Baleia - Edição Especial Reverso 108

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Edição 108/ Fev. 2019 Cachoeira - BA

Os largos passos desses pés cansados: o perfil de Neuza Soares e Papa (p. 10) A esperança que morreu naquele domingo (p. 4)

Divagações sobre o humor (p. 5)

Raízes do Iguape, cultura, resistência e história (p. 8)


AO LEITOR A Baleia foi idealizada como projeto experimental e incorpora, em sua linha editorial, o enfoque no jornalismo literário, abrangendo aspectos da cultura, história, futebol, humor e alguns assuntos corriqueiros. A revista coloca-se como uma extensão do Jornal Reverso, produto laboratorial do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). O título foi idealizado como referência à Pedra da Baleia - marco simbólico localizado no rio Paraguaçu, em trecho próximo à Cachoeira - e busca assim homenagear a cidade heroica. A opção por um marco cultural dialoga com a proposta da revista, que privilegia em suas páginas uma escrita voltada para diferentes ângulos do jornalismo cultural. Adrielly Novaes Leite, editora-chefe.

Edição 108 2019 Reitor Silvio Soglia Diretor do Centro Jorge Cardoso Filho Orientação Profº Dr. Péricles Diniz Monitor Rodrigo de Azevedo Editora-chefe Adrielly Novaes Diagramação Giovane Alcântara Publicidade Emanuelle Sena

Reporteres Adrielly Novaes, Caio Batista, Jelson Júnior, Leilane Fernandes Fotografias Adrielly Novaes, Jelson Júnior Colaboradores João Guilherme Arbex Ilustração Iago Aragão Tiragem 1.000 cópias

Os textos assinados são de responsabilidade exclusiva dos seus autores e não expressam, necessariamente, a opinião da orientação ou demais profissionais da instituição aqui elencados.

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia


Sumário

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Domingo

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In’graça - notas e divagações sobre o humor

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p. 6 p. 4

p. 8

As memórias que dobram os sinos

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Do Teatro para as quadras: Grupo Raízes do Iguape

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Os largos passos desses pés cansados

[CAPA]

p. 10

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poesia

Foto: Adrielly Novaes Leite

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DOMINGO

Leilane Fernandes

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omingos geralmente são calmos. Quase monótonos. Mas aquele domingo em especial foi diferente; ruas cheias, passos apressados, vozes a chamar uma criança que imprudentemente tenta atravessar a rua sem olhar. - Micaele! - grita a mãe - Me espere, menina! Minha mãe procura o título de eleitor, em meio ao monte de papéis que carrega na bolsa. É 28 de Novembro, dia do segundo turno das Eleições de 2018, um dia de decisões, um dia tumultuado. Por algum motivo passei a temer pessoas com a camisa da Seleção Brasileira, por algum motivo tenho medo de dizer em quem vou votar. Por algum motivo pareço ter certeza do resultado, as vozes nas ruas me

dizem: “Já perdemos, a luta, as discussões e enfrentamentos não valeram de nada.” Fui votar triste e cabisbaixa. Talvez a esperança tenha morrido antes da hora, talvez ainda haja um modo de reverter os pontos, talvez ainda haja uma fresta de sanidade, talvez alguém ainda enxergue o que está por vir. Estava errada. Às 19 horas da noite o resultado divulgado; e todas as minhas esperanças se esgotam ao ver o retrocesso em que tinham me colocado. O medo se instaura, o desânimo toma conta, e minha prima de 12 anos chora, inconsolável. A esperança morreu, como uma criança que atravessa a rua sem olhar.


humor

In’graça - notas e divagações sobre o humor “Esse negócio de Los Her’manos é que nem Jesus, né: a instituição até que rola, o problema são os “fãs”. Caio Batista

L

ógico que ele imaginava que falar algo assim em um momento de reunião familiar podia gerar algum buzz, mas contava também com o bom humor dos tios e tias à mesa, tendo em vista que, após certos episódios de uma “intolerância velada” às questões e comportamentos dos tempos atuais, eles vinham, de peito aberto, dando espaço para as novas possibilidades de mundo. Entretanto, após o papo, uma das tias falou com ele que entendia que havia maneiras contemporâneas de lidar com certas convenções da sociedade, porém, era um pouco baixo tratar daquela forma de questões da fé humana. Para ela, satirizar com o nome de Deus era dos maiores sacrilégios. A tia, ainda que de temperamento contido e voz branda, parecia sentenciar o pecado do sobrinho, com uma firmeza quase que eclesial. Mais uma vez, o rigor às instituições irretocáveis falava mais alto. As reflexões se seguiam de divagações que seguiam ponderações, até que então veio o start de epifania, que ainda assim foi seguido pela cautela última do questionamento que ratificava a sua conclusão: mas por que o humor é tão mal visto? Durante suas andanças pela terra, como narra a Bíblia, Jesus passou por uma infinidade de situações que causaram sentimentos diversos. Ele perdoou, agradeceu, se arrependeu, se solidarizou e, por duas vezes, conforme os relatos, chorou - João 11, 35-36 e Lucas 19,41 –, mas em nenhum

momento consta que ele sorriu. Uma das figuras mais admiradas da humanidade não se permitiu a um ato tão espontâneo e libertador como o riso. Mas bem antes da passagem de Jesus, nos tempos da Grécia Antiga, possa se conceber alguma reflexão para essas questões. Lá (na Grécia), foram criados os conceitos teatrais e poéticos de tragédia e comédia. Enquanto na tragédia, a trama se desenrolava em torno de personagens épicos, como os heróis e a nobreza, a comédia tinha como pano de fundo a sociedade comum, os escravos e pessoas sem reconhecido valor social. Assim fica claro o porquê de, desde esses tempos, a seriedade e retidão serem melhores aceitas do que a comicidade e o jeito jocoso de se levar a vida, coisas tão naturais – e por isso, a hipocrisia –, como o riso que Jesus não deu – e por isso, a soberbia de não se entregar e ser um sacristão. Há quem diga existir um limite para o humor e que alguns tópicos, como temas religiosos, precisam ser abordados com cautela. É óbvio que existem discursos ditos humorísticos que são violentos, quase que hediondos com a natureza humana, e poucas pessoas gostam disso, mas há também a dimensão delicada da tal liberdade de expressão. Como dito, nem tudo é de bom gosto quando se trata de fazer rir, mas não se pode condenar todo um movimento por isso. Se alguém foi hostil com as palavras, que pague por isso, seja levando uma vaia, um tomate podre ou mesmo respondendo penalmente pelo que falou. Há

algum tempo a sociedade vem debatendo sobre pontos ditos ofensivos, como o emprego de palavras que estão no vocabulário popular como denegir ou mulato, por suas etimologias ou gordo e velho, por serem desagradáveis, e ofender algumas classes que estão em uma crescente de empoderamento. É uma instância que talvez não deve ser celebrada ou condenada. Talvez o bom senso deva ser a questão; de ter o feeling de perceber que alguns pronunciamentos não precisam ser levados ao pé da letra, a fim de evitar desentendimentos e censuras. Talvez isso, salvo algumas exceções, só faça transferir o posto de vítima para algoz e vice versa, fazendo-se perder todo o sentido dessa instância tão importante na vida em sociedade – que é o humor. O humor, enquanto antítese da seriedade contida na tragédia, como pregavam os gregos, talvez carregue em si uma possibilidade de fuga do real e aceitamento, “à maneira do freguês”, de uma sociedade que é em muitos momentos perversa e hostil. Talvez seja uma arma eficaz para enfrentar a barbárie do fascismo que vem vindo, talvez seja um meio de extravasar do mundo, de ser escatológico ou mesmo seja só uma forma de alento pra alguém que não veja mais possibilidades, mas que também não quer que, tal qual o que disse a tia para o sobrinho no início deste relato, a tragédia tenha a palavra final. Talvez isso nem seja muito, mas vai que é a solução?

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futebol

Foto: Adrielly Novaes Leite

As memórias que dobram os sinos João Guilherme Rodrigues Arbex

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osé Sanfilippo jogou no San Lorenzo de Almagro essencialmente de 1953 a 1962, tendo voltado em 1972 — após alguns jogos, além de em outros times, no Bangu e no Bahia — para outra passagem, dessa vez de apenas oito partidas, pelo clube azulgrana de Buenos Aires. Após 110 anos de existência do Ciclón, como é conhecido, Sanfilippo permanece sendo seu maior artilheiro, com 214 gols em 273 jogos, e um dos maiores da história do campeonato argentino. Porém, mais importante que gols e títulos, um jogador de futebol, ao alcançar a difícil condição de ídolo de um time, é capaz de inspirar gerações de torcedores,

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direta ou indiretamente – como é o caso de Gregorio Sanfilippo, jovem torcedor do San Lorenzo, nascido no mesmo bairro que o clube, Boedo, e que agora se encontra mais distante do que deveria do estádio onde seu time joga. O rapaz, entretanto, quase todo dia passa em frente a uma filial do Carrefour no bairro que agora, após tantos anos, já pode ser considerada antiga. 7 de maio de 1916, o estádio El Gasómetro é inaugurado em Boedo, Buenos Aires, para ser a casa do San Lorenzo. 2018, Gregorio, 17 anos, passa pelo Carrefour de Boedo. 1966,


Juan Carlos Onganía toma o poder no país após um golpe de estado, que dura até 1973, onde novamente ocorreria votações. Três anos depois, porém, os militares liderados pelo sanguinário Jorge Rafael Videla, novamente tomam o poder e dessa vez determinados a iniciar a mais sombria ditadura da América Latina. 1978, a seleção Argentina é campeã do mundo pela primeira vez, em casa, com a final tendo sido jogada a poucos metros da Escola de Mecânica da Armada, o mais vil centro de tortura do país. Ainda 1978, José Sanfilippo se aposenta. 1979, através de um roubo institucionalizado, o ilegítimo governo militar de Videla toma o estádio do San Lorenzo, e anos mais tarde o vende para os franceses do Carrefour. Ironicamente, a rede de supermercados tem as mesmas cores do time argentino que agora se encontrava exilado em sua própria cidade. Buenos Aires sempre teve muitos estádios (hoje em dia detém o recorde mundial, são 36 estádios com capacidade superior a 10 mil torcedores) e à época, iniciava-se um projeto de reurbanização da capital argentina. O conjunto de circunstâncias, somado à crise que o San Lorenzo se encontrava, fez o clube ficar sem alternativas. Não havia como enfrentar a ditadura. Pensava-se, porém, que a demolição do estádio traria alguma melhoria na infraestrutura da cidade... ledo engano. Como Boedo era uma região altamente valorizada, os militares compraram o terreno por um preço muito inferior ao que valia para no futuro, ao obter a valorização do mesmo, poderem vender aos franceses do Carrefour. E assim o fizeram: em 1985 a rede de mercados inaugurava sua primeira dependência na capital. E o saudoso Gasómetro sumia, definitivamente, junto com mais de 30 mil argentinos pelas mãos dos militares. Boedo ficou órfão. O Gasómetro era mais que um estádio de futebol, era um lugar onde os moradores do bairro se reuniam, mesmo quando não havia jogo, para confraternizar, conversar, se divertir. Era a identidade do lugar. Gregorio Sanfilippo sempre gostou de escutar histórias. Um dos motivos para isso foi seu tio, agora falecido, com Was sobre a Guerra das Malvinas (todas ele jurava que aconteceram com ele) que contava ao rapaz na infância. O Cordobazo, e outras passagens da ditadura militar, também despertavam a curiosidade e a imaginação dele atra-

vés dos fortes relatos de um outro tio. Porém, algo que nunca poderia faltar na mesa do almoço de domingo era seu avô, com as tradicionais histórias sobre as glórias do antigo Gasómetro e do San Lorenzo. Os títulos argentinos, os grandes craques, os clássicos contra o Huracán, os gols de José Sanfilippo, os dias de jogo, quando ele encontrava os amigos e através das antigas ruas de tango e casarões com fachadas tradicionais de Boedo, iriam cantando canções de apoio ao time em direção ao estádio e os pós-jogos, em cafés e bares – tudo isso despertava em Gregorio um sentimento de saudade, mas saudade de algo que ele não havia vivido.

bares de Boedo, e não de Bajo Flores. É uma questão de identidade e, mais do que isso, expressar essa identidade com orgulho. Seu pai não acompanhou os tempos áureos do Gasómetro e o infarto o impediu de ver o tão sonhado retorno, mas Gregorio tem essa chance, e para ele, parece ingratidão não aproveitar. Desde a redemocratização da Argentina que a pressão popular contra o governo e o Carrefour para o retorno do clube à sua terra santa é forte. Vários protestos ocorreram, o principal deles em 2012, quando mais de cem mil torcedores – o avô e o tio de Gregorio inclusos – tomaram a Praça de Maio com seu grito insurgente.

Era um sentimento ambíguo, afinal, desde seu nascimento o San Lorenzo tem onde jogar: o Nuevo Gasómetro, num bairro vizinho a Boedo, o Bajo Flores. Após a venda do antigo estádio, o time ficou sem casa e sem títulos. Durante anos vagando por estádios alheios, o Ciclón viveu sua pior fase, caindo para a segunda divisão em 1981, vivendo um grande período de seca, perdendo sua identidade. Até que em 1993 o Nuevo Gasómetro foi inaugurado, e dois anos depois, já veio o primeiro título após o longo jejum. Nos anos 2000 veio a glória: mais títulos argentinos e as primeiras conquistas continentais do clube, com as Copas Mercosul em 2001, a Sul-Americana em 2002 e principalmente, a Libertadores em 2014. O último, o mais marcante para Gregorio. Não somente por ser o mais importante, mas também foi o único que ele estava presente no estádio. Para um torcedor de futebol, muitas memórias do time se confundem com memórias pessoais. No caso dele, sem dúvida esse título é um desses casos. Assim como aquele dia ensolarado na praia de Santa Teresa, Uruguai, nas últimas férias com seu pai antes de seu falecimento e a conseqüente mudança de Gregorio para a casa do avô.

Em 2015 o Carrefour vendeu uma parte suficiente do terreno ao San Lorenzo, que por sua vez, vende à torcida os metros quadrados para financiar a construção do novo estádio (que chamará Papa Francisco, em homenagem ao seu mais ilustre torcedor) e finalmente voltar a Boedo – a previsão de abertura do novo velho estádio é em 2020. Nos anos 2000, o San Lorenzo superou uma enorme crise e conquistou todos os títulos que sempre sonhou, mas para a maioria dos torcedores do Ciclón, o maior título é voltar para casa, como uma homenagem às memórias. Enquanto o novo estádio não sai, um grito ainda ecoa no Nuevo Gasómetro em todo dia de jogo: “Mas há um sonho que me falta realizar. Falta pouco e nada pode me parar. Eu te prometo que em breve voltaremos. A levantar as arquibancadas em Boedo.”

Os torcedores mais antigos, que viveram o Gasómetro, desde sua venda querem voltar para Boedo – apesar da fase mais vitoriosa do clube ter sido longe de casa, é um sentimento compreensível. Mas para Gregorio, não fazia sentido ele pensar dessa maneira também. Talvez fosse influência dos mais velhos, talvez ele não quisesse de fato que o time voltasse para seu bairro. Ou talvez quisesse. Afinal, ele sempre jogou bola nas ruas de Boedo, sempre se reuniu com os amigos para ver os jogos em

Dizem que entrando no Carrefour de onde era o Gasómetro ainda é possível escutar a torcida vibrando as jogadas e os gols de José Sanfilippo. De certo que no futuro, quando o San Lorenzo já estiver estabelecido de volta em Boedo, ao entrar no então abandonado e vazio Nuevo Gasómetro também será possível escutar a multidão. Não apenas gritos de saudade de um povo que sonhou em voltar ao bairro original, mas também gritos de comemoração pelos títulos inéditos e gritos de agradecimentos de uma torcida inteira, a um lugar que a acolheu por tanto tempo e tão bem. Afinal, novas memórias sempresurgem, e pessoas e clubes de futebol não são nada sem elas – seja um sonho de retornar às origens, seja um dia de sol na praia com alguém que já partiu.

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história

Foto: Jelson Júnior

Do Teatro para as quadras: Grupo Raízes do Iguape História de um grupo cultural que começou com encenações teatrais e se transformou em uma das mais tradicionais quadrilhas do interior. Jelson Júnior

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ano é 1975, na comunidade Quilombola do Santiago do Iguape surge o grupo teatral Raízes do Iguape. Formado por filhas e filhos de marisqueiras e pescadores, o grupo foi criado a partir de encenações realizadas na Igreja durante os períodos festivos da comunidade. Na Semana Santa, a tradicional Paixão de Cristo; no Natal, o nascimento do menino Jesus e uma peça intitulada como “Cantando nossas origens” faziam parte do calendário de apresentações.

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Marlene Alvez de Souza, mais conhecida como D. Lena, fundadora do Raízes do Iguape, explica como se deu o surgimento do grupo: “tudo começou a partir de encenações de teatro que eu realizava na escola para apresentar na igreja. Na época eu não sabia o que era teatro, mas queria ação e fala. Queria o trabalho bem feito e encenado. Meu primeiro trabalho foi apresentado na igreja, a professora Zelia pediu um trabalho representando as crianças, e meu trabalho foi falado, encenado e vibrante. E a partir dali todos

gostaram do meu todo trabalho, porque quando era pedido na escola eu já fazia falado e encenado. A partir daquele momento todos os dias o pessoal me perguntava: Lena, por que você não cria um grupo? Como você já tem um grupo na igreja, por que não dá nome a esse grupo? Aí eu coloquei ‘Raízes do Iguape’”. O formato de Quadrilha Junina se inicia em 2007. A primeira apresentação do grupo foi no Concur-


so de Quadrilhas Juninas na Cidade de Maragojipe, quando se consagrou campeão. A partir daquele ano, Raízes do Iguape começou a ganhar mais corpo e participou de outros concursos importantes, como o Arraial do Galinho, em 2010, organizado pela Federação Baiana de Quadrilhas Juninas (FEBAQ). Naquele ano de estreia, o grupo ficou na segunda colocação e como prêmio ganhou uma moto 0KM. Germano Conceição Barbosa, 41 anos, atual presidente da agremiação, e um dos principais influenciadores para seu crescimento, conta sobre a importância que a Quadrilha Junina Raízes do Iguape tem para a vida dele e a enorme contribuição que a mesma traz para Santiago do Iguape, e para o Recôncavo: “o grupo Raízes do Iguape é de suma importância na minha formação enquanto cidadão. Acredito que o grupo Raízes não é só muito importante para a comunidade, como também para a cidade de Cachoeira. Isso tudo faz perceber a importância dos valores históricos culturais e tradicionais desenvolvidos pelos filhos de pescadores e marisqueiras”.

É certo que esse tradicional grupo, formado por filhos de pescadores e marisqueiras, traz consigo não só uma história de resistência, mas vem transformando vidas e seguindo por gerações, cada vez mais fortalecido e agregando valor à cultura e à história da Comunidade Quilombola de Santiago do Iguape. Esse exemplo vem se espalhando, transformando e evidenciando a comunidade local e o município de Cachoeira por todas as outras cidades nas quais o grupo se apresenta.

Ano 2018

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isando voos mais altos, o coletivo fez uma grande mudança em termos de estruturação. Uma quadrilha com novos integrantes e ainda mais audaciosa, foi aplaudida por todas cidades que passou. Durante o período junino, os obstáculos apareceram, entretanto, não abalaram o grupo, que se mostrou capaz de fazer grandes espetáculos, se consolidando ainda mais no cenário. “O que eu tenho a dizer é que este grupo tem que prosseguir porque este foi o seu grande trabalho em termos de estrutura, no que diz respeito a elenco, custos etc. A quadrilha Raízes do Iguape, apesar de ter tido a experiência de um novo diretor artístico, ela não perdeu a sua essência. É notório que a quadrilha, é só olhar nos vídeos tão significativa e gloriosa ela esteve neste ano, nesse São João. O trabalho foi desenvolvido com todo o amor possível. E Raízes do Iguape tem uma história que está definida. Raízes do Iguape é Germano, Raízes do Iguape é sua direção. Raízes do Iguape é seu elenco. Raízes do Iguape é a cidade. Raízes do Iguape é a mais querida da cidade. Eu vejo Raízes do Iguape dessa forma”, afirma o diretor artístico de Salvador, Jhon Pereira, que passou a fazer parte do grupo em 2018. A noiva do Raízes do Iguape é Ana Paula Cruz, que hoje com 30 anos, é uma das dançarinas com mais tempo no grupo. Ela iniciou no Raízes mirim e atualmente é uma das artistas mais importantes do elenco. Com um sorriso largo e encantador, mostrou toda sua experiência nas quadras. Para ela, o grupo representa a comunidade de Santiago do Iguape em várias facetas. “Uma vez que reproduz nos seus espetáculos tradições locais, e promove a divulgação dos aspectos culturais em outras cidades da Bahia. Acredito que a comunidade se sente representada pelo grupo sócio-cultural Raízes do Iguape, além do sentimento de pertencimento,

uma vez que é bastante comum encontrar como integrantes do grupo várias gerações de uma mesma família”. afirmou a jovem.

Efeito comunidade A comunidade Quilombola de Santiago do Iguape é um dos pontos mais positivos para o fortalecimento do grupo Raízes do Iguape. Além da sua cultura, que é forte e diversificada, ela tem um ponto fundamental: o acolhimento aos dançarinos do Raízes. A equipe de dançarinos, que fez parte do elenco em 2018, sentiu-se em casa. O diretor Artístico Jhon comentou que foi bem recepcionado pela comunidade. As pessoas conversavam com ele e elogiavam seu trabalho. “Eu, minha equipe e os outros componentes de Salvador fizemos a cidade acontecer e a comunidade abraçou isso. Tivemos alguns problemas, que isso é natural, mas de uma maneira geral o grupo foi muito feliz no que diz respeito ao desenvolvimento do projeto. Eu fiquei encantado com a cidade, fiquei encantado, maravilhado com a peculiaridade da cidade e estou extremamente satisfeito com o trabalho”. Sobre o Raízes comenta: “de coração eu quero que esse grupo continue, porque merece. Merece alçar, merece vencer, merece a vitória, merece ser maior ainda.” Toda certeza é que esse tradicional grupo, formado por filhos de pescadores e marisqueiras, traz consigo não só uma história de resistência, mas uma vida e uma geração, que cada vez vem fortalecendo a cultura e a história da Comunidade Quilombola de Santiago do Iguape. Cultura que vem se espalhando, transformando e evidenciando a comunidade local e a cidade de Cachoeira, por todas as outras cidades que se apresentam.

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personalidades

Fotos: Adrielly Novaes Leite

Os largos passos desses pés cansados Adrielly Novaes Leite

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á uns dias fui numa mostra de cinema universitário que defendia a ideia de que as estruturas de algumas cidades tornavam alguns grupos sociais e invisíveis. Andei pensativa. Atentei-me àqueles comportamentos que, de certo modo, nos fazem invizibilizar certos personagens, certas histórias. Cheguei à conclusão que a rotina é perigosa. De forma tácita e traiçoeira nos

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cega. Passamos a não reparar mais nas cores, nos barulhos, em pessoas e histórias. Ela está lá, ao nosso lado, todos os dias, nos dizendo: “olhe para frente, esqueça de dar bom dia, não note a falta e tampouco a presença”. E assim caminhamos olhando pra frente. Caminhamos pelo trânsito de Cachoeira. Caótico, típico da Cidade Heroica, típico de uma segunda-feira. Essa desordem é corriqueira, já que este se compõe de carros, motos, bicicletas, cães, apitos e, por vezes, até cavalo solto.

Neuza acorda antes do homem do leite gritar nas ruas. 3h30 da madrugada já está de pé. Faz-se necessário acordar cedo para preparar os lanches que vende. Assim pela tarde pode vender seu salgado crocante e suco fresco. Neuza Soares Dórea Moreira, 55 anos. Mas foi Tia Neuza do Lanche que ela escreveu no meu bloco de anotações junto ao seu número de telefone. Quem vê Tia Neuza na barraquinha de suas merendas nem


imagina o tanto de andanças já feitas. Cachoeirana, já se graduou em Serviço Social pela UFRB e agora se encaminha para o mestrado. Conta-me que sua inserção no âmbito acadêmico causou importantes mudanças em seu meio social. De antemão, o primeiro desafio foi vencer a resistência do seu marido, Edmilson, em aceitar seu desejo de se tornar universitária. Hoje seus vizinhos, parentes e até seus filhos se sentem capazes de frequentar uma universidade. “Hoje eles também se sentem capazes de frequentar esse espaço, eu pude, eles também podem.” Me conta isso usando um vestido estampado floral, e fala de todas as vezes que, quando ainda professora do ensino infantil, passou em frente à universidade com vontade de entrar e repetia pra si: “um dia eu estarei lá, sentada”. “Hoje eu só quero sair”, risos. Fala do seu cansaço e de outros desejos. Nosso papo é um pouco conturbado, interrompido várias vezes pelos pedidos de suco naquela tarde quente de primavera. Me fala com uma certa ternura que os alunos não se fazem apenas clientes, mas verdadeiros amigos. Enquanto faz crochê, entre uma venda de sanduíches, amendoins e outras, ouve histórias e dá conselhos. Muitos segredos são contados ali, em seu ponto de vendas, no pátio do CAHL, próximo a xerox. Sua rotina no Centro de Artes, Humanidades e Letras se assemelha à de Ademar Papa-Léguas, livreiro, conhecido pelos alunos e pela cidade. À tarde, Papa, como é conhe-

cido na universidade, já se encontra a desfazer a proteção dos seus companheiros há 37 anos, os livros. Entre tantos Nietzsche, Bourdieu e Focault, observa constantemente o passar dos universitários pelo corredor principal da faculdade onde trabalha todos os dias. Responde a todos os “boa tarde” automáticos nessas tardes repletas de agonia e xerox não lidas. Memoriza todos os rostos que decidam parar para ver alguma capa que lhe chamam atenção e espera a pausa com apreensão de todos os olhos que passam correndo pelos títulos e são impedidos, pela pressa, de parar. Quando conversei com Papa, já era tarde, quase noite. Foi esse horário que marcamos. Ele vestia uma camisa azul e usava uma mochila vermelha brilhante. Era uma terça-feira e eu conheci outra versão do homem que eu observava curiosa, todas as vezes que passava pelo corredor do Centro. Falador, homem de muitas andanças. Durante a entrevista, desmanchou toda a imagem de quieto e calado que guardava em minha mente. Nascido em São Luís do Maranhão, já passou pelo Rio de Janeiro e Salvador. Foi trazido à Bahia movido pelo apreço à cultura afro-brasileira e carinho pela população negra. Começou a ser livreiro na PUC-Rio, onde era aluno de Geografia. Entre algumas risadas, conta que resistiu à loucura dos padres por sete anos, ao se referir às tentativas deles para boicotar suas vendas no campus todo início de semestre. Compara sua pequena banca de livros da épo-

ca a uma festa, onde todos gostavam, e quando os padres tentavam impedir a venda, ele junto aos alunos “davam um show”. Papa deixou a PUC em 88 para participar do famoso Teatro Oficina, que, com a volta de José Celsio do exílio, retomou os palcos. Conta que participou do Oficina por mais ou menos um ano, e isso tudo antes de se tornar livreiro de fato. Nunca quis um emprego fixo e/ou de carteira assinada, então sobreviveu de vender jornais, colar cartazes e afins, lhe encanta esse movimento. Em meio a nosso bate-papo, pessoas o cumprimentam, lhe acenam e até a cadela Frida, conhecida por todos no CAHL, se aproximou. O movimento e os livros encantam Papa. Os alunos encantam tia Neuza. E os dois me encantam, ou melhor, me encanta esse esmero que os dois detêm. Quantas vezes vi um aluno sentando na banca do Papa para, em meio a uma festa super escandalosa no Centro, conversar e parar um pouco pra compartilhar sua vida com o livreiro? Quantas vezes ouvi algum aluno homossexual compartilhando sua dor com a tia e pedindo conselho para lidar com essa angústia? Incalculáveis, incontáveis, infinitas. Escrevo e talvez não leiam. E não escrevo para lerem, mas sim para lembrarem-se olhar para os lados e em volta. Para que prestem atenção ao rosto da pessoa que lhes vende um café - ou um livro.


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