ReveRso
Recanto dos Quilombolas
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UFRB - Cachoeira/BA - N° 19 - novembro/dezembro de 2008
Danielle Souza Danielle Souza
Distante 47 km de Cachoeira, a região do Iguape esconde o mistério das histórias desconhecidas e das personalidades típicas. Com ângulos e tomadas diferentes as lentes das câmeras dos fotógrafos buscaram registrar traços e sinais que identificam a força de um povo marcado por lutas.
traduzem a marca constante da resistência. Entre Rosas, Marias e Josés, ouvimos as lições que nos aproxima de tantas outras vidas, preservando seus antepassados e o lugar que lhes coube. E aprendendo a escutar, nos ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. Queila Oliveira
Talita Costa
Longe das cidades de cimento, ferro e vidro, onde a presença humana é quase rara, se erguem cabanas, aqui e ali, nos fazendo recordar a “riqueza” de um passado, as origens de negros e negros que ainda lutam para sobreviverem em condições precárias, mas que
Queila Oliveira
Um novo olhar sobre o Recôncavo Buscar novas perspectivas e analisar os fatos através de um ângulo diferenciado: esse foi o lema da equipe de reportagem do Reverso nessa edição. Novos olhares voltados ao não tão novo assim. Não é o que você vê, é como você vê: isso fez toda a diferença.
O celibato
A Festa D’Ajuda
Os quilombolas
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Nesta edição, adotamos novas perspectivas, através da linguagem literária, estilo de texto jornalístico que humaniza os personagens e da mais liberdade ao repórter para viajar nas histórias de vidas por trás dos fatos e inovar na linguagem e forma. Foi utilizado modelo de diário e de descrição de ambientes e pessoas . A fotografia também foi bastante trabalhada a exemplo do ensaio fotográfico. A excentricidade do problema vivido pela prefeitura de Nazaré. A história do p a d r e c a s a d o . Re a l i d a d e s s ó c i o econômicas contrastantes. Profissões em extinção nas grandes cidades e ainda presentes no interior. As ricas histórias de vida dos moradores da casa de repouso em Cachoeira. O dia-a-dia de um radialista. E não poderia faltar os hilários personagens da Festa d’Ajuda. Todas analisada por um ângulo diferenciado, com um viés incomum que torna a leitura mais atraente. Esta edição conta também com a cobertura do I Seminário Internacional AI-5: Impossível Esquecer, assim como um informe sobre a realização do Prêmio Francisco Montezuma de Jornalismo. Boa Leitura. As editoras
Expediente
Reitor: Paulo Gabriel S. Nacif Vice-Reitor: Silvio Luiz Soglia Diretor do CAHL: Xavier Gilles Vatin Vice-diretor: André Luis Mota Itaparica
ReveRso Conselho Editorial: Leandro Colling, Carlos Ribeiro, Luiz Nova, Paulo Miguez, Renata Pitombo e Robério Marcelo Comissão Editorial: Professores Leandro Colling, Robério Marcelo e Péricles Diniz Editoras: Sandrine Souza e Lise Lobo Repórteres: Astrude Modesto, Camila Moreira, Carine Costa, Daiane Dória, Daniela Oliveira, Hamurabi Dias, Patrícia Neves e Toniel Costa. Fotógrafas: Danielle Souza, Queila Oliveira e Talita Costa. Diagramação: Danielle Souza e Lise Lobo Impressão: SAMP Gráfica Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) Praça Ariston Mascarenhas - Cachoeira - BA Cep: 44300 - 000 - Tel: (75) 34252138 E-mail: jornalreverso@gmail.com
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Liberdade de informar, liberdade de ensinar
Todas as matérias publicadas neste jornal laboratório são passíveis de críticas e avaliações as mais diversas, justamente porque esta é, em última análise, a sua essência, sua razão de ser, já que se trata de um instrumento pedagógico destinado à formação prática dos alunos do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Ou seja, é importante ter tal fato em mente antes de iniciar qualquer discussão a respeito: ele não está sujeito às regras de mercado ou às contingências dos jogos políticos que marcam nossa sociedade. Então, se por um lado nos parece mesmo natural que algumas matérias aqui publicadas sejam alvo de críticas e eventuais reparos, soa um tanto quanto exagerado que a l g u m a s d e l a s c h e g u e m a m ot i va r questionamentos e ações na esfera jurídica. De qualquer forma, este conselho editorial sente-se na obrigação de novamente esclarecer alguns fundamentos e pressupostos que orientam o Reverso. A missão deste jornal laboratório está fincada sobre três princípios basilares: informar, opinar e investigar. Estes são os nortes que orientam desde a discussão teórica em sala de aula, envolvendo todas as necessárias questões de ordem ética, técnica, filosófica e estética, inclusive, mas também no momento em nossos aprendizes de repórteres, redatores e editores saem a campo para produzir o Reverso. Este jornal laboratório, como sua designação já o revela, é um instrumento pedagógico, de âmbito e circulação interna, que tem como único - é preciso enfatizar único objetivo e missão propiciar exercício prático para o que é teorizado em sala de aula. Não teria ele, portanto, o direito à livre expressão e ao pleno exercício do jornalismo, ainda que laboratorial, ainda que em fase de
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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Ineditoriais
preparação? Assim sendo, é preciso deixar bem claro que não é possível esperar deles notícias que dêem conta apenas da existência daquilo que determinados segmentos da sociedade considerem pertinente. Ao jornalista não cabe somente o registro, todos sabemos. Assim sendo, não é possível esperar dos nossos futuros jornalistas que desconsiderem o contexto, o ambiente social e político, o papel de cada um destes fatos no momento histórico que o cerca. Pois a formação do jornalista impõe a necessidade de investigar, de ousar, de escolher posição, de arriscar e tentar fazer melhor o seu trabalho. Ele pode até vez por outra pecar por excesso ou errar por mesquinhez, mas não deve jamais abdicar da missão primeira de informar. Assim acredita o conselho editorial deste Reverso, disposto a não abdicar também do seu ideal de formar e informar, sem se deixar dobrar pelas vicissitudes e pelas paixões de momento. Conselho Editorial
A BELA E A FERA – A quintafeira foi assinalada por dois debates que seguiram a tendência do dia anterior. A norte-americana Victória Langland, especialista em Historia da Ame rica Latina com ênfase em m ov i m e n to s e s t u d a n t i s e o professor doutor Antonio Rago explanaram sobre a resistência dos estudantes, os operários e o confronto com a burguesia. Loira, altura mediana, rosto um pouco bronzeado - marca certamente dos dias passados em solo brasileiro - possuindo sotaque carregado - mas que trazia um português irrepreensível -, Victória dispôs em seus slides documentos de sua pesquisa em acervos nacionais e americanos. Como participou do primeiro dia como espectadora, em sua conferência, lutando contra a péssima acústica do local, ela ratificou de início alguns preceitos já comentados. “O AI-5 foi uma mudança de atitude dos militares”. Sobre o impacto do AI-5 na Bahia, ela mostrou que os diretores das faculdades federais e católicas receberam listas negras da sexta região militar onde constavam quase dois mil rostos de participantes das passeatas conta o regime. Como não se tinha os nomes, as fotos circulavam pelas universidades para a identificação. Para o professor do curso de Historia da UFRB Fabio Joly, a principal contribuição da palestra é que ela mostra uma riqueza documental para se estudar o movimento estudantil tanto no Brasil como nos Estados Unidos e aponta uma direção de estudo que se desloca do eixo Rio-São Paulo. “A escolha dos conferencistas buscou também agregar os chamados historiadores 'brasilianistas', expressão utilizada para denominar pesquisadores norte-americanos que se dedicam a estudar nossa história recente, como a Victoria Langland de U. S. Davis, Califórnia”, comenta Joly sobre a presença da palestrante. A sua voz mansa não combinava com a propriedade que o doutor em Historia Antonio Rago apresentou em seu discurso. M a r x i s t a m a te r i a l i s t a , R a g o comentou o ineditismo de estar
palestrando em uma igreja. Baseada nas greves operárias, contou com uma reflexão principalmente sobre as paralisações de Contagem (MG) e Osasco (SP). “As greves de Contagem e Osasco justificaram mais o AI-5 do que as passeatas”, disse o professor da PUC/SP. Rago ainda definiu a burguesia bonapartista, tema também de sua fala, como “uma estrutura de poder burguesa de dominação sobre a sociedade civil”. TUDO EM FAMÍLIA NA CIDADE APRAZÍVEL – O último dia do encontro foi marcado por dois eixos temáticos. A ação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e os documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS/SP) foram discutidos. O palestrante inicial foi o professor Muniz Ferreira (UFBA), com o tema “Entre a luta armada e a frente democrática: a política do PCB na resistência ao regime militar”. Ferreira abordou a trajetória do partido, fundado em 1922, entre os anos 67 e 85. O historiador classificou o partido como a principal força política de esquerda, mesmo estando na ilegalidade. Ele destacou também a fragmentação ideológica entre os membros, que preferiam uns o radicalismo e a luta armada e o Comitê Central que pregava que a forma mais eficiente de combater a ditadura militar era reunir todas as forças interessadas na democratização do país. Após a ditadura, o partido entra em crise, se esvazia, perdendo assim a sua singularidade de principal força de esquerda.
Estamos vinte anos atrasados em relação às fontes e documentos para pesquisa historiográfica. Lucileide A tarde foi a vez das irmãs Célia Costa Cardoso e Lucileide Cardoso dividirem para si as atenções da
Imagem retirada do site da UFRB
Carta ao leitor
Cultura
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mesa redonda sobre acervos e fontes da ditadura militar no Brasil. O contraste era visível. Enquanto Célia comentava os arquivos do DEOPS conseguidos no Arquivo Estadual de São Paulo, mostrando como se dava o trabalho desse órgão, Lucileide começou sua fala com o seguinte alerta: “Estamos vinte anos atrasados em relação às fontes e documentos para pesquisa historiográfica”, e abordou acerca da situação dos arquivos secretos da ditadura na Bahia, antes de começar sua palestra sobre os processos contra os historiadores no DEOPS. Com a igreja sem a lotação máxima, quem finalizou o evento foi o professor de sociologia da UFBA e doutor em História Gustavo Fálcon, que não chegou a ser telegráfico, mas também não se estendeu. Neste dia, que pôs à prova a organização do evento, os atrasos se acumularam, tanto pela manhã, quanto pela tarde. Com isso, logo após o diálogo entre as irmãs, Fálcon iniciou seu tema, novamente sobre o PCB e a inserção da esquerda na vida institucional
brasileira. O palestrante destacou em fases o partido que começou restrito a intelectuais, profissionais liberais e operários, mas fundamentalmente composto pelo primeiro grupo, sua “classemedização”, durante os anos 30, quando sofreram com os ataques de Vargas e sua total esquerdização nos anos 50 quando perdeu o apoio das massas. O seminário foi finalizado com um coquetel de encerramento que reuniu os presentes, estudantes da UFRB, e de outras universidades como UEFS, UNEB, e a FAMAM e também os palestrantes do dia. “O seminário, além de fomentar o debate acadêmico sobre o tema, resultou também em uma ação política, representando um marco nos estudos sobre a ditadura no Brasil e na Bahia e na própria história da nossa universidade”, concluiu Lucileide Cardoso referindo-se ao abaixo-assinado em apoio à moção pela abertura dos arquivos da repressão na Bahia, documento que deverá ser enviado ao grupo Tortura Nunca Mais e depois ao Governo do Estado. Cachoeira, novembro/dezembro de 2008 11
Política Esporte
História
Sob o sol de novembro historiadores lembram o AI-5
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Hamurabi Dias Uma igreja, seus altares, seus santos, seus dogmas. Cadeiras enfileiradas, pessoas transitando, o ambiente já estava lotado, mas ninguém ali esperava um padre. Treze de dezembro de 1968, uma data, um ato, terror, perseguição, tortura. Ditadura Militar. Quarenta anos depois e três professores da UFRB, Lucileide Cardoso, Fabio Joly e Luis Nova, organizaram o Seminário Internacional 40 Anos do AI-5. O evento ocorreu durante os dias 12, 13 e 14 de novembro na Igreja do Carmo, em Cachoeira, e contou com a participação de dez palestrantes, que, durante os seis turnos de debates e de intenso calor em Cachoeira, relembraram os acontecimentos desse ano e seus desdobramentos pós-68. “O seminário condensou pesquisadores de alto nível e contribuiu para o aprofundamento de novas questões interpretativas sobre o período da ditadura militar”, disse Lucileide Cardoso. Para Luis Nova, o ano de 1968 m arcou um m om en to importante na história contemporânea brasileira, sendo que o país tem reflexos daquele período muito fortes. “O elenco, as pessoas que vieram da primeira qualidade e a presença do público que tem lotado os dois turnos, pessoas de fora de Cachoeira, de outras universidades. Acredito sinceramente que esse foi o primeiro evento que conseguimos fazer com uma dimensão extra CAHL e universitária”, destaca Nova no final do primeiro dia. M E M Ó R I A S ESTEREOTIPADAS – A conferência de abertura do evento contou com a participação do Prof. Dr. Calos Fico, da UFRJ. O tema da apresentação
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Danielle Souza
Encontro contribuiu para debate historiográfico sobre a ditadura militar
I Seminário Internacional AI-5: Impossível Esquecer, lota o Museu de Arte Sacra
foi “1968 – o ano que terminou mal: a escalada da violência da ditadura militar brasileira.” Crítico dos estereótipos e das visões românticas sobre o período, Fico analisou em sua intervenção fatos e expressões do período como “o golpe dentro do golpe”, referente ao AI-5. Para o historiador, o ato institucional representou uma maturação do projeto militar iniciado em 64 e permitiu a vitória do regime militar no Brasil. “Todos os eventos que culminaram no AI-5 são trabalhados pela memória que se seguiu àquele período de uma maneira heróica e romântica, de uma maneira que eu centralmente não concordo”, disse durante a palestra que ainda acendeu no público o questionamento sobre a abertura dos arquivos secretos do regime militar. “É importante para que possamos conhecer rigorosamente a historia do período, porque muitas vezes nós pesquisamos só a partir de memórias e depoimentos das
pessoas. Então, ter os documentos produzidos diretamente pela ditadura é fundamental”. A tarde quente em Cachoeira não afastou o público, ainda sob o impacto da palestra matinal. Lugar abafado e um pouco de atraso. A mesa redonda foi composta pelo professor da UFRB Amílcar Baiardi, pelo professor da UNEB Antonio Maurício Brito e pelo coordenador do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar em Salvador Grimaldo Carneiro, tendo como tema os Movimentos Sociais na Bahia. Seu visual lembrava bastante o cantor Raul Seixas, mas Antonio Brito preferiu seguir o pragmatismo de quem apresenta sua tese de doutorado do que a descontração e efervescência que tinha seu quasesósia. Também não era para menos. Durante os criteriosos 40 minutos de sua exposição, ele abordou as dificuldades sobre a pesquisa bibliográfica, o movimento estudantil em Salvador e o AI-5, localizado no contexto da UFBA. “A
maior parte dos estudantes assistiu passível ao golpe de 64, não tomou partido favorável nem contrario ao golpe. Preferiram a indiferença”, diz Brito. Uma das principais táticas utilizadas pelos reitores era a do cancelamento das matriculas de estudantes considerados subversivos. Segundo Brito, em 68 houve uma tentativa de greve na UFBA, mas não foi vitoriosa. Dando prosseguimento, Amilcar Baiardi regionalizou ainda mais a discussão ao trazer para o debate a questão do movimento estudantil no Recôncavo Baiano. Seu foco foi a Escola de Agronomia na cidade Cruz das Almas. Dirigente estudantil na época e depois posto na clandestinidade e também participante da luta armada, Baiardi - que foi preso durante o regime traçou um perfil do estudante de agronomia, ligado à burguesia rural e às alianças estabelecidas pelo movimento estudantil e ao PCB. Nem toda a Igreja Católica foi a favor do golpe militar. Esse foi outro mito foi quebrado na palestra de Grimaldo Carneiro, que falou acerca do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), tratando da oposição dessa parte da igreja à ditadura na Bahia. Formados por padres italianos a partir do ano de 1966, o CEAS manteve a princípio uma posição de neutralidade com relação à ditadura. “Quando ocorreu o AI5, em que os canais de p a r t i c i p a ç ã o p o l í t i c a fo r a m c e rc e a d o s , fo i a í qu e e l e s começaram uma oposição ferrenha aos militares, fazendo reuniões e publicando denuncias de torturas, que eram publicados aqui, mas circulavam também na Europa”, relata Carneiro.
Quem assumiu? Era uma vez... ...uma pequena cidade do interior do Recôncavo da Bahia chamada Nazaré das Farinhas, onde os grandes e inusitados acontecimentos eram pouco freqüentes.A humanidade estava ainda no século XXI, mais precisamente em 2008, e naquele ano, em todas as cidades do Brasil, ocorreriam as eleições para prefeito. Naquela época, era o prefeito juntamente com o viceprefeito e os vereadores que representavam os interesses da população de cada cidade. As pessoas que deveriam assumir esses cargos eram escolhidas pelo povo, esperando-se que de forma consciente, através do voto direto no chamado exercício democrático que acreditavam ser as eleições. Até então, a cidade era governada por um senhor muito distinto, um médico, o doutor Clóvis Figueiredo. Seu vice, que deveria assumir em caso de ausência do prefeito, chamava-se Milton Almeida. Tudo transcorria tranquilamente no mandato de doutor Clóvis, até que, no fim do encargo - ano em que ocorreriam as novas eleições – estando com a campanha de reeleição em andamento, fotos e nomes dele e de seu vice espalhados por toda a cidade, aconteceu uma tragédia... Morre Milton Almeida com complicações cardíacas. Era o dia 13 de Julho e a cidade parou para se despedir do candidato. Foi um acontecimento muito triste, mas a campanha deveria continuar e teria que ser escolhido um novo candidato ao cargo de vice-prefeito. O escolhido foi o filho de Milton Almeida, Milton Rabelo de Almeida Júnior – Miltinho. No dia 5 de outubro ocorreram as eleições. Naquela época, lá em Nazaré, o dia da eleição era muito animado desde o início da manhã, quando as pessoas começavam a sair para votar. E naquele ano não foi diferente, as pessoas votavam e permaneciam nas ruas aguardando o momento em que seria anunciado o nome do novo prefeito da cidade. Antes mesmo que todas as urnas fossem apuradas, as pessoas já estavam em festa, comemorando intensamente a reeleição do prefeito. O que ninguém esperava era que menos de um mês após as eleições, no dia 28 de outubro, doutor Clóvis viria a falecer sofrendo um aneurisma cerebral. A cidade parou mais uma vez para dar adeus ao “grande líder”, como muitos o chamavam. Foi muito comovente, cerca de seis mil pessoas preenchiam os espaços do prédio da
prefeitura, onde o corpo do prefeito foi velado, e também na praça principal, se revezando para tentar olhar pela última vez o rosto de Clóvis. O som que se ouvia vinha de uma música muito triste que falava sobre um campeão, um grande líder, e emocionava ainda mais os presentes. E agora vocês me perguntam: como ficou a situação política de Nazaré? O atual presidente da câmara dos vereadores, Ailton Figueiredo Júnior, sobrinho de Clóvis, assumiu a prefeitura até o dia 31 de dezembro. O que viria a acontecer politicamente com a cidade a partir do primeiro dia do ano de 2009 levantava muitas dúvidas. Nazaré vivia então um momento de grande apreensão política. O senhor Arnon Alves Soares, que ocupava o cargo de secretário de administração e finanças da cidade, dizia ter conhecimento que, de acordo com leis e súmulas eleitorais, quem deveria assumir seria o vice-prefeito eleito. Lembro como hoje que Arnon chegou a declarar na ocasião: - Nós todos estamos na expectativa e ansiosos para que assuma o vice, eleito pelo povo, Miltinho. No mesmo período, o então secretário municipal de planejamento, Antônio José de Brito Filho, o Bia, dizia que não existia nenhuma forma de ocorrer um retrocesso nesse processo. Ele também afirmava que, de acordo com a lei daquela época, o falecimento do candidato eleito ao cargo de prefeito, ainda que antes da expedição do diploma, transfere ao vice o direito subjetivo ao mandato do titular. O prefeito Júnior Figueiredo, em exercício, após a morte do doutor Clóvis, falava muito comovido que o grupo político estava ainda muito chocado e que a cidade havia perdido um grande líder que amava Nazaré. Uma história como essa já aconteceu em outras cidades, ainda nos tempos em que eram os prefeitos quem representavam os interesses da cidade. Inclusive algo semelhante ocorreu na presidência do Brasil, num tempo ainda mais distante, em 1985, com a morte do presidente eleito Tancredo Neves, vocês não devem ter ouvido falar, que levou o seu vice José Sarney a assumir a presidência. Está ficando tarde e já é hora de vocês dormirem. Tentem sonhar com a história e vamos ver se conseguem adivinhar como ela termina. Amanhã eu prometo que conto o restante para todos vocês.
Daiane Dória Repórter
Cachoeira, novembro/dezembro de 2008
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Sociedade
Contrastes do dia-a-dia
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Cachoeira ainda tem lavadeira e sapateiro
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a má remuneração, falta de pelo incômodo e o tóxico cheiro da de trabalho e o abandono do marido pagamentos, falta de material e cola utilizada para colar os sapatos. foram os motivos que levaram Dona cobrança exagerada dos clientes, Como não há o costume de usar Antônia a lavar roupas por mais ou que, mesmo chovendo, queriam m á s c a r a s d e p r o t e ç ã o , o s menos três anos. Ela precisava suas roupas prontas no dia profissionais da área ficam muito alimentar dois filhos. Quando acertado, entre outras coisas. A ex- suscetíveis a problemas de saúde, mudou da sua cidade de origem lavadeira acredita que, além do como um que, há alguns anos, para Cachoeira, Dona Antônia teve a problema da má remuneração, a acometeu Raimundo. “Ele teve oportunidade de abrir a barraca de popularização das máquinas de febre, dor de cabeça, vômitos...”, lanches e assim parar de lavar roupa lavar roupa contribuiu para que as conta o consangüíneo. para fora. pessoas não procurassem mais as Apesar das dificuldades Quanto à profissão, Dona lavadeiras e assim a profissão foi se encontradas, Luis considera o Antônia também se queixa da má tornando praticamente extinta. trabalho gratificante. “Recebemos remuneração por parte dos clientes. Um pouco mais de meio-dia, muitos elogios”, ele comenta. “É mais fácil receber em dia de vou a uma oficina de sapatos. Apesar de não ser a sua profissão de homens solteiros do que de C h e g a n d o l á Danielle Souza Danielle Souza encontro portas fechadas. Peço informações e descubro que voltaria a funcionar às 14 h. Retorno por volta das 14h40min. Encontro um rapaz sentado atrás de um balcão, com Com seu próprio negócio, Antônia deixa de lavar roupas O sapateiro Luiz aprendeu o ofício com o seu irmão sapatos nas mãos e dois homens, conversando fato, Luis diz que gosta muito do que famílias”, afirma ela. Ela também com ele. Aproximo-me e explico qual faz e, sobre o desempenho do irmão, atribui às máquinas de lavar roupa, o meu objetivo ali. Um dos homens salienta: “o trabalho sai bem feito que significam economia às donas levanta e cede a cadeira para que eu porque ele (Raimundo) faz com de casa, a responsabilidade por esta sente. Sento-me, eles se despedem a m o r, s e n te p r a z e r n o qu e atividade estar sendo extinta, tanto e saem da pequena loja. O homem desempenha”. Então, me despeço, nas grandes cidades, como agora, sentado atrás do balcão, que agradeço pela entrevista e ele, também nas cidades pequenas. costura um sapato, é Luis Freitas da gentilmente, afirma que tanto ele As pessoas não possuem Cunha. Ele trabalha na verdade com quanto o irmão ficam felizes em mais interesse em aprender esses eletricidade, porém aprendeu o poder ajudar. ofícios, ou melhor, estes estão ofício de sapateiro com o irmão, Q u i n t a - fe i r a . O s o l e m sendo substituídos por produtos do Raimundo Freitas, que é o dono da Cachoeira está cada vez mais mercado consumista. Hoje um loja e já trabalha com isso há mais quente. Estava sentada na beira do simples “descolar” de um sapato ou menos 20 anos. Luis justifica a rio Paraguassu, até avistar quem eu será motivo para procurar as lojas, ausência do irmão. Raimundo está procurava, dona Antônia Maria dos adquirir outro e assim alimentar o com um problema de saúde, que até Santos Pereira, uma senhora negra, comércio. A venda de máquinas de então, não se sabia se tinha sido de cabelos bem pretos e sorriso lavar torna o trabalho de lavar provocado pelo trabalho. largo. Ela também é uma ex- roupas manualmente uma coisa Segundo Luis, um dos motivos lavadeira e, hoje, sobrevive da venda praticamente absurda. Na correria da profissão de sapateiro estar de lanches em uma barraca próximo das grandes cidades, “perder” sendo extinta é que falta mão-de- ao rio. Dona Antônia conta como t e m p o l a v a n d o r o u p a s é obra. Ele acredita que as pessoas d e i x o u d e s e r t é c n i c a e m praticamente impossível. Depois não querem mais aprender essa administração e acabou lavando das entrevistas, saí com a sensação atividade, não só porque possuem r o u p a s p a r a s o b r e v i v e r. A de que será inevitável a extinção outros interesses, como também dificuldade de emprego em sua área dessas profissões.
Manhã de quinta, Pedro acorda às 6:30; toma banho, toma café, escova os dentes e vai à escola. Ele freqüenta o melhor colégio privado da cidade, assim como a melhor academia e o melhor curso de inglês. Seu pai é engenheiro agrônomo, com doutorado na França, e sua mãe, nutricionista. Eles proporcionam aos filhos tudo que um adolescente de classe média pode querer. Iuri acorda cedo; toma banho, toma café, escova os dentes e vai para um escritório de contabilidade onde é Office boy. Seu pai é motorista de Van e sua mãe, professora primária. Para ter seu próprio dinheiro, ele precisa trabalhar. A manhã de Pedro, na sua turma de 1º ano, que tem apenas 25 alunos, é proveitosa. Ele presta atenção na aula, assimila os assuntos trabalhados com
Retirada do google: Charge de Samuca
Daniela Oliveira Aproximadamente 8h30min da manhã, quarta-feira, Cachoeira. Subo rua, desço rua, paro pessoas e peço informações. Ninguém sabe onde mora uma lavadeira. Quase acredito na queda da pauta ou pelo menos na mudança dela. Nas grandes cidades, as máquinas de lavar e as lavandeirias institucionalizadas quase fazem desaparecer aquela lavadeira que bate de porta em porta e sai com trouxas na cabeça para lavar e entregar daqui a um dia, uma semana ou duas no máximo. As grandes sapatarias e a mania do povo de querer coisa nova não permitem mais que se procure o sapateiro da esquina quando o tênis de jogar bola fura ou o sapatinho da farda da atendente de consultório perde o salto carrapeta. Mas essas profissões ainda são executadas marginalmente. Será que vou achar algum profissional desse aqui? Finalmente, encontro alguém que sabe de algo, ou melhor, conhece uma ex-lavadeira. Ando mais duas casas, a moça a quem pedi informações me acompanha e bate na porta. Alguns segundos depois, abre a porta uma mulher, de baixa estatura, morena, lenço estampado na cabeça, e que, gentilmente, me manda entrar e sentar. Explico porque estou ali e ela prontamente começa a me falar sobre o assunto. Josélia Maria é ex-lavadeira, deixou de exercer essa atividade quando o filho se formou. Para que isso acontecesse, foram anos de muito sacrifício, lavando roupas, fazendo faxinas e dando reforço escolar – as chamadas “bancas”. Hoje em dia, ela conta aliviada que não lava mais roupas para fora, apesar de ainda exercer todas as outras atividades citadas. Falante e receptiva, Dona Josélia conta todas as dificuldades encontradas. “Lidar com gente é a pior coisa que existe”. Com essa frase, ela conta o quanto sofreu com
facilidade, conversa um pouco com os colegas e, ao meio-dia, volta para casa, para almoçar e descansar. Iuri tem uma manhã cheia. Corre pra lá e pra cá, resolvendo as pendências do seu trabalho. Volta para casa na hora do almoço e precisa correr para ir à escola onde estuda. Na aula, com cerca de 50 colegas, o conteúdo não chama sua
atenção e o calor intenso contribui para a dispersão. Ele se distrai conversando com os colegas. O barulho é constante. Ele fica contando os minutos para voltar para casa.oje, Pedro não tem aula no colégio à tarde. De segunda a quarta-feira, ele tem aulas extras para reforçar o aprendizado. Sem ter obrigações a cumprir, ele aproveita o tempo para ficar navegando na internet no seu quarto. Também toca suas musicas preferidas no violão. Iuri chega às 17:00 e vai para academia malhar. Ele cultua a boa forma do corpo. Pedro também faz questão de não perder um dia de malhação, mas, antes de ir para academia, tem aula de inglês até às 18:00. Ao chegar da academia, Iuri vai conversar com os amigos do bairro onde mora. Ficam na porta de casa
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sentados, olhando o movimento e conversando sobre tudo, principalmente garotas e festas. Pedro volta para casa, escuta música, conversa com seus pais e tecla com amigos na internet. Nos finais de semana, ele vai aos bares e festas da cidade, viaja para capital ou freqüenta um clube privado da cidade. Pedro pensa em ser engenheiro, economista, advogado. Ano que vem, provavelmente, estudará num dos melhores colégios da capital. Iuri ainda não sabe o que quer fazer da vida. Pedro já morou na França, é poliglota, conheceu a Espanha, a Inglaterra e a Itália. Iuri pensa em aprender inglês e conhecer São Paulo. Algo em comum? Ambos têm 17 anos. Patrícia Neves
Prêmio Francisco Montezuma de Jornalismo Realização Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Centro de Artes, Humanidade e Letras (CAHL) Colegiado de Comunicação Núcleo de Estudos sobre Política e Cultura (Nespoc)
Grupos de Estudos da Mídia Comissão do Bicentenário da Imprensa na Bahia
Objetivo O Prêmio Francisco Montezuma de Jornalismo é uma iniciativa da Comissão Inter-institucional do Bicentenário da Imprensa na Bahia, sediada no Centro de Artes, Humanidade e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na cidade de Cachoeira, executada através de parceria com os professores responsáveis pelas disciplinas Oficina de Textos II, Jornalismo Impresso II e Jornalismo Online. Foi criado com a intenção de incentivar a produção acadêmica de textos e outros produtos jornalísticos realizados pelos alunos do curso de Comunicação desta instituição.
Categorias Serão concedidas premiações nas seguintes categorias: Reportagem escrita; Fotografia jornalística; Reportagem online.
Inscrições Poderão concorrer ao prêmio reportagens jornalísticas e fotográficas de autoria dos estudantes do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da UFRB, publicadas nos veículos laboratoriais impressos e eletrônicos sob a responsabilidade de suas disciplinas regulares.
No caso dos prêmios para produtos jornalísticos impressos, estão automaticamente inscritas as matérias e fotografias publicadas nos semestres 2007.2, 2008.1 e 2008.2, que serão julgadas dentro de seu próprio período, ou seja, serão premiados os melhores trabalhos de cada semestre, em separado. Os professores responsáveis pelas disciplinas envolvidas na edição do jornal laboratório Reverso indicarão três finalistas para cada semestre (2007.2, 2008.1 e 2008.2). Para a escolha do melhor trabalho em webjornalismo, será considerado apenas o semestre letivo de 2008.2, com a indicação para a final – por parte do professor responsável pela disciplina respectiva – dos cinco melhores trabalhos publicados no período.
Julgamento Os trabalhos indicados pelos professores serão avaliados por uma comissão julgadora constituída por 5 (cinco) membros indicados pelo coordenador do curso de Jornalismo e pelos professores responsáveis pelas disciplinas de Oficina da Textos, Jornalismo Impresso, Fotojornalismo e Jornalismo Online, ou, eventualmente, pelos titulares de outras disciplinas afins. Serão considerados os seguintes aspectos: técnica jornalística, criatividade, originalidade e relevância social. A comissão julgadora divulgará o resultado final de cada categoria, durante solenidade a ser realizada no mês de dezembro de 2008 para a entrega dos prêmios em todas as categorias. As decisões desta comissão são soberanas e irrecorríveis.
Premiação O vencedor de cada uma das categorias receberá prêmio em valor a ser definido, além de troféu especialmente confeccionado por artistas plásticos da própria região. Os indicados em cada categoria terão direito a certificado. Os casos omissos serão resolvidos pela comissão julgadora.
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Queila Oliveira
Queila Oliveira
“Nós nascemos, vivemos e morremos.” Palavras pronunciadas por uma boca cansada. Os lábios de Benedita abrem com dificuldade, a voz ecoa frágil. Aos 97 anos, a agilidade da fala se perde. Olhar miúdo, linhas e mais linhas apontam em seu rosto o tempo transcorrido. Na Ladeira Benjamin Constante, número 2, existem várias “Marias” e “Zés” que convivem dessa forma. Com experiências de vida, mas com corpos agora enfadados, muitos esquecidos pelos familiares, eles buscam alegrias nas reminiscências do passado. Joelita, mais conhecida como Lilita, é uma das moradoras do abrigo. Bonita e cheia de vida aos 89 anos, nasceu e cresceu em Cachoeira, cidade que ela exalta como “terra de Ana Néri, Teixeira de Freitas e Maria Quitéria”. Saudosa, ela conta que, há muito tempo, participou da festa de 25 de Junho, com passeatas bem animadas e muitas pessoas bonitas. É vaidosa, não se cansa de conferir seu reflexo no espelho. Ela divide um quarto com uma amiga na Casa Abrigo dos Idosos. Mantém o espaço bem
08 Cachoeira, novembro/dezembro de 2008
UFRB
O tempo não pára... Abrigo de idosos é palco para recordações arrumado e limpinho. Sentada na cama, Lilita relembra o passado. Ela veio de uma família pobre – eram cinco irmãos – e começou a trabalhar com apenas 13 anos, pois o pai adoeceu e os demais membros ficaram desprotegidos. Lilita diz que, quando era jovem, parecia com a mãe. “Mamãe você é a expressão da ternura de Deus”, ela sempre repetia essa frase. Aos 17 anos, Lilita casou, mas perdeu o esposo, “Deus levou para o mundo espiritual”. O mesmo aconteceu com seus dois filhos, que morreram ainda crianças. Lilita não cursou faculdade porque não tinha dinheiro para ir a Salvador ou a Feira de Santana. Na escola onde fez o curso primário, ela era muito amada. Participava de apresentações e sempre foi o destaque da turma. Com satisfação diz que tem sobrinhos, médicos e advogados. Foi um dos sobrinhos que a levou para o abrigo. Às vezes, eles fazem uma visita, porém sua maior companhia são as fotografias e as lembranças. “Nasci, cresci e morrerei aqui em Cachoeira”, Lilita suspira. Carrancudo e desconfiado, Henrique é outro personagem naquele lugar. Aparentemente hostil, o velhinho se assusta quando percebe que está sendo observado. Ele foi casado 18 anos com uma mulher chamada Regina, com quem teve um filho, além de mais três nascidos fora do casamento. Trabalhou cortando cacau, serviço que até hoje desempenharia: “Tenho vontade de sair daqui para trabalhar”. Henrique não recebe a visita das duas filhas, isso o deixa triste. A maior alegria dele era dançar e sambar. Aos 89 anos, isso
não é mais possível. Sua maior tristeza foi quando perdeu os pais e a avó. Ele diz que é uma pessoa tranqüila, e, indignado, reclama que algumas moças que passam na rua, o acusam de caçar intimidades. “De santa não tenho nada”, diz, em gargalhadas, Antônia Santos, fazendo referência ao próprio nome. Está velhinha, porém continua muito disposta para quem tem 92 anos. A alegria da vida de Antônia foi ter tido um filho. Mas a felicidade durou pouco, pois o bebê faleceu aos q u a t ro m e s e s . Teve u m companheiro, pessoa especial com quem viveu mais de sessenta anos. Ele morreu faz dois anos. Antônia lembra com muito entusiasmo, que, em 1936, saiu no terno chamado As Bambas de Cachoeira, na famosa festa D'Ajuda da cidade e de bailes freqüentados em Salvador. O falecido marido saiu em 1949 no bloco carnavalesco Filhos de Ghandi na capital. A velhinha não esquece também duas palestras que assistiu em Salvador, falavam sobre Castro Alves e a escravidão. Logo, ela enfatiza: “Que coisa triste é a escravidão!”. Hoje, Antônia tem apenas uma irmã viva, que mora em São Paulo. Com satisfação, ela comenta que estava morando em São Félix e pediu a Deus para retornar a morar em Cachoeira. Sua oração foi atendida, pois uma sobrinha a levou para o abrigo. A Casa Abrigo dos Idosos tem 33 hóspedes. É um espaço amplo, limpo e confortável, m a n t i d o principalmente por verbas e donativos d o a d o s p o r associados. O governo do estado oferece uma ajuda de custo no valor de R $ 1. 5 0 0 , 0 0 . A prefeitura auxilia com o pagamento da Queila Oliveira
Paixão em uma emissora de rádio
conta de energia. Dezesseis funcionários cuidam com muito zelo dos velhinhos. A gerente administrativa, Lúcia Souza Batista, destaca que alguns dos idosos vêm sozinhos para o abrigo. Outros são conduzidos pela própria família ou pela comunidade. Quando é apurado algum caso de maltrato contra algum senhor ou senhora de idade, a promotoria também encaminha agredido para o abrigo. Na maioria das vezes, os idosos ficam sem a assistência familiar, apenas 5% dos parentes fazem visitas. Esquecidos, eles ficam tristes, nervosos e deprimidos. Seu Gidásio, por exemplo, quando é solicitado por uma funcionária a voltar para o quarto, fica muito agressivo. Chutando e empurrando a auxiliar, seu Gidásio grita que quer ver a filha. Filha esta que não vem. As palavras deste solitário pai são apenas ecoadas para o vento. Essa rotina é comum no a b r i g o . P a l av r a s d i t a s c o m dificuldade, grunhidos, olhares distantes e cansados, falta de vigor nos passos. Entre um depoimento e outro as confusões das mentes aparecem, “o avião já passou?”, “o carro vai pegar”. Observar aqueles velhinhos faz notar a necessidade dos seres humanos de serem acolhidos.
Carine Costa
Manhã ensolarada de terçafeira, movimentação moderada e rotineira na cidade de Cachoeira. Semelhantemente normal é o fluxo de pessoas na sede da rádio Paraguassú FM. Sede que, de início, dá a impressão tratar-se de uma casa daquelas que é tombada pelo IPHAN. O que temos então é uma casa-estúdio. Logo na entrada, em um local que, possivelmente seria a sala da casa, pode-se observar o estúdio onde toda a programação é transmitida. Lá, encontramos Romilton Silva Souza, mais conhecido pelos colegas de profissão e pelos ouvintes por Romi Souza, 35, nascido em Jacobina-BA. Ele mesmo definiu o caráter multifacetado de sua profissão. Além de ser locutor, é programador e operador. Desde criança, Romilton queria atuar no rádio. Ele lembra que, quando ele tinha seis anos de idade, seu avô ouvia um aparelho de rádio de madeira e perguntava acerca do que ele queria ser quando crescesse. “Eu falava que queria ser radialista, para que ele pudesse me ouvir da localidade onde morava”, relata Romi. CARREIRA - A primeira oportunidade para trabalhar no rádio surgiu em 1990, na rádio Jacobina FM, mas não era ainda de maneira profissional. Dois anos depois, Romi ingressou em uma emissora do município de Valença. Seria a segunda de um total de sete rádios baianas que ele passou, em cidades como Campo Formoso, Ipirá, Juazeiro, Feira de Santana e, agora, em Cachoeira, além de ter também uma passagem por uma rádio comunitária em Santa Catarina. Romilton teve incentivo dos radialistas que conhecia. “Como sou apaixonado por rádio, eu sempre freqüentava as emissoras. Um desses radialistas, Evandro de Oliveira, que hoje está na rádio S e r r a n a F M , m e i n c e n t i vo u bastante, dizendo que eu tinha um
bom português, uma boa voz e me ensinou a gravar comerciais”, afirma.
Nos estúdios da Paraguassú FM, profissionais de múltiplas facetas mostram paixão pela profissão.
que o rádio tem foi um momento marcante na vida de Romi. “Eu trabalhava em uma rádio que ficava ao lado da empresa dos Correios e Telégrafos e, numa certa ocasião, às 9 da manhã, começou a fumaçar. Uma pessoa ligou pra rádio, dizendo que havia ocorrido um incêndio nos Correios. Eu falei, acionando o Tiro de Guerra, o Corpo de Bombeiros e a brigada voluntária e, em menos de três minutos, já estavam todos, inclusive a população, lá mobilizados. Na verdade, era um vizinho que morava atrás da empresa que estava queimando alguns galhos de mangueira. Isso mostra o poder que o rádio tem”, conta. Mesmo apaixonado pela profissão, Romilton defende a revisão da questão salarial, que está aquém do desejado, por parte do sindicado dos radialistas no nordeste. RODUZINDO E GRAVANDO – Durante a nossa visita, Edvaldo estava em meio a uma gravação de um depoimento de uma senhora, cliente contemplada em uma promoção feita por um
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supermercado que patrocina a programação. Ele nos mostrou, passo a passo, todo o processo de gravação que é feito por meio de um programa de computador que também corrige os erros. Cada t r e c h o d a fa l a é c o n fe r i d o minuciosamente por Edvaldo e a p rova d o p e l a c o n s u m i d o r a premiada. No estúdio de gravação, p o s te r i o r m e n te , a p a r e c e r a m Magno do Rosário e Romilton. Magno faz parte do Grupo Teatral Expressão em São Félix e divulgaria um evento marcado para 20/11. Romilton aproveitava o intervalo de seu programa para gravar um comercial que iria ao ar ainda naquele dia. Edvaldo aproveitou para mostrar outras gravações de comerciais que geraram boa repercussão e até poemas feitos por pessoas da comunidade, que exibe em um de seus programas. Ele prioriza os talentos das localidades mais humildes, por vivenciarem a realidade descrita nas poesias.
Na cozinha da casa-estúdio da rádio Paraguassú FM, encontramos Edvaldo Cardoso, que não foge da regra dos radialistascoringas. Apresentador, locutor e operador, ele comanda programas musicais que variam nos estilos, indo desde o reggae até o samba. PAIXÃO PELO RÁDIO – Autodidata, Edvaldo também busca Toniel Costa uma formação acadêmica na sua área, mas considera que o fundamental para um radialista é o dom que ele possui e a paixão pela profissão. Romi compar tilha com a opinião de Edvaldo. “Hoje o rádio pra mim é tudo. Além de ser minha fonte de renda, não consigo nem tirar férias do rádio. A única vez em que isso aconteceu foi numa ocasião em que tive de fazer uma cirurgia e fiquei dois meses fora”, declara. Romilton acredita que o surgimento da internet reforçou o poder de alcance das emissoras de rádio, que é muito grande, principalmente no interior do estado. A Para o radialista Edvaldo, o dom é mais importante do que a formação acadêmica descoberta desse poder Queila Oliveira
Memória
Cachoeira, novembro/dezembrode 2008
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Religião
Domingo profano na Festa d'Ajuda
“O padre é casado!”
D
omingo, oito da
manhã, Igreja Católica: É hora de missa. Igreja pequena, fiéis presentes, não em grande número, mas suf iciente para dar a impressão de “casa cheia”. Mulheres com véu na cabeça, crianças bem comportadas e penteadas, todos a rigor, bem vestidos com seus famosos trajes de “ver Deus”. Pelo cuidado como s e n t a m , p r i n c i p a l m e n te a s crianças, preocupando-se em não amassar a roupa, dá para perceber que aquelas não são sempre vestidas. Interior arrumado e limpo, altar decorado, imagens sacras na parede. Ofertório, comunhão, “améns”, fundo musical, fiéis cantando e louvando ao Senhor com os velhos e conhecidos cânticos comuns nas Igrejas C a t ó l i c a s . A m b i e n te q u a s e acolhedor. Os poucos fiéis ali presentes me olhavam com estranheza. No momento, a diferente era eu, quase “uma estranha no ninho”. Todos sabiam o que fazer, o que dizer na hora de dizer. Todos menos eu... E eles me olhavam, ali sentada no último banco. E eu olhava o padre e sua mão. Se para eles a situação já era natural, pra mim ainda não era tão comum. Era estranho pra mim estar de pé às oito e meia da manhã de domingo. Era estranho para eles que eu estivesse ali, seja a hora qual fosse, pelo menos a princípio. Missa comum. Carolas sentadas prontas para soltar as notas mais desafinadas, típicas de frequentadoras assíduas de Igreja. Todas, e elas eram maioria, de branco com uma fita vermelha no pescoço. Eu de calça jeans escura, blusa lilás, calçando havaianas
06 Cachoeira, novembro/dezembro de 2008
branca, no mínimo destoante. Cânticos, sermão, óstias e mais “améns”.Tudo como manda o figurino, a não ser pela presença de uma aliança dourada presente no dedo anelar da mão esquerda do sacerdote que celebra a missa. “O padre é casado!” Foi o que disse a mulher alta de voz estridente, dona de um sorriso largo e um olhar espantado dirigido àquela que se impressiona sem demora. “E pode?”, pergunto.
desde os 30 anos. Casado. Casado? È, casado e pela segunda vez. Pai de cinco filhos, é pároco da Igreja Católica Apostólica Brasileira (ICAB), única em Cachoeira. A ICAB foi fundada em 1945 pelo bispo Dom Carlos Duarte da Costa, antigo bispo Católico Romano. Dom Carlos
Talita Costa
Dom Roque é casado há onze anos e sua esposa, atualmente, mora em Recife
“Cachoeira pode tudo”, ela responde entre risos. De imediato, a história intriga. Mas aos poucos vai sendo esclarecida. O nome dele é Roque Cardoso Nonato, Dom Roque, como é conhecido, 65 anos, baixo, corpo robusto, moreno, rosto redondo, olhos pequenos compensado pelos grandes óculos, grandes e quadrados. Calvo na parte superior da cabeça, na parte inferior cabelos grisalhos, curtos e raros. Dentes grandes e amarelados, lábios grossos. Aparência cansada, porém viva. Voz rouca, andar lento. Padre
pregava contra a doutrina da infalibilidade Papal, atitude liberal quanto ao divórcio e a liberdade para os clérigos se casarem. Excomungado pelo Papa Pio XII, ignora a excomunhão e funda a Igreja Católica Apostólica Brasileira. Em 1949 o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal que concedeu Liberdade Religiosa e legalidade da Igreja Brasileira. Na ICAB, o celibato não é obrigatório. Ao saber dessa informação, o questionamento é direto: “Se o celibato fosse obrigatório, hoje o senhor seria padre?”. Dom Roque
responde com um sorriso nos lábios: “Eu nasci para o sacerdócio, com ou sem celibato.” Apesar de hoje um padre casado ser visto com naturalidade pelos cachoeiranos, nem sempre foi assim. No início, a Igreja Brasileira sofreu as duras críticas em Cachoeira, feitas por aqueles que não acreditavam na legitimidade de uma Igreja que quebra a maior tradição mantida pela Igreja Romana. As críticas partiam até - e quem sabe principalmente - dos outros padres da cidade que viam a situação como irregular e até desconfortável. As pessoas se recusavam a participar das missas e terem seus casamentos celebrados naquele ambiente “profano”. Mas aos poucos a situação foi mudando. E o Papa, como fica nessa história? A ICAB não comunga da soberania Papal, ela tem sua sede instalada em Brasília. O respeito a Bento XVI parte do fato de ele ser uma autoridade, o chefe de estado do Vaticano. Atualmente, Dom Roque mantém uma boa relação com os demais padres de Cachoeira e os fiéis da cidade. Situação esclarecida, Dom Roque já não me é estranho. Mas eu ainda sou estranha para aqueles que com louvor celebram sua fé a Deus. Nove da manhã, já é hora do fim da missa. “Bom dia a todos”, ele se despede. E na minha mente a única coisa que passava era: “Não me olhem assim, quem casou foi o padre!”
Por Camila Moreira
Astrude Modesto Em Cachoeira, no dia 23 de novembro, às quatro horas e trinta minutos da madrugada, o Largo d'Ajuda já estava cheio. Eu, que não sei sambar, observava a moça de vestido florido, vermelho e laranja, e o samba que ela tinha nos pés de sandálias prateadas. No meio do largo, o isopor de cerveja, as latinhas penduradas e o sombreiro listrado de vermelho e branco. Turistas e cachoeiranos esperavam sambando a primeira banda chegar para sair atrás do embalo. O sino tocou às cinco horas e o sol subiu a ladeira para o Largo. Lá embaixo, a banda surgiu acompanhada de fantasias. Paulo Cruz, cachoeirano e diretor da Fundação Maria América da Cruz, aos 56 anos, mesmo adoentado, compareceu fantasiado à festa que sempre presenciou. A roupa de chita, a coroa vermelha, os óculos de gatinha e o boá cor-de-rosa; Paulo Cruz carregava no corpo a pergunta: “Que Rei Sou Eu?”. A pergunta era uma sátira aos poderes públicos. Seu Paulo reclamava da falta de infraestrutura e arrumação para o festejo importante na cidade. “As autoridades estão abandonando e é o povo que faz a festa d'Ajuda”. O povo saía às ruas para ver a banda passar. Muitas pessoas observavam das janelas com os rostos de sono e as roupas de dormir. Raimunda Gomes, dona de casa, levantou cedo para fazer o café da manhã, por isso estava acordada quando a banda passou no bairro do Caquende. Aos 47 anos, ela assistia com os filhos a festa que já comemorou quando também era criança. Ela observava da janela a banda parada em silêncio frente à Pedra da Baleia. “Uma homenagem à Iemanjá, a rainha das águas”, ela explicoume. Para Raimunda, a festa não tem a mesma alegria que tinha em outros tempos. Ela sente que a festa está acabando por causa da violência. Não há mais as tantas
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se bem. Com purpurina dourada no rosto, ela só queria voltar para casa no final d'Ajuda. “Vou voltar para casa no lixo”, ela ria. A festa durou toda manhã e parte da tarde. Eu ainda não tinha aprendido a sambar e também entrei na fila para os banheiros dos bares fantasiada de diabinha. No final, eu ainda tinha no bolso a receita de alumã e água que Dona Elza deu-me em meio aos carros de som, as fanfarras e fantasias. Uma ótima receita para a garganta e a saúde que aprendi na Festa d'Ajuda. Dá próxima vez, também levarei no bolso os paus de canela.
Tradição secular
Cássius Borges
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Cultura
Personagens pitorescos e divertidos dão vida a famosa e animada Festa d’Ajuda
cabeçorras ou as tradicionais caretas de que ela tanto gostava na infância. Como na época de Raimunda, ainda são das caretas que as crianças mais gostam. Micael Ferreira, 9 anos, confessa que antes tinha medo da fantasia com macacão de chita e capuz de nariz fino e longo. Quando pergunto por que perdeu o medo das caretas, o amigo Sanderson Lopes tem a resposta na ponta da língua: “Porque a gente é valente”. Sim, eles são valentes e serão capazes de mudar a situação de descaso em que a festa se encontra. Não havia enfeites na cidade para anunciar os festejos. E, na falta de banheiros públicos, formavam-se enormes filas de fantasias de super-heroínas nos banheiros dos bares. As pessoas começam a fazer as encomendas de fantasias a partir de agosto, mas alguns sempre deixam para encomendar no dia anterior. Foi com o rosto calmo que Jailda de Almeida, 35 anos, disse que costurou 27 camisas para blocos e 6
fantasias com a ajuda de um amigo no dia 22 de novembro. Ela acordou às seis e meia da manhã de sábado e o trabalho só acabaria mais de dez horas da noite. Jailda mora no primeiro andar de um sobrado, em São Félix. O andar fica dividido entre a moradia e o ateliê. Linhas brancas, vermelhas, pretas, azuis, verdelimão e as três máquinas de costura. Magra, o cabelo preto preso por uma presilha, Jailda costurava serenamente uma fantasia de enfermeira. Ela nunca tinha ido à Festa até aquele dia. No domingo de manhã encontrei-a com o mesmo rosto calmo atrás do embalo. Ao contrário, Dona Elza da Silva todos os anos vai à festa. Aos 84 anos, estava na rua desde as cinco horas da manhã. “Se eu pudesse, teria esta festa de quinze em quinze dias”, ela dizia animada. Dona Elza, que não bebe e não fuma, chupava canela e cuspia quando perdia o gosto. As canelas na bolsinha era a forma de manter-
A festa em louvor a Nossa Senhora d'Ajuda é comemorada todos os anos, em Cachoeira, na primeira quinzena de novembro. Trazida pelos católicos portugueses, a manifestação secular oscila entre o sagrado e o profano, com celebrações religiosas (missa e procissão) e os embalos de fanfarras locais pelas ruas da cidade. A festa alcança o ápice no último domingo, quando ocorre o Terno da Alvorada. Às cinco horas da manhã, a população sai fantasiada às ruas com as tradicionais caretas e cabeçorras ou criam as fantasias mais irreverentes. O festejo está renovando-se a cada ano e, gradualmente, surgem mais blocos criados pelas comunidades.
Cachoeira, novembro/dezembro de 2008
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