lampejo - vol.2 n.2

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LAMPEfâ revista eletrônica de filosofia § cultura

artigos ensaios fotografia

apoena I

Issn 2238-5274 - ano 2 - n° 4 -11/2013

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grupo de estudas SCHOPENHAUER NIETZSCHE


Índice

ARTIGOS

Conhecimento de si e sofrimento em Sciiopeniianer

Joel N. Torres _________________________________________03 Nietzsciie e a domesticação do animai iiomem

Diany Mary Falcão Alves_________________________________15

Niiiismo e ética: a "fiiosofia do nada" em suas reiações com 0 agir iiumano

Antunes Ferreira da Silva _______________________________27

Por uma ética da existência ou a criação de rotas de fuga: poiíticas de subjetivação emtempos contemporâneos

Ruy Anderson Santos Martins | Leila Domingues Machado____ 38

Sciiopeniiauer e o vegetarianismo

Eduardo Ferraz Franco____________

46

Para uma introdução da crítica geneaiégica da morai em Nietzsciie

Gustavo Augusto da Silva Ferreira ______________________54

Revista Lampejo

ENSAIOS

Uma apreciação pés-moderna na obra de João Giiberto Noii

Juliana Braga G uedes_______________________________66

por Luiz Felipe Sahd.

Editores: Luana Diogo, Daniel Carvalho, William Mendes Ruy de Carvalho, Gustavo Costa

ENSAIO FOTOGRÁFICO

Fotografias

ISSNZZ38-5Z74

Conselho Editorial 70

Prof. Dr. Daniel Santos da Silva; Prof. Dr. Ernani Chaves Prof. Dr. Jair Barboza; Prof. Dr. Ivan Maia de Mello Prof. Dr. José Maria Arruda; Prof. Dr. Luiz Orlandi Prof. Dr. Miguel A. de Barrenechea Porf. Dr. Olímpio Pimenta; Prof. Dr. Peter Pál Peibart Prof. Dr. Roberto Machado; Prof. Dra. Rosa M* Dias

Comissão Editorial: Ruy de Carvalho, Gustavo Costa, Fernando Barros, William Mendes, Daniel Carvalho, Marilia Bezerra, Rogério Moreira, Luana Diogo, Paulo Marcelo, Átila Monteiro, Gisele Gailicchio, Fabien Lins

Projeto Gráfico e Diagramação: Herlany Siqueira


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CONHECIMENTO OE SI E SOFRIMENTO EM SCHOPENHAUER JOEL N. TORRES - Mestre em filosofia pela universidade federal do pará (UFPA). Email: joeltorres@ufpa.Br

Resumo: Considerando a filosofia de Schopenhauer, podemos afirmar que a origem do sofrimento humano se localiza na relação conflituosa que é o próprio indivíduo, caracterizado por aquilo que é sentido imediatamente e que de modo algum pode ser negado e o conhecimento, o qual, por sua condição mesmo, é sempre mediato e responsável, na reflexão, pelo saber de seu status de limi­ tação e impotência frente àquilo que é dado ao sentimento. Assim, a individualidade, enquanto conhecimento e sentimento de si ao mesmo tempo, fundam enta a origem do que é, ao mesmo tempo, necessário, inexorável e irreconciliável no homem: o sofrimento. Palavras-chave: Vontade. Sofrimento. Conhecimento. Sentimento. Consciência.


Há pessoas que se veem condenadas a saborear apenas o veneno das coisas, pessoas para quem toda surpresa é uma surpresa dolorosa e toda experiência, uma oportunidade de tortura. Caso se diga que esse sofrimento tem razões subjetivas, que depende de uma constituição particular, pergunto: existe um critério objetivo do sofrimento? Emil Cioran - Nos cumes do desespero.

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ue “TODA VIDA É SOFRIMENTO” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 400), é uma máxima explícita em toda obra de Schopenhauer, e esta verdade se fundamenta sobre sua concepção de que o mundo é essencialmente V ontade\ a qual se apresenta “como ímpeto cego e esforço destituído de conhecimento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 214), sendo ela, em si mesma, uma unidade que se expressa, ou melhor, que se objetiva, não no sentido de se tornar objeto, mas sim como aquilo que aparece

como imagem, na multiplicidade dos fenômenos do mundo. Por esta perspectiva, o filósofo alemão deixa claro que não existe nada fora da Vontade e, o mundo, enquanto objetidade dela mesma, é apenas sua representação, isto é, seu espelho. Deste modo, 0 sofrimento “se assenta no fato de a Vontade ter de devorar a si mesma, já que nada existe de exterior a ela, e ela é uma Vontade faminta. Daí a caça, a angústia, o sofrimento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 219). E não apenas isto, Schopenhauer ainda acrescenta que “o sofrimento é essencial a toda a vida” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 368). Com isto, ele quer significar que o sofrimento, em geral sendo a condição característica da Vontade “cravando os dentes na própria carne”, é o modo próprio da vida ser, uma constante dinâmica na qual os organismos se esforçam permanentemente. A Vontade “carece por completo de um fim e alvo últimos; ela sempre se esforça, porque

0 esforço é sua única essência, ao qual nenhum fim alcançado põe um término, pelo que ela não é capaz de nenhuma satisfação absolutamente conclusiva, só obstáculos podendo detê-la, porém em si mesma indo ao infinito” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 398). Consequentemente, “Nomeamos SOFRIMENTO a sua travação por obstáculo, posto entre ela e o seu fim passageiro; ao contrário, nomeamos SATISFAÇÃO, bem-estar, felicidade, o alcançamento do fim” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399). Assim, toda a vida se passa entre um impulso, um esforço, sempre renovado e as diversas tentativas de amenizar este ímpeto com soluções sempre provisórias e insuficientes da qual não podemos nos libertar. Embora toda matéria seja de carência, de dor, de sofrimento, de desejo, onde a todo custo busca suprimi-la, organizando-se constantemente em suas diversas manifestações como graus de objetivação da Vontade, como Ideias, no sentido platônico, mantêm-se, contudo, aquela condição, por assim dizer, de inconsciência, seguindo um curso necessário e cego; porém vai ser no próprio homem, como 0 representante mais perfeito desta efetivação, no sentido em que é sua objetidade de grau mais

* Utilizaremos o mesmo recurso do tradutor brasileiro Jair Barbosa, quando da tradução para a língua portuguesa da obra m agna de Schopenhauer, que grafa Vontade com “V” maiúsculo para designá-la como coisa-em-si, e vontade com “v” minúsculo para se referir à vontade individual, objetidade da Vontade.


elevado, ou seja, aquele que vai espelhar melhor a riqueza da vontade e suas aspirações, vale dizer ainda, onde encontraremos a referência mais interessante para estudarmos aquela relação do querer com 0 sofrimento, pois ele vai acrescentar à discussão um elemento novo, o qual apenas ele possui, que é justam ente o conhecimento, o qual, enquanto conhecimento de si, como conhecimento mais importante, vai tom ar consciência de todo este processo. A Vontade manifestando-se a si mesma nos diversos graus, chega ao nível do orgânico; primeiramente, no reino vegetal, que já é representação viva enquanto organismo vivo, atuando não mais enquanto causa pura e simples, mas segundo excitação, o que quer dizer um grau acima dos objetos inorgânicos; e, posteriormente, no organismo vivo próprio do reino animal. Questionamos, ia dizendo, se nesta esfera onde a Vontade atua cegamente, sem qualquer reflexão, isto é, alheia, ainda, a toda forma representada pela condição sujeito-objeto - pois ainda não há princípio de individuação - , não seria, simplesmente, o fazer-efeito de sua verdade enquanto esforço e resistência e, consequentemente, apenas uma condição de alteração de seu estatuto anterior para uma alteridade sem, contudo, extrapolar valorativa e moralmente, o que é óbvio, o próprio impulso de manifestação da Vontade que apenas representaria contradição dela mesma e, logicamente, este mesmo efeito não seria, naquela ocasião, referente apenas a uma resistência própria a si mesmo, a qual, por sua condição de ser múltipla,

faz com que a diversidade realce a condição de individualidade própria da necessidade do exercício de si mesmo enquanto Ideia. Em outras palavras: como poderíamos pensar o sofrimento anterior ao desenvolvimento do cérebro? Isto é, no reino vegetal e mesmo no animal, antes do homem? Esta questão se torna exemplar para dar continuidade ao raciocínio schopenhaueriano, pois estamos falando justam ente de dois aspectos fundamentais para a explicação do sofrimento, qual seja, a de que em primeiro lugar, como foi dito acima, o sofrimento é próprio da vida porque a vida é a Vontade manifesta e se ela, a Vontade, é um impulso contraditório em si mesmo, a vida não poderia ser diferente enquanto sua objetivação, portanto em algum nível todo vivente sofre. Em segundo lugar, se levarmos em conta que o sofrimento é uma característica exclusiva dos organismos que desenvolveram o cérebro, e aqui nos referimos ao homem objetivamente, temos que aceitar que fundamentalmente a possibilidade/capacidade de sofrer inicia e se esgota enquanto atividade consciente. É esta, justam ente a exclamação da diferença, na concepção de sofrimento, com e sem a interferência do conhecimento que nos interessa e, mais especificamente, do conhecimento de si que só o homem pode ter, pois, seguindo a tragédia da vida humana, podemos dizer que o ímpeto da afirmação de si, desde os primeiros anos de vida, já pode ser visto como imposições instintivas, “a-racionais”, destituídas de conhecimento, da Vontade frente ao mundo. Poderíamos mesmo dizer que esta afirmação de si, já nos momentos iniciais do organismo, continua seguindo aquela tendência proporcionada pelas forças mais brutas; quer dizer, os graus mais baixos de objetivação da Vontade, os quais funcionam como forças iniciais, que transpassam


constantemente o organismo, o que nunca vai deixar de existir. Aquele organismo mesmo, ia dizendo, agora como uma integralidade, vai resistir, na medida do possível, a esta mesma influência das forças fundamentais - forças físicas, químicas - , na tentativa de manter sua coesão, da qual o eu é consciente de duas formas, imediatamente e mediatamente. Neste sentido, podemos afirmar, então, que a primeira luta do organismo enquanto tal é com as forças “exteriores” a si mesmo, representadas pelas coisas “externas”, haja vista que se pensarmos naquela possibilidade anterior ao organismo, isto é, ainda enquanto Ideias que buscam se apropriar da matéria para fazer valer sua efetividade da “melhor” maneira, buscando realizar sua perfeição, aqui logicamente ainda não se pode falar em organismo nem em “exterioridade”, portanto, poderíamos dizer, a relação ainda é intrínseca, anterior a toda forma subsumida ao princípio de individuação, deste modo, podemos afirmar que é só organicamente, exclusivamente no sentido em que já se pode subsumir esta mesma relação conflituosa da Vontade com Ela mesma ao tempo, espaço e causalidade, ou dizendo de modo mais grosseiro: as condições físicas mesmo do ambiente (matéria) que insistem em se abater sobre ele (organismo) de maneira “dolorosa”, “repressiva”, “resistentes”, trazendo, consequentemente, um mal-estar, ainda inconscientemente, consigo mesmo, em vista do esforço do próprio organismo dever ser sempre tanto constante quanto insuficiente para trazer um bem-estar duradouro aparecendo, desta forma, a primeira percepção de limitação, portanto de dor, sofrimento, em uma palavra: “incompetência”. A partir daí, está aberta uma via pela qual o homem não pode mais voltar atrás depois de iniciada a viagem. E como já nos concebemos nela, o pecado original já foi cometido. Assim, podemos entender perfeitamente o pensamento de Sileno, quando declara que o melhor é não ter nascido e que 0 segundo melhor é morrer jovem, ou, nas palavras de Schopenhauer: “Antes o mundo não existisse!” (SCHOPENHAUER, 1960, p. 109).

1 - Conhecimento

Para Schopenhauer, A essência do homem consiste em sua vontade se esforçar, ser satisfeita, e novamente se esforçar, incessantemente; sim, sua felicidade e bem -estar é apenas isto: que a transição do desejo para a satisfação, e desta para um novo desejo, ocorra rapidam ente, pois a ausência de satisfação é sofrimento, a ausência de novo desejo é anseio vazio, langor, tédio (SCHOPENHAUER, 2005, p. 341).

Em sua história, o homem, diferentemente dos animais os quais “têm apenas representações intuitivas, não têm conceitos nem reflexão, estão, portanto, presos ao presente e não podem levar em conta 0 futuro”; sendo assim “ - É como se esse conhecimento a-racional não fosse em todos os casos suficiente para os fins da


Vontade, com o que ela casualmente precisou de um auxílio” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 216). Consequentemente, por sua condição de complexidade, desenvolveu um órgão, um instrumento, uma ferramenta, para tentar compensar sua fragilidade e, por seu uso, adquirir um certo controle sobre seu ambiente. Este órgão é precisamente o cérebro. Exatamente aqui, Schopenhauer se desvincula da tradição “cabeça de anjo alada” que separa corpo de mente e, mesmo daquelas filosofias que tentando fugir desta dicotomia, via “saltus mortalis”, acabam por “hipostasiar uma substância de natureza radicalmente outra que não a das coisas corpóreas. Transporta-se para o cérebro uma alma” (SCHOPENHAUER, 1960, p. 117). Pelo contrário, o filósofo nos ensina que, “O intelecto é, com efeito, uma função do cérebro, e este com os nervos e a medula espinhal é apenas um fruto, um produto, eu diria mesmo um parasita do resto do organismo. Pois ele se encaixa nas engrenagens íntimas deste organismo e serve ã conservação do eu apenas pela relação com o mundo exterior” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 897). E é justam ente essa capacidade de estar sempre relacionada ao exterior, que torna o intelecto e, com ele, o conhecimento, incompetentes quando o assunto é o autoconhecimento: Cada indivíduo é, por um lado, sujeito do conhecer, isto é, a condição complementar da possibilidade de todo o mundo objetivo, e, por outro, fenômeno singular da Vontade, da mesma que se objetiva em cada coisa. Mas essa duplicidade de nosso ser não repousa numa unidade subsistente por si, do contrário poderíamos ser conscientes de nós EM NÓS MESMOS INDEPENDENTE DOS OBJETOS DO CONHECER E DO QUERER, 0 que absolutam ente não podemos mas, assim que descemos em nós para conseguir isso e direcionamos o conhecimento para o nosso interior, querendo conhecer-nos plenamente de uma vez, perdemo-nos num vazio sem fundo, sentindo-nos semelhantes a uma esfera oca de cristal, da qual soa uma voz, cuja causa, entretanto, não encontramos ali; quando queremos assim apreender a nós, nada obtemos senão, assustados, um fantasma instável (SCHOPENHAUER, 2005, p. 361).

Em outras palavras: O conhecimento, aparece representado pelo cérebro ou por um grande gânglio; precisamente como qualquer outro esforço ou determinação da Vontade que se objetiva é representado por um órgão, quer dizer, expõe-se para a representação como um órgão [...] A Vontade, até então a seguir na obscuridade o seu impulso, com extrema certeza e infalibilidade, inflamou neste grau de objetivação uma luz para si, meio este que se tornou necessário para a supressão da crescente desvantagem que resultaria da profusão e da índole complicada de seus fenômenos, o que afetaria os mais complexos deles. A infalível certeza e regularidade com que a Vontade atuava até então na natureza inorgânica e na m eramente vegetativa assentava-se no fato de que ali ela era ativa exclusivamente em sua essência originária, como ímpeto cego; Vontade sem o auxilio, no entanto sem perturbação de um segundo mundo inteiramente outro (SCHOPENHAUER, 2005, p. 215-16).

Poderíamos dizer que os animais, de modo geral, também possuem um órgão que os ajuda a conduzirem suas próprias vidas, e bem podemos chamar de cérebro, mas notemos que Schopenhauer restringe a capacidade deste órgão animal, e o limita ã condição de entendimento, ou seja, todo


animal tem entendimento, que é a própria condição do mundo como representação, mas vai até aí sua potencialidade. Este conhecimento restrito dos animais é responsável pela presentificação das coisas; o animal percebe apenas o que está diante de si sempre no momento exato de sua aparição; se lhe retiramos o ente, é como se ele não existisse, no sentido em que não há raciocínio, abstração e consciência de si. Ao contrário, no homem, esta restrição é superada: Por fim, lá onde a Vontade atingiu o grau mais elevado de sua objetivação e não é mais suficiente o conhecimento do entendim ento [...], um ser complicado, multifacetado, plástico, altamente necessitado e indefeso como é o homem teve de ser iluminado por um duplo conhecimento para poder subsistir. Com isso, coube-lhe, por assim dizer, uma potência mais elevada do conhecimento intuitivo, um refiexo deste, vale dizer, a razão como faculdade de conceitos abstratos. Com esta surge a clareza de consciência que abarca panoram as do futuro e do passado e, em função destes, ponderação, cuidado, habilidade para a ação calculada e independente do presente, por fim a consciência totalmente clara das próprias decisões voluntárias enquanto tais (SCHOPENHAUER, 2005, p. 216-17).

Assim, fica claro que o surgimento do conhecimento se insere no programa de objetivação da Vontade, como uma necessidade que deve ser levada a termo para que uma Ideia superior se sobreponha a Uma mais inferior, naquele jogo de dominação e submissão, em um esforço para o aparecimento de uma Ideia sempre mais elevada, “conforme o organismo consiga maior ou menor dominação daqueles graus mais básicos das forças da natureza que expressam a objetidade da Vontade, torna-se a expressão mais ou menos perfeita de sua Ideia, isto é, encontra-se mais ou menos distante do IDEAL que representa a beleza de sua espécie” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 211). Tudo caminharia dentro da ordem prevista pela Vontade se, justam ente aí, onde Ela se esforçou para sanar um problema de adequação às próprias formas da representação, pelo desenvolvimento e exercício do conhecimento como um auxílio a este grau mais elevado que é o homem, tudo iria bem, como ia dizendo, não tivesse sido essa criação, esse apêndice, que é o conhecimento, infligido um duro golpe na autoconsciência da vontade no homem pois, justam ente aí onde ele, o conhecimento, ainda não aparecia, a Vontade se exercia com aquele rigor próprio de sua condição primeira que é a de uma necessidade absoluta, isto é, “até então a seguir na obscuridade o seu impulso, com extrema certeza e infalibilidade” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 216), em que “nos mais tênues de seus fenômenos, esforça-se de maneira cega, silenciosa, unilateral e invariável...”, na prática de uma luta constante, porém sempre em favor da autossuperação de suas limitações e imperfeições, culminando, consequentemente, em uma tensão harmonia. Sendo que, agora, e fechando a citação iniciada: “...precisamente aquela essência que em nós segue seus fins ã luz do conhecimento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 178), única e exclusivamente por isso, “doravante cessa a infalível certeza da Vontade” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 216). Mais do que isso: “A ponderação, que agora deve a tudo substituir, produz vacilações e incertezas; o erro se torna possível, obstando em muitos casos a adequada objetivação da Vontade em atos” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 217). O filósofo alemão escreve conclusivamente:


Se, de um lado, com o conhecimento m eramente intuitivo surge a possibilidade da ilusão e do engano, e assim é suprimida a infalibilidade na atuação destituída de conhecimento da Vontade, [...] por outro lado, com o aparecimento da razão é quase que inteiramente perdida aquela segurança e infalibilidade das exteriorizações da Vontade (que no outro extremo, na natureza inorgânica, aparece inclusive como estrita conformidade a leis): o instinto entra por completo no segundo plano (SCHOPENHAUER, 2005, p. 217).

II - Sofrimento e consciência A Vontade, ao invés de manter-se naquele nível seguro, por assim dizer, característico de Sua essência cega e infalível, por meio do conhecimento, realiza, toma ciência da condição de carência, isto é, de necessidades e desejos inerentes. Daí, o que era inconscientemente executado, vai se elevar, na medida de sua exaltação, àquela “clareza de consciência”. A Vontade, em vista de sua necessidade de afirmação, vai conhecer agora sua insatisfação consigo mesma, vale dizer, a Vontade na vontade conhecedora realiza a dor de seu vazio que nunca é preenchido, e “justam ente por que a dor espiritual, como a mais aguda de todas, torna alguém insensível ã dor física, o suicídio é bastante fácil para quem se encontra desesperado ou imerso em desanimo crônico, embora antes, em estado confortável tremesse com tal pensam ento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 387). Desenvolvendo esta conseqüência, Schopenhauer retira da concepção do “sofrimento que cresce na proporção de sua clarividência” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 350), o deslocamento do sentido externo para o sentido interno do sofrimento, isto é, à medida que o fenômeno da Vontade se torna cada vez mais perfeito, o sofrimento se torna cada vez mais manifesto. [...] Só com o sistema nervoso completo dos vertebrados é que a referida capacidade [sentir e sofrer] aparece em grau elevado, e cada vez mais quanto mais a inteligência se desenvolve. Portanto, à proporção que o conhecimento atinge a distinção e que a consciência se eleva, aumenta o torm ento, que, conseguintemente, alcança seu grau supremo no homem, e tanto mais, quanto mais ele conhece distintam ente, sim, quanto mais inteligente é (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399).

Schopenhauer, aqui, acompanha os estóicos e afirma o estatuto mental do sofrer como proporcional ao nível de consciência. O sofrimento passa a ser, segundo estas condições, da ordem mental, mais especificamente da ordem da consciência do desejo, do querer. Sofrer se torna uma disposição puramente mental, e por que não dizer, humana? E isto devido a quê? O filósofo niilista explica: por ser a Vontade conhecida imediatamente, e em si, na autoconsciência, tam bém se encontra nessa mesma consciência a consciência da liberdade. Contudo, esqueceu-se que o indivíduo, a pessoa, não ê vontade como coisa-em-si, mas como FENOMENO da Vontade, e enquanto tal já ê determinado e aparece na forma do fenômeno, o princípio de razão. Daí advêm o fato notável de que cada um se considera a priori a si mesmo como inteiramente livre, atê mesmo em situações isoladas, e pensa que poderia a todo instante começar um outro


decurso de vida, o que eqüivaleria a tornar-se outrem. No entanto, só aposteriori, por meio da experiência, percebe, para sua surpresa, que não é livre, mas está submetido à necessidade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 173).

Isto posto, em vista do que o frankfurtiano acabou de afirmar, não haveria outro motivo para 0 eu “se considerar a priori a si mesmo como inteiramente livre”, não fosse, na consciência de si, realizado aquele sentimento fundamental da absoluta potencialidade da Vontade, pois “a Vontade em si mesma e fora do fenômeno deva ser denominada livre, todo-poderosa” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 388). Este sentimento chega como certeza inquestionável, a tal ponto de, mesmo conhecendo que se está submetido ao principium individuationi, a consciência não se resigna a esta mesma condição de limitação, permanecendo, assim, como impulso, ânsia mesmo do exercício dessa absolutidade. Em outras palavras: No espaço e no tempo infinitos o indivíduo hum ano encontra a si mesmo como finito, em conseqüência, como uma grandeza desvanecendo se comparada àquelas, nelas imergido e, devido à imensidão sem limites delas, tendo sempre apenas um QUANDO e um ONDE relativos de sua existência, não absolutos. Pois o lugar e duração do indivíduo são partes finitas de um infinito, de um ilimitado (SCHOPENHAUER, 2005, p. 400-401).

Irremediavelmente, o eu fica por completo em uma angústia desoladora por apreender, isto é, por realizar na sua consciência um ímpeto que é totalmente contraditório com sua condição mesma de limitação, da qual ele não vê como se desvencilhar. Este impulso de absoluto poder sentido imediatamente na consciência do eu, do qual ele nunca vai se livrar, trava uma luta feroz com aquele auxílio, produzido pela Vontade mesma, para suprir necessidades em vistas de sua crescente complexidade e desvantagem frente a outros organismos da natureza, em uma palavra: o conhecimento, o qual funciona objetivamente como um instrumento da vontade, “como um dente na boca da serpente”, e que está totalmente focado, por sua natureza mesma, ao exterior, ou seja, na representação, que é o mesmo que dizer, na efetivação da Vontade, em sua multiplicidade, por isso mesmo lembrando ã consciência a todo instante de sua própria condição de limitação. E este também é 0 entendimento do Filósofo romeno Emil Cioran, para quem “Considerando-se as coisas de acordo com a natureza, o homem foi feito para viver voltado ao exterior. Se ele deseja olhar para si mesmo, deve fechar os olhos, renunciar a suas empresas, abandonar o imediato” (CIORAN, 1995, p. 1289). Sob a ótica desta consideração, entre esse impulso sentido que sempre se remete ao máximo e o conhecimento da individualidade como particularidade sempre se remetendo ao mínimo, lembrando como foi dito anteriormente, “a atuação cega da Vontade e a ação iluminada pelo conhecimento invadem uma o domínio da outra” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 216), fica a frágil consciência do homem, ora se deslocando mais para um lado, ora mais para o outro, num misto de desespero e engano, 0 que fundamentalmente podemos denominar de sofrimento. O sofrimento sempre vai ser, para a consciência, pela pespectiva do conhecimento, a lembrança constantemente atualizada de que não se é a Vontade “livre, todo-poderosa”, ou melhor, vai sempre nos lembrar da impossibilidade de exercer aquela absoluta potencialidade imediatamente sentida, no


âmbito do limitado, coisa que de modo algum é possível. E, como não lembrar aqui de Freud quando nos caracteriza, fundamentalmente, como um constante esforço entre o princípio de pazer e o princípio de realidade? Ou seja, entre o desejado e o possível? Consequentemente, a vida é um sofrimento infinito, do grau mais baixo da manifestação da Vontade, do organismo mais inferior que só inconscientemente está sujeito àquela contradição explícita acima, até o grau mais alto, representado pelo homem com sua consciência “clarividente”, no qual a dor provocada por aquela contradição por vezes o leva ã loucura ou ao suicídio. Nas palavras de Cioran: “A contradição faz parte de minha natureza e, no fundo, da natureza de todo m undo” (CIORAN, 1995, p. 131). É sempre e unicamente o esforço, “Pois todo esforço nasce da carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399), o estatuto natural da vida, enquanto, por fraqueza ou imaturidade, a consciência ainda não reconhece que este é o problema fundamental com o qual tem que se confrontar estrategicamente para amenizar o sofrimento, e ainda se encontra na opinião de que algum objeto em particular poderia trazer satisfação, apaziguamento definitivo para si mesmo, pois ainda acredita que o problema do seu sofrimento, de sua insatisfação, está fora de si mesmo enquanto consciência, imaginando que a obtenção de alguma coisa o libertaria de seu cativeiro; transita de uma lado para outro entre satisfação momentânea e tédio, em outras palavras, Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua existência mesma se lhe torna um fardo insuportável. Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre dor e tédio, os quais em realidade são os seus componentes básicos (SCHOPENHAEUR, 2005, p. 401-402).

Ao que Schopenhauer conclui: E assim se passam as coisas, ao infinito, ou, o que é mais raro e pressupõe uma certa força de caráter, até que encontremos um desejo que não pode ser satisfeito nem suprimido [grifo meu]: então, por assim dizer, temos aquilo que procurávamos, a saber, algo que a todo m omento poderíamos acusar, em vez de nosso próprio ser, como a fonte dos sofrimentos (SCHOPENHAUER, 2005, p. 410).

Ora, se “todo sofrimento propriamente dito provém da desproporção entre o que por nós é exigido e aquilo que nos é dado, desproporção esta, entretanto, que manifestamente só se encontra no conhecimento e poderia ser inteiramente eliminada por uma melhor intelecção” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 143-44), então este desejo único já foi encontrado! E não é outra coisa senão o desejo de exercer no particular o universal, o qual, consequentemente, traz ã consciência, o reconhecimento de que “ao conhecer no universal não conseguia reconhecer no particular, surpreendendo-se, com o que a pessoa fica fora de si” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 144), ou ainda, o que é o mesmo, nas palavras de Epicteto: “a causa de todos os males dos homens está em sua incapacidade de empregar os conceitos universais nos casos particulares” (EPICTETO, apud. SCHOPENHAUER, 2005, p. 144). Contudo, neste momento, ao invés de colocarmos a culpa em algo fora de nós mesmos, o que é impossível,


realizamos que o problema reside inegavelmente no íntimo de nossa própria consciência, ou seja, “não das circunstâncias externas mas do estado interior, da condição física” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 408). Assim, quanto mais o eu se detém na parte promovida pelo conhecimento, reforçando, peloprincipium individuationis, sua individualidade fenomênica, e consequentemente, tentando fazer efeito, nesta condição, àquela ânsia de universalidade a qualquer custo e de forma descontrolada, se engana a si mesmo e sofre pois, assim como, “Todo júbilo desmedido {exultatio, insolenslaetitia) assenta-se sempre sobre o engano de ter na vida encontrado algo que de modo algum pode nela ser encontrado, a saber, a satisfação duradoura dos desejos atormentadores ou das carências, que sempre dão origem a outros novos” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 409), assim também, “toda dor súbita e excessiva é justam ente a penas a queda de uma altura, o desaparecimento de um tal engano, consequentemente, condicionada por ele” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 409). Vale dizer, dói a queda vertiginosa da consciência na verdade de sua incompetência para efetivação do desejo de Ser na sua vontade a magnitude da Vontade em-si, justam ente proporcionado pelo autoengano. O que Cioran assina embaixo quando afirma: Se estivéssemos, a cada momento, conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensação da falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínua e intensa, cometeríamos suicídio ou cairíamos na idiotia. Só existimos graças aos momentos que esquecemos certas verdades e isso porque durante esses intervalos acumulamos a energia que nos permite enfrentar as ditas verdades (CIORAN, 2001, p. 127).

Em outra passagem arremata: “Eu sei que meu nascimento é uma casualidade, um acidente risível, e, não obstante, basta que me esqueça disso para comportar-me como se ele fosse um acontecimento capital, indispensável para a marcha e o equilíbrio do m undo” (CIORAN, 1995, p. 1273). Deste modo, para Schopenhauer, o sofrimento não é causado exteriormente, mas se dá apenas de uma perspectiva interna, vale dizer, já o trazemos em nós mesmos na medida necessária, uma medida que nunca está totalmente cheia nem totalmente vazia, e que em cada indivíduo ela medida é diferente. Nas palavras do próprio filósofo: em cada indivíduo a medida da dor que lhe é essencial se encontraria para sempre determinada através de sua natureza, medida essa que não poderia perm anecer nem vazia nem completamente cheia, por mais que mude a forma do sofrimento. Em conformidade com 0 dito, seu sofrimento e bem -estar não seria determinado pelo exterior, mas precisamente só por meio daquela medida, daquela disposição, a qual, devido a condições físicas, poderia vez por outra, em diferentes tempos, experimentar um acréscimo ou decréscimo, porém, no todo, permaneceria a mesma e nada mais seria senão aquilo denominado tem peram ento, ou, dizendo de maneira mais precisa, o grau de sensibilidade fácil ou difícil (SCHOPENHAUER, 2005, p. 407).

Sendo assim, e conclusivamente, com esta última afirmação, Schopenhauer responde àquela indagação inicial de Cioran que abriu nosso humilde artigo, qual seja, se haveria algum critério


objetivo para o sofrimento. Algo que o filósofo romeno, enquanto discípulo do filósofo alemão, aceita indiscriminadamente quando afirma: “Não há medida objetiva para o sofrimento, pois ele não tem como ser medido por uma excitação exterior ou indisposição local do organismo, mas pelo modo como é percebido e refletido na consciência” (CIORAN, 2012, p. 23). E, segundo sua função: O sofrimento abre nossos olhos, ajuda a ver o que não veríamos de outra forma. Portanto, só é útil ao conhecimento e, fora isso, não serve senão para envenenar a existência. O que, diga-se de passagem, favorece ainda mais o conhecimento. ‘Ele sofreu, logo, com preendeu.’ É tudo 0 que podemos dizer de uma vítima da doença, da injustiça, ou de não importa que variedade de infortúnio. O sofrimento não melhora ninguém (salvo aqueles que já eram bons), é esquecido como são esquecidas todas as coisas, não entra no ‘patrimônio da hum anidade’, não é conservado de maneira alguma, mas se perde como tudo se perde. Mais uma vez, não serve senão para abrir os olhos (CIORAN, 1995, p. 1378).


R E FE R ÊN C IA S

SCHOPENHAUER, Arthur.Omundocomovontadeecomo representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005. __________. Da necessidade metafísica do homem. Tradução de Arthur Versiani Velloso em Belo Horizonte, Editora ITATIAIA Ltda, 1960. SCHOPENHAUER, Arthur. “Suppléments”. Trad. A. Bourdieu. In: Le monde comme volonté et representation. Paris, PUE, 2004, pp. 671-1414.

CIORAN, Emil. “Écartèlement”. In: Oeuvres. Paris: Quarto/Gallimard, 1995. CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. Trad. de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012.

CIORAN, Emil. Exercícios de Admiração: ensaios e perfis. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.


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NIE1ZSCHE E A DOMESTICAÇÃO 00 ANIMAL MIMEM DIANY MARY FALCÃO ALVES - Mestranda em filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: fdianymary@hotmail.com / fdiany_mary@yahoo.com.br Resumo: 0 presente artigo tem como objetivo apresentar as ideias de Nietzsche no tocante ao es­ tudo sobre a domesticação do Homem. Para tanto utilizamos o livro “Genealogia da M oral” que retrata a denúncia de Nietzsche ao processo de civilização, processo este caracterizado pela cru­ eldade; aquisição da capacidade do homem em fazer promessas, a interiorização do sentimento de culpa, a formação da má consciência, a aplicação e aceitação do castigo; e por fim , os grandes construtores desta form a de adestramento do animal homem, criados pelo cristianismo. Destac­ aremos aqui, algumas considerações acerca do pensamento de Peter Sloterdijk, quanto ã crítica de Nietzsche ao Humanismo, dando destaque a denúncia de Nietzsche ao projeto de criação dos seres humanos. Palavras-chave: Homem. Domesticação. Cristianismo. Humanismo.


Introdução

N

o pensamento de Nietzsche encontramos uma crítica radical ao processo de formação do homem, a partir de uma denúncia da domesticação do homem. Entender de forma sistemática as análises de Nietzsche quanto ao desenvolvimento deste tema não é tarefa fácil. A complexidade dos escritos deste filósofo nos remete a diversas temáticas^, entretanto, podemos extrair da obra “Genealogia da Moral”

a tese nietzschiana de que o processo civilizatório é o da cruel domesticação do “homem animal de rapina”. Neste processo, a barbárie seria superada e a civilização se constituiria. Segundo Nietzsche a formação do homem foi marcada pela construção de valores, de uma cultura que ao longo de sua estruturação direcionou-se para um adestramento do animal homem, ou seja, para Nietzsche o sentido de toda cultura éam estrar o animal de rapina ”homem”, reduzi-lo a um

animal manso e civilizado, doméstico (Nietzsche, 1998, p.33). Essa definição atravessa todo o pensamento de Nietzsche, e através de uma genealogia da moral, ele reconstitui as condições e circunstâncias nas quais se desenvolveram e concretizaram-se os parâmetros desta cultura. Desse desenvolvimento, Nietzsche apresenta a aquisição da capacidade do homem em fazer promessas, a interiorização do sentimento de culpa, a formação da má consciência, a aplicação e aceitação do castigo, e por fim a presença do grande construtor desta forma de adestramento do animal homem: o “sacerdote ascético”.

Nietzsche e a Domesticação do Animal Homem

O marco inicial da domesticação do homem, explica Nietzsche, está na aquisição da capacidade de fazer promessas. Este é um pressuposto fundamental para o homem viver em sociedade. A faculdade de prometer deve está interiorizada na natureza humana, por outro lado, afirma Nietzsche, há no homem uma força contrária a esta faculdade, uma força inibidora ativa. Segundo Nietzsche

Criar um animal que pode fazer promessas - não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do hom em ?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento ^

O fato é que essa força inibidora ativa, esse esquecimento, inviabiliza no homem a capacidade de prometer, visto que o faz esquecer suas promessas. Foi então preciso desenvolver no homem uma faculdade oposta ao esquecimento, a faculdade de se lembrar, ou seja, a “memória da vontade”. Entretanto, a imposição desta faculdade não foi estabelecida de forma pacífica, calma,


espontânea. Esta veio através de um processo cruel, doloroso, denominado “mnemotécnica” Acusa Nietzsche. Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica. “Grava-se algo ao fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória “ - eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. (...) Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória ^

Esta técnica utiliza a dor para construir uma memória, isto faz com que as promessas, lembranças, sejam gravadas na consciência do homem. Deste processo de criar um animal capaz de fazer promessas surgiu o conceito de “responsabilidade”, que tom ouohom em atécertopontonecessário, uniforme, iguaisentre iguais, constante, consequentemente, confiável

Isto é apenas o início do longo processo de domesticação do “homem animal de rapina”,

onde 0 castigo é um procedimento fundamental. Estabelecido o conceito de responsabilidade, a capacidade de prometer, o homem passou a ter consciência, e condições para viver em sociedade, na medida em que passou a ter condições de lembrar e cumprir os contratos sociais; passando a ser útil, necessário e confiável. Segundo Nietzsche o nascimento do castigo não se resume ao fato de responsabilizar um delinqüente por seu ato. Seu nascimento está ligado a uma forma de reparação pelo dano sofrido. Seu desenvolvimento vem da “relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de ‘p essoas jurídicas’, e que por sua vez remete às form as básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico” (Nietzsche, 1998, p. 53). Nestas relações, o devedor deve infundir confiança, serenidade e a santidade em sua promessa de restituições. Para tanto se utiliza daquilo de que tem posse, como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou até mesmo sua vida. Sendo assim, o credor na reparação do dano sofrido, pode infligir ao corpo do devedor toda a sorte de humilhações e torturas. Neste sentido, o corpo do devedor serve de garantia e, sobretudo, serve de base que dá solidez á palavra, garantia de promessa. Este processo, afirma Nietzsche, remete a um tipo de compensação, ou seja, A satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre o impotente, a volúpia de “faire le mal pour le plaisir de le faire”, o prazer de ultrajar (...) Através da “punição” ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e m altratar alguém como “inferior” - ou então, no caso em que o poder de execução de pena já passou à “autoridade”, poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade^

O castigo não se limita apenas como uma compensação de um dano, Nietzsche explica que da relação contratual primitiva entre credor e devedor, o castigo passou para relações mais amplas, para as relações entre comunidades e seus membros, isto é, deixou de ser da ordem privada para tornarse público, político, jurídico, transformando-se em pena \ Este processo de reparação não define o


castigo, ^ segundo Nietzsche, este comporta diversos sentidos, pois “evidentemente o castigo está carregado de toda espécie de utilidades” (Nietzsche, 1998, p.69). Porém, há uma utilidade importante do castigo, é o fato dele ter “o valor de despertar no culpado o sentimento de culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada má consciência, remorso” (Nietzsche, 1998, p.70). Nietzsche relata uma provisória hipótese sobre a origem dessa má consciência: “Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças - a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da p a z ” (Nietzsche, 1998, p.72). Isto se deve ao fato do homem ter que inibir seus instintos selvagens em prol da formação de um Estado, ou melhor, de uma civilização, pois na medida em que 0 homem foi impedido de exteriorizar seus instintos, estes se voltaram para dentro de si, é o que Nietzsche denominou de “interiorização do homem”, o que depois para ele passou a ser denominado de “alma” ^ Vejamos que o castigo vai além do sentido de punição e reparação. Ele é o princípio que desperta no culpado um sentimento de culpa, uma reação psíquica denominada “má consciência”. De modo geral, declara Nietzsche. O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna “m elhor” - com maior razão se afirmaria o contrário. (“O prejuízo torna prudente”, diz 0 povo: tornando prudente, torna tam bém ruim. Mas infelizmente torna muitas vezes tolo)^

Definida como doença para N ietzsche, a “ ‘má consciência 'separou o homem do seu passado animal, exterminando os seus velhos instintos, nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que 0 inspirava” (Nietzsche, 1998, p.73). A contenção desses instintos primitivos na medida em que não puderam mais ser exteriorizados pelo homem, foram por ele interiorizados, impedindo-o de agir livremente sobre o outro. O homem passou a agir sobre si mesmo, e por conseqüência, tornou-se um animal doente e fraco. Esse processo deu lugar a um homem com valores morais novos, um homem que não é caracterizado por seu individualismo, mas por ser parte integrante de uma sociedade, ou melhor, um membro do Estado. Limitar a domesticação do homem ao contexto até agora descrito, tornaria o trabalho aqui realizado incompleto, pois o pensamento de Nietzsche sobre essa temática vai além das análises genealógicas do castigo. Ele parte para uma esfera mais complexa, segue em direção aos grandes construtores do adestramento do animal homem. Segundo Nietzsche, com “o advento do Deus cristão, o deus máximo, até agora alcançado, trouxe também ao mundo 0 máximo de sentimento de culpa”{Nietzsche, 1998, p.79). O desenvolvimento do sentimento de culpa se deve ao entrelaçamento da má consciência com a noção de Deus. A interiorização da ideia de que o homem se situa como um devedor perante Deus, seu


credor, tornou-se para ele instrumento de suplício, na medida em que “apreende em Deus as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta esses instintos com culpa em relação a Deus” (Nietzsche, 1998, p. 81). Para Nietzsche o acontecimento fundamental dentro desta relação entre homem e Deus, ou seja, entre devedor e credor, está no mais surpreendente golpe de gênio do cristianismo; parte do acontecimento em que o próprio Deus se sacrifica pela culpa dos homens, o próprio credor que paga a si mesmo por amor a seu devedor Deste modo, temos toda uma trajetória de fatos que culminou na domesticação do homem e fez deste um animal manso, domável, a partir do momento em que este não pode mais exteriorizar seus instintos. O homem contraiu uma doença chamada “má consciência”, tornou-se um ser decadente, fraco e que encontrou no cristianismo um caminho de livrar-se do “castigo eterno” Já terão adivinhado o que realmente se passou com tudo isso, e sob tudo isso: essa vontade de se torturar, essa crueldade reprimida do bicho-homem interiorizado, acuado dentro de si mesmo, aprisionado no “Estado” para fins de domesticação, que inventou a má consciência para se fazer mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada esse homem da má consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu automartirio a mais horrenda culminância “

Agora, 0 homem tornou-se manso, útil, domesticado. Contudo tornou-se também doente devido sua má consciência, e buscou a cura de sua alma enferma. É preciso encontrar a razão, o sentido desse seu sofrer para que possa se curar. Para tanto, o cristianismo colocou em ação um servidor para ajudá-lo na sua busca, o “sacerdote ascético”, que não hesitou em tomar a seu serviço toda a matilha de cães selvagens que existe no homem, tendo a função de despertar o homem da sua longa tristeza, de sua miséria, sempre tendo como base uma interpretação e justificação religiosa A grande estratégia do sacerdote ascético foi transform ar no homem o seu sentimento de culpa em pecado. O homem, portanto, é um pecador e, ele sofre com essa condição. Desta forma, torna-se ainda mais doente. Mas é através do cristianismo, em destaque, com o sacerdote ascético, que ele vai procurar sua cura. Tal condição doentia induz o homem a constituir-se em rebanho, na ânsia de superar a depressão que o aflige. Formado o rebanho ele precisa de um pastor que o guie, pois este rebanho está doente, e ninguém melhor do que o sacerdote Pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e dom ador de animais de rapina, em volta do qual tudo o que é sã torna-se necessariamente doente, e tudo doente necessariamente manso. De fato ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor - ele o defende de si mesmo, da baixeza, perfídia, malevolência que no próprio rebanho arde sob as cinzas, e do que mais for próprio de doentes e combalidos; ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado

Esta é a visão de Nietzsche quanto ao sacerdote ascético, esse pastor que cuida do rebanho

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de homens

seu trabalho é o de manter o ressentimento na direção do culpado, na medida em que ele

chega como curador ele também insere no homem o veneno, fazendo com que este sempre tenha em mente a pergunta: “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado”. Porém existe um pastor que conforta, descarrega afeto para alívio do sofredor, ou seja, entorpece a dor através do afeto revelando: “Isso mesmo minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém.” (Nietzsche, 1998, p. 117) Contudo, esse trabalho dedicado do sacerdote ascético não melhorou em nada o homem, não 0 curou de sua doença, não o deixou forte. Nietzsche é bem claro quanto a isso: Que um excesso do sentimento tal como costuma prescrever a seus doentes o sacerdote ascético (sob os nomes mais sagrados, naturalm ente, e convencido da santidade do seu intento), tenha realmente beneficiado algum enfermo (...) Seria preciso ao menos entenderse quanto ao sentido da palavra “benefício”. Querendo-se com ela exprimir a idéia de que tal sistema de tratam ento melhorou o homem, não discordo: apenas acrescento que, para mim, “ “m elhorado” significa - o mesmo que “domesticado”, enfraquecido”, “desencorajado”, “refinado”, em brandecido”, “em asculado” (ou seja, quase o mesmo que lesado...)

Para Nietzsche o cristianismo foi o grande consolador dos doentes. Para tanto, usou diversos artifícios, para dar sentido ao sofrimento. Ofereceu-se como salvador do castigo eterno, criou normas de condutas, apresentou o sacerdote como um pastor para conduzir o rebanho de homens, introduziu o conceito de um mundo imaginário. Além do mais, criou um Deus e fez com que o homem preferisse “querer o nada a nada querer” (Nietzsche, 1998, p. 149), pois o homem “não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo - não importando no momento para que direção, com que fim , com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva. ” (Nietzsche, 1998, p. 149). De fato, as análises de Nietzsche nos permitem extrair, traços relevantes da domesticação. Aos poucos, a civilização foi adestrando o homem, tirou-lhe individualidade, sua liberdade, sua força, para criar um animal domesticado, constante, confiável e útil à sociedade. Os “Melhoradores” da Humanidade

se incubiram de am ansar o animal homem, não

se restringiram apenas ao seu aspecto físico, ou seja, ao corpo, mas estendera ao aspecto psíquico, inserindo-lhe conceitos e normas a serem seguidas em troca de uma promessa de salvação e acolhimento em um mundo divino.

A crítica de Nietzsche ao Humanismo segundo Peter Sloterdijk

Em um colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas, em julho de 1999, foi apresentada pelo filósofo Peter Sloterdijk, uma conferência intitulada “Regras para o parque hum ano”, em que


acarretou uma acirrada polêmica na opinião pública alemã, na medida em que tratou de temas como diagnóstico pré-natal, tecnologia genética e a relação entre a educação formal e o ideal humanista de domesticação do homem através da leitura. Na citada conferência argumentou-se que o modelo de organização das sociedades modernas tradicionais se assenta num “modelo literário-epistolar de construção de amizades através da leitura”, de forma a condicionar a produção de suas sínteses políticas e culturais. Contudo, destacaremos aqui, algumas considerações que o autor faz acerca do pensamento de Nietzsche e a questão da domesticação do homem. Sloterdijk ver em Nietzsche um grande crítico do ser humano como força domesticadora e criadora. Tal afirmativa está bem exposta na citação que o autor, faz de Nietzsche, no titulo “ Da virtude apequenadora”, do Zaratustra, onde o personagem observa as pequenas casas dos homens e lamenta: E Zaratustra parou e pensou. Finalmente, disse, entristecido: ‘Tudo ficou m enor!’ Em todos os lugares, vejo porões mais baixos: quem é do meu porte provavelmente ainda consegue passar, mas - terá de se curvar! ...Ando por entre esse povo mantendo os olhos abertos: eles se tornaram menores e ficam cada vez menores: - nisso, contudo, consiste sua concepção de felicidade e virtude. ...Alguns deles querem; quanto à maioria, porém, outros querem por eles...

Para Sloterdijk, Nietzsche traz nesse texto “um discurso teórico sobre o ser humano como força domesticadora e criadora” (Sloterdijk, 2000, p.39). Demonstra o alcance satisfatório do homem como criador que conseguiu fazer do homem selvagem o último homem. Entretanto, este não se faz somente com os métodos humanistas de domesticação, adestramento e educação, segundo Sloterdijk A tese do ser hum ano como criador de seres hum anos faz explodir o horizonte humanista, já que 0 hum anism o não pode nem deve jam ais considerar questões que ultrapassem essa domesticação e educação: o hum anista assume o homem como dado de antemão e aplicalhe então seus métodos de domesticação, treinam ento e formação - convencido que está das conexões necessárias entre ler, estar sentado e acalmar “

Na visão de Nietzsche existe um horizonte mais sombrio para além do horizonte da domesticação escolar dos homens

há “um espaço no qual lutas inevitáveis começarão a travar-se

sobre o direcionamento da criação dos seres humanos” (Sloterdijk, 2002, p.40) Da percepção de Zaratustra tem-se um resultado de uma política de criação: a criação de homens, integrados por uma combinação ética e genética, de forma a criar-se a si mesmos para serem menores, do qual se submetem ã domesticação e uma seleção que o direcionam para a formação de uma sociabilidade ã maneira de animais domésticos. Nesse contexto, apresenta-se a crítica ao humanismo de Zaratustra, e Nietzsche vê nesse processo uma aplicabilidade de seleção, onde criadores moldam os seres humanos para serem pacíficos e inócuos, de forma que não representem ameaça uns para os outros. Com o intuito de arejar o mistério da domesticação do gênero humano, Nietzsche nomeia os representantes do monopólio de criação, refere-se aos padres e professores dos quais se apresentam como amigos dos homens. Para Sloterdijk:


Esse é 0 conflito fundamental que Nietzsche postula para todo futuro: a luta entre os que criam 0 ser hum ano para ser pequeno e os que o criam para ser grande - poder-se-ia tam bém dizer entre os hum anistas e os super-hum anistas, amigos do homem e amigos do “super-hom em ”

Ao tratar do “super-homem”, Nietzsche procura desmontar a forma de produção de seres humanos empreendidos até o momento, para tanto retoma como medida os remotos processo milenários, que em seu desenvolvimento tiveram entrelaçados os conceitos de criação, domesticação e educação, ou seja, “um empreendimento, é verdade, que soube manter-se em grande parte invisível e que, sob a máscara da escola, visava ao projeto de domesticação.'" (Sloterdijk, 2000, p. 41) Para Sloterdijk, é provável que Nietzsche tenha adentrado um pouco demais, quando divulga de forma sugestiva que a transformação do homem em animal doméstico, tenha sido um trabalho premeditado de uma associação pastoril de criadores, ou seja, um projeto do clero onde se pode perceber ''tudo o que no homem poderia resultar em voluntariedade e autonomia e contra o qual imediatamente fa z uso de métodos de apartação e mutilação.” (Sloterdijk, 2000, p. 42). Entretanto, Sloterdijk, caracteriza tal ideia com um pensamento híbrido, pois de um lado porque concebe o processo de criação potencial como de muito curto prazo - como se bastassem algumas gerações de domínio dos padres para transform ar lobos em cães e homens primitivos em professores de Basiléia; ele é ainda mais hibrido, porém, porque supõe um planejador quando se deveria antes contar com uma criação sem criadores, um impulso biocultural sem sujeito

Sloterdijk admite momentos de exagero e de anticlericalismo suspeito na ideia de Nietzsche. Mas ele reconhece na ideia “um cerne suficientemente sólido para estimular uma refiexão posterior sobre a humanidade para além da inocuidade hum anista” (Sloterdijk, 2000, p.43). Trata da denúncia de Nietzsche ao projeto de criação dos seres humanos, onde por um lado, existem os que criam o homem para ser pequeno, por outro, os criam para ser grande, assim como a divisão dos homens entre aqueles que domesticam e os que aceitam ser domesticados.


Considerações Finais

Na “Genealogia da Moral” de Nietzsche extrairmos a tese de que o processo civilizatório é 0 da cruel domesticação do “homem animal de rapina”, como também, encontramos uma denúncia sobre a domesticação apequenadora do homem pelo homem, representado na rapsódia de “Zaratustra”, através das análises de Peter Sloderdijk. Segundo Nietzsche, o castigo não se restringe a um procedimento de punição ou de reparação, mas se fixa como um procedimento fundamental para a construção de uma memória ativa no homem, e fez com que ele se tornasse um animal capaz de fazer promessas e cumpri-las. Tornou-se um princípio que desperta no culpado um sentimento de culpa, uma reação psíquica denominada “má consciência”. Esta “má consciência” é denominada por Nietzsche como a doença que separou o homem do seu passado animal, pois o induziu a exterminar os seus verdadeiros instintos. A interiorização de conceitos como, pecado; culpa; salvação; má consciência, dentre outros, conduziu o homem a uma luta constante contra o castigo eterno. Todoessecontextolevouohomem atorna-seumserfranco,decadentee, consequentemente, passivo de dominação. A condição doentia do homem domesticado, do homem que foi impedido de extravasar seus instintos, é tentar afirmar a vida em outro plano que não ã realidade. Nessa condição doentia, o homem passou a constituir-se em rebanho, com o intuito de combater, por meio da coletividade, a depressão que o afligia, tendo como saída a sua entrega aos cuidados do sacerdote ascético. Nietzsche ressalta, que com o advento do cristianismo, essa dominação foi intensificada. Por meio do sacerdote ascético, representante fundamental do cristianismo, o homem passou a ser um animal adestrado e manso. É no ideal ascético que ele vai encontrar um sentido para seu sofrimento, e 0 papel do ascetismo é manter a direção da culpa no próprio homem. Por fim, 0 pensamento de Peter Sloterdijk trouxe para nossa apresentação, outro elemento importante para o tema: Humanismo como escola da domesticação. Com suas análises acerca do pensamento de Nietzsche, Sloterdijk retrata que a domesticação do homem é um grande impensado, do qual o humanismo desde a antiguidade até o presente desviou os olhos.


NOTAS ^ Dentre os tem as abordados no pensam ento de Nietzsche podemos citar o niilismo, a transm utação dos valores, vontade de poder. Deus, cristianismo, educação, hum anism o, modernidade, etc. O trabalho aqui desenvolvido remete-se a questão da domesticação do homem, embora o estudo desta temática em Nietzsche esteja entrelaçada em diversas obras como “Assim Falou Z aratustra”; “Crepúsculo dos ídolos”; “Humano, demasiado H um ano”. Nesse trabalho limito-me às análises contidas na obra “Genealogia daM oral”, face a abrangente forma de apresentação de Nietzsche quanto ao assunto estudado. ^ Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica.Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 47. Aqui podemos citar Foucault em suas análises sobre a constituição do pensamento ocidental, na obra “Vigiar e Punir”, 0 filósofo apresenta o corpo como peça central de um jogo de dominações e submissões das relações existentes entre poder e saber, sendo este corpo um local de registro de marcas e sinais. Para tanto, tem como ponto de partida a extinção dos suplícios, a decorrente suavização das penas e o aperfeiçoamento das disciplinas no contexto histórico da França na segunda metade do século XVlll. Foucault destaca três critérios principais que norteiam a aplicação da pena de suplício, entre eles, estar a finalidade do suplício em deixar registrado as marcas no corpo do supliciado. Em um trecho descreve Foucault: em relação ã vitima, o suplício deve ser marcante, a ponto de imprimir marcas que não se apaguem (Foucault, 1987, p .31). Ou seja, o suplício deve de tal forma ficar impresso tanto na memória “intelectual” como “corporal” do criminoso. Tais sinais têm o intuito de m anter acessa, na memória do supliciado, a lembrança da punição, como também deixar na memória do público a lembrança da punição daqueles que desacataram as ordens do soberano. 5 Op.cit. p.50. «Op.cit. p. 48. ^ Op.cit. p. 54. * Op.cit. p. 59. ^Nietzsche descreve um extenso elenco de sentidos do castigo: “Castigo como neutralização, como impedimento de novos danos. Castigo como pagam ento de um dano ao prejudicado, sob qualquer forma (também na de compensação afetiva). Castigo como isolamento de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da perturbação (...) Castigo como compromisso com o estado natural da vingança, quando este é ainda mantido e reivindicado como privilégio por linhagens poderosas. Castigo como declaração e ato de guerra contra um inimigo da paz, da ordem, da autoridade, que, sendo perigoso para a comunidade, como violador dos seus pressupostos, como rebelde, traidor e violentador da paz, é combatido com os meios que a guerra fornece Op.cit. p. 69. 1» Op.cit. p. 78-80. ^^Opcit. p. 80. 12 Op.cit. p. 129. Op.cit. p. 116. Esta formação de rebanho será tratada por Peter Sloterdijk no livro “Regras para o parque humano", e será citado no tópico seguinte deste trabalho, onde apresentarem os algumas indagações de Sloterdijk. Op.cit. p. 131. i'’Vejamos o que diz Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos sobre os “M elhoradores” da Humanidade: “ Em todos os tempos se quis “m elhorar” o homem: a isto, sobretudo se chamou moral. Mas sobre a mesma palavra se escondem as mais diferentes tendências. Tanto o am ansam ento da besta homem, quanto o aprim oram ento de um determinado gênero de homens é denominado “m elhoria”: somente estes termos zoológicos exprimem realidades - realidades, sem dúvida, das quais 0 típico “m elhorador”, o padre, não sabe nada - nem que saber... Denominador o am ansam ento de um animal sua “m elhoria” é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida de que ali a besta seja “m elhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos danosa, torna-se, pelo sentimentos depressivo do medo, pelas feridas, pela fome, uma besta doentia. - Não é diferente com o homem amansado, que o padre “melhorou”. Na Antiga Idade Média, onde de fato a Igreja era antes de tudo uma Ménagerie, se dava caça por toda parte aos mais belos exemplares da “besta loira” - “m elhoraram ”, por exemplo, os nobres germanos. Mas qual foi, posteriormente, o aspecto de um tal germ ano “m elhorado”, sedutoram ente conduzido ao claustro? Uma caricatura de homem, como um aborto: ele se tornou em “pecador”, ele estava na jaula, haviam-no trancado entre puros conceitos apavorantes... Ali jazia ele, doente, enfezado, malévolo contra si mesmo: cheio de ódio contra os impulsos á vida, cheio de suspeita contra tudo o que era ainda forte e feliz. Em suma “cristão”... Para falar fisiologicamente: no combate com a besta o tornar-doente pode ser o único remédio para enfraquecê-lo. Isso a Igreja entendeu: corrompeu o homem, enfraqueceu-o - mas teve a pretensão de tê-lo “m elhorado”...” Cf. NIETZSCHE. Obras incompletas. Coleção: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978. p.336) 1^ Cf. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: uma resposta a Carta de Heidegger sobre o Humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo, Estação Liberdade, 2000, p. 38. « Op. cit. p. 39.


Para um melhor entendim ento sobre a educação na visão humanística ver o que relata Jorge Larrosa, no \\vroN ietzche& a Educação, tradução Alfredo Veiga-Neto, Belo Horizonte, Autêntica, 2002. Neste livro o autor faz um estudo do pensamento de Nietzsche na medida em que este desmonta os pressupostos hermenêuticos da velha educação humanística, bem como a ideia de formação, de Bildung, estabelecida por Nietzsche. ^ ° O p .c it.p A l. Op. cit. p. 42.


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RFMSTA

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NIILISMO E ÉTICA: A "FILOSOFIA 00 NAOA" EM SOAS RELAÇÕES COM 0 AGIR ROMANO ANTUNES FERREIRA DA SILVA - Mestre em filosofia pela universidade federal da paraíba (UFPB). Professor de filosofia na faculdade de filosofia, ciências e letras de cajazeiras (FAFIC). Email: antunnes_ferreira@hotmail.Com Resumo: Este artigo analisa a fundamentação contemporânea da ética. A Filosofia Clássica (especifi­ camente, as teorias filosóficas de cunho platônico-aristotélico-tomista) defende que está na Metafísica o fundamento da moralidade. Não épossível afirmar, especialmente após o existencialismo e afenomenologia, que se pode manter esta pretensa fundamentação por parte da Metafísica, que atualmente ja z na descrença à ideia de essência. Após a formulação da ética como puramente descritiva e não prescritiva (segundo A rthur Schopenhauer) e do Niilismo, especificamente com o ideal do super-homem (segundo Friedrich Nietzsche), percebem-se algumas luzes num cenário que se denomina vazio ético. 0 parâmetro da comunicação (segundo Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas), da responsabilidade (segundo Hans Jonas), e algumas conscientizações (da dignidade da pessoa humana, da interdependência dos povos e da ecologia) surgem, então, como possibilidades de uma fundamentação que transcende o particular a um imperativo ético universalista. Palavras-chave: Ética. Fundamentação. Niilismo. Abstract: This article initially aims to analyze the contemporaneousfoundation ofethics. Classical Philosophy (specifically, philosophical theories o f stamp Platonic-Aristotelian-Thomist) argues that the Metaphysics is in the foundation ofmorality. It is unknown ifthese days, especially after the existentialism and the phenomenology, you can still keep this supposed justification on the p a rt o f Metaphysics, which currently lies in the rubble ofthe existence o f disbelief over the idea ofessence. Afterformulation ofethics as a discipline purely descriptive, not prescriptive (in A rthur Schopenhauer) and ofNihilism, specifically with the ideal ofthe superman who breaks every collective bias in detriment ofthe satisfaction ofm an evolved, generating a narcissistic individualism (in Friedrich Nietzsche), one sees some lights in a setting that is called ethical vacuum. The parameter o f communication (in Karl-Otto Apel and Jürgen Habermas), of responsibility (in Hans Jonas), and some realizations (ofhum an dignity, ofthe interdependence ofpeople and ecology) then emerge as a possibility ofa foundation that transcends the particu­ lar and subjective to a universalist ethical imperative. Keywords: Ethics. Foundation. Nihilism.


I - Introdução A fundamentação contemporânea da ética é o problema posto que aqui se pretende tratará Nos dias atuais, após o existencialismo e a fenomenologia, ainda se pode manter esta pretensa fundam entaçãoéticaporpartedaM etafísica?Assim ,ém isterestudarascontem porâneaspossibilidades desta fundamentação.

II - Fundamentação clássica da ética na metafísica

P

latão foi 0 primeiro filósofo a especular metafisicamente sobre a existência de dois mundos distintos e, por vezes, contraditórios. Segundo ele, há um mundo feito de sombras, de “aparências”, revelado ao intelecto humano por meio dos sentidos, e

que, por isso, é percebido de modo insatisfatório através das ilusões de mudança e provisoriedade que dele se captam. Este mundo não pode ser real, pois está subjulgado à mutabilidade e, consequentemente, ao declínio.

O outro mundo é o mundo das essências, das “formas”. Imutável e permanente, só pode ser

alcançado pelo intelecto. Há nesta teoria filosófica, a supervalorização do mundo dito “real” (aquele que é alcançado puramente com o auxílio do intelecto) e a desvalorização do mundo “irreal” (aquele no qual se vive, visto que este é conferido pelos sentidos, que, por sua vez, sempre conduzem ao erro da mutabilidade). Esta teoria platônica cria as essências, as formas, os modelos a partir dos quais todos os seres com quem se tem contato através dos sentidos são plasmados. Deste modo, a natureza humana não é imanente, mas transcendente, pois tudo de valor está de algum modo além da “realidade”. Tem-se, então, a noção de natureza (essência) que está igualmente “além” das vivências cotidianas, portanto, metafísica e que, por sua vez, deve fundamentar as ações humanas. Em outras palavras, o “ser” (postulado essencialmente pela Metafísica da Ontologia^) é 0 fundamento das ações humanas neste plano de realidade que, na verdade, é mera cópia do plano “além”. Percebe-se nas palavras de Jolivet o argumento daqueles que defendem tal fundamentação metafísica da ética:

' Duas ressalvas se tornam im portantes neste estudo, denom inam os “Filosofia Clássica” as teorias filosóficas de cuniio platônico-aristotélico-tom ista, especialm ente a corrente filosófica seguida pela Igreja Católica Apostólica Romana. Não obstante, a distinção m oderna entre os term os moral e ética, os usarem os, em algum as vezes neste texto, com o mesmo sentido, reproduzindo o mesmo entendim ento antigo desta questão que não enxergava ainda a diferença entre ambos. ^ Expressão usada incorretam ente. E ntretanto, justifica-se o seu uso pelo fato de não ser aqui relevante a diferenciação entre ambas, visto que foi criada bem posteriorm ente ao tem po no qual esta questão é neste texto abordada.


As leis morais estão em função da natureza do homem. Se a Moral é a ciência da conduta moral do homem, como poderiam form ular as leis desta conduta sem refletir, ao menos implicitamente, à natureza do homem?^.

É do conhecimento da natureza do homem que se pode, segundo o ponto de vista da Filosofia Clássica, deduzir os princípios mais gerais da conduta humana. Jolivet reafirma: O conhecimento do homem, aqui, deve ser o de sua realidade profunda, de sua essência, e de sua natureza, de sua origem e de seu destino, o que quer dizer que é de ordem metafísica. [...] O papel da Moral será, portanto, a partir deste juízo universal sobre o bem e o dever do homem, o de deduzir os deveres particulares da conduta humana, tanto individual como social"^.

Contraditoriamente a estes argumentos, Immanuel Kant, filósofo alemão do século XVIII, interessado nos limites do conhecimento, acabou fazendo uma revelação que mudaria definitivamente a pretensão da Metafísica em fundamentar a ética. Em seu livro intitulado Crítica da Razão Pura, ele afirmou que não se pode conhecer o mundo como ele é “em si”. Deste modo, Kant nega a teoria platônica de que o mundo ideal só pode ser alcançado pelo intelecto, porque, segundo Kant, o mundo das formas é incognoscível, ou seja, “ [...] ele existe, mas está para sempre fora do alcance”^ Se, portanto, o mundo real é mesmo aquele no qual se vive e não aquele que era postulado como “além”, não pode ser neste “além” onde se podem fundamentar as ações humanas, mas tão somente neste mundo real no qual nos inserimos. A Metafísica, pois, perde seu status de fundante da ética. Além do já exposto, Lauxen® argumenta também que o tipo de entendimento escolástico de Metafísica (Ontologia) em consonância com o conceito de substância imutável, eterna e uma, se torna completamente oposta ao agir humano, caracterizado pelo extremo oposto da contraditoriedade, mutabilidade, fato que corroboraria com a ideia de que não cabe ã Metafísica (pelo menos ã Ontologia de substância) a fundamentação da ética. Longe de resolver o problema, com esta constatação cria-se um problema ainda maior: se não se pode fundar a ética na ontologia, onde encontrar as bases que lhe alicerçam? Aqui, tenta-se analisar a possibilidade deste fundamento que, nos dias atuais, está baseado muito mais da mutabilidade e na contraditoriedade e, portanto, naquela corrente que se denomina Niilismo, ou “filosofia do nada”.

III - O surgimento da “filosofia do nada” (niilismo) A idade contemporânea se destaca como a época na qual o N iilismo é mais fortemente postulado.

^ 5

JOLIVET, R. Curso de filosofia, p. 350, grifos do autor. JOLIVET, R. Curso de filosofia, p. 351, grifos do autor. ATKINSON, S. O livro da filosofia, p. 220. Cf. LAUXEN, R.R. É necessária a metafísica para fundam entar 0 agir humano? A resposta de Paul Ricoeur, p. 94.


Entretanto, a teoria em si não é tão jovem, pois retoma aos primórdios da Filosofia, especificamente a partir do filósofo sofista^ Górgias (485 a.C. a 380 a.C.). Em sua teoria em defesa da existência no nada, ele elenca quatro argumentos basilares de niilismo: I - nada existe; II - se existe, não pode ser inteligível; III - se inteligível, é não comunicável; IV - se comunicável, é não compreendido. Concluindo: o ser não pode ser fundamentado sob nenhum aspecto. Deste modo, inaugura-se a “filosofia do nada” - o niilismo. O termo “niilismo” reporta à época da Revolução Francesa, especificamente por meio do escritor russo Turgueniev. No meio filosófico foi empregado por Friedrich Sclhegel, Johann Fichte e Friedrich Hegel. Mas é após a teoria de Fridirech Nietzsche que a “filosofia do nada” ganha seu entendimento contemporâneo. De certo modo, o niilismo filosófico contemporâneo retoma, em decorrência talvez da formulação da teoria do caos e em contrapartida às teorias cosmológicas da antiguidade grega e cristã católica, a revelação da ausência de fundamento e verdade às coisas em si. Torna-se mola propulsora da inovação, da quebra de valores e desmistificação de muitas teorias tidas como “verdadeiras”. O mais alto grau da reflexão filosófica sobre o niilismo é atingido a partir das teorias nietzschianas, que, por sua vez, influenciam outros filósofos como Martin Heidegger, Gilles Deleuze, Emil Cioran. Não se pode esquecer o tom niilista da filosofia voluntarista de Arthur Schopenhauer, que, não intencionalmente, começa e conclui sua obra magna 0 mundo como vontade e como representação afirmando que “o mundo é o nada”. O niilismo renega qualquer valor metafísico e redireciona sua atividade teórica para a destruição da moral, levando todas as coisas ao vazio, retirando da vida qualquer sentido extraterreno (como defendiam platônicos e, posteriormente, cristãos). Vê-se, pois, um embate entre: I - o Ser (defendido pela Ontologia platônica e adorado por cristãos como “deus”) entendido como a essência e a fonte da verdadeira realidade de tudo o que existe neste plano material apenas enquanto sua manifestação; e II - 0 Existir (defendido por materialistas, niilistas, existencialistas, pela fenomenologia, dente outros) para os quais toda e qualquer fundamentação extraterrena é simplesmente vã e infundada. Em outros termos, temos o embate entre essência e existência, entre o Ser e o Nada, para o qual se afigura a vitória, nos tempos da Filosofia atual, da existência e do nada em detrimento da essência e do ser. Como já não é possível postular um “além” que fundamente e legitime as ações humanas, se faz necessário criar este fundamento. Neste sentido, o niilismo não é só uma teoria de destruição propriamente dita, mas também uma vertente de reformulação, de reconstrução, no sentido de fornecerão homem a possibilidade de criar seus próprios valores, de certo, munido de suas experiências

’ A expressão “filósofo sofista” aqui é usada no m oderno entendim ento de que os sofistas tam bém são filósofos, o que rompe a tradição platônico-aristotélica de associar sofisma à falácia e ao erro em virtude do modo divergente com o qual os sofistas “faziam ” filosofia, a saber: cobrando pela transm issão dos saberes filosóficos, o que, na época, foi tido como agravante do erro de sua filosofia de cuniio retórico.


existenciais e materiais. Nesta criação reside a análise do agir contemporânea.

IV - A filosofia do nada e a ética: Schopenhauer (ética não-prescritiva) e Nietzsche (ideal do super-homem) A ética fundada na ideia de um “além”, das essências, no campo da imutabilidade, não pode ser entendida a não ser como uma ciência prescritiva, ou seja, aquela que prescreve qual o modo das ações humanas. Assim, podemos perceber que toda teoria ética clássica (socrática, platônica, aristotélica, epicurista, hedonista, entre outras) tende a m ostrar aos homens de sua época o modo mais certo de ação em conformidade com sua concepção ideal das essências imutáveis que, por sua vez, estavam no “além”. Em outras palavras, uma determinação direta do agir humano. Uma vez que se postulou que esse “além” não pode ser mantido como verdadeiro, a ética perde seu sentido prescritivo para ganhar um entendimento puramente de ciência normativa, ou seja, não mais prescreve o modo como a pessoas pensam ou se comportam, mas o modo como as pessoas devem pensar ou se comportar, sendo, pois, uma ética de criação de modelos, ou no entendimento da filosofia kantiana, uma “ética do dever”. Diferentemente das abordagens éticas descritas anteriormente, Schopenhauer não pretende prescrever boas ações, mas investigar a base de toda boa-ação moral. Ora, sendo o “em-si” (no caso schopenhaueriano especificamente denominado “Vontade”) livre, uma ética prescritiva é tão pouco eficaz quanto uma estética normativa. Assim como esta não forma o gênio, aquela não forma o homem bom. Segue-se, então, que a ética schopenhaueriana, diferentemente das formulações anteriores e contemporâneas ã sua, é meramente descritiva^ pois investiga o solo da boa ação, sem jam ais a ensinar®. Nas palavras do próprio filósofo:

Uma moral sem fundação, portanto um simples moralizar, não pode fazer efeito, pois não motiva. Uma moral, entretanto, QUE motiva, só pode fazê-lo atuando sobre o amor próprio. O que, entretanto, nasce daí não tem valor moral algum. Segue-se assim que, mediante moral e conhecimento abstrato em geral, nenhum a virtude autêntica pode fazer efeito, mas esta tem de brotar do conhecimento intuitivo, o qual reconhece no outro indivíduo e mesma essência que a própria. Pois a virtude de fato provém do conhecimento, porém não do conhecimento abstrato, comunicável em palavras. Se fosse este o caso, poderia ser ensinada e, desse modo, ao expressarmos aqui a sua essência e o conhecimento que está em seu fundam ento teríamos eticamente melhorado todo aquele que nos tivesse compreendido^.

* Uma crítica constantem ente feita a Schopenhauer é que suas teorias éticas nunca chegaram a orientar sua práxis. Entretanto, 0 discurso ético schopenhaueriano é m eram ente reflexivo, acontece sempre na observação e não tem intenção de determ inar nenhum a práxis, pois cabe à Filosofla apenas descrever a realidade, jam ais prescrever o que quer que seja (cf. CARDOSO, 2008, p. 105). ® Cf. BARBOZA, J. Schopenhauer, p. 43. “ SCHOPENHAUER, A. M V R I§ 66, p. 468.


Vê-se, pois, que a ética é aqui entendida não como uma questão de dever nem de obrigação, mas de observar o mundo com a perspectiva correta. Em outros termos, a postulação ética schopenhaueriana consiste numa ética não interessada em recompensas, como prega o Cristianismo, e não se caracteriza pela sustentação de nenhum dever absoluto ou princípio moral universal, não sendo, pois, uma teoria de deveres, nem uma ética de prescrições” , tendo em vista que querer determinar uma ética prescritiva seria “ [...] tão tolo quanto inócuo, pois a Vontade em si é absolutamente livre e se determina por inteiro a si mesma, não havendo lei alguma para ela”^^. Fortemente influenciado pela leitura de Schopenhauer, o filósofo Nietzsche se destaca, conforme já mencionado anteriormente, como o principal teórico do niilismo contemporâneo. O princípio de ruptura entre ele e Schopenhauer se dá quando este postula que o meio mais adequado de se lidar com a vida terrena, caracterizada por uma cadeia de aspirações infindas que leva o ser humano ao constante e inevitável sofrimento, é anulando-se, desejando não desejar. Schopenhauer utiliza o termo latino noluntas (negação de si mesmo) como o mais adequado a ser empregado a este estado de espírito. Em contrapartida a esta teoria da negação, Nietzsche postula a afirmação da vontade de viver e 0 autodomínio como mecanismos de dominação dos mais fracos. São claramente perceptíveis traços de evolucionismo^^ nesta filosofia da autoafirmação, quando se afirma o ideal do super-homem como modelo das ações humanas. Nas palavras de Durant: NIETZSCHE ERA FILHO de Darwin [...]: se vida é uma luta pela existência na qual os mais capazes sobrevivem, então a luta é a virtude máxima, e a fraqueza o único defeito. B o m é aquilo que sobrevive, que vence; m a u é aquilo que cede e fracassa” .

A afirmação de uma filosofia de cunho evolucionista pode ser percebida na seguinte afirmação do próprio Nietzsche: “por acaso, não seria o homem simplesmente a evolução da pedra por intermédio da planta, do animal?” (2005, p. 61). Em decorrência de tal concepção filosófica, nesta ética, em específico, valorizam-se os aspectos da força, do orgulho, da inteligência resoluta, ao contrário da bondade, da humildade, do altruísmo, pregações cristãs que, por este tender a equilibrar e corrigir as tendências humanas, foram atacadas tão veementemente pelo filósofo. A modernidade devia resolver seus problemas não por convencimentos, votos e caridade, nem como propunha Schopenhauer, de quem Nietzsche foi leitor por um bom tempo, com a negação da Vontade, mas pelo sangue e pelo ferro.

Cf. MONTEIRO, F. 10 lições sobre Schopenhauer, p. 50. SCHOPENHAUER, A. M V R I§ 54, p. 370. “ O pensam ento de Nietzsche não é propriam ente evolucionista, se entenderm os que o evolucionismo é sinônimo de darwinismo, um a vez que Nietzsche se mostrava contrário ao darwinismo. Nietzsche aponta para um a maior concordância com o lamarckismo, em bora tal concordância não seja tam bém tão explícita. Smith afirma que “ o filósofo alemão, ao interpretar de modo errado a teoria da evolução de Darwin, foi darw inista sem o saber” (cf. Smith, 1987, p. 68). Embora Denett (1998) tenha considerado a Genealogia da moral como “um a das primeiras e mais sutis investigações darw inistas sobre a evolução da m oral”, os escritos do próprio Nietzsche nos quais podemos fundam entar tais afirmações são aqueles que ele escrevia em forma de cadernos de anotações nos quais havia, além de novas ideias, tam bém algum as reflexões, rascunhos ou trechos de textos de outros autores, etc., que foram publicados postum am ente e são cham ados de fragm entos póstumos. “ DURANT, W A p . 371, grifos do autor.


pois “ [...] a mais forte e mais nobre Vontade de Viver [...] encontra expressão [...] numa Vontade de Guerra, uma Vontade de Poder, uma Vontade de Dominar”^^ e: A melhor coisa do homem é a força de vontade, o poder e a permanência da paixão; sem paixão, a pessoa vira leite, incapaz de façanhas. Ganância, inveja, até mesmo ódio são artigos indispensáveis para o processo de luta, seleção e sobrevivência^.

Deste modo, esta ética fundamentalmente biológica está voltada para o julgamento de acordo com 0 seu valor para a vida, aqui não entendida como coletividade, mas como seleção dos melhores. Em outras palavras, uma fisiológica transposição de todos os valores, na qual a meta do esforço humano é 0 desenvolvimento dos melhores e mais fortes indivíduos e não a elevação de todos^^ Com a elevação do indivíduo acima dos interesses coletivos e sociais, Nietzsche cria uma ética fundada no domínio de um personagem ao qual chamou de super-homem.

V - Niilismo e ética contemporânea Esta formulação nietzschiana denota a ausência de sentido das anteriores fundamentações éticas, quase todas fundadas no campo metafísico-religioso. Em outras palavras, com a fundação do niilismo, as demais referências ou normas de obrigação se dissipam e os valores superiores se depreciam^^ Jacqueline Russ afirma: “niilista, nosso fim de século é igualmente marcado pela morte das ideologias e das grandes narrações totalizantes, morte na qual se enraíza a ética do futuro”^®. A principal marca^° do individualismo (niilismo) nietzschiano ressoa nos dias atuais. A contemporaneidade vive diversos paradoxos, entre eles, destaca-se a incomunicabilidade em plena época dos meios de comunicação de massa. Cada vez com mais recursos tecnológicos de comunicação, menos as pessoas se comunicam. Quanto mais as pessoas estão conectadas virtualmente às outras, menos contato físico se mantém entre ambas. Fato marcado também pela completa indiferença para com qualquer questão social, a exemplo das inúmeras questões políticas que parecem não mais afetar aos indivíduos que, indiferentes ao problema, o tratam como se não tivessem nada a ver com a problemática. O individualismo contemporâneo possui característica bastante peculiar: o indiferentismo social.

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Nietzsche apud DURANT, W. A história da filosofia, p. 375. DURANT, W A /zwtóna da filosofia, p. 389. Cf. DURANT, W A /zwtóna da filosofia, p. 390-391. Cf. RUSS, J. Pensamento ético contemporâneo, p. 10. RU SS, }. Pensamento ético contemporâneo, p. 11.

Aqui, preocupamo-nos em não ligar, necessariamente, uma tendência atual como conseqüência direta de um postulado filosófico, como facilmente poderíamos vincular o individualismo moderno à teoria individualista de Nietzsche. Entretanto, gostaríamos de ressaltar que esta vinculação pode ser teoricamente feita, mas sem vínculo de conseqüência necessária e concretizada.


Destaca-se, pois, um novo modelo de individualismo, o narcisico. Ou seja, “ [...] a realização de indivíduos estranhos às disciplinas, às regras, aos constrangimentos diversos, às uniformizações”^^ não mais interessados com o triunfo da individualidade em face da opressão de regras impostas, como outrora surgiu o individualismo, entendido pois como ulterior à autonomia, à explosão hedonista e à simples conquista da liberdade, uma vez que tudo istojá está, de certo modo, conquistado e consolidado. Um individualismo que decreta a inoperância das morais tradicionais. Afalênciadossentidos(axiologicamente falando), otriunfodeum novom odode individualismo, 0 aparecimento de novas tecnologias que supervalorizam os poderes do humano em detrimento aos poderes da natureza, o desaparecimento do fundamento das referências tradicionais éticas, por sua vez fundadas na Metafísica, quase que completamente desacreditada pela contemporaneidade, abalam a ética em seu ponto de partida, deixando a atualidade sem as bases, sem o essencial. Fala-se, pois, num seio de deslegitimação^^ na qual restou a incerteza, o vazio ético, ou seja, a elaboração de uma ética que deixou explicitamente de buscar seus fundamentos na transcendência^^. Consequentemente, surge a necessidade de uma nova busca axiológica. Segundo Russ, Eis chegado o momento do indivíduo narcisico. [...] Se o individualismo moderno, longe de ser virtude e autonomia, significa passividade, e ate apatia, ‘estilo cool’ e descontraído, então se põe, para o ético, a questão: que é que, nas nossas sociedades democráticas avançadas, pode se tornar fator de universalização? Na era dos homens ‘vazios’, voltados às escolhas privadas, e narcisistas, é possível redescobrir uma macroética, válida para a hum anidade no seu conjunto?^.

Todos os fatos, anteriormente narrados, conduzem a uma transformação da consciência moral comum e dos princípios normativos da sociedade, ou seja, uma reformulação ética em torno de novos princípios e uma nova teoria da responsabilidade, diante de uma anarquia individual pela supremacia dos valores próprios, numa espécie de disputa entre o bem coletivo e o bem individual.

VI - Conclusão Percebe-se, pois, a urgente necessidade de se repensar as raízes éticas. Entretanto, paradoxalmente, parece que não se pode encontrar mais, numa sociedade altamente individualista e apática, fundamentos para a criação de uma moral com tons universais. Estaríamos, pois, no crepúsculo ou na aurora de um novo paradigma ético? A questão é demasiadamente complexa e, possivelmente, ainda sem resposta, não obstante já existam luzes: o ressurgimento do princípio da comunicação e algumas tendências atuais que podem

RUSS, J. Pensamento ético contemporâneo, p 15. Recorde-se que, na Idade Moderna, um as das principais questões filosóficas mudou o foco do problema da verdade para as questões de legitimidade das teorias. Jean-Jacques Rousseau e Imannuel Kant são expoentes dessa m udança de perspectiva. Cf. ÁVILA, EB. Folhas de outono-, ética e valores, p. 87. “ RUSS, J. Pensamento ético contemporâneo, p. 15


apontar a este paradigma em formação. Nesta contemporaneidade narcisista e individualista, adquire forte sentido o princípio da comunicação, haja visto que dela dificilmente conseguimos nos apartar. Sendo assim, algumas luzes são atualmente propostas como princípio de uma grande discussão axiológica: a macroética lingüística pensada por Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas e a ética da responsabilidade proposta por Hans Jonas. Três tendências atuais de conscientizações merecem destaque: 1- da dignidade da pessoa humana; 2- da interdependência entre os povos; e 3- preocupação ecológica. Entretanto, reforce-se que estas são tendências ainda em estado de germe e ainda, de certo modo, desprovidas de ordem e resultados pragmáticos confirmados. “Do parcelar, do particular, do subjetivo a um imperativo, universalista, tal é o sentido (um dos sentidos) do movimento ético contemporâneo”^^

RUSS, J. Pensamento ético contemporâneo, p. 16.


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POR UMA ÉTICA DA EXISTÊNCIA OU A CRIAÇÃD OE OE FIRA: POLÍTICAS OE SOOJETIVAÇÃO EM TEMPOS CONTEMPORÂNEOS. RUY ANDERSON SANTOS MARTINS - Mestre em psicologia institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) E-mail: ruyanderson1@hotmail.Com LEI LA DOMINGUES MACHADO - Professora do Departamento de Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: leiladomingues@uol.com.br Resumo: Este artigo é parte das análises produzidas na dissertação de mestrado e tem como objetivo criar um espaço de crítica e discussão dos modos de vida em vigência na contemporaneidade. Modos velozes e estafantes de viver os quais têm se expandido e exigido cada vez mais força de vida da maioria das populações ao redor do mundo. Desse modo, através do filme argentino ‘Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual’, intercessor e recurso metodológico deste trabalho, foi levantada uma discussão acerca dessas novas políticas de subjetivação e sobre como criar possíveis ou desvios para tal saturação. Em outras palavras, falarem os sobre a ética da existência enquanto criação de rotas de fuga para vidas cansadas das profusões da contemporaneidade.

Palavras-chave: Ética. Cinema. Clínica. Subjetividade.


INTRODUÇÃO utra forma de urbanidade vem povoando o estilo atual de viver. Uma urbanidade

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conduzida por ritmos cada vez mais velozes e tumultuados, comuns aos grandes centros urbanos. Experimentamos modos de vida cada vez mais acelerados e fugazes, os quais atravessam e compõem as nossas relações cotidianas, independente do local onde habitamos. A vida moderna mostra-se sufocante e exaustiva, levando-nos a

pensar na necessidade de novos ares, de invenções de dispositivos que dê a ela outras possibilidades. De acordo com Guattari (1992) o ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Isto é, estamos em meio a uma profusão de mudanças na subjetividade, sendo difícil encontrar um território onde se ‘aportar’, tam anha a velocidade que se processa os estilos de vida, os gostos, hábitos, etc A desterritorialização excessiva nos leva a um sentimento comum, onde tudo ao nosso redor circula tão rapidamente, tornando-se obsoleto num curto período de tempo, criando a sensação de que tudo circula, quando na realidade tudo está petrificado, “um falso nomandismo, que na realidade nos deixa no mesmo lugar, no vazio de uma modernidade exangue” (GUATTARI, 1992, p.170). Diante dos excessos que nos invadem, a vida se vê povoada de tarefas intermináveis, numa seqüência sem fim. Carecemos de irrupções do inusitado, o qual insiste em se distanciar dos dias que se sucedem iguais. Dias cada vez mais acelerados e mais idênticos, sincronia e harmonia entorpecente, parecemos prolongar a vida num longo dia que nunca termina. Em meio a esse contexto, são impostas às subjetividades: [...] a obrigação de reformatar-se rapidamente, antes mesmo que se tenha tido tempo de inteirar-se das sensações que a mudança suscita. Vive-se em estado de tensão permanente, à beira da exasperação, o que faz com que as forças de invenção e de resistência sejam muito freqüentemente convocadas.^

Se por um lado estamos imersos num amontoado de tarefas e deveres, por outro, estamos presos ã igualdade do mesmo. Dias cheios de novidades, mas novidades que não se diferenciam. O paradoxo do contemporâneo, afirmado por Guattari (1992), é que somos prisioneiro da mudança e da velocidade que trazem a crescente sensação de mesmice. Ao assumir esses modos de vida fazemos funcionar toda uma lógica de poder que entra num círculo vicioso e embaraçoso, sendo cada vez mais difícil identificar onde começa um problema e onde termina o outro. Começa-se a procurar soluções rápidas e momentaneamente eficazes para diminuir 0 cansaço, mas são soluções que pouco nos coloca num ponto de mutação, num ponto de colapso com aquilo que nos coage.

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ROLNIK,2004,p.03.


Nascemassim,emmeioaritmosdevidacadavezmaisvelozes,movimentosdeimpermeabilização dos corpos para tentar sentir um pouco menos. Ao anestesiarmos o corpo diminuímos nossa percepção e sensação, entramos numa linha tênue que nos separa dos fatos em meio às invenções ilusórias e provisórias criadas por essas tecnologias de mercado. Nas palavras de Machado (1999) ao falar dessas subjetividades contemporâneas, ela diz: A questão é que ansiamos a ordem e repudiamos o caos, a desestabilização de nossas certezas, de nossas verdades. Queremos um escudo protetor que nos afaste do desconhecido e, assim, nos faça manter uma mesma personalidade para o resto da vida^

Buscamos por tecnologias que forneçam uma espécie de sossego, um ponto de acalento tão caro e necessário diante das invasões que nos atinge. Somos invadidos por dentro e por fora, por cima e por baixo. Invasões de informações, invasões de obrigações e compromissos, invasões dos excessos de canais de tevê a cabo, do excesso de música disponível no mercado, do excesso de automóveis que circulam, do excesso de barulho que penetra os ouvidos. Criamos assim uma zona, mesmo que artificial, para nos proteger. Nesse sentido, a questão colocada é: como romper com tais práticas, ou, como criar saídas para lidar com os endurecimentos aos quais estamos expostos pelas redes instituídas socialmente? Como diminuir o peso dos fardos e abandonar o modo exaustivo de viver? Em resposta a isso, torna-se ético encontrar territórios que permitam a afirmação da vida. É preciso encontrar um arejar em meio àquilo que sufoca, isto é, permitir a criação de novos espaços e novos ritmos.

Produção de desvios ou sobre como respirar No filme Medianeiras, há uma cidade superpovoada^ Milhões de habitantes, milhares de prédios, um sem-fim de desencontros. Uma multidão apressada atravessa as ruas construídas de concreto e automóveis. No desconforto diante do excesso, tudo parece transbordar e nada parece possível. À sua própria medida, cada habitante tenta ao máximo não enlouquecer em meio ao turbilhão de informações e estímulos presentes o tempo inteiro. Abstrair-se dos excessos de estímulos da cidade parece impossível: o barulho se faz presente, as sirenes, os alarmes, os outdoors, as placas luminosas. Um menino tenta andar de bicicleta na sacada minúscula de um apartamento minúsculo. Pessoas se

2 MACHADO, 1999, p.04. ^ O presente estudo tem como intercessor e recurso metodológico o fllme ‘Medianeras: Buenos Aires na era do am or virtual’, 2011. Produção da A rgentina, E spanha e Alemanha, dirigido por Gustavo Taretto. Partimos de um posicionam ento assum ido nas pesquisas do M estrado em Psicologia Institucional da UFES em conexão com o Laboratório de Imagens da Subjetividade, utilizando cinema e im agens como intercessores das discussões dos modos de vida no contem porâneo. Essa pesquisa faz intercâm bio com projetos desenvolvidos no LIS, coordenado pela Professora Dr'* Leila Domingues Machado.


cruzam e não se vêem. Um cachorro se suicida da janela do prédio. Um homem é atropelado por um veículo ao mesmo tempo em que uma mulher tem parada cardiorrespiratória na calçada. Esses fatos mobilizam os transeuntes, casos ocorridos simultaneamente, acontecimentos denunciatórios dos novos modos de vida que funcionam a todo vapor em tempos contemporâneos. Falamos de uma cidade cercada de prédios, carros, pessoas, placas e ruas. Uma cidade com nome próprio, uma cidade como outra qualquer. Grande ou pequena, as experiências urbanas atuais levam a ritmos e hábitos semelhantes onde quer que se esteja. Cidades com poucas diferenças entre si, moradores iguais em seu cansaço"^. Se ao aterrissar em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade escrito num grande letreiro, pensaria ter chegado ao mesmo aeroporto de onde havia partido. Os subúrbios que me fizeram atravessar não eram diferentes dos da cidade anterior, com as mesmas casas amarelinhas e verdinhas. Seguindo as mesmas flechas, andava-se em volta dos mesmos canteiros das mesmas praças. ^

No aeroporto o personagem Martin se despede de sua namorada. Ela irá embora e ele pressente uma viagem sem volta. Martin tem medo de andar de avião. Martin tem medo da cidade. Ele não anda de ônibus, não anda de táxi e nem de metrô, tudo o assusta. Martin permanece trancado em seu apartamento por dias a fio, sentado diante do seu computador, que parece sua única conexão com o mundo, mesmo que virtual. O mundo atual se mostra grande demais, cheio demais, sufocante demais. “É a desestabilização exacerbada de um lado e, de outro, a persistência da referência identitária, acenando com o perigo de se virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma órbita do mercado” (ROLNIK, 1996, p.02). Martin habita em um apartamento com pouquíssimos metros quadrados. Pouco espaço, poucas possibilidades. Mas ao mesmo tempo sua morada se torna esconderijo para as invasões vindas da cidade lá fora. E mesmo assim seu apartamento se confunde com a cidade. Muitos excessos ali dentro recheando um espaço superlotado de objetos que ele nunca se desfaz. Pilhas de livros, filmes e objetos decorativos. O cachorro herdado da namorada vai aos poucos se rendendo ao cansaço de viver em meio a tantas tralhas. O psiquiatra de Martin o recomenda a fazer passeios e encontrar a beleza oculta nesse amontoado de coisas que compõe a cidade. Martin compra uma máquina fotográfica e sai por ai á procura de belas imagens. Ao sair de casa leva consigo um quite de sobrevivência: Ipod com 8 mil músicas, agenda, preservativo, amoxilina, rivotril em gotas, ibuprofeno, óculos de sol, capa de chuva, lanterna, pilhas, dinheiro, livro, documentos, manual de instrução para ocorrência de ataques de pânico, canetas, etc. Uma mochila pesada , com 5,8kg, acarretando dores fortes na coluna e o faz acreditar, por meio de uma busca virtual, em uma doença chamada discartrose. Um segundo médico tenta liberá-lo das paranóias do mundo moderno e lhe diz: “Nade, faça exercício, use uma mochila

'* Essa discussão pretende elucidar alguns aspectos referentes aos modos de vida na contem poraneidade, sem contudo minim izar as diferenças e peculiaridades existentes em cada lugar. 5 CALVINO, 1 9 9 0 ,p .ll8 .


menos pesada. Você não tem nada de grave, nada mesmo. O que acontece é que esses laudos são feitos por jovens que, nos laboratórios e hospitais, só fazem isso. Eles escrevem tudo, sabe? Para se proteger”. Martin foi se afastando da cidade e das pessoas. Ele diz ter medos, fobias. Nosso personagem está mergulhado no excesso que se expande, mas que não se diferencia. Em meio ao caos nada parece novo, nada parece trazer saídas para esses excessos, tam anha a velocidade como as coisas funcionam: uma sensação constante de se adequar às supostas novidades. Sua única possibilidade foi retirar-se, preservar a si mesmo em sua própria casa. Traçou uma linha imaginária, mas feita de concreto, entre seu mundo e o mundo lá fora que ameaça devorá-lo. Sobre esses modos de vida, Domingues (2010) nos fala de subjetivações á flor da pele, que experimentam um limiar: Coloca-se um impasse nas subjetivações à flor da pele, não se suporta mais o que antes se suportava e não se sabe o que fazer. O sentido se rachou, as certezas se desfizeram, configurou-se um campo problemático. Como criar outros sentidos? Como criar formas de vida que não sejam adaptações ao cansaço? Pois não se trata de tolerar 0 que se mostra abominável. Agora o intolerável ganhou visibilidade e passou a ser absurdo não só um certo estado de coisas, mas também tolerá-lo.®

Ao lado do prédio de Martin, em outro prédio, mora Mariana. Eles não se conhecem, nunca se viram, mas já se cruzaram. Mariana é arquiteta e sofre porque, no paradoxo da sua profissão, não conseguiu construir nada que de fato fosse dela. Ela trabalha com vitrines e manequins. Não conseguiu construir prédios nem banheiros, do mesmo modo que não conseguiu construir uma relação amorosa, a qual ruiu após durar quatro anos. Mariana estoura bolhas de plástico para que ela mesma não estoure. Tudo ao seu redor a espanta e Mariana está cansada da cidade e dos excessos que a invadem. Em seu apartamento há uma sacada que se confunde com janela e não possibilita a entrada do sol. Com pouca luz e poucas brechas - no seu apartamento e em sua vida - tudo vai ganhando tons de escuridão, cheiro de umidade e de infelicidade: A vida em Raíssa não é feliz. Pelas ruas, as pessoas caminham retorcendo as mãos, imprecam às crianças que choram, encostam-se nos parapeitos do rio com a cabeça apoiada nas mãos, acordam de manhã com um pesadelo e logo começa outro. [...] Todavia, em Raíssa, sempre há uma criança que da janela sorri para um cão que pulou um alpendre para comer um pedaço de polenta que caiu das mãos de um pedreiro.^

Um apartamento sufocante, escuro, pequeno, cheio de caixas, objetos impessoais, manequins, e no meio disso tudo está Mariana, que se confunde com a paisagem. Ela sente-se sozinha, mas não se sente vazia: ela está cheia de tudo isso, excedida pelo tumulto da cidade que, apesar de superlotada, não traz nenhuma esperança de mudança. Mariana conversa com seus manequins. Ela os veste nas vitrines, e em seu apartamento ela conversa com eles. Mariana se relaciona com os manequins, eles

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DOMINGUES, 2010, p. 103. CALVINO, 1990,p. 134.


transam: “Não se iluda, foi só sexo” diz Mariana ao manequim. Existe uma possibilidade para que Mariana e Martim se encontrem, mas algo precisa se romper antes desse encontro. Ambos estão estafados dos estilos de vida que eles mesmos escolhem, dia após dia. Eles compartilham coisas comuns, sentimentos e sensações. Os esbarrões pela cidade não são fortes 0 suficientes para que eles se vejam ou se sintam. Nas palavras de Lavrador (2010): Abrir frestas no caos e traçar planos de composição para dar visibilidade às sensações intensivas, para permitirmo-nos senti-las. Tornar a força insensível sensível. Corpos abertos às sensações singulares. Essa potência estética de sentir faz parte da criação do existente, faz parte da própria vida, ou melhor, ela faz parte da ímanêncía de “uma vida”. *

‘Onde está Wally?’ é o livro preferido de Mariana. Em uma cidade habitada pela multidão é preciso encontrá-lo. Foi com esse livro que Mariana passou a ter medo de multidões, de elevadores, da solidão. O novo paradoxo em que Martin e Mariana se encontram é a solidão. Como é possível sentir-se sozinho entre milhões de pessoas? O espaço entre um prédio e outro separa Martin de Mariana, e entre eles as medianeras, firme em sua concretude. Dois vizinhos, dois prédios, e a dureza do concreto que parece impenetrável. As medianeras são as paredes laterais dos prédios. Um espaço desperdiçado porque nada pode ser feito com ele. Propagandas são postas ali, o que tornam a cidade ainda mais tumultuada. Paredes inúteis vão se tornando a única possibilidade de escape a essa escuridão que atravessa apartamentos e vidas cansadas de si mesmas. Abrir pequenas janelas nas medianeiras é a rota de fuga® encontrada pelos habitantes desta cidade. São janelas ilegais, indevidas. “Ilegal, como toda rota de fuga”, diz Mariana. O que por vezes, não conseguimos perceber é que a terra quando tornada por demais ressequida se estilhaça, se abre, se fragmenta. As fendas se espalham pelo solo e criam outros contornos. No extremo do endurecimento, a terra se rasga, se sulca, se fende. No ápice da petrificação ela se afrouxa, se distende, se esfarela.

Essas minúsculas janelas abertas permitem que raios de luz entrem e iluminem o apartamento e a vida dos seus moradores. Essa abertura na medianera admite um escape aos modos urbanizados de viver que tendem a tirar o fôlego, a energia. Janelas abertas ilegalmente, mas que não se tornam uma ilegalidade, e sim uma ética para com a existência que precisa perseverar. Há uma ilegalidade nas

« LAVRADOR, 2006, p. 39. ® A rota de fuga da qual falamos se conecta à linha de fuga proposta por Deleuze e G uattari (1996) , sendo ela não apenas um a fuga por medo ou desistência, m as um fuga criativa, criada em conexão com o real. Fugir, mas ao fugir, procurar uma arm a (p. 164). Nas palavras de Deleuze e Parnet a linha de fuga “é antes o facto e o direito do intempestivo: um tem po não medido, um a hecceidade como um vento que se levanta, um a meia-noite, um meio-dia” (DELEUZE e PARNET, 2004, p. 164) “

D O M IN G U E S,2010,p. 103.


rotas de fuga, uma traição às normatizações sociais. Para Deleuze e Parnet (1996) esse movimento de ruptura pode ser entendido enquanto uma potência de traição. Isto é, para lidar com movimentos de captura das redes institucionais que nos modulam, é preciso trair essas redes, esses emaranhados que recaem sobre nós. “É que trair é difícil, é criar. É preciso perder a identidade, o seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido”. (DELEUZE e PARNET, 1996, p.60). Uma linha que se irrompe para dar vazão à potência de vida. A ilegalidade moralizadora das janelas abertas nas medianeras é, ao mesmo tempo, a ética produtora de novos sentidos de existência. Uma rota de fuga, uma linha de ruptura, um perseverar da vida. A janela se destoa da sua função comum e devêm liberdade. Em Raíssa, cidade triste, também corre um fio invisível que, por um instante, liga um ser vivo ao outro e se desfaz, depois volta a se estender entre pontos em movimento desenhando rapidamente novas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe.^

Após aberta uma janela nas medianeras, isto é, após abrir fendas no concreto endurecido de vidas endurecidas, as novas janelas formam uma linha suave entre o prédio de Martin e o de Mariana, que somente agora, através das janelas ilegais, conseguem enxergar um ao outro pela primeira vez. Tudo parece o mesmo, mas tudo mudou. Algo se desfez. A luz que atravessa as medianeras penetra apartamentos e vidas. O vento refresca e abre uma nova possibilidade de experimentação e de vida. Os prédios não são mais os mesmos, nossos personagens também não. Eles criaram para si um escape, produziram uma ética da existência. É nesse sentido, perante esses modos urbanizados de viver, na busca de brechas para a exaustão, que se faz necessário dar passagem ã potência criadora. Torna-se uma postura ética para com a vida inventar o que estamos chamando de rotas de fuga. Rotas potentes que permitam o escape aos processos adoecedores de viver, escape às lutas cotidianas que minimizam a potência de existir no mundo.

CALVINO, 1990, p. 135.


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

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DELEUZE, G; PARNET, C. Diálogos. Trad. José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio D’água, 2004.

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LAVRADOR, M.C.C. Loucura e vida na contemporaneidade. Tese de Doutorado. PPGP/UEES, 2006.

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MEDIANERAS: Buenos Aires na era do amor virtual. Direção: Gustavo Taretto. Direção de fotografia: Leandro Martinéz. Argentina, Alemanha e Espanha: Imovision, 2010 [produção]. Rizoma Eilms. 1 DVD (95 min). Título Original: Medianeras.

TOXICÔMANOS de identidade: subjetividade em tempo de globalização. Folha de São Paulo, São Paulo, maio de 1996. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ Toxicoidentid.pdf>.

ROLNIK, S. “Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma. In: FONSECA, T.M.G. e ENGELMAN, S. (Orgs). Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004.


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SCHOPENHAUER E 0 VEGE1ARIANISM0 EDUARDO FERRAZ FRANCO - Mestrando em filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Email: eferrazfranco@hotmail.com Resumo: 0 tradutor e comentador brasileiro das obras deA rthur Schopenhauer, Jair Barboza, afir­ ma que há, em relação à ética animal presente na filosofia do pensador alemão, uma radicalização cronológica das conclusões em direção a uma maior coerência com sua filosofia da Vontade. A exten­ são da consideração ética aos animais é apresentada na obra principal, 0 mundo como Vontade e rep­ resentação e desenvolvida posteriormente em Sobre o fundamento da moral e Parerga e paralipomena. 0 objetivo desse trabalho é discutir essa radicalização das conclusões acerca da ética animal por parte de Schopenhauer, confrontando suas conclusões relativas ao vegetarianismo com a extensão da consideração ética para o reino animal, presente já em 0 mundo...

Palavras-chave: Vontade. Animais. Vegetarianismo.


filósofoalemãoArthurSchopenhauerafirmou serum pensam entoúnicoa sua filosofia

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que, “porm aisabrangente [...], guardaam aisperfeita unidade” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 19), e que, para ser comunicada precisa ser decomposta, porém cada parte conserva o todo. Nosso interesse aqui é a fundamentação da ética schopenhaueriana, mais especificamente a relação entre humanos e outros animais em sua filosofia,

mas, como veremos, a ética de Schopenhauer está ancorada em sua concepção metafísica. Na base do pensamento de Schopenhauer está uma harmonização de sua leitura de três diferentes filosofias: a de Platão, a de Kant e os escritos bramânicos Upanixades; resultando em uma metafísica sem céu com conseqüências éticas, estéticas e epistemológicas. Em linhas gerais, Schopenhauer conserva de Kant a distinção entre fenômeno e coisa-emsi: 0 mundo tal qual aparece ao sujeito é uma representação do mundo, é um fenômeno, é o mundo platônico das aparências, é o mundo como um objeto para um sujeito do querer, mediado por seu aparato cognitivo que, para Schopenhauer é o entendimento das intuições sensíveis, a capacidade que todo ser que representa, todo animal, tem de organizar os dados sensíveis em espaço, tempo e causalidade. Concordando com críticas feitas por filósofos como Schulze, Novalis e Jacobi - dirigidas ã Kant, de que o filósofo de Kônigsberg deduziria a coisa-em-si da categoria de causalidade, ou seja, a partir do aparato cognitivo de origem subjetiva, exigindo uma causa externa para o mundo - Schopenhauer afirma que Kant chega ã “conclusões corretas a partir de premissas falsas” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 626). A coisa-em-si que habita no mundo, o que o mundo é além de um fenômeno, de uma representação para um sujeito do querer; habita também nesse sujeito. Enquanto eu represento o mundo, o eu também é um objeto de representação, também é um corpo entre corpos. O reconhecimento da participação do sujeito do querer na coisa-em-si abre uma brecha para se aproximar dela por outras

vias que não as representativas: enquanto, por um lado, eu sou objeto entre objetos, agindo segundo o princípio da causalidade, no espaço e no tempo; reconheço em mim uma força que me leva a agir e não pode ser explicada por princípios racionais: meu querer, minha vontade. Por meio de um argumento analógico Schopenhauer reconhece que esta vontade que move 0 eu é também a que move todo o mundo que aparece para o eu. Este é um momento muito delicado na filosofia de Schopenhauer. O filósofo se propõe a traduzir o que o mundo é em-si, o que ele é para além da representação para um sujeito, para além do que a racionalidade nos permite conceituar. A tradição filosófica ocidental, sempre tão confiante na razão, é incapaz de ultrapassar essa barreira e, para Schopenhauer, quem mais próximo chegou dessa tradução foi Platão e as Ideias, que seriam intermediárias entre o mundo fenomênico e a coisa-em-si. Schopenhauer recorre aos brâmanes hindus orientais para nos auxiliar a compreender o mundo como Vontade: essa força que age em mim e no mundo, mas que não pode ser traduzida racionalmente sem se tornar uma representação para um sujeito.


Para os hindus o mundo tal qual nos aparece é uma ilusão, nossa visão é turvada pelo Véu de Maia e por isso vemos inumeráveis indivíduos diferentes do eu, mas quando atingimos momentos de iluminação conseguimos romper esse Véu de Maia e reconhecemos Tat twan asi! (“Isso és tu!”), tal seria o fundamento da moral, para Schopenhauer. “O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório; reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo” (SCHOPENHAUER, 2005,473-4). O fundamento para a existência de ações morais, segundo Schopenhauer, estaria em um conhecimento, não em um conhecimento abstrato, mas em uma iluminação, em um conhecimento intuitivo de que na essência todos somos uma só Vontade buscando continuar sua existência, lutando para perpetuar-se e se expandir, e com isso causando inumeráveis sofrimentos à outras manifestações da mesma Vontade que “devora faminta a própria carne” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474). A ilusão de que somos diferentes individualidades se dá por estarmos turvados pelo Véu de Maia, nosso aparato cognitivo, que nos apresenta o mundo sob o principiam individuationis, a partir do entendimento que organiza os dados em espaço, tempo e causalidade, dividindo as manifestações da Vontade em fenômenos espaço-temporais atuando segundo o principio da causalidade. Os diferentes graus de ações morais, que para o filósofo vão da justiça ã caridade chegando até ã negação da Vontade objetivada no eu, como reconhecimento de esta ser a fonte dos sofrimentos no mundo; dependem da proporção em que se “ESTABELECE MENOS DIFERENÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA ENTRE SI MESMO E OS OUTROS” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 473), e esta diminuição do abismo entre o eu e o não-eu se daria no fenômeno da compaixão, que consiste em que eu, ao ter a representação de outro indivíduo que sofre, “sinta esse sofrimento, embora me seja dado como algo externo, meramente por meio da intuição ou por notícia, que eu o sinta por simpatia, o sinta como meu e, no entanto, não em mim, mas num outro” (SCHOPENHAUER,

2001, p. 162). O fundamento das ações morais, segundo Schopenhauer se dá pelo reconhecimento do sofrimento alheio, na percepção de que a essência dos sofrimentos é a mesma. Por isso, a consideração moral extrapola o reconhecimento apenas dos seres racionais como dignos de consideração, e abrange todos os seres capazes de sofrer: “sim, que ela se estende até mesmo aos animais e a toda natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474). Com isso a fundamentação moral de Schopenhauer, além de trazer para a discussão o tratam ento dos humanos em relação aos demais animais, denuncia o descaso dos sistemas filosóficos ocidentais para com estes, “que são tão irresponsavelmente malcuidados nos outros sistemas morais europeus” (SCHOPENHAUER, 2001, p, 174-5). A questão da extensão da consideração ética aos animais em Schopenhauer é desenvolvida, principalmente em três obras: 0 mundo como Vontade e como representação. Sobre o fundamento da


moral e Parerga eparalipomena. Mesmo havendo em Schopenhauer um pensamento único, o filósofo

sempre se esforçou em complementar o seu pensamento, buscando sempre uma maior coerência. Como afirma o comentador e tradutor brasileiro de muitas obras de Schopenhauer, Jair Barboza: Nota-se em suas obras [de Schopenhauer] uma paulatina radicalização das conclusões na direção do estabelecimento de uma coerência interna de seu pensam ento ético com o Mundo como Vontade e como representação, de 1818, na qual os animais são concebidos mais sob a lupa da teoria do conhecimento, no sentido de possuírem entendimento tanto quanto o homem. Com isso, já em Sobre o fundam ento da moral, de 1840, a compaixão é estendida aos animais e, na obra tardia Parerga e paralipomena, de 1851, encontra-se uma refinada arqueologia do preconceito judaico-cristão contra os mesmos que marca não só a visão fria da ciência experimental, mas tam bém a posição teórica dos sistemas morais europeus (BARBOZA, 2012, p. 140).

Um aspecto da consideração ética schopenhaueriana extensiva aos animais chama atenção: 0 direito de o homem se alimentar de carne animal sem cometer uma injustiça. Há também uma radicalização das conclusões em torno da discussão sobre o vegetarianismo, presente em Schopenhauer, que se torna cada vez mais crítica, mas o filósofo não afirma em nenhum momento ser moralmente injusto se alimentar de carne animal, mesmo que, em Parerga e paralipomena ofereça as premissas para que o leitor o faça. Antes de nos atermos ã questão do vegetarianismo em Schopenhauer é importante esclarecermos alguns aspectos de sua fundamentação moral. Como já dissemos, a ação de valor moral surge de um conhecimento, mas não de um conhecimento abstrato que pode ser comunicado. A moralidade surge de uma espécie de iluminação, de um conhecimento intuitivo de que em essência todos os seres são manifestação da mesma Vontade, e que a multiplicidade é uma ilusão de Maia. Com isso, não se pode ensinar a moralidade, não se pode comunicá-la racionalmente, e a filosofia moral não pode ser prescritiva. O alcance da filosofia, para Schopenhauer, está na tradução abstrata do que é o mundo, na expressão em conceitos do que 0 mundo é além do que nos aparece. Para a tradução do fenômeno da conduta moral, “partiremos tão somente das ações, exclusivamente mediante as quais ele se torna visível, e referiremos tais ações como sua única e adequada expressão, a qual somente podemos apontar e interpretar, ou seja, dizer abstratamente o que ali ocorre” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471). Também foi dito de passagem que as condutas morais variam em graus e que vão da justiça, que é negativa: não causar dano; ã caridade que é positiva: ajuda e renuncia de gozos visando amenizar sofrimentos alheios. Justo é aquele que “jamais, na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471). No benevolente, no caridoso, “a forma do fenômeno não mais o enreda tão firmemente, mas o sofrimento visto em outros 0 afeta quase tanto como se fosse seu; procura, então, restabelecer o equilíbrio: renuncia aos gozos, aceita privações para aliviar o sofrimento alheio” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 473). Na obra principal de Schopenhauer, 0 mundo como Vontade e como representação a extensão da consideração moral aos animais se dá apenas a partir da benevolência, da caridade. O homem bom, aquele que “reconhece a si mesmo, á sua vontade, em cada ser” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474),


renunciará a certos prazeres e “não causará tormento a animal algum” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474). Mas Schopenhauer ainda não vê como uma questão de justiça o bom tratam ento direcionado aos animais, os animais ainda não tem direitos naturais, como defenderá em outras obras. Por isso a questão do vegetarianismo ainda não é discutida tão a fundo nesta obra. Apesar de aproximar o homem dos outros animais, dizendo que todos são uma única e mesma essência; pelo fato de 0 homem ser capaz de pensamento abstrato, de direcionar seu pensamento ao passado e ao futuro, seu sofrimento e suas necessidades são infinitamente maiores, ele precisa sacrificar animais para se aliviar. Schopenhauer dedica uma nota de rodapé ã questão do vegetarianismo e do uso da força animal no trabalho:

O direito do homem à vida e à força dos animais baseia-se no fato de que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o sofrimento, e a dor, que o animal sofre através da morte e do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o homem sofreria com a privação de carne ou da força do animal. O homem, pois, na afirmação de sua existência, pode ir até a negação da existência do animal, e a Vontade de vida no todo suporta aí menos sofrimento que no caso inverso (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474 [nota]).

De acordo com Clement Rosset, “Schopenhauer foi o primeiro filósofo a ter ordenado seu pensamento em torno de uma ideia genealógica” (ROSSET, 1996, p. 183). Na obra Sobre ofundamento da moral podemos identificar os primeiros traços de uma genealogia do preconceito especista, onde 0 filósofo denuncia o judaísmo, o cartesianismo, as línguas modernas europeias e a ciência como responsáveis pelo abismo criado entre humanos e animais não-humanos no Ocidente. Mas não seria nesta obra, destinada a responder uma pergunta sobre o fundamento da moral, lançada pela Sociedade Real Dinamarquesa, que Schopenhauer desenvolveria tais questões. Mas a questão do vegetarianismo, ainda que mencione alguns elementos que só serão desenvolvidos posteriormente, recebe uma maior atenção por parte do filósofo nesta obra. Em primeiro lugar, Schopenhauer começa a falar em direitos dos animais, ampliando a consideração ética em relação a estes para as ações justas, e não apenas caridosas: “A suposta ausência de direito dos animais, a ilusão de que nossas ações em relação a eles sejam sem significação moral ou, como se diz na linguagem da moral, que não há qualquer direito em relação aos animais, é diretamente uma crueza e uma barbárie revoltantes do Ocidente” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 175). Em 0 mundo..., o filósofo afirmou ser grande a diferença entre o sofrimento humano pela privação de carne e o sofrimento do animal abatido; por isso não cogita a hipótese do vegetarianismo como uma questão ética. Mas na mesma obra o filósofo apresenta um contra argumento empírico: “na ética dos hindus [...] vemos prescritos: [...] abstenção completa de alimentação animal” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 492). Se os praticantes da religião mais antiga do mundo, segundo Schopenhauer, prescrevem e se abstêm de carne animal, não seria um exagero afirmar que “a dor, que 0 animal sofre através da morte e do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o homem sofreria com a privação de carne” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474 [nota])?


É por isso que em sua segunda menção ao vegetarianismo, em Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer revê o argumento: Que, de resto, a compaixão para com os animais não tenha de levar tão longe a ponto de, como os brâm anes, abstermo-nos da nutrição animal baseia-se no fato de que, na natureza, a aptidão para sofrer caminha passo a passo com a inteligência. Por isso o homem, pela privação da nutrição animal, principalmente no norte, sofreria mais do que sofre o animal por meio de uma morte rápida e sempre imprevista, que, todavia, dever-se-ia aliviar ainda mais mediante 0 clorofórmio (SCHOPENHAUER, 2001, p. 183).

Da constatação de que os brâmanes hindus vivem sem a nutrição animal, Schopenhauer revê a afirmação de que o homem não possui forças para viver sem carne animal, e afirma que os homens do norte não viveriam sem esse tipo de alimento, mas nessa obra o filósofo não desenvolve a questão. Cabe ainda mencionar o surgimento de uma grande preocupação para que a morte do animal seja indolor e sem o menor conhecimento prévio, o que indica que Schopenhauer reduz a diferença entre o sofrimento do animal humano e o animal não-humano, conseqüência da faculdade reflexiva exclusiva do primeiro. A afirmação indica que há em alguns animais a possibilidade de prever acontecimentos que escapam ao presente, capacidade delegada totalmente ao homem e sua faculdade reflexiva. Mas o fato é que o grande sofrimento humano decorrente de sua abstração e reflexão já não está tão distante do sofrimento do animal não-humano, preso ao presente. Parerga m d paralipomena, obra tardia de Schopenhauer, pode ter o título traduzido por

“Suplementos e crônicas”. Nesta obra o filósofo se dedica a interpretar os mais diversos fenômenos ã luz de seu pensamento único. É nesta obra, em um ensaio intitulado Sobre a religião que a genealogia do preconceito especista, operada por Schopenhauer, alcança seu desenvolvimento definitivo. No mesmo ensaio Schopenhauer afirma categoricamente que: “Não é piedade, mas justiça aquilo que se deve aos animais” (SCHOPENHAUER, 2012, p. 250). É também no ensaio Sobre a religião que Schopenhauer apresenta um rico parágrafo sobre a questão do vegetarianismo. Ele começa: “Infelizmente é verdade que o homem que foi empurrado ao norte, e foi por isso tornado branco necessita da carne dos animais” (SCHOPENHAUER, 2012, p. 254). No §. 92 do ensaio Sobre filosofia e ciência da natureza, o filósofo apresenta sua teoria para 0 surgimento da raça branca e explica porque o homem branco do hemisfério Norte necessitaria de carne animal. Schopenhauer afirma que a espécie humana surgiu entre os trópicos, como indica a dificuldade de nossa espécie em se adaptar ao frio, pois originalmente não possuía instrumentos para sobreviver nessas regiões; e povos tropicais têm, naturalmente, a pele escura. A medida que o ser humano se expandiu pelo mundo, pelas adversidades do clima e da natureza, foi se degenerando fisicamente e se tornando branco, e, por isso, necessitava de instrumentos e técnicas para sobreviver longe de seu habitat. A nutrição por carne animal foi uma dessas técnicas de sobrevivência: “Assim como a cor escura da pele, a alimentação vegetal é natural ao homem. Mas somente em um clima tropical ele


permanece fiel a am bas” (SCHOPENHAUER, 2010, p. 213). Continuando seu parágrafo sobre o vegetarianismo, Schopenhauer apresenta um contra exemplo parecido com o que o fez mudar de concepção em Sobre o fundamento: “se bem que há vegetarians na Inglaterra” (SCHOPENHAUER, 2012, p. 254). Se a nutrição por animais foi uma técnica de sobrevivência utilizada por humanos banidos de seu habitat; a existência de vegetarianos no hemisfério Norte indica que as adversidades climáticas não exigem mais a adoção dessa técnica, pois existem outros modos de sobrevivência sem que causemos sofrimento e dor; sem que cometamos injustiça para com outros seres que sofrem, sentem e representam o mundo; pois os animais não são fantasmas patológicos, como já afirmado por sábios filósofos. Precisamos reconhecer: Tat twan asi! (“Isso és tu!”). Porém, Schopenhauer nos apresenta essas premissas mas não efetua os cálculos. Se contenta em reivindicar uma morte menos dolorosa aos animais abatidos: mas deve-se então tornar a morte de tais animais inteiramente imperceptível por meio do cloroforme e um rápido golpe no ponto letal; não por “piedade” como se diz no Antigo Testamento, mas pela enorme culpabilidade com respeito à essência eterna que vive, como nós, em todos os animais. Dever-se-ia cloroformizar antes todos os animais que serão abatidos. Esse seria um procedimento nobre que honraria a humanidade, em que a ciência superior do Ocidente e a moral superior do Oriente se dariam as mãos (SCHOPENHAUER, 2012, p. 254).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOZA, Jair. “A mitleidsethik e os animais ou Schopenhauer como precursor da ética animal”. In: Lampejo [on line], n° 02, Ano 01, Fortaleza, Apoena, 2012. Disponível em < http://revistalampejo. apoenafilosofia.org/> Acessado em 15 de dezembro de 2012.

ROSSET, Clement. “Schopenhauer, o filósofo do absurdo”. Trad. Maria Marta Guerra Husseini. (Org.) MELO, Lia Alcoforado de. In: Princípios, [on line], n° 04, Ano 03, Natal, UFRN, 1996. Disponível em < http://principios-ufrn.blogspot.com .br/2009/06/vol-3-n-4-jandez-1996.htm l> Acessado em 02 de maio de 2013.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2 0 0 5 , 1° tomo.

_. Sobre a ética. Trad. Elamarion C. Ramos. São Paulo: Hedra, 2012.

_. Sobre a filosofia e seu método. Trad. Elamarion C. Ramos. São Paulo: Hedra, 2010.

. Sobre o fundamento da moral. Trad. Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2. ed. São Paulo: Martins Eontes, 2001.


RFMSTA

L W

PARA UMA IIVTRODUÇÃO DA CRÍTICA GENEALÓGICA DA MORAL EM NIE1ZSCHE GUSTAVO AUGUSTO DA SILVA FERREIRA - Graduado em Teologia Pelo Instituto João Calvino de Humanidades (IJCH) ; Graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: professorgustavoferreira@hotmail.com.br Resumo: 0 presente trabalho tem como principal temática a problemática da moral que se dá na socie­ dade pós-moderna. A moral ocidental herdada da cultura europeia, influenciou e influencia até hoje 0 âmbito da política, da ética e da economia. Questões como: “o que é certo e errado?”, “o que é bem e m al?”, “será que realmente existem princípios universais, e se existem, por que se modificam e por que são seguidos, já que são universais?”, “qual o interesse do homem nisso?”. A genealogia da moral surge não apenas como um questionamento acerca das origens da moral na história antropológica, mas também como um questionamento acerca da sua aplicação em todos os atos humanos. Funda­ mentado no pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, iremos expor a moral em sua genea­ logia e suas conseqüências. A conclusão disso será uma ideia de onde a civilização chegou com seus valores e o questionamento sobre quais valores seguir, aceitar e criar

Palavras-chave: Trabalho. Moral. Homem. Valores.

Resumen: Este trabajo tiene como tema principal el tema de la moral, que tiene lugar en la sociedad post-moderna. El legado moral de la cultura europea Occidental ha influido e influye incluso en la actualidad en Ias políticas, la ética yla economia. Preguntas tales como: ‘V; Lo que es buenoy lo maio?”, “^Qué es el bien y el m al?”, “^Habrá realmente son princípios universales, y si no, p o r qué cam biary por qué se siguen, ya que son universales?”, “^que el interés dei hombre en eso?”. La genealogia de la moral sepresenta no sólo como una cuestión sobre los orígenes de la moral de la historia antropológi­ ca, sino también como una investigación sobre su aplicación en todos los actos humanos. Basado en el pensamiento dei filósofo alemán Friedrich Nietzsche, vamos a exponer la moral en su genealogia y sus consecuencias. La conclusión es que la idea de que la civilización llegó a sus valoresy cuestionamientos acerca de lo que los valores por debajo, aceptary crear

Palavras-chave: Trabajo. Moral. Hombre. Valores.


I - Introdução palavra Moral deriva do termo latino mores (morales), “relativo aos costum es” , ou

A

simplesmente costumes. Seria importante referir, ainda, quanto à etimologia da palavra “moral”: esta se originou a partir do interesse dos romanos em traduzirem

a palavra grega êthica. E assim, a palavra moral não traduz por completo, a palavra grega originária (e até mesmo em sua etimologia esta tradução não pode ser vista como

completa e leal ao sentido original). É que êthica possuía, para os gregos, dois sentidos complementares: 0 primeiro, como se sabe, derivava de êthos e significava a interioridade do ato humano, ou seja, aquilo que gera uma ação genuinamente humana e que brota a partir de dentro do sujeito moral, ou seja, êthos remete-nos para o âmago do agir (práxis), para a intenção e para a efetivação de tal intenção. Por outro lado, êthica significava também êthos, remetendo-nos para a questão dos hábitos, costumes, usos e regras, o que se materializaria na assimilação social dos valores na vida prática e cotidiana. A segunda interpretação do termo em sua etimologia é a que mais nos interessa, pois é a que

vingou mesmo não tendo excluído a que lhe precede. Contudo, ambas são complementares. A moral é atualmente entendida como “um conjunto de regras de convivência inerentes às sociedades hum anas”. Claro que este entendimento atual não exclui o que citamos acima, tendo nele sua fundamentação. A moral nasce no centro da Ética. De modo geral compreendemos a Ética como um conceito que está associado ao estudo fundamentado dos valores morais que orientam o comportamento humano em sociedade, enquanto a moral são os costumes, regras, tabus e convenções estabelecidas por cada sociedade. Numa distinção feita grosso modo não se poderia falar de uma sem citar a outra, mas no âmbito do debate filosófico podemos debater um dado conceito relativo ao agir humano desapegando-o de seu complemento, ou seja, podemos aqui falar de Moral sem remetermo-nos necessariamente ã Ética em seus fundamentos e evolução histórica conceituai. Todas as sociedades civilizadas encontradas até hoje, por mais primitivas que sejam, possuíam uma moral. Um aglomerado de hábitos e valores que direcionavam o indivíduo dizendo para ele como viver, em que acreditar, quais valores seguir e o que fazer. É impossível se falar das ações inerentes a uma sociedade sem observar seus costumes, seus valores: sua Moral. A enorme problemática inerente ao âmbito da questão é o fato de tal moral ter existido e continuar existindo em diferentes épocas, mas muitas vezes com os mesmos conceitos e costumes, e o homem enquanto animal histórico, mesmo com todo 0 avanço do conhecimento continua mantendo uma moral (que às vezes não é condizente com sua realidade, no máximo, simplesmente conveniente). Observemos, pois o que é esta moral que herdamos dos nossos antepassados, como ela passou a existir e por que muitas vezes não a questionamos. A moral antecedeu o cenário das grandes religiões que dominam o mundo de hoje. A moral como regulamento das atitudes e comportamentos do ser humano em sociedade se basta no bom senso, na simples razão de viver e conviver. Segundo nosso filósofo, F. Nietzsche, o advento dessas religiões que se originaram na própria moral trouxe a exasperação dos princípios inatos do bem e do mal, resultando na opressão do homem, na escravização de sua vida, invocando um deus que deveria


salvá-lo e redimi-lo de sua predileção pelo mal em detrimento do bem. Aprisionando assim o homem e inibindo a sua autonomia. Ao invés de valorizar o homem como ser superior, a religião o relegou ao âmbito do mau, considerando-o mal, perverso, pecador e imoral. O homem deve guiar-se por si mesmo, sem precisar de valores impostos pela religião, sem necessitar de parâmetros opressores impostos por uma religião ou qualquer outro poder metafísico imposto a ele. O pecado, o erro e a falta seriam realmente a decorrência de uma má ação ou de um conceito que procurou inserir no pensamento da espécie evoluída um sentido do que é bom em si e, em decorrência, o que é mau em si?

II - Sobre a origem do bem e do mal, do bom e do mau (ruim) É sabido de nossa parte que é impossível se criar um debate sobre a Moral e a sua genealogia sem que antes façamos uma análise prévia de conceitos constituintes que fundamentam-na. Alguns dos conceitos primários e fundamentais para se aprofundar na questão são: Bem e Mal e Bom e Mau. Nietzsche diz-nos algo sobre a origem da denominação do conceito de boa ação: “ (—) O riginalm ente” - assim eles decretam - “as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiram ente tidas como boas foram tam bém sentidas como boas - como se em si fossem algo bom .” Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses - temos aí “a utilidade”, “o esquecim ento”, “o hábito” e por fim “o erro”, tudo servindo de base a uma valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio do próprio homem. Este orgulho deve ser humilhado, e esta valoração desvalorizada: isso foi feito?... Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito “bom ” no lugar errado: o juízo “bom ” não provém daqueles aos quais se fez o “bem ” ! Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tom aram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelece dores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe - e não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente. O pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um “sob” eis a origem da oposição “bom ” e “ruim ”. (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é isto”, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas.) Devido a essa providência, já em princípio a palavra “bom ” não é ligada necessariamente a ações “não egoístas”, como quer a superstição daqueles genealogistas da moral. É somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição “egoísta” e “não egoísta” se impõe mais e mais á consciência hum ana - é, para utilizar minha linguagem, o instinto de rebanho, que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras). E mesmo então demora muito, até que esse instinto se torne senhor de maneira tal que a valoração moral fique presa e imobilizada nessa oposição (como ocorre, por exemplo, na Europa de hoje: nela, o preconceito que vê equivalência entre “m oral”, “não egoísta” e “desinteresse” já predomina com a violência de uma “ideia fixa” ou doença do cérebro). ^


Nietzsche refere-se aqui à análise feita pelos psicólogos ingleses e indica-nos como se deu a conceituação prévia do valor da ação. Isto quer dizer que a identificação do valor da ação, inicialmente, se dava de acordo com a utilidade da mesma e permanecia pelo costume perpetuando-se em seguida pelo esquecimento. O bom outrora fora tudo aquilo de primeira ordem, tudo aquilo referido aos nobres, ao sujeito de alma elevada. Mas que importava ao sujeito de alma elevada, ao aristocrata, ao nobre a utilidade? Eles eram para si o conceito de bom, belo e do próprio bem. Em contrapartida, a plebe, o comum, o mesquinho, o baixo e toda a classe vista como inferior não tinha outra opção a não ser seguir o ideal aristocrata e considerando-o como correto, integro e bom em si mesmo, mesmo que enquanto plebeu, jamais pudesse alcança-lo. Em suma, é bom aquilo que em todos os tempos se mostrou diretamente como útil, e por esse fato se mostrou no direito de exigir que assim 0 seja considerado. Considerado como algo no valor de supremo grau, tendo valor em si mesmo. O filósofo afirma que em toda parte, nobre, aristocrático (segundo ele no sentido de ordem social) são os conceitos fundamentais, a partir dos quais se desenvolve o termo Bom no sentido que possui uma alma privilegiada, uma natureza elevada. E em paralelo se desenvolvem também os conceitos contrários: comum, plebeu, baixo, imundo e etc. ^Um exemplo claro disso é o termo alemão sclecht, que significa mau, que é idêntica ã palavra schlicht que por sua vez significa simples. Isto é, o homem comum que se encontra por sua aparência distanciado e até mesmo oposta ao homem nobre. Em todas as línguas, idiomas e culturas pesquisadas, sem exceções, encontrou-se sempre a tendência dos bons conceitos voltados para o nobre e os maus voltados para a plebe. As sociedades na medida em que evoluem fazem exatamente o contrário do que querem os socialistas e por sua vez os comunistas. Ou seja, tendem a se destacar dos outros sem deixar espaços para iguais. A tendência á comuna, á sociedade longe do caos e com enorme proximidade em riquezas de hábitos e valores é tudo 0 que os indivíduos considerados evoluídos não querem. A comuna é a forma mais primitiva de organização social e de busca pela sobrevivência da espécie. Tudo que o aristocrata não quer é ser igual aquele que ele considera inferior, ou até mesmo aquele que ele considera igual a ele: ele tende a diferenciar-se naturalmente (nos hábitos, no vestir, no comer, no aparentar: no modo de ser). No que tange a origem dos conceitos de Bom e Mal e Bem e Mau (principalmente de Bom e Mal) temos o conceito antecessor: Puro. O conceito de Puro e impuro, segundo nosso amigo filólogo,^ surgiu para diferenciar as castas. Puro queria dizer simplesmente um homem que se lava, que se abstém de certos alimentos que causam doenças e poluem o organismo, que não se deita com mulheres impuras e da plebe e tem horror a sangue. O puro desenvolveu e levou ao Bom, e o Impuro ao contrário, levou ao Mal.^

III - O conceito deturpado posteriormente Como vimos acima, a aristocracia cria sua moral, cria seus valores com base no que é seu, com base no que se é ou no que se pensa ser. É justam ente no âmbito dos homens de espírito elevado


que aflora o conceito de bom que se identifica com o que realmente é visto como bom ao longo dos séculos por sua beleza e utilidade. O homem que se considerava puro, o homem superior, buscava sempre exaltar-se e distanciar-se dos considerados inferiores, tendo como relação de ligação com eles 0 simples fator de exploração (Aristóteles chega a ser um claro exemplo disso em seus escritos filosóficos sobre a Pólis). Por mais que o aristocrata seja tendencialmente superior em seu espírito e que ele nem sempre precise de alguém que o sirva ou faça os serviços considerados impuros, ainda sim ele o quer, e por isso ele não pode abster-se de forma integral do plebeu, do individuo considerado inferior. O individuo impuro deve executar o serviço impuro. Isso tudo parece-nos assustador e até mesmo pedante e injusto. Claro que de certa forma até podemos assim considerar, mas a verdade histórica e filológica da humanidade não é nenhum conto de fadas no qual podemos nos deliciar e apreciar o amor, a justiça e a paz entre os homens. Ao contrário, o homem baixo, o Plebeu, o escravo não deixou a desejar na criação de seus valores. Toda classe, por mais tardio que seja, institui os seus valores, mesmo que de forma obscura ou espelhada nos valores de outra classe. Por tempos a classe baixa se conformou em tentar imitar a classe superior considerando-os como realmente superiores ou se conformando em viver como seres inferiores, mas em um determinado momento o ódio, a inveja, a cobiça, a revolta, acomete os escravos e eles criam para si uma Moral. A questão da moral dos escravos é circunstancialmente uma fundamentação de uma moral da negação. Os escravos não têm bens materiais para amar, venerar e chamar de seus, nem mesmo as suas vidas são suas, pertencem aos seus senhores. Enquanto a moral aristocrata nasce de uma triunfante afirmação de si mesmo e de tudo que lhe pertence, a moral dos escravos opõe um não a tudo o que não é seu, a um “de outro modo”, a um “não ele mesmo”. O não do escravo é seu ato criador. O homem bom cria seus valores pelo que “tem ” e “é”, o homem mau cria seus valores negando tudo que ele mesmo não possui nem é, negando o homem bom, negando o aristocrata, suas posses e costumes. Os bem nascidos, os nascidos em “berço de ouro”, se sentiam justam ente como felizes. Em contrapartida, a classe inferior se ressente como infeliz. É a partir de se autointitular infeliz por pressão ou ser o contrário do que se intitula feliz que o plebeu considera-se digno de compaixão. Para 0 aristocrata, ser feliz se constitui em agir, em ser; para a plebe a felicidade constitui o querer-ser (o outro), 0 poder ser o que não se é mas se quer ser, o fantasiar ser e em desdenhar o superior a ele considerando-o inferior de uma forma odiosa e absurda. O ressentimento é criador, ele gera valores. Os mau nascidos constroem artificialmente a sua felicidade. Nietzsche diz: Enquanto o homem nobre vive com confiança e franqueza diante de si mesmo (“nobre de nascim ento”, sublinha a nuance de “sincero”, e talvez também “ingênuo”), o homem do ressentim ento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu m undo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não esquecimento,


da espera, do m omentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira ordem, enquanto para os homens nobres ela facilmente adquire um gosto sutil de luxo e refinamento - pois neles ela está longe de ser tão essencial quanto a completa certeza de funcionamento dos instintos reguladores inconscientes, ou mesmo uma certa imprudência, como a valente precipitação, seja ao perigo, seja ao inimigo, ou aquela exaltada impulsividade na cólera, no amor, na veneração, gratidão, vingança, na qual se têm reconhecido os homens nobres de todos os tempos. Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que ê inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus mal feitos inclusive - eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento (no mundo moderno, um bom exemplo ê M irabeau, que não tinha memória para os insultos e baixezas que sofria, e que não podia desculpar, simplesmente porque - esquecia). Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam ; apenas neste caso ê possível, se for possível em absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! (e tal reverência ê já uma ponte para o amor). Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a desprezar, e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe 0 homem do ressentimento - e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o inimigo m au”, “o m au”, e isto como conceito básico, a partir do qual tam bém elabora, como imagem equivalente, um “bom ” - ele mesmo!... ^

O nobre chega à conclusão do que é mau por observar o que é oposto a ele, já o plebeu chega ao que é bom amesquinhando o nobre, encontrando-se em meio ao que é mau, por já ser mau tenta identificar-se como bom denominando tudo que é bom como mau por ser o seu contrário, por ser o que nasce no intimo de seu ressentimento. Na moral do ressentimento o ódio por tudo que se refere ao outro se exacerba, o que se opõe a ele, a moral do nobre: O nobre encontra o conceito de bom e mal e bem e mau sem precisar de um outro, basta que não seja ele, já é motivo suficiente para ser negativo. Nesta perspectiva, a própria cultura nos é dada como objeto de castração e adestramento da besta humana. Na medida em que tenta transform ar o animal imponente e egoísta em dócil, pacato e educado. Deve se considerar como os verdadeiros instrumentos da cultura todos estes instintos de reação e de ressentimento, graças aos quais se acabou por quebrar e subjugar as linhagens nobres com seus ideais. Nobre nunca quis dizer piedoso, caridoso ou homem do povo. É das demais Morais, inventadas longe da aristocracia e dos valores de pureza e riqueza que nascem as religiões que deturpam a Moral em sua originalidade. De forma alguma é o individuo humano, um ser que deve estar sobre um pedestal considerando-se imortal e superior em todas as formas de sua existência, alegando que nele reside o sopro do divino. O ódio que culminou na Moral dos escravos é o mesmo ódio que formulou as religiões que pregam a conversão e não a dominação. A conversão se apresenta como um insulto a tudo aquilo que 0 outro acredita, quando, de forma sutil ele é convencido que o melhor é o pior, que o bom é o ruim e que os valores que ele conhece e acredita são inversos. Tudo o que o individuo sempre acreditou ser tão bom por sua natureza é subvertido por uma doutrina de seres de ódio que não alcançaram tais posições e por isso criam seus próprios valores de forma invertida tentando corromper tudo que os cerca e que


não se identifica com o que eles acreditam que seja um “conceito superior” ao real “conceito superior” propriamente dito. Corrompem tudo o que os cerca como se fossem acido jogado em meio a plantação fértil, natural, bela e prazerosa. Abdicam dos prazeres que a realidade nos mostra como sendo reais para buscar prazeres duvidosos que brotam no âmbito de promessas jam ais cumpridas e evidências jam ais comprovadas, tudo isso bem longe da sensação prazerosa que nos dá tudo aquilo que eles denominam como pecado. Assim, Nietzsche afirma: De um lado uma espécie de concentração e organização dos doentes (- a palavra “Igreja” é o nome mais popular para isso), de outro lado uma espécie de salvaguarda provisória dos mais sadiam ente constituídos, dos mais plenamente forjados, criando-se assim um abismo entre doentes e sãos - durante muito tempo isto foi tudo! E era muito! Era muitíssimo!... (Nesta dissertação, como se vê, parto de um pressuposto que não tenho primeiro de justificar, em vista de leitores tal como os necessito: o de que a “natureza pecam inosa” do homem não é um fato, mas apenas a interpretação de um fato, ou seja, uma má disposição fisiológica - vista sob uma perspectiva moral-religiosa que para nós nada mais tem de imperativo. - Que alguém se sinta “culpado”, “pecador”, não demonstra absolutamente que tenha razão para sentir-se assim; tam pouco alguém é são apenas por sentir-se são.

É desta motivação doentia, é desta noção de pecador que brota a ideia de dever. A ideia do dever, ou dever moral, é inserida de forma a pretender tornar o individuo consciente de que ele deve fazer algo em prol de um regimento que está sobre ele e sua espécie. O dever não é a lei, é um imperativo categórico que se impregna na consciência do sujeito como se nele tivesse sido feita uma lavagem cerebral que não mais o motiva a sobreviver, a viver, a sentir e sim a obedecer, seguir, ser orientado e enquadrar-se em regras que te orientam a negar a vida em prol de qualquer outra coisa que te orienta para o âmbito das sensações, da vontade, da liberdade e impede o homem de ser senhor de si. Para Nietzsche nenhum preço a se pagar é alto demais quando a recompensa é ser senhor de si mesmo. Nas palavras de Nietzsche: “ Para o homem que possui o conhecimento não existe dever... O sacerdote asceta, o sujeito do ódio subjugado, o líder da angústia e da negação do real, do racional, do vivido, da própria vida. Este sujeito que tange os outros ao rumo da miséria que ele próprio se encontra pelo espírito do ressentimento é o líder de muitas pequenas sociedades medíocres e de crença fantasiosa.

IV - A moral para Nietzsche e a consequencia religiosa

O homem livre, ativo e independente é o homem que devemos criar, é neste homem que devemos investir. Os valores que este homem criar serão valores mais elevados que os da mesquinharia que desafortuna a vida. Um homem assim é um homem mais digno de viver, justam ente por am ar a vida e a exaltar em sua própria existência, em sua estilística do existir. Um homem que luta pela vida, simplesmente por ela e nada mais é um homem mais seguro do futuro. Segundo Nietzsche: “ ...era até


aqui quase coisa mais temida em si, - e esse temor fez com que se quisesse, se desejasse, se obtivesse o tipo contrário: o animal doméstico, o animal de rebanho, o homem animal doente - o cristão...” ^ O conceito compaixão, que é o conceito que apoia a moral dos fracos, inferiores e excluídos, diz-nos: “este é fraco, por isso este é digno de compaixão, este é pobre, coitado dele.” É onde o fraco é chamado de bom. A compaixão torna-se contagiosa e ela arrasta para baixo todo aquele que se encontra em cima, ela torna a dor compartilhável, ela faz da dor um sentimento coletivo, ela transforma 0 declínio particular em prejuízo coletivo que traz o declínio para um grupo inteiro ao invés de deixar que um membro fraco do grupo caia sozinho por sua incompetência e fraqueza. Segundo Nietzsche, toda a doutrina do imperativo categórico Kantiano® cai por terra no momento em que infringe as regras mais naturais e inequívocas da existência dos seres vivos, ou seja, a de que todo homem deve inventar seu próprio imperativo, seus próprios princípios e assim criar seus valores. Nietzsche diz que:“ É o contrário que exigem as mais profundas leis da conservação e do crescimento: que cada um invente sua virtude, seu imperativo categórico. Um povo se arruina quando confunde a ideia do seu dever com a ideia do dever em geral. ” “ Para o nosso filósofo essa é decididamente a receita da incompetência e da contradição. Tudo que não queremos e muito menos precisamos é o indivíduo fraco e passivo, sendo tangido por outras vontades que não a sua. Por Moral, Nietzsche entende valores e princípios que o indivíduo cria para si (ou deveria criar para si). Não valores que são transmitidos por outras pessoas, religiões ou costumes. O sujeito pode apropriar-se de valores que não foram criados por ele, pode sim acreditar em algo que não foi inventado por ele, mas desde que esses valores não sejam impostos ou forçados a ele mesmo de forma agressiva, sutil ou arbitrária. A moral de um sujeito deve ser criada por ele próprio. Fazendo um movimento entre ele mesmo e tudo que o agrada, que o afirma como vivo, livre e solto do subjugo das castas inferiores que querem lhe desviar de seu caminho. No fim se percebe que não existem caminhos a serem trilhados e nem caminhos a serem traçados: existem caminhos a serem criados. Falo de caminhos a serem criados e não traçados, porque pensar em um caminho pronto é pensar em uma existência acabada, com uma verdade a seguir, com uma estrada cheia de setas que te orientam desde o seu nascimento. Com o indivíduo humano não deve ocorrer isto! Aliás, no que tange a existência, isso é improvável, impossível. Os caminhos são feitos e refeitos continuamente até que 0 sujeito chegue ao fim de sua existência. Pensar em ideais prontos a seguir, pensar em verdades universais, pensar em determinação metafísica é pensar em “Verdade em si”. A Verdade sempre é atribuída pela fé. Toda forma de fé é ‘não querer saber do que realmente é verdade enquanto se busca a significação mais intima do conceito de verdade. Para Nietzsche a crença obstinada de toda espécie é mesmo uma expressão de abnegação, de alienação de si. Todos estes aglomerados de conceitos que tem fundamentado a filosofia, a ciência e a religião, igualamse no quesito de Busca pela verdade. Pensar a verdade é em si abdicar do real, do contingente, do empiricamente existente para pensar o transcendente, o fictício, o superior, o além da vida: A Verdade. A verdade iguala todos os ascetas em um só patamar, a saber, o de zumbis sedentos por algo que jam ais irá satisfazê-los, justam ente por não existir.


O humano é a única espécie que busca a verdade, isto por que é a espécie fantasiosa e trágica que busca algo que nem ela mesma sabe a origem, o “porquê” e a “finalidade”. Para Nietzsche, verdade é só um conceito sobre o qual uma determinada espécie de seres vivos não consegue viver sem. Pensar a verdade chega a ser uma idiossincrasia, buscá-la então, é um absurdo desnecessário, mas isso ainda acontece por uma razão: “ O homem prefere a vontade do nada do que o nada da vontade.” “ Preferimos o âmbito do irreal a reconhecer que o irreal é irreal. Busca-se algo para venerar, cria-se um bezerro de ouro na ausência de qualquer outra noção que disperse este vazio chamado existência humana. Buscar o fundamento é exatamente o grande problema que tange o declínio da moral, até mesmo dos homens mais esclarecidos e de espíritos mais libertos. O divino do existir é estar exposto as fraquezas e angústias, felicidades e alegrias. Chega-se ao cume do monte da vida quando se percebe que a vida é vida por si só, e que seu único sentido é a ausência de sentido, que seu único sentido é viver. A essência do fundamento é o vazio. O homem é o ser que saltou num abismo e que espera cair no chão, que espera encontrar o fundamento, o fundo, mas ele não encontra, ele não sente o solo. Ele só cai... Em uma de suas mais ilustres obras, a saher, Assim FalavaZaratustra Nietzsche Diz: O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem. Uma corda sobre um abismo.Perigosa para percorrê-la, é perigoso ir por esse caminho, é perigoso olhar para trás, perigoso trem er e parar.O que é grande no homem é ele ser uma ponte e não uma meta. O que se pode am ar no homem é ele ser uma passagem e um declínio.

Podemos agora compreender a Moral em seus fundamentos básicos. E podemos também agora, mais do que nunca, questionar a finalidade disto e a que esta noção de finalidade tem nos levado. A contemporaneidade é o olho do furacão. Estamos vivendo o ápice das conseqüências históricas que a humanidade tanto presenciou e muitas vezes tentou evitar. Agora temos a chance de vislumbrar o advento de um novo período histórico e questioná-lo, não mais em seus fundamentos, mas em seu curso, em seu caminho.

V - Considerações finais (a questão na atulidade) Pesquisas nos mostram que as igrejas das mais variadas religiões (principalmente as que se dizem cristãs/evangélicas) arrecadam mais de um bilhão por mês.

Nesta perspectiva podemos

observar 0 impacto econômico e estrutural que a moral das religiões tem na sociedade atual. Vemos por inúmeras vezes o sentimento de angústia e de culpa em muitas pessoas que se dizem religiosas. Elas se restringem a fazer muitas coisas que gostariam ou até deveriam por uma restrição da moral inerente em suas religiões ou crenças. Sim! A moral de suas religiões ou crenças, e não a sua própria moral. Muitas delas nem sequer entendem o porquê daquilo tudo, não se situam no contexto histórico daquilo que acreditam. Porém, em contrapartida a doutrina restringe e impede o indivíduo de emancipar a si


mesmo e de dizer o que são prioridades, entendendo que um dia lhe foi ensinado que um deus, um céu, uma missão não escolhidos diretamente por ele são prioridades. O que é mais absurdo de que um país que se diz laico (como o Brasil) propor descontos ou isenção nos impostos (principalmente no IPTU) das igrejas, capelas e congregações? O que é mais inadmissível do que um país que se diz democrático, laico e justo, utilizar verba pública para construir, reformar, restaurar e manter estátuas de santos da igreja católica em inúmeros pontos das cidades? Isto sem contar a imagem da cruz cristã com Jesus nela que existe no ponto mais alto da câmara dos deputados, que é (teoricamente) o símbolo da democracia representativa. O Estado, teoricamente falando, deveria representar a vontade coletiva, e, enquanto país laico restringir ã qualquer órgão ou patrimônio público qualquer tipo de manifestação religiosa ou a propagação da mesma, principalmente se a mesma for financiada com o dinheiro público. Não se deve proibir, inibir ou reprimir a religião de ninguém, mas também não se deve, através dos meios, dos poderes e financiamento público, incentivá-los. Jamais deveria conservar as crenças, considerando que não há nada mais perigoso de que 0 interesse religioso ou privado no interior do interesse político. Até que ponto m anter uma moral oficial no Estado é algo positivo? Na verdade não é de forma alguma positivo, pois aprisiona e desgasta qualquer possibilidade de autonomia intelectual e volitiva do sujeito moral, do cidadão. O casamento da lei, do regimento da justiça com a religiosidade ou a moral das religiões, que é a doutrina da crença, só pode ter como resultado a supervaloração de noções arbitrárias do real sobre a sua significativa contingência. A liberdade religiosa e a liberdade de expressão são pontos constituintes da moral em si mesma, ou seja, a moral de valores criados pelo sujeito. Mastaisvaloresdevem ser individuais. E quando forem coletivos, cientes de que a possibilidade da existência de outra moral é a efetivação da existência da liberdade. Que os loucos dancem por ouvir a música, que os surdos aquietem-se por não perceberem os sons. Que a Moral não seja jam ais coletiva. É a pluralidade da diferença que nos torna humanos, demasiadamente humanos.


NOTAS 1Nietzsche, ¥ n e à n á \. A genealogia da moral. p. 28, Editora Escala 2009. São Paulo. 3° edição. ^Ibidem. p. 31. ^ Friedrich Nietzsche era tam bém , além de Filósofo, Filólogo. "•Nietzsche, ¥ n e à n á \. A genealogia dam oral. p. 34, Editora Escala 2009. São Paulo. 3° edição. ^ Nietzsche, ¥ n e à n á \. A genealogia da moral. Editora Escala 2009. São Paulo. 3° edição, p. 42. «Ibidem. p. 142-143. ^Ibidem. p .l4 7 *Nietzsche, Friedrich. 0 Anticristo. Editora Escala 2009. São Paulo. 2° edição, p. 20. ^Immanuel Kant (1724 - 1804) foi um dos mais ilustres pensadores da filosofia ocidental. É ele o pai do imperativo categórico. O imperativo categórico é o dever que toda pessoa tem de doar conforme os princípios que ela quer que todos os seres hum anos sigam, se ela quer que seja uma lei da natureza hum ana, ela deverá confrontar-se realizando para si mesmo 0 que deseja para o próximo. Em suas obras Kant afirma que é necessário tom ar decisões como um ato moral, ou seja, sem agredir ou afetar outras pessoas de forma negativa. “ Nietzsche, Friedrich. 0 Anticristo. Editora Escala 2009. São Paulo. 2 ° edição, p. 32. “ Nietzsche, ¥ n e à n á \. A genealogia da moral. Editora Escala 2009. São Paulo. 3° edição, p. 172. i^Nietzsche, ¥nedndc\. A ssim falavaZaratustra. p.24, Editora Escala 2008. São Paulo. 3 °edição. “ Disponível em: < http://m esquita.blog.br/igrejas-evangelicas-arrecadam -m ais-de-lbi-por-m es>.


REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 3 ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. 2 ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 3 ed. São Paulo: Editora Escala, 2008.

NIETZSCHE, W. E Samtlhiche Werke. (Org.) G. Colli Mazzino Montinari. Munique: DTV/ De Gruyter, 1996. Obra crítica em 15 volumes.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto. Resenha: Da Genealogia da moral de R W. Nietzsche. Consciencia.org, 2011.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 1 ed. São Paulo: Editora Barcarolla.

MESQUITA. Igrejas Evangélicas Arrecadam mais de um milhão por mês. Disponível em:< h ttp :// mesquita.blog.br/igrejas-evangelicas-arrecadam-mais-de-lbi-por-mes>.


RFMSTA

ANU

UMA APRECIAÇÃO PÓS-MODERNA NA ORRA OE JOÃO GILRERTO NOLL JULIANA BRAGA GUEDES - Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). A escritura de Noll na obra Canoas e Marolas atravessa a narratividade através de uma meteorologia cósmica e a procura incessante de um tempo perdido na (re)lembrança de um passado não-vivido ou reinventado, em um retorno, na perspectiva de uma organização futuristica. O autor utiliza o foco narrativo em primeira pessoa, justam ente para emaranhar a tram a dos acontecimentos e as sensações vividas pela personagem João das Águas. A ideia de cotidiano o faz levantar questionamentos no reconhecimento de um passado flutuante, sem demonstrações de lamentações ou remorsos - como se fosse um esquecimento de si mesmo e aproveitamento da (con) vivência momentânea de carência paterna. O desejo de João em reencontrar a filha, que ainda não conhecia, deixava-o em uma confusão nas incertezas do tempo, plasticamente, vaporoso, como uma cortina fosca. Até que as memórias da infância advinham em uma conexão com a recordação de sons. A ilha, espaço inicial e continuo da obra, deixava o protagonista em um estado de inércia e na observação do passar do dia com ociosidade. As dúvidas levantadas por ele próprio em seu alheamento eram voltadas para um monólogo interior de perguntas e respostas sem fim. A pasmaceira, o cansaço e a preguiça compreendiam o entorpecimento da personagem a uma necessidade de perda da memória continua com o objetivo de prosseguir com a própria vida mais adiante. As imagens cambiantes nas descrições e pensares desse narrador-protagonista formulavam


uma instabilidade na intersubjetividade atrapalhada de um ser paralisado pela dúvida e constatação, lado a lado. Essa ausência de definição das imagens ante a indeterminação da existência do ser, a relatividade de um tempo não-solucionado e questionado por dúvidas sem

buscar respostas

satisfatórias, a vivência em espaços temporários, o isolamento de preocupações rotineiras, a liberdade expansiva de apenas sentir a vida, sem contestá-la em nenhum momento e a morte sem dogmas religiosos com novas adaptações fazem de Canoas e M arolas um reduto de traços pós-modernos, que aprimoram uma nova abordagem na releitura das obras literárias contemporâneas. O subjetivismo do narrador circunda por uma suspensão coloquial da linguagem. A obra provoca uma imaginação repleta de sensações inebriantes. Um estar aqui e acolá, um aquém-além sem distinção espacial e temporal. João das Águas expressa a permanência de um tempo que sempre está porvir e a conscientização de que sabia trabalhar cada vez menos com a memória. Muitas vezes, ele contempla a vida alheia para consultar, no intervalo das observações apontadas, uma explicação ante a ociosidade do tempo. A ideia de forasteiro fornecia-lhe um álibi á manutenção da própria inação e da prática do nadismoK O nomadismo também faz do narrador-protagonista um ser irresoluto, principalmente, no momento do encontro com a sua filha, até então desconhecida. Ele resiste em acreditar nessa veracidade e se questionando sobre a real paternidade. Antes de tudo, João realiza uma sondagem das informações passadas por sua memória. A filha é medica e o direciona para um programa psiquiátrico 0 qual é co-autora e se intitula Ablação da Mente. A figura paterna doravante se torna um objeto de laboratório.

O tempo em canoas e marolas

O narrador-protagonista de Canoas e M arolas está, constantemente, voltando no tempo, recua entre delírios oníricos, talvez para suportar o arrefecimento causado no presente de seu cotidiano. O pecado da Preguiça - que leva o subtítulo da obra - torna a personagem um eterno perambulador na desagregada vida que leva. Durante a sua participação no programa medicinal da filha o mesmo se refugia no sono para manter o desapego ao mundo circundante. Na desconfiança de tudo, João conseguia uma permanência no alheamento do mundo - usava uma espécie de desatenção ou se focava noutra atenção não-comum e difícil de detalharmos, quem sabe, enganava-se por meio de um suposto autismo. Na incerteza de se perpetuar como mais um desconhecido, sem história e memórias de família, João das Águas sempre retomava a questões universais, dúvidas ou perguntas sofistas, tais

'

Ou seja, 0 do fazer nada.


como: “O que é positivo?” (p. 63), “O que seria a preguiça?” (p. 73), entre outras. A postura cética levantava possibilidades de respostas, dicas e (in)soluções na direção de acalentar a própria inquietude. Às vezes, nem chega a formular uma resolução concreta, mas sim confunde ainda mais ante refletidas indagações. A vida da personagem era como as marolas do rio da ilha, uma passagem sem destino ou um navio sem porto. Essa cisão no tempo construída pela enunciação e enunciado deixa a personagem desdobrada em uma virtualidade, no sentido de que o fora se torna uma interioridade. Segundo Pelbart (2007) enquanto um fora é dobrado, um dentro lhe é coextensivo, como memória, vida, duração. Deleuze (1997) pensou o fora como última espacialidade mais profunda que o tempo. O tempo como dobra do fora. O fora se duplicando de um dentro coextensivo. Segundo Blanchot (1987), a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor, que ela sabe algo das coisas - que sabe muito sobre os homens. Para Barthes (1973) a indeterminação de oferecer uma linear estilística de escritura autoral faz da literatura algo fugidio. Assim como, a areia da praia entre os dedos da mão ou a diferença ínfima que um milésimo de segundo está na contagem de um relógio de pulso. Blanchot assevera “a literatura vai em direção dela mesma, de sua essência, que é o desapareciemento” (s/p). O movimento do fora é muito cara a esses três críticos: Barthes, Blanchot e Deleuze. O fora como interioridade transforma o pensar da subjetividade de João das Águas, que ao mesmo tempo é cisão e dobra. O tempo no fora sob a condição de dobra. Quando a personagem percebe que se aproxima da própria morte no momento de sua travessia no rio para um hospital acontece algo incomum: ele se compraz com o seu estado de inércia. Portanto, através do gozo do fora dos efeitos da doença, ele se impulsiona a sair daquela situação mórbida, ou seja, da aceitação da enfermidade. A resistência na dobra da personagem é condicionada por um papel de paciente não-doente. Aqui, o tempo no fora se torna sujeito.

Por fim, 0 personagem se liberta desse vazio na dobra do tempo com a presença da filha e do neto recém-nascido. Como também, busca um eu submerso longe das dúvidas existenciais. Doravante o sonambulismo aparece como energia e substituto de sua preguiça. Ele ao perceber essa condição sai em uma viagem sem destino e acaba encontrando um lar aespacial, no qual se ocupa em atividades, como a pesca e o canto, e concomitante está em um ônibus onírico com passageiros de raça indígena. No desfecho se reconhece uma paralisia corpórea e de anima, como também, João acaba se comparando a uma pedra. A temporalidade crônica, não mais cronológica, do narrador em constante devir, que se esquiva do presente, transporta a protagonista para um enlouquecimento de contrariação. O traço esquizofrênico da pós-modernidade este no mergulho desse presente o qual é

subvertido no devir e na extensão variável do passado e do futuro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. La plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil, 1973.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34,1997.

MOISÈS, Leila Perrone. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NOLL, João Gilberto. Canoas e Marolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

PELBART, Peter Pál. O Tempo Não-Reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 2007.


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ENSAIO FOTOGRÁFICO Fotografias de Luiz Felipe Sahd, Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).



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