Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 3, 2012 ISSN: 1984-7157
1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: Filósofo em Meditação de Rembrandt van Rijn (1606, Leiden – 1669, Amsterdam)
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 3, 2012
Sumário Editorial
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Notas & Comentários A noção de espaço e lugar em The Farming of Bones - Lola Aronovich Aguero e Michel Emmanuel Félix François 7
Artigos 1. O tempo medido e o tempo percebido: um antigo contraste re-descrito por filósofos e poetas – Pedro Proscurcin Junior 22 2. Uma análise formal sobre os paradoxos da análise –Luiz Fernando Munaretti Rosa 36 3. Características da democracia liberal: breves comentarios – Leonardo Diniz do Couto 58 4. A crítica de Richard Rorty à teoria do conhecimento e uma possibilidade de redescrição –Maria José Pereira 71
Tradução Arte e Religião – Richard Shusterman (trad. Inês Lacerda Araújo)
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Resenha VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 256 p. Por Sérgio Oliveira 105 DANTO, Arthur C. El Abuso de la Belleza – la estética y el concepto del arte. Trad. Carles Roche. Buenos Aires: Paidós, 2005. Por Susana de Castro
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Editorial
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Editorial
Abrimos esta edição, seção Notas&Comentários, destinada a autores convidados pelos editores, com o artigo inédito de dois professores do departamento de língua inglesa Universidade do Ceára , sobre a noção de lugar e espaço no romance The Farming of Bones, de Edwidge Danticat. O livro aborda o modo como os imigrantes haitianos foram tratados pelo governo Trujillo, na República Dominicana. Em seguida, na seção de artigos, apresentamos quatro artigos que abordam temas diversos como o significado do tempo na poesia e na filosofia de Heidegger e Sto. Agostinho (primeiro artigo), análise de duas formas de paradoxo da análise e a rejeição de uma solução recente oferecida a este problema por Felicia Ackerman (segundo artigo), o projeto de democracia liberal de John Rawls e seus críticos (terceiro artigo), e finalmente, a critica rortyana à teoria do conhecimento. Na seção de tradução publicamos o ensaio “Arte e Religião”, que nos foi gentilmente cedido por seu autor, Richard Shustermann, para a tradução e publicação (publicado anteriormente no Journal of Education). Finalmente, o leitor encontra nesta edição duas resenhas, uma sobre o livro de Paul Veyne, Foucault, e outro sobre o livro de Arthur C. Danto, El Abuso de La Belleza. É com muita satisfação que comunicamos aos nossos leitores que a revista Redescrições finalmente está qualificada no portal Qualis de periódicos da Capes. Quem consultar a lista verificará que fomos qualificados como B2 para a área de ciências políticas e relações internacionais e B4 para a área de filosofia. Gostaríamos de agradecer a toda equipe de pareceristas e colaboradores da revista pela confiança que depositaram no nosso trabalho.
Desejamos a todos uma ótima leitura!
Os editores.
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Notas & Comentários
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A NOÇÃO DE ESPAÇO E LUGAR EM THE FARMING OF BONES Lola Aronovich Aguero Michel Emmanuel Félix François Universidade Federal do Ceará Resumo: A noção de lugar e espaço é um tema constante no pós-modernismo, pois está ligado à ideia da falta de raízes. Pode-se dizer que, ao mudarmos para uma casa vazia, nos deparamos com um espaço. Porém, ao mobiliá-la com nossos pertences, ela se transforma num lar, num lugar. Segundo David Harvey, um lugar oferece segurança, e o espaço de um lar é distribuído para conter e reproduzir relações de gênero e de idade. Isso pode ser observado em The Farming of Bones, romance de 1998 de Edwidge Danticat, em que ela relata um importante acontecimento na história de duas nações, a República Dominicana e o Haiti. No massacre de 1937, o general Trujillo ordenou a matança de cortadores de cana haitianos que viviam na República Dominicana. No início do romance, antes do massacre, os personagens de The Farming of Bones dividem um espaço, sem que todos cheguem a torná-lo um lugar. Amabelle, a empregada haitiana e protagonista do livro, faz de seu amante, Sebastien, seu porto seguro. Quando ele desaparece, ela passa a procurá-lo, e sua busca representa uma tentativa de encontrar um lar. Em sua busca, ela narra o esforço de uma nação em esquecer um passado sangrento. Esquecer a História deixa um espaço, que deve ser ocupado por um lugar — a memória. O presente artigo analisa esses conceitos de espaço e lugar e os relaciona ao romance de Danticat que, por sua vez, está relacionado à História e à identidade cultural de dois povos. Abstract: The notion of place and space is a frequent theme in postmodernism, since it is connected to the idea of lack of roots. We can say that, when moving to an empty house, we encounter space. However, when we include our belongings, it becomes a home, a place. According to David Harvey, a place offers security, and the space of a home is distributed so it can contain and reproduce gender and age relations. This can be observed in The Farming of Bones, Edwidge Danticat's 1998 novel, in which she writes about an important happening in the history of two nations, the Dominican Republic and Haiti. In the massacre of 1937, General Trujillo ordered the killing of Haitian sugarcane workers who lived in the Dominican Republic. In the beginning of the novel, before the massacre, the characters in The Farming of Bones divide a space, but not all of them are able of making it a place. Amabelle, the Haitian maid and protagonist of the novel, sees her lover, Sebastien, as her safe harbor. When he disappears, she desperately looks after him, and her search represents an attempt to find a home. During her search, she narrates a nation's effort in forgetting a heinous past. Forgetting history leaves a space, which must be filled in by a place – memory. The present article analyzes these notions of space and place and relates them to Danticat's novel, which is in itself related to history and to the cultural identity of two peoples.
David Harvey, em The Condition of Postmodernity, Fredric Jameson, no seu famoso ensaio “Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism,” e Benedict Anderson, no seu igualmente notório Imagined Communities, têm escrito sobre a sensação predominante de não ter raízes, provocada pelo pós-modernismo. Em sua distinção entre espaço e lugar, pode-se dizer que, ao nos mudarmos para uma casa, 7 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
temos um espaço vazio. Quando a decoramos com nossos pertences, ela torna-se um lugar. Para Linda Alcoff, a questão é por que devemos estar presos a nossa locação. Embora por locação ela se refira à identidade sociocultural, este conceito também pode estar ligado à dicotomia entre espaço e lugar. A própria cultura pode ser vista como o lugar onde nos encontramos, ou o espaço em que nos perdemos. O romance The Farming of Bones, escrito em 1999 por Edwidge Danticat e ainda sem tradução para o português, é um cenário propício para tratar das questões acima. Ele apresenta a experiência do desenraizamento do povo haitiano, que, diante da situação econômica, busca trabalho na República Dominicana. A protagonista, Amabelle, que é também a narradora, procura uma integração no espaço em que vive. O contexto espacial mostrado no romance é um elemento constitutivo do ato do discurso individual. Os dois povos que habitam a ilha se expressam de forma diferente. A parte ocidental da ilha, o Haiti, foi palco de várias guerras ensanguentadas entre diversas potências. Ingleses, espanhóis, franceses e americanos fizeram sua presença sentir-se em vários momentos. Logo após a descoberta da ilha por Cristóvão Colombo, os espanhóis dizimaram os indigenistas que nela viviam. Os primeiros colonizadores, na sua ânsia de explorar as riquezas naturais da ilha, usaram de astúcia para enganar e subjugar os nativos. Vieram os ingleses, depois os franceses, que colonizaram o Haiti durante muitos anos até a independência do país, em 1804 – o primeiro país latinoamericano a declarar-se independente. A complexidade da formação do povo haitiano tem consequências marcantes na história do país. Os índios nativos, por suas características inerentes de um povo livre com uma estrutura social predominantemente não individualista, foram logo substituídos por africanos mais resistentes ao ritmo de trabalho desumano imposto pelos colonizadores. Como o próprio romance menciona, os pais da nação – Toussaint Louverture, Cristophe e Jean-Jacques Dessalines – se organizaram para libertar os escravos do julgo dos colonizadores franceses. Derrotaram de forma heróica um dos mais potentes exércitos da época, o exército de Napoleão Bonaparte. O Haiti tornou-se o primeiro país negro independente do mundo. No entanto, os EUA, escravagistas, e as grandes potências que colonizaram as Américas, não reconheceram a independência do Haiti, com medo de que a revolução se espalhasse para outras colônias do continente americano. De fato, historiadores relatam a participação de combatentes haitianos na guerra de independência dos Estados 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Unidos, junto com os franceses. Também se relata que soldados haitianos lutaram ao lado de Simão Bolívar no movimento revolucionário da América do Sul. Diante dessa nova ameaça, as potências da época optaram pelo bloqueio marítimo da ilha, estrangulando a economia da jovem nação, abandonada ao isolamento, com consequências devastadoras que ainda se fazem sentir nos dias atuais, contribuindo com a instabilidade econômica e política do país – o mais pobre do hemisfério norte. Outro
fator
que
colaborou,
embora
não
intencionalmente,
para
o
empobrecimento do país foi o próprio ardor revolucionário dos pais da nação. Na guerra para a independência foi usada a tática de guerrilha, que para combater o exército inimigo tomava de assalto as grandes propriedades e as reduzia a chamas e cinzas. Desta forma, nada restou do solo fértil que, em grande parte, era ocupado por plantações de cana de açúcar, moeda importante para a economia dos colonizadores. Logicamente, os haitianos herdaram um país devastado e improdutivo. Erroneamente, a brutalidade da guerra não poupou a vida dos colonos que, mesmo vencidos e rendidos, foram mortos e perseguidos (outros se salvaran fugindo para ilhas vizinhas). Esta atitude vingativa dos novos donos da terra, mesmo admitindo-se a cegueira e a dor provocadas pelos maus tratos que lhes foram infligidos quando escravos, teve uma carga onerosa na formação do país. A elite branca francesa detinha o conhecimento e os meios de produção, além das grandes riquezas extraídas do país. No início da formação do Haiti, a população era composta por uma maioria negra descendente de escravos, de mulatos provenientes das relações interraciais entre colonos brancos e negros, de uma minoria branca inexpressiva financeiramente que conseguiu permanecer na ilha, e de poucos índios nativos que viviam isoladamente nas montanhas. Dessa nova formação social nasceu uma língua, o crioulo, cujas características determinantes são as fortes influências do idioma francês e dialetos africanos. Porém, os haitianos adotaram o francês como língua oficial das instituições, do clero e da educação, enquanto o crioulo era mais usado em ambientes informais do cotidiano. Desta forma, o domínio do francês facilitava o acesso às forças de produção e ao desenvolvimento econômico, enquanto que a maioria negra analfabeta que somente podia se expressar em crioulo ficava à margem da sociedade. A situação econômica do Haiti, agravada pela dívida que os bancos franceses cobraram do país independente como reparação por danos aos proprietários de escravos, levou os filhos da jovem nação a migrar para outras terras em busca de novas oportunidades de trabalho. Podemos considerar dois tipos de migração: a permanente e 9 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
a temporária. Em ambos os casos, o indivíduo buscava sua sobrevivência em uma nova realidade — um novo espaço para ser transformado em lugar —, diferente do meio a qual pertencia. A ânsia de obter recursos que garantiriam sua sobrevivência em uma terra estrangeira ao mesmo tempo enchia o indivíduo de esperanças e incertezas. Porém, logo depois da sua chegada ao seu destino, o individuo se deparava com a questão enigmática da identidade. Até que ponto iria integrar-se e pertencer a essa nova comunidade, cujas características inerentes eram tão diferentes das suas? Em The Farming of Bones, os trabalhadores haitianos ocuparam temporariamente um espaço no país vizinho, mas nunca acharam lá o seu lar. Em 1929, com o apoio americano, uma fronteira permanente foi estabelecida entre o Haiti e a República Dominicana. De repente os haitianos vivendo no lado oriental, a República Dominicana, passaram a ser considerados estrangeiros, e continuaram falando crioulo. Os dominicanos, detentores de um território maior e mais fértil, herdaram fortes características dos colonizadores espanhóis que ficaram na ilha mesmo após sua independência. O povo dominicano é constituído das mesmas misturas ancestrais dos haitianos, porém em proporções diferentes, havendo uma incidência maior de indivíduos de pele clara. Por conta das suas próprias dinâmicas sociais, a língua falada na República Dominicana é o espanhol, bem diferente do bilinguismo do Haiti. The Farming of Bones trata de um fato histórico marcante na história desses dois países: o massacre ocorrido em 1937, que recebeu o nome de “El Corte”. Nesta ocasião, mais de 15,000 haitianos (alguns historiadores falam no dobro de vítimas) vivendo na República Dominicana foram assassinados por soldados do Rafael Trujillo — presidente colocado no poder da República Dominicana pelos americanos, depois que estes invadiram a ilha em 1916. Para identificar quem deveria ser morto, os soldados e civis que participaram do massacre pediam a pessoa que pronunciasse a palavra perejil (salsa), um som difícil para falantes não-nativos do espanhol. No romance, Amabelle e Yves, amigo de Sebastien, amante da protagonista, conseguem sobreviver a um ataque e chegarem até o Haiti, mas Sebastien e sua irmã são mortos. O romance, que mescla uma linguagem mais poética e intimista ao narrar os sentimentos de Amabelle por Sebastien, e uma linguagem mais objetiva ao narrar os acontecimentos históricos, aborda a questão da construção da identidade. Amabelle se perde num emaranhado complicado e inextricável de identidade social e nacional, numa 10 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
sociedade pós-colonial cheia de distorções sociais. A obra de ficção histórica abre uma ampla janela sobre o massacre de trabalhadores haitianos, os então conhecidos braceiros – cortadores de cana de açúcar – que migram sazonalmente para o país vizinho na esperança de ganhar seu sustento e voltar para seu país de origem com algum dinheiro. Já desfavorecidos no seu próprio país, os trabalhadores haitianos vivem à margem numa sociedade complexa e elitizada, onde a maioria negra alienada representa uma paupérrima condição econômica. Grande parte desses só consegue se exprimir em crioulo, outro importante indicador da formação social do país. Os dois países, que formam uma só ilha, são divididos por uma linha imaginária que separa os dois mundos. Por falta de oportunidade de trabalho em sua terra natal que lhes garanta sustento econômico, os haitianos migram para a República Dominica tendo que atravessar o rio – fronteira natural que separa os dois países –, deixando para trás a desolação econômica e sonhando com a sobrevivência do outro lado do rio. Um dos personagens secundários do livro, Padre Romain, de volta para o Haiti depois da tortura e lavagem cerebral que sofreu durante a matança, repete o discurso do vencedor (no caso, os responsáveis dominicanos pelo massacre): Nesta ilha, qualquer distância que você percorre em qualquer direção, as pessoas falam uma língua diferente. Nossa pátria-mãe é a Espanha; eles vêm do mais escuro continente africano, entende? Vieram para cá para cortar cana, mas agora há mais deles do que jamais haverá cana suficiente para eles cortarem, entende? Nosso problema é o domínio. Diga-me se alguém gostaria que sua casa se inchasse de visitantes, ao ponto deles tomarem o lugar dos seus próprios filhos? Como um país pode ser nosso se nós somos a minoria entre os invasores? Aqueles que entre nós amam o país estão tomando medidas cabíveis para continuar sendo os donos do país. (260; nossa tradução)
No seu artigo “The Site of Memory”, Toni Morrison menciona que um rio se recorda do lugar que ocupava antes de ser reduzido, ou canalizado. O rio é um símbolo extremamente importante em The Farming of Bones, já que ele representa a divisão literal entre dois países, como também algo que separa os pais da protagonista, Amabelle, de chegar a sua casa. É nas margens deste rio que Amabelle, quando criança, chora a morte de seus pais. Ao ser encontrada pelos dominicanos ricos Papi e sua filha Valencia, e ter que responder à pergunta “A quem você pertence?”, Amabelle aponta para o peito e diz “Eu mesma”. O rio, além de marcar o leito de morte de seus pais e, possivelmente, da própria Amabelle, e também de Odette, que salva-lhe a vida durante o massacre, é tanto um lugar que inspira poder e medo, como também algo que limpa, que leva vestígios e memórias. Amabelle inveja sua patroa, Valencia, por poder colocar as mãos no caixão de seu filho. “Meus pais não tiveram caixões,” pensa ela (93).
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Amabelle tem um determinado tipo de identidade que predomina, de acordo com o contexto em que se encontra. Pode apresentar a identidade básica de um estrangeiro vivendo em solo dominicano, alguém trabalhando em outro país, ou a identidade do gênero feminino. Percy Hintzen entende que o indivíduo é produzido historicamente, e no processo dessa produção e reprodução histórica, tem várias identidades diretamente ligadas com a estrutura da organização ou produção social. Em circunstâncias variadas, o individuo pode deixar aflorar certo tipo de identidade. Os mecanismos ativados pelas representações de identidades são determinados pelo conjunto de estruturas ou padrões sociais impostos sobre o indivíduo. Em relação a essa identidade, duas questões são levantadas com a presença e condição dos trabalhadores haitianos em solo dominicano. A primeira diz respeito à questão da diáspora haitiana na República Dominicana e à manutenção da identidade nacional. Existe a ideia do passado imaginário do povo haitiano, ideia esta que é constantemente produzida e reproduzida ao longo do tempo. A história do país é taxada pela mácula da escravidão. Ocorreu o pérfido desenraizamento dos ancestrais africanos transportados em condições desumanas nos navios negreiros para labutar em um mundo novo, totalmente desconhecido. Neste caso, o passado imaginário do povo haitiano, bem como dos outros povos que habitam a terra, cria concepções de cada indivíduo de si mesmo e de como percebe os outros. Considerando a presença temporária dos imigrantes haitianos no país vizinho, a questão de identidade pressupõe a relevância de aspectos históricos, bem como do contexto espaço-temporal em que se deu. A outra questão é o dualismo existente na auto-identificação do indivíduo. Somos realmente do jeito que nos enxergamos, ou apenas aquilo que os outros dizem que somos? A condição dos trabalhadores haitianos retratada no romance de Dandicat traz à tona a questão de identidade ofuscada. A busca por um lugar é algo literal, que se aproxima da ideia de nação de Anderson como uma comunidade imaginada. Papi, que se vê como espanhol e exilado, apesar de viver há décadas no Caribe, tem mais sorte que os haitianos da República Dominicana, que são expulsos e mortos do lugar onde trabalham e vivem. Sebastien tenta explicar o destino de seu povo para Amabelle: “Às vezes as pessoas nos campos, quando estão cansadas e zangadas, dizem que somos um povo órfão. Dizem que somos o resto queimado na base do pote. Dizem que algumas pessoas não pertencem a lugar nenhum, e esses somos nós. Eu digo que somos um grupo de vwayajè, caminhantes. É por isso que você teve que viajar até aqui para me 12 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
encontrar, porque é isso o que somos” (56). O discurso de Sebastien aparenta ser uma justificativa para sua falta de raízes, mas a questão é que eles não são viajantes porque querem, mas por serem perseguidos e não terem o seu lugar. Ele nunca retorna a sua terra natal, o Haiti, mas Amabelle volta, e mesmo assim lá não encontra um lugar para ela. A essa auto-concepção negativa do povo haitiano soma-se a percepção que os dominicanos têm deles. Amabelle diz que para eles os haitianos são sempre os estrangeiros. Ela também é haitiana órfã, na verdadeira acepção da palavra. Perdeu seus pais ainda criança quando cruzavam o rio, que separa os dois países. Viu o rio levar o que ela tinha de mais precioso na sua infância. Criada por (e de) uma família dominicana, viveu toda a sua juventude na República Dominicana, onde trabalhou como doméstica. Sendo imigrante haitiana em solo dominicano, de certa forma testemunha os mesmos parâmetros imbuídos nas relações de poder entre os donos da terra e os trabalhadores da terra, entre quem detém o poder e quem se curva diante do poder, ou mais literalmente, entre dominicanos e haitianos. Em vários trechos do livro, essa relação de força desigual é retratada por Amabelle. Logo no início, a protagonista do romance de Dandicat mostra o destrato sofrido pelos haitianos, resumido na descrição que Amabelle faz de seu amante, Sebastien: Embora os talos da cana de açúcar tenham rasgado a pele brilhosa do seu magro rosto negro, deixando marcas entrecruzadas de cicatrizes profundas, sua beleza resplendia exageradamente na luz da minha lamparina. Seus braços são tão grandes quanto minhas coxas desnudas. São feitos de aço, endurecidos por quatros anos de colheita de cana de açúcar. [...] As linhas da vida haviam se apagado na palma da sua mão por conta dos machados com que cortavam a cana. (1)
As diferenças do tratamento social dado aos dois povos são evidentes na fala de Amabelle. Sendo criada na mesma casa com a Senhora Valencia, eram bem próximas na infância. Na medida em que foram crescendo, as diferenças foram distanciando-as em todos os quesitos da relação social, desde a convivência na casa, no tratamento de respeito por Valencia, que havia se tornado uma dama, até às relações de trabalho. Amabelle narra: “Pensei na Senhora Valencia, que eu conhecia desde ela tinha onze anos de idade. Eu tinha que chamá-la de Senhorita conforme foi ficando adulta. Quando se casou no ano anterior, a chamei de Senhora. Ela, por outro lado, sempre me chamou de Amabelle” (63). No trabalho de parto de Valencia, auxiliada por Amabelle, ocorre uma breve reaproximação. Diz Amabelle: ”Sentamos por algum instante com seus dedos agarrados com os meus, como quando éramos crianças, éramos garotas e dormíamos no mesmo quarto. Embora tivesse que dormir na sua própria cama e eu 13 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
numa cama de lona na sua frente, ela me convidava para sua cama depois que o pai fosse dormir e pulávamos sobre o colchão, brincavávamos de sombras pretendendo que éramos quatro garotas felizes” (6) Mesmo sendo da mesma idade, Amabelle tinha a responsabilidade de cuidar da Valencia, cenário que se repete agora que a patroa dá à luz: “Tinha que acalmá-la, ajudá-la, como sempre esperava que eu fizesse e como sempre o pai esperava que eu fizesse” (6). Amabelle entende, e não refuta, a sua posição subalterna: “trabalhando para os outros, você sempre deve estar de sobreguarda. Você deve saber se fazer presente e invisível ao mesmo tempo, estar por perto quando precisam de você, longe quando sua presença é desnecessária, porém perto o suficiente caso mudem de ideia” (35). Essa justificativa da subserviência também se manifesta na explicação de Tibon para o ódio dos dominicanos por eles, haitianos: “O homem pobre, não importa quem ele seja, é sempre desprezado pelos seus vizinhos. Quando você fica tempo demais na casa de um vizinho, é natural que ele se canse de você e passe a te odiar” (178). Tibon, que foge no mesmo grupo que Amabelle, mas não sobrevive a um novo ataque, vê com naturalidade o ódio que resultará em sua morte. Ele, como haitiano, se vê como alguém que abusou da “hospitalidade” dos vizinhos e, por isso, deve ser hostilizado. Uma posição de subserviência, decerto. Além da relação de trabalho desigual, há um clima de desconfiança entre os dois povos. Quando Juana, a outra haitiana que substitui a protagonista no trabalho doméstico é solicitada, mantendo-se as relações de disparidade social, ela vem correndo. Seus olhos vagam pela sala, na tentativa de evitar o olhar fixo de Valencia. Os olhos da patroa a inspecionam regularmente quando adentra a sala, como se a patroa sempre esperasse pegá-la com algo furtado na mão. A empregada espera pacientemente pelas ordens da patroa, diante da coluna no centro da sala. Logo é esquecida lá em pé na mesma posição. A desconfiança, embora fruto do preconceito, não nasce por acaso. A República Dominicana tinha sido ocupada duas vezes no século 19 pelos haitianos. A mágoa da invasão esteve sempre presente na memória nacional. A presença de milhares de haitianos no solo dominicano era vista como uma ameaça à soberania nacional, e o próprio presidente Trujillo, ironicamente com ascendência haitiana da parte da sua avó, ordenou o massacre. O ditador dominicano teve como propósito depurar o sangue hispânico das impurezas dos seus vizinhos haitianos, em prol da discriminação onde só 14 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
importava imprimir o clareamento da pele. O ditador buscou criar uma identidade nacional que visava purificar a raça e excluir os haitianos da terra. Adotou o falso pretexto da ameaça da presença haitiana, mão de obra importante nas plantações de cana de açúcar na República Dominicana, à soberania do país. Diante da perplexidade da formação social dos dois países, é difícil entender o posicionamento da protagonista do romance, Amabelle. Sua identidade oscila entre a luz, referente à memória dos seus pais que morreram durante sua pré-puberdade, e as trevas, representadas pela ligação alienada tanto com a República Dominicana quanto com o Haiti. Amabelle nunca conseguiu constituir um lar em lugar algum. Reside nas memórias dos pais e na esperança que lhe resta nos braços do amado Sebastien. Entre um mundo e outro, seu lar se perde na fronteira, no rio onde se afogaram seus pais. Mesmo tendo sobrevivido ao afogamento, nunca deixou de fazer parte daquele lugar. Sua identidade permeia cada grão de areia do rio, cada pedra cuja translucidez se apaga ao afastar-se do rio. Receia se perder, ficar incógnita no espaço que ocupa, porém que não considera seu lar. Sem o seu porto seguro, Amabelle não consegue se situar nem no tempo, nem no espaço. Retornando à questão do dualismo na identificação do indivíduo, fica evidente que a identidade dos haitianos foi também suprimida pelos dominicanos. Muitos descendentes haitianos, mais abastados, nascidos em solo dominicano, não obtiveram a cidadania dominicana. Estiveram presentes por várias gerações e ostentavam posses diversas. Outros tinham desposado mulheres dominicanas. Formaram uma geração perdida entre as fronteiras das duas nações, mesmo quando nunca puseram seus pés em solo haitiano. Foram considerados estrangeiros cuja identificação bilíngue ainda se fazia sentir com os resquícios das duas línguas mãe, que permaneciam devido aos agrupamentos comunitários que haviam formado. Entre eles se estabeleceu outro elo de ligação, a de serem haitianos ou descendentes de haitianos que vivem na República Dominicana, que não pertenciam nem ao país que haviam deixado, nem ao novo espaço que ocupavam. Estabeleciam-se relações de interdependência baseadas na presença de indivíduos de origem comum, com características culturais, sociais e linguísticas idênticas. Amabelle relata os momentos que compartilhava com esses indivíduos, quando contavam e recontavam suas vidas, desde a casa onde tinham nascido até os montes onde queriam ser enterrados. Era a maneira que dispunham para transpor as barreiras físicas e temporais, e retornar para o lar que tinham deixado no outro lado da ilha. Através da aproximação 15 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
com o outro, o indivíduo procurava testemunhar sua presença naquela parte da ilha e esperava que o outro, se retornasse ao lugar comum de origem, pudesse levar suas memórias para aqueles que haviam sido deixados para trás. Essas memórias eram igualmente exaltadas nas pregações do Padre Romain, que, antes da tortura que o transforma, reconfortava seus compatriotas com seus sermões, relembrando-os dos laços comuns de língua, alimentos, história, música e festividade que compartilhavam. O padre pregava que através da memória do passado, embora dolorosa, os imigrantes haitianos iriam se fortalecer e sobreviver. Como narra Amabelle, “Padre Romain sempre dava importância por sermos do mesmo lugar. [...] Era uma maneira de se juntar a sua vida antiga através da presença de outra pessoa” (73). Com Amabelle, Valencia parece ter uma vivência mais íntima que com a outra criada, Juana, provavelmente por crescerem juntas. Mas isso não poupa Amabelle de ouvir de sua patroa, preocupada com a filha-bebê, que nasceu menos clara: “E se ela for confundida com alguém da sua gente?” (12). A alegoria dos gêmeos, os bebês de Valencia, é impactante no começo do romance. O bebê que nasce primeiro, mais forte, mais branco, e homem, recebe toda a atenção do pai, tanto que será batizado com o nome do ditador da República Dominicana, Rafael. Já Rosalinda nasce com o cordão umbilical apertando-lhe o pescoço, como se o mais forte tentasse estrangular o mais fraco (e mais negro). Valencia, que ama seus dois bebês, os apelida de “Meu príncipe espanhol e minha princesa índia” (29), numa tentativa de localizar as crianças no espaço, ao mesmo tempo em que associa o herdeiro desejável ao colonizador dominicano, a Espanha, e a menina fraca e escura aos nativos, os índios. No entanto, quem acaba se revelando mais forte e sobrevivendo é Rosalinda. Para a surpresa de todos, seu irmão morre. E Amabelle aponta que a sombra do bebê morto “sem dúvida seguiria sua irmã por toda a sua vida” (119). Por mais que Rafael esteja morto, ele vai perseguir — ou amaldiçoar — a vida da irmã. Apesar das diferenças, eles são gêmeos, vieram do mesmo ventre, como se fossem uma ilha separada por um rio para formar uma fronteira arbitrária entre duas nações. A alegoria torna-se ainda mais marcante quando Amabelle explica por que não deu ouvidos aos boatos dos assassinatos de Trujillo: “Era um assunto entre nossos dois países, entre dois povos diferentes tentando compartilhar um pequeno pedaço de terra” (147). O ventre de Valencia pode ser visto como esse pequeno pedaço de terra, uma área de conflito entre dois irmãos. O nascimento de bebês representa sair de um lar (o útero materno, onde estão 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
relativamente seguros) para tentar ocupar um espaço. “Bebês se lembravam do seu nascimento com seus corpos e tinham que repetir aquilo muitas vezes antes que pudessem se esquecer” (258). Mas, no caso, Rosalinda nunca esquecerá. Antes do massacre, Amabelle nutre sentimentos até carinhosos por seus patrões. Por exemplo, ela se identifica não com seu povo, mas com Papi, pai de Valencia: “Assim como eu, Papi havia sido deslocado de sua terra natal; ele se sentia a criança órfã de um povo órfão. Talvez por isso ele geralmente parecia ser mais bem disposto aos estrangeiros para os quais este lado da ilha não fora sempre um lar” (78). Mas Amabelle se esquece que, apesar de Papi ser um estrangeiro, ele vem do país rico e colonizador, não do país explorado. Sebastien tenta conscientizar Amabelle de que ela não é, nem nunca será, uma dominicana: “Para eles nós seremos sempre estrangeiros, mesmo que as avós das nossas avós fossem nascidas neste país. Isso torna mais fácil pra eles que nos empurrem quando quiserem” (69). Ademais, Amabelle tenta justificar sua subserviência: “Señor Pico tem rifles, e estamos em sua propriedade”. Ao que Sebastien, muito mais consciente de sua condição de estrangeiro, e de empregado, responde: “O ar que respiramos é sua propriedade?” (53). Pode ser que falte a Amabelle essa consciência política porque, afinal, ela vive cercada por sombras e memórias, com relações com outras pessoas baseadas em um mundo irreal. Antes de Sebastien, tudo a que aspirava se diluía na lembrança da sua infância, num mundo habitado por fantasmas e imagens inertes, com poucas lembranças que ainda tinha do país que havia deixado, do lugar que morara e das pessoas com que convivia e que nunca mais reencontraria. É Sebastien quem lhe serve de ponte para o mundo real; seus braços lhe dão segurança. Quando se ausenta, nada é capaz de resgatála dos seus fantasmas. Mais do que um companheiro, Sebastien era sua posse legítima, a única que tinha herdado de alguém. Quando ele morre no massacre, ela fica verdadeiramente órfã. Essa dicotomia entre os dois países e os dois gêmeos se repete na personalidade de Amabelle. Apesar de se idenficar um pouco mais com seus patrões que com seu povo, a protagonista, no fundo, não finca raízes em lugar algum, e nem parece estar preocupada com isso. Seu norte é Sebastien, como ela resume numa frase, logo no início do romance: “Tenho medo de deixar de existir quando ele não está aqui” (2). Ela se vê como um espírito imaterial: “Talvez porque meus pais morreram jovens, eu nunca me imaginei mais velha do que eu era, muito menos vivendo o bastante para ter meus próprios filhos. Antes de Sebastien, todos os meus sonhos haviam sido do passado: do 17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
país antigo, de lugares e pessoas que eu nunca veria de novo” (32). Depois do massacre, quando perde Sebastien e sua esperança de felicidade, Amabelle ainda vive por pelo menos mais 24 anos (o final é ambíguo sobre o destino da protagonista), ao lado de Yves, que trabalhara na mesma fazenda que Sebastien na República Dominicana. Yves lhe diz que voltará à terra dele, e a convida. Ela tenta dizer “que sim, eu iria com ele. Eu iria com ele aonde fosse seu lar, e tentaria esquecer tudo que aconteceu na jornada, e aguardaria que Mimi e Sebastien retornassem” (215). Mesmo sabendo que eles não retornarão, sua vida se resume a uma espera inútil. No final, Amabelle diz: “Eu não podia escapar de mim porque não tinha lugar para ir” (270). Seu lugar, seu porto seguro, é Sebastien, que não vive mais. Inclusive, morte é espaço. Céu e inferno podem ser lugares, mas a morte em si não é um lugar, por ser separada da vida, fora da vida. Como a protagonista nunca menciona a vida depois da morte, não sabemos se Sebastien encontrou um lugar, o paraíso. Ao mesmo tempo que Amabelle não existe sem Sebastien, a dicotomia está no fato que ela também chama a atenção para seu corpo, representado pela dor que sente. Corpo e alma, material e espírito, são como os gêmeos: habitam o mesmo espaço, mas há rivalidade entre eles. Amabelle diz: “Faz com que a gente entenda que a carne é como todo o resto. Não é diferente, a carne, de fruta ou algo que apodrece. Não é mágico, não é sagrado. [...] Não é nada. Nós somos nada” (213). Com tempo para refletir sobre o massacre, Amabelle decide: “Agora a minha carne é simplesmente um mapa de cicatrizes e machucados, um testamento manchado” (227). A analogia entre carne e mapa é interessante, pois um mapa supostamente pode levar a um lugar, ou, ao menos, a um espaço. Mas o mapa, neste caso, é o próprio corpo de Amabelle, e não há ninguém para segui-lo. Se Sebastien é o lugar de Amabelle, sua carne é seu espaço, um corpo que ela se recusa a ocupar. Mais adiante, ela aponta: “Durante muitos meses, enquanto eu imaginava a volta de Sebastien, eu pensava se minha carne sentiria qualquer coisa que não fosse dor” (250). Sua carne pode ser ocupada apenas por dor, dor que, por mais que seja consequência do espancamento de que foi vítima por parte dos civis dominicanos, é causada mais ainda pela ausência de Sebastien. Na carne de Amabelle habita mais que um espaço que jamais será preenchido — habita uma ausência. Essa ausência faz com que Amabelle recuse aquele que lhe oferece um lugar, que é Yves, amigo de Sebastien que sobrevive e foge com ela. Pragmático, Yves 18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
reconhece a importância da terra. Ele sente que o Haiti é a sua terra natal e, embora traumatizado por sua quase-morte, volta e trabalha para ocupar o seu lugar. Amabelle narra que “quanto mais ele produzia, mais terra ele comprava” (273). “Com o crescimento de sua fortuna, Yves acrescentou mais quatro quartos ao pátio, dois deles meus e somente meus” (269). Apesar dessa frase parecer possessiva, ela revela mais sobre Yves, para quem ter um lugar é essencial, que sobre Amabelle. Ela considera os dois quartos “somente seus”, mas isso é para que ela possa se refugiar de seus fantasmas. Quando morava no Haiti e se encontrava com Sebastien à noite, ela também tinha um quarto só para ela. Mas ela não considera que ocupar um espaço faça dele um lugar, e nem que ter um lugar traga liberdade. Essa visão é diferente daquela da irmã de Sebastien, Mimi, também morta durante o massacre. Ela crê que a família deve se responsabilizar por cuidar de seus parentes. Logo, cabe a ela, não a Amabelle, que não é vista como parte da família, cuidar de Sebastien. “Quando você e meu irmão montarem uma casa juntos, então talvez eu me liberte” (64), diz Mimi. Para ela, construir um lugar físico equivale a liberdade. Este sonho, e muitos outros, é interrompido pelo massacre. Ao voltar para o Haiti, Amabelle conhece Man Rapadou, a mãe de Sebastien e Mimi, que agora vive tendo pesadelos: “Eu sempre acordo antes de chegar à terra, mesmo que eu me veja chegando mais perto do chão a cada dia” (275). Por seus filhos estarem desaparecidos, ela nunca vai se libertar da obrigação de cuidar deles: “Gostaria de ter esperança que [meus filhos] estivessem morando em algum lugar, mesmo que eles nunca voltassem a me ver novamente” (242). Talvez para ter esta sensação de que está fechando um ciclo, Amabelle, no final do romance, decide visitar sua vila na República Dominicana, 24 anos depois de ter fugido de lá. Valencia sequer a reconhece no início, o que faz Amabelle pensar: “Que ela não me reconhecera me fez sentir como se eu tivesse voltado a Alegría e descoberto que o lugar nunca existiu” (294). De fato, para Amabelle, a República Dominicana nunca fora seu lugar. Mas tampouco o fora o Haiti. Ela reforça esse sentimento, sentindo-se “como se estivesse num lugar onde nunca tinha estado antes. Toda casa era uma fortaleza, toda pessoa uma intrusa” (289). Essas sensações — de ela estar num lugar onde nunca esteve e que sequer existiu, tanto ela (Valencia não a reconhece) quanto o lugar — são condizentes com sua personalidade e também com a realidade do seu país, o Haiti, incapaz de transformar seu espaço de terra num lugar, num país minimamente próspero. Amabelle se justifica: “Terra é algo com que você se importa 19 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
apenas quando tem herdeiros. Todos meus herdeiros seriam como meus ancestrais: aparições, sombras, fantasmas” (278). Desta forma, Amabelle povoa o Haiti com gerações e mais gerações de fantasmas, condenados a vagar para sempre num espaço que teima em não virar um lar.
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Artigos
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O TEMPO MEDIDO E O TEMPO PERCEBIDO: UM ANTIGO CONTRASTE RE-DESCRITO POR FILÓSOFOS E POETAS Pedro Proscurcin Junior
Resumo:O presente artigo investiga alguns aspectos da diferença primária entre o tempo registrado pelo relógio e o tempo perceptível. O paradigma do tempo medido perde sua importância, diante de constatações vivenciais de outro tempo, por exemplo, em lugares “distantes” das metrópoles. A diferença entre tempos, antes descrita por Agostinho, é lembrada por filósofos (Heidegger e Agamben) e especialmente constatada por alguns poetas latino-americanos (Borges, Neruda e Drummond). O tempo percebido, não necessariamente fixado em um momento presente, demonstra, por exemplo, ser mais próximo ao existir humano daqueles que ainda vivem distantes dos chamados grandes centros. Palavras-Chave: tempo medido; tempo percebido; fixação do tempo no presente Abstract: The present article investigates some aspects of the main difference between the registered time (clock’s time) and the perceptible time. The paradigm of registered time looses its importance considering the living verifications of another time, for instance in distant places far away from megacities. The difference between both times, described earlier by Augustine, is remembered by modern philosophers (Heidegger and Agamben) and specially identified by some Latin American poets (Borges, Neruda and Drummond). The perceptible time, not necessarily fixed on a present moment, demonstrates for instance to be closer to the human existence of those which still live away from the so called big centres. Keywords: measured time; perceptible time: fixation of time in the present “Em o mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos” (Heráclito, Frg. 49a)” “El mismo soy. No soy? Quién, en el cauce de las aguas que corren identifica el río? (Pablo Neruda, Oda al tiempo venidero en ‘Tercer Libro de las Odas’, 1957)” “El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. (Jorge Luis Borges, Nueva Refutación del Tiempo en ‘Otras Inquisiciones’, 1952)”
A questão do tempo medido encontra seu paradigma atual no “objeto” relógio. O relógio é o instrumento de medida do tempo e paradigma eurocêntrico. A questão da medida do tempo através dessa relação métrica é algo já tão acomodado e tão subentendido no cotidiano das grandes cidades, que apenas em dados contextos e situações ousa-se duvidar da “verdade” desse modelo.
Doutorando em Filosofia na Universidade de Bonn (Alemanha) e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Poder-se-ia questionar a precisão “objetiva” do tempo medido pelo relógio e se este tempo pode ser mais exato. No entanto, a exatidão da medida do tempo é apenas uma conseqüência derivada do agir que se impõe ao convívio da sociedade moderna. A métrica derivada do cálculo e do número, devido a sua previsibilidade e exatidão, colocou-se. O modelo europeu que se impôs ao mundo deduz-se da facilidade de se garantir a eficiência no agir cotidiano das interações humanas. O “valor de uso” do relógio é elevado, diante das imposições do convívio eficiente nas interações atuais entre seres humanos e\ou seres palpáveis e seres não palpáveis (criados pela interação humana), como empresas, entidades estatais ou mesmo Universidades. O uso do relógio impõe uma relação entre “sujeitos” e, como instrumento métrico, pressupõe sua compreensão como “objeto”. Ocorre que a medição efetuada pelo relógio e adotada como símbolo de modernidade e exposição de eficiência, é resultado de um pensamento que há muito se impôs. A história dos instrumentos de medida, ou melhor, percepção de tempo é anterior a filosofia e a imposição dos modelos ocidentais europeus sobre o mundo. Outras civilizações ou culturas percebiam o tempo através de seu movimento e, o que é mais interessante, com outros modelos de medição não necessariamente voltados para uma exatidão absoluta. Tais formas de percepção ou entendimento do tempo não advêm da precisão eficiente ou da necessidade de fragmentação exata do tempo. A fragmentação do tempo em exatidão numérica sustenta-se na possibilidade de fixar o instante, momento ou agora indicando o mesmo com um número desenhado na superfície do instrumento de medida. O fato de o movimento do relógio ser seqüencial já é uma indicação metafísica de tempo. O tempo moderno é compreendido como uma marcha progressiva. A percepção de tempo anterior a preocupação de metrificá-lo não se vincula ao agora fixado1. Na Grécia o tempo não fixado é exemplificado na Ilíada. Ali há precisão temporal, mas não exatidão. Para Homero os dias de batalha não demandam exatidão. Há dias mais longos ou mais curtos, mas não é possível dizer que 1
Pode-se verificar o tempo como fixação do movimento contínuo (instantes ou agoras fixos - “tò nyn”, em pontos geométricos - “stigmé” ou quantificado em número “arithmós”, por exemplo, em Platão (Timeu, 37d); Aristóteles (Física, IV, 10 218a33 e 11, 219b1); Plotino (Enéada, III.8-9); Descartes (Principia Philosophiae, I, 57). Na Física o tempo fixado seja como movimento em sucessão ou simultaneidade aparece p. ex., em Newton (The mathematical principles, I, Def. VIII) e Einstein (Über die spezielle und allgemeine Relativitätstheorie, §§ 8-9). A divisão do tempo em partes foi primeiro procedida entre os gregos por Anaximandro de Mileto. O instrumento que Anaximandro utilizou chamava-se “gnómon”, o fato é descrito por Diógenes Laércio (II, 1-2) e Heródoto (II, 109), que atribui sua origem na Babilônia. O importante é destacar que o tempo foi fixado em indicações de medida (em presente). 23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
não haja precisão na compreensão do tempo. Os gregos indicavam o tempo por nomes como Chrónos ou Aión.2 No início, a precisão para eles não derivaria da exatidão numérica. A precisão apresenta-se como tempo vivido. As cenas de luta apresentam-se como pano de fundo. A celeridade ou vagarosidade do tempo corrido é sentida e demonstrada pela relatividade das percepções. As afecções também afetam a compreensão do tempo vivido pelos personagens. Este não é o tempo numérico circular de Platão ou Aristóteles. Os gregos em seu início tinham a percepção do tempo semelhante à de outras civilizações, antecedentes a influência da compreensão hoje generalizada do agir metrificado em números no presente. O relógio, instrumento de medida sucessiva, não era então um critério absoluto da percepção do tempo. Tal percepção que pode se assemelhar a dos antigos pode ser ainda encontrada hoje em regiões distantes de nossa América Latina. Uma situação plausível é descrita pelo filósofo Martin Heidegger: Que caráter tem este andar do relógio? Com esta questão ficamos, por enquanto, no âmbito do nosso uso atual do relógio (relógio de pulso, de bolso). Um ponteiro se move e passa por certos números. Suponhamos que chegássemos com um relógio a um membro de uma tribo indígena numa floresta, que nunca viu um relógio, e lhe mostrássemos esta coisa. Pelo movimento, ele pensaria que esta coisa está viva. Para ele, a coisa não é um relógio, uma medida de tempo. Isto não significa, naturalmente, que a relação com o tempo lhe seja estranha. Provavelmente, ele vive uma relação mais originária com o tempo do que nós, europeus modernos, que lhe mostramos nossos estranhos produtos. Entretanto, para ele, não há questão do relógio. (HEIDEGGER, 2001, p. 66-67).3
A observação de Heidegger descreve uma ocorrência passível de se verificar ainda hoje na América Latina. A percepção do tempo, por exemplo, em tribos indígenas isoladas na Amazônia não se comunica com as necessidades de imposição de trocas ou interações de uso eficiente típicas de uma grande cidade. É claro que o grau de percepção do tempo de uma tribo indígena é outro. Aqui a diferença entre exatidão e precisão se impõe. Talvez não haja na percepção do tempo de uma tribo isolada a exatidão em medir o tempo no modelo do relógio ocidental, mas é inegável que existe na percepção de tempo de um indígena a precisão. A precisão deriva de noções relativas a se perceber o melhor dia para caça, para o plantio ou colheita de frutos ou plantas ou 2
Termos que já aparecem em Homero, p. ex., na Ilíada, V, 685; XIV, 203 e 244 e na Odisséia, V, 160; em Hesíodo, caso da Teogonia, 154. Lembrando-se que Aión surgiu também como filho de Chrónos, que se une a Ananké, a “necessidade” (Necessitas), “inevitabilidade” ou “destino”. 3 Interessante observar a relação “movimento-tempo-medida” na discussão. A questão do movimento entrelaçada ao tempo e como isso se relaciona ao medir foi antes abordada por Plotino (Enéada, III.7, 9). 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
mesmo para se proteger de perigos ou se precaver em caso de necessidades que virão. O tempo deriva de percepções sensoriais. Sabe-se, por exemplo, quando haverá chuvas, período de frio ou calor. Analisa-se o comportamento dos animais e das plantas. Vê-se o tempo de uma vida. Se o homem da floresta não consegue verificar diretamente dados fenômenos, ele os observa através dos olhos da natureza. Através do agir dos animais, da observação de seu atuar, ou mesmo da mudança e comportamento das plantas, há sempre indicações. Essa relação se perdeu através do tempo seqüencial do relógio4. Numa tribo a compreensão do tempo lembra a compreensão de tempo em civilizações mais antigas. A divisão seqüencial medida do tempo não é o mais importante. A tensão do tempo seqüencial medido pelo relógio distancia o ser humano de sua relação original com a natureza. Heidegger procura indicar tal distanciamento 5. Não há para o indígena a necessidade de determinação do tempo como tempo pelo relógio. Não há relação com a idéia de progresso ou com a idéia de uma “intuição pura” pré-existente. O tempo fixado em instante, que o relógio indica, não é tempo para o habitante de uma tribo no centro da floresta amazônica. O quanto de tempo medido pelo relógio não é o tempo da floresta. O tempo observado pelo indígena se assemelha ao tempo compreendido pelos antigos, isto é, o movimento dos dias e noites não é fixado em instantes. Não há a necessidade de interrompê-lo como medida no presente para se compreendê-lo. O tempo é devir6. A métrica ocidental e o seu valor de uso na cidade não se aproximam da compreensão do tempo de um indígena numa região isolada da floresta amazônica ou, em outro sentido, a precisão da medida do tempo em uma tribo isolada é mais precisa em uma floresta ou deserto que habita do que a medida de tempo européia situada em uma cidade que se amolda a este modelo. Há maior exatidão na medida do relógio, mas não necessariamente precisão. Outro sentido de percepção do tempo é verificado não pelo indígena isolado ou, no sentido europeu, ainda não “aculturado”. O exemplo típico é a pequena cidade fora dos grandes centros de troca capitalistas. Numa pequena cidade que entremeia vínculos com 4
O relógio é entendido como uma “seqüência de agoras” (processo). HEIDEGGER, 2001, p. 60 e 77 “O dizer hoje, ontem, amanhã é, pois, uma relação mais primordial com o tempo em comparação com o verificar de um quanto de tempo pelo relógio”. In: HEIDEGGER, 2001, p. 68. 6 Mircea Eliade defende que o tempo para os antigos divide-se em “profano”, que é o devir, e o “mítico”, presente em rituais. Sendo que nos rituais o humano, imitando e repetindo, insere-se no divino. O ritual repetido periodicamente torna-se cíclico. As concepções do tempo, então vinculadas ao divino, são de duas orientações: a “tradicional, pressentida, a do tempo-cíclico, que se regenera periodicamente ad infinitum; a outra, do tempo-acabado, fragmento (embora também ele cíclico) entre dois infinitos atemporais”. ELIADE, 2000, p. 50 e 126. 5
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o que seria o padrão moderno de tempo (presentificado e medido em instantes) e que, ao mesmo tempo, mantém vínculos com a floresta, o deserto ou o campo, nesses locais parece existir dois tempos. Em uma linguagem do habitante indígena “aculturado” ou, como entendemos, morador do campo dividido entre dois tempos, quer dizer, adaptado aos padrões culturais ocidentais, seria dito que há “um tempo que corre (passa) diferente na floresta”. O “correr” do tempo em uma floresta ou região isolada sul-americana, ou do planeta, é a demonstração extrema da existência de uma peculiar compreensão de tempo. O tempo é percebido ali de outro modo. O prender-se ao relógio é apenas um referencial imposto, circunstancial e que não se comunica com os seus hábitos. Há, portanto, no mínimo, dois tempos claros, um imposto pelas trocas, que devem ser feitas com os grandes centros, e o outro, derivado do seu viver junto a natureza.
A filosofia descreve, no entanto, a mesma diferença de outro modo. Agostinho, o primeiro a descrevê-la claramente, contrastava os mesmos dois tempos, como segue: 20. Eis que o tempo presente, o único que considerávamos susceptível de ser chamado longo, é contraído ao espaço de apenas um único dia. Mas examinemos também o mesmo, porque nem sequer um dia está todo presente. Este se completa em vinte e quatro horas noturnas e diurnas, a primeira das quais tem as outras como futuras e a última tem as outras como passadas, ao passo que qualquer das intermédias tem como passadas as que estão antes dela, e como futuras as que estão depois dela. E até essa mesma única hora decorre em parcelas fugazes: tudo o que dela fugiu é passado; tudo o que dela resta é futuro. (AGOSTINHO, 2008, p. 113). 7
O conflito que Agostinho observa é o da incongruência entre o tempo medido (“vinte e quatro horas noturnas e diurnas”) e o tempo do movimento natural, este não fechado ou fragmentado em parcelas ou períodos. Agostinho separa o “tempo externo” (“do movimento natural dos astros”) do “tempo interno” (medido pelo “espírito”)8. De algum modo, laicizado ou não, o habitante de uma região interior da América Latina, que transita entre as conseqüências do tempo imposto europeu e as percepções observadas em seu dia-a-dia, verifica isso com facilidade. Essa é a visão de tempo daqueles que mantém um laço com o passado de observação da natureza e, ao mesmo 7
Tradução modificada com base no original em latim e na versão portuguesa. AUGUSTINUS, Confessiones, XI, 20. 8 Esse tempo “interno”, todavia, não seria mais o tempo circular sem direção grego, mas agora o denominado tempo linear cristão dirigido a um fim (da Gênese ao Apocalipse). “Todavia, o tempo assim interiorizado é ainda a sucessão contínua de instantes pontuais do pensamento grego”. AGAMBEN, 2008, p. 114-115. Lembra-nos Eliade, que o tempo circular ainda esteve presente na Idade Média em Tycho-Brahé, Kepler, Cardan, G. Bruno e Campanella, convivendo com o tempo linear descrito, por exemplo, em Bacon ou Pascal. Para este escritor, o tempo linear afirma-se no séc. XVII, “instaurando a crença num progresso infinito, crença esta já proclamada por Leibniz”. ELIADE, 2000, p. 134. 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
tempo, do viver no vazio do tempo medido pelo relógio no trabalho cotidiano mecânico do presente.
1. O tempo percebido pelos poetas: o exemplo latino-americano Os habitantes de uma pequena cidade no interior da América Latina verificam com mais facilidade esse conflito de tempos. Lá está presente também o tempo medido. Mas a velocidade do acontecer em detrimento do tempo do relógio é contraditória. Existe o tempo dos aconteceres, que é um tempo não medido, mas existente entre os que vivem na selva ou no campo. Para eles muitas vezes não há a urgência no medir o tempo, usando-se o paradigma eurocêntrico9. Há a constatação de um tempo paralelo e mais importante. Lá se pode observar a diferença entre o “perceber o tempo” sem um “ter o tempo”, as horas não apenas se medem. Há um tempo que passa diferente. Nessas regiões pode haver “um tempo caudaloso”, citado por Borges em um de seus poemas: En la cóncava sombra vierten un tiempo vasto y generoso los relojes de la medianoche magnífica, un tiempo caudaloso donde todo soñar halla cabida, tiempo de anchura de alma, distinto de los avaros términos que miden las tareas del día. (BORGES, 1923, p. 35).
Borges compara neste poema (Caminhada), descrição de Buenos Aires ao início do século passado, o tempo que vive ao andar durante uma noite por ruas desta cidade. O tempo que o impressiona é o tempo da noite, tempo este que é “côncavo” e “caudaloso”, isto é, mais largo, mais abrangente e não medido em tarefas. Este tempo, ainda que vindo dos “relógios da meia-noite”, não aponta para um fazer ou um produzir. Algo que, para Borges, aconteceria especialmente durante o dia, medido em “avaros termos” mais planos e exatos. Tempo de uma grande cidade. Durante o dia percebia que o tempo medido era célere, egoísta e curto. A visão da noite permitia ver o outro tempo, que contrastava com o tempo da Buenos Aires durante o dia. O testemunho dos poetas é simbólico, independentemente da diferença de posições políticas10. Sua sensibilidade mais aguçada percebe um tempo que não para no 9
Nos dizeres de Agostinho: “não medimos os tempos futuros, nem os passados, nem os presentes, nem os que estão a passar, e, no entanto, medimos os tempos”. AUGUSTINUS, Confessiones, XI, 27, 34. A medição é um critério vazio e fixado pelo presente. 10 São conhecidas as divergências acima de tudo políticas entre Neruda e Borges. 27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
presente, que caminha. O tempo percebido é, ademais, um só, mesmo que cada ser o sinta diferente (andando, correndo ou crescendo). Está em cada um, mas ao mesmo tempo é vivenciado por todos. Lembremos de Neruda, em sua “Ode ao Tempo” (NERUDA, 1956): Dentro de ti tu edad creciendo, dentro de mí mi edad andando. El tiempo es decidido, no suena su campana, se acrecienta, camina, por dentro de nosotros, aparece como un agua profunda en la mirada…
Este tempo que Neruda descreve não é o tempo do relógio, não é o tempo medido. Talvez não esteja apenas “dentro” de alguém, mas está aí e é perceptível. Este “dentro” de Neruda não parece ter um sentido “subjetivo”, mas parece se referir ao aparecer “como uma água profunda” de certo olhar, olhar este intenso e não superficial. A medida do tempo não é digna de uma vida, como o mesmo poeta chileno descreve na “Ode a idade” (NERUDA, 1959): Mediremos la vida por metros o kilómetros o meses? Tanto desde que naces? Cuanto debes andar hasta que como todos en vez de caminarla por encima descansemos, debajo de la tierra? Al hombre, a la mujer que consumaron acciones, bondad, fuerza, cólera, amor, ternura, a los que verdaderamente vivos florecieron y en su naturaleza maduraron, no acerquemos nosotros la medida del tiempo que tal vez es otra cosa, un manto mineral, un ave planetaria, una flor, otra cosa tal vez, pero no una medida. 28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Neruda expressa seu inconformismo com o tempo da medida através de uma indagação (“Mediremos a vida...?”). A vida não se sujeita a medida estabelecida do cálculo, sequer deve-se haver uma sujeição da vida a tal paradigma. Não se mede a vida pelo tempo. A medida de tempo não é digna de uma vida. Na estrofe seguinte enfatiza Neruda que a própria questão da “medida do tempo” é duvidosa. Talvez seja melhor medir o tempo cotejando-o com algo mais profundo ou mais belo, como uma flor. A vida é talvez muito mais a flor do que a medida, por isso os seres “verdadeiramente vivos floresceram e em sua natureza maduraram”. O tempo da vida não é o referencial. O tempo ultrapassa a medida e pode florescer em amor, como também percebeu Drummond (DRUMMOND, 1985, p. 18): O tempo passa? Não passa no abismo do coração lá dentro, perdura a graça do amor, florindo em canção. O tempo nos aproxima cada vez mais, nos reduz a um só verso e uma rima de mãos e olhos, na luz. O tempo é todo vestido de amor e tempo de amar. O meu tempo e o teu transcedem qualquer medida. Além do amor, não ha nada, amar é o sumo da vida. Pois só quem ama escutou o apelo da eternidade.
Há para os seres que se amam outro tempo, que talvez não passe, que perdure “na graça do amor, florindo em canção”. Para os que amam, o tempo é outro. Tempo este que ultrapassa qualquer medida e se vincula a um sentido do “eterno” em cada um. Não ao eterno medieval das esferas ou da roda imensa da eternidade, dentro da qual a roda do tempo se move11, mas a um sentido de eternidade preso ao perceber de cada um e que pode ser provocado. O amor, que antes para os gregos poderia ser “ágape”, “filia” ou “éros”, distribui-se em uma riqueza de sentimentos de prazer e dor. Os sentimentos se misturam. Não é apenas o prazer, mas também a angústia, a melancolia e a saudade, que descrevem outro tempo sem medida.
11
AGAMBEN, 2008, p. 116-117.
29 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
2. O contraste dos tempos verificado na distância das cidades
Diante da constatação de tempos diferentes e simultâneos, Heidegger diz não ser possível responder qual tempo é hierarquicamente o mais importante, o tempo verificado aritmeticamente (o do relógio) ou o tempo percebido (“o tempo dado e interpretável [deutsame]”)12. A resposta para um habitante do campo ou mesmo de uma pequena cidade no interior do Brasil, da América Latina ou África não é difícil. Muito provavelmente o tempo percebido será mais relevante que o tempo calculado. O “andar” do tempo na pequena cidade é o mais importante. Em um dia pode-se ver o tempo “correr” mais rápido do que o relógio e, circunstancialmente, concluir que o dia rendeu bons frutos. E o “rendimento” do dia ou noite advém das decisões tomadas ou do fazer acontecer dessas pessoas. O rendimento de um dia não se relaciona, portanto, a compreensão do tempo preso ao relógio, de fato, o habitante não está preso ao aparelho medidor do tempo. O habitante desta pequena cidade reconhece com facilidade outro tempo, algo que vai além do tempo metrificado, quando no seu agir ou interagir se apercebe das possibilidades de decisão no contraste com o ambiente aberto (campo, selva, semi-árido) e vê a alteração em outra velocidade do tempo. O que predomina nessa análise do tempo não é algo novo. A verificação de um tempo mais originário e mais verdadeiro do que o tempo exato do relógio é algo mais fácil de constatarmos quando observamos a descrição dos poetas ou, p. ex., ouvimos falar do confronto estupefato do ser humano que habita a selva ou o campo com a diferença de tempos a ele concedida.
Em face de sua situação existencial, o morador dessas regiões já possui uma relação mais próxima com a terra e a natureza. As regiões distantes ou não, por serem menos influenciadas por um sistema de trocas (não apenas econômicas) do relógio medido, podem ver mais contundentemente a presença de outra relação que o homem tem com o tempo. No interior do Brasil há expressões como: “o tempo aqui é outro!”. Realmente, no seu modo de viver e no convívio com seus semelhantes, o morador que vive distante das cidades consegue facilmente estabelecer outra relação com o tempo. Essa relação deriva de um determinado perceber, que permite o estender, interromper ou encurtar o tempo, que não se relaciona ao estar preso do tempo medido e presente do 12
HEIDEGGER, 2001, p. 70-73. 30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
relógio. É claro que tal percepção não é privilégio de um campesino, o homem da grande cidade também pode o perceber, mas no campo é inegável que este se aproxima da possibilidade de se perceber a natureza (seu movimento) com mais facilidade.
De outro modo, não se pode também afirmar que o homem engolido pela grande cidade, tenha perdido a percepção do tempo percebido. O tempo percebido aparece quando ele verifica que o dia não passa ou, o que é mais “normal”, quando o dia passa muito rápido ou, numa linguagem informal, “mais rápido que o relógio”. Agamben lembra-nos da angústia do homem contemporâneo dividido entre o “seu ser-no-tempo”, inconciliável com a concepção de tempo tradicional “como sucessão contínua e infinita de instantes pontuais” e o próprio “ser-na-história, entendido como dimensão original do homem”13. Essa divisão, que culmina no entender moderno da história, é desde há muito em outros termos descrita e, na verdade, angustia o homem em sua compreensão de si. Talvez Heidegger pudesse justificar o caráter da percepção do tempo percebido como uma relação mais apropriada entre ser e tempo. Relação esta, portanto, ontológica, na qual o “Da-sein” é histórico e experimenta uma experiência mais autêntica do tempo, não vinculada ao instante pontual em fuga ao longo do tempo linear (“ser-na ou dentro-da-história”), mas no átimo de uma decisão autêntica. Agamben, por seu turno, conclui algo semelhante partindo da questão da “incomensurabilidade do prazer”. Para ele, o prazer não está nem no “tempo pontual contínuo” nem na “eternidade”, mas na “história” e a liberação do homem se dá pela cairós grega “em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade” (AGAMBEN, 2008, p. 127-128)14. Em que pese à ênfase dada por Agamben ao prazer como um tempo “pleno, descontínuo, finito e completo”, pensamos que não apenas do prazer que uma iniciativa como a cairós grega se dá. Em um sentido mais amplo, a dor afigura-se como igualmente plena, descontínua e completa, mas podendo ser finita ou infinita. Podemos dizer que a dor advinda de uma angústia pode ser solucionada e tornar-se finita, mas há dores que não se podem encerrar num tempo metrificado ou mesmo finito. Imaginemos
13
AGAMBEN, 2008, p. 121. Algo que lembra muito o fenômeno da “de-cisão” ou “situação de decisão” (“Entschlossenheit”) enquanto modo de “abertura” ou “situação de abertura” (“Erschlossenheit”), descrito por Heidegger em Ser e tempo (§ 60 ss.). HEIDEGGER, 2006, p. 297 ss. 14
31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
aqui a dor da mãe que perde seu filho ou a angústia por situações limite, como a morte. A dor, mais do que o prazer, pode manter-se perene, acompanhando o ser até sua morte. A dor, portanto, propicia também a cairós. 3. A questão da “presentificação” do tempo
Agostinho observou que o tempo medido se fixa comodamente no presente e, a partir do tempo presente, obtêm-se o referencial de análise do presente, do passado e do futuro: XX. 26. Uma coisa é agora clara e transparente: não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer propriamente: os tempos são três, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer propriamente: os tempos são três, o presente que diz respeito às coisas passadas, o presente que diz respeito às coisas presentes, o presente que diz respeito às coisas futuras.15
Em Kant, a idéia do tempo parece se afigurar também no tempo presente, mas de outro modo. Além de tratar da idéia do tempo como “intuição pura”16, ele aponta que o tempo é “princípio formal do mundo sensível”, “pois tudo o que de algum modo é sensível só pode ser pensado se é posto ou como simultaneamente ou como sucessivo e, conseqüentemente, como que envolto no curso de um único tempo e como correlacionado por uma posição determinada nesse tempo...” (KANT, 2005, p. 253)17. A concepção de tempo como intuição prende-se ao tempo presente, quando pensa as coisas sensíveis em processo (seqüência de instantes sucessivos ou simultâneos). Uma vez que tudo só pode ser pensado se referido a uma posição determinada como sucessiva ou simultânea no tempo, o pensar fixa-se numa posição presente, ainda que em processo. Ao fixar no momento presente o sensível pensado, tal concepção assemelha-se as anteriores. A fixação do presente confere a medida do tempo. Esse é o instante do tempo contínuo fixado em presente. Em Heidegger, o critério do tempo presente é substituído pela possibilidade do “por-vir” (Zu-kunft), derivação de “zukommen” (“ad-vir”), portanto, do projetar-se futuro como referencial18. Segundo ele, o “Da-sein”, esse ser 15
Augustinus, Confessiones, XI, 20, 26. KANT, 2005, p. 248 (§14). 17 Kant trata também do tempo, embora como sucessão causal, igualmente fixada no presente, na Crítica da Razão Pura, Analítica dos Princípios, Livro segundo, Cap. III. 18 HEIDEGGER, 2008, § 65. 32 16
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
que nós mesmos somos, é “o caráter de ter sido” (Gewesenheit), que só pode ser assim quando é (Gegenwart) ou está por vir (Zukunft). A “de-cisão antecipadora” do “Dasein” como poder-ser é determinada pela “temporalidade” (Zeitlichkeit)19. A temporalidade dá-se no “por-vir”, através da antecipação, que permite o “Da-sein” vir a si em seu poder-ser mais próprio. Porvir não significa um agora (presente), mas um “ekstase” (“fora de si em si e para si mesmo originário”20). Esse tempo da “temporalidade” não é o tempo vulgar nivelado “a uma pura seqüência de agoras” 21. Assim, no entender deste filósofo, seria possível ao Dasein superar o problema de se estar preso ao movimento do relógio, como seqüência de agoras, presos a medida do número.
4. Considerações Finais
A constatação de alguns filósofos e poetas demonstra que a percepção derivada do se aproximar a natureza e, em si, da natureza do tempo, nada tem que ver com o tempo medido e presentificado na exatidão dos relógios. Há, portanto, sempre outro tempo, que é mais fácil de ser observado por quem vive distante dos centros em que o relógio se impõe. O movimento do tempo é mais facilmente apreensível por aqueles que vivem mais próximo do que se convencionou chamar “natureza”. Aos que vivem em grandes cidades, já inseridas no tempo do relógio, resta apenas uma percepção limitada do movimento do outro tempo não medido. Todavia, mesmo aquele que está preso ao tempo do relógio pode aceder à percepção de outros tempos (redescrevendo-os). Mais do que o prender-se ao “por-vir” (Heidegger) ou ao “prazer” (Agamben) ou à dor, que nos permitem uma aproximação ao nosso próprio entendimento, talvez baste simplesmente ao ser humano procurar caminhar sobre esse nada configurado em tempo e, ao entender que o conceito de tempo como presentificação em números num relógio é só um parâmetro, ousar tentar perceber um 19
“A temporalidade ‘temporaliza-se’ como advir (futuro) atualizante (presente) de ter sido (passado)“ (“Zeitlichkeit zeitigt sich als gewesende-gegenwärtigende Zukunft“).HEIDEGGER, 2006, p. 350. A característica da temporalidade é que ela não é um ente, mas apenas se temporaliza (“Die Zeitlichkeit »ist« überhaupt kein Seiendes. Sie ist nicht, sondern zeitigt sich.”). HEIDEGGER, 2006, p. 328. 20 A temporalidade é o original “fora de si” em, e para, si mesmo (“Zeitlichkeit ist das ursprüngliche »Außer-sich« an und für sich selbst”). Os fenômenos do futuro, do caráter de ter sido e do presente são “ekstáses” da temporalidade (“Wir nennen daher die charakterisierten Phänomene Zukunft, Gewesenheit, Gegenwart die Ekstasen der Zeitlichkeit”). Dentre esses fenômenos, o futuro destaca-se por ter uma primazia. HEIDEGGER, 2006, p. 329. 21 “[...] als einer puren, anfangs- und endlosen Jetzt-folge…”. HEIDEGGER, 2006, p. 329. Cf. HEIDEGGER, 2001, p. 88-89. 33 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
outro tempo, fundado em “nada”, por mais que seja condenado a errar (vagar), e errando talvez possa dar sentido a esse fenômeno. Contentar-nos-emos, desta feita, com a descrição de Fernando Pessoa, para ele é possível viajar no tempo não medido. Pode-se, assim, errar (vagar) pelo tempo mais rapidamente ou mais curtamente. O errar do tempo decorre, mas não como o relógio. Pessoa, assim, nos lembra: Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vimos viver-nos. Perguntais-me a vós, de certo, que sentido têm estas frases; Nunca erreis assim. Despedi-vos do erro infantil de perguntar o sentido às coisas e às palavras. Nada tem um sentido. (PESSOA, 1986, p. 293).
O erro do tempo sentido (percebido) é o errar do tempo sem sentido (direção). Diante dessa constatação o tempo é sentido sem sentido. E o errar não é o erro (caminho) do buscar compreender o tempo pela métrica ou lógica. Pergunta-se: Como presentificar (tornar em tempo presente) em pergunta ou palavras a questão do sentido do tempo sem subjetivá-lo ou simplificá-lo? Daí a provocante frase de Pessoa: “Nada tem um sentido”. Mas o “nada” aqui é o tempo, o impossível de presentificar, mas que, no entanto, tem “um sentido”. Assim, pode-se dizer que o tempo (“nada”) tem um sentido, mas que não pode ser encontrado pelo “perguntar o sentido às coisas e às palavras” que estão “presentes” espacialmente. Isso seria caminhar (“errar”) como uma criança. O sentido do tempo não será encontrado pelo perguntar o “sentido” às coisas e às palavras. Essas sempre estarão espacialmente presentificadas. O tempo sentido não se presentifica em medida ou signo. REFERÊNCIAS: AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2008. AGOSTINHO. Confissões, Livros VII, X e XI. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. ARISTOTELES. Physik. Hamburg: Meiner Verlag, 1986. AUGUSTINUS. Confessiones. In: Patrologiae Latinae Elenchus, v. 32. Paris: Migne, 1861. Disponível em <http://www.sant-agostino.it/latino/confessioni/index2.htm>. Acesso em 26. Mar. 2012. BORGES, J. L. Caminata. In: Fervor de Buenos Aires. Buenos Aires: Serrantes, 1923. 34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
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35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
UMA ANÁLISE FORMAL SOBRE OS PARADOXOS DA ANÁLISE Luis Fernando Munaretti Rosa
Resumo: Neste artigo faço uma análise exaustiva de duas formas de paradoxo da análise e rejeito uma solução recente oferecida a este problema por Felicia Ackerman. Na primeira parte apresento as condições clássicas da relação da análise, que conduzem aos paradoxos mencionados. Na segunda parte, demonstro os dois paradoxos – o paradoxo do contexto intensional e o paradoxo do contexto não-intensional. Na terceira parte apresento possíveis soluções formais aos paradoxos. Por fim, analiso a solução de Felicia Ackerman, explico porque ela não funciona, e aponto uma possibilidade de resolução para os paradoxos. Palavras-chave: paradoxo, semântica, análise, intensão/extensão Abstract: In this paper I analyze two kinds of paradoxes of analysis, rejecting a recent solution offered by Felicia Ackerman. In the first part I present the classical conditions for the analysis relation, those which lead to a paradox. In the second part, I demonstrate both paradoxes – the intensional context paradox and the non-intensional context paradox. In the third part I present possible formal solutions to the paradoxes. Finally, I analyze Felicia Ackerman's solution, explaining why it does not work and pointing to a possible resolution of the paradoxes. Key-words: paradox, semantics, analysis, intension/extension 1. A concepção clássica da análise conceitual
Antes de apresentar o paradoxo da análise propriamente dito, irei apresentar as condições que se supõe serem separadamente necessárias e conjuntamente suficientes para uma relação de análise conceitual1. Parece haver algum consenso quanto a estas condições, e o paradoxo investigado aqui somente surge quando se as assume. De modo geral, define-se a análise como um processo que reduz algo a suas partes elementares. Filósofos analíticos em geral, ao analisarem um conceito, supõem estar mostrando uma estrutura complexa que contém o que há de fundamental e constituinte em relação à este conceito2. Diz-se de uma análise filosófica que ela mostra
1
Alguns autores preferem falar em propriedades ao invés de conceitos. Este tipo de preferência em nada irá interferir na investigação presente, na medida em que estiverem fazendo referência a objetos intensionais, e não a expressões lingüísticas ou extensões de predicados quando usados em âmbito ordinário. 2 Como podemos encontrar em Beaney (BEANEY 2009: p. 2), em relação à análise: “Perhaps, in its broadest sense, it might be defined as a process of isolating or working back to what is more fundamental by means of which something, initially taken as given, can be explained or reconstructed”. E também em Strawson (STRAWSON 1992: p. 17), sobre o que é a análise: “...the resolution of something complex into elements and the exhibition of the ways in which the elements are related in the complex”. Beaney, no entanto, reconhece que não está claro se existe um significado unívoco de ‘análise’, uma concordância quanto ao entendimento deste termo na filosofia, e mesmo naquela de orientação analítica. 36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
as condições necessárias e suficientes para a aplicação ou exemplificação de um conceito. Porém, quando tornamos logicamente claras as propriedades da relação de análise, podemos perceber que alguns resultados indesejáveis são daí inferidos. Um destes resultados é o próprio paradoxo da análise, foco de meu interesse aqui. A fim de que se possa ver como e exatamente de onde (de qual condição) o paradoxo é inferido, é preciso responder: quais são as condições necessárias e suficientes para uma relação ser uma relação de análise? Chamo aqui de ‘condições clássicas’ às condições que foram tidas como necessárias e suficientes para a relação da análise antes do surgimento do paradoxo e que, portanto, conduzem ao paradoxo. Estas condições clássicas podem receber distintas formulações3. O que importa é que aqueles que se ocuparam do paradoxo da análise concordam sobre quais são as condições que conduzem a este paradoxo. Irei formulá-las da seguinte forma (em que ‘AC’ está por ‘análise clássica’):
(AC) O conceito analysans analisa o conceito analysandum sse: 1) analysans e analysandum são necessariamente coextensivos; 2) a relação em (a) é cognoscível a priori; 3) as expressões de analysans e analysandum são sinônimas; 4) o analysans (mais complexo) mostra como está constituído o analysandum (mais simples), sem circularidade
Explicarei brevemente estas condições. É preciso tornar claro o que cada uma delas significa, e porque elas conduzem a um paradoxo ao serem sustentadas conjuntamente. A cláusula (a) é a cláusula da coextensionalidade necessária. Ela diz que, necessariamente, o analysans se aplica a todos os objetos a que o analysandum se aplica, e vice-versa. Ou se preferirmos: necessariamente, tudo o que exemplifica o analysans, exemplifica o analysandum, e vice-versa. É o bicondicional que está na forma lógica da análise – simbolizado pela expressão ‘se e somente se’, e pela expressão ‘≡’ em notação lógica. De um ponto de vista estritamente extensional, a proposição em que ocorre o bicondicional é uma função de verdade das proposições à esquerda e direita deste sinal: se elas forem ambas verdadeiras ou ambas falsas, o bicondicional será verdadeiro; se uma delas for falsa e a outra verdadeira, ou vice-versa, 3
Ver p. ex. (CHISHOLM; POTTER 1983: p. 100-101), (MOORE 1942: p. 663) e (ACKERMAN 2010: p. 576). 37 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
o bicondicional será falso. Assim, a forma lógica da cláusula (a) de (AC) é: (a)□(x) (x é P ≡ x é Q&R) onde ‘P’ é a expressão do analysandum e ‘Q&R’ a expressão do analysans (adotarei isso de modo uniforme de agora em diante). O sinal ‘’ está pela necessidade referida na cláusula (a). A cláusula (b) é a cláusula do cognoscibilidade a priori. Na maioria das vezes, a definição de conhecimento a priori presente nos textos dos autores que se ocupam do paradoxo é aquela negativa e mais geral: conhecimento a priori é aquele gerado independentemente da experiência. Ou seja, conhecimento a priori é aquela crença, com justificação suficiente para conhecimento, que não está relacionada epistemicamente a alguma evidência empírica. Bem, que proposição exatamente deve ser cognoscível a priori para uma relação ser uma relação de análise? É precisamente a proposição do tipo (a), em que há a relação bicondicional de coextensionalidade4. A cláusula (b) exige que baste tão somente a compreensão do significado dos predicados ‘P’ e ‘Q&R’ para sabermos que se mantém a relação bicondicional entre eles. Que baste somente a compreensão para sabermos que (a) é o caso, quer dizer que há um tipo de justificação a priori suficiente para o conhecimento de (a). Tendo-se isso explicado, a forma lógica da cláusula (b) de (AC) é (em que 'S' é variável para agente cognitivo, e 'K*' está pela relação de conhecimento a priori):
(b) (S)K*S(a)
Ou seja, para todo o sujeito S, a proposição (a) é cognoscível a priori. Se em (b) não houvesse a modalidade da possibilidade, expressa pelo sinal ‘’, esta proposição estaria fazendo a afirmação de que, para todo S, S sabe (atualmente) a priori que (a). Não é isto que visa expressar, porém, a cláusula (b) de (AC). A cláusula (c) é a cláusula da sinonímia. Ela diz basicamente que as expressões do analysandum e do analysans significam a mesma coisa, ou seja, que há um mesmo objeto intensional para as duas expressões. A relação de sinonímia estabelece, portanto, 4
Isto está exposto claramente em (ACKERMAN, 2010, p. 576) 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
uma equivalência intensional. No caso da equivalência extensional, presente em (a), temos que os conceitos relacionados denotam a mesma coisa ou classe, que eles têm necessariamente os mesmos objetos sob seu escopo. No caso da equivalência intensional, temos que os dois termos relacionados expressam a mesma coisa, a saber, um conceito ou uma proposição. Se 'P' e 'Q&R' são sinônimos, então há um mesmo objeto intensional sendo expresso por estes dois predicados. Usando o artifício formal de colchetes para simbolizar objetos intensionais, portanto, a formalização da cláusula (c) de (AC) fica:
(c) [P] = [Q&R]
A cláusula (d) contém em verdade duas exigências, mas que podem sem problemas ser colocadas conjuntamente. Aqui, exige-se que a análise não seja circular, ou seja, que o analysandum não reapareça, em sua forma simples, no analysans. Algumas vezes esta condição é colocada ao se dizer que a análise precisa ser informativa, e isso quer dizer: que ela precisa não simplesmente identificar duas coisas obviamente idênticas, como [P] e [P], mas identificar duas coisas tal que isso explique a primeira delas, que mostre como ela está constituída. Além disso, o analysans precisa ser ‘mais complexo’ justamente por mostrar as partes que, em conjunção, compõem o analysandum, que deve ser ‘mais simples’. A condição da informatividade é o foco principal aqui, e ela envolve a questão da complexidade do analysans em relação ao analysandum justamente porque, em análises informativas, o primeiro mostra a constituição lógica do segundo, por conjunção, algo que antes da análise poderia não estar evidente. Assim, a formalização da cláusula (d) fica:
(d) [Q&R] mostra como [P] está constituído
Bem, agora que as condições de (AC) já estão formalizadas, posso apresentar uma análise formal da relação de análise, conforme as condições tidas como necessárias e suficientes antes da conclusão paradoxal. Assim, a formalização de (AC) é a seguinte:
(AC) O conceito Q&R analisa o conceito P sse: (a) □(x) (x é P ≡ x é Q&R)
39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
(b) (x) K*S(a) (c) [P] = [Q&R] (d) [Q&R] mostra como [P] está constituído
É esta a análise que é usada para a demonstração do paradoxo, e o paradoxo vem a mostrar que, se eu assumir (a), (b), (c) e (d), chegarei a uma contradição. É nisto que consiste precisamente o paradoxo da análise.
2. O paradoxo da análise
Há pelo menos duas formas de paradoxo da análise5. O primeiro paradoxo surge com as observações de que, se as expressões do analysans e do analysandum têm o mesmo significado (se os dois são o mesmo conceito), a análise apenas expressa uma identidade trivial; porém, em não havendo esta igualdade de significado nas duas expressões, a análise simplesmente não é correta. Quem colocou o paradoxo exposto desta forma primeiramente foi Langford (1942), em um texto que fala sobre a noção de análise na filosofia de Moore6. Isso estaria indicando que uma análise não pode ser correta e informativa ao mesmo tempo. O segundo paradoxo surge com a observação de que a propriedade descrita acima, a identidade entre conceitos na relação de análise, acarreta valores de verdade paradoxais no contexto ‘... é uma análise correta de...’. O paradoxo da análise, em sua primeira forma, surge do seguinte modo. Assuma-se que a seguinte proposição seja verdadeira, e que ela esteja expressando uma análise do conceito P:
(i) x é P sse x é Q&R Poderíamos exemplificar esta proposição com ‘x é humano sse x é um animal racional’, ou ‘x é irmão sse x é co-descendente masculino’, etc. Bem, se esta análise está correta, então ‘P’ e ‘Q&R’ expressam o mesmo conceito, ou seja, o conceito P e o conceito 5
Ver (AKERMAN 2010). “The paradox of analysis is to the effect that, if the verbal expression representing the analysandum has the same meaning as the verbal expression representing the analysans, the analysis states a bare identity and is trivial; but if the two verbal expressions do not have the same meaning, the analysis is incorrect” (LANGFORD 1942: P. 323) 6
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Q&R são o mesmo. Logo, aqueles termos são intercambiáveis salva significatione, ou seja, duas sentenças com estas expressões trocadas devem expressar a mesma proposição. Portanto, a proposição expressa em (i) deve ser a mesma que a expressa em:
(ii) x é P sse x é P
Tanto (i) quanto (ii) são verdadeiras. Porém, (i) é uma proposição informativa, enquanto (ii) não o é. Como pode ser o caso que (i) e (ii) expressam uma mesma proposição, e esta mesma proposição é informativa no primeiro caso, mas não no segundo? O paradoxo em sua segunda forma surge do seguinte modo. Assuma-se que a seguinte proposição é verdadeira:
(i’) a análise do conceito P é a de que ser P é ser Q&R Poderíamos exemplificar esta proposição com: ‘a análise do conceito de humano é a de que ser humano é ser um animal racional’, ou ‘a análise do conceito de irmão é a de que ser irmão é ser co-descendente masculino’, etc. Se (i’) é verdadeira então, novamente, os sinais ‘P’ e ‘Q&R’ expressam o mesmo conceito e são também intercambiáveis salva veritate, ou seja, duas sentenças com estas mesmas expressões trocadas devem manter o mesmo valor de verdade (com a costumeira possível exceção de alguns casos em contextos de atitude proposicional). Portanto, a seguinte proposição tem de ser verdadeira também:
(ii’) a análise do conceito P é a de que ser P é ser P
Mas, não é o caso que (ii’) é verdadeira: o conceito P não analisa o conceito P, de acordo com a condição (d) da análise (o conceito de irmão não analisa o conceito de irmão; o conceito de conhecimento não analisa o conceito de conhecimento). Ou seja, (ii’) é falsa. Como pode ser o caso que (i’) e (ii’) expressam a mesma proposição, e esta mesma proposição é verdadeira no primeiro caso, mas não no segundo? Bem, estas são as duas formas do paradoxo da análise. Quem exatamente os dividiu, no sentido de sustentar que o primeiro é um paradoxo, e o segundo outro, foi Ackerman (ACKERMAN 2010). Esta autora procura por duas soluções distintas às
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duas formas do paradoxo. Isso só pode ser feito supondo-se que os dois paradoxos são sobre coisas distintas – mas obviamente com algo em comum. Nesta parte, quero tentar mostrar qual a relação entre estas duas formas de paradoxo, e isto terá importância nas seções seguintes, em que farei uma análise das possíveis soluções ao paradoxo. Como espero sustentar, há uma só situação paradoxal com duas implicações contraditórias a ser resolvida aqui - de onde se espera uma só solução. É preciso deixar evidentes quais são as premissas assumidas na demonstração destes paradoxos. Em ambos, as condições de (AC) são todas assumidas. Porém, fica evidente que duas destas condições são absolutamente centrais para a formulação do paradoxo, que são as condições (c) e (d), as cláusulas da sinonímia ou igualdade intensional e a da informatividade. Nos dois paradoxos infere-se de (i) que [P] = [Q&R], e que [Q&R] informa como [P] está constituído. Esta é a primeira tese assumida em ambos, a das condições da análise. A outra tese assumida no primeiro paradoxo que se mostra de grande importância é a seguinte (em que ‘SSS’ está por ‘salva significatione por sinonímia’):
(SSS) Se [P] = [Q&R], então as expressões de [P] e de [Q&R] são intercambiáveis salva significatione Assim, se ‘irmão’ e ‘co-descendente masculino’ expressam o mesmo conceito, ou seja, se [irmão] = [co-descendente masculino], então as proposições em ‘Mimi tem um irmão’ e ‘Mimi tem um co-descendente masculino’ têm exatamente o mesmo significado: as duas sentenças expressam a mesma proposição. Outra tese assumida para a formulação do primeiro paradoxo é uma tese clássica. É o famoso princípio da indiscernibilidade de idênticos (INI):
(INI) Se a = b então a e b têm exatamente as mesmas propriedades.
Isso posto, a demonstração do primeiro paradoxo fica da seguinte forma:
(1) se (i) então [P] = [Q&R] (2) (SSS) (3) (INI) 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
(4) (i) (5) (i) é informativa (6) (ii) é não-informativa Portanto: (7) [P] = [Q&R] (1, 4 modus ponens) (8) (i) = (ii) (2, 7 modus ponens) (9) (i) e (ii) têm as mesmas propriedades (3, 8, modus ponens) (10) se (ii) é não-informativa, então (i) é não-informativa (9, passagem de bicondicional para condicional) (11) (i) é não-informativa (6, 10, modus ponens) (12) (i) é informativa e (i) é não-informativa (5, 11, conjunção)
A conclusão (12) é uma contradição. Agora passo para a demonstração do segundo paradoxo. No segundo paradoxo se assume igualmente as condições de (AC). Mas, além disso, assume-se que, se duas expressões são sinônimas (e, portanto, intercambiáveis salva significatione), então elas são intercambiáveis salva veritate em contextos intensionais (com possível exceção de contextos com atitude proposicional). A tese aqui é a seguinte (em que ‘SVS’ está por ‘salva veritate por sinonímia’): (SVS) Se [P] = [Q&R], então ‘[P]’ e ‘[Q&R]’ são intercambiáveis salva veritate em contextos intensionais (com possíveis exceções em contextos de atitude proposicional).
A demonstração do segundo paradoxo fica da seguinte forma:
(1) se (i’) então [P] = [Q&R] (2) SVS (3) (i') (4) (ii') é falsa Portanto: (5) [P] = [Q&R] (1, 3, modus ponens) (6) (i') e (ii’) têm o mesmo valor de verdade (2, 5, modus ponens) (7) se (ii’) é falsa, então (i’) é falsa (6, passagem de bicondicional para condicional) (8) (i’) é falsa (4, 7, modus ponens)
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(9) (i’) é verdadeira e (i’) é falsa (3, 8, conjunção)
Note-se que os dois paradoxos poderiam ser gerados contando-se somente com o par (i’) e (ii’), pois de (i’) infere-se (i). Isso porque, uma vez que assumo as condições de (AC), de dois conceitos em relação de análise sempre vou inferir uma proposição do tipo (a). Há uma importante observação a ser feita aqui. O par de proposições usadas para a demonstração do primeiro paradoxo está na mesma forma da condição (a) de (AC) – a sentença (i) quando interpretada literalmente é uma afirmação de necessidade puramente extensional, pois apenas diz que todo o x que é P é também necessariamente Q&R, e vice-versa, e que todo x que não é P, também não é Q&R, e vice-versa. Mas convenciona-se, com o propósito de se falar no paradoxo, que esta sentença esteja expressando uma relação de análise correta. Mas se este é o caso, então na verdade a sentença (i) está dizendo que:
(A) o conceito Q&R analisa o conceito P E, uma vez que a função relacional em ‘... analisa...’ implica as condições (a)-(d), a proposição em (i) afirma mais do que aquela simples relação extensional bicondicional necessária. Ainda, há algo não explicitamente mostrado em (A) quando esta proposição é usada para demonstrar o paradoxo da análise: que o conceito Q&R analisa completa e corretamente o conceito P. Esta suposição é essencial para que o paradoxo ocorra, caso contrário, as substituições entre termos não seria mais válida. Além disso, podemos coerentemente sustentar que (i’) também está, por sua vez, expressando o que está expresso em (A). Dizer que a análise do conceito de P é a de que ser P é ser Q&R, é precisamente dizer que o conceito Q&R analisa completa e corretamente o conceito P. Note-se que o paradoxo aplica-se da mesma forma. Vou demonstrá-lo a partir de (A). Suponha que a seguinte proposição seja verdadeira:
(A) O conceito Q&R analisa o conceito P
Se este é o caso, então as duas expressões à esquerda e à direita da função de análise estão pelo mesmo conceito, uma vez que estou assumindo a cláusula (c) de (AC) – e aqui é preciso fazer notar que, isto se assume aqui, dizer que ‘o conceito Q&R’ e ‘o 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
conceito P’ são o mesmo conceito é o mesmo que dizer que ‘P’ e ‘Q&R’ são sinônimos, ou que [P] = [Q&R]. Então, assumo (SVS), ou seja, que neste contexto intensional dois termos para o mesmo conceito são intercambiáveis salva veritate, o que me leva a sustentar que (A) expressa uma proposição com igual valor de verdade a:
(B) O conceito P analisa o conceito P
No entanto, (A) é verdadeira e (B) é falsa, e elas não poderiam diferir em valor de verdade conforme as premissas assumidas. Aqui já tenho o ‘segundo paradoxo’. Agora, não preciso mudar de contexto para demonstrar o ‘primeiro paradoxo’. Trabalho novamente com a assunção de que (A) é verdadeiro. Se (A) é verdadeiro, então dada a condição (a) de (AC), a seguinte proposição é verdadeira:
(i) x é P sse x é Q&R
E, posto que de (A) também infiro que [P] = [Q&R], então usando o princípio (SSS) é patente que (i) expressa a mesma proposição que a expressa em:
(ii) x é P sse x é P No entanto, (i) é informativa, enquanto que (ii) não é. As duas demonstrações assumem as condições de (AC). Qual a(s) diferença(s) entre as duas situações paradoxais? Bem, isso é notável: que a conseqüência paradoxal do par (A)/(B) se dá em um contexto oblíquo, em que os termos predicativos referem a intensões, pois (A) diz de um conceito que ele analisa outro, enquanto que a conseqüência paradoxal do par (i)/(ii) se dá em um contexto não-oblíquo, em que os termos predicativos referem a classes e expressam os conceitos referidos no contexto de (A)/(B). É por isso que no caso do par (A)/(B) utiliza-se (SVS), e no caso do par (i)/(ii) usa-se (SSS). No contexto intensional (A)/(B), a substituição problemática é a suposta substituição salva veritate entre ‘o conceito P’ e ‘o conceito Q&R’, ou entre ‘[P]’ e ‘[Q&R]’, cuja substituição não mantém a verdade. No contexto (i)/(ii) a substituição problemática é a suposta substituição salva significatione entre ‘P’ e ‘Q&R’, cuja substituição não mantém a mesma proposição – ao menos não se considerarmos que diferença de propriedade significa não-igualdade
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(INI). Assim, o conjunto axiomático para demonstrar os dois paradoxos é o seguinte: 1. (A) é verdadeiro; 2. condições de (AC); 3. (SSS); 4. (SVS); 5. (INI). Chamarei ao ‘primeiro paradoxo’ de Ackerman (ACKERMAN 2010), o que se segue após o par (i)/(ii), de ‘paradoxo do contexto não-intensional’. Ao ‘segundo paradoxo’ de Ackerman, o que se segue diretamente do par (A)/(B), chamarei de ‘paradoxo do contexto intensional’. Suas siglas serão respectivamente ‘PNI’ e ‘PI’. Não quero, porém, deixar de enfatizar que ambos começam com a assunção de que (A) é verdadeiro, e que ambos assumem as condições de (AC).
3. Tipos de solução ao paradoxo
Então, parece que um indicativo para solucionar o problema com PNI é o seguinte: abrir mão da condição (c). Desistindo de (c), afirmaríamos que uma análise não tem como condição necessária a igualdade dos conceitos em relação, o que simplesmente não permitiria o uso de (SSS) para substituir ‘Q&R’ por ‘P’ em (i) – uma vez que ‘P’ e ‘Q&R’ não estariam expressando o mesmo conceito. Assim, (i) estaria correta (mas não mais no sentido em que isso signifique igualdade intensional) e informativa. Chamarei esta solução de Negação da Identidade da Análise:
(NIA) A relação de análise não tem como condição necessária a identidade dos conceitos relacionados, ou seja, não é o caso que, se [Q&R] analisa [P], então [P] = [Q&R]. Esta parece ser uma solução simples, e de fato, é uma solução que aparece de pronto às primeiras reflexões sobre o paradoxo. No entanto, em não havendo esta relação de igualdade entre analysans e analysandum, é preciso que se explique que outro tipo de relação há entre estes conceitos, que explique por que é necessário que estes conceitos sejam coextensivos – e esta é a parte mais difícil para este tipo de solução. Há também outra possibilidade de tentar resolver PNI sem abrir mão de (c): abrir mão de (SSS) – pode ser o caso que [P] = [Q&R] sem que seja o caso que ‘P’ e ‘Q&R’ sejam intercambiáveis salva significatione. Este tipo de solução enfrentaria grandes problemas. Ela se opõe e um princípio amplamente aceito por muitos filósofos, lógicos e lingüistas, que diz de duas expressões sinônimas que elas mantém o 46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
significado no contexto proposicional em que ocorrem ao serem trocadas. Assim, a despeito do fato de que [P] = [Q&R], dizer que x é P não é a mesma coisa que dizer que x é Q&R, o que para alguns pode soar como absurdo. Chamarei esta solução de Negação de (SSS):
~(SSS) Dois termos podem ser sinônimos sem que duas sentenças em que eles são trocados sejam sinônimas
Esta também é uma solução difícil: é preciso explicar como duas expressões expressam o mesmo conceito sem que duas sentenças em que ocorrem intercambiavelmente aquelas expressões estejam expressando a mesma proposição. Uma outra solução para PNI consiste em negar que a análise deva ser informativa – consiste, portanto, em negar a cláusula (d) de (AC). Chamarei esta solução de Negação de Informatividade da Análise: (NINF) A relação de análise não tem como condição necessária a informatividade, ou seja, não é o caso que se [Q&R] analisa [P], então esta proposição, ou uma proposição como (a) por ela implicada, seja informativa
Neste caso, a análise perderia seu caráter explicativo, e todas as teses concernentes à necessidade de a análise mostrar coisas antes despercebidas, ou ao fato de a análise mostrar como está constituído um conceito, seriam negadas. A análise seria mera tautologia e não teria qualquer interesse epistêmico substancial. No entanto, parece claro que análises são informativas. Há conceitos para os quais até hoje buscamos uma análise, buscamos um estabelecimento correto de condições necessárias e suficientes para a sua aplicação, até então não encontrado. Isso quer dizer que, ao encontrarmos tal análise, isso será informativo, pois irá nos mostrar algo que não conseguimos perceber até agora, e isso terá tanto ou mais interesse epistêmico como qualquer outra proposição conhecida que julgamos ser informativa. Nem por isso a solução deve ser de pronto excluída. Somente precisamos de uma boa explicação de porque análises não são informativas. Esta solução parece ser tão radical quanto ~(SSS). Mas há uma solução referente à propriedade da informatividade que não é tão radical como esta última. Trata-se de uma tentativa de relativizar a propriedade da
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informatividade a agentes cognitivos. O primeiro passo aqui é o reconhecimento da informatividade como uma propriedade relacional, no sentido de que a proposição em questão é informativa sempre para um determinado agente cognitivo. Porém, a solução é vista para o PNI ao se afirmar que, para um agente cognitivo que sabe que [Q&R] analisa [P], a proposição expressa em (i) é tão não-informativa como a proposição expressa em (ii). Aqui, a informatividade não é uma propriedade objetivamente atribuída à proposição. Chamarei esta solução de Relativização da Informatividade:
(RINF) A informatividade de uma proposição é relativa ao conhecimento que um agente epistêmico tem acerca dos conceitos que ocorrem nesta proposição
Bem, e quanto ao PI, que tipo de solução pode ser oferecida a ele? Uma delas seria defender a tese de que, mesmo que [P] = [Q&R], ainda assim ‘[P]’ e ‘[Q&R]’ não são intercambiáveis salva veritate em contextos intensionais como ‘... analisa...’. Assim, nos faltaria razão para tentar realizar a substituição de (A) para (B). Esta solução baseia-se na negação do princípio (SVS):
~(SVS) Dois termos podem referir ao mesmo conceito sem que se mantenha o mesmo valor de verdade ao substituí-los em contextos intensionais como ‘... analisa...’ Esta não parece ser uma solução tão contra-intuitiva quanto parece ser a solução ~(SSS), dada ao paradoxo PNI. Isso porque já sabemos que há alguns contextos intensionais, os casos de atitudes proposicionais, para os quais não é possível realizar substituição salva veritate entre termos que referem à mesma coisa (no caso de PI os termos em questão referem a um mesmo conceito, que é um objeto intensional). Porém, uma outra solução também se apresenta para PI: aquela mesma usada para impedir o surgimento de PNI, a que faz uso da tese (NIA). Ora, em uma análise não tendo como condição necessária a identidade entre os conceitos relacionados, por conseguinte também não há razões para tentar realizar substituição salva veritate entre as expressões destes conceitos no contexto de ‘... analisa...’. Novamente, é preciso uma explicação de que outro tipo de relação há entre analysans e analysandum que não seja a relação de identidade. É notável que esta seja uma solução para ambos, PI e PNI. A dificuldade aqui é a mesma para resolver as duas situações paradoxais. O fato de (NIA) 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
servir para solucionar as duas situações paradoxais, que provém daquele conjunto axiomático aplicado à proposição (A), é uma forte razão para interpretar esta solução como o tipo de solução correta. Afinal, teríamos um só tipo de solução para duas conseqüências indesejáveis, o que poderia vir a mostrar que estas conseqüências decorrem de um mesmo erro: a assunção da condição (c) de (AC). Não haveria dois erros, e sim um só. Isto parece favorecer a solução (NIA).
4. Falhas na solução de Felicia Ackerman
Felicia Ackerman foi talvez a pessoa que mais publicou artigos sobre o paradoxo da análise, e também a que mais recentemente se ocupou deste paradoxo. Com efeito, é de sua autoria o verbete ‘paradoxes of analysis’ no compêndio de epistemologia da Blackwell (ACKERMAN, 2010). Ackerman faz uma divisão entre o ‘primeiro paradoxo’ e o ‘segundo paradoxo’ da análise – os quais são aqui PNI e PI respectivamente. Ela distingue entre tipos de análise, relevantes ao problema, usando uma condição de individuação de sentido como critério para a distinção: alguns pares de expressões presentes em análises são intercambiáveis em contextos intensionais – outros não. Mas antes de analisar o seu critério de distinção entre dois tipos de análise, quero mostrar as duas soluções de Ackerman. Começarei com a solução para o ‘segundo paradoxo’, o que chamo aqui de ‘PI’, seguindo a ordem do verbete de Ackerman no Companion to Epistemology (reference above). Ela trata deste paradoxo tendo como modelo o seguinte par de proposições:
(3) Uma análise do conceito de irmão é a de que ser um irmão é ser um co-descendente macho (4) Uma análise do conceito de irmão é a de que ser um irmão é ser um irmão7
Onde (3) é verdadeira e (4) é falsa, e elas deveriam ambas ser verdadeiras uma vez que [irmão] = [co-descendente masculino]. A solução viria de uma interpretação de (3) do seguinte modo:
7
No original: “(3) An analysis of the concept of being a brother is that to be a brother is to be a male sibling, (4) An analysis of the concept of being a brother is that to be a brother is to be a brother” (ACKERMAN 2010, p. 574). 49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
(5) Uma análise é dada ao se dizer que a expressão verbal “x é um irmão” expressa o mesmo conceito que é expresso pela conjunção das expressões verbais “x é um macho” quando usada para expressar o conceito de ser um macho, e “x é um co-descendente” quando usada para expressar o conceito de ser um co-descendente8 Ackerman sustenta que esta solução está de acordo com a indicação de Moore de que talvez a análise tivesse de ser sobre ambos, o conceito e a sua expressão verbal. De fato, (5) especifica o significado de “irmão” por meio de outras duas expressões, combinadas daquela forma. Desse modo, o paradoxo PI não surgiria porque não está ocorrendo uma referência direta ao conceito relacionado na análise; o conceito está, na própria proposição, relacionado a uma determinada expressão verbal, e a expressão verbal do analysandum é distinta da expressão do analysans, que é composta e relacionada a outros dois conceitos. Sem substituição de analysans por analysandum, sem paradoxo. Ackerman observa que, em (5), o analysans tem dois constituintes separados associados as suas respectivas expressões. Mas, e isso parece passar despercebido por Ackerman, (5) implica que, quando ‘é irmão’ e ‘é co-descendente masculino’ ocorrem em contextos não intensionais, eles expressam o mesmo conceito, e que, portanto, ‘x é irmão sse x é co-descendente masculino’ expressa a mesma proposição que ‘x é irmão sse x é irmão’. E aqui novamente temos o paradoxo PNI resultando da suposta solução ao paradoxo PI. De fato, a proposição (5) assere (c), mas de uma outra forma, e assim o problema continua: a condição (c) que é usada para a substituição entre termos na formulação do paradoxo não foi eliminada nem resignificada. É ainda problemático que Ackerman sustente que dizer algo como - ‘P’ expressa o mesmo conceito que é expresso pela conjunção de ‘Q’ quando usada para expressar [Q] e de ‘R’ quando usada para expressar [R] -, é o mesmo que expressar uma análise. Trata-se apenas da expressão de uma relação de sinonímia entre uma expressão simples e uma expressão complexa. Pois, quando se usar ‘Q&R’ para expressar [Q&R], se estará expressando o mesmo conceito que é expresso por ‘P’, ou seja, [P]. Daí que qualquer sentença em que trocarmos ‘P’ por ‘Q&R’ e mantivermos o resto igual irá expressar a mesma proposição antes e depois da troca. Esta não é uma boa solução, pois ela dá 8
No original: “(5) An analysis is given by saying that the verbal expression “x is a brother” expresses the same concept as is expressed by the conjunction of the verbal expressions “x is a male” when used to express the concept of being a male and “x is a sibling” when used to express the concept of being a sibling” (ACKERMAN, 2010, p. 574-575) 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
origem a PNI da mesma forma como a condição (c). Ackerman propõe a solução para um paradoxo da análise a custa de gerar outro. Sua solução ao paradoxo PI é falha. Vejamos então a solução ao ‘primeiro paradoxo’. A solução ao primeiro paradoxo está na negação de que analysandum e analysans sejam o mesmo conceito – trata-se de uma solução tipo (NIA). Ackerman argumenta que analysans e analysandum são distintos conceitos, cognoscíveis a priori como coextensivos e relacionados de uma forma epistêmica especial. Basicamente, a motivação que ela tem para negar a identidade entre os conceitos é a de que, em casos como o do par hipoteticamente correto [conhecimento] e [crença verdadeira justificada não essencialmente baseada em crenças falsas], o primeiro conceito é facilmente pensável, captável ou concebível, e está no pensamento de muitas pessoas, enquanto que captar ou pensar o segundo é mais difícil, e não são muitas pessoas que o têm no pensamento – talvez somente epistemólogos tenham este conceito complexo em mente. Assim, tomando-se o par de proposições para os quais se aplicaria o primeiro paradoxo (pelo fato de (1) ser informativa e (2) não):
(1) Ser um caso de conhecimento é ser um caso de crença verdadeira justificada não essencialmente baseada em crenças falsas (2) Ser um caso de conhecimento é ser um caso de conhecimento
Posso assumir (1) como verdadeira e informativa, enquanto que (2) não é informativa, mas também não é a mesma proposição que (1), porque em (1) se expressam dois conceitos diferentes. Como razão para rejeitar os conceitos como idênticos, Ackerman oferece aquele fato acerca das atitudes proposicionais mais comuns envolvendo estes conceitos. Mas precisamos ainda, como eu havia mencionado a respeito do tipo de solução (NIA), de um substituto para a relação de identidade. Este substituto está, para Ackerman, numa relação epistêmica entre os conceitos em questão, a qual é indicada na maneira de justificar uma proposição de análise. Esta forma de justificação se dá pelo método da exemplificação e contra-exemplificação, onde imaginamos casos em que se aplica o analysandum, e perguntamos se nestes casos se aplica também o analysans, e vice-versa. São os famosos experimentos mentais. Se em algum destes experimentos eu concebo uma situação em que Q&R é o caso, mas P não é o caso, então [Q&R] não é o analysans de [P]: há algo de errado com ele, lhe falta alguma condição, etc. A condição
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para a análise que Ackerman oferece aqui é a seguinte:
(e) Se [Q&R] é o analysans de [P], a proposição de que necessariamente todos e somente os casos de [Q&R] são casos de [P] pode ser justificada por meio de generalizações a partir de intuições sobre respostas corretas às questões indicadas, sobre uma variada e ampla série de situações hipotéticas descritas9. As questões referidas na condição seriam aquelas do tipo: ‘E nesta situação em que Q&R é o caso, ainda posso dizer que aqui P também é o caso?’. Nossas intuições quanto a atribuição dos conceitos que formam o analysans formariam então a análise completa do analysandum. Este método é efetivamente usado em filosofia. Nos casos de Gettier (GETTIER 2002), por exemplo, como em muitos outros casos presentes na epistemologia contemporânea, embora não saibamos exatamente qual é a análise correta do conceito de conhecimento, por meio de experimentos mentais nos deparamos com situações em que se aplica o analysans proposto para o conceito de conhecimento, e ainda assim não estamos dispostos a chamar aqueles casos de conhecimento. Obviamente, isso não acontece com relação a todos os conceitos. Não encontramos freqüentemente (se alguma vez) contra-exemplos à proposição de que [não casado] analisa [solteiro], e podemos nos esforçar para encontrar situações hipotéticas em que há um não casado, mas não há um solteiro, ou vice-versa. Mas nem todos os conceitos têm um analysans claro e evidente, como neste último caso. Apesar desta importante indicação sobre a relação epistêmica entre analysans e analysandum, Ackerman utiliza em sua solução um critério de distinção para tipos de análise que é problemático. A tese é a de que há conceitos ‘claros’, isto é, aqueles que passam no teste de individuação do sentido – que podem ser trocados salva veritate com o seu analysans em contextos de atitudes proposicionais -, e há conceitos ‘obscuros’, isto é, aqueles que não passam neste teste de individuação do sentido; e a análise de conceitos ‘claros’ não é a mesma que a de conceitos ‘obscuros’: elas são de dois tipos distintos. Assim, para Ackerman, há pares analysandum/analysans que são intercambiáveis salva veritate em contextos de atitudes proposicionais, como o par
9
No original: “(e) If S is the analysans of Q, the proposition that necessarily all and only instances of S are instances of Q can be justified by generalizing from intuitions about the correct answers to questions of the sort indicated about a varied and wide-ranging series of simple described hypothetical situations” (ACKERMAN, 2010, p. 577) 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
[irmão]/[co-descendente masculino], porque estes conceitos sempre são pensados juntamente, e quem sabe que isto é um irmão, sabe que isto é um co-descendente masculino, e vice-versa, quem crê que isto é um irmão, crê que isto é um codescendente masculino, etc10. Mas há pares para os quais não é possível fazer substituição salva veritate em tais contextos, porque o analysans é mais raramente concebido junto com o analysandum, e apenas por um nicho específico de agentes cognitivos, de onde Ackerman interpreta que, em casos como este, o par analysandum/analysans não é composto por conceitos idênticos (ACKERMAN 1990: p. 537). Ainda, uma das formas de atentar para esta diferença entre os dois tipos de análise seria justamente o de reconhecer para quais pares analysandum/analysans se aplica o primeiro paradoxo, e para quais outros pares se aplica o segundo paradoxo. O que está aqui em questão é que, no caso de pares conceituais que passam no teste de individuação de sentido, que são intercambiáveis naqueles contextos de atitudes proposicionais, não se aplica o primeiro paradoxo – o paradoxo PNI que diz respeito a uma mesma proposição ser informativa e não informativa -, enquanto o segundo paradoxo aplica-se a todos os tipos de pares conceituais, os que passam e os que não passam no teste de individuação. Ainda, a solução ao segundo paradoxo não pode ser a mesma dada ao primeiro, pois visa somente o contexto ‘uma análise correta é dada por...’, e a solução ao primeiro paradoxo não pode ser a mesma dada ao segundo. Por que a pares conceituais que passam no teste de individuação do sentido não se aplica o primeiro paradoxo? Por que, por exemplo, ao par [irmão]/[co-descendente masculino], não se aplica o paradoxo PNI? Veja-se como ficam (i) e (ii) para este par:
(i*) x é irmão sse x é co-descendente masculino (ii*) x é irmão sse x é irmão Ackerman está dizendo que, num caso como este, não surge o primeiro paradoxo – e isso só pode querer dizer: não surge o problema de uma mesma proposição ter e não ter a propriedade da informatividade. Isso justamente porque, uma vez que ‘irmão’ e ‘codescendente masculino’ são intercambiáveis em contextos de atitudes proposicionais, a 10
Ackerman utiliza este para como exemplo somente for the sake of the argument, mas não especifica quais pares analysandum/analysans entram neste conjunto de pares conceituais intercambiáveis em contextos de atitudes proposicionais. 53 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
proposição (i*) também não é informativa: a distinção entre tipos de análise que Ackerman faz, é precisamente uma distinção entre análises que não podem ser informativas para pessoas que já compreeendem o sentido das palavras relacionadas, e aquelas que podem (ACKERMAN 1990: p. 540). Mas aqui parece haver uma relativização trivial da propriedade da informatividade. Suponhamos, por exemplo, que se popularize a análise do conceito de conhecimento, aquela em que temos como analysans o conceito de crença verdadeira justificada não essencialmente baseada em crenças falsas (ou formada por processo confiável, ou sem derrotador, etc., o que importa aqui é assumir, para o argumento, que esta análise está correta). Neste experimento mental, todos começaram a se interessar por epistemologia, e agora a substancial maioria dos agentes cognitivos quando pensa em [conhecimento] pensa em [crença verdadeira justificada não essencialmente baseada em crenças falsas]. Bem, então, deixou de se aplicar o primeiro paradoxo a este par analysandum/analysans? Mas para quantas pessoas deve ser intercambiável salva veritate o par de termos para dizermos que o primeiro paradoxo não mais se aplica? Qual o percentual total de domínio da análise do conceito de conhecimento tornaria uma proposição do tipo (i) tão trivial como a do tipo (ii)? Façamos ainda outro experimento mental. Podemos assumir, como quer Ackerman, que no estado atual de coisas o par ‘irmão’/‘co-descendente masculino’ é intercambiável salva veritate em contextos de atitudes proposicionais, e que (i*) é tão trivial como (ii*). Mas podemos trabalhar em uma hipótese em que um número significativo de agentes cognitivos não pensa no analysans de [irmão] – imaginemos que a maioria das pessoas pensa no conceito de irmão, atribui o conceito de irmão, sem pensar ou atribuir o conceito de co-descendente masculino (o que é bastante possível!). Diríamos aqui que o par [irmão]/[co-descendente masculino] deixou de passar no teste de individuação e passou a constituir um tipo distinto de análise? Talvez, o problema seja mais coerentemente concebido da seguinte forma: há um só tipo de análise conceitual, mas que pode ser uma relação entre conceitos mais simples ou conceitos mais complexos. Trata-se de uma mudança na complexidade do objeto da análise, o conceito, mas isso não deve acarretar uma mudança no tipo de análise ela mesma. A solução ao segundo paradoxo de Ackerman é falha, pois a afirmação de que para pares de expressões intercambiávies salva veritate em contextos de atitude proposicional não se aplica o primeiro paradoxo, o paradoxo (PNI), é falsa. A tese de 54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Ackerman é a de que para casos em que os conceitos são idênticos, e portanto intercambiáveis salva veritate em contextos de atitude proposicional, não se aplica o primeiro paradoxo. E, portanto, ela procura resolver o primeiro paradoxo somente nos casos em que os conceitos da análise não são idênticos. O que quero mostrar é que, mesmo que eu tome um caso em que os conceitos são idênticos, de acordo com as assunções de Ackerman, ainda assim surge o paradoxo PNI. Note que para um agente cognitivo que capta o aspecto de [P] de que ele é idêntico a [Q&R], a proposição de que ser um P é ser um Q&R seria não informativa. No entanto, esta proposição seria informativa para aqueles agentes cognitivos que não captam aquele aspecto de [P]. Ou seja: no caso de um agente cognitivo que não sabe que [P] = [Q&R] (pelo argumento, junto com Ackerman, assumimos que [P] = [Q&R]), a proposição (i) é informativa, mas (ii) não o é, e elas ainda têm de ser a mesma proposição. O sujeito que sabe da identidade não cai em situação paradoxal, mas o sujeito que não sabe da identidade cai! O paradoxo PNI continua, mas desta vez somente para agentes cognitivos que não sabem de uma determinada relação pertinente que o analysandum mantém com outro conceito, o analysans. Assim, o argumento contra esta solução do tipo (RINF) (nota indicando o tipo de solução), a solução da relativização da informação, assume a seguinte forma para o caso do agente que ignora (A):
(1) (RINF) (2) (A) → ((i) = (ii)) (3) S não sabe que (A) (4) (A) (5) (ii) é não informativa (6) (INI) Portanto, (7) S não sabe que (A) → (i) é informativa (de (1)) (8) (i) é informativa (3, 7, modus ponens) (9) (i) = (ii) (2, 4, modus ponens) (10) (ii) é não informativa → (i) é não informativa (6, 9, modus ponens) (11) (i) é não informativa (5, 10, modus ponens) (12) (i) é informativa e (i) é não informativa (8, 11 conjunção)
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E temos aqui o paradoxo novamente. Ainda, esta suposta estratégia coloca a distinção entre (i) e (ii) no modo de relacionamento entre um agente cognitivo e o conceito presente na proposição. Trata-se de uma discrepância relativizadora, e isso torna a diferença entre (i) e (ii) pouco significativa, se é que explica alguma diferença entre as duas proposições. Isto não é solução ao paradoxo da análise e sim uma descrição de perspectivas cognitivas diante de certas proposições, a qual leva em conta o background que os agentes cognitivos supostamente já têm, constituído de crenças que são conhecimento, ou de crenças que simplesmente estão justificadas (mas obviamente, isto não quer dizer que esta descrição não esteja de acordo com os fatos cognitivos).
5. Qual é a solução correta?
A solução dupla de Ackerman não funciona. A tese de que alguns pares conceituais em relação de análise são idênticos e outros não o são, é insustentável com base nas informações conceituais tidas pela maioria dos agentes cognitivos. Não há boa justificação aqui para a solução (NIA), e vimos que o uso de uma solução do tipo (RINF) conduz novamente ao paradoxo. A solução ~(SSS) é inconsistente com a própria relação de sinonímia. Esperamos que, ao trocarmos termos sinônimos dentro de sentenças em contextos não oblíquos, estaremos gerando sentenças também sinônimas. A solução (NINF) tira da análise a sua propriedade da informatividade e, portanto, seu interesse epistêmico – o que nos permitiria simplesmente eliminar o conceito de análise de nosso vocabulário filosófico e utilizar o conceito de identidade no seu lugar. Não creio que os filósofos em sua maioria estejam dispostos a abrir mão da condição de informatividade. Ainda merecem exame detalhado as soluções ~(SVS) e (NIA). É notável, ainda, que a solução ~(SVS) só resolve o paradoxo PI. A solução (NIA) resolveria ambos de uma só vez. Em meu próximo trabalho, quero trabalhar nesta possibilidade, e tentar defender tal tipo de solução aos paradoxos PI e PNI.
REFERÊNCIAS: ACKERMAN, F. ”Analysis, Language, and Concepts: The Second Paradox of Analysis”. Philosophical Perspectives - Action Theory and Philosophy of Mind, 4, pp. 535-543, 1990. 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
ACKERMAN, F. 'Paradoxes of Analysis' IN DANCY, J. et al. (ed.) A Companion to Epistemology, 2 ed., Oxford: Blackwell Publishing, 2011. BEANEY, M. (2009) ' Analysis', disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/analysis/ acessado em 23/03/2010 CHISHOLM, R. M. & POTTER, R. C. “The Paradox of Analysis: A Solution”, Metaphilosophy, 12 (1), pp. 1-6. 1983. LANGFORD, C. H. “The Notion of Analysis in Moore’s Philosophy” IN SCHILPP, P. A. (ed.) The Philosophy of G. E. Moore, Evanston: Northwestern University Press, 1942. STRAWSON, P. Analysis and Metaphysics, New York: Oxford University Press, 1992.
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CARACTERÍSTICAS DA DEMOCRACIA LIBERAL: BREVES COMENTÁRIOS1 Leonardo Diniz do Couto2 Resumo: O objetivo deste trabalho é delinear, por meio de breves comentários, a concepção de democracia presente no entendimento do que contemporaneamente é qualificado como doutrina liberal. Para tal, pretendo, de início, apresentar a compreensão tradicional de tal conceito em uma de suas versões mais discutidas recentemente, o liberalismo político de John Rawls – tomado aqui como o autor paradigmático desta perspectiva. Em seguida, pretendo apontar algumas críticas elaboradas por Ronald Dworkin e Michael Walzer, críticas estas que, ao que parece, antes de conseguirem minar os alicerces da teoria de Rawls, oferecem reparos a esta. A intenção deste texto é, portanto, indicar algumas limitações da teoria de Rawls, mostrando que embora possamos compartilhar de suas intuições mais fundamentais, talvez elas necessitem de complementações e aprofundamentos e também de outros meios, além dos apresentados por ele, para serem efetivadas. Palavras-chave: democracia, liberalismo, John Rawls, Michael Walzer e Ronald Dworkin Abstract: The goal of this text is to briefly outline the conception of democracy in the current understanding of what is qualified as a liberal doctrine. To this end, I intend, firstly, to present the traditional understanding of this concept on one of its most debated versions, specifically, the political liberalism of John Rawls – understood here as this perspective’s paradigm author. Secondly, I intend to point out some critics of Rawls’ theory elaborated by Ronald Dworkin and Michael Walzer. My point of view is that such criticisms don’t destroy the foundations of Rawls’ theory; on the contrary, they contribute to develop it by correcting specific aspects of it. Thereon, the proposal of this text is to indicate some limitations of Rawls’ theory, showing that we can share its most fundamental intuitions, even when we think that its intuitions require some corrections to take effect. Key-words: democracy, liberalism, John Rawls, Michael Walzer and Ronald Dworkin Introdução
Atualmente, é muito comum vermos o uso genérico do substantivo “democracia”, e também do adjetivo “democrático”, como um quase sinônimo de justiça, de bom funcionamento das instituições, enfim, daquilo que é bom e certo que aconteça na vida política de uma sociedade. Este uso, contudo, sem se especificar o que
1
A ideia central deste texto foi apresentada no XVI Simposio de la Asociación Iberoamericana de Filosofía Política: “Iberoamérica: Doscientos Años. Democracia, Comunidad e Instituciones.”, realizado em setembro de 2009 na Universidad Nacional Del Sur, em Bahía Blanca, Argentina. 2 Bacharel e licenciado em filosofia pela UFRJ, mestre em filosofia pelo PPGF/UFRJ. Atualmente doutorando pelo PPGF/UFRJ, bolsista CAPES e com orientação de Maria Clara Dias. Componente da comissão editorial da Revista Internacional Diversitates e atual professor da FAETEC/RJ. Pesquisa sobre questões de filosofia política e política que versam sobre a sociedade liberal, a justiça e a igualdade. 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
se quer dizer com tais palavras, mostra-se um tanto vazio e sem sentido, principalmente, quando empreendemos uma abordagem mais minuciosa em política e em filosofia política. Como se trata de uma ideia que, sobretudo, no decorrer da história humana recente, recebeu uma grande multiplicidade de interpretações, não é uma tarefa fácil dizer o que ela designa exatamente. Apesar disso, uma vez que este conceito, na vida prática de nossas sociedades, tem um corpo e por isso precisa ser o melhor possível modelado teoricamente, é fundamental que tenhamos clareza, ao menos, quanto ao que ele envolve e ao que queremos quando a ele recorremos. É neste sentido que se estrutura este artigo. Aqui, a pretensão é, basicamente, explicitar a compreensão de democracia que temos por suposto nas sociedades tradicionalmente conhecidas como liberais, compreensão esta que se expressa e, sendo assim, é legitimada, segundo uma das hipóteses aqui veiculadas, pela teoria proposta por John Rawls e sua justiça como equidade. Mais precisamente, a ideia, neste artigo, é delinear em seus pontos gerais essa compreensão da democracia nas sociedades liberais. Feito isso, em seguida pretende-se apontar duas possibilidades de crítica, com Ronald Dworkin e Michael Walzer, dessa compreensão. Não é minha intenção desenvolver estas críticas, mas apenas mostrar que, dadas as características da democracia desenhada pelo liberalismo, elas parecem possíveis. Por fim, pretendo apontar também para o fato de que estas críticas, embora sejam pertinentes, não parecem solapar a concepção liberal, principalmente se se tem em mente a concepção liberal de Rawls. Elas parecem unicamente oferecer um reparo pontual a esta.
1. Passemos, então, ao primeiro passo desse texto, passemos à análise da democracia liberal a partir de John Rawls. É bom que se diga já de início que Rawls, em sua análise da democracia, parte de sua sociedade já constituída, com suas preocupações particulares, seus valores, morais e políticos, suas crenças gerais etc. Utilizando suas palavras, reunimos convicções arraigadas, como a noção de tolerância religiosa e repúdio à escravidão, e procuramos organizar as ideias e princípios básicos nelas implícitos numa concepção política coerente de justiça. Tais convicções são pontos de referência provisórios, que, ao que parece, toda concepção razoável deve levar em conta. Nosso ponto de partida é, então, a noção da própria cultura pública como fundo comum de ideias e princípios básicos implicitamente reconhecidos (RAWLS, 2000, p. 50).
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Deste modo, podemos ver, desde já, que há uma demarcação clara do âmbito dentro do qual ele teoriza, qual seja, a sociedade liberal atual. Em breves palavras, podemos dizer que tal demarcação tem dois significados. O primeiro é que o autor pressupõe, ao pensar a democracia, uma sociedade pluralista e fracionada por inúmeras concepções de bem, de justiça e da própria democracia; e o segundo é que, face a este pluralismo, ele acredita ser possível a construção de um discurso público acessível e passível de ser endossado por todos os cidadãos razoáveis 3, entendidos como moralmente iguais e igualmente livres. Quanto ao primeiro significado, que se refere à sua pressuposição, nosso autor parte do que, para ele, constitui-se como um fato intrínseco a qualquer democracia, a saber, o fato do pluralismo de concepções razoáveis acerca do que é uma vida digna ou, em outras palavras, o fato do pluralismo razoável. Conforme o autor, a cultura pública de uma sociedade democrática é sempre marcada pela diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais conflitantes e irreconciliáveis. Algumas são perfeitamente razoáveis, e essa diversidade de doutrinas razoáveis, o liberalismo político a vê como o resultado inevitável, a longo prazo, do exercício das faculdades da razão humana em instituições básicas livres e duradouras (RAWLS, 2000, p. 45).
Neste sentido, o seu ponto de partida nesta análise é uma constatação a respeito do que já se dá, ou seja, algo com o qual já nos habituamos e lidamos cotidianamente sem grandes problemas, a saber, a convivência que há entre as diversas pessoas, que possuem diversos modos de ver e valorar a vida e o mundo. É de especial importância frisar o fato de que, para esta compreensão, estamos tomando claramente a sociedade plural como constituída de pessoas com concepções religiosas, morais e filosóficas diversas. A diferença, por conseguinte, está vinculada à figura do indivíduo, não a das associações, grupos ou comunidades. Conforme Rawls (2000, p. 73), “os cidadãos são livres no sentido de conceberem a si mesmos e aos outros como indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção de bem”. Assim, embora uma pessoa possa ligar-se a um grupo em nome de uma determinada concepção de bem num certo momento, esta pessoa pode rever tal concepção e até
3
Rawls concebe os cidadãos de uma sociedade bem ordenada como racionais e razoáveis. Por racional ele entende a pessoa que é capaz de ter, revisar e perseguir uma concepção de vida que seja boa ou digna, e por razoável, a pessoa que é capaz de respeitar os termos equitativos de cooperação social, ou seja, que é capaz de se preocupar não só com o seu bem, mas também com o bem dos outros. Cf. RAWLS. Uma teoria da justiça., terceira parte.; e também Liberalismo Político, conferência I. 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
mudá-la se desejar4. O pluralismo razoável pressuposto por este autor, portanto, liga-se inteiramente à diversidade de projetos individuais de vida, decorrente das diferentes convicções religiosas, filosóficas e morais professadas por cada uma das pessoas na sociedade. A consequência disso, para esta perspectiva, é que como nas sociedades democráticas a intenção é incluir os cidadãos no debate público, a pluralidade de concepções individuais de bem precisa ser assegurada, o que leva Rawls a defender que numa sociedade bem ordenada deve-se dar prioridade absoluta às liberdades e aos direitos individuais em relação ao bem público. De maneira geral, podemos dizer que a liberdade aqui referida consiste na possibilidade que deve ser reservada a todo cidadão de buscar a realização da sua compreensão de vida digna ou de bem sem sofrer interferências externas que sejam impeditivas e indevidas. Trata-se da garantia do comando da própria vida a todo e qualquer indivíduo racional. É claro que tal garantia não significa total permissão para fazer o que aprouver a cada sujeito. As liberdades pessoais têm um limite: uma não pode significar a impossibilidade de outra; neste caso, ambas precisam ser ajustadas de modo a “se encaixarem num esquema coerente de liberdades” (RAWLS, 2003a, p. 147) que seja garantido a todos igualmente. A liberdade assim entendida não conflita com a igualdade, ao contrário, elas se complementam ou, nas palavras de Dworkin (2005, p. 178), “embora seja comum distinguirmos essas duas virtudes nas discussões e nas análises políticas, elas expressam mutuamente aspectos de um único ideal humanista”, já que se reforçam. Nas sociedades liberais, neste sentido, a justiça é garantida quando os direitos individuais são protegidos a cada um, isto é, quando são garantidas, basicamente, as liberdades consideradas fundamentais para a concepção tradicional liberal, que são, nos termos de Rawls (2000, p. 345): “a liberdade de pensamento e consciência; as liberdades políticas e a liberdade de associação, assim como as liberdades especificadas pela liberdade e integridade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades abarcados pelo império da lei”. Ao proteger tais direitos, garante-se que ninguém será tratado sem a consideração de sua dignidade; daí o motivo de, no âmbito de tais sociedades, haver a atribuição de um papel proeminente à Constituição e ao sistema de direitos lá inscritos contra eventuais procedimentos majoritários. Nesta medida, frente à justiça, todos 4
É precisamente isso – a saber, que seja qual for o fim, este é escolhido pelo indivíduo “dentre numerosas possibilidades” – o que Rawls quer dizer quando afirma (2008, p. 691) que “o eu é prévio aos fins afirmados por ele”. 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
devem ser concebidos como iguais em autonomia, como portadores de iguais direitos.
2. Ainda nesse primeiro passo, passemos ao segundo significado da demarcação de Rawls. Como vimos, Rawls aposta suas fichas na possibilidade de construção de um discurso público com o qual todos os cidadãos razoáveis, mesmo com suas concepções diversas e, em muitos aspectos, conflitantes, poderiam concordar sem contradizer suas convicções mais fundamentais. Ele acredita que, frente à diversidade de projetos pessoais de vida proferidos dentro da sociedade, o Estado, ou melhor, a estrutura básica da sociedade, ou seja, “as principais instituições sociais – a constituição, o regime econômico, a ordem legal e sua especificação de propriedade e congêneres, e como essas instituições se combinam para formar um sistema” (RAWLS, 2000, p. 355), não tem outra escolha se quiser ser justa senão ser neutra e imparcial para que todos os cidadãos sejam considerados igualmente livres. Para este autor, já que o pluralismo deve ser tomado como um fato, uma marca intrínseca de qualquer regime democrático, a estrutura básica da sociedade deverá ser regulada por uma concepção de justiça que seja independente das diversas doutrinas religiosas, morais e filosóficas e que se situe exclusivamente no domínio do político. Desta forma, não se intervirá na execução das diversas concepções individuais acerca do bem. O papel da estrutura básica da sociedade, neste aspecto, deverá ser unicamente preservar e assegurar regras fixas e indiferentes, e leis uniformes e iguais para todos, com a finalidade de através de tal garantia possibilitar o usufruto igual das liberdades fundamentais a todos indistintamente. O Estado assim compreendido não poderá interferir, de maneira alguma, nas escolhas e ações individuais, a não ser, é claro, que estas ações e escolhas firam o desenvolvimento igual da liberdade dos outros. Em face disso, o Estado justo não pode impor a seus cidadãos uma visão única do bem. Ele deve ser neutro em relação às escolhas pessoais e individuais do tipo de vida que se quer levar. Utilizando os termos de Rawls, isto quer dizer que o justo deve preceder o bem5. Nesta medida, a ação estatal, neste sentido mais básico, de acordo com Rawls, deve se limitar única e exclusivamente, utilizando os termos deste autor, ao âmbito do político. Isto significa que ela deve ser independente das diversas doutrinas professadas 5
De acordo com Rawls ( 2008, p. 490): “na justiça como equidade o conceito de justo antecede o de bem [...], algo só é bom se, e somente se, combinar com modos de vida compatíveis com os princípios de justiça que já estão à mão”. 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
pelos indivíduos; independente no sentido de que a justificação de suas ações deve se apresentar, como diz Rawls (2000, p. 55), como “um módulo, uma parte constitutiva essencial que se encaixa em várias doutrinas abrangentes [morais, religiosas e filosóficas] razoáveis subsistentes na sociedade regulada por ela, podendo [por isso] conquistar o apoio daquelas doutrinas”. A justificação desta concepção política deve se dar aos cidadãos, portanto, através de um consenso. A este, que mantém a unidade e a estabilidade social, Rawls chama de sobreposto. O autor o denomina desta forma porque todos os cidadãos razoáveis podem concordar com os seus termos, visto que as razões apresentadas neste não contradizem as recomendações de suas doutrinas pessoais. Quando isso se dá, ou seja, quando a concepção política é sustentada por um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes e razoáveis realiza-se a razão pública, isto é, o poder racional que os cidadãos, em situação de igualdade e como corpo político, exercem uns sobre os outros, ou seja, “a razão de cidadãos iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição” (RAWLS, 2000, p. 263). Enfim, dado este contexto, podemos passar a tratar do que se entende por democracia em geral e da concepção de democracia de Rawls.
3. De forma geral, pode-se dizer que a democracia é o governo do povo, ou melhor, o governo no qual o povo constitui a autoridade soberana, é ele que toma as decisões importantes no que concerne à organização e às políticas públicas. Embora na democracia o povo seja o soberano, ele no contexto das sociedades liberais é limitado em sua atuação. Ele não pode em sua tomada de decisão ferir ou desrespeitar os direitos subjetivos de sequer uma pessoa. Isto significa respeitar a dignidade de todos. Além disso, como é todo o povo que governa, não há um soberano que sobrepuje a todos em autoridade. Todos são igualmente cidadãos, e, por isso, o poder político deve ser distribuído igualitária ou equitativamente entre todos. Isto, por sua vez, significa respeitar a igual cidadania. Nas sociedades liberais, normalmente, a democracia é concebida como um sistema político onde as decisões são tomadas mediante deliberação e votação de agentes racionais, limitados pelos direitos fundamentais, em âmbito institucional, tendo
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como base a regra da maioria, ou seja, a regra que prescreve que a decisão de todos é aquela endossada pela maioria dos cidadãos. Ela é vista, com efeito, como uma luta, uma disputa argumentativa entre pessoas racionais pelo endosso majoritário de uma proposta. Como ilustração deste entendimento temos o autor tratado acima, John Rawls, que defende que uma democracia constitucional razoavelmente justa é aquela que é regulada por leis, endossadas pela maioria dos cidadãos, ou melhor, pela maioria de seus representantes, leis estas que devem ser passíveis de serem apoiadas por legisladores racionais que obedeçam aos dois princípios de justiça. Utilizando as palavras de Rawls, trata-se do lugar onde mediante a apresentação de concepções do bem público e de políticas concebidas para promover os objetivos sociais, os partidos rivais buscam a aprovação dos cidadãos de acordo com normas procedimentais justas, num contexto de liberdade de pensamento e de reunião no qual está assegurado o valor equitativo da liberdade política (RAWLS, 2008, p. 280).
Para ser mais preciso, conforme observa este autor, a democracia em uma sociedade bem-ordenada envolve os seguintes elementos – elementos estes que, segundo ele, são necessários para assegurar igualdade política de seus membros. Em primeiro lugar, diz ele (2008, p. 273), “os cidadãos […] [devem ter] um direito igual de participar do processo constituinte que define as leis às quais devem obedecer, bem como seu resultado final”. Aqui, ao ler “participar” entenda-se tanto “participar diretamente” como “ser representado”, pois, tal como caracteriza este autor (2008, p. 274), “a autoridade de decidir as políticas sociais básicas [nas democracias liberais] pertence a um corpo de representantes escolhido para exercer mandatos delimitados durante um período determinado, por um eleitorado ao qual esses representantes devem prestar contas”. Em segundo, as eleições devem estar livres de corrupções, elas precisam ser limpas. Em terceiro, deve haver “rigorosas proteções constitucionais para determinadas liberdades, principalmente para a liberdade de expressão e de reunião e para a liberdade de formar associações políticas” (RAWLS, 2008, p. 274). Outro elemento importante, diz o autor, é de que as discordâncias quanto às convicções políticas devem ser aceitas como algo normal da atividade política pública, posto que, tal como ele assevera (2008, p. 275), “a falta de unanimidade faz parte das circunstâncias da justiça”. Além desses, outro elemento que deve estar presente, para Rawls, é a oportunidade que pelo menos em um sentido formal deve ser igual a todo cidadão de se filiar a um partido político, de se candidatar a um posto de autoridade, a um cargo público, e também, obviamente, de ser eleito pelos outros cidadãos. A 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
ninguém pode ser negada essa oportunidade. E, por fim, também deve ser igual a oportunidade de influenciar o processo político, pois, sendo tal processo público, todos devem ter o direito de nele e sobre ele opinar autonomamente e, mais do que isso, de tentar obter, para uma proposta sua, o apoio da maioria de seus concidadãos. A esses elementos Rawls acrescenta ainda a chamada regra da maioria. Ao lembrarmos que o debate público, que, por versar sobre questões políticas públicas controvertidas, em sua maioria, não se buscam respostas corretas ou verdadeiras, mas apenas uma resposta razoável e legítima, podemos seguindo Rawls chegar à ideia de que a resolução da maioria por meio de votação, possibilita que cheguemos a alguma decisão. Ela possibilita, então, uma saída de impasses. Acompanhando o que comenta Rawls, embora nada garanta que a decisão da maioria seja a decisão correta, como os dois princípios de justiça que regulam a sociedade bem-ordenada nem sempre são claros ou precisos quanto ao que eles requerem, entre outros motivos, porque a sua própria natureza pode deixar em aberto um leque de opções ao invés de determinar uma alternativa específica, uma lei endossada pela maioria pode ser considerada justa se estiver dentro deste leque de opções. O papel de tal regra, com base nisso, é, conforme este autor, servir como um bom meio de alcançar um acordo político ou como a maneira mais viável de alcançar certos objetivos anteriormente definidos pelos princípios de justiça6. É neste contexto que, para Rawls, o papel da razão pública fica evidente. Ela, enquanto limitada ao âmbito do político, garante estabilidade à democracia vigente. Pois, uma vez que as diversas doutrinas, religiosas ou não, utilizam razões políticas, elas podem participar do debate das questões públicas, sem sair da esfera do desacordo razoável. Já por agora, o que talvez possamos encarar como problemático nesta razão pública é o seu campo de aplicação. Conforme Rawls, ela se aplica apenas ao “fórum político público”, isto é, ao discurso dos juízes nas suas discussões, e especialmente dos juízes de um tribunal supremo; […] dos funcionários de governo, especialmente executivos e legisladores principais, e finalmente […] de candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha, especialmente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações políticas (RAWLS, 2001, p. 176).
Dessa razão, utilizada no debate público, o povo não participa. Para o povo sobra, diz Rawls (2001, p. 177), “a cultura de fundo […], a cultura da sociedade civil [onde] […] os seus muitos e diversos agentes e associações, com sua vida interna, residem em uma 6
Cf. § 54 de Uma Teoria da Justiça.
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estrutura de direito que assegura as conhecidas liberdades de pensamento e discurso e o direito de livre associação”. De tal cultura, todos podem participar diretamente, diferentemente da primeira na qual a participação na tomada de decisão apenas se dá de forma indireta. Portanto, podemos dizer de forma rápida e direta, repetindo o que já dissemos acima, que a democracia, para a concepção liberal convencional e para Rawls, reduz-se a um sistema representativo, no qual, fora o voto para escolha de seus representantes, o povo participa na decisão apenas indiretamente. Neste sistema, as decisões são sempre majoritárias e são ancoradas na racionalidade. Para esta perspectiva, o que é fundamental nas decisões, portanto, não é a participação direta do povo, mas o respeito desta dos direitos fundamentais de todos, isto é, dos direitos liberais básicos.
4. Obviamente, não é por acaso que os ditos direitos fundamentais são defendidos como invioláveis a todo ser humano nas sociedades atuais. Eles são as garantias de que ninguém sofrerá com arbitrariedades de seus governantes e de decisões majoritárias. Eles são, como diz Dworkin (2002, p. xv), nossos “trunfos políticos”. A defesa deles significa a defesa de nossa segurança jurídica. Eles representam, assim, um dos pilares de nossa sociedade e seu declínio representaria o fim do Estado de direitos, tão importante para nós. Não é o caso, portanto, de questionar sua necessidade, mas, quem sabe, sua suficiência. Será que não precisamos ampliar as garantias constitucionais para que realmente possamos considerar as sociedades democráticas liberais como justas e igualitárias? E mais, será que não temos de ampliá-las para que possamos considerar as sociedades liberais realmente democráticas? Verdadeiramente, não me sinto capacitado para dar uma resposta cabal a estas questões. Faço o que nos recomenda Rawls e recorro às nossas intuições gerais para indicar, a meu ver, um encaminhamento possível para elas. Neste sentido, parece-me que, algumas críticas direcionadas à concepção liberal da democracia são aqui pertinentes. Exponho a seguir três destas críticas que, apresento aqui como apontamentos, sem desenvolvê-las7. Passemos a elas. A primeira que gostaria de abordar é baseada em observações de Dwokin.
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Pretendi desenvolvê-las em minha dissertação, intitulada A igualdade na democracia liberal: uma análise da suficiência do liberalismo de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas, no cap. III. 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Como assevera este autor, caso queiramos uma democracia na qual todos os cidadãos efetivamente participem, deve-se incentivar o debate público. Desta maneira, o autogoverno da democracia precisa significar mais do que sufrágio universal e eleições frequentes, mas uma parceria de iguais, que refletem juntos sobre o bem comum. Há uma responsabilidade dos cidadãos pelo bom andamento da vida dos outros cidadãos. Assim, não é sem sentido dizer que, para este autor, dentro de uma comunidade política liberal deve-se buscar a promoção de meios decentes de vida para todos, incluindo dentre estes meios a participação nos debates das questões de sua sociedade. Segundo Dworkin, isso significa que, embora os indivíduos devam ter iguais direitos fundamentais garantidos através de uma constituição, um governo democrático não deve se reduzir a isso. Sob ele deve haver também uma preocupação por garantir que todos possam compartilhar das atividades políticas, isto é, que todos possam ter iguais oportunidades de ser ativos politicamente em sua comunidade. É importante comentar o fato de que Dworkin – assim como Rawls – separa as práticas políticas das outras práticas da vida, apesar de vincular uma à outra. Para ele, a vida coletiva da comunidade é apenas a sua vida política formal, não todas as atividades coletivas dos indivíduos. Assim, partindo da ideia de que o bem-estar de cada um provém do bemestar de sua comunidade política, ele defende que a melhor compreensão do governo democrático é aquela que, assegurando a inviolabilidade dos direitos fundamentais a cada um, possibilite ao povo agir em conjunto como parceiros plenos e iguais no empreendimento coletivo do autogoverno. Isso significa, para o autor, que suas instituições consideram cada cidadão como um membro ativo e igual: sendo, desta maneira, o povo, o governante; e os cidadãos, os juízes das competições políticas cujos veredictos, expressos em eleições formais, em plebicitos ou em outras formas de legislação direta, são normalmente decisivos […] [e, além disso,] participantes das competições políticas que julgam: são candidatos e correligionários, cujos atos ajudam, de diversas maneiras, a dar forma à opinião pública e a decidir o voto dos outros cidadãos (DWORKIN, 2005, p. 503).
Deste modo, conclui Dworkin (2005, p. 503), todos assumem “um papel, como parceiros iguais em um empreendimento coletivo, tanto na formação quanto na constituição da opinião pública”. As duas críticas seguintes, que me parecem pertinentes neste ponto, vêm de observações do comunitarismo de Walzer. Em primeiro lugar, como nos recomenda este autor (e outros comunitaristas), talvez numa constituição política que se pretenda realmente democrática seja preciso, em algumas ocasiões, olhar o indivíduo, atentando 67 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
para os grupos com os quais ele está vinculado, voluntária e involuntariamente. Afinal, é possível que o indivíduo só possa se emancipar, ou seja, só possa agir autonomamente seguindo a sua concepção sobre a vida digna, se antes o(s) grupo(s) do(s) qual(s) participa não seja(m) considerado(s) negativamente ou subalternamente dentro de sua comunidade política8. Talvez, então, seja necessário, em certos momentos, que o Estado intervenha e busque medidas que visem o fortalecimento (econômico, político etc.) de alguns grupos na sociedade. Se aceitarmos que o status de grupos estigmatizados precisa ser restabelecido para que os indivíduos associados a estes possam, de fato, ser considerados como cidadãos iguais aos outros, podendo, enfim, buscar realizar a sua concepção de bem, temos que aceitar que às vezes a ação não neutra do Estado em favor de tais grupos é essencial. Além disso, parece ser preciso considerar que há no debate público, como observa Walzer, mais do que agentes racionais insensíveis que, através de discussão e votação, resolvem os seus conflitos e discordâncias. Como diz Walzer (2008, p. 134), “a política tem outros valores além da razão, alguns dos quais, frequentemente, se encontram em tensão com ela: a paixão, o comprometimento, a solidariedade, a coragem e a competitividade”. Afinal de contas, nos debates políticos as pessoas normalmente já estão engajadas em suas posições, com convicções e interesses já estabelecidos. A racionalidade aparece como apenas mais um dos componentes do debate político. Assim, considerando que há nas democracias mais do que a deliberação racional, mas também a negociação, a influência, a persuasão, a pressão etc, parece difícil negar que o respeito a todos no exercício do poder político passará necessariamente pela publicidade das atividades em questão. Em outras palavras, seja qual for a atividade política, deliberativa ou não, ela deverá aparecer de forma clara e aberta, de modo que todo cidadão tenha igual oportunidade de e clareza ao participar do debate público, seja quem for, com os bens ou a formação escolar que tiver. Feitas estas observações, podemos agora dizer que a igual cidadania parece significar um pouco mais do que defesa a direitos individuais e a voto na escolha de representantes. Ela parece significar igual participação na vida pública, ou melhor, igual oportunidade de participação. Ao que parece, caso queiramos uma sociedade liberal que promova a igualdade política, não podemos abrir mão da importância da participação de
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Sobre isso Cf. Esferas da justiça, o artigo “The communitarian critique of liberalism” e também Política e paixão. 68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
todos na vida política da mesma, e até mais do que isso, não podemos abrir mão de que promover esta participação, criando mecanismos para tal seja papel do Estado, devendo este incentivar cada vez mais essa participação de todos nas várias decisões de sua sociedade. Afinal, mais interessante para os cidadãos talvez não seja igualá-los na capacidade de persuadir ou influenciar os outros, mas na possibilidade de participar da deliberação e oportunidade de influenciar os outros nos vários foros públicos. Portanto, tomando este entendimento, a igualdade política requer mais do que eleitores iguais, ela requer cidadãos iguais, que possam, além de votar, participar com voz ativa, como igualmente soberanos e juizes, na autodeterminação de sua sociedade. Em outras palavras, ela requer cidadãos que se compreendam como igualmente membros, usando os termos de Dworkin, de uma comunidade liberal. Um último comentário: ao que me parece aceitar estes reparos não solapa a teoria liberal, muito menos, a concepção rawlsiana. Ao contrário, na medida em que tais reparos visam justamente reforçar a autonomia individual, eles aprofundam as intuições mais fundamentais de igualdade e liberdade, pilares desta teoria,. Elas não evidenciam uma possível carência do liberalismo ou da teoria de Rawls, mas apenas certas noções já tocadas por ambos que talvez precisassem ser ressaltadas. Mas, o esclarecimento e a argumentação em favor dessa hipótese deixemos para uma próxima oportunidade.
Referencial bibliográfico: CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. COUTO, Leonardo. A igualdade na democracia liberal: uma análise da suficiência do liberalismo de John Rawls à luz de algumas críticas comunitaristas. 2010. 110f. Dissertação (Mestrado em filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. DIAS, Maria Clara Marques. “Perfeccionismo e o Princípio do Respeito Universal”. In: OLIVEIRA, Nythamar de; SOUZA, Draiton de. (Org.). Justiça e Política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 123-132. A versão utilizada foi a versão que está disponível em: <http://www.mariaclaradias.com/pdf/perfec2.pdf>. Acesso em: 13 jul. 2009. ______. Resenha de Justice as Fairness: a restatement de John Rawls. Publicações do Centro de Ética e Filosofia Moral. 2003. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/cefm/publicacoes/rawls.pdf> . Acesso em 02 de janeiro de 2010. 6 p. ______. “Uma concepção substantiva de justiça: das razões para o tratamento desigual em uma perspectiva moral universalista”. In: DALLÁGNAL, Darlei. (Org.). Verdade e
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Respeito: a filosofia de Ernst Tugendhat. Florianópolis: Edufsc, 2008, p. 132-150. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões e revisão técnica e da tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1986. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. Tradução de Luís Carlos Borges e revisão da tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2006. RAWLS, John. O direito dos povos: seguido de “A idéia de razão pública revista”. Tradução de Luís Carlos Borges e revisão técnica de Sérgio Sérvolo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. Justiça como equidade: uma reformulação. Organizado por Erin Kelly. Tradução de Cláudia Berliner e revisão técnica e da tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. ______. Justice as Fairness: a restatement. Edited by Erin Kelly. Harvard University Press, 2003b. ______. O liberalismo Político. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo e revisão de Álvaro de Vita. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 2000. ______. Political Liberalism. Columbia University Press, 2005. ______. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões, revisão da tradução e apresentação de Álvaro de Vita. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. WALZER, Michael. The communitarian critique of liberalism. Political Theory, v. 18, n. 1, p 6-23, Feb. 1990. ______. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução de Jussara Simões e revisão técnica e da tradução de Cícero Romão Dias Araújo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Política e paixão: rumo a um liberalismo mais igualitário. Tradução de Patrícia de Freitas Ribeiro e revisão da tradução de Fernando Santos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
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A CRÍTICA DE RICHARD RORTY À TEORIA DO CONHECIMENTO E UMA POSSIBILIDADE DE REDESCRIÇÃO Maria José Pereira Rocha* “Se não vivêssemos perigosamente [...] tremendo a beira dos precipícios, não estaríamos nunca deprimidos, estou segura disto, mas seríamos cinzentos, fatalistas e velhos”. (V.Woolf, Diário: 2 Agosto de 192)
Resumo: este artigo cumpre o propósito de expor a crítica de Richard Rorty à teoria do conhecimento e ao mesmo tempo tecer a possibilidade de uma redescrição nos moldes rortianos. A primeira etapa do texto pontua a crítica deste filósofo com base no livro A filosofia e o espelho da natureza. A segunda trata do pensamento de Rorty na ótica de alguns autores e, finalmente, na terceira, faz-se uma tentativa de redescrição com o foco no filme As Mil e Uma Noites. Palavras-chave: teoria de conhecimento, Richard Rorty, redescrição, cinema Abstract: This article accomplishes the purpose of exposing Richard Rorty's critique to the theory of knowledge and the same time to weave the possibility of redescription in the Rortianos molds. The first part of the text punctuates that philosopher's critique based in the book The philosophy and the mirror of the nature. The second deals with Rorty's thought from the perspective of some other authors, and finally in the third stage, there is an attempt to do "redescription" with the focus in the movie The Thousand and One Nights. Keywords:Teory of knowledge, Richard Rorty, redescription, movies
A trilha que quero seguir neste artigo se desenha com base em três traços, quais sejam: no primeiro, quero apresentar a crítica de Richard Rorty à teoria do conhecimento, tendo como referência o seu livro A filosofia e o espelho da natureza; no segundo, uma revisão sucinta do pensamento deste autor na concepção de vários autores; e, no terceiro, uma tentativa de uma redescrição nos moldes rortianos. Para começar, exponho uma breve biografia deste filósofo. Rorty nasceu em Nova York, em 1931, filho de pais considerados trotskistas e que admiravam o liberalismo social de Dewey. A referência teórica deste autor é o neopragmatismo *
Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Marília, São Paulo. Professora Adjunta no Departamento de Filosofia e Teologia da PUC-Goiás e no Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Serviço Social (PPSS-PUC-Goiás). Coordenadora da Rede Goiana de Pesquisa e Estudos de Gênero da Fundação de Amparo a Pesquisa de Goiás (Fapeg). Pesquisadora no Programa Interdisciplinar da Mulher – Estudos e Pesquisas (Pimep), no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Estado, Sociedade e Cidadania (Nupesc-SER – PUC-Goiás), inserida na Linha de Pesquisa Política Social, Movimentos Sociais e Cidadania, no Centro de Estudos em Filosofia Americana e no Núcleo de Investigação de Gênero (NIG) da UCG. Endereço eletrônico: maze@cultura.com.br. 71 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
americano. Sua história acadêmica pode ser resumida da seguinte forma: bacharelado e mestrado na Universidade de Chicago. Doutorado na Universidade de Yale, onde foi instrutor. Professor assistente no Wellesley College e na Universidade de Princeton. Foi professor na Universidade de Virginia e faleceu em 08 de junho de 2007. Seus livros mais conhecidos são: A filosofia e o espelho da natureza, Contingência, Ironia e solidariedade, Verdade e progresso, Pragmatismo e política, Ensaios pragmatistas e O futuro da religião. Rorty se descrevia como um liberal de esquerda, identificado com a social-democracia. Como filósofo, exercitou a liberdade de criar ou inventar melhores maneiras de viver e cultivou a coragem de desafiar os paradigmas de uma filosofia essencialista e apostou com criatividade no significado da contingência, ao propor tratar todas as abstrações e generalizações como produto do tempo e do acaso. Ao produzir A filosofia e o espelho da natureza, Rorty ensaia uma contundente crítica à teoria do conhecimento ao mostrar sua divergência com a tradição fundadora de Descartes e Kant (das quais a filosofia analítica é uma das derivações mais recentes) e a proposição de uma filosofia ‘edificadora’ de caráter hermenêutico, na qual se inserem Nietzsche, Dewey, Wittgenstein, Heidegger e Gadamer. Com essa proposta, ele rejeita que o conhecimento seja mero resultado de representação mental ou linguística da realidade (RORTY, 1995, p. 23). Nessa obra, Rorty procura deixar claro o seu rompimento com esse pensamento filosófico tradicional, indicando o que considera um erro de percurso ao afirmar que alguns pensadores estão preocupados com a diferença entre os seres humanos e outros seres e condensados em questões envolvendo a relação entre mente e corpo. Segundo ele, outros se referem à legitimação de reivindicações a conhecer e estão cristalizados em questões envolvendo os “fundamentos” do conhecimento. Desse modo, a filosofia como disciplina vê a si mesma como uma tentativa de ratificar ou de desbancar asserções de conhecimento feitas pela ciência, moralidade, arte ou religião (RORTY, 1995, p. 19). Rorty, na ampliação de sua crítica à tradição filosófica, assegura que “a filosofia pode ser fundamental com respeito ao resto da cultura porque a cultura é a reunião das asserções de conhecimento e a filosofia adjudica tais asserções”. Ela pode fazer isso porque compreende a fundamentação do conhecimento e encontra esses fundamentos num estudo do homem como conhecedor de “processos mentais” ou da “atividade de representação”, os quais tornam o conhecimento possível. 72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Nesse sentido, o autor insiste em que “conhecer é representar acuradamente o que está fora da mente; assim, compreender a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente é capaz de construir tais representações” (RORTY, 1995, p. 19). Ao aprofundar sua crítica, Rorty põe em relevo que “a preocupação central da filosofia é ser uma teoria geral da representação, uma teoria que dividirá a cultura nas áreas que representem bem a realidade, aquelas que não a representem de modo algum (apesar da pretensão de fazê-lo)”. Para corroborar esses argumentos, Rorty (1995, p. 20) renova ao dizer: Do século XVII, herdamos particularmente de Locke, a noção de uma ‘teoria do conhecimento’ baseada numa compreensão dos ‘processos mentais’. A herança continua no mesmo período com Descartes no que se refere a noção de ‘mente’ como uma entidade separada na qual ocorrem ‘processos’. No século XVIII Kant nos brinda a noção de filosofia como um tribunal da razão pura, sustentando ou negando as asserções do resto da cultura; mas essa noção Kantiana pressupunha aquiescência geral às noções lockeanas dos processos mentais e às noções cartesianas de substância mental.
Contrapondo a essas idéias, Rorty (1995, p. 144) informa que vai apoiar as afirmações comuns a Wittgenstein e Dewey de que para pensar no conhecimento como apresentando um ‘problema’, e mais, um problema sobre o qual deveríamos ter uma ‘teoria’, é preciso encarar o conhecimento como uma reunião de representações – uma visão de conhecimento que, tenho argumentado, era um produto do século XVII. A moral a ser extraída é que se esse modo de pensar em conhecimento é opcional, então a epistemologia também é, e também a filosofia como tem sido compreendida desde a metade do último século.
O filósofo em questão continua sua crítica ao afirmar que a epistemologia moderna é uma tentativa de legitimação das nossas pretensões ao conhecimento do que é real, mas também uma tentativa para legitimar a própria reflexão filosófica – um persistente exercício, entre muitas razões, uma vez que o início da nova ciência deu gradualmente conteúdo à noção de conhecimento obtido por interrogação metodológica da natureza. Um ponto forte que ainda se destaca na visão de Rorty (1995, p. 169) é quando ele declara:
O estágio seguinte é pensar que compreender como conhecer melhor é compreender como melhorar a atividade de uma faculdade quase-visual, o Espelho da Natureza, e assim pensar no conhecimento como uma montagem de representações exatas. Então vem a idéia de que o modo de ter representações exatas é encontrar, dentro do Espelho, uma classe privilegiada especial de representações
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tão compulsivas que sua exatidão não possa ser posta em dúvida. Esses fundamentos privilegiados serão os fundamentos do conhecimento e a disciplina que nos dirige para elas – a teoria do conhecimento – será o fundamento da cultura. A teoria do conhecimento será a busca por aquilo que compele a mente a crer tão logo algo é desvelado. Filosofia – enquanto – epistemologia será a busca pelas estruturas imutáveis dentro das quais conhecimento, vida e cultura devem ser contidos – estruturas colocadas pelas representações privilegiadas que estuda. O consenso neokantiano aparece assim como o produto final de um desejo original de substituir confrontação por conversação como determinante de nossa crença.
Nessa ótica, Rorty vê a epistemologia associada a uma imagem da estrutura da mente exercitando no conteúdo empírico para produzir em si mesma elementos, pensamentos, representações de que, quando as coisas vão bem, espelham corretamente a realidade. Porém, Rorty considera que (1995, p. 176) O ponto crucial desse argumento é que compreendemos o conhecimento quando compreendemos a justificação social da crença e, assim, não precisamos encará-lo como exatidão de representação. Uma vez que a conversação substitui o confronto, a noção da mente como Espelho da Natureza pode ser descartada. Então a noção de filosofia como a disciplina que procura as representações privilegiadas entre aquelas que constituem o Espelho torna-se ininteligível.
Amparado pelas críticas de Quine e Sellars aos mitos e dogmas, Rorty (1995, p 176) propõe, que “Se vemos o conhecimento como uma questão de conversação e de prática, antes que uma tentativa de espelhar a natureza, não seremos passíveis de visualizar uma metaprática que será a crítica de todas as formas possíveis de prática social”.
O Pensamento de Rorty na Concepção de Outros Autores
Para expor os argumentos centrais da filosofia rortiana, recorre-se ao A filosofia e o espelho da natureza (RORTY, 1995), ao dossiê Richard Rorty e a filosofia da educação (1997), A filosofia e o futuro (1997), assim como aos artigos de Costa (1995) e Soares (1997). O projeto rortiano pode ser dividido em Descrição de Rorty acerca dos seres humanos, Da subjetividade e Estratégias redescritivas. O novo modelo de subjetividade desse autor segue duas etapas estratégica, sendo a primeira resultante da aplicação de seu holismo e a segunda, da sua adoção do ponto de vista da terceira pessoa. O indivíduo humano, imerso completamente no natural, é observado pelo seu comportamento. As estratégias redescritivas – a redescrição – consistem numa tarefa de imaginação, ou seja, redescrever a nós, aos outros e ao mundo. A proposta de Rorty é de uma filosofia com ‘f’ e não uma Filosofia com ‘F’. 74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Trata-se de uma filosofia que a educação e a política podem utilizar para construir uma retórica destinada a convencer, e não a forçar as pessoas. O objetivo desse autor segundo Ghiraldelli (1997.p.30), é advogar a idéia de que os grupos oprimidos da sociedade só podem melhorar sua situação à medida que forem capazes de ter sobre si mesmos o que ele chama de autoridade semântica para poder inventar uma nova identidade moral para si mesmo.
Com vistas a subsidiar apresentação dos argumentos
da filosofia
contemporânea de Rorty, expõe-se a seguir as reflexões de Costa e Soares sobre o pensamento do autor em questão. De acordo com Jurandir Freire Costa (1995, p.5-15), Rorty redescobriu o pragmatismo filosófico da cultura norte-americana. Fez suas as máximas de William James e Wendell Holmes: onde encontrar uma contradição, faça uma redescrição, a vida antes de ser lógica é experimento. Ainda segundo Costa, as idéias de redescrição e experimento transformaram-se no centro do seu pensamento e o alvo principal dos adversários. Redescrição e experimento são apenas maneiras de afirmar que não podemos garantir que problemas e soluções atuais que estavam prontos ou podiam ser previstos no começo dos tempos ou no passado remoto da cultura. Isto não significa desconhecer o peso do passado como causa do presente. Significa que só podemos ver a marca do passado no presente quando dispomos de uma teoria de verdade que mostra a marca como causa ou razão do que importa discutir (1995, p. 5-15).
Para Costa, referindo-se a Rorty, só existem eventos sob descrição. É a descrição preferida do intérprete que será a mais adequada às suas convicções éticas e não a mais iluminada pela razão (p.5-15). Sendo assim, ele observa que agimos eticamente porque experimentamos saídas para dilemas, conforme uma dada tradição moral, e não porque conhecemos o lugar onde as palavras soldam-se ao supremo Bem (p.5-15). Costa, analisando as conseqüências do neopragmatismo, destaca que o valor da teoria não deriva exclusivamente de seu conteúdo, mas do uso feito na prática. Soares (1997), por sua vez, ao analisar o pensamento de Rorty, no artigo A revolução americana, considera que o alvo a que se dirige a crítica de Rorty são as filosofias da representação, fundacionalistas ou essencialistas, que pensam o conhecimento como correspondência à realidade e restauram, sucessivamente, ao longo dos séculos, a metafísica dos dualismos (universalismos-relativismos; objetivismo-subjetivismo; racionalismo-irracionalismo etc.) (p.5).
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Esse autor diz que, para Rorty, o conhecimento não serve aos seus propósitos práticos porque é verdadeiro, mas que, ao contrário, dele dizemos ser verdadeiro porque serve aos nossos objetivos, funciona no contexto de metas e práticas em que o adotamos e o fazemos operar. A verdade, como os juízos éticos e estéticos, é um produto precário e provisório dos debates e embates tensos, agonísticos e incessantes, de atores históricos concretos, em contextos sociais determinados. Ainda segundo Soares (1997) Rorty reiventa, ao elaborar seu discurso crítico, uma tradição – o pragmatismo– cujos pais fundadores foram William James, Charles S. Pierce e John Dewey. Na nova descrição da história da filosofia proposta por Rorty, ele incluirá, por um lado, autores provenientes de tradições diversas, como Sellars, Davidson, Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein, por outro Quine, John Stuart Mill, Foucault e Derrida. Em outro artigo, Costa (1997) acentua que Rorty renova o interesse pelo pragmatismo de James e Dewey sublinhando a concepção darwinista do sujeito e da linguagem. Considera ainda que ele propõe uma ‘teoria causal’ do conhecimento. Afirma que conhecer não é ‘representar’ alguma coisa para algo, pessoa ou função cognitiva. Mas, conhecer é lidar com informações ambientais que afetam os organismos. Lidar com informações significa alterar o estado de equilíbrio anterior à afetação, tendo ou não por finalidade a ‘adaptação’, que é um produto secundário da mutação ocasional do patrimônio genético ou da reação experimental do organismo vivo às exigências do meio. O conhecimento, portanto, é ‘causado’ por esta constante interação organismo/meio e o sujeito, um dos efeitos linguageiros dessa interação, sendo que todo conhecimento do que julgamos saliente e importante conhecer é contextual e relacional. O sentido dos termos, desta forma, está no uso que fazemos deles, em contextos sócio-culturais (1997, p.5-6). Por fim, para a filosofia pragmatista frutificar tem que existir campo fértil para a polêmica, para o exercício da reflexão crítica e para a proliferação de projetos democráticos. O Pragmatismo é uma filosofia que, mesmo momentaneamente derrotada por absolutismos de qualquer espécie, por atos de força ou por adversários intelectuais, resiste, pois sua contribuição consiste em dar vida a polêmicas que buscam transformar o mundo por intermédio da inteligência, sem o que a humanidade torne-se menos humana.
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Uma possibilidade de redescrição Para o último tópico da minha proposta nesse artigo a minha intenção é lançar mão das estratégias redescritivas de Rorty como ferramentas para expor a crítica do autor e concomitantemente realizar um exercício de redescrição. Nesse sentido, o que narro faz parte dessa tentativa de explorar alguns exemplos. Passei por várias etapas nesse processo de redescrição que relato a seguir: Há muitos dias venho tentando escrever este texto, leio, reflito, falo com as pessoas e pouca inspiração aparece que me satisfaça. Depois do cansaço diário dormi preocupada com o tempo e o texto. Este passa e nada surge que me ajude a iniciar o meu processo criativo. Percebo que meu dilema é grande. Eis que nessa madrugada, numa fração de segundos, sonho com a imagem de um slide com formato de uma peça de quebra-cabeça no qual estava um texto escrito em vermelho, azul e preto. No sonho aparecia um grande tabuleiro e nele as peças se encaixavam perfeitamente. Ao observar essa cena percebi, ainda no sonho que ela condizia perfeitamente com as idéias que quero desenvolver nesse artigo. A imagem remetia a uma história, um fato, uma proposta dentro de outra história, um conhecimento dentro de outro conhecimento. Acordei e meus pensamentos pareciam um redemoinho de idéias. Pensei no computador como veículo e arquivos infinitos organizados com pastas e links diversos. Nesse exercício de construção me veio também a lembrança da figura da boneca russa com seus múltiplos encaixes. A boneca é uma figura que ao ser aberta se mostra oca e ao mesmo tempo revela outra figura inteira de tamanho menor com as mesmas características da anterior que novamente e sucessivamente revela esse jogo do vazio e do cheio. A outra conexão importante que quero mencionar é mensagem do livro Meu nome é vermelho no qual as narrativas vão se encaixando e formam outras histórias. Todas essas conexões me fizeram enxergar que tinha imagens preciosas e estas me davam a possibilidade de refletir e pensar a teoria do conhecimento nos moldes que Rorty propõe. Ou seja, por meio das estratégias redescritivas. A sensação era de alívio ao sentir com clareza que podia tecer todo esse processo de conhecimento de uma maneira inusitada. Imagens que estão aí na mente ou não e são apropriadas e dão origem a outras articulando coisas jamais pensadas. 77 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Penso em vários objetos que facilitam e embelezam nossas vidas: o radio, o cinema, os discos, o computador, a internet, o telefone, o celular. Quantas histórias, teorias, cálculos, estratégias e investimentos foram utilizados para que pudéssemos estar em condições de continuar forjando outras ligações epistemológicas improváveis como estas que agora mencionei. Nesse processo de elaboração e reflexão em que desejo articular a crítica de Rorty e a aposta na redescrição, por acaso descobri um outro livro intitulado: O livro dos abraços de Eduardo Galeano. Surpreendentemente ao folheá-lo encontrei a seguinte história: Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido. Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelolimao ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...
Rorty (2009) fala das disputas entre a filosofia e poesia, e, na sua concepção, as estratégias de autodescrever de modo diferente é uma tarefa dos grandes poetas. O poeta forte é aquele que quebra, inventa vocabulários novos, e, dessa maneira, tem uma liberdade maior e, como autor, produz com sua narrativa uma sensibilidade que o leitor não possuía. Sob a égide desse argumento, ele aponta o caminho da narrativa, da imaginação e da redescrição. Em fina sintonia com o pensamento rortiano, outra ferramenta que auxilia e se articula com o que já foi mencionado é o enredo do filme ‘As mil e uma noites’, que cintila com a promessa de usar a palavra para obter a abertura de uma passagem para um lugar ou para a vida. As narrativas de As mil noites se referem a uma antiga tradição que conta como o rei Sheriyar ao descobrir que sua mulher o traía com um escravo cada vez que ele viajava, mata a ambos e convencido de que nenhuma mulher no mundo é digna de confiança, desposa a cada noite uma e depois de satisfeito os ‘prazeres do corpo’, manda executá-las. Sherazade, filha do vizir, diz ao seu pai que deseja ser esposa do rei e se mantém firme mesmo diante dos seus apelos que, desesperado tenta dissuadi-la do que seria morte certa. Ela tinha planos para convencer o rei e se safar da morte. 78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Sherazade estava acostumada a ouvir histórias no mercado e se surpreendia com a habilidade do ‘contador’. Essa imagem fica evidenciada na segunda cena do filme quando este termina sua história, ela paga e se aproxima. O contador lhe pergunta: ‘aqui de novo senhorita?’ -as pessoas ficam horas ouvindo-te e isso é um milagre! -as pessoas precisam mais de palavras que de alimento. Elas nos contam como viver e por quê. Em outra cena a filha casa-se com o rei e na primeira noite em que dorme com ele, põe em ação uma sábia estratégia: contar histórias para passar a noite em vigília. Quase tudo dá errado e por pouco ela não foi sacrificada. Diante dessa dificuldade na 5ª cena ela novamente procura o ‘contador de história’ e pede ajuda relatando o que tinha acontecido. Ele lhe diz: - Eu conto histórias diferentes... Mas, se o público não interessa... Eles vão embora. Mas, se o seu público não se interessa... Você morre. Ela comenta: - achei que seria fácil, mas não foi. Eu me perdi antes de começar. Ele retruca: - eu já disse que os primeiros momentos são vitais. Ela continua: eu parei numa boa parte... com os ladrões entrando em Damasco, para matar Ali Babá. Então ele pergunta: - entrando como? Ela responde: numa carroça. Ele – muito comum. Tem de ser algo mais exótico. Comece a história de novo. Prenda a atenção do público de novo. Ela –como? Ele – eu andava ontem à noite... na rua dos Suspiros...exatamente após o pôr-do-sol... Quando fiquei frente a frente... Com a morte. Sherazade pergunta: - ela veio buscá-lo? Ele lhe responde com outra pergunta. - Viu? Você se interessou. Ela retornou ao Palácio colocando em prática o que aprendeu. A continuação na cena 16 ela enfatiza que: ‘ o contador de histórias sempre disse: ‘histórias podem nos salvar! O que ele quis dizer foi ...elas podem nos salvar se usarmos nossa imaginação’. A frase narrada por Sherazade pode ser considerada a fonte que origina os liames que provoca a
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ousadia de unir a imaginação, redescrição e a esperança de forjar possibilidades de criar liberdades jamais sonhadas. Percebe-se na argumentação de Rorty que a palavra assume uma importância primordial na vida do ser humano. Ela pode ter um poder mágico que altera situações como nas narrativas de Sherazade (As mil e uma noites), que utiliza a curiosidade masculina para livrar-se da morte inventando histórias que deixam o sultão curioso e sentindo um imenso prazer ao ouvir as narrativas bem contadas pela sultana, que cria, por meio das palavras, um mecanismo que consegue o adiamento da sua execução. O uso da palavra alterou o comportamento do rei, e novas histórias foram tecidas.
REFERÊNCIAS AS MIL E UMA NOITES. (versão de) Antoine Gallard; Tradução Alberto Diniz; apresentação de Malba Tahan. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. AS MIL E UMA NOITES. Direção: Steve Barron. Elenco. Mili Avital, Rufus Sewell, Jason Scott Lee. EUA, 2000. Duração: 150min. Gênero: Aventura. COSTA, Jurandir Freire. A habilidade natural. In: Caderno Mais! Folha de São de Paulo, 12 de Outubro de 1997. P. 5-15. _______. O interesse de Richard Rorty. In: Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 21 de maio de 1995, p.5-15. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Trad. Eric Nepomuceno. 9ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p. GHIRALDELLI JR., Paulo Richard Rorty. A filosofia do novo mundo em busca de mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999. 127p. _______. Filosofia da educação. {o que você precisa saber sobre...} Rio de Janeiro: ed. DP&A, 2000. 108p. SOARES, Luiz Eduardo. A revolução americana. In: Caderno Mais! Folha de São de Paulo, 12 de Outubro de 1997. p.5 RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Trad. Antonio Trânsito; revisão César Ribeiro de Almeida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. p.193. _______. Filosofia como política cultural.Tradução João Carlos Pijnappel. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 335.
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Tradução
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ARTE E RELIGIÃO1 Richard Shusterman2 Tradução de Inês Lacerda Araújo I
A arte emergiu em tempos antigos do mito, da magia e da religião, e desde então ela mantém seu poder arrebatador por meio de sua aura sagrada. Como objetos de culto de adoração, as obras de arte tecem uma extasiante magia sobre nós. Apesar de contrastarem com as coisas reais cotidianas, seu vívido poder experiencial produz um senso elevado do real e sugere realidades mais profundas que as transmitidas pelo senso comum e pela ciência. Enquanto Hegel via a religião como substituindo a arte na evolução do Espírito em direção a formas mais altas que culminam no conhecimento filosófico, artistas subsequentes do século XIX, ao contrário, viam a arte como substituindo a religião e até mesmo a filosofia como a culminação da busca espiritual do homem contemporâneo. Mentes artísticas tão diferentes como Matthew Arnold, Oscar Wilde e Stéphanne Mallarmé predisseram que a arte iria suplantar a religião tradicional como o lócus do sagrado, do mistério que enleva e do significado consolador em nossa sociedade cada vez mais secular , dominada pelo que Wilde condenava como um lamentável “culto dos fatos” 3. Expressando “o sentido misterioso... da existência, [a arte] reveste nossa jornada de autenticidade e constitui a única tarefa espiritual” defende Mallarmé 4.” Cada vez mais, escreve Arnold, “a humanidade irá descobrir que nos voltamos para a poesia para interpretar a vida para nós, para nos consolar, nos sustentar. Sem poesia a nossa ciência parecerá incompleta; e a maior parte daquilo que tomamos
1 Originalmente publicado como “Art and Religion” In: The Journal of Aesthetic Education. Vol.42, N.3, Outono 2008, pp. 1-18 (Artigo) Publicação da University of Illinois Press. 2 Richard Shusterman é Dorothy F. Schmidt Eminent Scholar in the Humanities at Florida Atlantic University. Seus mais recentes livros são Body Consciousness: A Philosophy of Mindfulness and Somaesthetics (Cambridge University Press, 2008). Outras obras de sua autoria são Surface and Depth (2002), Performing Live (2000), Practicing Philosophy (1997) e Pragmatist Aesthetics (1992, 2000, livro traduzido vinte idiomas). Ele editou Analytic Aesthetics (1989), Bourdieu: A Critical Reader (1999) e The Range of Pragmatism and the Limits of Philosophy (2004) e co-editou Aesthetic Experience (2008). 3 Oscar Wilde, “The Decay of Lying” In: Complete Works of Oscar Wilde (New York: Barnes and Noble, 1994), 973. 4 Stephan Mallarmé, Message Poétique du Symbolisme (Paris : Nizet, 1947), 2 :321. 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
como religião e filosofia será substituída pela poesia”.5 Tais profecias foram em grande parte concretizadas. Na cultura ocidental do século XX, as obras de arte se tornaram a coisa mais próxima que temos dos textos sagrados, e a arte quase parece uma forma de religião com suas castas proféticas de artistas criativos fornecendo novos evangelhos e sua classe clerical de críticos que os explicam ao público devoto. Apesar do amplo reconhecimento de que a arte tem um importante aspecto comercial, a arte preserva sua imagem cultural como um domínio essencialmente santificado de valores espirituais mais altos, por detrás do terreno da vida material e da práxis. Suas relíquias adoradas (mesmo com esforços para ser profana) são consagradas em museus que parecem templos que visitamos como se fosse um dever para a edificação espiritual, do mesmo modo como devotos religiosos desde há muito frequentam igrejas, mesquitas, sinagogas e outros santuários de adoração. Preconizando uma estética pragmatista, eu critiquei essa religião transcendente da arte porque o modo como ela foi moldada por mais de dois séculos de ideologia filosófica moderna visou empobrecer a arte consignando a ela um mundo imaginário irreal e despropositado. Tal religião, eu tenho argumentado, é a inimiga da busca do pragmatismo por uma integração entre arte e vida, uma demanda exemplificada tanto pela noção ocidental clássica de arte de viver e por algumas tradições artísticas asiáticas, nas quais a arte é menos apreciada como criação de objetos do que o processo de refinamento do artista que cria e da audiência que absorve essa expressão criativa6. Há uma boa razão, entretanto, para explicar porque essa sacralização da arte pôde permanecer um apelo tão poderoso apesar do amplo reconhecimento das dimensões mercantis da arte e de interesses mundanos. A razão, eu creio, é que a arte expressa significados muito profundos e insights espirituais que a religião e a filosofia no passado mais poderosamente proporcionaram, mas que hoje não mais transmitem de modo convincente para grande parte das atuais populações mundo afora. Assim, neste ensaio, eu gostaria de reconsiderar o nexo entre arte e religião por um ângulo diferente. Desejo explorar a ideia de que a arte fornece um substituto útil e mesmo superior ao da religião, que é livre das desvantagens desta última e que devem ser buscados com vigor 5 Matthew Arnold, “The Study of Poetry”, in The Portable Matthew Arnold, ed. L. Trilling (New York: Viking, 1949), 300. 6 Elaborei esses objetivos pragmatistas com bastante detalhe em Pragmatist Aesthetics: Living Beauty, Rethinking Art (Oxford: Blackwell, 1992, 2d ed., New York: Rowman and Littlefield, 200); Practicing Philosophy: Pragmatism and the Philosophical Life (New York: Routledge, 1997); Performing Live (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2000); e Surface and Depth (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2002. 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
como uma alternativa que poderia eventualmente livrar nosso mundo transcultural de separações hostis e levar a abandonar as atitudes que as religiões inspiraram, e, assim nos levar a maior compreensão, paz e harmonia. Mas uma hipótese contrária, ainda que igualmente interessante, requer consideração: que a arte não pode ser separada da religião, que antes do que uma alternativa real, a arte é simplesmente outro modo ou expressão da religião. Ora, para pôr isso em uma sugestiva paráfrase provocadora, a arte é simplesmente a continuação da religião por outros meios. Se essa hipótese tem mérito – de fato, mesmo se houver simplesmente alguma ligação profundamente indissolúvel entre arte e religião – então não podemos simplesmente olhar progressivamente a religião passada em direção à arte. Pois nossa filosofia da arte será vista como expressando a metafísica e as ideologias geradas por uma visão de mundo religiosa, que então formata indiretamente (se não também diretamente) nossa filosofia estética, mesmo se não estivermos conscientes dessa influência religiosa ou que neguemos o real crédito à religião em questão. Para sustentar este ponto mais concretamente eu tomarei mais adiante dois exemplos que mostram como e quanto diferentes metafísicas da religião geram diferentes filosofias da experiência estética e da relação da arte com a vida.
II
Antes de voltar nossa atenção mais detidamente para a promessa espiritual e para os caminhos da religião e da arte, permitam-me dispor brevemente da filosofia. Por meio de sua moderna profissionalização e consequente desejo de ser científica, a filosofia tem em grande medida renunciado à busca de um reino difuso de sabedoria e espiritualidade tingida pela emoção. Ela prefere, pelo menos em sua forma dominante, manter o status de conhecimento rigoroso e objetivo, explorado por meio de uma atitude fria de análise crítica caracterizada por uma “secura” mortal (como Iris Murdoch e outros a descreveram)7. Embora sentimentos de sabedoria e espirituais ainda encontrarem expressão poderosa na religião, sua conexão íntima com o sobrenatural e com a fé 7
Ver “Against Dryness” (1961) de Iris Murdoch, publicado novamente em Existentialists and Mystics (London: Chatto and Windus, 1997). Richard Rorty confirma sua descrição do desejo da filosofia analítica de ser “puramente científica” em “The Inspirational Value of Great Works of Literature”, in Achieving our Country (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998), 129. Arthur Danto descreve de modo similar a filosofia contemporânea (na escola analítica dominante que ele representa e favorece) como profissionalmente “fria” e distante das questões de sabedoria; ver seu The Abuse of Beauty (Chicago: Open Court, 2003), xix; cf. 20-21, 137 (em seguida citada entre parêntesis no texto como AB). 84 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
teológica dogmática quanto a verdades sobre a criação do mundo, que foram desacreditadas de modo definitivo pela ciência moderna, fizeram da religião uma opção inconvincente para a maior parte dos intelectuais ocidentais. Além disso, a terrível e triste história da discriminação religiosa, a intolerância, perseguição e mesmo as cruzadas e seu perverso estado de guerra, tornaram mais difícil para muitas pessoas abraçar a religião como sua fonte de edificação e de salvação espiritual. Isso nos deve recordar que há um novo problema com a religião em um mundo globalizado e cada vez mais firme e explosivamente interligado. Religião (cuja etimologia latina, religare, realça seu papel de reunir, atar e juntar) tem sido reconhecida por sociólogos como fornecendo a liga essencial para a unidade social em sociedades tradicionais. Mas há pouca dúvida de que essas pluralidades e seitas divididas têm produzido enorme divisão e desunião, combinadas com fanatismo e intolerância que ameaçam explodir o mundo em vez de conduzi-lo como um todo. O assim chamado choque das civilizações que em nossos dias é tão abertamente anunciado é em grande medida um eufemismo para o choque enraizado em diferentes perspectivas religiosas, grosso modo aquela entre judeus/ cristãos ocidentais e o islamismo, a última das grandes religiões monoteístas que emergiram da fértil espiritualidade do Oriente Médio. Mesmo no seio da própria civilização religiosa, região, tempo e religião significa o mesmo que dissenso raivoso tanto quanto assegurar coesão harmoniosa. Eu testemunhei essas guerras internas religiosas como estudante em Jerusalém, onde fui com frequência ultrajado e apedrejado por judeus ortodoxos fanáticos. Mas isso nada é em comparação com o atual trágico derramamento de sangue entre muçulmanos sunitas e xiitas no Iraque. Finalmente, os distintos e ascéticos alcances das demandas da maioria das religiões, com seus preceitos estritos e restritivos são quase sempre acompanhados por terríveis ameaças de severos (e mesmo eternos) castigos pela desobediência, dificilmente atraem sensibilidades contemporâneas que parecem muito mais inclinadas à liberdade de cabeças abertas na busca pela felicidade, inclusive a busca por prazeres sensuais. A arte, em contraste, parece ser livre dessas desvantagens, por isso promete modos mais frutíferos e satisfatórios de expressão de sabedoria e significado espiritual, repleta de prazeres sensoriais, emocionais e intelectuais. Ela provê as alegrias do mistério e do mito sem compromisso com a fé em superstições e desse modo induz o gosto amargo da vergonha que nossa consciência científica experimenta de modo semelhante com tentativas de engolir crenças por todos desacreditadas. Como Arnold 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
por isso mesmo argumenta, a arte está onde nossa raça humana evoluída intelectualmente encontrará uma morada cada vez mais segura. Não há um credo que não seja abalado, nenhum dogma objeto de crença que não se mostre questionável e nenhuma tradição recebida que não esteja ameaçada de dissolução. Nossa religião se materializou no fato, no suposto fato; ela ligou sua emoção ao fato, e agora o fato a decepciona. Mas para a poesia a ideia é tudo ... A poesia liga sua emoção à ideia; a ideia é o fato. A parte mais forte de nossa religião hoje é sua poesia inconsciente.8
Não só poetas, mas também filósofos advogaram de modo parecido que a arte subsume o papel da religião. G. E. Moore, um dos fundadores da filosofia analítica e da inspiração filosófica do círculo estético de Bloomsbury, escreveu em 1902 que “A religião [é] meramente uma subdivisão da Arte”, pois “cada desígnio válido a que a religião serve, também é servido pela Arte”, enquanto “a Arte talvez sirva mais” uma vez que “sua disposição de objetos bons e de emoções é mais ampla” 9. A ideia de que a arte provê uma alternativa mais ampla e mais convincente para a religião foi reafirmada recentemente por filósofos seculares famosos como o pragmatista Richard Rorty. Ao rejeitar a religião como um “obstáculo à conversação”, Rorty defende “o valor inspirador das grandes obras da literatura”, proclamando “a esperança por uma religião da literatura, na qual obras da imaginação secular tomariam o lugar das Escrituras como principal fonte de inspiração e esperança para cada nova geração”. A esta religião artística ele chama uma “religião ateia”. Como pluralisticamente liberal, ela não exigiria um comportamento coercivo na esfera pública, mas apenas para consolar a nós, indivíduos, “em nossa solidão” nos conectando com algo muito maior e mais inspirador além de nós – o mundo maravilhoso da grande arte – ao guiar nossos esforços em direção de realização tanto em nossa perfeição privada quanto em uma bondade amorosa para com nossos semelhantes10. Se a religião da arte de Rorty parece ser claramente privada, é fácil encontrar pensadores da estética que insistem no essencial papel público da arte para a unidade social, incluindo o herói pragmatista de Rorty (e meu), John Dewey. Descrevendo a arte como “o refazer da experiência da comunidade na direção de maior ordem e unidade”, Dewey vai mesmo até o ponto de sugerir “que se alguém puder controlar as canções de 8
Arnold, “The Study of Poetry”, 299. G. E. Moore, “Art, Moral, and Religion”, um artigo não publicado de 1902 citado no estudo biográfico sobre Moore de Tom Regan, intitulado Bloomsbury’s Prophet (Philadelphia: Temple University Press, 1991), 70. 10 Richard Rorty, “Religion as Conversation Stopper”, in Philosophy and Social Hope (New York: Pengui, 1999), 118-24; Achieving our Country, 125, 132, 136. 86 9
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uma nação, não se precisaria preocupar-se com quem faz suas leis”11. A arte desde há muito tempo tem sido celebrada pelo poder que tem sua expressão comunicativa de unificar e harmonizar, que une as mais diversas audiências em um todo vertiginoso. Recordemos o preito de Friedrich Schiller de que a arte por meio de seus prazeres de gosto “traz harmonia à sociedade, porque ela alimenta harmonia no indivíduo”. “Todas as outras formas de percepção dividem o homem” por ressaltarem expressamente seja o sensual, seja o intelectual, enquanto a percepção estética os combina harmoniosamente. “Todas as outras formas de comunicação dividem a sociedade” ao apelar para diferenças, ao passo que a arte “com seu modo estético de comunicação une a sociedade porque ela relaciona o que é comum a todos”12. Xunzi já usou o mesmo argumento há dois mil anos atrás na China, a respeito da música (lá criada para incluir também a dança e a canção poética): “Quando a música é executada ... o humor sanguíneo se torna harmonioso e em equilíbrio ... O mundo todo se faz tranquilo e se deleita com ambos, a beleza e a bondade ... Então a música é a mais perfeita maneira de proporcionar ordem aos homens ... [por que ela] reúne o que é comum a todos”
13
. E, por ventura não
estamos testemunhando um mundo da arte internacional no qual fronteiras nacionais e culturais são continuamente atravessadas em trocas amigáveis de compreensão criativa em vez de armas de destruição? É claro, nós devemos também compreender que o mais profundo da arte não é isento de divisões fracionadas, fanatismos e intolerância. Além disso, conflitos entre proponentes da elite e da arte popular (que eventualmente, como nos levantes da Praça Astor em Nova York, até mesmo culminaram em real derramamento de sangue), há frequentemente feroz rivalidade e críticas duras entre diferentes estilos artísticos – o cisma dos “ismos”. Tais disputas, entretanto, raramente acabam em violência física ou dano cultural. De fato, pode-se argumentar que isso produz um estímulo para a criatividade. Uma forma da divisão opressora da arte, mais prejudicial e compreensiva, mas por vezes menos visível, se dá quando o conceito de arte historicamente dominante coloniza as diferentes formas de arte que não parecem seguir aquele conceito paradigmático. Meus colegas japoneses me informaram que isso ocorreu no período 11
John Dewey, Art as Experience (Carbondale: Southern Illinois University Press, 1986), 87, 338 ; Freedom and Culture, in Later Works, vol. 13 (Carbondale: Southern Illinois University Press, 1991), 70. 12 J. C. F. Von Schiller, Letters on the Aesthetic Education of Man, trad. E. M. Wilkinson and L. A. Willoughby (Oxford: Oxford University Press, 1983), 215. 13 Trad. de John Knoblock, “Discourse on Music”, In: Xunzi (Stanford: Stanford University Press, 1980), 3:84. 87 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
Meiji, quando a concepção ocidental de arte era tão coercivamente auto-imposta na cultura japonesa, que suas artes tradicionais (tal como a cerimônia do chá e a caligrafia) foram desclassificadas como categoria de arte – geijt-su – e rebaixadas a meras práticas culturais, ou o que é chamado de geidoh – literalmente modos culturais14. Claramente, neste caso um conceito particular hegemônico de arte provocou um muito penoso dano cultural, o qual atualmente, felizmente, vem sendo corrigido. Mas fica claro que os danos da intolerância e conflito artísticos são infinitesimais em comparação com devastações causadas pela religião. Há muitas coisas maravilhosas com relação à religião. Sem o seu trabalho positivo no passado, é difícil acreditar que a humanidade teria desenvolvido o nível de moralidade, racionalidade, amor, coerência comunicativa, riqueza emocional, grandeza imaginativa e criação artística que nós atingimos. O argumento de que a arte substitua a religião baseia-se em que a arte sustenta aspectos válidos da religião enquanto minimiza ou redime os maus. John Dewey, por exemplo, longe de propor a arte como substituto da religião, mesmo assim argumenta que a religião precisa de um processo de purificação pelo qual seu “conteúdo ético e ideal” seja separado de sua danosa conexão com a crença em um “Ser Sobrenatural” e com as ideologias em geral insossas e ultrapassadas, com práticas sociais, formas rituais de culto que são simplesmente o “irrelevante” acréscimo das “condições da cultura social na qual” as várias religiões tradicionais emergiram. (Pois ele reconhece que “não há tal coisa como uma religião no singular”15). Dewey então recomenda que nós distingamos e preservemos o que ele chama de “o religioso”, em contraste com religião no sentido concreto tradicional. Ele define o religioso como uma experiência ou atitude “que tem a força de conduzir para um ajustamento na vida melhor, mais profundo e duradouro”, que é “mais aberto, está sempre à mão e é mais satisfatório” que o estoicismo e “mais ativo” do que a simples submissão (CF 11-13). Além disso, ao afirmar que “toda atividade seguida em prol de um fim ideal contra obstáculos e apesar de ameaças de perda pessoal devida à convicção de seu valor geral e durável, é religiosa em termos de qualidade” (CF 19), Dewey nota que o artista (juntamente com outros tipos de inquiridores comprometidos) usa de tal atividade.
14
Ver Aoki Takao, “Futatsu no Gei no Michi [Douas Espécies de Arte]: Geidoh and Gejutsu, Nihon no Bigaku [Aesthetics of Japan] 27 (1998): 114-27. 15 John Dewey, A Common Faith (Carbondale: Southern Illinois University Press, 1986), 3, 6-8 (citado daqui em diante no texto entre parêntesis como CF). 88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
De fato, ao fazer sua hipótese com relação ao religioso como sendo um compromisso com os ideais e propósitos da vida, Dewey apela para a identificação de Santayana da imaginação religiosa com o artístico. “Religião e poesia” escreve Santayana, “são idênticas em essência e diferem meramente no modo como se ligam com assuntos práticos. A poesia é chamada religião quando intervém na vida, e a religião, quando ela simplesmente se sobrepõe sobre a vida, é vista como nada mais do que poesia”16. A conclusão que Dewey quer tirar disso, entretanto, é que a imaginação poética, com sua “função moral ... com relação ... aos ideais e propósitos da vida” (CF 13), não deveria ser um mero acréscimo da arte como algo divertido e compartimentado, em prol da arte, mas sim uma força formadora ao tornar a vida pública e social, tanto quanto a experiência privada, mais bela artisticamente e compensadora. Em suma, Dewey sustenta o ideal pragmatista de que a mais elevada arte é a arte de viver com o objetivo de salvação neste mundo e não no céu após morte.
III
Nada de novo até aqui, nós progressistas seculares gostaríamos de acreditar. Mas, nas palavras questionadoras de Shakespeare, “não terá essa rosa um cancro?” A arte é realmente tão livre da religião e das práticas e ideologias societárias e contingentes, que transformam o ideal religioso em religião objetivável? Poderia a arte ter emergido e florescido, e ainda poderia ela continuar a sobreviver sem as crenças, práticas e instituições das culturas que a originaram e que continuam a sustentá-la, apesar de contingentes, imperfeitas e questionáveis que sejam essas dimensões societárias e impuras da cultura? É difícil ver como ela poderia, e como a arte poderia encontrar conteúdo significativo sem aquelas crenças, valores e práticas culturais consideradas contingentes, gratuitas e impuras. Mas mesmo se pudessem existir em seu estado purificado ideal, poderia a arte então ser o que Dewey deseja – uma influência formadora para reconstruir esteticamente o mundo de modo melhor? Como seria isso possível, se seus ideais imaginativos não estivessem solidamente conectados com as tramas de crenças, práticas e instituições que estruturam a sociedade e que são, assim, meios necessários para introduzir mudanças positivas nela? Dewey parece estranhamente não pragmático aqui ao advogar fins ideais enquanto vê os meios 16
As observações de Santayana se encontram em sua obra Interpretations of Poetry and Religion (New York: Scribner, 1927). Dewey a cita em A Common Faith (13). 89 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
culturais concretos – nossas práticas institucionais – como irrelevantes. Se a arte é um produto emergente da cultura que não pode ser consistentemente separado dela no sentido mais amplo e concreto de cultura – incluindo superstições, tolices, preconceitos, maldades e tudo mais – então é possível usar o seguinte argumento em prol da arte como sendo essencialmente inseparável da religião. A arte é indissoluvelmente ligada com a cultura. Mas a cultura, construída no amplo sentido antropológico, é indissociavelmente ligada à religião. Neste importante sentido de cultura (notoriamente elaborado por Franz Boas e por um leque de outros antropologistas e etnógrafos), ela é “o sistema de crenças, valores, costumes e comportamentos compartilhados, de artefatos que os membros da sociedade usam para lidar com seu mundo e com o dos outros, e que são transmitidos de geração em geração pelo aprendizado”17. Neste sentido, pareceria que através da história “nenhuma cultura teria surgido ou se desenvolvido a não ser juntamente com uma religião”; e, como observa mais adiante T. S. Eliot, “de acordo com o ponto de vista do observador, a cultura parecerá ser o produto da religião, ou a religião o produto da cultura”18. Em sociedades mais primitivas, os diferentes aspectos da vida cultural ou religiosa são mais intimamente mesclados, a ponto de ser difícil distingui-los, e é apenas pelo processo que Max Weber descreve como “modernização racionalizante” que o que agora vemos como campos distintos da ciência, política, religião e da arte foram concebidos como sendo abstratamente separados uns dos outros. Mas, na realidade, até mesmo no Ocidente moderno e secular, a separação não se sustenta como demonstram as tão numerosas misturas e as tumultuadas fricções entre esses campos. Tome-se o caso do aborto ou da pesquisa com células-tronco, ou o caso do financiamento público (ou simplesmente as exposições) da arte religiosamente controvertida. Agora, se a arte é inseparável da cultura, e a cultura é inseparável da religião, então parece razoável que a arte também seja indissoluvelmente ligada à religião de um modo importante. Certamente há uma ligação histórica essencial e íntima, como mencionei no início. Gostaríamos de pensar que a racionalização moderna nos últimos dois séculos gradualmente estreitou a ligação. Mas a história não se desfaz tão facilmente em tão curto período de tempo, e talvez nossas tradições religiosas, mais do que pensamos, se conservam vibrantemente formadoras por detrás da superfície do
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D. G. Bates e F. Plog, Cultural Anthropology (New York: McGraw-Hill, 1990), 7. T. S. Eliot, Notes on the Definition of Culture (London: Faber, 1965), 15. 90 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
campo secular da estética e da arte autônoma – por exemplo, nas noções de gênio artístico e de criação, dos sublimes valores espirituais, de sua elevação acima dos interesses mundanos e das meras coisas reais, e nos nossos modelos (e termos) para interpretar os mistérios da arte. Eu não posso explorar essa questão com detalhes neste curto artigo, mas permitam-me dar uma indicação ao considerar uma noção que tem sido bastante influente na recente filosofia da arte. Apesar de repetidamente empregada por filósofos da arte não religiosos na tradição analítica, parece difícil avaliá-la sem tomar seriamente seu significado e aura religiosos. Eu me refiro à noção de “transfiguração”. Arthur Danto, o mais influente dos esteticistas analíticos contemporâneos, fez do conceito de transfiguração a chave mestra de sua filosofia da arte. Uma obra de arte deve ser um objeto visualmente idêntico com outra coisa bastante ordinária que não é arte. Portanto, Danto conclui que a arte requer a interpretação do artista do objeto como arte (e que essa interpretação possa também ser tornada possível pelo estado da história e da teoria da arte). Tal interpretação é requerida para transfigurar objetos ordinários (que Danto chama de “meras coisas reais”) em obras de arte – que para Danto são coisas de categoria e de status ontológico totalmente diferente. Mesmo antes de seu famoso livro The Transfiguration of the Commonplace (A Transfiguração do Lugar Comum), (cuja influência foi tão marcante que o vigésimo quinto aniversário de sua publicação foi recentemente celebrado pela primeira conferência estética on-line), Danto desenvolveu a ideia de transfiguração para explicar seu conceito crucial de mundo da arte, um conceito inspirado nas teorias institucionais de arte que têm sido tão influentes19. Já em seu ensaio de 1964 sobre “O Mundo da Arte” (“The Artworld”) (no qual Danto define o mundo da arte como “junto ao mundo real ... [assim como] a Cidade de Deus está junto à Cidade Terrena” [AT 582]), encontramos sua noção chave de transfiguração: que as obras de arte são de algum modo transfiguradas dentro de uma esfera ontológica mais alta e sagrada, inteiramente diferente das coisas reais deste mundo do qual elas podem ser indiscerníveis visual ou sensorialmente, ou, como nas coisas prontas (readymades), com as quais elas podem até mesmo ser fisicamente idênticas. Já nesse ensaio encontramos Danto aludindo aos Brillo Boxes de Warhol 19
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Arthur Danto, “The Artworld”, Journal of Philosophy 61 (1964): 571-84 (daqui por diante citada entre parêntesis no texto como AT); e a Transfiguration of the Commonplace (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981) (daqui para frente citada entre parêntesis como TC). 20 Brillo Boxes são latas de tinta da marca Brillo usadas por Warhol como objetos de arte (nota da tradutora). 91 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
seu ícone inspirador de transfigurações artísticas miraculosas – em termos dos mistérios católicos de transubstanciação, simbolizando todo um mundo “de obras de arte latentes esperando, como o pão e o vinho da realidade, para serem transfigurados, por meio de algum mistério obscuro, em sangue e carne indiscerníveis do sacramento” (AT 580-1). Apesar de Danto descrever sua filosofia da arte como inspirada em Hegel, ele próprio se distingue de Hegel ao negar “que a arte foi substituída pela filosofia” (AB 137). De fato, sob alguns aspectos ele vê a arte como tendo ultrapassado não só o papel da filosofia de teorizar sobre a arte, mas também a preocupação tradicional da filosofia com a sabedoria sobre as questões vitais profundas; pois ele insiste: “A filosofia simplesmente não consegue lidar com as questões humanas mais amplas” (AB 137). Danto, sobretudo, certamente contribui com a tendência moderna dominante de ver a arte como superando a religião ao elevar (em suas palavras) “o tipo de significado que a religião era capaz de prover”: as verdades e os significados espirituais mais altos, inclusive os “significados sobrenaturais” da “metafísica ou teologia”21. Repetidas vezes apontei para a acentuada retórica religiosa católica de Danto, mas ela sempre responde que ele é uma pessoa inteiramente secular22. Apesar de, enquanto estudante em Israel, eu achasse inicialmente que Danto fosse um aristocrata italiano católico transplantado para a cidade de Nova York, ele mais tarde me disse que ele era de fato um judeu não praticante de Detroit, filho de um judeu franco-maçom. Toda a retórica católica de transfiguração em sua teoria, ele insiste, não reflete suas crenças religiosas, mas é simplesmente uma façon de parler, uma maneira de falar. Mas será que a dimensão religiosa realmente desaparece ao chamá-la um mero modo de falar? Acho que não. Primeiro, os modos de dizer não podem ser facilmente separados de modos de viver: temas reais de crença, prática e fato. De outro modo, essas expressões perdem sua eficácia. Se o teor religioso da transfiguração não ressoasse de algum modo ainda em nossa sensibilidade religiosa, em nossa experiência religiosa, fé ou imaginação (por mais que estejam deslocadas e disfarçadas), então essa expressão não teria sido tão cativante e influente como provou ser. Isso leva a um segundo ponto. Por que um filósofo secular judeu escolheu esse modo particular de falar sobre a arte, e por que ele foi tão bem sucedido e
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Arthur Danto, After the End of Art (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1997), 188; e The Madonna of the Future (New York: Farrar, Strauss, and Giroux, 2000), 338. 22 Ver, por exemplo, nossa discussão no Tate de Londres, disponível em http://www.tate.org.uk/onlineevents/webcasts/Arthur_danto/. 92 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
influenciador? A razão, eu penso, é que a tradição religiosa dos cristãos espalhada por todo o mundo está profundamente enraizada na própria tradição artística ocidental da filosofia da arte. Ela, então, formatou significativamente a essas duas tradições, mesmo para artistas, críticos e filósofos que não atribuem a si conscientemente crenças e atitudes cristãs. Não deveríamos pensar que nós, teóricos ocidentais no mundo da arte, seculares, ou mesmo anticristãos, estão inteiramente livres de nossa cultura religiosa em nossas teorizações; e no mundo da arte contemporâneo globalizado, formado pelo Ocidente, talvez ninguém esteja completamente livre dela. Eu não estou defendendo que o poder transfigurador da arte é estritamente uma ideia cristã. Se há algo que todas nossas diferentes culturas atribuem à arte, isso poderia ser o poder transfigurador e transformador de suas expressões criativas e da experiência estética. O ponto chave que defendo, ao contrário, é que se quisermos compreender a experiência da arte em termos de transfiguração, devemos insistir em reconhecer pelo menos duas ontologias e ideologias religiosas subliminares de transfiguração, que eu esboçarei no restante deste artigo. Primeiro, há o estilo familiarmente cristão dominante de elevação para além desse mundo – baseado em uma teologia transcendental com um Deus eterno, imutável e incorpóreo, que existe à parte deste mundo que ele criou (apesar de miraculosamente encarnado em seu Filho para salvar as criaturas humanas deste mundo). Como ponto central dessa teologia está a noção de uma essência humana imaterial e eterna (a alma) que pode ser salva e elevada até o outro mundo divino. Em tal religião da separação transcendental, a espiritualidade (seja na arte ou alhures) significa uma distância elevada do mundo material cotidiano, uma ascensão para um mundo radicalmente outro, seja o mundo da arte ou o céu. Aqui transfiguração implica propriamente uma virada radical de status metafísico do domínio das entidades meramente espaço-temporais, para uma existência espiritualmente transcendente; assim, as obras de arte devem ser distinguidas (nas palavras de Danto) das “meras coisas reais”. Em contraste, no estilo zen budista as noções de arte e de prática religiosa oferecem uma religião da imanência sem nenhum Deus transcendental e pessoal existindo fora do mundo da criação; nenhuma alma eterna, pessoal e imaterial existindo fora de suas manifestações corpóreas; e nenhum mundo sagrado (um mundo da arte ou celeste) existindo além do mundo do fluxo da experiência. A distinção essencial entre o sagrado e o profano (ou entre a arte e não arte), não marca mais uma divisão ontológica rígida entre mundos de coisas radicalmente diferentes, mas sim uma diferença no modo 93 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
como o mesmo mundo das coisas é percebido, experimentado e vivido – seja artisticamente, com um espírito inspirador de presença e um senso absorvente de profunda significação ou santidade, ou ao invés disso, como meramente insignificante, banalidades rotineiras. A transfiguração, em tais religiões da imanência, não produz uma mudança no status ontológico por meio da elevação a um domínio metafísico superior, ela é, antes uma transformação da percepção, do significado, do uso e da atitude. Não uma questão de transposição vertical para um domínio etéreo superior, é antes uma vívida e imediata percepção de estar neste mundo, de sentir o poder pleno e a vida de suas manifestações e ritmos, de ver seus objetos com clareza maravilhosa e com o frescor do olhar. Considere essa descrição da trajetória em direção ao insight transfigurado dada pelo mestre zen chinês Ch’ing Yuan da dinastia Tang: “Antes de eu ter estudado Zen por trinta anos, eu via montanhas como montanhas e águas como águas. Quando eu cheguei a um conhecimento mais íntimo, eu cheguei a um ponto em que via que montanhas não são montanhas e águas não são águas. Mas agora que obtive a própria substância eu sosseguei. Pois, justamente, vejo montanhas mais uma vez novamente como montanhas e águas mais uma vez novamente como águas23. IV
Permitam-me dar agora dois exemplos concretos para ilustrar essas noções contrastantes de transfiguração artística. Para a noção transcendental classicamente católica, considere a famosa Transfiguração24 de Rafael que representa o episódio relatado (com algumas poucas variações) nos três evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas no qual Jesus – juntamente com Pedro, Tiago e João – “levou-os a sós a um monte alto.” Ali Jesus se transfigurou visualmente diante dos olhos deles, e depois iniciou uma conversa com Moisés e Elias (profetas há muito tempo mortos), cuja aparição testemunha o status divino de Jesus como o Messias. Ao descer do monte, Jesus e seus três discípulos encontram os outros discípulos em meio à multidão, onde um homem clama pela ajuda de Jesus para curar seu filho da possessão por um espírito maligno, que os discípulos de Jesus não conseguiram exorcizar. A concepção de Rafael desse episódio inclui ambos os elementos da história – a miraculosa transfiguração no monte e a multidão perturbada
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É interessante que o próprio Danto desenvolve essa citação tanto em “The Artworld” como em The Transfiguration of the Common Place. 24 Imagens dessa obra estão em grande número disponíveis na internet, inclusive em http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons5/51/Transfiguration_Raphael.jpg 94 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
com o menino possuído pelo demônio lá embaixo. A tela é dividida verticalmente em duas partes distintas representando estes dois relatos. A cena da transfiguração do alto do monte evidentemente ocupa a parte superior da pintura, enquanto a parte de baixo retrata a multidão agitada diante da descida de Jesus, com uma figura vestida de vermelho (aparentemente um discípulo) aponta enfaticamente para o alto do monte (e o centro do quadro), assim ligando a pintura com uma diagonal dramática, a parte de cima com a parte de baixo da tela e seus elementos narrativos. O ponto central, em minha argumentação, é que na cena superior da transfiguração, a figura de Cristo não é elevada simplesmente por estar no topo do monte, mas realmente paira distintamente sobre ele (e sobre os discípulos prostrados que o acompanham) levitando no ar, flanqueado pelos dois profetas que chegaram para falar com ele, mas obviamente mais elevada do que eles. Sua figura, sobretudo, é emoldurada por uma nuvem de luz brilhante indicada apenas por uma aura dourada em volta de sua cabeça. O evangelho de Mateus de fato afirma que quando Jesus “se transfigurou”, “sua face brilhou como o sol, e suas vestes eram tão brancas como a luz”. Mas nenhuma das versões do evangelho descreve a transfiguração de Cristo como uma levitação transcendental por cima do monte. Mesmo assim, a pintura de Rafael claramente representa isso, provavelmente para enaltecer a essência celestial e de outro mundo, e para sugerir a essência supra terrestre da verdade espiritual, seu indispensável movimento transcendente para além do mundo das coisas reais ordinárias. Hegel faz uso dessa pintura para argumentar em favor da elevação transfiguradora da arte e a capacidade de transmitir as mais altas verdades espirituais, mesmo quando elas partem da verdade visual, pois nenhuma visão normal poderia, na verdade, incluir simultaneamente ambas as cenas retratadas. Contudo Hegel escreve, “a visível Transfiguração de Cristo é precisamente sua elevação acima da terra, e seu afastamento dos Discípulos, e isso deveria ficar visível também como uma separação e uma despedida”25. Se seguirmos as narrações do Evangelho, à pintura de Rafael de Jesus transfigurado em completa “elevação” e “separação” da terra, faltam não só a verdade visual, como também a verdade da escritura. Mas ela transmite maravilhosamente a pretensa verdade do transcendentalismo clássico cristão (assim como o faz o idealismo filosófico de Hegel) justamente por implicar de modo soberbo seu análogo artístico – que a transfiguração da arte é uma “elevação e separação” em 25
G.W.F. Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art by G. W. F. Hegel, tradução de T. M. Knox (Oxford: Clarendon Press, 1998), 860. 95 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
algum tipo de transcendência mais alta.
Figura 1: A Transfiguração de Raphael Sanzio (1483-1520)
Além disso, por meio da narrativa aí implicada do sucesso de Jesus em curar pelo toque o menino possuído pelo demônio depois de seus discípulos terem falhado em consegui-lo, a pintura também transmite uma alegoria artística sobre a transcendência divina do gênio artístico. A mão do grande artista – alguém como Rafael (cujo nome em hebreu significa “Deus curou”) – está ligada analogicamente com a mão divina do próprio Jesus que cura, o filho de Deus. Essa analogia tem consideráveis implicações 96 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
para a aguda divisão em nossa cultura entre as alturas do gênio artístico e seus espectadores lá embaixo, ou entre as artes superiores e o frenesi demoníaco da cultura de massa da arte popular. Mas deixem-me pôr de lado essas questões de política cultural, para poder voltar ao que Hegel defende: que essa pintura é uma obra prima devido a sua comunicação da verdade espiritual da cristandade, mesmo que nela falte, devido à tela dividida de modo irreal, verdade objetiva visual. Arthur Danto, em The Abuse of Beauty (O Abuso da Verdade), defende o ponto de vista de Hegel ao usar a Transfiguração de Rafael (que Danto acha grandiosa, mas não bela) para levar adiante o argumento de que as qualidades visuais estéticas, inclusive a beleza, nunca são essenciais para a grandeza artística. “A beleza é realmente tão óbvia quanto o azul”, uma simples questão de percepção imediatamente apreendida “por meio dos sentidos” afirma Danto, enquanto a arte “pertence ao pensamento” e, por isso “requer discernimento e inteligência crítica” (AB 89, 92). Ele critica severamente uma longa tradição de teóricos que pensam que há uma espécie de beleza difícil na arte (ou fora dela) que não é uma mera questão de sensação imediata, mas que requer certo “olhar difícil” que Roger Fry sustentou como sendo necessário para ver a beleza das pinturas pós-impressionistas que eram, na primeira impressão, consideradas como horríveis pelo público. Rejeitando a própria ideia de “beleza deferida que recompensa a dificuldade do olhar” como uma confusão de beleza e insight artístico, Danto zomba do pensamento de que tal olhar poderia algum dia nos dar “o tipo de emoção que a beleza no sentido estético produz em nós sem o benefício do argumento ou análise” (AB, 9293). Enquanto concordo com Danto que a beleza nem sempre é essencial para o sucesso artístico, penso que há beleza sim que é difícil de perceber, mas que é revelada por meio de certa disciplina na dificuldade do olhar. Considere um exemplo que também ilustra a noção zen e pragmatista de transfiguração imanente que esbocei acima. Meu exemplo não provém nem da arte do mundo oficial nem do íntimo da beleza natural. Em vez disso, ela envolve um grande barril de ferro enferrujado, cuja beleza maravilhosa e surpreendente repentinamente se revelou para mim depois de alguns esforços contemplativos persistentes durante a minha própria iniciação nas regras do Zen durante o ano em que passei no Japão fazendo pesquisa em estética corporal. Instalado em uma colina perto da vila costeira de Tadanoumi no belo Mar Interior do Japão, o claustro Zen Shorinkutzu onde eu morei e recebi ensinamentos, era dirigido por Roshi (Mestre) Inoue Kido. Roshi era liberal o bastante para me aceitar 97 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
como aluno (ele não sabia inglês e meu japonês era muito limitado) e reconhecer que a disposição de seu kokoro (o coração e a mente) é infinitamente mais importante do que manter suas pernas firmemente cruzadas em longos períodos na posição perfeita de lótus. Pela analogia com as plantações de arroz que não poderiam ser cortadas com o fio cego, ele me aconselhou a levantar de minha almofada de meditação do Zen-do sempre que eu me sentisse cansado, e que me retirasse para a minha cabana de meditação para tirar um cochilo para refrescar e assim afiar minha mente. Meus poderes de concentração durável, ele explicou, aumentariam por meio de acuidade mental alcançada não meramente pelos esforços teimosos de persistência da força de vontade. Entretanto, para tudo ele achava importante praticar o Zen, Roshi era efetivamente um purista em sentido estrito. Como um disciplinador humano, Roshi não poupava a vara em seus alunos quando achava que isso poderia instruí-los. (Eu só evitei seus puxões de orelha educadores porque meu japonês era insuficiente para formular uma questão imbecil, apesar de ter sido uma vez severamente repreendido por deixar três grãos de arroz em minha tigela.) Próximo a um dos dois pátios que ligavam o Zendo e os dormitórios dos iniciantes, eu notei uma pequena abertura que dava para uma vista especialmente ampla e bela do mar, pontilhada com pequenas ilhas de arbustos de um verde exuberante e macio. Na abertura havia uma banqueta primitiva, grosseiramente feita de um pedaço redondo de tronco em cuja curta e ereta coluna (ainda ornada com suas cascas) havia, em cima, uma pequena tábua retangular de madeira para servir de assento, sem pregos ou algo para fixá-la ao tronco a não ser a gravidade. Alguns pés à frente da banqueta havia dois barris de óleo feitos com ferro fundido, velhos e enferrujados (ver foto 1)26, do tipo que vi muitas vezes usados como fogões improvisados ao ar livre por sem-tetos nas vizinhanças de cidades pobres do interior dos EUA. Leitores mais familiarizados com o uso da arte do mundo devem reconhecê-las como sendo do tipo de barris que Christo e Jeanne Claude pintaram e empilharam em bloco lado a lado em duas instalações notáveis – Iron Curtain (Cortina de Ferro) e The Wall (O Muro) (Alemanha, 1999)27. Sentado na banqueta para olhar o mar por detrás do Dojo, a vista era 26
Estas imagens estão disponíveis on-line, no site Web de artistas, em http://christojeanneclaude.net/major_ironcurtain.shtml e http://christojeanneclaude.net/major_gasometer.shtml. Fotos que constam do original, não aparecem nesta revista. Ver on-line nas indicações acima. (Nota da tradutora). 27 Eu deveria mencionar que alguns artistas da arte do mundo que apreciam de modo semelhante as belezas da ferrugem, no emprego de aço COR-TEN (“aço com fina camada de ferrugem para proteção”, 98 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
inevitavelmente emoldurada pelos dois barris de um marrom corrosivo. Eu me pergunto por que esse feio par foi deixado em tal lugar encantador, estragando a sublime paisagem marinha natural com uma monstruosidade industrial.
Figura 2: As latas de tambor de Shorinkutzu-Dojo
Um dia, me enchi de coragem para arriscar perguntar a Roshi se eu teria permissão para praticar meditação por um curto período naquele local contemplando o mar, apesar de não ter ousado perguntar-lhe por que deixavam os barris horrorosos (que os japoneses chamam de “tambores de latas”) ali, onde poluíam a pureza estética e natural daquela vista. A permissão foi prontamente concedida, pois a meditação Zen pode, em princípio, ser feita em qualquer lugar, e Roshi sentiu que eu havia progredido o suficiente para praticar fora do Zendo. Sentei-me na banqueta e, ao dirigir meu olhar acima dos barris, fixei minha contemplação no belo mar ao mesmo tempo em que seguia as instruções para meditação de Roshi, de focalizar a atenção em minha respiração e tentar clarear minha mente de todos os pensamentos. Depois de aproximadamente vinte minutos de efetiva meditação, perdi meu controle da da tradutora) em suas esculturas e instalações devido a sua tendência de se formar uma capa de ferrugem e assim revestir suas obras com um efeito estético por meio de tons e texturas sutis de ferrugem. Um exemplo admirável é a maravilhosa Torqued Ellipses (Elipses Retorcidas) de Richard Serra. 99 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
concentração e decidi terminar a sessão. Ao dirigir meu olhar em direção ao mais próximo dos dois barris, minha percepção se tornou mais penetrante e eu vi que esse objeto subitamente havia se transfigurado em uma visão de beleza de tirar o fôlego – tão belo como o mar, até mesmo mais belo. Eu senti que eu estava realmente vendo aquele tambor de lata pela primeira vez, sorvendo a sutileza e suntuosidade de seu colorido, as sombras alaranjadas, os tons de azul e verde que iluminavam seus marrons de terra. Eu vibrei com a riqueza de sua textura irregular, seu tecido de crostas como flocos e cascas embelezando a dura couraça de ferro – uma sinfonia de superfícies suaves e firmes que sugeriam um delicioso feuilleté. O que me prendeu e deliciou mais do que tudo foi, talvez, a beleza plena de sua presença percebida. O tambor de lata enferrujado se revestira de uma realidade imediata, robusta e absolutamente absorvente que fez, em comparação, minha visão do mar se tornar pálida. Ao invés de ser transfigurado em um mundo transcendente de espiritualidade imaterial, ele irradiava pela transfiguração a energia clara e espiritual com a qual o maravilhoso flutuar e fluir de nosso mundo material imanente ressoa e cintila. Então, eu também me senti transfigurado, sem sentir que nem os barris e nem eu haviam mudado suas categorias ontológicas ou levitado para uma idealidade transcendente. Do mesmo modo, eu compreendi que era mais a ideia de mar que eu vira como sendo bela, e não o próprio mar, que eu vi através de um véu de pensamentos familiares – seu significado romântico convencional e as maravilhosas associações pessoais que ele tivera em mim, um garoto de praia de Tel Aviv que se tornara filósofo. O barril, em contraste, foi apreendido como uma beleza imediatamente percebida como concreta e cativante. Mas para ver essa beleza foi preciso um período razoável de contemplação disciplinada. Apesar de esse novo olhar não ter sido inicialmente dirigido ao tambor de lata, foi apenas isso que possibilitou a percepção de sua beleza indo além da paisagem marinha e dirigindo minha contemplação absorta aos próprios barris. A fenomenologia desse olhar novo, que eu presumo ser bastante diferente do que Fry recomendou para a arte, é um tema muito complexo para ser explorado neste breve ensaio. Parte da complexidade se deve aos paradoxos típicos da percepção e do modo de ser Zen: meu novo olhar poderia ser também compreendido como um novo não olhar, pois ele não foi motivado por um questionamento hermenêutico pelo significado verdadeiro do objeto, tal como é descrito em geral o pensamento Zen, justamente como um não pensar e a completude de sua iluminação como um vazio. Há 100 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
também a questão de se tais transfigurações imanentes deveriam ser mais proximamente identificadas com o objeto particular focalizado (o tambor de lata), a experiência do tema percebido, ou de toda a energia da situação que dá forma a ambos e ao seu encontro. No entanto, abordar essas questões, uma pergunta deve ser enfrentada imediatamente: aqueles tambores de lata transfigurados eram arte? Apesar de não fazer parte evidentemente do mundo da arte institucional, eles eram, o que é óbvio, parte de uma obra de instalação de design deliberado, cujo objetivo era fornecer experiências que poderiam ser descritas como significativas, que dão a pensar e são esteticamente evocativas28. E o design deliberado dessa instalação sugere que era obviamente “sobre algo” (uma condição de significação geralmente considerada necessária para a arte). Mas para o que, exatamente, os tambores de lata serviam, é uma questão que tem muitas respostas possíveis: os poderes e as possibilidades da meditação, os usos surpreendentes dos detritos industriais, o contraste e também a continuidade entre a natureza e os artefatos, a questão da beleza (o difícil e escondido versus o fácil e convencional), e mesmo o significado que eu encontrei por acaso nisso – a transfiguração imanente de objetos ordinários que pode fazer deles arte sem retirá-los do mundo real e pô-los na arte do mundo compartimentada e transcendente, cujos objetos têm um status metafísico inteiramente diferente. Essa transfiguração imanente, cujo significado de preciosa presença serve para fundir arte e vida e não para sugerir seu contraste essencial e sua descontinuidade, é nesse ponto que o Zen converge com a estética pragmática. Mas o que ocorre, então, com obras como a Transfiguração de Rafael? Para reconhecer seus significados religiosos, devemos insistir exclusivamente numa metafísica transcendental da arte que separa arte das coisas reais e da vida? Eu não vejo como isso seria ainda necessário para compreender essa obra a não ser pela insistência cautelosa de que o episódio da Transfiguração com Jesus realmente aconteceu, e que 28
Um contraste similar deve ser discernido entre diferentes interpretações estéticas da noção de aura em diferentes culturas que são moldadas por diferentes tipos de metafísica religiosa. Walter Benjamin, por exemplo, um judeu secular mergulhado na cultura europeia (apesar de muito mais comprometido do que Danto com sua herança judaica) define a aura em termos de “distância”, “singularidade e permanência”. Essas características estão ligadas, é claro, com a ideia de uma esfera transcendental superior elevada que é, então, distante da realidade ordinária e permanente, por ser impermeável (porque divina) à mudança. Além disso, a conexão com a divindade distante e superior do monoteísmo, faz da noção de aura (tanto na autenticidade artística como no caso da verdadeira divindade) uma questão também de singularidade, mesmo na misteriosa unidade da trindade divina da divindade cristã ou das instancias plurais de impressos autênticos, ou em esculturas provenientes do mesmo conjunto ou casta. Ver Walter Benjamim, “The work of art in the Age of Mechanical Reproduction”, in: Illuminations (New York: Schoken, 1968), 222-23. Em contraste, a aura das experiências estéticas ilumina a inconstância e a proximidade com o cotidiano e o comum; por conseguinte, a reprodutibilidade aqui não leva à destruição da aura. 101 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
seus substratos teológicos são metafisicamente verdadeiros, e isso com a exclusão de religiões conflitantes e de doutrinas científicas. Eu penso que posso apreciar até certo ponto os significados religiosos transcendentes de tais obras sem compartilhar a repercussão metafísica e a fé teológica. Mas suspeito que um crente sincero, poderia apreciar melhor a pintura por meio dessa fé. Eu prefiro sacrificar esse dividendo extra de apreciação a fim de manter uma ontologia que é livre de tal transcendência sobrenatural e da teologia cristã, e uma estética que não apelasse para tal transcendência para explicar ou justificar o poder da arte de transfigurar.
V
Devemos escolher irrevogavelmente entre essas duas formas de transfiguração e suas respectivas ideologias religiosas da arte? Uma razão para rejeitar essa escolha é que essas opções não parecem esgotar as formas ou interpretações da experiência transfiguradora da arte. Eu não considerei aqui o significado da transfiguração estética para a tradição religiosa do confucionismo, cuja ênfase no ritual estético e na arte como acima de crenças sobrenaturais, fizeram-na, por milênios, tão atraente e influente na mentalidade da Ásia Oriental. Ela demonstrou ser muito mais atraente que a religião de Mozi (um rival antigo de Confúcio), cuja doutrina, mais próxima do amor universal dos cristãos, veio acompanhada da crença em uma divindade suprema sobrenatural (com menos espíritos e fantasmas), mas também com um ascetismo antiestético sombrio (que é amargamente protestante em caráter). Parte do gênio dos antigos confucionistas estava na aceitação de uma força crescente de ceticismo teológico de sua época, pelo fato de abster-se essencialmente de metafísica religiosa sobrenatural e limitar sua atenção em direção à salvação e revitalização dos ideais positivos e valores imbuídos dos rituais e arte religiosos tradicionais. Ao expressar esses ideais e valores por meio de interpretações intelectualmente convincentes que eram focalizados no cultivo estético e ético tanto do indivíduo como da sociedade, o confucionismo poderia assim oferecer elaboradamente uma redenção harmoniosa desta vida mundana. De fato, a nossa própria situação contemporânea, com seu ceticismo crescente no sobrenatural e sua penetrante virada estética que leva a enfatizar a ostentação, a riqueza e a complexidade em vez da simplicidade taoísta ou zen, pode fazer do confucionismo uma religião mais atraente para o século XXI pelo menos para mentes mais seculares. Eu confesso que sou tocado 102 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
por seus encantos, tanto como sou tocado pelo Zen e pelo aperfeiçoamento pragmatista. Mas em vez de escolher um vencedor nisso, eu quero terminar pelo breve levantamento de outras opções, uma vez que meu sobrevoo pelas tradições religiosas da arte foi tão esquemático e limitando, deixando de lado ricas tradições artísticas de outras culturas religiosas como o islamismo, o judaísmo e as religiões indígenas da África e da América. Será que deveríamos adotar uma abordagem mais plural da ontologia religiosa da arte, e talvez deixar o contexto da obra de arte e sua tradição cultural apontarem para nós, qual abordagem é a melhor para avaliar seu significado transfigurador e sua verdade espiritual? Podemos ser pluralistas sincréticos em nossas “religiões” da arte, mesmo se nos faltar tal flexibilidade em nossas teologias e metafísicas tradicionais, e na ética moldada religiosamente? Uma estética pragmatista pluralista gostaria de admitir essa possibilidade. Se isso fosse mesmo possível, a estética seria uma ponte maravilhosa entre culturas, mesmo as em guerra. Mas se em última análise a estética não puder ser separada de uma cultura com atitudes religiosas subliminares, então não seria factível realizar essa possibilidade em nosso mundo imperfeito, até que também pudéssemos trabalhar não apenas por meio, mas para além da estética para transformar nossas culturas e atitudes religiosas em direção de uma compreensão mais profunda e mais aberta. Isso não significa uma tolerância indolor e gratuita do mal evidente e da falsidade flagrante. Nem deve isso envolver a busca pela abolição de toda diferença real e do papel da desarmonia e do dissenso, sem os quais nunca poderíamos apreciar as agradáveis harmonias da arte.
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Resenha
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RESENHA Resenha de VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 256 p. Redescrevendo Michel Foucault
Sérgio Oliveira
Didier Eribon, em sua obra Michel Foucault e Seus Contemporâneos, nos adianta duas atitudes adotadas diante dos textos foucaultianos. A primeira diz respeito ao uso que deles se pode fazer como “pontos de apoio heurístico para muitos setores da pesquisa histórica e das ciências sociais, bem como da filosofia” ou como um “quadro de referência” nas lutas políticas1. Uma visão instrumental das narrativas humanas (inclusive, das narrativas filosóficas) fornece a justificativa para assim se proceder. Ocorre que este uso se mostrou de tal forma desmedido que, precisamente aí, o autor se pergunta admirado sobre a compatibilidade dos “mil Foucault” que não cessa de ver surgir de contextos políticos absolutamente diferentes: O que há de comum entre os Foucault da esquerda bengalesa, fortemente colorido de um marxismo mais ou menos renovado, e o dos intelectuais húngaros, búlgaros, romenos, poloneses, russos ou tchecos, que fazem dele uma arma para pensar a transição democrática e as transformações de suas sociedades depois da derrubada dos regimes comunistas e da ruptura com a ideologia marxista? Sem falar dos movimentos norte-americanos que lutam pelos direitos das minorias, e principalmente os direitos gays e lésbicos (...), dos quais Foucault se tornou um líder no pensamento e na ação.2
A despeito de seu espanto, Eribon, em continuidade, nos lembra do locus classicus onde Foucault assinala que um autor faz um livro e não a lei do livro e que o uso de seus textos como caixa de ferramentas, as quais poderiam fornecer instrumentos úteis em diferentes circunstâncias, foi incentivado por ele próprio. Pensar sobre a influência de Foucault, diz-nos Eribon, poderia, assim, equivaler a preparar um inventário da imensa rede através da qual se disseminou e continua a se difundir diversos aspectos de seu pensamento, não se tendo, aí, como preocupação maior a legitimidade com que os textos foram apropriados em um ou outro contexto de uso. Ainda desta forma, observa Eribon, o que é válido para o mito, segundo Lévi-Strauss, também poderia se mostrar válido para um balanço da “situação do pensamento
Bacharel em Psicologia (UFRJ). Mestre em Filosofia (PUC-Rio). Doutor em Filosofia (PUC-Rio). ERIBON, Didier, 1996, p. 16. 2 ERIBON, Didier, 1996, p. 16. 1
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foucaultiano”: “não se deve tentar determinar qual é a sua versão autêntica, mas considerar que é o conjunto das versões que constitui a sua realidade”3. Esta é a primeira atitude, portanto. Contudo, Eribon nos lembra, quando da caracterização de uma segunda atitude diante dos textos de Foucault, de um procedimento inteiramente outro, o qual consistiria “em reinscrever a obra no contexto que a viu nascer, em reconstituir os seus problemas, em detectar em que filiações ela se instalava, que adversários ela pretendia combater etc.”4 Trata-se, agora, de um esforço de reconstituição histórica, enfim, que tem, para com a obra, o objetivo de “reencontrála o mais próximo possível daquilo que ela foi efetivamente, em sua gênese, em suas evoluções, em sua receptividade”5. Em que pese aqui a recordação do inútil esforço daquele Pierre Menard, de Jorge Luis Borges, um tipo de trabalho como este pode ter por conseqüência a desautorização dos muitos usos que se tem feito de certos textos. Nas palavras de Eribon, tal empreitada pode “fazer vacilar a legitimidade, se não a possibilidade, de certas interpretações e de certas utilizações”6. Qual das duas atitudes pode ter sido a adotada por Paul Veyne neste seu breve e elegante Foucault: Seu Pensamento, Sua Pessoa? Em princípio, podemos acreditar que se trata de oferecer uma descrição fiel de um pensamento que é comumente citado, muitas vezes, a fim de defender o oposto de si mesmo. Cabe, então, com este livro, pensamos nós, fazer o verdadeiro retrato surgir por baixo das várias camadas de malentendidos (relativismo, niilismo etc.) que os críticos mais apressados ou menos dedicados ao princípio da boa vontade interpretativa fixaram sobre ele. Por vezes, todavia, ao procurar justificar filosoficamente certas posições de Foucault, Paul Veyne deliberadamente articula o autor a novos contextos filosóficos, permitindo-nos imaginar que adotou uma opção de leitura que é também reconstrutora, ou seja, que a vê como ponto de articulação entre diferentes tradições filosóficas. Tratase daquela atitude legítima (de acordo com o próprio Foucault) de apropriação da obra de que falávamos há pouco com Eribon, mas bastante perigosa. Para, desde já, enfatizarmos a que ponto pode ter chegado à radicalidade (e a bem-vinda originalidade) desta opção de leitura de Veyne, afirmemos que ele, em não poucos momentos do texto, redescreve Foucault como um filósofo afim aos hábitos de raciocínio pragmatista. 3
ERIBON, Didier, 1996, p. 16. ERIBON, Didier, 1996, p. 17. 5 ERIBON, Didier, 1996, p. 17. 6 ERIBON, Didier, 1996, p. 17. 4
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Chegaremos lá. Por ora, detenhamo-nos, primeiramente, em um retrato mais consensual acerca do empreendimento de Foucault apresentado no livro. Veyne, mais uma vez, enfatiza o que já dissera num célebre texto anterior7. Assim, veremos retornar aqui os temas do positivismo e do respeito aos fatos não facilmente subsumidos a categorias naturalizadas (e, portanto, mais facilmente inocentadas) etc. O maior compromisso de Foucault segue, então, se traduzindo num interesse ímpar pela “verdade dos fatos” – nunca pela “verdade das idéias gerais”8. Mantendo-se cético em relação a toda antropologia filosófica, Foucault constrói, nas palavras de seu expositor, uma “antropologia empírica” “fundada na crítica histórica”9. É, sem dúvida, a inquietante singularidade de certos fatos, e não a universalidade pressuposta desde o início de certas noções, que motivará as pesquisas de Foucault10. É conhecido à exaustão que Foucault não vê a história como a mera repetição um tanto transmudada de certos universais (a loucura, a sexualidade etc.)11. Entretanto, sabemos também o quanto é difícil procurar apresentar esta hipótese de trabalho sem que, ao fim de nossa exposição, uma indagação não nos seja endereçada, nos termos com que hoje nos expressamos, acerca de práticas discursivas que, como fizemos questão de sublinhar o tempo todo, eram inteiramente outras. Como fazer ceder este cacoete de ver na história a mera repetição de formas de entendimento hoje partilhadas por nós? Como despertar o interlocutor para o anacronismo de certas categorias presentes quando aplicadas ao passado?12 O texto de Veyne não só enfatiza repetidamente o ponto, mas também procura tornar a resposta de Foucault notavelmente assimilável e didática (o livro é, ao mesmo tempo, uma introdução e um comentário à obra do autor): os discursos a que estamos submetidos nos “escapam”, “permanecem inconscientes para nós”; não percebemos normalmente que pensamos através de categorias gerais, todas elas, datadas (no sentido de limitadas às contingências do tempo). Assim, um “balanço desmistificador”, para
7
Referimo-nos, evidentemente, a Foucault revoluciona a história, onde se lê, por exemplo, que “[Foucault] (...) é o primeiro historiador a ser completamente positivista.” (VEYNE, Paul. 1995, p. 151). 8 VEYNE, Paul. 2011, p. 9. 9 VEYNE, Paul, 2011, p. 10. 10 Cf. VEYNE, Paul, 2011, p. 28 sobre a tática investigativa de Foucault. 11 Veyne, em uma de suas muitas reiterações sobre o ponto, adverte: “no trabalho histórico, é preciso exercer ‘um ceticismo sistemático em relação a todos os universais antropológicos’ e admitir a existência de um invariante apenas como último recurso, após ter tentado tudo para resolvê-lo” (2011, p. 31-32). 12 Não, o uso altamente codificado dos prazeres pelos gregos, as paixões da carne no pensamento cristão e a sexualidade dos contemporâneos não se referem à mesma “realidade essencial”. Sequer faz sentido falar nesta “realidade essencial” para Foucault.
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usar a expressão de Veyne, é necessário para que voltemos a estranhar o que se tornou demasiado evidente para nós. A metodologia de Foucault, ao se debruçar sobre a história, consiste neste balanço minucioso e visa a recuperar a singularidade e a arbitrariedade dos arranjos com que, em diferentes épocas, certos homens pensaram sobre si mesmos. Ser curioso aqui é estar aberto à estranheza dos fenômenos estudados. Explicitar as práticas discursivas consistirá em “interpretar o que as pessoas faziam ou diziam, em compreender o que supõem seus gestos, suas palavras, suas instituições”13. Trata-se, portanto, de filiar o pensamento de Foucault a uma hermenêutica, segundo o autor. Em suas próprias palavras: “O instrumento de Foucault será, portanto, uma prática cotidiana, a hermenêutica, a elucidação do sentido”14. Mas de que hermenêutica Veyne fala aqui? Pois há pouco falávamos na fidelidade aos fatos, numa atitude rigorosamente positivista... Não se trata, adiantamos nós, de uma hermenêutica como a que Geertz defende para o programa de sua antropologia interpretativa. A diferença está em que “sua hermenêutica [a de Foucault], que compreende o sentido dos atos e das palavras de outrem, capta esse sentido com a maior precisão possível (...)”15. Foucault crê na “positividade dos dados empíricos” que coleciona. Veyne arremata: “Compreender o que diz ou faz outrem é um ofício de ator que ‘se põe na pele’ de seu personagem para compreendê-lo”16. Não é que Geertz seja um niilista interpretativo, mas tratar o sentido como fato capturável está bem longe da justificativa de seu projeto. As ciências sociais nem mais deveriam nutrir tais ambições objetivistas, segundo o antropólogo estadunidense. Foucault, por sua vez, insiste nos fatos. É neste momento preciso que Foucault é afastado por Paul Veyne de qualquer possibilidade de articulação com certa cultura acadêmica que, mesmerizada por certos momentos da “virada lingüística”, faz de um texto um local de dispersão interpretativa e descura, assim, da positividade do próprio texto17. Localizando Foucault nos antípodas dessas correntes de vezo pós-moderno, Veyne apresenta a obra de Foucault como uma espécie de “positivismo hermenêutico”18: “persuadido de que um texto não é sua própria interpretação, Foucault tem por método fundamental compreender da maneira mais 13
VEYNE, Paul, 2011, p. 26. VEYNE, Paul, 2011, p. 26. 15 VEYNE, Paul, 2011, p. 27 [itálico nosso]. 16 VEYNE, Paul, 2011, p. 27. 17 Paul Veyne, na nota 18 do primeiro capítulo: “Sim, cada um pode interpretar um texto de acordo com seu capricho pessoal, mas resta o próprio texto, que não é sua própria interpretação” (2011, p. 36). 18 VEYNE, Paul, 2011, p. 27. 108 14
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precisa possível o que o autor quis dizer em seu tempo”19. É também neste sentido que Veyne nos conduz, por várias vezes, à observação de como “a hermenêutica dos discursos” pode permitir a Foucault “explicitar a originalidade de uma formação histórica”20, furtando-se à formulação gratuita de “continuidades enganosas” ao longo do tempo. Porém, por mais que tenhamos aprendido a lição de Foucault sobre as rupturas, sobre a descontinuidade dos discursos de hoje sobre a loucura ou sobre a sexualidade com as práticas discursivas do passado, o antigo problema do referente pré-discursivo retorna, nas páginas do comentarista. Sim, sabemos, todos, que “jamais nos encontramos diante ‘da experiência primitiva, fundamental, surda, quase inarticulada’ de um objeto antes de todo o discurso, de um referente pré-discursivo”21. Aprendemos, todos, que, para além de todas as perspectivas, “os homens jamais têm acesso ao referente nu; o fenômeno que se inscreve na sociedade e na história, tal como é vivido, sofrido, tolerado, incensado, institucionalizado”, como diz Veyne, “sempre foi interpretado de saída, para inscrever-se em todo um dispositivo que ele próprio informa em seu sentido”. E antes que alguém traga a desgastada palavra à discussão, isto nada tem a ver com “relativismo”22. O perspectivismo de Foucault não dispensa a idéia de verdade; dá-lhe, pelo contrário, um tratamento muito diferente de sua concepção tradicional de adequação a uma realidade não humana. Contudo, é na justificativa com que se demite o interesse por tal referente prédiscursivo que o melhor do livro, a nosso ver, se revela. Veyne reconhece, como possível suporte intelectual ao pensamento de Foucault, uma tradição filosófica muito mais heterodoxa do que aquela que lhe acompanha, de modo costumeiro, as apresentações. Assim, se não admira nada, muitíssimo evidentemente, que ele lembre continuamente passagens de Nietzsche, para tal propósito, o fato de admitir que os textos de William James, de Austin, e do segundo Wittgenstein possam ser úteis na interlocução sobre as idéias de Foucault se constitui em passo importante para que certos estranhamentos locais (nossos!) sejam vencidos23. Chama a atenção, por exemplo, que, para assinalar o uso mais interessante do termo “conhecimento” para os escritos de Foucault, Veyne recorra ora a autores que 19
VEYNE, Paul, 2011, p. 27. VEYNE, Paul, 2011, p. 33. 21 VEYNE, Paul, 2011, p. 84. 22 Cf. VEYNE, Paul. 2011, p. 154-155, entre outras passagens ao longo do livro. 23 É bem verdade, como se pode testemunhar em algumas passagens de seus textos, que alguns desses autores não foram, de maneira alguma, estranhos ao próprio Foucault. 20
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parecem estar parafraseando Richard Rorty ora ao próprio nome de Rorty. Foucault não crê numa concepção especular dos saberes (a qual, evidentemente, sempre faria retornar o problema do referente pré-discursivo), diz-nos Veyne, e poderíamos ver dissolvida (no sentido wittgensteiniano) uma série de problemas, se empregássemos termos como “saber” e “conhecer”como o faz Jean-Marie Schaeffer, isto é, numa acepção de contornos rigorosamente naturalistas: “o que é o conhecimento senão uma interação entre duas realidades espaciotemporais, o indivíduo e o seu meio, isto é, um processo empírico, e não um espelho?”24 Ora, a passagem soa indisfarçavelmente rortiana e pode estar aí o germe de uma possível leitura pragmática da relação entre conhecimento e verdade em Foucault. Como também não lembrar de Rorty numa outra passagem em que Veyne glosa as idéias de Jean-Marie Schaeffer? (...) [O conhecimento] só poderia ser esta adequação verídica, este espelho, esta pura luz, se um fundamento transcendental ou transcendente (a garantia dada pela existência de Deus) viesse milagrosamente assegurar-lhe o êxito. Milagre em que a filosofia acreditou até Nietzsche (...). Infelizmente, nenhum discurso pode exercer esse papel sublime, pois “como os diferentes discursos são equipolentes”, continua Schaeffer, “apenas uma ordem de discurso superior, incomensurável com os discursos humanos, poderia operar uma tal subtração”?25
Exatamente como em Rorty, não se trata de idealismo lingüístico nem de subscrever relativismos de quaisquer ordens. O tratamento naturalista que o pragmatista dá a linguagem ( e ao qual os autores parecem simpáticos) parece compatível aqui com a interpretação e as conclusões a que Jean-Marie Schaffer chega a respeito da posição de Foucault. Lê-se em continuidade: A postura epistemológica de Foucault não consistia em reduzir o real ao discurso, mas em lembrar que, desde que um real é enunciado, ele já está sempre discursivamente estruturado. Nesse sentido, a afirmação da irredutível diversidade das colocações em discurso não implicava nenhum idealismo que reduzisse a realidade ao pensamento, nenhum relativismo ontológico.26
Nem sempre o texto se mostra tão coeso em torno desta ideia, infelizmente, e a leitura atenta deverá revelar que um saudável nominalismo seu às vezes parece conviver com a dicotomia entre fenômeno e númeno, tornada dispensável por Rorty, mas ainda presente em várias passagens de Veyne. 24
VEYNE, Paul, 2011, p. 84. Cf. igualmente VEYNE, Paul, 2011, p. 119-120. VEYNE, Paul, 2011, p. 84-85. 26 VEYNE, Paul, 2011, p. 85. 25
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Há muito ainda o que se falar sobre como o perspectivismo pode aproximar autores neopragmáticos do rico legado de Foucault, mas no espaço de uma resenha, a questão só precisa ser apontada. E nem Veyne está sendo original: estas articulações já foram propostas várias vezes27. Como caixa de ferramentas, no entanto, este livro de Veyne pode se mostrar, sem dúvida, útil para despertar o nosso interesse de aprofundar tais possibilidades de diálogo. Desnecessário falar do capricho da edição desta obra pela sempre criteriosa Civilização Brasileira, mas futuras edições poderão corrigir pequenos problemas de digitação (como os registrados, por exemplo, à p. 240). Quanto ao retrato mais íntimo, tão simpático e comovente, que Veyne deu de seu grande amigo, algumas partes dele já haviam sido publicadas em outros lugares28. O anedotário de Veyne sobre Foucault, nunca gratuito ou inteiramente dispensável (como se faz em relação a tantos outros apresentadores de “sua” vida), muitas vezes nos parece querer mostrar o quanto o grande pensador francês sempre se interessou por novos caminhos de liberdade, o que significa dizer, por resistir a formas normatizadas de pensar e agir – sua “estranha coragem”, da qual deu provas desde cedo. Uma única palavra, então, sobre um texto como este: “urgente”.
Referências bibliográficas: DAVIDSON, Arnold I. Foucault and his interlocutors. Chicago: University of Chicago Press, 1997. PRADO, C.G. Starting with Foucault: an introduction to genealogy. Boulder: Westview Press, 1995. VEYNE, Paul. Como se escreve a história/ Foucault revoluciona a história. 3ª. ed. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: UnB, 1995.
27 28
Cf., por exemplo, PRADO, C.G., 1995, p. 148-150. Cf. VEYNE, Paul. The final Foucault and his ethics. In: DAVIDSON, Arnold I., 1997, p. 225-233.
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RESENHA El Abuso de la Belleza – la estética y el concepto del arte – Arthur C. Danto. Trad. Carles Roche. Buenos Aires: Paidós, 2005. Susana de Castro (UFRJ/PPGF)
Como o próprio Danto deixa claro na introdução (p. 50), este livro constitui o terceiro volume de sua filosofia contemporânea da arte. No primeiro, Transfiguração do Lugar Comum, publicado nos EUA em 1981, descreveu o que se pode chamar de uma ontologia da obra de arte; e, no segundo, Depois do Fim da Arte, publicado em 1997, desenvolve uma história filosófica da arte. Neste terceiro volume, aborda o papel da beleza e da estética na arte contemporânea. Em todos os três volumes, Danto relata como a (sua) filosofia da arte surge na década de 60, mais precisamente em 1964, quando Andy Warhol expõe as suas cópias das caixas de Brillo Box. Pede desculpas ao leitor deste terceiro volume pela repetição do exemplo, mas reforça o valor que atribui especificamente a esta obra. Entender a contribuição de Danto para a filosofia da arte significa entender o quanto a obra de Warhol aproximou a arte da filosofia, ou, em outras palavras, transformou a arte em filosofia. Em poucas palavras, pode-se dizer que assistimos na obra de Warhol a retomada da visão duchampiana da arte como pensamento. Não importa o que se vê, mas sim o que se quer comunicar com a obra, qual o significado dela para o artista. Duchamp pertenceu ao movimento europeu dadaísta. Para tais artistas, testemunhas dos horrores da 1. Guerra, associar as belas artes à beleza e ao bom gosto, à moral e à piedade, representava um cinismo frente aos horrores a que a chamada civilização ilustrada fora capaz de produzir. Como mostras de seu repúdio a este cinismo, empregaram em suas obras materiais e formas aparentemente destituídas de beleza, como recortes de jornais, e realizavam apresentações e performances efêmeras e em lugares inusitados, longe dos museus. Quando Duchamp envia para uma exposição a peça intitulada ‘Chafariz’, constituída unicamente por um urinol comprado na loja de materiais hidráulicos, dá o primeiro passo em direção ao que convencionou-se chamar de ‘arte conceitual’. Não interessava mais a ele, como artista, a produção de ‘imagens’, ou objetos para serem vistos, mas sim a produção de obras que levassem a pensar, a discutir a respeito do seu significado, e das intenções do artista. Rompe-se, aqui, na história da arte contemporânea com um paradigma da arte marcada pela ideia clássica de autoria. Do 112 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
ponto de vista material, podemos afirmar que ‘Chafariz’ não é de autoria de Duchamp já que se trata de um produto industrializado, porém o que importa é o que ele agrega a este produto industrializado em termos de ideia e pensamento. A arte do século XX vai aos poucos rompendo com os ideais pictóricos, de beleza e harmonia, e se aproximando do seu ‘fim’. A filosofia da arte de Danto é marcada pela perspectiva hegeliana da arte. Para Hegel, na medida em que a arte fosse se distanciando de seu papel de mimesis da natureza e de meio para a religião, o adorno e a arquitetura (arte aplicada) e entrasse no universo propriamente artístico e cultural ela tomaria consciência de si, enquanto produção do espírito e não da natureza. Ao adentrar no universo do espírito, que tem consciência de si, ou seja, se percebe enquanto espírito, a arte no sentido tradicional, pictórico, acabaria. Para Danto, a obra de Warhol representa esse fim. Nela não vemos mais traços de uma busca pela representação daquilo que está fora do pensamento, do chamado ‘real’ natural, o original. Seu tema é sempre um produto do espírito, de cultura (de seu tempo), daí as suas escolhas temáticas, como a sopa de Campbell, as fotos de estrelas do cinema, as manchetes de jornais, as histórias em quadrinho etc. Ao escolher temas tão ‘vulgares’ para o gosto refinado, como latas de sopa, comidas industrializadas, objetos trivais de uso comum, como gravatas e utensílios domésticos, os artista de vanguarda da década de 60 estavam claramente questionando as fronteiras entre a as belas artes e as artes ordinárias, como as de massa, e também as fronteiras entre o plano ‘superior’ do gosto estético e o da vida ordinária, com todo o impacto que a propaganda sobre ela. Este momento da vanguarda pop dentro da história da arte contemporânea coincide com a discussão encetada pelos positivistas lógicos sobre a impossibilidade de dar significado objetivo a termos como ‘beleza’. A análise da linguagem mostra que vários conceitos filosóficos carecem de definição rigorosa, seu entendimento dependendo, na verdade, do contexto em que tais palavras são empregadas. Isso ocorre com o conceito de ‘belo’. Ela funcionaria mais como uma exclamação ou uma interjeição do que propriamente como a apresentação na frase de um significado a que todos facilmente entenderiam. Afiliado intelectualmente à escola da filosofia analítica, Danto vislumbrou com o surgimento da vanguarda pop a possibilidade de associar seus interesses filosóficos com seus interesses artísticos, e produzir uma filosofia da arte. A filosofia da arte em nada se assemelharia à disciplina da estética, pois ao contrário desta, não está preocupada como belo ou com o bom gosto. Inclusive, dada a mudança de paradigma nas artes, da ‘visão’ para o ‘conceito’ ou pensamento, a existência de uma disciplina acadêmica como a estética parece ser 113 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 3, 2012
supérflua. As vanguardas artísticas, desde o movimento dadaísta, privilegiam o oposto da beleza, ao invés de agradar o consumidor de arte, querem provocá-lo, causando-lhe muitas vezes, inclusive, a repugnância. Para Danto, a vanguarda pop deu lugar na história das artes contemporânea as ‘arte abjeta’ – ‘deu lugar’ no sentido de causação; a segunda não teria surgido sem a primeira. A arte abjeta não só quer manter a aproximação entre belas artes e artes ordinárias (ou temas ordinários da vida), mas quer também nos aproximar do que consideramos repugnante. Os artistas vanguardistas que promovem esta aproximação de coisas repugnantes (para um gosto civilizado puritano), como a pornografia (ex. as fotografias de Robert Mapplethorpe), ou mesmo universalmente repugnantes, como na obra de Damien Hirst, ‘A Thousand Years’ (1990; Danto, p. 92: o artista expõe a cabeça de uma vaca em estado de putrefação), não criam em momento nenhum a expectativa de que suas obras venham a ser chamadas de belas em um futuro não muito distante. Não se trata de expor a obra à provação dos limites temporais, mas uma total aversão à possibilidade dela estar vinculada a algo como a beleza. Como Danto vai pontuando ao longo do livro, a arte repugnante não é um completo novum. É possível acharmos ao longo da história da arte, obras que também tinham esse caráter, como, por exemplo, ‘O príncipe do mundo’, uma escultura gótica alemã de 1310 (Danto, p. 93 e seg.). O belo tem a ainda algum lugar na arte contemporânea? Para Danto, a aparição espontânea de altares improvisados por toda Nova Iorque após o atentado de 11 de setembro, lhe deu provas de que em momentos extremos da vida, a necessidade da beleza está profundamente arraigada no ser humano (p. 51). Se, por um lado, é possível afirmarmos que a beleza é extrínseca ao ‘Chafariz’ de Duchamp, isto é, ela não faz parte do seu significado, por outro, também podemos dizer que ela é intrínseca à obra ‘Elegies for the Spanish Republic’, de Robert Motherwell (Danto, p. 49). A questão central do livro é a de explicar a presença dessa beleza intrínseca na obra de alguns artistas contemporâneos.
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano III, número 3, 2012 ISSN: 1984-7157
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
www.ppgf.org
www.gtdepragmatismo.com
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