuições inicialmente apontadas. Indiquei que na cotidianidade mais imediata, a ocasião para o heroísmo era suposta nas situações e formas de vidas que confrontam o perigo e requerem coragem. O perigo e a coragem da casuística cotidiana, quero dizer, as coisas que especificamente consideramos perigosas, e os atos que especificamente consideramos corajosos, são interpretados nestes termos a partir de um perigo e de uma coragem fundamentais, no sentido de que seu confronto recíproco se dá por ocasião do questionamento por nossa singularidade histórica. Há portanto, um confronto primordial entre o perigo e a coragem radicado em nosso questionamento por quem somos. No curso desta investigação se pretende mostrar de modo mais convincente o que já foi insinuado de início, que somos a cada vez a possibilidade recolocada deste questionamento. Logo este confronto mais fundamental de perigo e coragem teria um teor ontológico. O perigo que o herói confronta ameaça algo que nos é primordialmente significativo, algo a que o herói vem em socorro. O herói vem em socorro do indefeso, do injustiçado, da mulher e da criança, do filho, do sagrado.
O que nos é
primordialmente significativo é o que desempenha um papel nuclear e fundante nas práticas e contextos dentro dos quais encontramos familiaridade, o horizonte em que as coisas nos surgem em seu significado específico. Podemos chamar este horizonte de mundo, se com esse nome não tivermos em mente o sentido cosmológico da consideração da totalidade quantitativa de todas as coisas, mas o quadro de sentido em que as coisas são interpretadas como o que elas são e dentro do qual habitamos de modo nem sempre atento ao mesmo, no sentido em que, por exemplo, falamos de uma ―visão 3 Este me parece um modo mais consequente de se compreender o tema da autenticidade existencial na obra de Heidegger do que aquele que com frequência recorre a algum tipo de convicção íntima, subjetiva, dogmática e arbitrária (como por exemplo, sugere Ernst Tugendhat (1994, p. 97)). A decisão por nossas possibilidades mais próprias de ser não precisa reivindicar o voluntarismo de um sujeito livre em termos absolutos, mas pode tratar-se apenas do resgate, na reverência e comprometimentos históricos, do contexto discursivo (ou seja, compartilhado) que é propício para perguntarmos quais são estas possibilidades, sem necessariamente ser uma resposta conclusiva e exaustiva deste questionamento. 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
de mundo‖, quando queremos nos referir a este quadro. O perigo, aparentemente, vem de fora deste horizonte, o espreita no seu entorno, no que as coisas têm de opaco e desafiador a toda pretensão de sentido, no contra-senso, por exemplo, da ruína por força do tempo, da força irrefreável das catástrofes, da brutalidade da vida animal. Para enfrentar este perigo, é preciso ousar sair do horizonte de familiaridade que habitamos na maior parte das vezes e ir lá confrontar o perigo no não-lugar de onde ele nos desafia. A esta configuração mais evidente do perigo podemos chamar o desmundo. O primordialmente significativo exposto a perigo é a nossa singularidade mais própria que, sempre, de um modo ou de outro, já se perdeu e nos chama do passado para o seu resgate. Deste modo, o perigo já sempre rondou e ameaçou horizonte de familiaridade em que vivemos e seu marco fundador, e há de cedo ou tarde prevalecer, o que por sua vez decide que o sagrado, já de início, seja o indefeso e o injustiçado. De algum modo, na fundação deste campo aberto em que habitamos e nos orientamos, o perigo já se infiltrou e se impregnou em todos os seus desdobramentos, portanto, em tudo que surge como familiar. Não vem só ―de fora‖, portanto, mas se insinua também aqui entre nós, no habitual, no banal, no genérico e no fungível, e corrói o que é originário e singular no esquecimento, no cinismo ou na hipocrisia. Por isto a coragem do herói precisa ser também a ousadia de desafiar o mediano, onde o perigo já nos espreita. Ao perigo nesta configuração podemos chamar o descaso. Até aqui, segundo nos nossos resultados, paira uma ambiguidade no perigo e no horizonte de familiaridade que ele ameaça. Ele faz cerco a este horizonte, no desmundo, mas se insinua por dentro e a partir dele, no descaso. Não tenho ainda elementos para desatar esta dificuldade. Além disso, não esclarecemos porque o herói se faz necessário e isso mostra que não vislumbramos sua origem e seu destino. Sabemos que ele resgata e nos inspira a resgatar nossa identidade histórica do perigo que habita o opaco da natureza e a banalidade do esquecimento, mas não temos clareza do por que tal resgate foi um dia preciso, e porque é preciso ser retomado de tempos em tempos, o que é outro modo de admitir que não elucidamos ainda o perigo que está em questão. Com isto também não fica claro, para que precisamos ter coragem, qual o teor da coragem de que se carece, que coragem que a vida quer da gente. Nossa interpretação do que seja o heroísmo ainda se encontra indefinida.
2. Seguindo o rastro do herói mitológico
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Talvez não tenhamos tocado ainda o tema na originariedade que nossos próprios resultados recomendam. Até então temos nos esforçado na interpretação dos heróis contemporâneos, heróis cujo engajamento de algum modo nos vincula. Mas considerando o que já obtivemos, estes heróis de um passado mais recente podem ser tão somente espectros de heróis primordiais, que nos falam da origem da nossa cultura. A antiguidade grega é recorrentemente trazida nesta maneira de pensar, porque se supõe que a origem do Ocidente remete à experiência existencial grega. Parece que não asseguramos uma compreensão consistente do herói, presente ou passado, se não argumentarmos a partir do herói primordial e mitológico da Grécia Antiga. Ou talvez tenhamos insistido em elucidar o heroísmo como um fundamento que é discursivamente significativo para o nosso tempo, quando esta motivação pode ser de teor inefável e radicada no imaginário inconsciente, ou não-racional, da humanidade. Neste caso, o tema não comporta tanto uma problematização filosófica, mas tão somente um inventário antropológico das diversas configurações em que a estrutura do heroísmo aparece em diferentes culturas. A primeira reivindicação é razoável, mas a segunda é apressada. E muitas vezes a primeira costuma rapidamente exaurir suas consequências numa abordagem pautada pela segunda. É certo que precisamos recuperar e compreender o quadro mitológico que a antiguidade grega, e outras culturas pré-ocidentais, nos oferecem para a recordação, a espera e o reconhecimento do herói. Não é certo, no entanto, que possamos esgotar o tema tão somente distribuindo-o em diferentes ―formatos‖ a serem disponibilizados de modo indiferente e arbitrário à nossa própria condição, pois, pretendo já ter demonstrado, o questionamento acerca de quem nos mesmos somos passa pelo questionamento acerca do que é o herói, qual sua origem e destino. Com isso, quero dizer, decidir quem somos envolve tomar posição acerca da possibilidade que ainda possa restar de alguém ser heroico, e o tema não foi satisfatoriamente assegurado enquanto tal posição não for tomada. Com este cuidado em mente, podemos fazer uma rápida incursão ao herói mitológico e apurar se ele também nos convoca, no sentido até aqui desenvolvido. O herói mitológico, talvez de modo mais excelente, também se faz falar a partir de uma história. Junito de Souza Brandão (1989, p.16-70), num ensaio introdutório a diversos heróis gregos, delineia os diferentes momentos da estrutura da narrativa 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
heroica, do que vou aqui dar um esboço no que me interessa de mais imediato. O nascimento é complicado e irregular, o que pode envolver o enlace de um deus com um mortal, dupla paternidade ou até mesmo incesto; pode envolver uma previsão de ruína por um Oráculo, que recomenda a exposição do recém-nascido ao abandono e à morte, do qual em geral é resgatado por pessoa humilde ou animal. O nascimento e as condições adversas de sobrevivência, ou feitos de infância, confirmam que o herói é marcado com as virtudes da excelência e da honra. Há uma educação iniciática que envolve separação da casa familiar, aquisição de um novo poder e retorno à comunidade para distribuição do novo bem. A destinação para o combate se impõe como o que lhes é mais essencial, o que não acontece com os deuses, dada a condição imortal destes últimos. Sua vida é marcada pelo excesso e pela violência, por vezes beirando à monstruosidade. Seu fim é trágico, coerentemente violento ou solitário. Sua glória é reconhecida e celebrada post-mortem. O que parece mais distintivo do herói mitológico em relação ao herói contemporâneo é a sua ambígua condição divina. Sirvo-me ainda da consideração de Junito de Souza Brandão, que aponta esta controvérsia entre especialistas sobre a gênese do herói. O personagem heroico seria ou um homem célebre que após a morte ainda se faz influir pela proximidade com os deuses, ou deuses decaídos em tarefas particulares, ou afinal um gênero que abrange homens e semideuses. Não precisamos nos decidir por nenhuma destas hipóteses se apenas retivermos que o herói da antiguidade grega é pensado em comparação e confronto com os deuses. Eles não são idênticos e zonas cinzentas não recusam isso, antes confirmam o encontro de dois domínios. Mesmo o herói mitológico não é um deus, pois seus feitos ecoam do passado na forma de uma história, enquanto a ação dos deuses, se ainda se faz ouvir, é de modo atual e perene. O espanto e o inusitado que o herói representa é a constatação de que, de modo excepcional e contrariando a ordem cósmica, um homem manifesta os atributos que seriam próprios somente a um deus, e a questão que se coloca em seguida é como pôde ele nascer com tais atributos. O herói antigo manifesta um absurdo, que o mito tenta dar uma explicação predicativa: o herói, por filiação, proximidade ou oportunidade, compartilha com os deuses de certos predicados que decidem que o seu destino exceda de modo ímpar o que é esperado para o comum dos mortais. Salta aos olhos a diferença entre a estrutura do herói mitológico, como está aqui esboçada, e a minha tentativa de elucidar o herói contemporâneo. Este nos fala de uma
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história que consiste na interpretação de um percurso de vida a partir de um acontecimento especialmente significativo para a nossa liberdade, quer dizer, para o nosso discernimento de possibilidades não triviais de existência. Já o primeiro fala, supomos, ao homem antigo, de uma história posta em ignição por algum tipo de predestinação inexorável, a qual se desdobra de um advento que contraria a ordem natural das coisas, passa pela aquisição de um poder ou privilégio em proveito dos homens, e finda com a morte trágica do herói em reparação da ordem cósmica antes violada. Para o homem antigo, o confronto entre o perigo e a totalidade significativa por ele ameaçada não é posicionado num acontecimento, mas é radicado como um atributo do próprio herói. É o próprio herói que traz em si o perigo que refrata o horizonte de familiaridade que o homem antigo reconhece legítimo, e este perigo é a sua própria condição singular extraordinária, pela qual deve pagar a ousadia. Podemos chamar esta configuração trágica do perigo, que tem ocasião por obra, vocação e natureza do próprio herói, de desterro. A superficialidade com que o herói mitológico foi por mim trazida aqui prejudica muito a análise, e torna todas as conclusões a respeito provisórias. Talvez o herói contemporâneo não tenha mais horizonte de diálogo com o herói antigo. Talvez eu tenha simplesmente errado na minha tentativa de interpretação existencial do heroísmo, e deva então prevalecer a interpretação estrutural e fatalista que os resquícios do herói mitológico sugerem. Uma hipótese mais favorável para a minha argumentação é a seguinte. O herói mitológico descreve em sua trajetória inexorável todo o processo de advento e dispersão que incide sistematicamente em qualquer esforço de singularização existencial. Apontei acima a ambiguidade que eu não conseguia eliminar no perigo e no horizonte de familiaridade que ele ameaçava. Alguma singularidade mais eminente e primordial funda este horizonte e é resgatada do perigo pelo herói. De início o perigo parece rondar de fora, do desmundo, depois tive que reconhecer que o perigo espreita de perto, sob a forma do descaso, nos desdobramentos do que funda este horizonte, na própria presentificação das coisas enquanto as coisas que nos são familiares em nossas formas de vida. E o herói, então, precisava ter coragem, não só para dispensar-se desta familiaridade, como para eventualmente desafiá-la. Havia, no entanto, um passo que talvez não ficasse claro antes de se considerar a tragédia do herói antigo. O passo que agora imagino é a possibilidade de que, ao pôr em suspenso tudo que é habitual e 46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
mediano e recolocar a ocasião para uma singularidade absoluta, o próprio herói instaurasse o perigo de não dispormos de mais nada que restasse específico e determinado, ou seja, significativo, um perigo que era tanto maior se aquela singularidade primordial e fundante que ele visava resgatar estivesse irreversivelmente entranhada na ordem natural que ele profanava e fosse, com o sacrifício desta, perdida. Um outro modo de dizer isto é que o esforço de singularização existencial desempenhado pelo herói, o qual buscaria justamente restaurar alguma consistência ontológica a nós mesmos, está fadado a degenerar num novo esvaziamento ontológico, que então poderia ser mais ou menos severo. O homem antigo sempre dispunha dos deuses para assegurar a perenidade do mundo e até mesmo para eventualmente restaurar as configurações do mesmo, caso fossem eventualmente abaladas. Deste modo, o herói mitológico ainda que trouxesse em si o perigo do desterro, nunca produziria tanto estrago, já que nunca seria ele próprio um deus, quer dizer, não teria ao seu alcance a tarefa instauradora que somente a este compete. É um lugar comum dizer que em nosso tempo os deuses já não estão entre nós como outrora estavam. Não se trata aqui de uma postulação, obviamente errada, de que as práticas religiosas não ocorrem mais entre nós. A intuição aqui diz apenas que estas práticas religiosas não têm mais o papel instaurador dos horizontes culturalmente compartilhados de compreensibilidade das coisas e de nós mesmos como outrora tiveram. Se imaginarmos por um momento o caso extremo de uma cultura primordial em que todas as práticas sociais e produtivas eram reunidas e discernidas num todo coerente pelo mito, onde, desde a feitura de uma peça de artesanato até as tradições de acasalamento, todos os procedimentos publicamente tidos por adequados eram compreendidos a partir de um conjunto harmônico de ensinamentos legados pelos deuses, então é possível ter uma medida do quão distante estamos da solidez e consistência que esta maneira de ver o mundo tinha. Sem deuses para assegurar a ordenação da realidade, restou aos heróis a tarefa de instaurar novos mundos sob as ruínas do que eles próprios reiteradamente se apressavam em pôr abaixo, uma tarefa para a qual de modo algum estava claro que estavam capacitados. Heróis, no entanto, já se o disse, não são deuses. Heróis, pelo menos estes que nos são mais próximos, são sem dúvida homens. Recai-se sobre eles a responsabilidade pela reinstauração reiterada, em intervalos cada vez menores, dos quadros ontológicos a partir dos quais nos identificamos e confrontamos as coisas, considerando ainda que é o
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seu legado que nos vincula e nos convoca numa mesma singularidade existencial, é inevitável que esta responsabilidade seja compartilhada por todos nós e nos convoque numa mesma tarefa histórica, que se torna cada vez mais incomensurável e difícil de manejar.
3. Nivelamento existencial e niilismo
É preciso agora expor e sistematizar as presunções filosóficas aqui em curso e constatar em que estado elas nos deixam a questão sobre a origem e o destino do herói, e em que medida se impõe em nosso tempo a superação do herói. Elas são elaboradas a partir de uma interpretação bastante livre de algumas considerações de Martin Heidegger em Ser e Tempo e outras obras. Não me atreveria, no entanto, em dizer que obtive um tratamento plenamente original destes temas. A interpretação do pensamento deste autor aqui em curso é proposta como livre no sentido de que não podemos aqui nos haver com o rigor da interpretação acadêmica. O intuito em curso é o mesmo que imagino estar presente nas obras do filósofo da Floresta Negra: reativar o esforço histórico desta cultura no questionamento ontológico, e portanto instaurar um diálogo com esta cultura como ela ora está entregue a cada um de nós, e não com um ou outro filósofo específico. O perigo que o herói confronta e ao mesmo tempo promove, dele tenho falado de modo elíptico e é possível que não se possa falar dele de outra maneira. Este perigo não é nada de específico e determinado, mas se aproxima como uma vertigem que sugere a possibilidade de que todos os nossos projetos e tradições deem em nada, a possibilidade de que tudo o que é específico e determinado se reduza à irrelevância. Ele nos cerca sistematicamente sem se esgotar em qualquer ameaça concreta, e se antecipa às nossas iniciativas para sobrepujá-lo, se insinuando subreptícia e persistentemente nos desdobramentos destas, retornando incontornável quando mais precisávamos acreditar tê-lo vencido. O que nós mesmos somos, é a cada vez alguém que se orienta num mundo configurado de modo familiar e inconspícuo, um quadro significativo dentro do qual as coisas já nos surgem interpretadas como algo que remete a outro algo segundo funções que se encadeiam em práticas e resultados tidos por adequados, importantes, prementes. Em todo confrontar-se com as coisas ordinárias, mesmo o mais desapercebido, 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
descerramos previamente uma configuração de mundo e descerramos em três sentidos: primeiro, já compreendemos as coisas dentro de uma totalidade significativa através da qual projetamos possibilidades existenciais concretas; segundo, já estamos expostos e motivados por esta totalidade significativa, que de um modo ou de outro nos toca, vincula e nos faz chegar as coisas segundo determinações que nos dizem respeito; terceiro, ao nos deparamos com a presença das coisas, elas já estão interpretadas segundo parâmetros públicos e comunicáveis de compreensão e suscetibilidade4. Alguém, por exemplo, que entra numa banca de revistas, já se defronta com o que encontrar ali segundo possibilidades, por exemplo, acompanhar sua série de quadrinhos predileta, possibilidade que lhe permite aguardar, aprovar ou recusar o que encontrar como uma revista em quadrinhos de um gênero ou autor específicos; este alguém já tem sua atenção e interesse chamados naturalmente pela seção de quadrinhos e em torno e através desta se orienta, entre a prateleira de palavras cruzadas e a de revistas esportivas; por fim, atualiza e constata as revistas que ali encontra, ou não encontra, segundo parâmetros compartilhados discursivamente, de tal modo que possa levar a revista que desejar ao jornaleiro e pagar por ela o preço anunciado, ou indagar a ele quando enfim vai chegar o gibi que tanto espera. Coisas só surgem como revistas e jornais, se houverem leitores e jornaleiros para lhes considerar e manusear assim. Coisas só surgem como papel e tinta, ou mesmo como átomos e energia, se houver alguém para compreendê-las nestes termos. Não contamos com as próprias coisas para dar fundamento último a estes parâmetros. Em alguma medida elas os confirmam e se deixam conduzir por eles, mas nas coisas sempre permanece a possibilidade de não se deixarem compreender e subverterem qualquer interpretação. Enquanto aquilo que é em si mesmo o que é, independentemente de qualquer interpretação por nossa parte, as coisas são o absolutamente incompreensível. Sob este aspecto das coisas recai e tenta dominá-las a ciência, nem sempre consciente de que ela por sua vez é ainda uma maneira de considerar que propomos à recusa das coisas. Arcamos com a 4 Este terceiro aspecto do descerramento de mundo pode ser chamado de ―linguagem‖, se o for num sentido bastante lato de uma aptidão ampla para significar, ou seja, atribuir ou apreender significados compartilhados, o que compreenderia não só a linguagem em sentido estrito, verbal e escrita, mas também a significação tácita, como a expressão facial e o manuseio de um guarda-chuva num dia nublado. Para uma elucidação de como a significação também em sua forma tácita compõe a estrutura do descerramento mundano, é bastante esclarecedor William Blattner (2005, p. 67). Esta flexibilização terminológica se desvia de modo muito frontal das expressões que Heidegger usa em Ser e Tempo para discutir estes temas, mas não prejudica tanto a possibilidade de mantermos ainda diálogo com o pensador alemão, já que ele próprio depois revê sob novas perspectivas, para alguns muito obscuras, o que ele naquela obra tinha proposto a respeito da linguagem. 49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
responsabilidade pela configuração de mundo em curso, que pode a qualquer tempo se perder, se o esquecimento ou a catástrofe decidir um dia que não faz mais sentido para ninguém coisas como revistas, papel, tinta, átomos ou energia. Exercemos a guarda do mundo nos padrões e correções, no que é natural ou óbvio demais para ser questionado ou provado, e em último caso, se indagamos de modo nem sempre conveniente por fundamentos, ou também no que entendemos ser uma evidência apropriada, e, em última instância, na autoridade das tradições legadas pelos realizadores do passado, os heróis que desapercebidamente já elegemos e seguimos os passos. Num primeiro momento, o perigo já nos rondou um dia sob a forma anteriormente apontada do desmundo, e foi aparentemente vencido por este herói consagrado publicamente. Estes parâmetros impessoalmente assegurados impõem a sua força quando os passamos adiante desapercebidamente no pronunciamento que se desliga da manifestação originária daquilo sobre o que se pronuncia e se propaga na fala amena e descompromissada que ―dizem‖ e que ―ouve dizer‖; na busca inquieta e que não encontra satisfação pelas novidades que reatualizem a mesma maneira de ver atendendo a demanda por mais do mesmo, encobrindo de modo prévio a singularidade de tudo o que venha a se manifestar; por fim, no nivelamento de tudo que se manifesta na indiferença do que ―tanto faz‖, tomando-se o primordial e o corriqueiro como fungíveis e se deixando em suspenso o questionamento pelo que é originário. Cotidianamente já calamos este questionamento no que ―se diz‖, no que ―qualquer um gostaria‖ e no que ―todo mundo sabe‖. O pendor para generalizar atua na gramática categorial mais elementar. Enunciar num modo tido por mais exato é atribuir predicados, descrever aquilo que se enuncia por designações universais que em princípio designam diversas coisas, e tudo de que dispomos para falar são palavras que sempre guardam alguma generalidade, que eventualmente pode ser mal instanciada, e não poderia ser diferente, ou as palavras não poderiam ser passadas adiante, na fala de segunda mão em que, já de início, fomos treinados para seu emprego. Por um lado, a fungibilidade das coisas e das palavras nos possibilita o compartilhamento das mesmas e o domínio crescente da natureza. Indagando pelo ente enquanto ente, ou pelo princípio da realidade, a tradição filosófica grega se tornou o berço da disposição cultural para a abordagem racional e não-dogmática da vida e do universo que se propagou por séculos e continentes e se reivindica hoje ―Ocidental‖. Perguntando pelas leis e constituintes universais da realidade, a ciência manipula hoje a 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
matéria das coisas no nível quântico que transcende as limitações físicas ordinárias e abre a perspectiva de que não haja limite para nossas capacidades e ambições. Promovendo de modo irrestrito o nivelamento de todas as coisas sob a equivalência monetária e orientando todos os processos produtivos para a troca de mercadorias, o comércio estabeleceu o canal mais poderoso de diálogo entre os povos apesar de suas respectivas idiossincrasias culturais e criou o contexto para se falar numa economia mundial que hoje une a sorte de todos no planeta numa mesma expectativa e assim insinua a possibilidade de se pôr de lado as rivalidades militares em algum futuro plausível. E em consequência não muitas vezes observada, atendendo a demanda sempre nova por mercados receptivos à livre iniciativa capitalista, as democracias nacionais subvertem as hierarquias e estigmas sociais e as castas tradicionais, propagando os ideais de um estado de direito que promova a isonomia jurídica entre trabalhadores, empresários, contribuintes e consumidores, e de uma sociedade civil forte que tenha acesso irrestrito à informação e ao uso público do discurso. Por outro lado, quem nós mesmos somos, quer dizer, o questionamento por quem somos, já se perdeu e se dispersou a cada vez nas normas e padrões públicos com que acessamos as coisas. No âmbito público do discurso, que como apontei, é categorialmente orientado para a generalização das coisas, comparecemos de modo coerente com este fim, ou seja, mediante papéis sociais que já nos foram previamente designados, dirigidos a possibilidades existenciais disponíveis publicamente e sugeridas como as únicas apropriadas, e sob a suscetibilidade padronizada que a admissão nos agrupamentos solicita. O mediano é recomendado e nos dispensa do encargo de sermos alguém oferecendo a comodidade de sermos como qualquer um, o que em cada caso já foi decidido por todos e por ninguém. O soberano político e o legislador perdem sua encarnação física monárquica e passam a exprimir-se pela voz abstrata das autoridades representativas. Recorre-se com frequência à figura do homem médio como o parâmetro das definições jurídicas. Ganha voz crescente na política uma classe média que se reivindica sempre injustiçada. Distraídos, esquecidos, irrefletidos e acomodados, nos fiamos no que qualquer um faria e não nos perguntamos o que verdadeiramente importa, já que estamos só cumprindo ordens. A própria força com que este questionamento é silenciado insinua uma nova vertigem que nos assalta em ocasiões e disposições peculiares e que se impõe de modo surpreendente no nosso tempo. A indolência e indiferença da atitude irrefletida cotidiana
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impõem o seu nivelamento a tal extremo que nada de significativo se deixa mais mostrar, a ponto de corroer até mesmo as determinações da realidade. As características das coisas estão lá, é que parece, mas não nos dizem respeito ou nos tocam. A este esvaziamento cedem também todos os papéis com que até então nos identificávamos, que aparecem agora como funções vazias e arbitrárias, tão pouco essenciais quanto qualquer peça de vestuário. Esta impressão ganha força na angústia e no tédio que se interpõem eventualmente em nossa aptidão para tomar parte nas práticas discursivas em curso. A ciência nos descerra num mundo opaco e frio, refratário aos nossos valores e expectativas e que nos recusa até mesmo a liberdade da vontade no seu determinismo absoluto. O capitalismo absorve a totalidade das coisas, das pessoas e das culturas no seu projeto expansionista em que tudo em princípio pode ser apropriado e processado como mercadoria e assim mediado pelo equivalente de valor abstrato, alienando o homem da compreensão de que é ele próprio que dá significado às coisas através do trabalho e configurando o processo produtivo e a economia como sistemas mecânicos em que as coisas parecem remeter e atuar umas sobre as outras como dotadas de vontade própria. O que antes era definidor e decisivo para a identidade de uma cultura, como os marcos históricos e as localidades sublimes ou sagradas, é tomado indistintamente pelo turismo de futilidades que corre todo o planeta em busca do exótico e do vendável. A democracia representativa nos acomoda na omissão e burocratização que demagogicamente amarra as transformações sociais a que a política nos convoca. O legalismo nos dispensa do empenho autêntico na justiça e nos permite ignorar convenientemente as violações socialmente aceitas, por mais cruéis e extremas que elas se manifestem ao posterior juízo da história. Mais uma vez o perigo do esvaziamento ontológico retorna e com tal força que parece até por obra e responsabilidade nossas, na configuração que eu apontara acima como descaso. Recai sobre quem somos uma culpa por nada de específico e determinado, a culpa pela consolidação e avanço do próprio nada que o herói do passado, em seu sacrifício, parecia ter vencido. Por esta culpa nos acusa o herói que estamos por escolher, de modo que a acusação, nós mesmos a sustentamos. Quem nós mesmos somos e do que nos desviamos para a generalidade das coisas é uma singularidade histórica em aberto e já em curso cuja consistência e sentido precisam ser reconquistados da medianidade por um esforço de síntese narrativa. A culpa nos distingue de modo irredutível e nos situa 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
diante do futuro em sua pureza, despido de conveniências e atalhos, o mero porvir de nada em especial, ou seja, do mesmo e constante perigo que se nos confronta e nos solicita as possibilidades mais próprias até então encobertas pelo habitual e pelo conveniente. Tais possibilidades, se as houver, estão implícitas no acervo cultural que nos foi legado no acesso resumido da impessoalidade e precisam ser resgatadas no que nos tocam e nos dizem respeito através da revisão inquisidora e reverente do passado. Só assim quem nós mesmos somos pode se pronunciar num discurso que não é a mera descrição dos estados de coisas presentes, e que poderia em princípio ser proferido de modo indiferente e superficial, mas num discurso que presentifica toda a nossa dimensão existencial numa história singular. Só assim quem nós somos pode se pronunciar. Observe que a estrutura compreensão, suscetibilidade e fala, que definia inicialmente o descerramento do mundo, e que então parecia genérica e formal, agora é elucidada como a articulação temporal entre futuro, passado e presente, ou seja, a articulação da história de alguém, no caso, não qualquer um, mas sim quem nós mesmos somos. Deste modo, ―a existência escolhe seus heróis‖ (HEIDEGGER, 2006, p.385), ou como sugere Hubert Dreyfus, dada a receptividade com que nos voltamos ao passado, o herói nos escolhe (DREYFUS, 1993, p. 330). Não foi por acaso que usei inicialmente o exemplo de João Cândido. Ele mostra que a convocação do herói e a nossa reivindicação por ele é um acontecimento que reinstaura a nossa história em novos termos, reconfigura o mundo em que habitamos e nos convoca à responsabilidade de nós mesmos sermos heroicos, quer dizer, confrontarmos o perigo que desafia e, deste modo, curiosamente, solicita o nosso ser mais próprio. Talvez agora tenhamos deixado em melhores condições a ambiguidade confessada de início. Disse acima que o perigo ao mesmo tempo que fazia cerco ao horizonte de familiaridade que habitamos, também se infiltrava por dentro dele, em sua origem. Agora sabemos, este horizonte é legado por um pronunciamento decisivo que instaura nossa singularidade histórica e que é esquecido no que tem de decisivo e singular. Tal se dá porque este pronunciamento só pode se dar por ocasião e desafio do perigo ontológico do nada, em uma ou outra de suas configurações. Tão logo o perigo pareça afastado, o marco de constância erguido para se lhe resistir tende a se dissipar na força entrópica da cotidianidade, o que por sua vez recoloca o perigo sob a forma do descaso, desta vez mais próximo e pregnante no que ecoa da própria instauração
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ontológica. Dá-se aqui algo análogo à descaracterização cultural das nações que assimilam outros povos através da expansão militar: vencendo e submetendo, o conquistador traz o conquistado para perto de si e se expõe à sua influência, que mesmo silenciosa e lenta, pode ser irreversível. Vencendo o perigo do desmundo e avançado sobre o não-lugar do território deste, o herói expõe suas obras à influência do mesmo, e quanto mais consolida posições, mais dá cenário para que o perigo configurado em descaso venha a qualquer tempo irromper, agora já não mais como alteridade, mas como uma identidade não muito palatável para se admitir.
4. O herói sob o desafio do nada
Ainda que em melhores condições, a ambiguidade persiste e desafia. Uma avalanche de questões agora desaba e todas elas giram em torno da dificuldade metodológica que a presente investigação enfrenta desde o início. Porque não permanecemos nesta condição autêntica e empenhada em nossa singularidade histórica? Porque sistematicamente cedemos à indolência cotidiana? Porque de tempos em tempos o questionamento existencial precisa ser novamente resgatado do esquecimento por novos heróis do passado? Porque o perigo do nada persiste sob a forma do descaso, a despeito e talvez até mesmo sob o favorecimento dos nossos esforços? Todas estas questões reivindicam uma resposta bastante difícil de encaminhar porque ela está exposta ao próprio perigo cuja ação é ora questionada. Quero dizer que, se ficar constatado que a ação corrosiva do esvaziamento ontológico é incontornável, não temos nenhuma razão para supor que por algum momento conseguimos sair da sua ação quando propusemos o pronunciamento instaurador de historicidade do herói. Vê-se aqui como a investigação do niilismo é traiçoeira e pegajosa, podendo ceder a qualquer tempo aos tentáculos do seu próprio tema. A única estratégia que consigo entrever aqui é a seguinte. Mostramos que o herói, e sua ação instauradora, convoca e é convocado por ocasião do perigo, ou seja, mostramos que tudo o que é por ação do herói, ou seja, tudo o que é mais significativo, o é na medida em que recebe sua consolidação ontológica na proximidade e confronto com o nada. Mostramos ainda, que sem este confronto e proximidade tudo o que é perde esta consolidação, o que recoloca o mesmo confronto e a mesma proximidade com o nada de determinado que fora afastado de início. Restaria perguntar, no entanto, se o perigo que temos considerado subsiste por si 54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
só, para além do ente com que lhe confrontamos, para além da ação decisiva do herói que lhe reconhece e lhe dá combate. Se a conclusão for negativa, poderemos sustentar que tão logo o perigo do nada esteja sempre presente, também sempre esteve disponível uma resposta para se lhe contrapor. Se mostrarmos que herói e perigo, ente e nada guardam algum tipo de reciprocidade, não teremos porque supor que a possibilidade de um nos privou da possibilidade do outro. Isto ficará mais claro numa tentativa em pormenor de resposta. Dreyfus observa que o próprio Heidegger oscila de modo ambíguo entre duas linhas de explicação para este problema, uma estruturalista e outra motivacional. Por um lado, há em nossa determinação ontológica uma tendência estrutural para o desvio de nossa singularidade na absorção junto às coisas em sua generalidade e banalidade. Por outro, há uma tentação de fuga desta singularidade pelo desconforto que ela sugere (DREYFUS, Ibid, pp. 228, 313). Sem prejuízo da crítica do comentador quanto a clareza que o problema pede, é possível que uma resposta satisfatória precise se desdobrar nestes dois aspectos. Uma abordagem estrutural elucida o que antecede sistematicamente o questionamento e previne o mesmo da ilusão de que se mantém privilegiadamente fora da ação persuasiva da impessoalidade e do niilismo. Mas o vocabulário estruturalista, por vezes mais frequente em Ser e Tempo do que acredito ser necessário, dá a impressão de que as determinações ontológicas do ente que nós mesmos somos são de algum modo atemporais e objetivas, acessíveis a algum tipo específico de evidência e decididas em seu caráter e repercussão. Creio que isto conflita com a intuição que temos desenvolvido até aqui de que somos eminentemente históricos. Seja lá qual for o nosso modo mais próprio de ser, ele teve um advento e está entregue a um destino e não temos como nos posicionar de fora deste percurso como se ele nos fosse um fato indiferente diante da nossa distante consideração. Deste modo, a explicação motivacional pode servir para indicar de que modo estamos sempre já vinculados neste desvio persistente para a impessoalidade e como podemos nos colocar de modo livre diante seu domínio ou mesmo eventual supremacia.5
5 Discutindo mais de perto com Dreyfus, a tensão entre a explicação estruturalista e a motivacional pode ser apenas o indício de que a própria questão acerca do desvio sistemático para o descaso da medianidade precisa ser conduzida nos termos da temporalidade própria que articula o horizonte futuro em aberto, em que se distribuem possibilidades disponíveis, que podemos pensar como estruturas, e o acervo do passado que nos vincula na suscetibilidade, a qual se especifica em motivações para o desvio ou, eventualmente, o resgate daquilo de que se desviou. Isto sugere que a analítica existencial se resolve em hermenêutica no sentido de empreender um esforço de restauração de singularidade histórica, tal como o que se dá na 55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Mencionei acima que a temporalidade singular a que o herói nos convoca projeta, a partir do perigo com que se confronta, o porvir de possibilidades mais próprias resgatadas do passado, as quais atualizamos no presente num pronunciamento decisivo. Disse também que este pronunciamento é peculiar porque não é somente a descrição de um estado de coisas, mas é o chamado à presença de toda a nossa dimensão histórica passada e futura numa unidade narrativa que nos diz respeito, numa história que reconhecemos como nossa. E com isso deixei a sugestão apressada de que o pronunciamento decisivo nunca é uma descrição de um estado de coisas. Talvez alguém pudesse mesmo sustentar isto, mas dificilmente poderíamos concluir que um tal pronunciamento está de todo livre de ser compreendido como um pronunciamento sobre as coisas, na medida em que a gramática da linguagem é sintaticamente estruturada para servir a tal fim. Todo pronunciamento, ensina a gramática mais elementar, fala de uma ou mais coisas, o sujeito, e fala algo outro que é relevante e que pode também ser falado a respeito de outras coisas, o predicado. Mesmo que uma frase não seja uma asserção, mesmo um pedido ou uma pergunta, modaliza de diferentes formas uma mesma estrutura proposicional que nos orienta a tomar e lidar com as coisas ordinárias como coisas que podem ser reunidas sob determinações gerais. É verdade que a linguagem natural não se articula de modo tão distinto quanto se vê nos livros de gramática ou de lógica, mas é verdade também que mesmo uma palavra que em certos contextos funciona como uma asserção, tal como ―Fogo!‖, pode ser a qualquer tempo trazida a análise e elucidada como a identificação de um objeto específico, no caso, o prédio em que o falante ora se encontra, e a atribuição ao mesmo de um estado ou condição que outras coisas podem em princípio também instanciar, no caso, estar em chamas. É isso o que permite que um proferimento possa ser comparado com outros contextos além do que é proferido, de modo a ser tido por relevante (dizer que o prédio está em chamas é relevante para uma dada comunidade que compartilha uma compreensão das coisas em termos de prédios e de fogo, e que está exposta às possibilidades abertas pelo que a combinação destes dois modos de interpretar descobre)6. Não temos porque pensar que o pronunciamento decisivo do herói, o
consideração do herói do passado recente, descrita ao início do texto. Uma tentativa de se conduzir o problema nos termos sugeridos é implementada a seguir. 6 Nietzsche observa algo semelhante numa ocasião em que trata do que chama ―vulgaridade‖, a qual se fundaria na necessidade dos homens entrarem em acordo linguístico sob o semelhante, acordo cuja possibilidade é radicada na linguagem, e cuja necessidade cresce por ocasião de situações de perigo concreto (Nietzsche, 1886, p.268). 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
pronunciamento que profere e invoca a extrema singularidade, estaria livre deste caráter formal. Se tal possibilidade sempre existe, então ela sempre existiu, quer dizer, estava disponível desde o início, na sintaxe categorial da linguagem, a qual articula nossa compreensão de ser com a nossa suscetibilidade ao que é. Ou seja, a possibilidade de incorrer na generalização é radicada no próprio descerramento, mesmo quando este é assumido em sua singularidade histórica, na medida em que esta singularidade precisa se pronunciar e, deste modo, articular-se em palavras que são por princípios fungíveis e disponíveis a serem passadas adiante no descaso da impessoalidade7. Acontece que, assim como o perigo que se pretendia vencer, a singularidade para que nos convoca o herói, também não é nada de específico e determinado, mas justa e tão somente um modo de especificar e determinar que é irradiado de uma origem para um destino e cuja unidade só pode ser restaurada num novo especificar e determinar orientado e suscetível segundo possibilidades. Cada reconfiguração histórica do mundo não muda necessariamente a substância deste mundo. Esta pode mudar por acontecimentos ou descobertas mundanos, que confirmam ou recusam fatos específicos. Mas o pronunciamento decisivo que resgata acontecimentos ontologicamente instauradores não acresce nem retira fatos do mundo, ele reinterpreta os mesmos fatos numa disposição mais coerente com o que passado nos lega e o futuro nos solicita. Não se descobriu no século XXI fatos novos sobre a Revolta da Chibata, o que se fez foi reinterpretar a Revolta da Chibata como acontecimento vinculador, retirando-a da negligência tácita imposta pelo que ―todo mundo sabe‖ e dando-lhe os contornos e a elevação do que inspira a cada um de nós. Quando a nossa singularidade mais própria é convocada e reunida, ela não se soma às coisas específicas e determinadas dispostas no mundo, como se fosse ela própria outra coisa específica e determinada, mas ao invés, ela se ―vê‖ no entorno destas coisas, desdobrando-se em possibilidades motivadas projetadas sobre estas mesmas coisas, até o confronto com a impossibilidade peremptória que se lhe descerra como destino. O modo mais casuístico em que este verse um mero entorno das coisas se apresenta é a perspectiva da morte, acontecimento 7 Foi isto também o que encorajou um mau encaminhamento de alguma filosofia da linguagem que propunha como função semântica de qualquer palavra denotar objetos, ao custo de propor até mesmo objetos abstratos que supostamente corresponderiam a palavras que não teriam uma função denotativa muito clara, tais como verbos, designações de propriedades ou até frases inteiras. Não é absurdo por si só propor a consideração de objetos que não sejam evidentes no mesmo sentido em que os objetos ordinários o são, se tal consideração for inevitável para elucidar as práticas discursivas em curso. O problema é concluir apressadamente que toda a função da linguagem se esgota na possibilidade de denotar objetos, uma possibilidade de fato sempre presente no enunciado, abafando tacitamente outras possibilidades existenciais do discurso que são justamente as que a impessoalidade tende a encobrir. 57 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
porvindouro incontornável, no qual as coisas prosseguem no que elas são sem mais abrirem possibilidades para nós. Esta perspectiva se insinua como uma vertigem, da qual, naturalmente, tendemos a nos esquivar8. Esta é a intuição que o herói mitológico havia nos legado. Convocado em razão do perigo, quer dizer, convocado pelo perigo, o herói nos convoca a nada definido, e deste modo, recoloca o perigo do nada, agora sob a configuração do desterro, indicada anteriormente. É do perigo posto pelo próprio herói, é da gravidade existencial que ele institui, que fugimos para a segurança tranquilizadora da familiaridade compartilhada junto às coisas. ―Nada‖, aqui, portanto, não pode ter tão somente o sentido de um nada modal, do que simplesmente não existe, não é o caso ou não se atualiza, do modo em que dizemos que não há nada que possa ser determinado pela ideia de unicórnios, pois este é um ―nada‖ que nos deixa acuados, a ponto de nos pôr em fuga. E no entanto, é um nada no sentido predicativo, aquilo que recusa e resiste a todo e qualquer predicado. Não é algo que seja o caso, mas apenas que estejamos entregues ao que é o caso, no sentido de estarmos expostos a possibilidades abertas a partir do que é o caso9. Nada que nos cerca e ameaça no entorno de onde estamos tranquilos junto às coisas, nada que se insinua entre nós onde estamos tranquilos junto às coisas, nada que convoca o herói e tem nova ocasião na ação deste que reinstaura o horizonte onde esperamos ficar tranquilos junto às coisas. Nada que nos assombra por ocasião de alguma coisa, que solicita a coisa e se faz ouvir na proximidade dela. Por este nada também perguntamos, quando perguntamos pelo fundamento último da coisa. Porque existe alguma coisa ao invés de nada? É o questionamento tradicional da Metafísica Ocidental. Nele se esconde e se cala por trás da coisa um questionamento outro, que lhe 8 Não tenho como desenvolver isto agora, mas é importante notar, que o que o herói defende é o já perdido, uma vez que o perigo nos antecede. É desta perda que nos esquivamos. Enquanto perda, é um acontecimento temporalmente singular, pelo que a vinculação histórica que ecoa desta perda nos pesa. Uma perda primordial inaugura e mobiliza a linguagem que foge para a amenidade e para a deambulação. O próprio acontecimento desta perda é perdido, na medida em que nos amarra de um não-tempo e um não-lugar nos quais nada ainda era (num sentido predicativo que aponto a seguir). É portanto um acontecimento que só pode ser resgatado enquanto projeção, conjectura, talvez até com a desconfiança com que a psicanálise interpreta o sonho, na medida em que por princípio recusa e foge do registro e da determinação. Este esforço de compreensão pode ser a direção consequente que ultrapassa a metafísica tradicional e adentra um novo pensar, por ora, esboçado como hermenêutica do imaginário da humanidade. 9 No entanto, se a nota anterior procede, e aquilo que a linguagem contorna for uma perda, então o sentido modal de ―nada‖ também tem sua pertinência. Um motivo para a ambiguidade aqui é que estamos acessando as coisas numa densidade semântica muito primitiva, na qual as distinções não estavam ainda elaboradas. Outra hipótese é que o que estamos tentando elucidar é algo que se faz valer da própria ambiguidade para se esquivar. Sob a cortina da palavra ―nada‖ pode estar oculta a própria ruptura através da perda do nada predicativo pelo nada modal, a negatividade que inaugura a predicação (ser um predicado implica não ser outro). 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
sustenta: o ser como questão. O perigo que todos temos contornado é o perigo de ser e de questionar pelo ser.
5. A superação do herói
Durante as próximas passagens, por um momento, estarei tateando em hipóteses projetadas num domínio muito difícil de se discernir, lá no não-lugar que não se compreende. No momento, é impossível para mim ser sistemático no que se segue como eu estava tentando até agora. Alguma aporia, no entanto, é inevitável por hora e é o que justifica trazer ao questionamento o gênero narrativo dos super-heróis e a obra que lhe constatou o esgotamento, Watchmen. Há um pressuposto procedimental proposto por Heidegger para não se deixar esgotar de imediato o questionamento pelo ser numa resposta em termos de ente. Tal pressuposto, a diferença ontológica, se for consequente, aponta para um enfrentamento histórico do questionamento metafísico, que em algum momento passou por cima dele e propôs que há o ente, e não ao invés o nada. O mais anterior esforço em se elucidar e formalizar a estrutura categorial do discurso se deu no questionamento ontológico levado a cabo pela antiguidade grega em torno do ente e da substância. Isso por vezes dá a falsa impressão de que tal estrutura, e as formas de vida que ela condiciona, era até então privilégio desta cultura e, por legado, da nossa. Mas não pode ser assim, ou as outras culturas antigas, ou autenticamente não ocidentais, não nos chegariam como chegam através dos esforços da arqueologia: civilizações que dialogam com a nossa através de palavras e coisas exibíveis de modo publicamente significativo para além dos contextos historicamente singulares em que tiveram lugar. A categorialidade do discurso já estava dada nestas civilizações ao menos como possibilidade. Compactados nesta possibilidade, que se pronuncia inicialmente como mito, estavam o ente em geral, o mediano e a ação instauradora e perigosa do herói. Sem o mediano a lhe dar suporte, não há o ente em geral. Sem o herói para lhe acusar e legar, não há o mediano. Sem o perigo do ser a lhe convocar, não há o herói. Esta possibilidade ganha voz explícita na tradição metafísica grega e alcança hegemonia em nosso tempo. É a civilização organizada em torno dos direitos do homem médio, da ciência das leis genéricas e universais, e do modo de produção da mercadoria
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que dominou todo o planeta. Tudo leva a crer que a ação instauradora do herói já cumpriu o seu papel, que o perigo foi vencido pela segurança que as coisas que ele nos legou em sua objetividade, exatidão e livre circulação deveriam nos inspirar. ―Tudo leva a crer‖ quer dizer, tudo em redor é organizado para nos sugerir que o herói não é mais necessário. E no entanto, paradoxalmente, há aquela vertigem. Por meios oblíquos e viciosos o heroico é exortado em cada um de nós para que sua força criadora seja empregada de modo bem comportado e conveniente. Fomenta-se o empenho na campanha, a procura pelo produto, a expectativa pela novidade. A voz impessoal solicita: participe, se inscreva, denuncie, matricule-se, aliste-se, invista, compre, beba, fale sem limites. A demanda cresce em volume e urgência, indicando que o potencial instaurador do herói, e a ontologia do ente predicativo que lhe é correlata, estão se exaurindo10. Um dos muitos indicativos do esgotamento de que tratamos aqui pode ser o advento historicamente recente do gênero narrativo dos super-heróis. Observamos de início que, até onde podíamos analisar, o super-herói era a superação do herói. O papel ontológico do herói, o qual tentamos mostrar no que se seguiu, tradicionalmente passou desapercebido no debate metafísico ocidental. Isto é até certo ponto natural, na medida em que em grande parte nos servimos das coisas segundo interpretações que permanecem implícitas enquanto atendem às possibilidades pretendidas. Não nos damos conta do controle remoto da TV durante o seu uso regular, a não ser que o mesmo não esteja ao alcance imediato, ou não funcione a contento. Podemos, é claro, a qualquer tempo tematizar premeditadamente o controle remoto de modo explícito, enquanto algo que subsiste por si diante das mãos. Tal consideração explícita não parece tão simples em se tratando do herói e de todos os conceitos com repercussões ontológicas. Porém, cultiva-se em nosso tempo um gênero narrativo ficcional em que o herói é tematizado como algo que faz jus a um acréscimo de potencialidades. Vimos, por outro lado, que o herói se faz ouvir a partir de uma narrativa. A narrativa do herói é verídica, pretendemos, num sentido primordial. A do super-herói é ficcional, mas parece disputar a proeminência com a narrativa do herói, na medida em que introduz um protagonista que lhe supera. A demanda ficcional pela superação do herói pode ser o sinal mais
10 Bernardo Soares (Fernando Pessoa), num trecho do seu Livro do Desassossego, descreve de modo ricamente ilustrado e contundente o nível extremo e irreversível a que o esvaziamento ontológico chega em nossos dias e o consequente exaurimento do potencial reinstaurador da cultura ocidental (Pessoa, 1982, p.175). 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
alarmante de que ele já não mais esteja a altura da sua função instauradora. Em que sentido o super-herói supera o herói, podemos entender considerando uma objeção que alguém pudesse ter levantado contra esta maneira inicial de conduzir a questão. Alguém poderia ter dito que, ao invés de superar o herói, o super-herói celebrado pela imaginação coletiva do século XX é tão somente o mesmo herói tradicional, agora com seu mesmo potencial ampliado, em coerência inclusive com as grandiosas realizações humanas da contemporaneidade. E seria compreensível, que assim o fizesse, já que nominalmente o super-herói é assim anunciado. Acho que já dei a entender minha desconfiança com a alegada suficiência das vertiginosas realizações do homem contemporâneo. De fato, o super-herói vem a ensejo de se equiparar com elas e, assim, dar-lhes respaldo ontológico. Isso por si só já seria um indício do quão distante ele está do chamado do herói à singularidade. A demanda que o super-herói vem atender, desde o seu surgimento nas histórias em quadrinhos até a repercussão noutros meios, é a guarda e a manutenção da medianidade, como pretendo demonstrar. Tomemos o super-herói primordial e paradigmático. Nas animações de Max Fleischer, o Super-Homem recebeu uma descrição hoje clássica, que define a ideia básica do personagem com tanta clareza e força, que, de certa maneira, permanece como a enunciação mais emblemática das pretensões deste gênero narrativo: ―- Olhem lá no céu! - É um pássaro! - É um avião! - Não! É o Super-Homem! Mais rápido do que uma bala, mais poderoso do que uma locomotiva, capaz de saltar altos edifícios com um único salto, este assombroso visitante do Planeta Kripton, o Homem de Aço: Super-Homem! Dotado de extraordinária força física, Super-homem trava uma batalha sem fim pela verdade e pela justiça, sob o disfarce do moderado repórter Clark Kent‖ (Siegel & Shuster, 2007).
Começa-se com uma exortação. Somos solicitados à consideração das coisas mais elevadas. Mostra-se o sublime da natureza dando lugar ao sublime mecânico. E então, toda eminência dá lugar a um homem anunciado como excepcional. A enormidade de suas capacidades é medida em comparação com as forças tecnológicas que avançam irrefreadamente sobre nossas vidas: o projétil, o trem, o edifício. Advindo do mais distante e estranho, de um planeta desconhecido no frio insondável do espaço, este assombro se faz familiar no aço, o material que simboliza a segurança que atribuímos às realizações do nosso tempo. Afinal, o demasiado se põe a um dúbio serviço: a luta pela verdade e pela justiça, encoberto sob o disfarce da medianidade. Este herói não fala mais de um passado que nos vincula. Ele é a voz de algo presente que nos atropela e com o que atropelamos o mundo: a força, a velocidade, o progresso. Este herói não confronta mais um perigo que nos antecedia de modo 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
constante. Ele introjeta e personifica este perigo até torná-lo inofensivo. De modo tácito, a obra artificial é eleita o parâmetro de toda a grandeza, ofuscando a infinita natureza que outrora nos confrontava incompreensível. Não há mais o incompreensível, a mais vertiginosa alteridade do desmundo, esta que nos contemplava do ―silêncio eterno dos espaços infinitos‖ e que assim nos apavorava, ela agora se faz a matéria genérica do ruidoso e do concreto que nos fortifica. E quando por um momento nos é prometida a verdade e a justiça, tal promessa se frustra, sob a dissimulação que protege o homem comum das consequências eventuais de tudo aquilo que excede11. O dogma da identidade secreta é um dos elementos mais tradicionais no gênero narrativo dos super-heróis e só nos últimos 20 anos tem encontrado distensão. Mesmo as ocorrências dissonantes mais notáveis compunham a ausência deste elemento com algum recurso que empenhava os personagens no modo de vida padrão (como o Quarteto Fantástico da Marvel Comics, cujas histórias exploravam, nos bastidores das aventuras, o cotidiano de uma família de classe média). Alegadamente, o recurso era explicado porque sem resguardar sua identidade civil sob a máscara, o super-herói estaria exposto e vulnerável em sua vida pessoal ao peso da fama ou à represália dos inimigos. Outra motivação podia ser a humildade e a timidez, com o que o super-herói não se dava ao perigo da vaidade e do proveito pelo mérito de suas ações, mantendo protegida a sua virtude na posição do benfeitor anônimo. Bem rápido se percebeu que a identidade secreta era o ―super-poder‖ mais decisivo do super-herói, a tal ponto que ainda com o advento do Super-Homem em 1938, seu ancestral, o vigilante mascarado dos pulps, invade também os quadrinhos distribuído em diversos personagens dotados apenas dos talentos humanos desenvolvidos a um nível máximo porém acessível ao um homem normal. O super-herói não precisava necessariamente ser um semideus, se ele pudesse a qualquer tempo refugiar-se sob a fortaleza do homem comum. A verdade e a justiça que se recusaram com a identidade secreta era aquela verdade e justiça trágicas da vinculação existencial ao perigo de ser que o herói nos legava do desterro. Ao tirar a máscara, o super-herói se despe do heroico e de todas as suas repercussões mais graves, de tudo aquilo que não era nada de determinado ou 11 O Super-Homem dos quadrinhos não seria a superação do homem, tal como o super-herói é a superação do herói? A superação do homem é uma hipótese filosófica homônima da qual o personagem dos quadrinhos marcou gritante dissonância. Quem exige a superação do homem é o pendor heroico. A superação do herói cala este pendor e o reverte de volta ao homem, que supostamente estava por se superar. Mediado pela superação do herói, o Super-Homem da DC Comics é a própria inversão do chamado à elevação, e portanto, o melhor disfarce para o homem conformista que silenciosamente conquista toda a Terra. 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
específico que o herói confrontava, atendia ao desafio e reinstaurava o risco, a pura e vazia responsabilidade por um percurso temporal singular. Ao tirar a máscara o superherói se emancipa, e nos emancipa a todos nós, do peso da singularização, resguardando o homem moderado que domina toda a terra com projéteis, locomotivas e edifícios. O que se mascara e disfarça é o perigo na forma do descaso. Quando este elemento se consolida, o super-herói passa a ser recrutado para o conservadorismo e a manutenção do tradicional, silenciando algum potencial transformador e subversivo que as primeiras histórias da Era de Ouro dos quadrinhos ainda sugeriam12. A tensão existencial contida no elemento narrativo da identidade secreta cresce com a guinada criativa no gênero conduzida por Stan Lee na Marvel Comics durante a década de 60. Até então a identidade civil encoberta do super-herói era dissimulada na sua condição fundamental como um acessório entre outros em sua luta contra o crime. Anônimo, mediano, ajustado e funcional, Clark Kent não tinha dramas próprios e desfrutava da segurança do desapercebido13. A Marvel desmascarou um homem em perigo por trás do super-herói. Em suas revistas, é um Peter Parker atormentado sob a máscara do Homem-Aranha que se apressa em pôr atrás das grades o Dr. Octopus e conseguir chegar a tempo na prova da faculdade, enquanto se pergunta como vai arranjar dinheiro para pagar o aluguel. Stan Lee dá voz ao homem médio implícito no
12 Isso é particularmente notável no caso do Super-Homem e da Mulher-Maravilha. Nas primeiras histórias de Siegel e Shuster, o Homem de Aço era impulsivo, rude e violento, e até mesmo desafiava a imobilidade da lei e da conveniência social para combater políticos corruptos, agiotas e especuladores inescrupulosos (confira-se a respeito em Superman Crônicas, V. 1). Em poucos anos de vida editorial se consolida, no entanto, a imagem do escoteiro inofensivo e conservador, cujo código moral prescreve a estrita observância das leis em vigor e a não intervenção nos status quo político. Já as primeiras histórias da Princesa Amazona por William Moulton Marston exploravam a liberdade da personagem face aos costumes tradicionais, por exemplo, nos seus trajes cuja sumariedade era ainda um tanto inovadora para o público de 1942, ou na sua iniciativa mais decisiva no relacionamento com seu par romântico, o Capitão Steve Trevor. Esta postura fica restrita a pena de Moulton e se enfraquece bastante na direção editorial que a DC Comics impõe à personagem nos anos seguintes, a ponto de histórias da década de 60, em pleno contexto do debate pela emancipação feminina, retratarem uma Mulher-Maravilha submissa a um Steve Trevor mulherengo e prepotente (confira-se, Coleção DC 60 Anos, V. 3: As Maiores Histórias da MulherMaravilha, p. 10-22 e 90-112). O potencial mais afirmativo e sensual da Mulher-Maravilha tem sido resgatado nos últimos anos. O pendor mais subversivo do Super-homem parece ser o tema da nova abordagem que o personagem recebe no momento por Grant Morrison em produção recente, declaradamente inspirada nas histórias originais de Siegel e Shuster. O posicionamento do super-herói contra os padrões medianos que ele outrora resguardava, assim como a flexibilização do dogma da identidade secreta, são os sinais do esgotamento do gênero, que vou mencionar a seguir. 13 Clark Kent tem, a bem da verdade, um só drama fundamental que é ser menosprezado na predileção feminina, justamente por sua mediocridade. Este desprezo é imediatamente sublimado na aventura em que predileção feminina se apaixona pelo ―herói‖ que ele não é, mas mantém-se em aberto, já que a personalidade mediana lhe é essencial e não pode ser abandonada. Esta dinâmica do super-herói rival de si mesmo pelo amor do par romântico é um clichê constante em quase todos os personagens do gênero até a Era de Prata, o que sugere que este menosprezo assinala de modo crucial o perigo que provocava antes o herói, depois seu exaurimento e, enfim, a contemporânea superação. 63 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
super-herói, e deste modo, o tira da segurança em que repousava, escondido de si próprio. Com isso, deu o primeiro passo para a maturidade e o exaurimento da própria superação do herói. Pois se o herói acusava a indolência da medianidade e o super-herói veio em socorro desta, então cedo ou tarde haveria de denunciar-se neste próprio socorro que a mesma se encontrava sob o velho perigo nunca de todo vencido. A própria superação do herói já não mais contenta, apazígua e cala este perigo, o que sugere que nada mais o possa fazê-lo. Esta denúncia encontrou seu melhor contexto na produção da década de 80, quando as narrativas de super-herói consolidaram temáticas adultas e graves, e questionaram seu próprio papel. A mais importante obra a pôr tal questionamento é Watchmen. No seu mundo ficcional, a existência de um só super-herói foi o bastante para fazer a humanidade confrontar-se com seu maior temor. A maturidade do gênero narrativo dos super-heróis chega à tematização do seu próprio exaurimento e deste modo, põe a mostra a insuficiência primordial e crescente que tentara aplacar sem sucesso.
6. Conclusão parcial
Com tais implicações em mente, podemos suspeitar que Watchmen seja uma obra de extrema densidade filosófica. A questão que perseguimos até aqui, o perigo do nada que se nos antecipa e nos confronta com a crueldade vazia da singularidade temporal, ganha sua primeira abordagem nas histórias em quadrinhos sob a metáfora do relógio do fim do mundo que se aproxima da meia-noite fatal. Cada um dos protagonistas dá voz a uma posição filosófica peculiar diante desta questão, ou seja, uma posição acerca da possibilidade de ser heroico. Cada um deles é marcado por uma incompletude específica, que não lhes permite entrever todo o sentido da história em que estão inseridos. São heróis num mundo que já lhes recusa o poder reinstaurador. São, além disso, super-heróis tradicionais, vigilantes mascarados que conduziram seu próprio mundo à surdez inexpugnável e irreversível a tudo o que possa ser ainda significativo. São, afinal, meta-heróis, que se defrontam com a perda de sentido que o herói e a superação do herói hoje nos entregam. Um exame em pormenor de cada uma destas posições e o diálogo que elas mantém entre si ao longo do enredo desta história merece um tratamento detalhado, que 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
preciso reservar para um próximo exercício. Uma vez elucidadas e consideradas em todas as suas consequências, tais posições podem nos ajudar a compreender em que estado o super-homem americano nos deixou a questão do perigo de ser.
Referencial Bibliográfico: Blattner, William D. Heidegger's Temporal Idealism. Cambridge University Press, 2005. Brandão, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume III. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1989. Dreyfus, Hubert L. Being-in-the-World: a commentary on Heidegger's being and time division I. Fourth printing. Cambridge: The Massachusetts Institute of Technology Press, 1993. Heidegger, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. ________. Lógica: a pergunta pela essência da linguagem. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008. ________. Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante Shuback. Petrópolis: Vozes, 2006. Hemeterio. Gadelha Neto, Olinto. Chibata! João Cândido e a revolta que abalou o Brasil. 2ª edição. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2009. Moore, Alan. Gibbons, David. Watchmen. New York: DC Comics, 1986. Moulton Marston, W. As Maiores Histórias da Mulher-Maravilha (Coleção DC 70 anos, v. 3). São Paulo: Panini, 2008. Nietzsche, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia de bolso, 2004 (1886). Pessoa, Fernando. Livro do desassossego. Lisboa: Relógia d'água, 2008 (1982). Siegel, J., Shuster, J. Superman: Crônicas. V. 1. São Paulo: Panini, 2007. Tugendhat, E.. Heidegger's Idea of Truth. In: Hermeneutics and Truth. Evanstons, Ilinois: Northwestern University Press, 1994.
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Rawls, Nozick, Tio Patinhas e outros bilionários: riqueza, justiça distributiva e liberdade Heraldo Aparecido Silva1
Para muitas pessoas, a causa e a solução de todos os problemas é o dinheiro. Ou melhor, a falta ou a posse dele. Há quem diga que os criminosos temem mais a miserabilidade do que a morte e, por isso, se arriscam tanto. Há quem diga que o sucesso profissional é relativo ao tamanho de sua conta bancária. Há quem diga que só existe dois tipos de empresas: as que dão lucro e as que dão prejuízo. Há quem diga que os governos mais bem-sucedidos são aqueles que aplicam bem seus recursos financeiros. Há quem diga que todos têm um preço. Há quem diga que nas sociedades contemporâneas, capitalistas ou não, tudo pode ser resumido pelo lema ―tempo é dinheiro‖. Acreditando ou não nessa lógica financeira proponho um exercício imagético: pense num sujeito extraordinariamente rico. Alguém que seja milionário ou bilionário. Agora imagine que essa pessoa seja você. Imaginou? Ótimo. Agora, eu pergunto: o que você faria se tivesse muito dinheiro? Você iria realizar todos os seus sonhos materialistas de consumo ou investir em causas nobres e elevadas? Ambas as opções? Digamos que se seu desejo fosse modificar (observem que eu não disse melhorar) a sociedade, o que você faria especificamente com a sua fortuna? Eis algumas alternativas: a) Você sairia em busca de aventuras para tentar acumular mais dinheiro? b) Você aprimoraria mente e corpo para secretamente combater o crime? c) Você investiria em tecnologia e armas futuristas? d) Você tentaria combinar poder econômico e político para dominar o mundo (ou apenas governar seu país ou cidade, afinal, depende da sua ambição...)? e) Você ostentaria sua riqueza, se divertiria muito e, no processo, ajudaria algumas pessoas afortunadas? f) Você investiria cada centavo para burlar as leis vigentes a fim de satisfazer alguma obsessão particular? 1
Doutor em Filosofia pela UFSCar. Coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo na UFPI. 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
g) Ou você diria: ―Quem se importa? Dane-se a sociedade!‖ Em linhas gerais, cada uma das opções acima foi explorada amplamente no mundo ficcional em histórias que envolvem, respectivamente, as seguintes personagens: Tio Patinhas (opção ―a‖), Batman (opção ―b‖), Homem de Ferro (opção ―c‖), Lex Luthor (opção ―d‖), Cruela De Vil (opção ―e‖) e Sr. Burns (opção ―g‖). De 2005 a 2011, a Revista Forbes, publicou a lista dos 15 (quinze) personagens mais ricos da ficção. A composição da lista é feita a partir de figuras extraídas da literatura, dos filmes, dos desenhos animados, das histórias em quadrinhos, dos games e da TV que, necessariamente não sejam reais. Como nosso foco de interesse, nesse artigo, está nas personagens de histórias em quadrinhos, mantivemos apenas aquelas figuras que, a despeito de terem sua origem em outras áreas (como animações e cinema), são protagonistas ou coadjuvantes importantes na arte seqüencial. Assim, podemos resumir a lista assim: Personagem
2005
2006
2007
2008
2010
2011
Média da Fortuna (Bilhões)
$8.2 (6º)
$10.9 (3º)
$28.8 (1º)
$29.1 (2º)
$33.5 (2º)
$44,1 (1º)
Riquinho
$17.0 (3º)
$10.7 (4º)
$16.1 (3º)
$12.3 (3º)
$11.5 (3º)
$9,7 (4º)
C. Montgomery Burns Bruce Wayne (Batman) Tony Stark (Homem de Ferro)
$8.4 (5º)
$16.8 (2º)
$8.4 (6º)
$0.996 (13º)
$1.3 (12º)
$1.1 $6.16 (5º) (12º)
$6.5 (8º) ---------
$6.8 (7º) $3.0 (8º)
$7.0 (8º) $6.0 (10º)
$5.8 (9º) $7.9 (7º)
$6.5 (7º) $8.8 (4º)
$7,0 $6.60 (8º) (4º) $9.4 $7.02 (3º) (6º)
$10.1 (4º)
---------
---------
---------
---------
---------
$1.0 (14º)
--------
---------
---------
---------
---------
Tio Patinhas
Lex Luthor
Cruela De Vil
$25.76 ( 1º) $12.88 (2º)
*
-
*
Fonte da Riqueza Mineração e Caça ao Tesouro Herança e Conglomerado de Empresas Energia Nuclear Herança e Defesa Herança e Indústrias de Armamento e Defesa Defesa, Software e Mercado Imobiliário Herança e Antiguidades
De modo geral, a despeito de suas características e motivações específicas, diferenças ideológicas e contextos sociais distintos, Patinhas, Riquinho, Wayne, Stark, Burns, Luthor e De Vil demonstraram fortes propensões a mudar aspectos da sociedade a fim de realizar seus objetivos. Em comum, suas respectivas sociedades são simbolizadas pelas grandes cidades que habitam, a maioria fictícia, como Patópolis, Richville, Gotham, Springfield e Metrópolis. As exceções são as cidades de Nova 67 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Iorque e Londres, respectivamente, habitats de Tony Stark e de Cruela De Vil. Enquanto que alguns bilionários fictícios querem transformar a sociedade para amenizar as mazelas sociais, outros pretendem a mesma coisa para fins distintos, como conquistas pessoais, ampliação de poder ou satisfação de desejos exóticos. Entretanto, se as bilionárias personagens pudessem ser assessoradas por algum fictício consultor que conhecesse as idéias dos filósofos políticos contemporâneos John Rawls e Robert Nozick, será que eles mudariam de estratégia? Vejamos. A relação entre o Estado e o indivíduo é bastante complexa. Para Rawls, um Estado democrático liberal deve garantir principalmente justiça social a todos os membros da sociedade. Mas como um governo pode equilibrar a função de promover justiça distributiva com a função de proteger os direitos individuais do cidadão? De acordo com Rawls, a sociedade deveria ser estruturada em torno dos princípios de Liberdade e Justiça. O princípio da Liberdade sustenta que os todos os indivíduos devem ter os mesmos direitos básicos sobre o mais amplo esquema de liberdades igualitárias, como a liberdade de pensamento, expressão, organização social, representatividade política e o direito à propriedade privada. O princípio da Justiça tem duas partes. Em primeiro lugar, defende que as diferenças econômicas e sociais de uma sociedade devem
ser
acompanhadas
pelo
estabelecimento
de
oportunidades
relativamente iguais para a conquista de empregos, posição social e poder. Em segundo lugar, propõe que a existência da desigualdade social e econômica é justificável somente se gerar prioritariamente benefícios maiores aos membros menos favorecidos da sociedade (também chamado de ―princípio da diferença‖). Quando a sociedade tiver que escolher entre defender a liberdade individual ou promover a justiça distributiva, a prioridade cabe ao primeiro princípio. A idéia de uma sociedade mais igualitária passa, necessariamente pelo estreitamento das desigualdades sociais e econômicas. Para combater as antinomias das sociedades democráticas (como as tensões que situam justiça, opulência e poder de um lado e, injustiça, miséria e impotência de outro lado), Rawls propõe que os indivíduos social e economicamente mais favorecidos atuem, de maneira altruísta, no sentido de reparar as desigualdades que afligem os membros desfavorecidos da sociedade. Na prática, isto implica no fato que uma parcela significativa da população teria de abdicar de forma consciente e benevolente de alguns privilégios e vantagens materiais, obtidas de forma legítima (por mérito, herança, habilidade) em prol dos desvalidos. 68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Contrário a esta proposta, Nozick critica qualquer ação do Estado (seja de um governo Liberal ou Socialista) que resulte na violação dos direitos das pessoas. Para ele, toda ingerência governamental em qualquer instância que venha a infringir os direitos pessoais e de posse equivale a um atentado contra a liberdade do cidadão. Como alternativa Nozick sugere um modelo político-econômico utópico chamado de Estado Mínimo. Nessa proposta, a sociedade seria estruturada em torno de uma ética libertária e utilitarista que reduz consideravelmente as funções do Estado, que ficam praticamente restringidas à defesa de seus cidadãos contra possíveis ataques (violência, roubo, fraude etc.) de outros indivíduos ou grupos. E as funções do assim chamado Estado paternalista, tradicionalmente reputadas ao poder público, como habitação, saúde, educação e assistência social ficariam a cargo de iniciativas privadas, filantropia e instituições de caridade. Para Nozick a idéia de justiça distributiva é falha porque a sociedade não tem nada para distribuir, quem tem posses são os indivíduos. E nenhum Estado deveria ter o poder de obrigar as pessoas a cederem seus direitos individuais como habilidades, propriedades, herança, mente e corpo (que também constituem direitos de posse). Assim, na idéia de justiça distributiva haveria uma incompatibilidade entre os dois princípios fundamentais que constituiriam uma sociedade realmente justa: o princípio da diferença (Justiça) colidiria com o primeiro princípio (Liberdade), na medida em que ao ter que abdicar de seus talentos naturais ou posse legítima (―justamente adquirida‖ ou ―justamente transferida‖), o indivíduo estaria sofrendo um tipo de intervenção na sua liberdade. Deste modo, embora Rawls tenha afirmado que a Liberdade tem prevalência sobre a Justiça, Nozick o acusa de não defender a liberdade como o valor maior em qualquer sociedade, mas de eleger a igualdade como o valor supremo. De volta aos bilionários da ficção, a fim de aproveitamos melhor o nosso experimento com a imaginação e o pensamento, sugiro fazer uma triagem na nossa ―rica‖ lista sêxtupla. Como critério, adotaremos a razoabilidade, compreendida tanto como uma atitude recomendada e esperada de bom senso ou prudência por parte dos cidadãos e grupos nas democracias liberais pluralistas quanto um princípio constitucional norteador adotado pelo Estado para evitar que distorções na aplicação das leis acarretem a violação de direitos fundamentais. Em outras palavras, se o indivíduo quiser ser cidadão pela metade, isto é, usufruir dos direitos e benefícios que sua condição de cidadão lhe propicia, mas se
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recusar a cumprir suas obrigações legais e até mesmo se opor a prestar contas de suas atividades, ele não está observando o princípio da razoabilidade e não pode ser considerado razoável. A sociedade espera que em situações de divergência política ou de conflitos de interesse, o indivíduo ou grupo cuja causa for julgada desfavorável ou improcedente, não se recuse a cumprir as determinações do Estado. Como tanto a proposta de Rawls quanto a de Nozick envolvem um determinado grau de razoabilidade, podemos descartar aquelas personagens que não apresentam, como hipotéticos cidadãos, tal característica. Assim, caem fora: Cruela De Vil, Lex Luthor, Sr. Burns, Homem de Ferro, Batman e Riquinho. Por quê? Tentarei dar uma explicação razoável... Cruela De Vil é sádica e cruel com os animais, e constantemente se associa a criminosos. Ela não tem escrúpulos para satisfazer seu mórbido desejo de ter casacos de pele de animais. O ápice de sua tétrica vaidade é trajar casacos que sejam feito da pele de cães dálmatas. Como tanto a legislação britânica quanto a norte-americana não permitem isso, ela não vê problemas em contratar bandidos para raptar 101 (cento e um) filhotinhos dálmatas a fim de esfolá-los (Urgh! Descrevendo assim nem parece o roteiro de uma história voltada para o público infantil, que coisa horrível!). Lex Luthor usa sua fortuna para literalmente dominar Metrópolis. Indústrias, hospitais, parques, óperas, teatros e museus foram idealizados e construídos por ele. Suas companhias, por exemplo, empregam dois terços dos trabalhadores da cidade. No entanto, sob o disfarce de cidadão exemplar, Luthor esconde uma obsessão. Não se trata de um simples desejo de como a obtenção de mais poder financeiro, tecnológico ou algum tipo de super poder. Ele quer poder absoluto. Para tanto, ele corrompe, intimida e coage policiais, cientistas, juízes, jornalistas e quem mais for necessário para conseguir realizar seus objetivos (ele conseguiu até mesmo se eleger presidente dos EUA na versão da editora DC). O próprio nome ―Lex‖ (Lei, em Latim) é bastante sugestivo, pois evoca a idéia de uma forte propensão a fazer valer suas próprias leis ou de se situar acima das leis comuns. Para realizar seus intentos, elimina qualquer um que se opuser a ele. Afinal de contas, o que poderíamos esperar de um sujeito super inteligente que arregimenta e lidera um numeroso grupo de super-vilões conhecidos como a Legião do Mal? (Injustice League). Ah, sim. Seu disfarce de bom cidadão ruiu quando Superman e a Liga da Justiça fugiram conseguiram provar suas conexões criminosas. Sr. Burns é tão mau que falta adjetivos precisos para descrever toda sua 70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
malevolência com propriedade. E também é dono de uma Usina Nuclear que, no mínimo, polui e devasta o meio ambiente (os dejetos tóxicos vão direto para o lago local de Springfield). Além disso, é um patrão sádico com seus empregados. E, pasmem, o chefe de segurança de sua perigosa indústria radioativa é Homer Simpson. Stark, vulgo Homem de Ferro, é bastante parecido com Luthor. Ambos são inteligentes, ricos, têm armaduras bélicas reluzentes e querem dominar o mundo. Nesse último aspecto, a diferença é que Stark tentou fazer isso da forma legal, isto é, dentro dos parâmetros jurídicos normativos da sociedade. Stark não se elegeu presidente dos EUA, mas conquistou um cargo no qual só respondia ao próprio (mas sabia muito e mandava muito mais). A partir daí, por motivos altruístas como a proteção do cidadão comum, promoveu uma caça às bruxas com sua lei de registro de super-herói, causando uma guerra civil na comunidade de super-heróis de proporções gigantescas (Veja a saga Guerra Civil). Batman é um vigilante que, embora não mate ninguém, faz a justiça com as próprias mãos (E isto é contra as leis!). Talvez o caso mais emblemático seja o alter-ego de Batman: além do disfarce de playboy, Bruce Wayne é reconhecidamente um empresário de sucesso e um dos mais notórios filantropos do mundo da ficção. Tem uma Fundação que leva seu nome, promove eventos para angariar recursos para projetos sociais e já investiu parte considerável de sua fortuna para reconstruir a devastada cidade de Gotham. E em algumas ocasiões utiliza sua influência e prestígio de cidadão exemplar para tentar demover o governo dos EUA de alguns intentos considerados pouco humanitário. Todavia, quando suas ações empresariais, sociais e políticas falham, Wayne cede lugar ao Batman. E a questão acaba sendo resolvida pela via heróica. Por isso, ele sai (Poxa, como é difícil fazer isso com o Cavaleiro das Trevas... mas é o critério, fazer o que?). Riquinho também cai fora porque, afinal de contas, ele é apenas uma criança (Ora, veja o Estatuto da Criança e do Adolescente e nem precisamos continuar essa discussão!). Além disso, tal como foram concebidos Sr. Burns, Cruela De Vil e Lex Luthor são vilões. De modos distintos, eles simplesmente são maus e isso já seria suficiente para excluir qualquer possibilidade de contar com suas fortunas para melhorar a sociedade. Por essa perspectiva, não haveria como contar com suas colaborações para pôr em prática a justiça distributiva. Por outro ângulo, eles também não poderiam
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criticar tal iniciativa porque boa parte de suas fortunas não se enquadram exatamente no critério de posse legítima, isto é, justamente adquirida ou justamente transferida. Com isso, sobra apenas o mais rico de todos: o Tio Patinhas. Então, como diriam os Impossíveis, ―Lá vamos nós!‖. Distribuição de renda? Absurdo. O velho pato não conseguiria fazer isso. Basta lembrar as inúmeras vezes em que ele se atirou no chão aos prantos quando o nível de sua fortuna baixou (sim, caro leitor, ele pode literalmente medir sua riqueza no cofreforte). A própria concepção da personagem implica na oposição à generosidade, pois Scrooge (o nome original em inglês do Tio Patinhas) é uma referência ao clássico personagem de Charles Dickens. Como o Scrooge original, o cidadão mais rico de Patópolis é a personificação da avareza. A assim chamada criminalidade de Patópolis (Mancha Negra, Irmãos Metralha, Maga Patalógica) só incomoda o bilionário quando sua fortuna é ameaçada. Assim, também seu apoio a inovação científica e tecnológica (Professor Pardal) está condicionado ao seu interesse direto de ampliação da riqueza. Diante do exposto, ricos e pobres leitores, habitantes desta ou de outras realidades ficcionais, a pergunta retórica que ainda podemos e devemos fazer é: ―E agora, quem paga o pato?‖. * Referêncial bibliográfico: McLAUGHLIN, Jeff. Comics as Philosophy. Jackson: University of Mississipi Press, 2005. MOYA, Álvaro. História das Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Brasiliense, 1994. NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. THE-FORBES-FICTIONAL-15. Disponível em: http://blogs.forbes.com/davidewalt/2011/04/06/the-forbes-fictional-15/ Acesso em: 27 de novembro de 2011.
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Tradução
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Quadrinhos e cartum: uma forma de arte democrática1 J. Maggio
O cartum, quadrinho, ou – como o chamou o influente cartunista Will Eisner – ―arte sequencial‖ é uma forma de arte que é cognitivamente amigável das noções contemporâneas de individualismo democrático liberal.1 Considerando que as tradicionais formas de arte tem parâmetros estéticos bastante hierarquizados que reforçam os modos tradicionais de poder e a convencional ordem de prioridade hermenêutica, a iconografia dos quadrinhos e dos cartuns apoia um tipo
de
individualismo democrático pluralista. e, como alguns pensadores sugerem, o mundo é compreendido através de imagens cognitivas no cérebro, então – como a obra de C. S. Pierce, Scott McCloud e outros defendem – quadrinhos são uma arte que permite a autocriação individual, o que, posteriormente, favorece a democracia.
C. S. Pierce, Scott McCloud e a Iconografia de Cartuns e Quadrinhos Para entender esta ―democracia cognitiva‖ (cognitive democracy), precisamos compreender a linguagem dos quadrinhos modernos. A obra de C. S. Peirce nos ajuda nisso. Semioticista e pragmatista americano, Peirce desenvolveu a noção de iconografia que ajudou a formar o léxico da arte dos cartuns. Peirce desenvolveu uma tríade de ícones fundamentais: Quali-signo, Sin-signo e Legi-Signo. Quali-Signos não representam nenhuma coisa especificamente exceto sua própria existência – eles são vistos na pintura abstrata de artistas tais como Jackson Pollock e Wassily Kandinsky. Em contraste, Sin-signos são imagens que significam um objeto atual no mundo empírico. Estas imagens são melhor expressas pela criação foto-realista. E finalmente, Peirce argui que a terceira forma de ícone – como Legi-signo – era baseada em aparências empíricas, mas essencialmente abstraída dos dados de sentido empírico. Cartuns e quadrinhos – tão bem quanto diagramas e mapas – geralmente ficam neste último grupo de ícones (PEIRCE, 1940, pp.99-103)2. Peirce (Ibid, p.116) define este grupo escrevendo: 1
Texto original: ―Comics and Cartoons: A Democratic Art-Form‖. In: PS: Political Science and Politics, Abril de 2007. Disponível em: http://www.apsanet.org/imgtest/PSApr07Maggio.pdf, acessado em 20/12/2011. Cedido por J. Maggio para tradução e publicação nesta revista. 74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
―Um Legi-Signo icônico [e.g., um diagrama separado de sua factibilidade individual] é todo tipo ou lei geral, na medida em que exige que cada um de seus casos corporifique uma qualidade definida que o torna adequado para trazer à mente a idéia de um objeto semelhante. Sendo um Ícone, deve ser um Rema. Sendo um Legi-signo, seu modo de ser é o de governar Réplicas singulares, cada uma das quais será um Sin-signo Icônico de um tipo especial‖.
Embora Peirce escreva ―Réplicas‖, no seu entendimento, estes símbolos – ou ícones – não contêm uma realidade metafisicamente ―inferior‖: ―Um Símbolo é um Representâmen cujo caráter representativo consiste exatamente em ser uma regra que determinará seu Interpretante. Todas as palavras, frases, livros e outros signos convencionais são Símbolos. Falamos em escrever oui pronunciar a palavra ―homem‖, mas isso é apenas uma réplica ou corporificação da palavra, que é pronunciada ou escrita. A palavra, em si mesma, não tem existência embora tenha um ser real que consiste no fato que os existentes se deverão conformar a ela‖ (Ibid, p.112; ênfase no original).
Para Peirce, o ícone molda a realidade mesma – criando um espaço para significado interpretativo em certos contextos. Muitos anos mais tarde, o scholar dos quadrinhos Scott McCloud elaborou sobre a obra de Peirce e aplica esta diretamente para a teoria estética dos cartuns. McCloud argumenta que os quadrinhos funcionam melhor quando emprega largamente elementos como iconografia Legi-signo. Quando os cartunistas anseiam ser mais realistas em sua arte, diminuem o valor hermenêutico desta forma de arte. Isto acontece porque – no relato de McCloud – humanos utilizam uma técnica cognitive chamada ―fechamento‖ (closure), quando entende o significado dos quadrinhos. Este fechamento é o preenchimento dos os espaços em branco que os quadrinhos deixam abertos. Estes espaços ocorrem na natureza um tanto simplista das reconstruções humanas, assim comoo no espaço entre os quadros nos quadrinhos – o que esta implícito na montagem de toda arte sequencial. McCloud (1994, pp.30-31) escreveu: ―Os críticos de cinema, às vezes, descrevem um filme como ―cartum‖ pra indicar uma história ou estilo visual bem simples. Embora o termo seja usado de forma depreciativa, ele pode ser bem aplicado a diversos clássicos imortais. Simplificar personagens e imagens pode ser uma ferramenta eficaz de narrativa em qualquer meio de comunicação. Cartum não é só um jeito de desenhar, é um modo de ver!‖.
Em outras palavras, os quadrinhos – em oposição a muitas outras formas de narrativa visuais – deixa um grande espaço cognitive para quem vê/lê interpretar seu significado. O fechamento acontece entre os movimentos do Legi-signo abstrato para significar dados no cérebro, assim como na arte sequencial no movimento entre os quadros de uma página. Em ambos os casos, os quadrinhos empregam um largo grau de liberdade cognitiva. Manning escreveu (1998, pp. 67–68): ―Portanto cartuns e esboços do tipo de cartuns proporcionam um meio ideal para novas ideias, novas formas de ver. Compare uma revista em quadrinhos dos X-men com um bem ilustrado texto sobre energia nuclear. Um pré-adolescente a principio explora ideias sobre conflito, 75 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
lealdade, honra, auto-sacrificio da primeira leitura. Já um aspirante a cadete da marinha aprende o funcionamento de reator nuclear sub-atômico seguindo os desenhos simplificados e esquemático da outra... Nos termos de McCloud, cartuns amplificam novas ideias simplificandoas e esboços com cartuns incorporam conceitos gerais de um modo que nenhuma imagem fotorealista de uma coisa real pode‖.
De fato a arte do cartum e/ou quadrinhos têm uma forma que – em suas versões do século XX e XXI – ajudam a criar uma perspectiva subversiva de entendimento do mundo. A maioria das discussões sobre quadrinhos se engajam na análise de seu conteudo como forma de arte. Esta é – com certeza – de grande importância, especialmente como na perspective que os quadrinhos oferecem um critica as estruturas dominantes de poder. Porque quadrinhos são geralmente populares em subculturas e geralmente vou para além do radar da elite intelectual, cartunistas podem frequentemente tomar a sério temas em perspectivas que não seriam toleradas em mídias do mainstream (SCHMITT, 1992, p.155). Além disso, a existência subterrânea dos quadrinhos permite aos cartunistas criar uma estética única e uma ―nítida visão alternativa‖ que frequentemente diz mais sobre sua cultura do que a tão falada arte elevada (SCHMITT, 1992, p. 155). Na verdade, a elite cultural radical tem frequentemente exaltado os quadrinhos como um tipo exótico de ―outra‖ arte. Marshall McLuhan (2004, p.109) escreve: ―Picasso foi sempre um fã dos quadrinhos norte-americanos. A elite cultural, de Joyce a Picasso, desde longa data tem se afeiçoado a cultura popular Americana porque encontra nela uma autentica reação imaginativa para o poder (action) oficial. A arte bem comportada, por outro lado, tende a meramente evadir e desaprovar os ruidosos modos de poder (action) em uma definição poderosamente elevada ou ―quadrada‖ de sociedade‖.
Não obstante o fato de que oconteúdo das histórias em quadrinhos é muitas vezes radical, é possivelmente mais importante para notar a forma dos quadrinhos – como uma arte – é extremamente bem adaptada para a sociedade democrática, que constantemente reavalia suas posições éticas. Ronald Schmitt (1992, p.153) afirma que ―o efeito das histórias em quadrinhos sobre os jovens são bastante subversives porém não no sentido moral ou comportamental que os educadores conservadores procuram; mas sim em seus efeitos sobre os modos hierárquicos e tradicionais de leitura e sobre toda a noção de instrução (literacy).‖ A ―leitura‖ de quadrinhos e cartuns – o ato hermenêutico envolvido na troca artística – é muito diferente do ato de leitura do texto tradicional. Dada a troca de significados entre as palavras, a pintura e a rede que 76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
estabelece os significados, quadrinhos abrem uma complexa teia de entendimento que é muito diferente daquela que a leitura da esquerda para a direita forma padrão em textos. Como J. T. Mitchell (2005, p.11) afirma que as imagens nestas circunstancias quase funcionam como ―organismos vivos‖, exigindo interação com o leitor. Schmitt (1992, pp.157-158) aplica uma perspective explicitamente inspirada em Derrida para analisar os quadrinhos: ―A relação entre as palavras e as imagens emu ma história em quadrinhos, ao invez de ser a oposição de opostos dialéticos... é mais próxima ao conceito derridariano de ‗differance‘. Partindo de que é impossível ‗ver‘ as imagens e as palavras simultaneamente, a presença que precisa de uma ausência ou de outra criando uma irresolúvel continuidade e desempate entre as duas formas textuais. Além disso, a significação e a estabilização do sentido é continuamente adiada pelos olhos, que ao invés de digitalizar da esquerda para a direita nos mesmos padrões lineares, pula entre palavras e imagens, espiralando em zigue-zague e frequentemente interrompendo inteiramente o processo para rever a informação de uma nova perspectiva. Ao invés de dois textos estáveis com palavras e imagens justapostas, as revistas em quadrinhos são uma forma auto-inflingida de ‗escrita-dupla‘, que coloca em colapso estratégias tradicionais para ler textos em palavras e imagens..‖
Neste sentido a interação entre palavras e textos criam uma tensão quie permite liberdade cognitive. De fato, como sugeri antes, estas características são algo único da arte dos quadrinhos. Manning (1998, pp. 68-69) afirma que: ―uma fotografia é a marca de um e apenas um objeto. Um esboço de desenho representa potencialmente todos oebjetos de um tipo de conceito geral... Cartuns ficam próximos das fotos de imagens reais para o esquema de pensamento de McCloud/Peirce. Em suas teorias, pensamentos e ideias igualmente existem sobretudo na forma de desenhos vagos (vaguely sketched forms)‖.
Assim, a arte dos cartuns é o veiculo perfeito para interpretação cognitiva individual.
Quadrinhos e individualismo democrático
Como observamos anteriormente, a arte dos quadrinhos cumpre um grande papel na individualidade cognitiva da democracia. De fato, como aponta George Kateb (1992, p.90), a autocriação cognitiva é a chave para a individualidade positiva necessária para uma democracia saudável: ―A dignidade de alguém está em ser, em alguma medida importante, uma pessoa que criou a si mesma, agindo, escolhendo, mais do que sendo meramente uma criatura ou coisa socialmente manufaturada, condicionada, manipulada: metade animal e metade mecânica e, assim, totalmente socializada. Viver uma vida não é como ser levado pela correnteza. O encorajamento da individualidade positiva é o encorajamento da coragem, por assim dizer: a coragem de viver deliberadamente, como coloca Thoureau, para evitar que quando chegar a hora de morrer se descubra que não viveu. Todos nós nos beneficiamos se ninguém é penalizado, mas tem a permissão e o incentivo para ser ele mesmo ou ela mesma‖.
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Em outras palavras, aplicando este conceito à estética, a arte dos quadrinhos/cartuns tem um elemento inerentemente democrático: a democracia se baseia em liberdade cognitiva e autocriação. Esta noção de uma forma de liberdade cognitiva é base do individualismo democrático (Kateb, 1992, p. 98). A criação de sentido que esta implicita no jogo intertextual entre palavras e imagens tem um papel fundamental na criação de uma sociedade democrático-liberal. Se o individualismo de mocrático é alimentado por nossa habilidade – como agentes soberanos – para criar nossas próprias vidas, então a arte dos quadrinhos serve como um perfeito encômio de tal sociedade. Portanto, se a sociedade democratico-liberal é baseada – como sugere Richard Rorty (1999, p.48) – em nossa capacidade de deixar no passado a distinção grega entre ―aparência e realidade‖, então uma forma de arte com constante mudança (shifting) das noções de sentido – quase derridariana – é perfeita para a democracia moderna. É claro que existe sempre um risco inerente em qualquer noção individualista de sociedade. Frequentemente, a democracia, tomada como um meio, não tem os fins de esquerda que os democratas desejariam. O risco baseado no julgamento individual inclui – é claro – as palavras tanto da política quanto da arte. Como Leslie Fiedler (2004, p.132) escreveu quando discutia os quadrinhos: ―O problema colocado pela cultura popular é, finalmente, um problema de distinções de classes em uma sociedade democrática. O que esta em jogo a recusa de igualdade cultural para uma grande parte da população. È um erro pensar a cultura popular como o produto de uma conspiração de especuladores contra o restante de nós. Esta noção venerável de povo eternamente oprimido e privado, mas inocente é precisamente o que a ascensão da cultura de massa desafia. Muito do que a aristocracia dos igualitaristas sonhou para si, os homens comuns não querem – especialmente a instrução (literacy)”.
A instrução (literacy) tradicional é exatamente o que os quadrinhos desafiam – e com isso a totalidade de noções de compreensão hierárquicas da sociedade e da arte. Quadrinhos, então, são apenas uma das muitas chaves para quebrar as convenções sociais normais de significado. Portanto, quadrinhos são esteticamente suporte cognitivo para o individualismo democrático e eles funcionam como um exemplo de arte contemporânea na sociedade.
Tradução: Marcos Carvalho Lopes
Notas 78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
1. Não me estenderei neste trabalho estabelecendo definições substanciais ou estritas destes termos. Este tipo de trabalho tem preenchido grossos volumes. Pode-se assumir que endosso um tipo de individualismo democrático afim ao dos autores que cito neste breve ensaio. 2. Devo a Alan D. Manning o entendimento sobre a obra de Peirce que desenvolvo aqui.
Referencias FIEDLER, Leslie. ―The Middle Against Both Ends.‖ In: HEER, J e WORCESTER, K. (ed.) Arguing Comics. Jackson: University Press of Mississippi, 2004. KATEB, George. The Inner Ocean: Individualism and Democratic Culture. Ithaca: Cornell University Press, 1992. MANNING, Alan D. 1998. ―Scott McCloud—Understanding Comics: The Invisible Art.‖ IEEE Transactions on Professional Communication 41 (March): 60–9. McCLOUD, Scott. Understanding Comics. New York: Harper,1994. McLUHAN, Marshall. ―Comics: Mad Vestibule to TV.‖ PIERCE, C. S. The Philosophy of Pierce: Selected Writings. New York: Harcourt, Brace and Company, 1940. RORTY, Richard. Philosophy and Social Hope. Middlesex, UK: Penguin Books, 1999. SCHMITT, Ronald. ―Deconstructive Comics.‖ Journal of Popular Culture 25 (March): 153–62, 1992.
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Resenha
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RESENHA VIANA, Nildo. e REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011. 184p. Marcos Carvalho Lopes O livro Super-Heróis, Cultura e Sociedade, organizado pelo filósofo e sociólogo Nildo Viana e pelo teólogo Iuri Andreás Reblin, tem como mérito incontestável a proposta de pensar a cultura popular construindo um diálogo que rompe as fronteiras acadêmicas/disciplinares e os pressupostos conservadores que criam uma distinção vertical entre os objetos que seriam dignos de estudo e aqueles que deveriam ser ignorados. O subtítulo do livro é ―Aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos‖, como destaca Iuri Reblin na apresentação do volume, isso sublinha a de que diversas perspectivas de formação e análise oferecessem ao leitor uma visão não reducionista dos super-heróis, os abordando em toda sua potencialidade e riqueza (p.7). A coletânea de artigos procura uma espécie de consenso sobreposto que supere a especialização, operação que deve ser desenvolvida pelo leitor: o livro abre horizontes para que surjam mais trabalhos e diálogo sobre os super-heróis e sua função cultural. Grosso modo podemos distinguir duas formas de abordagem dos super-heróis no livro: por um lado há os que os analisam a partir de um ponto de vista sociológico, como fenômeno de uma cultura capitalista, onde são vistos como produtos desenvolvidos tendo como fim o lucro, com função ideológica conformista; por outro lado, há aqueles que partem de uma perspectiva romântica, onde o gênero da superaventura é lido em conexão com o desejo individual de transcendência, como aceno do sagrado na cultura atual. No primeiro grupo, estaria o polo predominante das análises de Nildo Viana (filósofo e sociólogo), Edmilson Marques (historiador e cientista social) e Waldomiro Vergueiro (professor de Comunicação); mais afins a segunda tendência estão Iuri Andreás Reblin (teólogo), Valério Guilherme Schaper (teólogo) e Denise D‘Aurea Tardeli (psicóloga e pedagoga). Esta tensão não é e nem deve ser apagada, como observa Nildo Viana: ―o desejo do ser humano de ser livre significa vontade de superar sua pequenez produzida socialmente, e o super-herói encarna inconscientemente este projeto, bem como encarna seu contrário, a pequenez, quando olhamos para sua face mais consciente e visível‖ (p.13). O conflito entre instintos incorrigíveis e cultura dominadora para Freud deveria ser tomado também como algo que não pode ter resolução, uma disputa que buscamos apaziguar/organizar 81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
construindo (e reconstruindo continuamente) nosso self. Como formula Philip Rief ―a ideia romântica do inconsciente pode ter contribuído originalmente para a ideia antidemocrática de gênio (como em Schelling), mas Freud democratizou o gênio dando a todas as pessoas um inconsciente criativo‖ (RIEF,1979: p.56). Na medida em que o self precisa ser construído la lotta continua é uma tarefa cultural inevitável que não se reduz as narrativas de decadência apocalípticas ou a aceitação da trivialidade como um beco sem saída. Como explica o filósofo Charles Taylor, ―a batalha não deveria ser pela autenticidade, contra ou a favor, mas sobre ela, definindo seu significado correto‖; o que pare ele estaria em superar o egotismo, persuadindo ―as pessoas de que a autorrealização, muito longe de excluir relacionamentos incondicionais e exigências morais além do self, na verdade as requer em alguma forma‖ (TAYLOR, p.78). Se para algumas pessoas os super-heróis e os quadrinhos tem uma função muito importante em sua autocriação (ocupando mesmo o lugar de algo sagrado), nada mais justo do que abrir espaço para que existam mais conversas sobre o sentido e o significado das superaventuras em nossas vidas e cultura.Talvez por isso, para Nildo Viana, ―Nós, escritores, analistas e leitores, temos de superar a pequenez e torcer para os super-heróis fazerem o mesmo, inclusive lutar contra nós mesmos para não nos cegarmos diante da pequenez dos super-heróis, por admirá-los por sua grandeza. Neste jogo há uma constante luta e, nesta luta, seus produtos e, entre seus produtos, o presente livro interfere nela‖ (sic.)(p.13).
Entre os artigos existem informações redundantes, o que na maioria das vezes não gera um grande prejuízo. Exemplo disso é que os artigos de Nildo Viana e Waldomiro Vergueiro propõem narrativas sobre a trajetória de criação e transformação dos super-heróis relacionando-a com o desenvolvimento histórico e social. A divergência entre os dois pesquisadores esta no modo como contar esta história, qual deve ser o escopo, como ela deve ser dividida, com quais termos etc. Enquanto Viana tem como referência a ―sucessão de regimes de acumulação‖, Vergueiro mantém seu foco na sociedade norte-americana, tomando os super-heróis como um fenômeno que se vincula primordialmente a cultura deste país. Para ele a produção/invenção de superheróis noutros ―contextos culturais costuma representar uma imitação bastante limitada do modelo narrativo original, com resultados muitas vezes patéticos, totalmente dispensáveis – o que é pior – contraditórios em relação à cultura nativa‖ (p.148). Ainda que Viana não compartilhe desta delimitação, seu trabalho também gira basicamente em torno dos quadrinhos norte-americanos, no entanto, com a promessa de aprofundamento 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
e expansão em um trabalho posterior para incluir os astros de superaventuras de outras culturas. O trabalho de Iuri Andreás Reblin num primeiro momento procurar articular e avaliar as formas de abordagens teóricas dos quadrinhos apresentando o seu pressuposto: ―a pergunta pelos super-heróis não deixa de ser, em seu íntimo, uma pergunta religiosa‖ (p.62). A seguir o autor apresenta seis modelos de arquétipos míticoreligiosos que estruturariam as narrativas sobre os super-heróis, que a seguir são articulados com a descrição da trajetórias de alguns deles, focando primordialmente o Capitão Marcel e Shazam. Reblin desenvolve algumas questões sobre as relações entre a realidade e a ficção nos quadrinhos; tema que é o centro do texto de Edmilson Marques. Em verdade, o texto de Marques está tão amarrado a uma perspectiva metodológica/política que lhe garantiria acesso a ―essência da realidade social‖ que ao denunciar o maniqueísmo das superaventuras corre o risco de fazer caricatura da caricatura, realizando outro reducionismo. Exemplo disso acontece quando argumenta que: ―se o Coringa representa o mal por provocar desordem e destruição, e vemos na realidade países imperialistas matarem milhares de pessoas através de guerras, bem como diversas empresas e indústrias fazendo o mesmo, com a depredação da natureza, então, esses podem ser encarados como o mal. Assim, partindo de um ponto de vista maniqueísta, podemos chegar à conclusão de que, nas histórias em quadrinhos, ocorre uma inversão da realidade, colocando o bem como mal, e o mal como bem, se a partir do pressuposto de que o mal é aquele que prejudica a vida de seres humanos‖ (p.115).
Na ―realidade‖ o terrorismo do Coringa seria uma coisa boa? O uso de termos como ―ideologia‖ é inflacionado, a ideia de que podemos separar ―momentos de realidade‖ e ―momentos de ficção‖ nos quadrinhos é pouco interessante por repor e duplicar os velhos dualismos gregos entre realidade e aparência. O texto de Valério Guilherme Schaper é interessante por, ainda que sumariamente, pensar o lugar do herói na sociedade brasileira. Porém, sua reflexão ética tem uma articulação débil com os quadrinhos: apenas nas três páginas finais de seu texto (de treze páginas) o autor faz alguma referência aos seres superpoderosos dos comics, com uma citação que é redundante para o leitor, já que o Surfista Prateado havia socorrido outros articulistas nas páginas anteriores. O Surfista Prateado é um exemplo privilegiado por conta de na sua trajetória ter trocado suas relações de lealdade, passando de posições trágicas e amorais para outra heroica; o que sublinha os aspectos da responsabilidade em nossas escolhas. Denise D‘Aurea Tardeli apresenta um trabalho instigante que procurar mostrar 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
a importância das narrativas heroicas no desenvolvimento da personalidade moral. Os super-heróis seria ―um modelo otimizado dos valores que uma cultura entende como bons e próprios‖, que articula tanto o próprio (o que somos, o que cremos que somos, o que queríamos ser), quanto o que é percebido como outro (o que cremos que não somos quem cremos não ser), sendo que muitas vezes estes termos se confundem nos limites entre heroísmo e vilania (como na história de Darth Vader) (p.131). Os super-heróis ajudariam os jovens como modelo de identificação que aponta para a formulação de um propósito de vida, o que, seguindo William Damon, seria um fator importante para seu desenvolvimento psicossocial. Desta forma, ―explicando o super-herói pela perspectiva moral, observa-se, ao vencer todos os obstáculos, diferentemente do herói trágico, ele vence todas as vicissitudes e, no momento máximo da trama, quando está quase vencido, salva-se pelos seus valores morais‖ O que possibilita seu triunfo é ―o vigor de seus sentimentos, aquilo que paradoxalmente o deixa vulnerável: o amor, o sentido de lealdade, a superação pessoal, a honestidade, a inclinação pelos mais fracos‖ (p.135).
Um dos pontos instigantes que o leitor pode encontrar no livro é a avaliação sobre o lugar dos super-heróis na pós-modernidade, ou, mais especificamente, como sua autoimagem foi modificada após os atentados terroristas de 11 de Setembro. A morte do Capitão América no governo Bush, a união de vilões e heróis para ajudar a socorrer as vítimas do 11 de Setembro, o surgimento de super-heróis homossexuais, o avanço das grandes sagas metanarrativas em temos pós-modernos etc. Diversos artigos lidam com este problema. Por exemplo Nildo Viana fala do grupo The Authorith da Image Comics que combatem super vilões, alienígenas poderosos, ditadores, governos e até Deus (por eles destruído em um combate) (p.50). Para Tardeli existe no novo discurso identitário dos super-heróis atuais uma perspectiva mais fechada, com disposição ―a conseguir seu objetivo a todo custo‖. No entanto isto não indica de modo explícito desrespeito a lei, porém aponta para uma postura menos democrática (p.139). Seria esta postura menos democrática uma marca do acirramento dos nacionalismos num horizonte de crise econômica global? Em verdade, melhor deixar o convite para que o leitor explore as respostas e interrogações que o livro potencializa e que também produza novos trabalhos sobre o que estes seres superpoderosos nos ensinam/instigam/ocultam. O livro Super-Heróis, Cultura e Sociedade merece ser lido e debatido, afinal, um dos problemas de nossa cultura acadêmica é a cordial ―desconversação‖ acerca dos
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trabalhos de nossos pares, onde toda crítica é tomada como um ataque pessoal.1 Em verdade, cabe ressaltar a condição de novidade editorial deste livro. Em 2000 a editora Open Court fez uma aposta ousada: lançou uma série de livros com a proposta de pensar filosoficamente a cultura popular, partido de seriados, filmes, quadrinhos, bandas de rock etc. O sucesso foi imediato, como grande vendagem e tradução de alguns títulos para vários idiomas (como Simpsons e a Filosofia, Matrix e a Filosofia, U2 e a Filosofia, Beatles e a Filosofia, dentre outros publicados pela editora Madras no Brasil). Atualmente a série Popular Culture and Philosohy tem mais de sessenta títulos, além da previsão continua de lançamentos e submissão para novos projetos. O exito inspirou séries similares (como a The Blackwell Philosophy and Pop Culture Series), assim como a procura por novos e inusitados hibridismos entre academia e cultura popular. No Brasil as editoras se contentam em traduzir títulos das séries norteamericanas sem correr o risco de desenvolver projetos locais que pensem a cultura brasileira. Os livros Drummond e a Filosofia (EDUNISC) de 2007 e Caetano e a Filosofia (EDUNISC/UFBA) de 2011, organizados por Sérgio Schaeffer e Ronie A. T. da Silveira são importantes exceções, que surgiram em editoras universitárias. O livro Super-heróis, cultura e sociedade, publicado e Ideias & Letras, traz a novidade de ser uma aposta de uma editora comercial. Seria a abertura para o desenvolvimento de mais propostas similares? Os estaríamos condenados a esperar que iniciativas heroicas quebrem a crosta de convenção que inviabiliza em nossa sociedade o desenvolvimento de uma cultura reflexiva? Deveríamos nos acomodar aos horizontes acadêmicos de irrelevância comparada? A resposta para essas questões não pode ser dada por um super-herói, por isso mesmo é importante desenvolver uma atitude melhorista, que destaque a inovação, compreenda os defeitos e riscos inerentes a este tipo de aposta, trabalhando para que possamos juntos nos aprimorar.
Referencial bibliográfico MARGUTTI, Paulo. ―O filósofo cordial como educador e autor‖ Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/fibra/arq/margutti_cordial.pdf. Consultado em 16/12/2011. RIEF, Philip. Freud: Pensamento & Humanismo. Trad. Silvana Borim Mirachi. Belo Horizonte, MG: Intelivros, 1989. TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. Trad. Talyta Carvalho. São Paulo: É Realizações, 2011. 1
C.f. MARGUTTi, Paulo. ―O filósofo cordial como educador e autor‖ Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/fibra/arq/margutti_cordial.pdf. Consultado em 16/12/2011. 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 2, 2011
Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano III, número 2, 2011 ISSN: 1984-7157
Editor convidado: Fabio Mourilhe Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. E Susana de Castro
www.gtdepragmatismo.com
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