Cariri Revista 12

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E D I Ç Ã O E S P E C I A L 2 A N O S Edição 12

PADRE CÍCERO

Histórias, memórias e imagens que se multiplicam

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#caririeditorial

CAROS AMIGOS, Esta é uma edição especial, dedicada ao Padre Cícero, em que buscamos abordagens diferenciadas a respeito dessa figura tão fundamental para a história passada, presente e futura da região. Foi também pela diferença que fez a sua presença que o Cariri se destacou para o mundo. De um lugar de esquecidos, desvalidos, desesperados, Juazeiro do Norte tornou-se um destino de peregrinos que levantaram em torno de si a prosperidade. Padre Cícero foi o gestor sábio de todo esse processo, desempenhando importante papel político, sem nunca negligenciar o de mentor espiritual e moral de todas os segmentos da sociedade daquela época – coronéis e jagunços, ricos e pobres, infratores e virtuosos, todos o obedeciam e tinham nele a referência maior. Esta edição não pretende contar a trajetória inteira de Cícero, muito menos repetir o que muito já se escreveu a seu respeito. Escolhemos alguns pontos para lembrá-lo, evidenciando o legado que deixou e que

nos deve servir de exemplo. Lembrar Padre Cícero preocupado com a educação, com o meio ambiente, com ensinamentos de práticas e mentalidades que ensinassem a população a cuidar da sua estabilidade financeira e social. Por mais erros ou equívocos que tenha cometido, o saldo de sua passagem por aqui é indubitavelmente positivo. Continuaremos sempre a falar de Padre Cícero em nossas páginas, como fizemos desde a primeira CARIRI. Esta edição tem de especial o fato de nos debruçarmos mais longamente sobre alguns dos inúmeros aspectos pelos quais pode ser conhecido e compreendido. A todos os que colaboraram para viabilizar este trabalho a nossa imensa gratidão. Tuty Osório, Editora-Geral.

A Editora 309 surge para expandir a atuação da Cariri Revista e consolidar o projeto editorial que iniciou em 2011. Envolvida e em sintonia com a pulsante região do Cariri, a Editora 309 desenvolve publicações de alto padrão dirigidas a atender as expectativas de leitores críticos. De espírito criativo e inovador, a 309 lança-se com o ânimo e a coragem de uma equipe multidisciplinar, formada por profissionais conscientes da importância de seus papéis e determinados a serem protagonistas de uma grande história. Marcada por referências que darão significado e expressão a suas publicações no mercado editorial. Bem vindos à 309!

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#caririconexão Por Lara Costa

Ultrapassamos as 2.000 curtidas no facebook, conquista que vai muito além de um número. Nossa publicação é bimestral, mas é através dessa e de outras ferramentas que nos comunicamos com você diariamente. Na rede, os papéis se misturam. Produzimos e absorvemos conteúdo, do virtual para o real, ou vice-versa. E falando em rede, o jogador Nasa foi capa da nossa última edição, que, com o perdão da rima, bateu um bolão. Confira os comentários e continue na torcida por uma Cariri Revista cada vez melhor!

Facebook Li e curti. Didiu Alves

Tweets @jorgivania Jorgivania Lopes

Lendo, curtindo a aprovando a versão digital da @caririrevista pelo smartphone! Ficou demais! :-)

@julioalveslopes Julio Lopes

Acho até, que todas as estórias contadas nesta edição dariam excelentes curtas... Imaginário é fantástico! Gustavo Cabral

Gente, recebi a @caririrevista e fiquei impressionado com a qualidade dos textos e do design da revista. De encher os olhos!

Muito boa a reportagem sobre os doces lá de Madeilton, deu saudade do doce, vou lá! Mano C. Emanuel Amorim Pereira

@AniziaA Anizia Amaro

Quero meu exemplar! Saudades da minha terra! Do meu Cariri tão bem retratado!! Eva Campos

A expressão viva da cultura cratense: João Do Crato. Hemmanoel Bezerra

@caririrevista Saudades de ler essa revista. #SaudadesdomeuCariri. Boa noite!

@VerinhaTorres1 Verinha Torres

ERRATA No segundo parágrafo do texto sobre a seca,VIDAS SEVERINAS, na edição 11, um erro de revisão alterou a fala do professor Álamo Feitosa, do Geopark. O professor havia proferido “a gente tem que se lembrar” e saiu publicado “nós temos que se lembrar”. Ao professor Álamo e aos leitores da CARIRI as nossas desculpas.

Envie sua mensagem para Cariri Revista pelo e-mail: tutyosorio@gmail.com, Twitter: www.twitter.com/caririrevista ou Facebook: www.facebook.com/CaririRevista.

@caririrevista Colecionar suas edições vai além de um hobby; é pela certeza de que cada uma delas é uma joia rara a compor o meu tesouro!!!

@joicenunes Joice Nunes

Parabenizo a @caririrevista pela edição de julho! Ótimas matérias e, sobretudo, um lindo design. Vida longa à revista Cariri!

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#edição 12 AGO/SET 2013

CAPA DESTA EDIÇÃO

Foto: Rafael Vilarouca EXPEDIENTE DIRETORES Isabela Bezerra Renato Fernandes

ENTREVISTA

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EDITORA-GERAL Tuty Osório tuty@caririrevista.com.br EDIÇÃO DE TEXTOS E REDAÇÃO Claudia Albuquerque claus.albuquerque@gmail.com PROJETO GRÁFICO Fernando Brito DESIGN GRÁFICO Álvaro Beleza Lívia Beleza REPORTAGEM Sarah Coelho Lara Costa FOTOGRAFIA Rafael Vilarouca REDES SOCIAIS Engloba www.twitter.com/caririrevista www.facebook.com/caririrevista DIREÇÃO DE ARTE EM PUBLICIDADE Pedro Grangeiro PUBLICIDADE (88) 3085.1323 | (88) 8855.3013 comercial@caririrevista.com.br ASSINATURA (88) 3085.1323 minha@caririrevista.com.br www.caririrevista.com.br COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Allan Bastos Camila Osório Gilmar de Carvalho João Gabriel de Abreu e Tréz Kiko Bloc-Boris Sérgio Pires

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HOMENAGEM

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CENAS REAIS RELEITURAS ENSAIO

28 34 40

MEMÓRIA

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NEGÓCIOS

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EDUCAÇÃO

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52 GASTRONOMIA 64 ESPAÇO CIDADES 81 ESPECIAL 86 SIMPÓSIO

FILMES

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#cariripadrecíceroentrevista

SÁBIA RESIGNAÇÃO “De onde tirou tanta resignação para não conviver, com mansidão, com os desmandos da Igreja?” Gilmar de Carvalho, escritor e pesquisador

CONSELHO AMIGO “Eu não faria nenhuma pergunta. Eu pediria um conselho.” Cícero Peixoto, proprietário da Casa do Eletricista, em Juazeiro do Norte, e filho de uma família de romeiros

OBRA SOCIAL “Querido Padrinho – pois é assim que eu o considero! – será que o Senhor se preocupa mais com a sua reabilitação do que com a continuidade de sua obra social e religiosa no seu “Juazeiro tão querido, terra da Mãe de Deus”, a serviço dos mais pobres do Nordeste? E posso lhe fazer uma segunda pergunta? O que está achando do Papa Francisco e sua opção pelos excluídos da sociedade? De sua afilhada de coração.” Irmã Annette Dumoulin

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SE O PADRE CÍCERO FOSSE VIVO, QUE PERGUNTA VOCÊ FARIA A ELE?

SEM JULGAMENTO “Houve tempo em que eu me enchia de perguntas, como se desejasse ansiosamente que suas respostas me permitissem flagrá-lo frágil e fraudulento. Muitas delas vieram tão espontâneas e serenamente que eu fui me desarmando completamente para inquiri-lo aos olhos de um julgamento histórico, arrogante e impiedoso. De maneira que, por tê-lo descoberto como um homem extraordinário, alguém que legou a seu povo uma herança de indiscutível valia, e que se revelou um missionário de heroicas virtudes a ponto de ser o santo de sua gente, eu me desanimei para julgá-lo, me dando por feliz em ser parte deste legado e por me esforçar em compreendê-lo em meio ao ambiente em que viveu e às contradições que exibiu.” Renato Casimiro, pesquisador e escritor

REABILITAÇÃO FUTURA “O Juazeiro atual corresponde ao que o senhor projetou? O senhor está cansado de tanto esperar pela sua reabilitação?” Daniel Walker, pesquisador e escritor


O CAMINHO CERTO “Pe.Cicero, no inicio do século passado, com sabedoria, inteligência, visão e, principalmente, conhecendo o sofrimento dos nordestinos, transformou uma vila em cidade. Resolveu os problemas das pessoas que o procuravam; mandou cada habitante plantar uma árvore; pediu para quem roubou que não roubasse mais e para quem matou que não matasse mais... Sabemos que em sua época não havia Internet, rodovias, aeroportos ou meios de comunicação. Minha pergunta é: nós, juazeirenses, estamos no caminho certo? Caso não, que atitudes deveremos tomar para os próximos 100 anos, pois, na minha opinião, pouco ou nada foi feito pelo que o senhor construiu com tanto amor.” Juvêncio Gondim, empresário, Grupo J.Gondim

CIDADE ANTIGA “O que nós poderíamos fazer para mudar o Juazeiro, pra voltar a ser o Juazeiro de hoje? Não estou me referindo à condição arcaica, mas à ordenação urbana. Juazeiro era uma cidade bonita, organizada. As reformas que fizeram foram piorando a cidade.” Antônio Chessman de Alencar, presidente da Fundação Memorial Padre Cícero

ANTIVÍRUS CATÓLICO “Padre Cícero, o senhor foi expurgado da Igreja Católica, por então ser considerado um indivíduo muito mais próximo da superstição do que da fé. Como avalia, agora, o movimento dentro do catolicismo de reabilitá-lo, post-mortem? Concorda com a ideia, esposada pelo bispo dom Fernando Panico, de que sua figura carismática é um ‘antivírus contra os evangélicos’?” Lira Neto, jornalista e escritor

CINCO QUESTÕES 1. “Apesar dos mais de 80 anos que o separam das manifestações dos jovens na rua, que pedem que haja melhor uso dos impostos que pagamos, com melhor sistema educacional, de saúde e de segurança, o que o senhor, que foi prefeito de Juazeiro, que tem uma consciência social avançada, por exemplo, criando condições de trabalho para todo e qualquer que vem a esta cidade, o que o senhor diria a estes jovens de hoje?” 2. “Que qualidades o senhor destacaria, a partir da sua própria experiência de pastoreio, no Papa Francisco? Gosta dele?” 3. “Pe. Cícero, eu sempre digo que o senhor deve estar sempre atento para evitar que os motoqueiros de Juazeiro que carregam os membros de suas famílias nas motos, inclusive crianças muito pequenas, se acidentem mais do que já se acidentam... Que conselho o senhor lhes daria para, inclusive, deixálo descansar um pouco?” 4. “O senhor dizia, ainda quando estava aqui entre nós, que a cidade de Juazeiro ia crescer muito, a ponto de se ligar ao Crato e a Barbalha. O senhor sabe que hoje nós já temos a Região Metropolitana do Cariri? Ela é a junção não só dessas três cidades, mas de outras cinco que quase colam umas nas outras. Acho que nem o senhor imaginava isso, não é? Que mensagem o senhor deixaria a esse aglomerado que já não tem mais limites nem fronteiras?” 5. “Mas, agora, eu queria perscrutar o seu coração, quando ele ainda batia e revelava o amor à sua Igreja, em primeiro lugar, e depois para este povo pobre a quem ensinou o amor maior a Jesus Cristo e a Nossa Senhora das Dores: queria perguntar-lhe como foi viver 30 anos ainda, sem a beata Maria de Araujo a seu lado. Ela morreu em 1914 e o senhor em 1944. Portanto, ficaram separados durante 30 anos. Ela, que era a sua ‘espada forte’, como o senhor dizia; ela, por quem o senhor ‘botava a mão no fogo’, não a desqualificando como a maioria dos outros membros da Igreja?” Maria do Carmo Pagan Fortin, psicóloga e teóloga

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#cariripadrecíceroentrevista

RAFAEL VILAROUCA

CONVERSA COM CÍCERO ROMÃO BATISTA

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á homens que jamais caberão em poucas palavras. Enquanto Irineu Pinheiro considera Padre Cícero “um dos maiores fatores de progresso da vida econômica sul cearense”, a escritora Maria de Lourdes M. Janotti o situa como “o mais célebre dos coroneis”. Sem demora, José Boaventura de Sousa intervém: “Foi um coronel porque todos o procuravam como um líder”, ao passo que Euclides da Cunha reduz o Padre a expressões duras: “heresiarca sinistro”. Manuel Diniz, advogado, rebate: “Heresiarca por que, se Cícero jamais deixou de obedecer até mesmo ao zelo inexplicável de seus superiores?”. Rachel de Queiroz defende: “Padre Cícero é o nosso santo”. Rodolfo Teófilo ataca: “Padre Cícero se passava por santo”. Sentado à nossa frente, o homem de batina preta e olhos azuis abre o coração e conta, com suas próprias palavras, o que aconteceu em Juazeiro, defendendo-se das acusações que resultaram na suspensão de suas ordens. No alto

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de seus 90 anos, Padre Cícero fala pausadamente, sem pressa, desfiando suas convicções sobre fé, política, seca no Nordeste, Juazeiro, Floro Bartolomeu e outros temas que até hoje apaixonam os estudiosos. * Vamos começar com um assunto melindroso: a Questão Religiosa. Como ocorreu pela primeira vez o chamado Milagre da Hóstia? Pe. Cícero: Temos aqui uma Irmandade do Sagrado Coração de Jesus – o Apostolado da Oração – com muita gente. Chegou a primeira sexta-feira do mês de março, da quaresma do ano de 1889, eu chamo a toda a irmandade, como de costume, para uma comunhão reparadora do mês e todos mais que quisessem tomar parte. Passei toda a noite confessando homens, na igreja, aonde passavam também orando seis ou oito mulheres; com pena delas, interrompi o trabalho e fui


como certa que era a mesma hóstia, conservava um certo equilíbrio para não gotejar no chão. O senhor chamou algum médico para testemunhar o fenômeno? PC: Dois médicos e um farmacêutico distinto do Crato todos viram e examinaram com o maior escrúpulo e consciência, afirmando a verdade e sinceridade do fato. Mas, a verdade é que a Igreja condenou o milagre. PC: De fato, a Igreja condenou, mas a condenação resultou do modo como fizeram o processo aqui no Ceará. Foi empregado tudo, ameaças, seduções de todo modo, os mais refinados sentimentos de compaixão, até as lágrimas de fino cômico. Padre Alexandrino e os outros encarregados de destruir a verdade pegaram uma pobre mocinha e, aterrada, sem saber o que dizia, afirmou horrores, cobrindo tudo de infâmia e dizendo que davam sangue de pinto para se botar nas hóstias, e outros absurdos. Tudo que exigiram que dissesse, ela dizia, e outro servindo de secretário escrevia para ser mandado ao Sr. Bispo, e este à Santa Sé, como documentos fidedignos. Pagaram até a pessoas inconscientes, doando 5.000 réis, vestidos e outros manejos indecentes, fazendo-as dizer calúnias contra mim e outras pessoas. Fizeram como se fez com Joana d’Arc: um processo para um resultado condenatório. O Santo Ofício, perante um tal processo, devia condenar como fez, e não podia julgar de outro modo. O processo foi deturpado. O mesmo bispo disse a Mons. Monteiro que tinha arranjado o seu relatório, e na Pastoral declarou que havia juntado outras peças. despachá-las, dando-lhes a comunhão de quatro e Tudo fez para destruir o fato do Juazeiro. Peço encerrar meia para às cinco horas, antes dos outros. com esta afirmação este assunto. Jurei, prometi ao TriQuando dei à beata Maria de Araujo, que era a pri- bunal do Santo Ofício, não falar mais sobre estas cousas. meira, a sagrada forma, logo que a depositei na boca dela, imediatamente transformou-se em porção de Pessoalmente o senhor acredita no milagre? sangue, que uma parte ela engoliu, servindo-lhe de PC: Eu sou obrigado a dizer que é verdade porque fui comunhão e outra correu pela toalha, caindo algum testemunha muitas vezes. Ainda que exceda a pouca no chão. Eu não esperava e vexado para continuar fé minha e de outras pessoas, que não sabemos os as confissões interrompidas, que eram ainda mui- excessos de amor do Sagrado Coração de Jesus, tas, não prestei atenção e por isto não apreendi o fazendo esforços para salvar os homens, não posso fato na ocasião em que se deu; porém depois que duvidar, porque vi muitas vezes. depositei a âmbula no Sacrário e vou descendo, ela vem entender-se comigo, cheia de aflição e vexame Sendo assim, por que não o sustentou de morte, trazendo a toalha dobrada, para que não publicamente? vissem, e levantava a mão esquerda aonde nas costas PC: Não quero de forma alguma sustentar nem defenhavia caído um pouco e corria um fio pelo braço e ela der os fatos ocorridos no Juazeiro, quando já declarei com temor de tocar com a outra mão naquele sangue, e torno a declarar que, uma vez que a Suprema ConCARIRI REVISTA 17


ARQUIVO DANIEL WALKER

gregação do Santo Ofício os condenou e reprovou, eu os condeno e reprovo, obedecendo sem restrição nem reserva a sua decisão e decretos, como filho submisso e obediente da Santa Igreja.

vel. São amigos meus que vêm de muito longe, com sacrifícios de toda sorte, render seu preito de veneração a Nossa Senhora das Dores.

Alguns escritores disseram que o propalado milagre não passou de um embuste, e até chegam a insinuar a sua participação. PC: Perante Deus tenho a minha consciência tranquila. Neste mundo, durante toda a minha vida, quer como homem, quer como sacerdote, nunca, graças a Deus, cometi um ato de desonestidade, seja sob que ponto de vista se possa ou se queira encarar, nem nunca cometi nem alimentei embuste de espécie alguma. Eu ofereço Deus como meu Juiz inteiro em testemunho de minha inocência.

O ato de suspensão de suas ordens teve alguma repercussão? PC: Foi um horror terem-me assim roubado o meu sacerdócio e terem-me assim coberto de tão grande injúria no meio da sociedade e no meio da Igreja, com tais penas e opressões tão grandes contra mim e contra os meus. Foi tão grave aos olhos de todos que uma grande parte do Brasil onde sou muito conhecido, todos ficaram admirados, e outros escandalizados e cheios de indignação por cousa tão inesperada, como se vê dos mesmos jornais de diferentes Estados.

Queriam os seus superiores hierárquicos impedir a visita dos romeiros à sua casa, e isto o senhor não aceitou. Por que? PC: Não posso fechar as portas de minha casa aos que me vêm visitar. Não recebê-los seria não somente imperdoável descortesia, mas uma ingratidão inominá-

Como o senhor foi tratado em Roma? PC: Com muita consideração e com a melhor boa vontade fui tratado em Roma. Apresentei-me ao Santo Tribunal do Santo Ofício em várias sessões, julgaram-me inocente, dando-me absolvição se por ventura incorresse em alguma censura, ficando absolvido de

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todas, e mandaram-me para o meu domicílio - o Juazeiro -, para aqui mesmo celebrar. Requeri ao Santo Padre a faculdade de Oratório Privado, alegando o estado de cegueira e de doença de minha mãe e a Santa Congregação dos Bispos de Trento me concedeu por um Rescripto Apostólico, o qual o Sr. Dom Joaquim não quis dar o visto e nem o considerou em nada. E como o Bispo o recebeu, depois que o senhor voltou de Roma, absolvido? PC: Voltando de Roma na melhor boa fé, o Sr. Bispo quis retirar-me de Juazeiro, e tendo a Santa Sé dado-me positivamente a faculdade de aqui morar e aqui celebrar, ele, entretanto, não fez caso da prescrição da Santa Sé e tratou de continuar a proibição de celebrar no Juazeiro. Podia celebrar em outra parte. Tirou-me a faculdade de Oratório Privado. Eu, não obstante o Secretário da Congregação dos Bispos de Trento me ter dito que, no caso de ele fazer oposição, reclamasse para a Santa Sé, eu, que nunca quis fazer questão, calei-me.

culminou com a deposição do governo Franco Rabelo, ainda há quem atribua ao senhor a responsabilidade direta. PC: Posso afirmar, sem nenhum peso de consciência, que não fiz revolução, nela não tomei parte, nem para ela concorri, nem tive nem tenho a menor parcela de responsabilidade direta ou indiretamente nos fatos ocorridos. Mas dizem que o senhor chegou a pedir a renúncia do Presidente Franco Rabelo? PC: Quando, em novembro de 1913, o meu amigo Dr. Floro Bartolomeu da Costa, atual Deputado Federal por esta cidade e diretor político desta terra, de volta do Rio de Janeiro me informou que os chefes do partido decaído haviam resolvido reunir a Assembleia Estadual aqui, por ser impossível a reunião em Fortaleza, em virtude da pressão exercida pelo partido governante, e dar-lhe a direção

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Sendo assim, de nada adiantou sua viagem a Roma! PC: De nada, pois, aproveitou-me ter ido a Roma, ter-me submetido a tudo o que o Santo Ofício quis de mim, como sacerdote, nem ter sido absolvido de todas as penas. O senhor alguma vez desejou ser político? PC: Nunca desejei ser político; mas em 191l, quando foi elevado o Juazeiro, então povoado, à categoria de Vila, para atender aos insistentes pedidos do então Presidente do Estado, o meu saudoso amigo Comendador Antônio Pinto Nogueira Acioli, e para evitar, ao mesmo tempo, que outro cidadão, na direção política deste povo, por não saber ou não poder manter o equilíbrio de ordem, até esse tempo mantido por mim, comprometesse a boa marcha desta terra, vi-me forçado a colaborar na política. Falemos agora da Sedição de Juazeiro. Apesar de Dr. Floro Bartolomeu da Costa haver declarado que foi ele o chefe e único responsável pelo famoso movimento sedicioso que

Pe. Cícero, tendo a seu lado o rábula José Ferreira de Menezes. Atrás deles, da dir. para a esq.: Irinéia Furtado de Menezes, Laura Ferreira de Menezes e Joana Tertulina de Jesus (beata Mocinha). Data provável: final dos anos 20.

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E o que dizer da seca do Ceará? PC: Só quem viu 77 entre nós, pode avaliar o que seja o flagelo das secas nos sertões do Norte! É uma aflição os horrores da seca; parece que fica deserto o Ceará. Cada cearense deve ser uma trombeta na imprensa e em toda parte, gritando com toda força, pedindo socorro para o grande naufrágio do Ceará. Pode ser que esses Quem foi Dr. Floro para o senhor? governos, que têm dever de salvar os Estados nas calaPC: Meu grande e inolvidável amigo, cuja morte refuto midades públicas, despertem este clamor e não queiram uma grande perda para o Juazeiro, para o Ceará e mes- passar por assassinos, deixando morrer caprichosamenmo para a Nação. te milhares de vidas que podiam salvar e não querem. Estamos certos que só a Providência nos dará remédios. Em 1926 o Bispo lhe ofereceu a oportunidade de anular a pena de suspensão de ordens, O que o senhor aspira da vida? desde que o senhor deixasse Juazeiro. Por PC: Aspiro a um cantinho esquecido e desapegado de tudo, cuidando só de salvar-me. que o senhor não aceitou a oferta? Seria uma calamidade se eu me visse na contingência de abandonar esta cidade, porque, além do mais, Ao final desta entrevista, quais as suas últiacredito e devo dizer que o povo não se conformaria mas palavras? com uma tal medida, que talvez desse lugar a um movi- PC: No céu pedirei a Deus por vocês todos. mento de desastrosas consequências.

do movimento reacionário, com a maior lealdade ponderei, em carta reservada ao coronel Franco Rabelo, sobre a vantagem da sua renúncia. E assim procedi porque, sem nada mais de grave propriamente saber, a não ser da reunião da Assembléia, percebi, pelos precedentes de violência do então governo, a possibilidade de uma luta.

REPRODUÇÃO

MÁXIMAS DE CÍCERO “Nunca fiz mal a ninguém, nem a ninguém votei ódio ou rancor”. “Sou filho de Crato, mas Juazeiro é meu filho”. “Juazeiro foi uma cidade feita por mim. Se Deus em pessoa me botou aqui, só Deus pode me retirar”. “Depois da minha morte é que Juazeiro irá crescer”. “Todo aquele que ensina é portador de luz para os que não sabem”. “A calúnia e a má vontade me perseguem e me fazem sua vítima”. “Só na velhice, pelas sinceras provas de lealdade durante toda vida do homem, é que pode-se ter a convicção da verdadeira amizade”. “As ambições e elementos corrosivos movem os que governam”, “No terreno político, os homens de valor, por questões de patriotismo não têm direito de ser modestos”. “Há generosidade que não se pode e nem se sabe pagar”. “Perdoem, e ainda que as nossas paixões não queiram perdoar, perdoem. (...) É preciso para nos salvar que perdoemos aos que nos ofendem”. “Façam de mim o que quiserem”. 20 CARIRI REVISTA

* Essa entrevista com o Padre Cícero pode ser lida, na íntegra, no livro “Padre Cícero na Berlinda”, do pesquisador Daniel Walker, que utiliza o recurso jornalístico conhecido como entrevista-montagem. As respostas de Cícero às perguntas foram extraídas literalmente de publicações consultadas por Walker e publicadas pela CARIRI em versão compilada. O texto de abertura desta matéria é nosso. Agradecemos ao prof. Daniel Walker pela permissão de uso do material.


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RAFAEL VILAROUCA

#cariripadrecíceromemória

VIDA NOVA PARA O MEMORIAL Por Claudia Albuquerque

O Memorial Padre Cícero tem 25 anos de histórias e problemas. A atual administração promete uma injeção de ânimo para acordar esse gigante que, dentre outras preciosidades, guarda o testamento do Padim.

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izem que Honoré de Balzac, o escritor, bebia 400 xícaras de café por dia”, sorri o professor Antônio Chessman Alencar, com um grande copo fumegante nas mãos. “Eu estou quase chegando lá”. A conversa começa na pequena sala em que trabalha, mas logo se estende pelos corredores do Memorial Padre Cícero, o “museu mais visitado da América Latina”, como ele faz questão de frisar. Inaugurado no final da década de 80, o Memorial descansa no largo do Socorro, em Juazeiro do Norte, saudoso do tempo em que era jovem e cheio de viço, sem os sinais da velhice precoce que hoje marcam a sua fisionomia. As salas de exposição, o auditório, a biblioteca e um interessante complexo, que abriga três praças contínuas, seguem atraindo os romeiros, que, distraídos, nem percebem o ar de cansaço, as infiltrações, o desgaste das juntas e os remendos improvisados em 25 anos de administrações sucessivas. Vindos de todo o Brasil, os visitantes estão mais interessados na coleção de objetos, fotos e peças expostas, como a vestimenta bordada em ouro e prata que Padre Cícero recebeu do papa Leão XIII, quando esteve em Roma, em 1890. Ou o seu exótico polyphone, espécie de radiola e caixa de música com que alegrava os ouvidos sacerdotais nos momentos de lazer. Fabricado na Alemanha, o aparelho do século XVII consiste num disco cheio de pinos que tocam em hastes ao serem movimentados por uma manivela, produzindo diferentes notas. Imagens históricas, jornais raros e móveis austeros falam de outros tempos, outros anseios, outras lutas. O

chapéu, a bengala, a porcelana florida, os talheres de prata e a bacia de louça francesa com que Cícero lavava o rosto também estão lá, assim como o seu testamento – um documento tombado por lei municipal, que em 2010 chegou a ter as últimas páginas encharcadas pelas chuvas (sim, choveu dentro do Memorial). “O testamento precisa urgentemente de um restaurador, para depois ser digitalizado e exibido no site que já estamos criando”, comenta o professor. Frágil, extenuado e ofegante, o Memorial Padre Cícero quer vida nova. “Tem muita coisa guardada lá em cima que eu vou trazer para cá”, promete Chessman. Músico, historiador e professor da Urca na área de Filosofia, com tese de doutorado sobre Padre Cícero e a Coluna Prestes, ele teve seu nome circulando nos bastidores políticos como possível candidato a secretário de Cultura de Juazeiro, mas acabou sendo indicado para a presidência da Fundação Memorial Padre Cícero, cargo que assumiu em janeiro de 2013 e que – somente na administração passada – tirou o sono de sete gestores consecutivos. CARIRI REVISTA 23


RAFAEL VILAROUCA

Antônio Chessman na Fundação Memorial Padre Cícero: disposta à luta.

O TEMPO NÃO PARA Quando o Memorial Padre Cícero foi inaugurado, no dia 22 de julho de 1988, cerca de 20 mil pessoas acompanharam a solenidade de abertura, que contou com a presença do então presidente da República José Sarney. Tecendo elogios à iniciativa, ele lembrou que, naquele mesmo dia, estava sendo entregue o açude dos Prazeres, em Barro, que iria perenizar o Rio Salgado. “Com as outras obras hídricas desta região, sem dúvida, o problema da água estará resolvido no sul do Ceará”, disse o confiante presidente. Nem o problema da água foi resolvido, nem o Memorial se manteve entre as preocupações governamentais. Combalido por anos de desatenção política, suas salas expõem obras raras sem as devidas condições de climatização, umidade e luminosidade. Há alguns anos, parte do forro do teto ruiu e um remendo de gesso foi improvisado, com buracos sendo tapados com cola Araldite – por mais surreal que isso pareça. A força das chuvas encharcou móveis e paredes. No final de 2009, convidado pelo então secretário José Carlos dos Santos para presidir a Fundação Memorial Padre Cícero, na gestão do prefeito Manoel Santana, o estudioso Renato Casimiro assumiu o cargo com satisfação. Escritor sensível, intelectual engajado, profundo conhecedor do Cariri e amante de sua cultura, Renato parecia a pessoa certa no momento ideal. “Confirmei que aceitava o convite, especialmente porque 24 CARIRI REVISTA

era-me ensejada a oportunidade de realizar a reforma do Memorial, em cujo orçamento para 2010 havia disponibilidade financeira. O que eu não sabia era que aquele orçamento era uma peça de ficção”. Na prática, havia disponibilidade financeira consignada no orçamento, mas não havia dinheiro no cofre da municipalidade para implementar o que precisava ser feito, ou seja, para salvar a instituição da calamitosa situação de suas instalações. “Ter estado à frente do Memorial por cerca de sete meses ampliou a minha relação de frustrações na vida”, lamenta Casimiro, que se viu obrigado a administrar “o possível”, com praticamente quatro pagamentos mensais (luz, água, telefone e folha de pessoal, com 21 colaboradores). “Na maior parte do tempo me foi negado até R$ 1.500,00 por mês, para pequenas despesas, a título de suprimento de fundo, do qual se tinha de prestar rigorosa comprovação. Não foi possível fazer nada”. Meses depois de sua saída, Renato ficou sabendo “de uma reforma fajuta, um arremedo horroroso que continua imprimindo àquela instituição o grande vexame de ser um dos museus mais visitados do país e que hoje tem ampliada a sua necessidade de uma reforma de grande extensão”. SUSTO DE INICIANTE A primeira emoção forte que Antônio Chessman sentiu quando assumiu a Fundação foi de susto. Na segunda


AS OBRAS DO ENTORNO Hoje, o visitante que chega ao Memorial pela Praça do Cinquentenário, encontra tapumes e homens trabalhando. É uma obra do Governo do Estado, dentro do Projeto Roteiro da Fé, que está requalificando marcos importantes da rota dos peregrinos, como as praças dos Salesianos, dos Franciscanos e do Socorro. “As obras vão melhorar a acessibilidade, com rampas e sinalização para deficientes visuais. O piso está sendo unificado e todos os locais escolhidos receberão nova iluminação e paisagismo”, explica Valdo Figueiredo, secretário da Cidade. Tocado desde fevereiro do ano passado, o projeto chegou há alguns meses na Praça do Socorro – de onde se avista o Memorial Padre Cícero. Tendo sofrido várias paralisações, por causa das tensas negociações com os barraqueiros instalados há muitos anos nas proximidades do cemitério, a iniciativa prevê novos quiosques de lanches e artesanato, que estão sendo erguidos do lado oposto ao das velhas barracas, hoje desapropriadas. Do lado de cá do Memorial, Chessman Alencar não

vê com muita alegria essas novidades. “A tendência é que os quiosques fiquem abandonados à noite, atraindo todo tipo de situação perigosa”. Entretanto, com o espírito dos que se engajam numa missão maior, logo recupera o ânimo. “O Memorial não é voltado à religiosidade, mas à história de Juazeiro. E eu quero sair dos muros do Memorial, quero cada vez mais mostrar o acervo para as pessoas que não vem para cá, por isso o acordo com o Cariri Garden Shopping. Gostaria também de trazer oficinas, transformando o Memorial num lugar lúdico. Nós temos xilógrafos, artesãos e artistas maravilhosos. Vamos dinamizar esse espaço”. Em busca dessa dinamização, que depende de recursos financeiros, o professor criou um projeto chamado Doadores do Memorial Padre Cícero: a pessoa que doar acima de R$ 50,00 vai ter uma foto estampada numa cerâmica, a ser colocada no Memorial, formando junto com as outras uma grande paisagem de Juazeiro.

RAFAEL VILAROUCA

Em exposição, roupas, fotos, livros e objetos de Cícero. CARIRI REVISTA 25


gaveta de um armário velho, ele viu um pacote esquecido, envolto em jornais amarelecidos. “Quando abri, me deparei com o missal de Padre Cícero, de 1845!”. Preocupado com a maneira correta de conservar esta e outras peças, o professor contatou com o IPHAN e recebeu a visita da historiadora Cristina Holanda, ex-diretora do Museu do Ceará, em Fortaleza, que ficou pasma com o que viu. “A reforma que foi feita na gestão anterior foi uma contrarreforma, que veio para destruir. As lâmpadas colocadas nos nichos de exposição não davam luminosidade e esquentavam muito – coisa que a museologia condena”. Ao adentrar a biblioteca, o professor encontrou um acervo organizado fora dos critérios da biblioteconomia. Um armário repleto de livros antigos do Padre Cícero permanecia fechado, porque as obras continham fungo. “Sepultaram os livros!”, comenta, pois “livro em armário que não abre é livro morto”. Para desenterrar o tesouro, o professor calçou luvas, pôs uma mascara e contou com a ajuda de uma bibliotecária. “Hoje a biblioteca já está com cara de biblioteca”, comemora, embora o acervo esteja reduzido. Onde antes existiam 1.500 títulos – segundo funcionários que estão no Memorial desde a sua fundação – hoje

O acervo valioso corre risco constante. 26 CARIRI REVISTA

se acham apenas 800. “Mesmo com os livros que desenterramos, só chegamos a esse número”, detalha Chessman, explicando que a falta de catalogação adequada ao longo de várias gestões acabou permitindo o extravio das obras. “Vou ver de quanto é que eu posso dispor para colocar a iluminação certa em todo o museu”, diz o professor. “Museu não é decoração. É colocar cada peça no local adequado. Não adianta só enfeitar”. Hoje as mesas expositoras são todas horizontais, o que está em desuso e toma muito espaço, além de permitir que os visitantes introduzam, pelas frestas, seus pedidos, orações e recados para Padre Cícero. É uma expressão de devoção que prejudica as peças, algumas de delicada conservação, como as vestes do Padre. O ideal seria dispô-las em expositores verticais, com vidro temperado de 10mm, para que ficassem prensadas e se mantivessem por muitos anos.


ALÉM DOS MUROS Uma das primeiras iniciativas da gestão Chessman foi estabelecer parcerias com o Cariri Garden Shopping, por exemplo, o acordo permitiu que exposições como “As Relíquias de Padre Cícero” (com objetos raros do Padim), “As Artes Reverenciam Padre Cícero” (com pinturas, esculturas, colagens e fotografias que retratam Cícero), “Os Beatos e Beatas – Fotos e Histórias” (um painel fotográfico dos seguidores beatos que tiveram influência na vida da cidade) fossem levadas ao grande público – uma semana no Memorial e outra semana no shopping. A mais recente exposição itinerante foi “O Juazeiro que o Juazeiro Não Conhece”, com fotos e objetos do museu Vila Nova, que funcionava dentro da antiga Escola Normal Rural do Juazeiro e que era mantido pelo próprio Padre Cícero. Chessman entrou

em entendimento com o Padre Giuseppe Venturelli, dos Salesianos (“um homem durão, mas com coração de beija-flor”) e obteve sua permissão para expor algumas peças do acervo. RAFAEL VILAROUCA

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#cariripadrecícerocenasreais

HISTÓRIAS DE

ROMEIROS Duas histórias de famílias que conviveram com o Padre Cícero mostram como Juazeiro foi marcado pela sua influência, no seu tempo e no nosso tempo.

D

izem aqueles que viveram a época, que a casa de Padre Cícero era a casa do povo. As paredes que hoje abrigam um museu em homenagem ao religioso testemunharam por anos a fio o entra e sai desassossegado de outrora. Todos queriam conselhos, remédios, ajuda. E o padrinho estava sempre a postos para receber quem chegasse. Nem sempre. Há quem diga que algumas vezes o Padre simplesmente sumia – já que ninguém o via sair pela porta da frente – e deixava os visitantes surpresos pela sua ausência. Mal sabiam eles que era uma portinha nos fundos da casa o segredo de Cícero. A porta dava acesso à casa do amigo Juvêncio Joaquim de Santana, nomeado em 1923 o 1º juiz de direito da comarca de Juazeiro do Norte. Era lá que tantas vezes Padre Cícero repousava, aproveitando a tranquilidade de outro teto, mas sem afastar-se do povo. Qualquer urgência, ele estaria a apenas uma porta de distância. A relação com Dr. Juvêncio começou quando este era magistrado da comarca vizinha, Jardim. Os comentários sobre o bom trabalho do juiz chegaram aos ouvidos de padrinho, que tratou de convidá-lo para assumir o posto logo ao lado. Convite aceito, Juvêncio mudou-se para Juazeiro, onde sua família – já na quarta geração – vive até hoje. A casa, construída e oferecida à família por Padre Cícero, continua em pé e é mantida pelo neto, Juvêncio Gondim, empresário da região. “Se você for ver a importância histórica e pessoal da casa, o valor comercial não

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é nada”, comenta o neto, para quem a mão de Padre Cícero determinou não só a vida de sua família, mas o destino de Juazeiro do Norte inteiro. “Nada disso existiria se não fosse ele. Independente de milagres, era um homem de muitas virtudes”, afirma sem rodeios. Entretanto, na visão do empresário, a cidade tem deixado aquém o projeto sonhado pelo religioso. “O rumo ele já deu, mas se não seguirmos, vamos acabar chorando sob o leite derramado. Acredito que apesar de todo o desenvolvimento que estamos vivendo, temos muito potencial desperdiçado”reflete. Em uma situação hipotética, Juvêncio Gondim imaginou como seria a oportunidade de encontrar com Padre Cícero nos dias de hoje. Se possível fosse, não pediria bênçãos, pediria apenas paciência: “Continue tendo paciência, meu padrinho, que um dia essa cidade chegará aonde você gostaria que ela estivesse, estamos trabalhando para isso”. NEM GIGANTES, NEM ANÕES A história parece até difícil de acreditar. Foi no ano de 1929, em pleno sertão nordestino, que a enorme família resolveu reunir as crias e partir. Eram quase 150 homens, mulheres e crianças, que seguiam montados em animais, partindo do sul de Alagoas rumo ao Juazeiro do Norte, no Ceará, depois de venderem todos os bens. O motivo do êxodo foi-se entender anos depois, quando a dúvida sobre o quão certeira fora aquela


RAFAEL VILAROUCA

A casa onde Padre Cícero descansava em meio à atenção incansável que dispensava ao povo.

decisão já corroía muitos deles. No fim das contas, as terras deixadas para trás eram mais férteis. Mas não mais abençoadas. A motivação foi revelada ao Padre Cícero por um dos representantes da família, quando houve a oportunidade de pedir conselhos sobre a má situação que os perturbava: “Largamos tudo para ficar mais perto de meu padrinho”. A fama do religioso, que tornaria próspera a região tão castigada pelo sol equatorial, havia se espalhado pelo Nordeste. Alguns persistiram na fé; outros resolveram retornar ao ponto de partida; e houve ainda quem ficasse num penoso vai e volta até ter certeza de onde deveria assentar morada por definitivo. Foi o caso da família de Sr. Cícero – vê-se no nome –, que acabou por deixar de lado as relutâncias e esperar em Juazeiro a bonança tão sonhada. E ela chegou! Foi primeiramente no mercado de joias que seu pai, João Peixoto da Costa, ainda vivo e devoto de padrinho, encontrou a oportunidade para os negócios. “Em época de romaria a gente ficava em festa, devido ao tanto de medalhinha e brinquinho que era vendido”, relembra Cícero Peixoto. O ramo rendeu bons frutos até o fim dos anos 70, quando a venda de joias começou a cair e o negócio desandar. “Foi em 1976, depois de muitas conversas, que meu pai, meu cunhado e eu resolvemos abrir a Casa do Eletricista”, conta o comerciante. Mais de trinta anos depois, o negócio continua em vertiginoso crescimento. Cícero explica que o tipo de

material vendido continua sendo o mesmo, apenas o tamanho mudou: “Já fizemos quatro mudanças; no começo eram apenas 130m2, agora já são 1.500”. Para ele, a mão de Padre Cícero continua a abençoar Juazeiro, que vem alcançando relevantes índices de desenvolvimento. O importante é ter paciência e nunca parar: “Nunca fomos de passos grandes, mas também não somos anões. Estamos sempre tocando o barco em frente, com muito prazer e satisfação”.

RAFAEL VILAROUCA

Cícero Peixoto e sua família: a saga da determinação

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#cariripadrecícerohomenagem

REPRODUÇÃO

O povoado de Juazeiro no século XIX, retratado nas tintas vivas de D. Assunção.

SALVE ASSUNÇÃO, OLHAR COLORIDO ETERNIZADO EM ARTE! Por João Gabriel Abreu e Tréz

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M

aria Assunção Gonçalves, nascida em Juazeiro do Norte, em 1º de junho de 1916, artista plástica autodidata e educadora - a querida Dona Assunção Gonçalves. Com ela, era vívida a lembrança de uma época mais tradicional da cidade. Dona Assunção faleceu no dia 19 de maio deste ano. Mas ambos - tanto ela quanto o espírito daquela época - continuarão vivos, e sempre vívidos, na memória. Em depoimento de 2004 (pronunciado durante a mesa redonda do III Simpósio Internacional Padre Cícero - E Quem é Ele? e disponibilizado na internet por Daniel Walker no Portal de Juazeiro: www.portaldejuazeiro.com), Dona Assunção fala de seu primeiro contato com Cícero . Mal acabara de nascer, e foi logo levada por seus padrinhos à casa do Padim. Na época não havia vigário na cidade e a bebê estava muito doente. Havia risco de morte e a família não queria que ela se fosse sem ser batizada. Padre Cícero, solícito, atendeu ao pedido, deixando todos tranquilos. À medida que foi crescendo, Assunção foi se devotando mais e mais, muito por conta de seus avós, Maria Gambeira Teles de Menezes e o Brigadeiro Leandro Bezerra Monteiro, que eram bem próximos do Padre Cícero. Conviveram os dois – o Padre e a menina – durante

a infância e a adolescência dela, que no mesmo depoimento, citou várias histórias que envolviam o Padre, reafirmando toda a sua admiração, respeito e até espanto que nutria por ele. Contou do dia em que viu uma família chegar de viagem e ir em direção à casa dele, levando junto um homem, fortemente amarrado, que estava com “o cão no couro”. Apavorada, a pequena, então com cerca de seis anos, foi correndo para chegar antes deles e avisar ao Padre o que estava vindo. Encontrou-o deitado na rede. Contou sobre o rapaz que estava por vir. Padre Cícero a acalmou, vestiu sua batina e foi encontrar a família desesperada. O rapaz urrava, espumava, e o Padre mandou: “Tirem as cordas do moço.” Quando ele proferiu essas palavras, a pequena Assunção saiu correndo, com medo. Depois, quando percebeu que as coisas estavam mais calmas, mais seguras, ela voltou, curiosa. O homem outrora possuído estava inerte, abatido. No dia seguinte, estava melhor, já conseguindo se sentar. Depois, ainda, estava visitando a casa do Padre Cícero, com toda a família, como que agradecendo por ele ter tirado o “cão” de seu “couro”. Assunção relembrou, também, que acabou virando menina de recados do Padre Cícero, falou da felicidade dele com a inauguração de sua estátua de bronze, e que, nesse mesmo dia, uma beata esqueceu de “dar o cheiro” que ele sempre usava. Então, quem passou o perfume na bata do Padre foi ela mesma. Citou as cartas que ele escrevia “para o papai, para reis e rainhas”. Disse que ele nunca a chamava de Assunção, deixando-a às vezes com raiva por causa disso. Marcou-a muito a predileção de Cícero por receber “os pobres e os doidos” em sua casa, com o objetivo generoso de serená-los e curá-los. Padre Cícero faleceu em 1934, quando Dona Assunção tinha 18 anos. Ela tornou-se uma personagem única, reconhecida e amada pela comunidade. Professora, artista, figura célebre, amiga, confeiteira de bolos, boa anfitriã. O ícone que é hoje, e para sempre presente. Quando lançamos a CARIRI Revista tentamos entrevistá-la por várias vezes. Uma delas para falar de seus quadros, testemunhos da história cotidiana da cidade, espalhados por casas ilustres e objeto de uma exposição em 2011, no Centro Cultural do Banco do Nordeste de Juazeiro. Em outra ocasião buscamos o seu depoimento sobre os maravilhosos bolos de casamento que confeitou por anos. Ficamos sem as palavras dela porque já estava muito doente e não podia mais falar. Restou-nos este passeio pela memória, uma forma de homenageá-la, muito aquém do que ela merece, certamente... CARIRI REVISTA 33


#cariripadrecíceroreleituras

UM TRÍPTICO PARA O PADRE CÍCERO Por Gilmar de Carvalho [Escritor, pesquisador e jornalista. Especial para a CARIRI]

ALLAN BASTOS

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EROS, A VIDA Os apitos eróticos de José Celestino (1955) se inscrevem em uma tradição artística de clandestinidade. Quem procurar por eles, no Mestre Noza, à Rua São Luís (sem número), no centro de Juazeiro, vai encontrá-los dentro de uma gaveta, enrolados em papel de embrulho, na sala da direção, mostrados por vendedores atenciosos, desconfiados e cúmplices. É como se estivéssemos comprando algo ilegal ou imoral. Zé Celestino faz uma versão tridimensional do “kama-sutra”. Vale ressaltar que, em primeiro lugar, vem o apito. O pedaço de umburana é escavado para a colocação do mecanismo de isopor, o qual vai direcionar o vento, na hora do assopro. Se não funcionar, a peça estará descartada. Depois do apito feito, testado e aprovado, começa a escultura de cunho erótico. Incrível a minúcia com que trabalha, com tanta riquezas de detalhes. Impressiona ver os corpos em movimento, em espaços tão ínfimos. Zé

Celestino desmente as versões correntes de que era frequentador do cinema pornô ou de que dona Alice, sua esposa adquiria revistas masculinas (de nu feminino) para que ele se inspirasse. Diz que tem imaginação de sobra e os apitos estão aí para provar o que ele diz. O professor Ismael Pordeus Jr tem mais de cem desses apitos e quase desistiu de querer fazer uma exposição deles no Brasil. A desculpa dos gestores é a visita frequente das crianças e adolescentes e o medo de que, os pais cuidadosos e diligentes, denunciem as instituições pela difusão de conteúdo inadequado para menores. A meta é um centro cultural no exterior, mas esse é outro assunto. Zé Celestino gosta do que faz. Aprendeu com o avô a fazer os “arremedos”, apitos simples, os eróticos, começaram em 1978. Hoje, ele é uma referência. Dá gosto vê-lo em atividade, na casa/atelier, no bairro Triângulo. Dona Alice lixa as peças, passa cera e as encomendas se avolumam, apesar ou por causa da clandestinidade. O que é humano não o choca e ele faz

os apitos com naturalidade, sem a sonsice dos que fazem de conta que transgridem e sem a ingenuidade dos que rejeitam qualquer manifestação de fundamentalismo ou de ortodoxia. Aí estão sexo vaginal, oral, masturbações, surubas, um léxico das possibilidades de performance nas alcovas. Zé Celestino ressalta: “Faço esses apitos como poderia estar fazendo uma banda cabaçal, um reisado, um forró ou até mesmo uma peça sacra”. Aí a gente pode colocar a figura hierática do Padre Cícero, batina lisa, chapéu, bengala e livro de oração. É tudo a mesma coisa, é tudo trabalho, poderia complementar, insistindo na superação dos limites entre sagrado e profano, cada vez mais imprecisos ou borrados nesses tempos confusos e desafiadores que vivemos. Para quem queria, como o Padre Cícero, que toda casa tivesse um altar e fosse uma oficina, tudo bem. Afinal de contas, eros é a pulsão da vida, que deve triunfar nesses tempos de guerra, morbidez e censuras de toda ordem.


ALLAN BASTOS

O SANTO NA FORNALHA Juazeiro do Norte tem um clã que trabalha o barro com criatividade e perfeição: a família Cândido. São artistas que vão além do artesanato padronizado, encontrado nos centros de revenda, para ludibriar turistas desavisados. A partir do barro, são modeladas peças que se inscrevem como o que o Juazeiro tem de melhor, atualizando a modelagem do barro e fazendo com que permaneça, porque atende às exigências dos compradores de hoje, antenados com as novas tendências, a partir de um pé (ou os dois) na tradição e a cabeça solta na mais ousada contemporaneidade. A matriarca é dona Maria de Lourdes(1939). A filha Maria, se foi em 2010. Era, talvez, a mais delicada de todas. Corrinha gosta de trabalhar na madrugada e dorme de dia. Difícil falar com ela. Dora, Cícera, Fran36 CARIRI REVISTA

cisca mantêm a aura de uma família que vive do barro. Os homens vão além do patriarca Américo, que traz a argila, pila, peneira e deixa tudo pronto para o trabalho. Elias faz representações de São Jorge que surpreendem. No começo, trabalhavam as esculturas sobre uma base plana que ficavam sobre as mesas. Stênio Diniz deu a ideia das peças afixadas às paredes. Prevaleceu a sugestão dele, depois de alguns ajustes e nasceram os “temas”. Mas o que são mesmo os temas? Uma crônica visual da vida da cidade. Aí estão folguedos, rezas, romarias, ofícios, tudo o que tem a ver com o mundo deles é modelado no barro, seco ao vento e levado ao forno, antes da pintura com cores fortes de tinta acrílica. Há muito tempo, usavam alvaiades e pigmentos que nem são mais fabricados. Os temas estão em capas de livros, discos, em muitas exposições, são entregues como troféus, decoram apartamentos e casas desse país todo e são levados (todo

cuidado é pouco) para o exterior. Eles estão para Juazeiro assim como a xilogravura “ukio-ê” esteve para a China. Num futuro distante, dirão como viviam as pessoas da cidade, o que faziam, com que sonhavam e do que tinham medo. Mas a família vai além e incorpora, sem maiores problemas, encomendas ao repertório variado com o qual trabalham. Fazem releituras de Eckout, de Iracema e modelaram uma vida do Patativa, que deve estar em Assaré. Comove o relato de dona Maria de Lourdes. Ela não gosta de queimar o Padre Cícero: “Sei que é um bolão de barro, mas para mim é o Padre Cícero”. Todas as peças deles são queimadas. O calor vai fazer com que a peça resista ao tempo, às intempéries e testemunhe sua devoção e sua filiação a um Padre Cícero que é responsável, em última instância, por tudo de maravilhoso que é feito na cidade que ele fundou.


ARQUIVO DANIEL WALKER

DO JUAZEIRO PARA O IPU Dona Edite Dias Nogueira (1934/ 2005) contava uma história bonita de piedade e esperança. Casada com um funcionário da rede ferroviária, viu o marido entrar em crise, logo após a desativação das ferrovias. A crise o levou ao álcool e dona Edite teve de trabalhar ainda mais para manter com dignidade os oito filhos do casal. Moravam no Ipu, onde ela nascera. A crise levou a família a viver no Hotel Iracema, de uma amiga, que logo o transferiu para dona Edite, com a aprovação do proprietário do ponto. Ela trocou o nome para Hotel São Francisco, de quem também é devota. Um dos vizinhos, um homem de posses, “coronel” das antigas implicava com a família. Ironicamente, dona Edite conseguiu comprar a casa que foi dele, onde se instalou, à Praça Major Quixadá, com vista para a bela e

abandonada Estação Ferroviária do Ipu. A promessa foi feita, não a São Francisco, mas ao Padre Cícero. Alcançada a graça, ela dormiu no chão durante quinze meses, e marcou viagem para o Juazeiro. Na cidade santa do Cariri cearense, as visitas de praxe: Matriz; túmulo do Padre Cícero, na igreja do Socorro e as lojas de artigos religiosos da cidade. Dona Edite procurava um Padre Cícero grande, quase em tamanho natural. Era a forma de expressar seu agradecimento e de retribuir pela graça alcançada. Fez a “troca” porque imagem de santo não se compra, nem se vende. Agora, estava na hora de voltar ao Ipu. Era muito chão. O ônibus ia até Crateús, depois de pegar a Estrada do Algodão, até Mineirolândia, subir a serra, passar por Pedra Branca, chegar à Cruzeta (Santa Cruz do Banabuiu), tomar o rumo de Independência e chegar ao Karatius, trocado pelo litoral do Piauí, no século XIX.

De Crateús, tomando o rumo do Sucesso (Tamboril), quebrando para Nova Russas, Ipueiras e finalmente o Ipu, cuja bica despejava o fio de água prateada, de onde Iracema saía para tomar banho na lagoa da Messejana (licenças poéticas de Alencar). Dona Edite não se incomodava com o que teria de enfrentar de estrada empoeirada, esburacada, no ônibus quente, sem ar condicionado. A fé justificava o sacrifício. Na hora da partida, na bagagem, um Padre Cícero, de um metro e vinte centímetros, bem embalado para enfrentar o desconforto do compartimento de cargas, com a certeza de que chegaria inteiro ao Ipu. Foi quando teve uma surpresa muito desagradável. O pessoal da agência não liberava o embarque da bagagem. Não adiantava reclamar, fazer ameaças ou suplicar. O que fazer? Como chegar ao Ipu de mãos abanando? Padre Cícero haveria de dar um jeito na história. Mais difícil foi comprar a casa no Ipu e ele deu forças para que ela comprasse. A decisão estava nas mãos dele. Foi quando ela teve a ideia de comprar uma passagem e levar o santo dentro do ônibus. Era uma ótima saída, mas ainda dependia dos humores do pessoal da empresa. Se ele fosse no babageiro, seria uma “carga”, um penetra. No ônibus, pagaria passagem, seria um passageiro. Deu certo. Dona Edite viajou do Juazeiro até o Ipu tendo o Padre Cícero como companheiro de viagem e vizinho de poltrona. A proteção se estendia ao ônibus todo. Ninguém poderia reclamar. Amarrado com cordas, embrulhado em papel e plástico, o “santo do povo” era uma tradução da fé que não conhece limites. Padre Cícero ficou como guardião do Hotel São Francisco, entronizada na sala de jantar, enquanto dona Edite esteve entre nós. Assim termina essa história, contada a quem quissesse ouvir. CARIRI REVISTA 37


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#cariripadrecíceroensaio

QUEM TINHA E QUEM TEM O PODER? Por Tuty Osório

DELFINA ROCHA

Marta de Araújo por Marta Aurélia no filme Milagre em Juazeiro de Wolney Oliveira.

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“Ao homem a madeira e os metais. À mulher a família e os tecidos (...) A Maria de Araujo a costura, o banco da igreja (ouvindo o latim que não entendia) a pobreza e a solidão. Mas ela não ficou aí.” MARIA DO CARMO PAGAN FORTIN EM “MARIA DO JUAZEIRO, A BEATA DO MILAGRE”

O

espaço público, físico e virtual no século XXI, traz-nos a obra de arte contemporânea como passível de ser uma intervenção social do artista – seria a obra o movimento que gera na sociedade. Faz-se a arte na reação das pessoas, nos comportamentos que suscita em sua engenhosa ação estética. Assim poderia ser recebido o milagre de Juazeiro, protagonizado em 1889 por Maria de Araujo, no então recôndito povoado do sertão nordestino. Maria foi condenada como embusteira, expulsa da Igreja Católica e da sociedade de sua época, enclausurada até sua morte em 1914. Na década de 30 profanaram seu túmulo e desapareceram com o seu corpo, concluindo o sepultamento de sua memória, iniciado em vida. Integrante da Irmandade das Beatas Leigas do Sagrado Coração de Jesus, criada por Padre Cícero com o intuito de ajudar os desvalidos da seca, acabou sendo o centro e a mobilizadora espiritual das romarias que passaram a dirigir-se ao lugarejo, povoando-o de tal forma que o fizeram cidade.

Pela maioria foi defendida como santa, a escolhida para expor o sangramento do corpo de Jesus, mais uma vez em busca da salvação das almas, naquela nova Jerusalém no meio do agreste, da seca inclemente, da profanação da dignidade pela fome e pela violência. Numa madrugada de vigília, quando um grupo de fieis rezava na capela da Senhora das Dores, num Juazeiro ainda desconhecido, a hóstia sagrada transformou-se em sangue na sua boca, durante a comunhão ministrada por Padre Cícero. Anos depois, atribuiu-se o milagre ao próprio padre, embora a hóstia tenha sangrado muitas outras vezes, pelas mãos de outros ministros da missa. Padre Cícero nunca foi cúmplice dessa atribuição. Nunca quis para si a santidade. E obrigado pela instituição católica a negar publicamente que a hóstia, de fato, sangrava, recusou-se a difamar a beata. Defendeu-a até ser castigado com a privação de efetuar os sacramentos e a impossibilidade de exercer o sacerdócio na formalidade da Igreja. Todavia, prosseguiu em sua missão de evangelização e caridade na prática cotidiana junto ao povo, tornando-se líder religioso, político e mais tarde santo popular – por aclamação espontânea desse povo, ao qual dedicou a sua vida. O sangramento da hóstia fez-se na boca da beata Maria de Araujo. Todavia a repercussão, negativa e positiva, do evento não teria sido a mesma sem a existência de Padre Cícero. O carisma e a liderança do Padre deram aos fatos proporções exuberantes, CARIRI REVISTA 41


deflagrando um dos movimentos religiosos mais consistentes do mundo católico. Mesmo sem o consentimento de Roma e a despeito de seu feroz combate, Juazeiro do Padre Cícero virou santuário, destino de milhões de romeiros do mundo inteiro, lugar de oração e êxtase. Maria “fez escândalo, rompeu” 1 como conclamavam os estudantes de Paris, Nanterre em maio de 1968, em suas palavras de ordem sustentadas em cartazes por trás das barricadas improvisadas na rua. Subverteu a ordem estabelecida, fez um milagre, uma revolução política e uma obra de arte inesquecível – dos quais surgiu uma cidade que hoje prospera economicamente, sempre em busca de sua identidade difusa por todas as polêmicas lançadas sobre aquele chão, no século XIX. “IL FOUT FAIRE ESCANDALE! IL FAUT ROMPE!” Quem era Maria? Perguntaram-se e ainda se per- Inteligente, determinada, dotada de uma convicção de guntam muitos, ao surpreenderem-se com sua sombra sua missão divina sem qualquer arrogância porém, com forte sobre a história de Juazeiro. a segurança de uma líder natural. “Jesus Cristo me tem revelado que tudo isso se A HISTÓRIA REABILITADA opera para conversão dos pecadores e perseverança Contrariando a visão que prevaleceu durante décadas, dos justos; chegando até queixar-se amargamente da de uma frágil sertaneja obscura e vulnerável, a psicólo- ingratidão dos homens para com ele e chamando-os ga e teóloga Maria do Carmo Pagan Fortin, uma Maria a aproveitarem-se de suas graças enquanto é tempo do século XXI, estudiosa da religiosidade popular, reve- de mizercórdia.” 1 lou da beata um outro rosto, uma outra atitude, contri“(...) tendo-lhe sido ainda revelado este facto acctual buindo para uma visão mais clara da tensão verdadeira da affluencia de grande multidão de povo de diversos que conferiu tamanho vulto aos eventos de 1889. As bispados; todos dispostos a purificarem-se aqui no Sapistas para conhecer Maria de Araujo são muito mais de cramento da Penitência e assim preparados receberem silêncios que de falas, registros, indícios. E foi nos silên- o Sacramento da Eucharistia; revelando ainda notar-se cios significantes dos dois inquéritos instaurados para que Nosso Senhor disse que isso se operaria para aviinvestigar a veracidade do milagre e das cartas trocadas var a fé na presença real d’Ele, já muito enfraquecida entre os personagens envolvidos que a pesquisadora nos últimos tempos.” 1 vislumbrou a mulher por trás da muralha que a história Ambas as citações foram extraídas do primeiro oficial ergueu para escondê-la. Inquérito e por mais que tenham sido anotadas e, O estudo realizado por Maria do Carmo foi o ob- certamente, sujeitas a uma redação final por parte jeto de sua dissertação de Mestrado pela Pontifícia dos responsáveis pelas anotações dos interrogatóUniversidade Católica de São Paulo, deu origem a rios, mostram um nível de elaboração que se choca um livro e à mudança definitiva da acadêmica para com a descrição da criatura analfabeta, pobre, filha Juazeiro do Norte. Uma romeira contemporânea, de um escravo alforriado, fanática e ignorante. Quem movida pelo desejo de compreender a magia da- as proferiu parece dominar plenamente a sua arguquele lugar (conheça a íntegra do depoimento de mentação, inclusive apropriando-se habilmente de Maria do Carmo à Cariri no site). O livro lançado em um discurso que a colocava no lugar de legítima in1999, “Maria do Juazeiro, a beata do milagre”, cita termediária entre Deus e o povo a ser resgatado de passagens diversas das fontes que embasaram as sua vida pecaminosa. conclusões defendidas na dissertação e duas, em Maria não repetia palavras decoradas, mas elaparticular, são expressivas da personagem real que borava o seu discurso com coerência em relação ao a beata parece ter sido. ocorrido com a hóstia que sangrava. Deus mandava o 42 CARIRI REVISTA


LEITURAS “Maria do Juazeiro, a beata do milagre” (ensaio) de Maria do Carmo Pagan Fortin, editora Annablume, São Paulo,1999 “Padre Cícero. Poder, fé e guerra no sertão” (biografia) de Lira Neto, Companhia das Letras, São Paulo,2010 “A mulher sem túmulo” (romance) de Nilze Costa e Silva, Armazém da Cultura, Fortaleza, 2010

seu recado através dela, como uma oportunidade de salvação para os que nisso cressem pela fé despojada. E ela transmitia o recado no palco do sagrado, sendo a portadora do sangue redentor — e no plano da racionalidade, ao esclarecer a mensagem do sangramento no âmbito do inquérito. Esclarecimentos que aparentava prestar com serena naturalidade. Parecia-lhe lógico que assim fosse. Havia um recado a dar e ela era o instrumento escolhido por Deus. O que é interessante observar no discurso de Maria de Araujo não é a verdade ou o sofisma do seu conteúdo. Mas a sofisticação da sua mensagem e a coragem de sustentá-la diante dos doutores da Igreja. A sua luta em nunca negar o milagre, a resistência à clausura e os defensores que mobilizou em torno de sua causa, que era, na realidade, de todos, também corroboram para formarmos dela a imagem de uma mulher forte, capaz de posicionar-se diante da perseguição aguerrida que contra ela a instituição promoveu. Não que a beata tivesse a intenção de fazer as coisas chegarem ao estado a que chegaram. Contudo, a caminhada que empreendeu foi por ela conduzida sem recuos e com a perseverança de quem assumiu uma missão maior do que o seu humilde lugar de excluída jamais sonharia.

“O teatro de Deus. As beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado de Juazeiro” (ensaio) de Edianne Nobre, editora IMEPH, Fortaleza, 2011 Encontre mais dicas de livros sobre a beata Maria de Araujo no site da CARIRI revista www.caririrevista.com.br

pel político de apropriação de um lugar social negado aos pobres e às mulheres pela Igreja e pela sociedade da época é ponto fundamental no estudo de Maria do Carmo Fortim. A pesquisadora expõe no seu livro que um dos principais objetivos do seu trabalho é mostrar o papel político da beata, no sentido de ter dado destaque a uma mulher num tempo de invisibilidade feminina e de ter dado voz ao catolicismo popular, fortemente combatido pelo Vaticano na segunda metade do século XIX, que temia a formação de uma igreja dentro da Igreja. O chamado catolicismo luso–brasileiro, objeto de um esforço imenso pela alta hierarquia da Igreja para eliminá-lo em favor de uma romanização comandada A INVERSÃO DA ORDEM por teólogos e doutores, era, na prática, a religião vivida OFICIAL DAS COISAS diretamente pela massa de crentes, desejosos de uma É esta personagem, afinal forte e não mais miserável na intimidade maior com Deus. Através de seus santos, sua condição determinada pelo destino de ser mulher, suas procissões, seus rituais que muitas vezes beiravam negra, analfabeta e pobre, que reverte a realidade e ocu- o profano, as multidões de populares apropriavam-se pa o lugar do poder. Poder que lhe é conferido por Deus do sagrado pela fé, e traduziam-no conforme sua tradino Sangramento da hóstia e pelo povo na confiança ção e sua cultura. Nas aldeias portuguesas, durante as que depositou na veracidade do seu milagre. Este pa- cerimônias coloridas e lamentosas que inundavam os CARIRI REVISTA 43


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campos de cânticos nas desfolhadas do milho e do trigo. Ou no sertão árido brasileiro, sob redemoinhos de poeira, benzedeiras e sincretismos, o catolicismo seguia um rumo de informal domínio do cotidiano das populações. Essa popularização compensava a distância imposta pelas missas em latim e o sofrimento em que viviam as camadas mais pobres. A Igreja culta traçou sua estratégia e combateu duramente essas manifestações populares da religião. A história de Maria de Araujo foi um embate entre a romanização e essa religião popular e, apesar da excomunhão do Padre Cícero e do banimento da beata, a vitória foi do povo das ruas, das romarias espontâneas. O povo que era e ainda é, nas questões da fé, o que detém o verdadeiro poder. A VOLTA DE MARIA DE ARAUJO A história reconta-se com Maria ocupando o seu lugar de merecimento. Integrada ao milagre e aos fundamentos do movimento religioso de Juazeiro, paralelamente à luta recente que a comunidade católica empreende para a reabilitação do Padre Cícero. Não faz mais sentido discutir a veracidade do milagre que é, afinal, da conta do sagrado, e o sagrado é regido pela fé, na qual não cabem explicações. E o fato é que não se provou de onde vinha o sangue, embora se tivesse provado que não vinha de nenhuma fissura ou ferida externa ou interna do corpo da beata. Fato maior foi o que esses eventos provocaram quando lançaram o foco sobre uma figura que jamais passaria para a história sem eles. E quando se constituíram em ponto de partida para que um lugar esquecido se tornasse o que é hoje. A redescoberta de Maria traz consigo um olhar imprescindível para o papel da mulher nas igrejas de lugares semelhantes a Juazeiro. As beatas desempenhavam tarefas importantes de caridade com o povo e contribuíam sobremaneira para a organização da rotina da igreja, além de terem ali a possibilidade de ocupar espaços mais generosos que os que lhes eram reservados pelo nascimento. Todas eram pobres, muitas eram órfãs. Padre Cícero inspirou-se no Padre Ibiapina2, também ele um contestador da ordem estabelecida, que em 1870 fundou a primeira irmandade no Crato, abrigando órfãs e tentando prepará-las para um destino melhor. Precedidas por Maria de Araujo, outras beatas investiram-se da crença na própria missão divina e passaram a protagonizar sangramentos e visões do céu, todas portadoras de recados para Roma e para o mundo. Conscientes, ou não, de sua importância, comunicaram-se ancoradas no ocorrido com Maria, como que exprimindo um roteiro de fé que lhes estava 44 CARIRI REVISTA

Maria de Araujo por Maria Vitória no texto esplendoroso do dramaturgo Ricardo Guilherme.


destinado. As mulheres estavam escondidas, oprimidas, silenciadas, e encontraram nos sangramentos da hóstia e nas narrações espetaculares das visões o caminho de serem ouvidas, incluídas, consideradas. A imagem do sangue vermelho brotando da brancura da hóstia sagrada, no fervor da comunhão, o ponto alto da cerimônia da missa, quando os fiéis são conclamados a acreditar que aquele pão é o próprio corpo de Cristo, é de um espetacular impacto. Não há como ficar indiferente a essa cena, mesmo não sendo religioso, mesmo não acreditando num lado sobrenatural da vida. É o sangue, o maior símbolo da presença, materializando o que só exista na fé, surgindo do branco e envolto pelo mistério que redunda os sacramentos. O dramaturgo Ricardo Guilherme trouxe Maria de volta vestida de branco – as descrições da beata sempre a retratam de preto e há uma única imagem divulgada dela em que o preto das vestes prevalece, mas não se sabe se é verdadeiramente uma foto dela. Na peça “Maria de Araujo”, onde Maria é interpretada com brilho

e intensidade por outra Maria – a atriz Maria Vitória – vemos a beata na cena, em vestes brancas que vão sendo invadidas pela vermelhidão de um tule. À medida que a narrativa do inquérito avança e Maria mais se coloca na sua missão de mensageira de Deus, mais o tule invade o branco e praticamente todo o palco. O poder da fé e da arte de indeterminado autor iniciando a história, mudando os destinos, resgatando a essência. Como ampliar a repercussão social da mensagem do milagre? Será este o atual desafio?

1. Optamos por manter a grafia da época em que foram transcritos os depoimentos de Maria de Araujo. 2. Padre Ibiapina foi um líder religioso que viveu no Cariri no século XIX e empreendeu uma cruzada de conscientização contra o sofrimento e a exclusão do povo pobre do sertão. Foi perseguido enquanto viveu por suas ideias e suas ações. Apesar disso as Casas de Caridade por ele fundadas permaneceram e foram incorporadas pela igreja oficial.

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#cariripadrecíceroeducação

PADRE CÍCERO E O PARADOXO BRASILEIRO:

POR QUE DIZEMOS MUITAS COISAS QUE NÃO SOMOS? Por Tuty Osório

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o prólogo da biografia lançada em 2009, “Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão”, o escritor Lira Neto expõe o desafio que encarou para escrevê-la, em tom de convite para os leitores que ali iniciam a aventura de conhecer melhor esse polêmico e fascinante personagem. “Quem foi esse homem misterioso que, mesmo tendo um decreto de excomunhão contra si, arrebatou o coração das massas e passou à memória coletiva e ao panteão popular como o Padim Ciço? Era um apóstolo visionário que soube entender a língua do povo, converteu multidões com sua singela pastoral sertaneja, mas ainda assim foi injustiçado por um clero intransigente, etnocêntrico, refratário às diferenças? Ou foi um sujeito astuto que usou a batina em seu próprio benefício, amealhou fortunas em terras, imóveis e gado, alimentando a sede de poder com a miséria e a ignorância de seus devotos?” Mergulhando na obra de Lira Neto e em outras obras que se debruçam sobre a vida de Cícero Romão Batista, percebemos que ele nem foi perfeito, nem vil. Indubitavelmente era um homem especial, dotado de carisma e vontade de avançar. Traçou um objetivo em nome da fé, mas os caminhos trilhados levaram a

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resultados objetivos para si mesmo e para o povo que arregimentou em torno de uma ideia de sociedade. Com palavras simples, ao alcance da compreensão dos sertanejos, Padre Cícero recomendava o esforço cotidiano da labuta, o respeito pelo próximo, a valorização da família, a concepção de uma cidade para todos e os cuidados com o meio ambiente. Aceitava quem errara no passado, incluindo os contraventores, bêbados, ladrões e assassinos, em troca do compromisso da mudança e da redenção. Mais do que doutrinar, pretendia educar o povo e fazê-lo nortear-se por princípios e práticas que levariam à construção de um lugar melhor. Essa perseverança e capacidade de influenciar as pessoas transformou uma terra de ninguém, onde a lei era a faca e o bacamarte, numa cidade que prosperou e tornou-se cenário do mundo. Havia em suas pregações, feitas informalmente à janela de sua casa, já depois de ter sido privado de exercer o sacerdócio, muito mais que repetições da bíblia, moralismos da religião ou manipulações de vontades. A sua mensagem tentava ensinar como viver melhor investindo num presente que seria estruturante do futuro de cada um e de todos.


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COM PALAVRAS SIMPLES, AO ALCANCE DA COMPREENSÃO DOS SERTANEJOS, PADRE CÍCERO RECOMENDAVA O ESFORÇO COTIDIANO DA LABUTA, O RESPEITO PELO PRÓXIMO, A VALORIZAÇÃO DA FAMÍLIA, A CONCEPÇÃO DE UMA CIDADE PARA TODOS E OS CUIDADOS COM O MEIO AMBIENTE.

A educação não é um destino mas uma construção social. Essa é a concepção de estudiosos diversos da história, refletindo sobre a utilidade dos educadores conhecerem os processos que nos trouxeram até aqui. Passamos por didáticas baseadas na estoica disciplina dos conventos medievais, pelo rigor dos seminários católicos que se constituíram nas instituições de maior referência até à metade do século XX. Nossas avós ainda foram educadas em internatos, fora de casa e da cidade onde moravam, a fim de terem acesso a um padrão mais sofisticado de transmissão do conhecimento. Depois vieram os métodos revolucionários, que buscavam subverter toda a lógica do despotismo que, teoricamente, educava, mas que, na prática, formava indivíduos com deformações afetivas e profundos traumas morais. As teorias de Piaget, que sustentava a educação pela inteligência e com liberdade, sem o abandono da responsabilidade, moldaram a escola contemporânea. Em instituições públicas e privadas, ao redor do mundo – mais no primeiro e no segundo, porque na África, integrante do terceiro, as crianças não têm acesso sequer a uma alimentação mínima –, experimentam-se jogos no lugar de livros, tablets no lugar de professores. E no Brasil, em que ponto estamos? Um grande amigo, Leonardo Pinto, escritor e jornalista, disse recentemente, e ironicamente, que “tem tanto babaca contra a corrupção que eu até peguei uma certa simpatia por ela...”. O mesmo se aplica aos defensores retóricos – e 48 CARIRI REVISTA

de fraca retórica – da educação como o melhor caminho, a única verdade e a garantida vida. Eloquentes, citam o quanto a Coreia do Sul e a Alemanha progrediram em apenas algumas décadas, por terem tornado a educação a prioridade máxima. Consternados, afirmam que no nosso país estamos perdendo o bonde, mergulhando cada vez mais no abismo de não termos priorizado, nunca, a educação como um projeto real e consistente. Repetido “ad nauseum” por conservadores não assumidos, pretensos progressistas, letrados arrogantes e analfabetos formais que se julgam cultíssimos, todos detentores de poder político ou econômico, tornou-se um discurso tão vazio de concretude que temos pudor


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de dizer que sim, eles têm razão, para não nos sentirmos cúmplices da hipocrisia, talvez inocente, que os move. Fazendo um esforço imenso para refletir, mais uma vez, sobre educação, sem cair no lugar comum dessa citada retórica que nada produz de efetivo, encontramo-nos com as palavras de Eduardo Giannetti em “Vícios Privados, Benefícios Públicos? A Ética na Riqueza das Nações”, onde é exposta a ideia de que a grande falha da nossa sociedade é de ordem ética. Seria, segundo ele, o paradoxo brasileiro, que consiste, basicamente, em dizermos muitas coisas que nunca somos. Isso se traduz, para o economista, sociólogo e filósofo brasileiro, cujas teses são debatidas em universidades da

Europa e dos Estados Unidos, que cada um de nós, isoladamente, tem o sentimento e a crença de estar muito acima de tudo isso que aí está. Descrevendo magistralmente o que exatamente ocorre conosco, Giannetti afirma que ninguém aceita, ninguém aguenta mais: nenhum de nós pactua com o mar de lama, o deboche e a vergonha da nossa vida pública e comunitária. O problema é que, ao mesmo tempo, o resultado final de todos nós juntos é tudo isso que aí está. A autoimagem de cada uma das partes – a ideia que cada brasileiro gosta de nutrir de si mesmo – não bate com a realidade do todo melancólico chamado Brasil. CARIRI REVISTA 49


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“Aos seus próprios olhos, cada indivíduo é bom, progressista e até gostaria de poder ‘dar um jeito’ no país”, escreve Giannetti. “Mas enquanto clamamos pela justiça e eficiência, enquanto sonhamos, cada um em sua ilha, com um lugar no Primeiro Mundo, vamos tropeçando coletivamente, como sonâmbulos embriagados, rumo ao Haiti. Do jeito que a coisa vai, em breve a sociedade brasileira estará reduzida a apenas duas classe fundamentais: a dos que não comem e a dos que não dormem. O todo é menor que a soma das partes. O brasileiro é sempre o outro, não eu”, complementa. Giannetti delineia a sua abordagem do Brasil sob a referência da ética e conclui que falar em ética é falar de uma escolha individual. Enfatiza que o que nos separa de um estado de coisas mais justo e verdadeiramente civilizado, a salvo da armadilha em que a civilização que está aí nos lançou, é uma escolha, ética, por um país, por cidades que estejam a serviço da coletividade e não de alguns interesses privados. Interesses que podem ser aparentemente benéficos para alguns mas que lançam a todos num abismo de contemporânea barbárie. Grande articulador político, Padre Cícero costurou um pacto entre os coronéis da época, rompeu com o poder municipal viabilizando a autonomia de Juazeiro em relação ao Crato, foi o primeiro prefeito e chegou a deputado federal. Arregimentou jagunços num exército sobre o qual perdeu o controle e que custou aos povoados do sertão saques sangrentos. Por outro lado, sempre se preocupou em pregar a substituição da violência pelo esforço do trabalho e a serenidade da oração. Se atentarmos bem ao discurso do Padre Cícero, ao longo da sua existência, reconheceremos nele um homem preocupado com a melhoria das condições de vida dos mais humildes, através de um modo todo seu de educar. Além disso, Cícero pensou uma cidade que incluísse todos. Chegou a integrar a elite, a ter bens pessoais

A EDUCAÇÃO NÃO É UM DESTINO MAS UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL. ESSA É A CONCEPÇÃO DE ESTUDIOSOS DIVERSOS DA HISTÓRIA, REFLETINDO SOBRE A UTILIDADE DOS EDUCADORES CONHECEREM OS PROCESSOS QUE NOS TROUXERAM ATÉ AQUI. de algum vulto e a agir visando a interesses menos coletivos. Todavia, viveu a vida de portas abertas para a população, empenhado em unir, regenerar, acolher. Incentivou a atividade econômica, promoveu melhorias no espaço urbano e abriu portas para instituições de ensino que fizeram a diferença. O colégio dos Salesianos é um exemplo, instalado em Juazeiro por sua obra e influência. Considerado em seu tempo, este religioso impedido pela instituição católica de sê-lo formalmente, mas amado pelo povo como um santo, foi, a seu modo, um progressista no legado que deixou. O que resta, hoje, como ideário e como prática, das máximas de Padre Cícero? Temos nos espelhado no seu projeto de uma grandiosa sociedade ou estamos restritos a uma prosperidade econômica que não tem o seu correspondente em qualidade de vida, espaços públicos acessíveis, árvores urbanas, calçadas, limpeza, saúde preventiva, mobilidade, dignidade? Crescemos como humanidade ou apenas agregamos itens de consumo? O que temos feito da obra empreendida pelo padre visionário, que pregava que se fizesse de cada casa uma oficina, de cada roçado uma fonte de pão, de cada alma uma voz de oração? CARIRI REVISTA 51


#cariripadrecícerosimpósio

REFLEXÕES E DEBATES Juazeiro do Norte receberá em maio de 2014 o IV Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero, reunindo estudiosos do mundo inteiro para refletir a respeito da sua importância histórica.

A Reitora da URCA, Professora Otonite Cortez, a Pró-Reitora de Extensão, Sandra Nancy Freire, integrante da Comissão, além das pesquisadoras Paula Cordeiro, Fátima Pinho e Maria do Carmo Pagan Forti, estiveram reunidas com o bispo da Diocese do Crato, Dom Fernando Panico, para tratar sobre aspectos importantes relacionados ao evento e firmar parceria com a Diocese na realização do simpósio.

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través de conferências, mesas redondas, grupos de trabalho, lançamento de livros, apresentações artístico-culturais, oficinas e visitas guiadas, a Universidade Regional do Cariri – URCA promove o evento, entre os dias 19 e 24 de maio. Sob o tema geral “E onde está ele?” o encontro buscará localizar, conhecer e compreender o pensamento que se debruça sobre o Padre Cícero além das fronteiras do Cariri, tanto em outros estados brasileiros, como em outros países. A expectativa é de que as reflexões e os debates possam contribuir para a construção de um olhar ainda mais plural e denso sobre esse personagem polêmico e mobilizador. As perspectivas de análise deste Simpósio sequen-

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ciam as trajetórias dos eventos anteriores, realizados nos anos de 1988, 1989 e 2004, no sentido de contemplar as vertentes sociais, políticas, econômicas, intelectuais, religiosas e culturais que historicamente vêm se apropriando de todos os significados e significantes que redundam da figura de Cícero. Em 2014 serão comemorados os 100 anos da morte da beata Maria de Araujo, os 80 anos da morte do Padre Cícero, assim como o centenário da Sedição de 1914, da instalação da cidade de Juazeiro do Norte e da criação da Diocese de Crato. Esses fatos também construíram o Padre Cícero que se projetou e foi projetado como personagem para uns e ícone para outros, sendo assimilado por diferentes grupos de atores sociais e analisado sob diferentes prismas disciplinares. Segundo a comissão organizadora, o evento abordará as questões através de quatro eixos temáticos. “O contexto histórico, que visará rever a história a partir de novos documentos sobre a questão religiosa de Juazeiro e explicitar suas repercussões no cenário local, regional e global; os personagens, cujo objetivo é apreender a presença dos(as) beatos(as), romeiros(as), da população do Juazeiro e do Cariri e demais sujeitos sociais - também de outras regiões do país - e como se articulam na dimensão maior do fenômeno Padre Cícero; Padre Cícero e o Cariri, que pretende analisar as tessituras da relação do Padre Cícero com a região do Vale do Cariri no espaço e no tempo, bem como sua manifestação através de diversas linguagens artísticas e culturais; beata Maria de Araujo, que objetiva compreender a relevância dessa figura na história, a desvelar as novas interpretações acerca do milagre, do martírio e de seu papel político na formação do movimento sócio-religioso de Juazeiro do Norte”.


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GETTY IMAGES

AS FRANQUIAS CRESCEM EM TODO O BRASIL E CONQUISTAM O MERCADO CARIRIENSE

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Setor de franquias : crescimento de mais de 16% em 2012.

SER OU NÃO SER UM FRANQUEADO

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urante anos sem reformas político-institucionais macroeconômicas, o Brasil se tornou um veterano na repetição de problemas ligados às desigualdades regionais, baixos investimentos em educação formal e desvalorização do ensino profissional. Isso tudo permeado por uma carga tributária pesadíssima num Estado endividado, além de muita burocracia atrapalhando o caminho do empreendedorismo. Ainda assim, sempre que possível, o país mostra que tem fôlego para duras batalhas e uma surpreendente capacidade de reação. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), só em 2012 o país criou 1,3 milhão de empregos com carteira assinada. Somados os últimos dez anos, o total de vagas supera 14,6 milhões. Houve também o surgimento do que se vem chamando de uma nova classe média brasileira – com maior acesso ao crédito –, e sua existência real expressa no incremento do consumo. Nesse cenário, não é de admirar a expansão do mercado de serviços e varejo, em especial o de franquias, que vai muito bem, obrigado.


RAFAEL VILAROUCA

Tânia Meire do Sebrae: conhecimento ampliado para a prática.

E quem anuncia é a Associação Brasileira de Franchising, revelando em pesquisa recente que o setor cresceu 16,2% em 2012, atingindo o faturamento total de R$ 3 bilhões. O mesmo levantamento aponta que houve um aumento de 19,4% no número de marcas, que passaram de 2.031 empresas em 2011 para 2.426 empresas de franquias em 2012. No caso dos pontos de vendas, o crescimento foi de 93.098 unidades em 2011 para 104.543 em 2012. Este ano, as expectativas para o setor, de acordo com a ABF, apontam para o crescimento em várias frentes: 16% a mais de faturamento, 9% a mais de novas redes e 11% a mais de unidades abertas, gerando cerca de 103,5 mil empregos. E para surpresa de muitos, tal qual a história do dinamarquês Hans Christian Andersen, o Nordeste, antigo patinho feio, agora desabrocha como uma das regiões a capitanear o crescimento brasileiro. Apesar de passar por uma das piores secas da história, a região sustentou o crescimento no primeiro trimestre e ajudou a devolver o Brasil a uma rota de expansão econômica. Segundo projeções do Banco Central, enquanto o país avançou 1,05% no início de 2013 – comparado ao último trimestre do ano passado –, a região cresceu o dobro, 2,05%. Enfim, o Nordeste parece ter descoberto a vocação para os serviços e o comércio, deixando de ser exclusivamente agrícola para se tornar uma economia diversificada e apoiada fortemente no consumo, tornando-se a nova tendência de investimentos das franquias. Em entrevista recente, o novo Diretor Internacional da ABF, André Friedheim, afirma que enquanto o setor de franchising cresceu 15% nos últimos três anos em todo o país, a região Nordeste aumentou sua partici-

INFORMAÇÃO ANTES DA PRÁTICA Tânia Meyre Porto de Carvalho é articuladora regional do Sebrae, órgão que apoia micro e pequenos empresários na abertura e melhoria de seus negócios. A sede da regional fica em Juazeiro do Norte e atende 26 municípios, divididos em seis microrregiões, cada qual com um gestor. O papel de cada gestor é alimentar as ações de parceria naquele território, oxigenando diferentes projetos voltados para o comércio, a indústria, o agronegócio e outros. Oferecendo consultorias, capacitações, oficinas, seminários, formalização na categoria de microempreendedor individual e informações sobre elaboração de projetos, o Sebrae também trata da questão das franquias. “O perfil de quem nos procura é muito variado. E nossa área de cobertura é ampla, da gestão ao design”, explica Tânia. O cliente que chega numa das unidades, é encaminhado para o setor adequado ao seu caso. O site www.sebrae.com.br dá dicas de como abrir uma franquia e quais as condições a partir de cada faixa de renda e categoria de negócios. O interessado também pode entrar no call center do Sebrae (0800.570.0800), para se informar, consultar, reclamar. “Temos o guia de franchising, a biblioteca on line, o site conectado ao IBF. Estamos preparados para dar todas as orientações básicas. Quando a pessoa quer um conselho mais especializado, nós aconselhamos outros caminhos”, conclui a articuladora.

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pação em 32%. Atualmente, 10% das franquias brasileiras estão aqui e 6% delas tem origem nordestina. Ponta de lança desse crescimento, a cidade de Juazeiro do Norte navega em águas alvissareiras. O flagrante crescimento levou a cidade a estampar a capa da revista EXAME, que a incluiu no mapa de consumo brasileiro por apresentar um potencial, hoje, de 570 milhões de reais por ano. A estimativa é que esse valor de consumo quadruplique até o fim da década. TEM QUE SABER ESCOLHER Com olhos brilhantes, o rapaz, que entre uma fala e outra é interrompido pelo chamado do celular, anuncia: “Nos últimos cinco anos, o PIB de Juazeiro triplicou. Seremos até 2020 o maior polo consumidor de massa do Brasil”. Aos 27 anos, Israel Gondim é o retrato do novo investidor: dinâmico, arrojado e detentor de amplo conhecimento a respeito do contexto econômico em que seus investimentos estão inseridos. Pertencente à segunda geração do grupo de investimento J. Gondim, ele faz questão de narrar o início dessa saga familiar. “Tudo começou com minha mãe que era vendedora porta-a-porta de O Boticário. Naquela época, a marca não possuía loja própria. Quando por fim eles resolveram abrir franquias, ela aproveitou a chance e adquiriu uma”. Isso foi em 1981. De lá pra cá, são 17 lojas com previsão de abrir mais duas até o fim deste ano. Afora essa liderança, o grupo possui as franquias Camarão & Cia, Santa Lola e Grão Expresso. Israel acredita que a medida do sucesso começa com a escolha da franquia. “Todo mundo pensa que para se ter sucesso em uma operação, basta ter dinheiro para investir. Esse é um erro enorme. Para começar, a escolha da franquia é primordial; nem sempre o empresário tem o perfil para determinada marca. Depois, conhecer bem o mercado. Não é porque algo deu certo no Sul que dará certo aqui. Por fim, seguir os processos e procedimentos. E sempre lembrar: franquia não é garantia de sucesso”, finaliza. Há seis anos estudando o mercado de franquias, Breno Fernandes não é o que se possa chamar de um novato. Caminhando agora para sua primeira experi58 CARIRI REVISTA

ência como franqueado, possui uma larga vivência no segmento gastronômico. Proprietário do restaurante Budega Cariri, ele viu sua ideia sair do papel e se tornar um sucesso em menos de um ano. “A franquia é boa porque permite que o operador inicie com uma série de acúmulos. A solidez da marca e as pessoas que estão por trás é outro bônus, mas tem que ter gestão e detalhamento dos procedimentos, como qualquer outro negócio”, discorre. Para sua primeira operação, Breno escolheu o Cariri Garden Shopping. “Nesse momento nós achamos que o contexto era conveniente. Queríamos fazer uma operação e o shopping nos pareceu o melhor cenário”. A marca escolhida foi do segmento de alimentação, o Mercado 153. “Minha expectativa é muito boa. Eu acredito que o mercado está demandando essa área gourmet. A marca não é velha, mas o grupo tem uma trajetória longa”, analisa. SHOPPING CENTER: ILHA DE CONSUMO URBANA Maior shopping Center do interior do Nordeste, o Cariri Garden Shopping é hoje o destino das franquias que


DOUTOR FRANQUIA RAFAEL VILAROUCA

Moda masculina sob a gestão do Dr. Gustavo.

Gustavo Saraiva é médico radiologista, mas tem grande vocação para fazer malabarismos. Como doutor, trabalha em diferentes unidades de saúde. Como empresário, já abriu duas franquias de roupas e sapatos. No breve intervalo entre um compromisso e outro, ele conversou com a CARIRI, explicando que o empreendedorismo é um caso de paixão familiar. “Está na veia!”, sorri, ao revelar que a mãe trabalhou no ramo de confecções e teve loja na Rua São Pedro por mais de 20 anos. “Observando o crescimento de Juazeiro, fiquei com vontade de ter uma loja que me desse suporte, que tivesse nome a nível nacional. Antes disso fui estudar, porque nem sempre a franquia é segura”, detalha Gustavo, que no período de residência médica em São Paulo conheceu a Associação Brasileira de Franchising e

participou da Feira Nacional de Franquias, a maior da América Latina. Tudo com um único intuito: pesquisar para não errar. Visto que Juazeiro não possuía uma loja de sapatos masculinos exclusivos e de design moderno, Gustavo acabou optando por uma franquia neste segmento. “Descobri que meus amigos compravam sapatos fora. Eu mesmo raramente adquiria produtos aqui”. Uma vez escolhido o nicho, o passo seguinte foi decidir qual a marca. Por uma série de fatores, como a liberdade de escolha entre os itens de uma coleção, a Sergio´s foi a marca eleita. “Eu não preciso comprar tudo que eles me oferecem; apenas o que é apropriado para a região”, comenta o doutor. Explicando que algumas franquias “amarram” o freguês, obrigando-o a

comprar a coleção completa, inclusive itens inadequados para o clima local, Gustavo adverte para a armadilha que isso representa, porque o empresário não consegue vender, fica com o estoque cheio e tem que apelar para promoções que nem cobrem o preço da mercadoria. Cauteloso, antes de fechar com a Sergio´s, o doutor conversou com franqueados da marca em Teresina, Fortaleza e Recife, mas hoje se diz plenamente satisfeito. “Eles dão todo o suporte, mas também cobram, é um compromisso de parte a parte. Um franqueado não pode fazer nada sem autorização. Da arquitetura à publicidade, tudo segue um padrão determinado. Quem não quer seguir regras, não deve apostar em franquias”, aconselha Gustavo, que junto com a irmã – também da área de saúde – abriu uma segunda franquia, a Adji, de vestuário masculino, outra aposta certa. Detalhe: a inauguração aconteceu no mesmo dia da Sergio´s, em maio de 2012. Apesar de variar conforme o tipo e o segmento, uma franquia mediana exige um investimento inicial de R$ 300 a R$ 350 mil, conforme cálculos de Gustavo. E é preciso paciência. “As pessoas que pensam ter lucros depois de três meses, estão muito enganadas. O tempo mínimo para recuperar o investimento é de dois anos. O que entra tem que ser reinvestido em mercadorias, propaganda e custos operacionais. No nosso caso tem valido a pena”, finaliza.

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O Brasil só perde para os EUA em matéria de franquia. Veja os setores que mais cresceram nesse nicho de mercado: Hotelaria e Turismo

97,8%

Limpeza e Conservação

44,5%

Informática e Eletrônicos

32,5%

Esporte, Saúde, Beleza e Lazer

21,4%

Veículos

20,2%

Vestuário

18,5%

Alimentação

18,3%

Móveis, Decoração e Presentes

16,4%

Acessórios Pessoais e Calçados

14,8%

Educação e Treinamento

10,3%

Negócios, Serviços e outros Varejos 2,6% Fotos, Gráficas e Sinalização 1,6%

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aportam na cidade de Juazeiro do Norte. Há 15 anos na região, o shopping começou tímido. “Quando assumi, em 2010, já era com a intenção de expandi-lo, porque acreditávamos no potencial da região”, informa Alexandre Botelho, superintendente do Garden Shopping. Pertencente ao grupo mineiro Tenco, o empreendimento segue uma visão própria de rastreamento de território. “O projeto da Tenco são novos mercados. Não entramos onde já exista um shopping center instalado e maturado, evitamos capitais de maior porte e elegemos cidades de 400 a 500 mil habitantes, onde não exista essa indústria do shopping instalada”, explica. Segundo Alexandre, a ideia é proporcionar à região um lugar que não deva nada à capital do Estado. “Havia uma parcela da população que saía daqui até Fortaleza para realizar compras, e nós achamos que essas pessoas têm que ficar aqui. O objetivo é transformar e firmar o Shopping Cariri como o principal shopping do interior do Ceará”, detalha.


Para isso, uma das estratégias é lançar um mix de marcas que não existam na região. “Estamos atraindo as franquias que têm a ver com a expectativa do público que queremos fixar na cidade” argumenta Botelho. A vinda das marcas para o shopping acontece de duas formas: a mais usual, com o empresário indo buscar uma vitrine para o seu negócio, ou a mais arrojada, com o próprio empreendimento atraindo as marcas. “A gente vai atrás de uma franquia e fala: olha, vocês querem ir ao Cariri? Então arranjamos um empreendedor para a franquia”, explica Alexandre. Isso acontece, segundo o superintendente, para equilibrar o mix do empreendimento, evitando a saturação de determinado produto, assim como para dividir o mercado com o custo do fechamento de outras operações no mesmo segmento. “Algumas marcas fecham de forma coletiva. Na hora que acertamos uma operação para Juazeiro, fechamos junto um pacote de outras cidades. Assim, fica-

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Breno Fernandes aposta na gastronomia.

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PALAVRA DE QUEM ENTENDE

“Adotei as franquias há sete anos por me dar um know-how e uma segurança na excelência do serviço. Gosto de estar em rede com outras lojas. Mas não adianta achar que a franquia vai te dar tudo. O empresário tem que estar acompanhando tudo de perto, por dentro, tem que se atualizar e ser muito atento para as mudanças de mercado.” Louise Aline Almeida (Toli) “A vantagem de trabalhar com franquia é o suporte que ela te dá de inicio. Você não vai precisar ir atrás de determinadas coisas que tomam muito tempo no começo do empreendimento, fora que eles já te passam certa experiência. Então, para seu negócio começar a dar lucro, teoricamente é mais rápido. Alia-se o nome da marca, a experiência e o tempo de mercado. Hoje eu acredito que a franquia é uma boa resposta para quem quer investir em um negócio.” Vladimir Sobral (New Móveis) “Tem muita gente que faz uma economia de uma vida inteira, corre para uma franquia porque já viu a coisa formatada com manual para seguir e acha que é a fórmula do sucesso. Isso é uma grande ajuda, mas existe também a capacitação das pessoas que vão trabalhar. Se não tiver alguém com experiência que veja a tendência do mercado, para onde ele está seguindo, simplesmente não funciona. Abrir não é a grande dificuldade. Difícil é se manter nesse mercado.” Joaquim Oliveira (Pasto & Pizza) “Não é qualquer franquia que dá certo em nossa cidade. Você tem que saber o que é que está faltando. Tem franquias de custo muito elevado, com produtos de alto luxo, que eu acho que Juazeiro ainda não comporta. Também é preciso conhecer como funciona a franquia e nunca fechar um contrato sem conversar antes com outros franqueados. Outra coisa: se você quer uma franquia, saiba que vai ter que seguir regras. Se não gostar disso, esqueça e abra sua própria loja.” Gustavo Saraiva (Sergio’s e Adji) 62 CARIRI REVISTA

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Veja as dicas de empresários que apostaram em franquias e não se arrependeram:

Alexandre Botelho do Cariri Garden Shopping : em busca de novos mercados

mos com um poder maior de atração dessas franquias”, revela Botelho. Com um fluxo diário de que chega a 18.900 consumidores, o Cariri Shopping tem hoje 125 lojas, sendo 65 delas franquias, que atraem um público formado em sua maioria pelas classes A/B (57%). Devido ao projeto de expansão para a construção de um segundo piso, o empreendimento passa pela prova de fogo dos negócios que se reinventam. “Um shopping recém-inaugurado demora de dois a três anos para maturar. Eu acredito que aqui esse período vai ser muito mais curto e vai culminar com a abertura do cinema. Acho que a partir de agosto essa nova fase do shopping estará completamente madura”, analisa o superintendente. Confiante, o jovem empresário Israel Gondim acha que isso é apenas o começo. “O Shopping Cariri foi um divisor de águas. Ele referendou esse crescimento vertiginoso da cidade. É só olhar à volta e ver a quantidade de prédios residenciais, clínicas, escritórios que estão sendo construídos. O que aconteceu, na verdade, é que o shopping criou um novo centro de negócios em Juazeiro. O que estamos vendo, é só o inicio”.


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#cariripadrecícerogastronomia

OS BANQUETES DO PADRE CÍCERO Por Sérgio Pires [Sommelier, ex-funcionário do Banco do Brasil, praticante de karatê, diretor responsável pela comunicação da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-DF), e professor em seus cursos]

“O prazer dos banquetes não deve ser medido pelas gulodices da mesa, mas pela companhia dos amigos e das suas palavras.” FRASE DE CICERO (NÃO O PADRE MAS SIM O MARCO TULIO, 106 A.C. A 43 A.C., FILÓSOFO, ORADOR, ESCRITOR, ADVOGADO E POLÍTICO ROMANO).

O

Padre Cícero era um grande anfitrião e sabia da importância de uma boa mesa como instrumento de convencimento em decisões difíceis. Tal foi o caso do famoso banquete servido em 04 de outubro de 1911, comemorando simultaneamente a inauguração do recém-criado município de Joazeiro; a posse de Cícero no cargo de prefeito e a assinatura do chamado Pacto dos Coronéis. Um dos relatos sobre a festa foi feito por Amália Xavier de Oliveira no livro “O Padre Cícero que Eu Conheci”: “O banquete não deixou nada a desejar desde o cardápio até as impecáveis garçonetes, moças da sociedade, instruídas pelo Dr. Floro Bartolomeu. O baile também esteve sob sua orientação: o salão foi todo forrado de algodãozinho, pregado ao chão com pregos e passado vela de estearina à falta de cera. Ali deslizaram os pares constituídos pelo que havia

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ARQUIVO RENATO CASIMIRO/DANIEL WALKER

Recepção da Comitiva do Pres. Moreira da Rocha na cidade de Joazeiro, em 11.09.1925. Cena do Banquete na residência do dep. Floro Bartholomeu da Costa.


ARQUIVO RENATO CASIMIRO/DANIEL WALKER

de melhor nos meios sociais não somente de Juazeiro, mas também do Crato, Barbalha, Missão Velha, dançando ao som de uma orquestra de pau e corda, valsa, tango, schottish. E dançaram muito bem as jovens juazeirenses pois ensaiaram antes de enfrentarem, com sapatos de salto alto, um salão forrado de pano e liso de cera”. Lira Neto, autor da biografia “Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão”, comenta que “para o banquete, Floro Bartolomeu mandara trazer do Rio de Janeiro toda a louça e toda a prataria que seria usada pelos convidados. Na porcelana decorada com flores e bordas douradas, lia-se a inscrição, em letras a ouro: Pe. Cícero.” Muitos dos talheres e das louças hoje se encontram em exposição no Memorial Padre Cícero em Juazeiro do Norte. O Padre Cícero adotava uma postura muito equilibrada quanto à bebida alcoóli-

ca, era contra o seu consumo em excesso, mas a favor do seu uso para abrilhantar uma refeição. Ficou bem famoso o seu conselho aos alcoólatras: “Quem bebeu, não beba mais. Quem bebe, obedece a Satanás, e quem obedece a Satanás, não se salva, vai para o inferno. O homem que bebe falta com os seus deveres de pai, de esposo e de amigo. A cachaça é um poderoso agente enviado de Satanás”. Ainda bem que não é a nós a quem ele estava se referindo. Mas, se lamentavelmente não se tem o registro do cardápio servido e das bebidas que acompanharam aquele banquete de 1911, temos todas as informações sobre a recepção oferecida no dia 10 de setembro de 1925 ao Presidente do Estado do Ceará, Desembargador José Moreira da Rocha, quando este visitou Joazeiro junto com a sua comitiva, hospedando-se na casa do Pe. Cícero. Aqui vou

me valer de um texto de Renato Casimiro, professor de biotecnologia, que já dedicou seus estudos à fermentação da cachaça e do vinho, temas de suma importância, pesquisador que é considerado um arquivo vivo de Juazeiro do Norte. “Floro Bartholomeu promoveu com grande requinte este ágape. (...) Elaborou todo o cerimonial, proveu a copa-cozinha de sua casa com o melhor dentre bebida e todos os ingredientes para o cardápio. Ele também supervisionou a organização de um grupo de jovens da sociedade, pessoas que compuseram a equipe de femmes de ménage (“empregadas domésticas” ou “empregadinhas”, aqui seriam copeiras), para assistir a todos os convivas durante o almoço festivo. A seleção dos convidados para o evento também foi gesto pessoal de Floro (...), a longa mesa montada na sala de jantar da sua ampla residência na Rua CARIRI REVISTA 65


FOTOS: ARQUIVO RENATO CASIMIRO/DANIEL WALKER

Recepção da Comitiva do Pres. Moreira da Rocha na cidade de Joazeiro, em 11.09.1925. Grupo de “femme de ménage” na residência do dep. Floro Bartholomeu da Costa.

Nova foi representativa de diversos segmentos do mundo político-administrativo de todo o Cariri”; Prosseguindo seu relato, Renato Casimiro cita as delícias do cardápio: na entrada, sardinhas, pickles, frios sortidos e macarrão à italiana. Dentre os pratos principais (“pois este era o espírito da época”), galinha ao molho pardo, frigideira de camarões, peru a sertaneja, fígado à baiana, costeleta de porco, leitão de forno, carneiro, peru e filé. Na sobremesa foram servidas frutas (abacaxi, laranja e banana), além de doces de goiaba, pêra, banana, laranja e abacaxi. “Seguiu-se o serviço de chá e café, complementado por licor e cacau. As bebidas que foram servidas durante o almoço foram vinhos Sauternes e Collares, e cerveja”, finaliza o pesquisador. 66 CARIRI REVISTA

MAIS SOBRE SAUTERNES E COLLARES O vinho Sauternes, diga-se de passagem, é um branco de sobremesa, elaborado, principalmente, a partir de uvas Semillon atacadas pelo fungo Botrytis, que eliminam a água dos bagos da uva, concentrando seus componentes e açúcar. Considerado dentre os melhores vinhos de sobremesa do mundo, é bastante tradicional, tanto que foi incluído no famoso sistema de classificação oficial dos vinhos de Bordeaux, de 1855, criado a pedido do imperador Napoleão III, para apresentar os vinhos franceses na Exposition Universelle de Paris. Os vinhos foram classificados em importância de primeiro a quinto, sendo que alguns Sauternes foram considerados Premier Cru Classe. O vinho Colares, agora sem o “l” dobrado, também é muito antigo, tanto que Políbio (203 a.C.- 120 a.C.), geográfo e historiador da Grécia Antiga, fala dos vinhos da Lusitânia como sendo dos melhores da Europa, um século antes da era cristã. Colares é originário do Conselho de Sintra, vizinho de Lisboa, região vinícola que sofre graves riscos de desaparecer frente à especulação imobiliária. Não bastasse a falta de sol e nevoeiros, o vento inclemente e o solo de areia de praia. Mas um trabalho humano insano permite a produção de vinhos diferentes e de um estilo único. Joias de tipicidade que rogamos não se percam. O crítico e jornalista português Rui Falcão, tem a definição perfeita desta situação: “Colares tem tudo contra si e o futuro é incerto. A racionalidade diz-nos que nada faz sentido e que Colares é um mundo perdido. Mas a sensibilidade diz-nos que Colares é uma peleja contra todas as adversidades, que representa a individualidade, a alegria da cor que nos garante que o mundo não se escreve a preto e branco.” COLABORAÇÃO PRECIOSA E NINHO DE PASSARINHO Esta coluna não existiria sem a colaboração de Daniel Walker, biólogo, escritor, professor-adjunto, aposentado, da Univer-


sidade Regional do Cariri-URCA, profundo conhecedor da vida do Padre Cícero, que me enviou farta documentação. Para complementar, ainda me contou que conversou com Dona Assunção Gonçalves, falecida recentemente, que conheceu de perto o Padre Cícero, pois era frequentadora assídua da casa dele. Segundo Dona Assunção, o Padre gostava muito de oferecer aos visitantes um bife que se tornou famoso e leva o nome de Ninho de Passarinho. Era feito de carne com ovo cozido. Quando o ovo estava cozido era envolvido por uma fatia de carne não muito grossa e levada à fritura. Depois o conjunto carne-e-ovo era cortado de forma transversal e servido com verduras aos visitantes. Um prato simples e gostoso, que pede um vinho simples e agradável para acompanhar,

um Malbec ou um Cabernet Sauvignon destes que classificamos como sendo para o dia-a-dia.

não exista bebida que combine melhor com o chocolate devido aos seus sabores de chocolate, amêndoas, café, caramelo, especiarias e frutas cítricas. Quase todos ATUALIZANDO A os tipos de uísque harmonizam bem com CORRESPONDÊNCIA chocolate. Deve ser servido bem gelaRodrigo de Fortaleza pergunta se é ver- do e em uma taça fina e alta, como a de dade que chocolate não combina com champanhe. vinho. Meu caro Rodrigo, algumas perEntão, se sozinho o chocolate já é bom, guntas parecem vir ao encontro do que imagine bem acompanhado. Mas são vários está ocupando nossa mente no momento. os tipos de chocolate, diversos os vinhos e Recentemente participei de dois eventos cervejas, então apresento uma pequena em que o chocolate esteve presente, um tabela para auxiliar na harmonização. de harmonização com uísque e outro com cerveja. E o vinho? Calma. O vinho também harmoniza com chocolate, não todos os vinhos, assim como também não serão todas as cervejas. Perguntas, sugestões, dúvidas? O uísque já é um caso à parte, talvez Escreva para: sergiosvp@yahoo.com.br

CHOCOLATE

VINHO

CERVEJA

Ao leite

Vinho do Porto, espumante Moscatel, Banyuls, Sauternes, Moscatel de Setúbal

Stout, Drystout, Robust Porter

Com frutas

Jérez, Porto Rosé

Fruit Lambics, Brow Ales, Strong Pale Ales

Com amêndoas

Madeira, no estilo doce da uva Bual ou Malmsey, Porto Tawny 30 anos

Scotch Ale, Old Ale

Meio amargo, com 50% de cacau

Tintos, jovens ou encorpados: Cabernet Sauvignon, Shiraz e Merlot, Vin Santo, Porto, Late Harvest

Dry Stout, Schwarzbier, Dunkel, Oatmeal Stout,

Amargo, com mais de 70% de cacau

Tintos secos sem passagem por madeira, como os Merlots jovens

Imperial Stout

Com mais de 80% de cacau

Tintos com leve passagem por madeira, como Cabernet e Merlot, Espumante Brut. Porto Vintage

Imperial Stout

Branco

Branco ou tinto. De preferência os que passaram por fermentação malolática, que dá um toque amanteigado à bebida e ajuda a harmonizar com o doce. Espumante Moscatel.

Fruit Lambics, Brow Ales, Strong Pale Ales

Com caramelo

Vin Santo, Cream Sherry, Porto Tawny 20 anos, Moscatel de Setubal, Madeira, Sherry Amontillado

Stout, Drystout, Robust Porter

Trufas de chocolate

Porto, Tokay, Moscatel de Setúbal

Belgian Dark Strong Ales, Doppelbocks

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#cariripadrecícerolivros

PÁGINAS

DE UMA VIDA

A CARIRI conversou com diversos estudiosos, perguntando a eles quais os livros mais importantes já lançados sobre o Padre Cícero. Com base nas respostas dadas, elaboramos uma lista básica de obras imperdíveis. FOTOS: REPRODUÇÃO

Milagre em Joaseiro (Ralph Della Cava). Um estudo clássico e ainda hoje revolucionário sobre a trajetória de Padre Cícero. Ralph rompeu com a tradição historiográfica mais mecanicista e buscou compreender as raízes históricas, econômicas e sociais do fenômeno de massas que deu origem ao culto ao sacerdote proscrito pela Igreja. Antropólogo da Universidade de Columbia (EUA), Della Cava recebeu, em 2011, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Campus Cariri. Lançado em 1977, “Milagre em Joazeiro” é leitura obrigatória para leigos e estudiosos.

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Maria do Juazeiro: A Beata do Milagre (Maria do Carmo Pagan Forti). Um estudo instigante sobre a personagem que a Igreja Católica, durante muito tempo, tentou varrer da memória coletiva dos romeiros. A autora nos apresenta, com riqueza documental e reflexiva, a trajetória da vilipendiada Maria de Araujo, a “beata do milagre”, cuja história de vida constitui o epicentro dos fatos geradores da devoção popular a Cícero Romão Batista. A psicóloga Maria do Carmo Pagan Forti teve a sua dissertação de mestrado publicada pela Editora Anna Blume (SP, 1999).

A Terra da Mãe de Deus (Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros). O livro teve o grande mérito de trazer à tona uma documentação até então desconhecida ou pouco explorada pelos pesquisadores à época. A partir de uma abordagem original, a autora propõe também um mergulho antropológico no catolicismo popular, por meio do qual nos são reveladas as motivações e circunstâncias do mundo dos beatos e dos líderes religiosos nordestinos. O catolicismo popular e o cangaço sempre foram temas centrais dos estudos da antropóloga alagoana, nascida em 1941.


O Padre Cícero que eu Conheci (Amália Xavier de Oliveira). Outro título tido como obrigatório em meio à vasta bibliografia existente. Amália conta sobre os primórdios do povoamento, começando pelas aldeias dos índios Cariris, passando pela fazenda Tabuleiro Grande e chegando à construção da capela de Nossa Senhora das Dores. Fala sobre o desenvolvimento de Juazeiro, a atuação de Cícero como prefeito e a importância do Dr. Floro Bartolomeu, além de transcrever cartas e analisar a economia, a organização administrativa e a ordenação judiciária caririense.

Madeira Matriz: Cultura e Memória (Gilmar de Carvalho). Ao aliar o rigor da pesquisa semiótica ao prazer do texto, o autor pesquisa a iconografia popular sobre Padre Cícero, sobretudo as xilogravuras, para analisar os signos que deram origem às representações coletivas em torno do “Padim Ciço”, adorado pelos romeiros e devotos. Durante muitos anos professor do curso de Comunicação da UFC, Gilmar é um pesquisador de reconhecidos méritos e autor de diversos livros, com artigos publicados nas principais revistas acadêmicas brasileiras.

Padre Cícero Entre os Rumores e a Verdade (Paulo Machado). Com base em documentos eloquentes, o autor demonstra a origem e a destinação dos bens pessoais do sacerdote – que, aliás, foi censurado pela Igreja por amealhar um vasto patrimônio. Com isso, destrói algumas verdades estabelecidas e põe em xeque alguns personagens envolvidos na trama histórica. Livro importante para os que gostam de descer às minúcias da história, servindo de base para muitos estudiosos, visto que a permite uma abordagem aprofundada dos momentos políticos que moldaram as feições do Cariri.

Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão (Lira Neto). Lançado com grande sucesso pela Cia. das Letras, o livro é uma saborosa, vibrante e complexa biografia, que ilumina não apenas o personagem de Padre Cícero, mas também os caminhos de Juazeiro. Radicado em São Paulo, onde finaliza o segundo volume da biografia de Getúlio Vargas, o jornalista Lira Neto é autor também de relatos que desvendam as trajetórias de Maysa e Castello Branco (todos lançados pela Cia. das Letras). No livro sobre Padre Cícero, Lira esbanja maestria na reconstrução de cenas e episódios, prendendo a respiração do leitor até a última linha.

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RAFAEL VILAROUCA

#cariripadrecícerofilmes

CÍCERO EM MÚLTIPLOS ENQUADRAMENTOS Por Kiko Bloc-Boris

S No cinema, na TV, em gravações para estudos acadêmicos, filmagens etnográficas, registros documentais e aventuras ficcionais, são muitas as citações alusivas a Padre Cícero. Para os que desejam mergulhar nessa rica construção audiovisual, a CARIRI fez um apanhado ilustrativo do acervo disponível. 72 CARIRI REVISTA

antificado nas devoções populares. Carismático em esferas várias. Polêmico por mancomunações e amplificado pelas disseminações do prestígio doutrinador, o “Cearense do Século” (*) se movimentou por oratórias e cartilhas muitas, que se mantêm reverberadas em telinhas e telões. Soerguido pelos púlpitos das tecnologias audiovisuais, as dimensões de Cícero – baixinho na estatura –, foram agigantadas pelo histórico e imaginário do personagem, que conquistou a 32ª posição entre os “100 maiores brasileiros de todos os tempos”, em concurso realizado pelo SBT com a BBC de Londres. As ações que unem o pastor caririense aos fulgores do cinema vêm desde os idos de 1911, quando ele assistiu à instalação da primeira sala de exibição no Crato. Como bem dito no texto remissivo do crítico, pesquisador e mestre de cinema Firmino Holanda, quando o italiano Vitorio Di Maio empresariou a pioneira sala de exibição do sul do Ceará, o sacerdote e futuro prefeito de Juazeiro logo abençoou a novidade. Enquanto ramificava seu poderio, gerando autonomia ao Cariri e elegendo-


-se na mitificação que hoje se comprova, anteviu a preservação da própria imagem. Em carta ao amigo Lauro Vidal, Cícero confia, sem reservas condicionais, o uso da sua figura por quaisquer direções em filmes a se realizar. Anotou em tom profético o que ainda hoje se observa: “... dou a V. S. a exclusividade absoluta para exibição e representação cinematográfica, em qualquer parte do País e fora dele, de filme que me diga respeito, seja em relação à minha presença no mesmo, seja no que diz respeito a aspectos deste Município ou fora dele, nos quais figure a minha pessoa”. Rogativa feita, promessas cumpridas, e dilatadas. Provas cabais estão aqui listadas na seguinte filmografia do perfilado, que mesmo incompleta na amostra, sem priorizar distinções qualitativas, já confabula para acrescer exemplos, que adentram a era da cinematografia digital. Os filmes assinalados ora clamam, ora exortam, a complexa simbologia desse homem e ser lendário, que congregou figurões e bandos do cangaço, e, ainda por várias ordenanças, arrebata multidões, conquistando romarias de novos espectadores.

REGISTROS HISTÓRICOS, FRAGMENTOS DOCUMENTAIS E OUTROS MOVIMENTOS A fé no Padre Cícero fez seus devotos erguerem um monumento em 1925, com sua imagem divinizada em estátua, fincada em plena praça central de Juazeiro – na época chamada da Liberdade, e posteriormente rebatizada com o nome do homenageado. Datam da mesma ocasião algumas das primeiras cenas em movimento do sacerdote, no próprio advento da inauguração de sua altiva escultura. Após desfilar em carro aberto, teve a presença disputada pela multidão e captada para registros no cinema, embora com imagens tecnicamente precárias. No mesmo ano e seguinte decênio, documentários sobre o clérigo ganharam não somente os solos nordestinos. Alastrado em sessões pelo país, foi o caso de “Joaseiro do Padre Cícero” (1925), que ilustrava em cinco partes os progressos da região, sempre com destaque para o pároco. Ele aparece em fotos, comentado por ilustres e romeiros, como em movimentos pela sua residência, nos ofícios de bênçãos e discursos disseminados. Descrito em impressos do período como uma “bela reportagem cinematográfica do Cariri”, o documentário apresentou a evolução do território e foi exibido em diversas paragens e festividades. Em 2011, encantou a plateia do 21º Cine Ceará. Vários filmes de metragens curtas, em que o Padre Cícero fulgura, foram encomendados nos anos 10 e 20, como o documental “O Nordeste Brasileiro”, pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, e os cine-jornais produzidos pela ABA-Film, com assinatura do cearense Ademar Albuquerque, a exemplo de “Coluna Lampião” e “Os Funerais do Padre Cícero e Vasta Reportagem de Nossa Terra”, no qual vemos o enterro do mito. Velado por variadas câmeras, inclusive as do sírio Benjamin Abraão, seu antigo “leão-de-chácara”, que pelejava para findar cinebiografia do “líder sertanejo”, Cícero teve seus funerais amplamente gravados. As massas humanas fixadas nesse fúnebre cortejo foram ressuscitadas depois em novos recortes e enxertos para documentações, como em 1975, no teleprograma Globo Repórter. Novos seriados pulularam pelos anos 1970. Época do curta-metragem “Viva Cariri!: A Condição Brasileira”, que no roteiro de bases sociológicas, dirigido por Geraldo Sarno, mixou registros de Juazeiro do Norte às vestais do Padre Cícero, enquanto líder religioso, coronel político e maior proprietário de terras do “oásis CARIRI REVISTA 73


CÍCERO EM FILMES DE CARIRY No universo cênico-temático das obras regionalizadas pelo cearense Rosemberg Cariry, há inúmeras citações, interpretações, alegorias, ritos e alusões à personalidade do Padre Cícero. O cineasta se inspirou desde “O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto” (1986), em que retrata a organização comunitária do revolucionário Beato Zé Lourenço, fazendo referências a Cícero. Depois prosseguiu com “A Saga do Guerreiro Aluminoso” (1993), “Corisco & Dadá” (1996) e “Cego Aderaldo - O Cantador e o Mito” (2012), sua obra mais recente. Rosemberg vai do fascínio místico ao mítico do mais conhecido representante de Juazeiro como “paraíso” terreno. Notadamente em “Juazeiro, a Nova Jerusalém” (2006), o diretor repassa com mais absoluta reentrância as históricas do Padre, seja usando tons realistas, seja optando por conotações fabulares, narrações e deslumbres de beatos e romeiros, figurativas alusões e criações artesanais que invocam o emblemático personagem.

em pleno sertão”. A discussão era o desenvolvimento econômico da região, mas seguia os pés bem firmados do Padre no chão natal, a partir de arquivos fotográficos e outras captações de imagens. O filme teve lastro, ao ponto de evoluir em premiações, como a da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, no Festival de Brasília, e láureo no Festival Internacional de Filmes Etnológicos, em Veneza. Da mesma safra, o episódio em cores “Pe. Cícero” (1972) versa 10 minutos de cenas, captadas pelo trio Paulo Gil Soares, Sarno e Sérgio Muniz, que também reuniram passagens do notável personagem para compor o longa “Herança do Nordeste”. Ainda em 1976, “Histórias que o Povo Conta” documentou, em curta de Zuleica Porto, os contrastes entre histórias oficiais e orais de mitos como Antônio Conselheiro, Lampião e Carlos Prestes, além de Padre Cícero. 74 CARIRI REVISTA

ENCENAÇÕES FICCIONAIS E CITAÇÕES COM VERACIDADE Os filmes procuram retratar, em diferentes abordagens, as muitas faces de Padre Cícero. Em 1976, o cearense Hélder Martins conseguiu um raro financiamento para o seu primeiro longa-metragem: “Padre Cícero: Os Milagres de Juazeiro”. Com Jofre Soares no papel principal, Hélder filmou a iniciação do religioso até sua posterior viagem a Roma, mas esbarrou na falta de comunhão da bilheteria, que por não ter rendido sucesso nem mesmo em Juazeiro, impediu a sequência do filme, que trataria da canonização do mito. No curta de animação “Uma Cidade Contra seus Coronéis” (1988), o vultoso pároco cearense teve um novo perfil traçado, sob direção de Eymard Porto e Léa Beatriz Zagoury, com desenhos movimentados que esboçavam sua sacramentada liderança na libertação de Juazeiro contra forças políticas opositoras. O tema contundente das revoltas que reconfiguraram o Cariri, vira-mexe se revigora em novas filmagens. De 2010 para 2012, por exemplo, a telessérie “Sedição de Juazeiro”, produzida na TV da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza, teve o apoio da Secult-CE para ser relançada como filme de 140 minutos, dirigido por Daniel Abreu, que retoma a narrativa histórica dos confrontos às retaliações federais, exaltando a garra do clérigo. No elenco, mais de 200 figurantes e intérpretes, com Ary Sherlok no papel de Padre Cícero. Proselitismos à parte, o Cariri foi cenário e local de lançamento em 2012 de “Sangue no Sertão”, filme do cineasta e padre Sagrado Bogaz, em parceria com a Inspetoria Salesiana, numa homenagem aos 101 anos de Juazeiro e ao aniversário de morte do Padre Cícero. Mais embasado nos prodígios fervorosos e controvérsias apostólicas, “Milagre em Juazeiro” (1999), longa do cearense Wolney Oliveira, recarregou o debate acerca das severas contestações da Igreja Católica ao suposto milagre que envolveu a beata Maria de Araujo (interpretada por Marta Aurélia) e Padre Cícero (José Dumont). Reminiscências mais diretas vêm do libanês Benjamin Abrahão, cuja intimidade como secretário do Padre Cícero fica explícita no longa pernambucano “Baile Perfumado” (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, em que relembram as ilusórias intenções do mascate sírio em enriquecer ao filmar as sagas de Lampião e seu bando, a partir da afiançada condução do Padre Cícero, retratado no filme por Jofre Soares.


ALLAN BASTOS

Abrahão segue com câmera em punho pelos sertões, mas é abatido do sonho de fortuna pelos mesmos massacres do Estado Novo que ceifaram as vidas de Virgulino Ferreira e sua legião. Já tendo se exercitado com rolos fílmicos cedidos pela ABA-Film, o mascate gravou sua proximidade com o Padre em cenas que mostram Cícero Romão Batista em casa, escrevendo e recebendo fiéis. Em “Nordeste Sangrento” (1962), rodado em Sergipe por Wilson Silva, e classificado como “nordestern”, o diretor mistura reais e fictícios personagens, tendo como centro o vaqueiro Zé Piedade (Paulo Goulart), que trava aventuras com cangaceiros e encontra o beato Cícero, revivido na trama por Jacy Campos. Citações também evocam o Padre no clássico “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963), de Glauber Rocha, e no longa “Gitirana “ (1975), dos diretores Jorge Bodansky e Orlando Senna.

ASTRO GLOBAL EM CONTÍNUAS RESSURREIÇÕES... Em 1984 a Rede Globo contou a saga de Padre Cícero em minissérie de 20 capítulos. Escrita por Aguinaldo Silva e Doc Comparato, trazia Stênio Garcia no papel principal, contracenando com Débora Duarte (como a beata Maria de Araujo), Rubens de Falco (nas vezes de Floro Bartolomeu) e José Dumont (dando vida ao governador Franco Rabelo). A série era a segunda parte de uma trilogia nordestina, mas como teve pouca audiência, sepultou a seguinte. Ainda assim a emissora pensa em ressuscitar o mito. Já se falou de projeto sob a batuta de Guel Arraes, em coprodução com a RT Filmes (a mesma do filme “Heleno”), que levaria às telas, em oito episódios, a fremente existência do padre político, como as lendas à sua volta. Outra possibilidade ainda vindoura é a refilmagem da cinebiografia do Padre Cícero, desta feita com base no livro “Padre Cícero – Poder, Fé e Guerra no Sertão”, do jornalista Lira Neto. O longa seria produzido em 2012, mas pode ter empacado em algum ponto, embora já tivessem escalado como diretor Sérgio Machado (de “Cidade Baixa”), que contaria com o produtor Rodrigo Teixeira (de “O Cheiro do Ralo”) para dar um certo viés de western à aventura dramatizada. Mesmo com o fervor dos devotos, Padre Cícero nem precisa apelar para milagres para ver sua imagem retornando às telas.

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#cariripadrecíceroensaiofotográfico

“UM MONTE DE MIM” Por Hermínia Rachel

Um ensaio fotográfico etnográfico que se propõe a mostrar a pluralidade das imagens comercializadas do Padre Cícero.

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omo nasce um projeto de um ensaio fotográfico? A escolha do tema é feita intuitivamente: O Padre Cícero, o santo – que ainda não foi sequer beatificado pela Igreja, mas que já é santificado por uma imensidão de fieis. Ícone da religiosidade nordestina, Padre Cícero Romão Batista, tem em sua inegável força um poder incontestável de veneração, fé ardorosa e carisma. Dentre outros questionamentos, em relação às características que levam ao sacerdote Cícero Romão Batista, a pluralidade de imagens foi o pontapé inicial para a temática de um ensaio do fotógrafo Allan Bastos. Não se faz necessário um olhar clínico para perceber que as imagens comercializadas do Padre Cícero possuem inúmeras vertentes: posições, gestual, situações, indumentária. Allan Bastos começou o seu estudo, inicialmente, através da percepção em 2001. Em seguida a pesquisa foi amadurecendo, assim surgiram mais perguntas, consequentemente mais respostas e, dentro desse contexto, o olhar foi transcendendo e as imagens criando vida no sentido de forma e circunstância. Allan relata que quando começou a perceber as nuances diferenciadas, nas quais as imagens do Padre Cícero eram dispostas, viu que tinha muito mais a questionar. Tais questionamentos se iniciam pela própria imagem e semelhança. Qual seria a reação do próprio Padre ao ver-se transfigurado em diversas formas e conceitos? Daí surgiu o tema do ensaio “Um Monte de Mim”. O ensaio fotográfico “Um monte de Mim” está dividido em 3 séries. “Imagem e Semelhança” trata da pluralidade das imagens encontradas por ele no mercado – 14 modelos de estátuas ao todo, com poses, objetos e símbolos diferentes. “É importante salientar que a mais

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comercializada é a de chapéu na cabeça, batina preta, bengala e Bíblia na mão com o braço estendido, e a menos vendida é a imagem igual à da estátua localizada na Colina do Horto em Juazeiro do Norte, de bengala e chapéu na mão”, explica o fotógrafo. Bastos ainda elucida que além das 14 imagens que fazem parte do ensaio, mais fotos foram feitas e poderão constituir um livro e uma exposição. A segunda abordagem seria “Eu Cícero”, que visa a mostrar um determinado número de pessoas que têm nome de Cícero. Esse capítulo já está em franco desenvolvimento. A 3ª serie seria: “Estou Aqui”, que intui uma busca de imagens de Padre Cícero pelo mundo com o olhar voltado para o local onde a imagem está e o que essa mesma imagem é capaz de ver. Allan Bastos exemplifica: “Digamos que um turista comprou uma imagem em Juazeiro do Norte e a levou para sua casa no Canadá. Lá organizou uma bela composição de cores em um oratório no seu quarto. A imagem do lugar em que ela está pode ver o turista, dormindo, lendo, planejando sonhos...” O Ensaio “Um Monte de Mim” não se impõe a arquétipos já criados a respeito do simbolismo que o Padre Cícero carrega. O Padim Ciço quanto mais retratado, mais visto, quanto mais questionado, mais proposto. É dessa multiplicação que se vislumbra o novo, que não necessariamente nunca foi visto, mas talvez ainda não tenha sido sentido. As demais fotos do ensaio “Um monte de mim” ilustram as diversas abordagens que esta edição especial da CARIRI oferece do Padre Cícero


FOTOS: ALLAN BASTOS

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#cariripadrecíceroespaçocidades

PRECEITOS VERDES E PERMANÊNCIA ECOLÓGICA Por Isabela Bezerra

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Padre Cícero além de figura religiosa e política de grande importância, também nos deixou valiosos ensinamentos sobre preservação ambiental. Tão atuais que hoje fazem parte de ações disseminadas no Brasil e no mundo. Listamos alguns desses projetos e práticas sustentáveis e mostramos aqui como você pode participar: “Não derrube o mato, nem mesmo um só pé de pau.” O Centro de Experimentos Florestais SOS Mata Atlântica, sediado na região de Itu (SP), é referência na área de restauração florestal. Com uma equipe de profissionais especializados, o Centro recebe visitantes para realizar práticas de reflorestamento e aprender valores sustentáveis. “Não toque fogo no roçado nem na Caatinga.” / “Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só.” O sistema de agrofloresta tem como méto-

do manter o solo sempre coberto por toda a vegetação, sem desmatar ou queimar, assim os nutrientes do solo são enriquecidos, possibilitado o plantio de várias espécies. A Cáritas Brasileira é uma entidade de atuação social em defesa do desenvolvimento sustentável. Em 2013, a entidade Regional do Ceará produziu um vídeo explicando a importância do sistema de agrofloresta. Esse filme participou do festival internacional Online Film Festival Green Unplugged. Veja no Youtube: “Agrofloresta: outro jeito de fazer agricultura no semiárido”. “Não cace mais e deixe os bichos viverem.” O Projeto SOS Soldadinho do Araripe foi idealizado pela ONG Aquasis e tem como objetivo a conservação do Soldadinho do Araripe, pássaro local ameaçado de extinção. Hoje são cerca de 200 casais da espécie, que é exclusiva da nossa região. Existe um Plano de Ação Nacional para Conservação do Soldadinho do Araripe do Governo Federal, na tentativa

de garantir o aumento populacional e preservar o seu habitat. “Não crie o boi nem o bode soltos; faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer.” O Programa de Recuperação de Terras Degradadas do Governo Federal tem como meta recuperar 15 milhões de hectares de áreas de pastagens degradadas até 2020. O Brasil possui cerca de 30 milhões de hectares de áreas de pastagens em algum estágio de degradação, com baixa produtividade para o alimento animal. O uso correto de tecnologias e de boas práticas agropecuárias torna possível a recuperação dessas áreas. “Não plante em serra acima nem faça roçado em ladeira muito em pé; deixe o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza” / “Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água de chuva.” O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC),

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articulado pela Articulação do Semiárido (ASA), tem como objetivo beneficiar aproximadamente 5 milhões de pessoas da zona rural, que não têm acesso ao sistema de água potável. Para alcançar esse resultado, a ASA conta com a parceria de pessoas físicas, de empresas privadas, de agências de cooperação e do governo federal. “Represe os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta.” A Articulação do Semiárido (ASA), rede que colabora como desenvolvimento sustentável e a convivência com o semiárido, desenvolve um projeto que instala barragens subterrâneas em áreas de baixios, córregos e riachos, para represar e garantir água nos períodos de estiagem. “Aprenda a tirar proveito das plantas da Caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar a conviver com a seca.” A vegetação do semiárido é singular, rica em biodiversidade. O projeto Quintais Produtivos, que tem apoio da Cáritas Espanhola, realiza atividades de cultivo com o objetivo de driblar as dificuldades com a estiagem. A comunidade planta de tudo um pouco e depois a produção é comercializada, garantindo o aumento em 50% da renda das famílias. “Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer. Mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o sertão todo vai virar um deserto só” – A Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos das Secas-UNCCD é o único instrumento internacional que estabelece padrões de trabalho e ações na luta contra a desertificação e a diminuição da intensidade dos efeitos da seca. O Brasil é um dos 192 signatários.

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PARA FICAR MAIS ATENTO ÀS DISCUSSÕES E PARTICIPAR: Facebook: www.facebook.com/SOSMataAtlantica www.facebook.com/MinAgricultura www.facebook.com/OngAquasis www.facebook.com/articulacaosemiarido www.facebook.com/ONUBrasil


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#caririespecial

ABENÇOADOS SEJAM OS ATOS E OS ANOS Por Yasmine Moraes

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uazeiro do Norte, 23 de março do presente ano. O nome do aniversariante: Padre Cícero, 169 anos. Mais detalhes: um Coletivo, às nove da manhã, sobe ao Horto. A Massangana Multimídia prepara-se para documentar a performance do Coletivo Café com Gelo, que entrará para o projeto Nordeste Emergente da Fundação Federal Joaquim Nabuco. Por ventura, o desafio: a performance fotográfica Multipliquei Sr. iria homenagear o aniversariante mais ilustre do sertão, multiplicando sua face em fiéis, debaixo de sol e da sua imagem de 27m de altura. Contato real, mais que palpável para os artistas cafécomgelenses. O convite aos fiéis dali seria feito não sem antes pedir permissão ao padre responsável, direto da sala paroquial da igreja do Horto: “Padre, somos do Coletivo Café com Gelo. Queremos fazer uma homenagem ao Padre Cícero...” A conversa segue. A permissão é dada. Convidamos: “Por gentileza, queremos fazer uma foto com estas máscaras... Pode pousar ali, na escada. Coloque a máscara no rosto...” E assim, seguimos. O alto falante ressalta a intimação da homenagem. Siga o olhar para o ato: fotógrafos, pesquisadora, diretor de filmagem, câmeras e mais de cem pessoas pousadas nas escadarias da estátua do Padre Cícero. A fotografia foi tirada, a ação documentada. “Ele só podia querer que desse tudo certo. Quando ele quer, dá certo, meu povo”, repetia Allan Bastos. Essas palavras sobressaltaram o possível desafio de transformar o ato em imagem. Todas as 169 máscaras, com a face do Padre Cícero, foram distribuídas. É de agregar pessoas, unir, munir, que neste exato dia 23 de março de 2013, o sujeito adjacente, o Padre Cícero, foi condescendido na imagética do Coletivo Café com Gelo. Lisonjeados ficamos, abençoados estamos. Multipliquei, Sr.

COLETIVO CAFÉ COM GELO

A fotografia, fruto da performance feita neste dia, encontra-se no site do Coletivo Café com Gelo (www.coletivocafecomgelo.com). Será também exposta no Museu Homem do Nordeste, Recife, em agosto, a partir do dia 27. 86 CARIRI REVISTA


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