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ulho - 20
a - BA
Junho/ J
Cachoeir
>> Zé Mole em Política e Feijão Pg. 08 e 09
>> Seu Zé em Pitorecos Sabores Pg.06
pitoresco
>> Tonho Pequeno em Quando um balcão é a liberdade Pg.10
INEDITORIAL
História em minuto
Ficou registrado que foi o francês Cristovão Jacques que o descobriu, Como se ele estivesse em um dia perdido Os índios foram dizimados pela doença e escravidão
O solo d’aqui era apropriado E o açúcar foi explorado Palco de lutas, a Heróica Cachoeira alvoreceu A cidade conheceu a decadência, Mas seu patrimônio não permitiu ela ser esquecida Surge a ponte de ferro, Nos ligando ao outro lado desse embrião, E em um casamento perfeito, Viveram alegrias e tristezas, fartura e devastação
Somos hoje uma cultura florescente, Com uma universidade presente, Ensinando a essa gente uma boa educação
Guga – estudante de História da UFRB
Reitor Paulo Gabriel Soledad Nacif Coordenação Editorial J. Péricles Diniz e Robério Marcelo
Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL)
Editor-Chefe Toni Caldas
Quarteirão Leite Alves, Cachoeira/BA - CEP - 44.300-000 Tel.: (75) 3425-3189
Editoração e Arte Gráfica Rosalvo Marques e Toni Caldas Redação Lélia Maria Sampaio Ilustrações Jaquisson Batista Capa e Páginas: 3, 6 e 9.
Jornal Laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Fotógrafos Caiã Pires, Cristiano Contreiras e Toni Caldas
Carta ao leitor Carta ao leitor
Cachoeira: cidade histórica que faz história. Terra de filhos ilustres e dos personagens que ilustram este jornal. Um retalho em meio à colcha singular desta cidade. Sim, singular... pitoresca! De pessoas que transformam frutas em iguarias excêntricas, de homens de ideais imersos numa realidade incompreendida, da lucidez de um farmacêutico que dedicou sua vida a outras vidas, da senhora que herdou da sogra o dom que faz do amargo doce, do homem que vive uma paixão com seu amigo que não é humano, mas leva nome de gente, e passeia também. E de tantos outros, não menos importantes, especiais, tanto quanto este lugar fascinante. Na margem esquerda do Paraguaçu, Cachoeira, que lava a alma dos que por aqui passam, dando um banho de cultura no mundo, atraindo olhos curiosos que percorrem do Tororó a Rua da Feira.
TENDA DOS MILAGRES
Repórteres André Cardoso, Caiã Pires, Cristiano Contreiras, Juliana Barbosa e Barbosa e Toni Caldas
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ELIANDSON SANTOS
Em um dia do ano de 1501 O homem branco surgiu, Com suas enormes embarcações, Cortando as águas do caudaloso Rio Paraguassú dos Tupinambás
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À margem direita do rio, São Félix, e suas ruas que remetem ao passado. Verdejantes montes, gente de sorriso largo, gente que transforma a cidade presépio em um mosaico de caras e bocas. E que delícia de abraço este povo tem, caloroso feito o clima daqui. Caros leitores, não deixem passar nenhuma oportunidade para manifestar afeto! Do afeto nascerão risos, dos risos, gargalhadas, destas poesias, das poesias, artes... Num ciclo infinito de sedução e mística. Boa leitura! Juliana Barbosa e Barbosa
Do passado o presente dos irmãos africanos uma históra de saudades por André Cardoso
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achoeira nos nostálgicos tempos áureos, na busca da riqueza da cana de açúcar e o tabaco, o braço escravo, foi desarraigado do solo mãe. Na desventura destes tempos vis, africanos foram achados e desterrados aqui. Nesta terra derramaram o líquido vermelho da vida, que irrigou a força motriz da economia. Testemunha das aflições deste povo, o poeta maior do Romantismo Brasileiro, Castro Alves, nos traz como reflexo os versos de “navios negreiros”. Cachoeira é mesmo esta terra que também aprendeu a ser mãe e recebeu do ancestral continente um grupo de abnegados jovens. São eles cabo-verdianos, angolanos e um queniano, numa república de 25 pessoas, refugiados nas campinas da localidade do Capoeiruçu. Todos eles vieram materializar o sonho de vencer pela Educação, não mais em navios negreiros, não mais aquele “sonho dantesco” como descrito pelo poeta. Na casa, no momento da visita, estavam Maria Alves, Cristina e Walter todos de Cabo Verde e Eliza, angolana. O grupo se divide em acadêmicos de Administração de Empresas e Pedagogia na Faculdade Adventista em Capoeiruçu. Lá, quando cheguei, encontrei Walter em um velho computador digitando um texto, que, ao fim da visita, disseme se tratar de sua monografia. Ele, estudante de Pedagogia e Maria Alves, estudante de Administração, são mais os velhos no Brasil, chegaram há quatro anos. Depois das formalidades deixadas para trás, entramos numa conversa impossível de reproduzi-la na íntegra, por conta da mesquinhez da página do jornal. Conversa terminada no sinal de que algo queimava no fogão. Nada menos que um prato peculiar conhecida por todo brasileiro: a feijoada. Os nossos amigos lusófonos enfrentam dificuldades financeiras para se manter no Brasil. O visto de permanência deles não permite trabalhar legalmente no país, são para estudantes. Para pagar a faculdade, eles fazem comportagem (vendas de livros religiosos e produtos gerais), com arrecadação, eles custeiam a mensalidade. Não é fácil, pois o grupo não tem nenhuma ajuda dos consulados, embaixadas ou de organizações do Brasil, e a ajuda que recebe da instituição de ensino é uma cesta básica mensal. Com todas estas adversidades, o motivador para o grupo é a certeza de que voltarão para os seus países com a vitória nas mãos: o canudo da graduação. Vieram para aqui, sob a desconfiança dos pais e familiares, que do Brasil, informações boas não tiveram. Ao que Walter e Eliza, discorrem e questionam: “Eu tenho um receio muito grande da mídia de Língua Portuguesa. Por que fazes sempre um recorte de coisas ruins. Lá em Cabo Verde, por exemplo, só passa a violência do Brasil nos telejornais. E aqui no Brasil só apresenta o continente africano como se fosse um país unigênito e todo miserável e pobre”, desabafou Walter. Ao falar da terra mátria, eles enchem o peito de ternura e saudade. Lembram das ilhas magníficas, da evolução da educação, e com os olhos marejados demostram o anseio de seu retorno. “Oh! Como espero pelo dia da partida, para minha terrinha, a cada despertar a saudade aperta meu seio, daqui sonho, ao contar os dias do regresso, e quando lá estiver, ficará, a saudade de uma terra, que, com carinho abraçoume o Brasil, a Bahia, a Cachoeira...”
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Pavarotti: o pássaro,
Cabeção: o criador um caso de amor incomum por Juliana Barbosa e Barbosa
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á cerca de Trinta e oito anos, Cabeção Nem, batizado como Antônio Fernando Santana Barbosa, apaixonado criador de pássaros, mantêm a tradição de acordar cedíssimo, por volta das cinco e meia da manhã, em pleno domingo, para levar os bicudos para passear. “Isso foi coisa de meu tio Landinho, ele criava e pedia para eu cuidar do canário belga”, conta sorridente o cachoeirano de quarenta e oito anos, casado, pai de dois filhos. “Já cheguei a ter uns dezoito passarinhos, mas, sabe como é que é, a gente vai trocando, presenteando os amigos, e hoje eu tenho meus nove bichinhos.” Papa-capim “O do canto viu-viu”, diz ele, Azulão, Canário-da-terra, cabocolinho são os canoros brasileiros mais fáceis de encontrar na criação legalizada, todos moradores no viveiro de Cabeção. Em seu quintal uma verdadeira orquestra, “Mas a estrela é o Pavarotti, canta que é uma beleza!”, relata gargalhando, referindo-se ao Papa-capim, seu favorito. Ao ser questionado do por que deste pitoresco hábito de passear com o passarinho, ele explica: “todos os bichos têm suas namoradas, então é justo levar Pavarotti para fuguiá” (acontece quando o macho encontra a fêmea, uma espécie de paquera) “além disso, é bom ele
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tomar sol, ver o verde, sair um pouco... E quanto mais longe melhor, ele fica tranquilo longe de muita gente”. O assunto é sério e Cabeção diz mais: “Gosto de sair só com meu pássaro, é por que tem gente que sai em grupo, proseando, mas, eu gosto de aproveitar o momento com meu bichinho, interagir com a natureza, admirar seu canto, ficar no silêncio pensando na vida. Pavarotti gosta também de sair só, sem nenhum outro macho para atrapalhar ele quando ele for fuguiá”, e novas gargalhadas surgem. Torneios de Gogó Ouvir muitas aves cantarem sem dúvidas é um prazer imenso para os apaixonados por pássaros. Sabese que acontecem torneios de pássaros brasileiros, onde nas competições de canto vale a melhor melodia, harmonia, ritmo e fidelidade ao padrão do canto. Nas competições de fibra, o pássaro que cantar mais em um tempo estipulado é o vencedor. Cabeção, o criador de Pavarotti, afirma, sem pestanejar, que é contra aos torneios. “O povo bota o bicho para ir além dos limites, sabe? Dão remédios, coloca o passarinho no sol quente, tudo isso pro bicho cantar mais e por mais tempo. O bicho até canta, mas o canto é triste, não
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tem alegria, naturalidade... é cruel”. Os meus bichinhos cantam aqui sem nenhum artifício, cantam felizes!”. O pitoresco e tradicional criador cuida pessoalmente de todas as gaiolas, do viveiro, dos “lanches” como ele mesmo chama “os agrados” que faz aos passarinhos. É bonito de se vê. O mais legal, é perceber nesta diversidade cultural da cidade, tradições, passadas de pai para filho, de tios para sobrinhos, avôs para netos, com a mesma dedicação, paixão e cuidado, vistos na época de seu Landinho (o tio de Cabeção), responsável pelo despertar do sobrinho.
Obsceno no falar,
no agir e no pensar verborragia, exclamações e rock’ roll por Toni Caldas
Viramundo Em 1976, passou a trabalhar no Pólo Petroquímico de Camaçari, como operador de processos petroquímicos onde conheceu o movimento sindical. Amante da noite, costumava aproveitar os bares da capital ao lado de alguns amigos, com os quais dividia um pensionato no bairro do Rio Vermelho e a conta das cervejas ao final da noite. Olhando para trás Zé Ignacio conta que não houveram “as melhores lembranças”, a
juventude por inteiro é a sua melhor lembrança. Ainda tentando ir mais fundo, pergunto “se você pudesse voltar atrás o que faria de no...” e ele responde, presumindo o fim da frase: “Eu fazia tudo aquilo que eu não fiz, e acabou! Arrependimento só das coisas que eu não fiz, e o que eu fiz eu faria dobrado”, responde sem receios. Juventude sem rédeas Zé Ignacio sempre ouviu muita música, mas foi o Rock’n Roll que lhe fez refletir a vida. “Rock não deixa lição, ou você nasce ou não nasce. Você ouve e vive, é uma atitude”. Em 1975, ele formou em Cachoeira a polêmica banda, Barquinha do Rock & Frevo. “A gente pegava a música que fosse a transformava em Rock, bicho. Era uma loucura, a gente botava pra quebrar mesmo”, enfatiza acendendo seu Hollywood. Quando o tema é a juventude atual, não existem freios em criticar: “Gente que caiu na pior escravidão que existe: a intelectual. Porra, ninguém quer nada com a educação, vai querer com mais o que? Eu voltei a estudar faz três anos, me formei ano passado. A escola tá aí, com erros pra caralho, mas quem quer mesmo vai em frente! Mas o golpe militar de 64 também ajudou pra essa miséria toda!”, relata com tom de revolta, arqueando as sobrancelhas por trás dos óculos escuros.
Entre alguns cigarros e muita conversa, provoco então, questionando se ele acredita no segredo do universo e ele faz sua consideração: “Deus? O materialismo dialético nunca me brecou em nada. Eu não acredito nesse deus que tentam vender por aí. Mas que tem uma partícula muito grande no cosmo, criadora, isso existe”. Reforço então, buscando saber o que ele acha das verdades absolutas: “Esse conceito hoje é vendido de um jeito tão canalha, sabe? Em minha opinião, a convenção é uma verdade absoluta, mas produzidas por discursos dominantes, sem espaços pra discordar. Então a verdade absoluta não anda morta, como alguns dizem. É preciso enxergar que tem muita coisa velha com cara de nova em nossa volta”.
TONI CALDAS
Minha primeira impressão era de que a entrevista marcada para aquele domingo tinha tudo para transcorrer bem. Cheguei atrasado – cerca de três horas depois do combinado – e acabei encontrando Zé Inagcio de ressaca e acabando de acordar. “Porra, não você disse que vinha meio-dia, cara?”, questionou a figura tatuada no rosto com a imagem de um dragão e um símbolo japonês. Sem rodeios, resolvemos tudo e marcamos na tarde do dia seguinte. Dessa vez o encontro foi pontual. José Ignacio Souza de Oliveira, não sabe ao certo porque seu nome é de grafia hispânica. Filho único e nascido em Cachoeira, Zé Ignacio, como é popularmente conhecido, inicia a entrevista comentando sem receios a sua idade. “Não tenho síndrome de Peter Pan pra negar a lógica natural da vida. Tenho 57 anos e em outubro fico mais velho, isso é fato!”.
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Um novo olhar,
pitorescos sabores
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degustações pré-juninas e tradição por Juliana Barbosa e Barbosa
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a bebericar: “Reconhece o gosto?”, ele sorriu. Eu degustei em golinhos os três copos e disse: “O primeiro é limão-rosa, não é? O segundo jabuticaba e o terceiro de cajá. Acertei?” Ele, ainda sorrindo disse: “Sim, e é assim que reconhecemos se o gosto satisfaz a clientela, pedindo que identifiquem as frutas, assim, do jeito que tu fez pra vê se tá bom de açúcar, se tá muito forte...”. E de fato, senti o gosto exatamente fiel ao das frutas. Mas não ficamos por aí... Ele, sorrateiro, contou que tem gente que traz as frutas e pede para ele produzir um licor. Assim surgiu um dos contos: “Veio um pessoal e trouxe damasco que é uma fruta importada, não é nem fácil de achar, vieram e perguntaram se eu saberia fazer o licor, e eu disse mas é claro, e fiz. Se ficou bom? Eles levaram muitas garrafas!” gargalhou por fim. Foi contando que há sabores que em Cachoeira são comuns, mas, que lá fora são tidos como exóticos. Jabuticaba, que é muito procurado, banana, maracujá... E tem também aqueles especiais, pimenta, hortelã, tangerina “comecei fazendo de laranja, mas o de tangerina agradou mais”, disse. “Fiz também de goiaba, mas não fica bom para consumir por muito tempo... O de cupuaçu a gente compra a polpa do sul. Pitanga também é um sucesso. E depois daquela novela vem muita gente encomendando licor de chocolate com pimenta. Fica
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muito bom, mas não pode demorar muito tempo para beber, por que é feito de leite condensado, qualha tudo se demorar.” Contava e sorria. Por fim deixou claro que ensinou o ofício aos filhos e tem orgulho disso, valoriza a tradição e agradece a herança. Reconhece que a novidade dos sabores ajuda a manter o sucesso nas vendas, e que o diferencial não é só a tradição, mas sim o fato de ser tudo feito da fruta. Talvez se fizesse as misturas que fazem por aí, houvesse mais excentricidade, mas a qualidade fala mais alto. A arte de transformar frutas naturais em iguarias é a marca deste simpático comerciante que deixou o convite caloroso para mim, e para, os colegas da Redação e pra quem mais quiser bebericar seus tradicionais e também os pitorescos sabores de licor. Ao fim desta edição, iremos comemorar com vários litros.
Seu Roque: o sabor é o diferencial
CRISTIANO CONTREIRAS
que teria de pitoresco no tradicional? O que encontrar de novidade no mais famoso produtor de licor da cidade? Devaneios se apoderavam da minha mente. Mas, algo inesperado aconteceu ao adentrar no universo do fabrico, remetendo-me aos séculos passados, enquanto percorria as paredes de barro, “feitas com óleo de baleia, sabia?”, explicava-me Seu Roque, batizado como Roque Ferreira Pinto, setenta e quatro anos, a tempo que em que o mesmo passava vagarosamente as mãos calejadas do trabalho árduo que realiza com paixão nas paredes, por entre dornas, barris com frutas e garrafas de licor. Com um jeito humilde e acolhedor, com atenção e serenidade, assim fui recebida naquele espaço singular, onde a tradição herdada de seu pai ainda se fazia viva. Aos doze anos aprendera a arte de fabricar licor, ainda sem fins lucrativos, seu mentor registrou a casa em 1916, “antes papai fazia o licor e oferecia aos amigos”. Outrora apenas dois sabores, hoje, uma diversidade. “Só trabalho com fruta, nada de sabores artificiais”, diz ele, sorridente, ao mostrar o trabalho artesanal. Algo me despertou aos tempos modernos: os sabores pitorescos criados por Seu Roque. Chegou com uma bandejinha branca com três copinhos - daqueles de cafezinho - e convidou-me
Vide bula e gabinete pílulas, rúbricas e carimbos por Caiã Pires
CAIÃ PIRES
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alustiano de Araújo, conhecido como Seu Salú por todo e qualquer ser vivo da região, é sem dúvida uma das
mais importantes personalidades de Cachoeira. Como dizem seus amigos do Centro Espírita: “ele é memória viva”.
Aos 89 anos, o falante homem político cachoeirano, nascido na Rua da Feira em 1922, deve sua popularidade à intimidade com os remédios – o que lhe deu posteriormente o título de prefeito de Cachoeira. Isso mesmo, foi sua popularidade e simpatia com os clientes da farmácia, que criaram e basearam sua campanha política no final da década de 80. O que era pra ser apenas uma entrevista se torna, antes de tudo, uma aula de história política. Ele fala com disposição de sua posição política getulista, na época em que iniciou no ramo farmacêutico. “Em todo discurso de Getúlio Vargas ele saudava primeiro os trabalhadores. Hoje em dia estamos vivendo uma extinção moral de uma geração. Pra você ter uma ideia, a Câmara do Senado antigamente só tinha poliglota, só tinha gente culta.” com voz fraca e rouca, se mostra nostálgico ao lembrar-se de sua época. Ao olhar para um quadro na parede da sala com a foto de Seu Salú, na época em que ele era prefeito, aproveito para perguntar sobre o que ele acha da soberania da atual prefeitura de Cachoeira. Sem pestanejar, com um sorriso de canto de boca ele simplesmente comenta: “Ninguém tira eles de lá, meu
amigo. Ali é de pai pra filho, de filho pra sobrinho”. Devido ao estado delicado de saúde de seus pais, aos 16 anos ele passou a estudar à noite para trabalhar durante o dia, na intenção de ajudar no tratamento de seus velhos. Então, em meados de 1938, através da ajuda de um amigo, ele é contratado por uma farmácia no centro da cidade. Foram 63 anos no ramo farmacêutico. A paixão foi tão grande que mesmo ao se aposentar, ele ainda continua prescrevendo remédios no ambulatório de Cachoeira, ao lado do Centro Espírita Obreiros do Bem, ao qual ele frequenta há mais de 60 anos. Seu Salú conta que no ambulatório também se organizam programas para a população, como doações de roupa e comida. Em um instante de silêncio, Seu Salú aponta o dedo para um porta-retrato de sua família numa instante antiga da sala. Em uma espécie de insight ele diz: “Ta vendo como são as coisas. Parece que antigamente era tudo mais arrumado. Aquelas famílias antigas que não tinham televisão, não tinham rádio, tinham mais tempos de educar seus filhos. Hoje em dia seu filho em vez de pedir a benção, fala: E aí, coroa?”
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on ol ip atliáccai o
decretos populares, leis não-escritas e uma feijoa
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a distante Grécia antiga, os cidadãos reuniam-se nas ágoras (praças públicas). Na presente Cachoeira, todos os caminhos levam ao Palácio da Cultura, mas conhecido como bar de Zé Mole, para discutir e deliberar política. Assim, como nos debates nas ágoras gregas os vários debates no bar de Zé Mole saíram, como ele mesmo diz, “da Câmara dos Comuns e foram assunto no plenário da Câmara dos Lordes” (Câmara dos Vereadores). A prática da política em Cachoeira remonta a épocas de além império, assim nos conta a história; um grupo de cachoeiranos inconformados com a política da metrópole (Portugal) reuniram-se na antiga Praça da Regeneração (atual Dr. Milton) e formaram um levante nos idos de 1822, aos 25 de junho, um movimento precursor da Independência da Bahia e do Brasil. O movimento tinha na sua força intelectual o jornalista, jurista e político Francisco Montezuma, que com cartas dirigidas às Câmaras Municipais, aconselhou a proclamação do Príncipe D. Pedro como Regente do Brasil. As cartas tiveram o efeito positivo, as Câmaras Municipais eram instituições profundamente democráticas, de vida autônoma, onde se praticavam e floresciam princípios e doutrinas
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de amplo liberalismo político. Zé Mole é um expoente popular, singular, de grossos modos; claro, longe de compará-lo com filósofos gregos ou heróicos cachoeiranos do passado. Ele tem lugar no “caruru” da cachoeiranidade. Isto tudo me faz lembrar Ordep Serra, antropólogo, escritor e cachoeirano, em uma palestra: “Toda vez que eu vou a Roma, lembro-me de Cachoeira. Roma, aquela grande cidade que governou o mundo, passou, o nome ficou, ‘Cidade Eterna’. Cachoeira a grande cidade do Recôncavo da Bahia, rica e próspera, capital nacional, passou, o nome ficou, ‘Cidade Heróica’”. Cachoeira dentre todas as cidades do Recôncavo, é singular na sua particular pluralidade. E nesta diversidade, dentre tantos anônimos célebres, Zé Mole, como ele diz “todo cachoeirano é famoso. Nasceu, cresceu e viveu em Cachoeira, famoso é”. Sentado na cadeira, mal distribuído nela, por causa do
corpanzil e pelos membros inferiores e superiores avantajados. No Palácio da Cultura, na Praça Drª Ivone Bessa Ramos, embaixo do prédio da Filarmônica Minerva Cachoeirana, estava o imponente Zé Mole, neste primeiro contato, a fama de “point” da política foi comprovada, um ex prefeito de São Félix lá estava conversando sobre política. Pelas tantas da conversa cutucou Zé Mole. “Conta para ele a história do feijão”. Com voz grave – voz de trovoada, Zé Mole respondeu: “Não tem necessidade de falar nisso”. “Fale que o prefeito acabou com a feijoada” “A história verdadeira não foi esta” “ O prefeito acabou com o feijão, Zé! Esta é a verdade” “Ele foi para a rádio dizer
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ada temperada com política por André Cardoso
em Cachoeira havia um bar onde essoas se reuniam para fazer o político. Só foi isso, somente... Zé Mole interrompeu a entrevista dizer qual a “real” do feijão, do que retornasse no dia seguinte manhã. No outro dia dentro do stavam o vice prefeito bebendo um vereador da oposição sentado mo à porta, lia um jornal, na mesa entro um advogado conhecido ém lia um jornal. O advogado eu a barreira do silêncio, o mum silêncio no bar. “ Sou candidato nas próximas ões” “ É nada!”. Alguém gritou dentro r. “Vou lançar a candidatura em Zé Mole” Entrou no bar ex primeira-
dama da cidade. O advogado fustigou. “Diga a seu marido, que eu vou ser candidato” Esta conversa em nada me interessava. Eu queria a versão de Zé Mole para a danada da feijoada. De uma a uma as pessoas saíram do bar. Fiquei só com Molinho, o filho de Zé Mole, tão silencioso, quanto o retrato do saudoso político Edgar Rocha fixado à parede, em destaque no bar. Minutos depois, ele chegou numa velha bicicleta, sentou-se em frente a mim, narrou história das rodas de políticas na Praça 25 de junho e o Dr. Milton, que data da décadas de 60. Relembrando fatos. “Nada pode calar o cachoeirano. A política está em nossa veia. O Regime Militar não foi capaz, lembro-me das perseguições, os homens correndo dos soldados do exército, que aqui estiveram para capturar os subversivos. O carlismo
também tentou e não conseguiu”. Perguntei sobre a fama do bar, ser um lugar propenso às discussões políticas de Cachoeira. “O bar é um centro da democracia de Cachoeira. Aqui todos falam e ouvem dentro dos limites da ordem. Os mais exaltados e nervosos com gentileza peço para sair”. Meu interesse na verdade, com estas perguntas periféricas, era conhecer a história do feijão. Mas antes, Zé Mole apontou para o retrato de Edgar Rocha e disse: “Homem de valor. Cachoeira tem um problema sério, dar nome a quem tem apelido. E quem tem nome despreza”. Perguntei sobre a relação com o prefeito. “Normal, nada tenho contra ele, quando não era prefeito, lançou as ideias dele aqui, a candidatura foi homologada aqui no meu bar”. “Ele proibiu a feijoada?...” perguntei “Você sabe que meu bar é frequentado por políticos, gente do povo, advogados, médicos, juízes e promotores. Eu fazia um gostoso feijão, bastante procurado. A feijoada era temperada pelo assunto preferido do bar: a política. Juraci, aquele mal educado, com um bocão gritou que o segredo do feijão, era o dedão que eu colocava na panela. Vê se pode um negócio desse. O dedão na panela. As pessoas mais sérias, não quiseram mais comer a feijoada. Acabei com feijão. Nada a ver com o prefeito. Foi Juraci com a história do dedão no feijão...” Olhei neste momento para o polegar direito de Zé Mole, calculei uns 12 cm de dedo. Haja dedo na panela! “Eu vou retornar com o feijão, você está convidado...”.
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Quando um balcão é a liberdade C
CAIÃ PIRES
hequei por volta das três e meia da tarde naquela pequena mercearia do bairro do Caquende, em Cachoeira. Finalmente naquele sábado à tarde iria entrevistar Seu Tonho. Quando entrei em sua venda, vi logo Dona Lúcia, sua mulher, sentada em uma pilha de cadeiras de plástico, olhando o movimento da Rua Manoel Santana Melo, conhecida Antiga Ponte do Caquende. Tonho atrás do balcão despachava um cliente. “O que é?” perguntou o senhor de cabelos brancos e camisa de botão logo quando me viu. Contei pra ele o
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vivências, isolamento em um armazém por Caiã Pires
motivo da minha presença: fazer um perfil, pois tinha gostado de nossa última conversa. Balançando a cabeça em sinal positivo, apenas pediu que eu passasse mais tarde, pois ele iria tomar banho e resolver algumas outras questões. Pensei em sair, voltar outro dia, mas resolvi conversar com sua mulher para não perder a viagem. Mal o papo tinha começado, quando o senhor de mais ou menos um metro e meio de altura voltou para a mercearia (a casa dele [e do lado). Andando em direção ao balcão de madeira compensada exclamou: “Hoje não é um bom dia para a gente conversar, dia de sábado tem
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muita coisa pra fazer por aqui”. Com receio de perder a oportunidade da entrevista, o interrompi dizendo que iria fazer apenas algumas perguntas rápidas e que não iria incomodar por muito tempo. Tonho Pequeno, como ele é conhecido por essas bandas, desde que chegou à cidade de Cachoeira em 1969, compra pão e bolachas de Seu Valter para revender em sua mercearia. E n q u a n t o esperávamos o entregador do pão que estava engarrafado na ponte, ele divulgou uma de suas particularidades: “Tudo eu resolvo assim, pelo telefone. Acerto tudo e eles me fazem a entrega aqui”. Percebendo a “figura” com que estava conversando, resolvi incentivá-lo na conversa. “Não conheço nada da cidade, uma das únicas situações em que eu saio de casa é pra cortar o cabelo e mesmo assim eu vou de carro que é para
não demorar muito.” acrescenta Tonho enquanto sua mulher do outro lado em ar de confusão questiona: “Não entendo isso, isto tá certo?”. Para evitar um possível atrito, me coloquei: “Cada um tem seu jeito, dona Lúcia”. Nascido em Salvador, dos 69 anos de Antônio Almeida (Seu Tonho), quase todos foram dedicados ao comércio. Começou a trabalhar aos 10 anos de idade no comércio “sete portas” de Salvador, onde vendia principalmente cereais. “O balcão foi minha escola” comenta sobre sua falta de escolaridade enquanto ensacava alguns pães. Casado há 41 anos e pai de 6 filhos (3 vivos), diz que a única coisa que lhe interessa hoje é sua família e sua mercearia. Já na juventude se envolveu em algumas brigas devido ao abuso de bebidas, o que o levou a se mudar com urgência para Cachoeira. “Tive sérios problemas com o álcool, arrumava muitas brigas. Quase matei e quase morri p o r
várias vezes. Tava com medo de continuar naquela vida, por isso parei de beber e vim pra Cachoeira. Hoje eu tenho meu espaço aqui na cidade, todo mundo me conhece, ninguém me desrespeita” comenta Tonho ao amarrar uma sacola de pão. Logo quando chegou à cidade, há 42 anos, abriu A Casa Almeida ou Bar de Tonho Pequeno como é mais conhecido. Lá ele vende de tudo, desde arroz e feijão, até pão quentinho. “Minha vida está venda, eu vou morrer aqui!”, exclamou ao bater no balcão. Continuei sentado na cadeira de bar. De lá comecei a descrever alguns detalhes de sua mercearia para acrescentar à matéria. Fui descrevendo o local: galões de água no canto esquerdo, televisão antiga, caixas de cerveja no canto direito, ventilador de teto coberto por teia de aranha. “Pode falar, rapaz? Pode perguntar?” Gritou Tonho atrás de algumas dezenas de caixas de ovos no balcão, talvez inquieto pelo meu silêncio.
Barba, cabelo, bigode...
e um dedo de prosa
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Localizado na esquina da Travessa Adrião com a Rua Prisco Paraíso, no centro de Cachoeira, o local é um dos mais tradicionais pontos de encontros dos moradores. Um lugar tomado por entalhes curiosos que vão desde as plantas que dão vida ao espaço, aos calendários de anos passados com mulheres nuas. “As plantas são porque eu queria fazer disso aqui um lugar mais verde. Os calendários ficam aqui porque a modelo não merece ir pro lixo. Sabe como é, né?”, descontraí Bezerra enquanto faz a barba de um cliente, que se envolve com a entrevista: “Depois de mulher só mão de barbeiro que alisa cara de macho”. O entra-e-sai de pessoas é constante. Mas quem pensa que todos querem cuidar do visual, se engana. Todas as manhãs, Bezerra compra pelo menos dois jornais diferentes. O revezamento da leitura das notícias é constante. “Não sei se eu fico sabendo mais coisas pelo jornal ou se é pela boca de quem passa por aqui”, confessa um dos assumidos frequentadores do espaço.
A direção do Salão Glória foi assumida por Bezerra em julho de 1984. De lá pra cá, muita coisa mudou, mas a barbearia continua renomada e conhecida como a mais antiga da cidade. “O antigo proprietário, Ananias Barbeiro, assumiu esse espaço bem antes de mim. Sem exagerar, com ele foram 60 anos de barbearia. Com mais esses meus quase trinta anos, o Salão Glória já é quase secular!”, relata calculando nos dedos a soma imprecisa. Quando questionado sobre figuras mais ilustres que já passaram por ali, seja para fazer uma aposta no Jogo do Bicho, cuidar do visual ou mesmo folhear um de seus jornais, Bezerra tenta enumerar, mas desiste. “É muita gente pra uma memória só! É melhor nem comentar pra não esquecer de alguém que mereça ser citado. Tem aqueles que já vieram aqui apenas uma vez, mas tem os diários que tem seu valor de ilustre”, pondera. Sua simpatia e bom humor são constantes. No meio da entrevista, por vezes Bezerra fazia um trocadilho daqui, um provérbio dali. “Ô cara de cobra, não fique olhando no espelho não! Se você quebrar com essa sua cara-feia vai me dar um novo, ouviu?”.
Nascido em Conceição da Feira, em 1984, Bezerra recebeu o título de Cidadão Cachoeirano, por sua popularidade. Devoto do misticismo religioso, em seu salão possui emolduradas diversas imagens de santos católicos e também entidades do culto afro. Assim como estas, estão expostas também fotografias e pôsteres antigos de times de futebol, sua grande paixão. Há 32 anos, Bezerra é o presidente do Clube da Amizade, grupo de amigos cachoeiranos que se reúnem em torno do futebol. Com mais 20 troféus de campeonatos locais e regionais expostos em prateleiras por todo espaço, ele conta que todos ficaram com ele, pois a associação nunca teve uma sede. Mas há algo instiga nessa combinação curiosa: os rivais cariocas, Vasco e Flamengo, dividem a mesma parede. “É que eu sou Vasco, sabe? O problema é que Budião, esse camarada que corta cabelo aqui comigo, é rubro-negro. Fazer o que se ele quer sofrer?”, responde lamentando a preferência, cheio de humor.
TONI CALDAS
m um canto do salão, ao lado da banca de Jogo do Bicho, Seu Josué lê atentamente o jornal, quando Mastigado, a figura lendária que perdeu a dentadura no Rio Paraguaçu, desponta na porta chamando atenção de todos. “Cheguei, viu! Hoje eu vim pra sair daqui bonito, tá ouvindo?”. Sem demora, uma voz que vem do fundo responde o estardalhaço. “Pois dê meia volta que o terreiro é lá do outro lado. Vá chorar no pé do Caboclo pra ver se dá jeito nessa sua cara de sapo com epilepsia!”, retrucou Bezerra, proprietário do Salão Glória, a mais antiga barbearia da cidade.
uma paixão me mistura tesouras e futebol por Toni Caldas
Junho / Julho - 2011
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Jiló que adoça a alma a tradição que transforma sabores por Cristiano Contreiras
F
ui recebido com um abraço caloroso, tão contagiante a ponto de adoçar minha inicial timidez. “Não se acanhe, sou escorpiana convicta, por isso acredito que o abraço fortaleça qualquer laço. Quebra qualquer gelo possível entre qualquer pessoa”. Retribuo com uma sincera gargalhada, ainda que contida, quando ela, ansiosa e agitada, me puxa para perto de si, segurando as pontas de meus dedos aos seus: “Está vendo isso aqui? - entusiasmada, aponta para sua ampla cozinha adornada de pratos e talheres de madeira - é meu santuário mágico, é aqui que me sinto em outra esfera, onde tudo acontece; tudo flui”. Em poucos minutos, me entrego à sua harmonia particular que me contagia, bem como sua convicção com as palavras, modo de ser e estar, sua falta de inibição ao me definir o ambiente preferido de sua casa.
Culinária de uma vida
Nascida em Cachoeira, Clara Cristina e Silva Barbosa, aos 67 anos, demonstra uma lucidez exponencial, domina as palavras de tal forma que inibe qualquer jovem com metade de sua idade. Verborrágica, hiperativa, febril. A vocação para culinária é perceptível em poucos segundos. “Fiquei moça aos onze anos de idade, foi neste período que meu pai me ‘botou’ na cozinha com minha avó. Foi então que renasci, aprendi a cozinhar, descobri como esse exercício é mais que um prazer, é meu destino espiritual”. Antes mesmo que eu indagasse qual seria, para ela, o significado real da culinária, sua voz me incita com uma provocação. Não, ela não estava ali para falar de comida, pois é assunto banal - queria apenas me fazer um questionamento: “Já experimentou doce de Jiló?” Faço cara de espanto, expressão que denuncia minha nítida aversão ao fruto, não cabulo meu olhar de nojo. Ela solta sua sonora risada aberta, olhos miúdos e atentos
a me espreitar, mas que logo amansa meu mar de ansiedade: “Calma, aposto que não provou nada mais exótico que este doce meu”. Clara conta que aprendeu a fazer o doce com um amigo próximo, mas que ela própria, ao longo dos anos, apropriouse da receita e modificou, sutilmente, alguns detalhes. “Culinária é uma arte, percepção também. Por isso, precisei aguçar meus sentidos para ver o que era importante mexer. Aumentei um ingrediente ali, diminuí outro acolá. Pronto, o doce estava bom num passe de mágica.”
Criatividade ou talento?
Enquanto prepara o tal doce de Jiló, Clara não esconde sua vaidade ao me confidenciar que evita, ao máximo, dizer detalhes de sua receita. “Não existe isso de dom, apenas. Meus sentidos dependem da minha criatividade que está sempre em ebulição como a água que ferve meus alimentos. E cozinhar é minha respiração diária”. Clara conta que já usou de sua criatividade - ou seria seu talento pessoal? - para modificar receitas que, aparentemente, seriam apenas banais.
Pratos comuns ou mesmo certos doces específicos, receberam seus ‘dedos mágicos’. Ela afirma que é criativa, mas que seu dom está reservadamente interligado ao seu poder de transformar o que é comum em algo novo. “Ah, uma coisa depende da
com minha existência feminina”. Inquieto, eu pergunto de onde surge essa sua paixão fumegante que é capaz de intrigar qualquer um, inclusive a mim mesmo. Ela solta sua risada estridente, as mãos nervosas e atarefadas
“[...] já tive um convidado alemão que comeu uma moqueca de testículos de boi e ele dizia: Que delícia, minha dona, que delícia!” outra. Se você pensa que só o cheiro da maniçoba pode atrair alguém aqui em Cachoeira, enganase. Eu sou capaz de tornar saboroso algo que você considere insípido”. A provocação me causa espanto. E o tal de doce de jiló, além de pitoresco, reserva boas surpresas para quem teme experimentálo. “Sinto prazer quando gostam da minha comida, já tive um convidado alemão que comeu uma moqueca de testículos de boi e ele dizia: Que delícia, minha dona, que delícia! Cozinha é uma coisa muito boa. Mas, não é para qualquer um, não. É mais que uma arte, é um exercício que comunga
a enrolar o doce quase pronto: “Sabe esse doce aqui? Com ele aprendi que, assim como na vida, nem tudo que parece ser azedo, deve ser creditado como tal. Às vezes, os sabores mais diferentes é que expressam o que há de mais gostoso a ser experimentado”. E completa: “Tal como minha vida, o pitoresco é muito mais valioso, e é dele que eu retiro meu sopro de vida. Ninguém vive pra saborear um gosto só, devemos experimentar os mais variados gostos da existência, principalmente quando é algo tão único e original. É isso, a vida só funciona se for como meu doce: surpreendente!”.