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Deus lhes pague: a desconstrução necessária de Chico Buarque

DEUS LHES PAGUE: A DESCONSTRUÇÃO NECESSÁRIA DE CHICO BUARQUE

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Jé de Oliveira reúne constelação de talentos na montagem de Gota d’Água {Preta} que conta com Juçara Marçal

Por Fernando de Freitas

Fotos: Evandro Macedo e Fernando de Freitas

Quando dizemos “Chico”, sabemos estar falando de Buarque. Pelo menos foi assim, durante os muitos anos, em que ele foi uma aparente unanimidade. Falar mal de Chico era como falar bem da ditadura. Um tabu. Mas os tabus foram por água abaixo e o próprio Chico descobriu que não era tão amado assim. Ele continua gravando esporadicamente, ao que se seguem temporadas de shows esgotados, e focado em sua carreira literária. E nós, bom... nós descobrimos que Francisco Buarque de Holanda é um ser humano.

A mitologia chicobuarqueana começa quando um rapazote carioca filho de intelectuais e irmão de uma talentosíssima cantora de Bossa Nova se revelou, na transição entre o exclusivíssimo Colégio Santa Cruz e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, um compositor de sambas elegantes. E nesse começo promissor, ele escreveu um tanto de canções que pareciam transcender o entendimento que esperavam daquele rapaz de voz magra. Começaram as parcerias com Tom, Vinicius, Toquinho e Francis, entre tantos. Se enveredou no teatro (Roda Viva, Calabar, Gota d’água, Ópera do Malandro e O Grande Circo Místico, bem como as adaptações de Morte e Vida Severina e Saltimbancos) com o mesmo sucesso. Com cara de bom menino, ele tinha as letras censuradas pelos agentes da ditadura e, com o jeito maroto de seu sorriso, criava novas letras e enigmas que faziam a prestidigitação necessária para levar suas músicas para o acetato. Era tudo muito sedutor. Todos queriam ser amigos do Chico, beber com o Chico, ser o Chico, transar com o Chico.

JUÇARA E JÉ

Mas Jé deixa claro a importância de ter Juçara no palco, a quem considera “a voz negra mais importante da atualidade”, e da parceria que começou durante o trabalho de pesquisa para a montagem da peça. Pois, após o trabalho de Farinha com Açúcar, peça que trabalhava as canções de Racionais MCs, seu desafio foi de reapropriar-se de uma cujo “imaginário é nosso e que estava sem a gente” e viu a necessidade, nesta restituição, de firmar um princípio “nada de nós sem nós”.

Juçara reconheceu a importância da proposta de Jé e do grupo que se formava. “Era um projeto que eu não podia deixar de participar. Por questões sociais e políticas que são importantíssimas nesse momento. E eu aceitei o convite do Jé apesar de todas as minhas limitações. Hoje eu acho que até faz sentido uma não atriz no papel”.

Assim, Jé e Juçara não emprestam seus rostos e vozes aos textos, eles põem em prática a proposta de agarrar o texto com unhas e dentes para entregar a montagem que lhes pertence. Ele vem do Rap para o teatro, então seu teatro não pode deixar o Rap de lado. A conversa entre Racionais e Chico, para ele, se torna natural pela coerência política entre eles, e considera que faz uma “passagem de bastão oficial”.

Do seu trabalho como musicista, Juçara trouxe algumas experiências que marcam a peça. “Faz parte na nossa linguagem musical e não é à toa que Flor da idade se torna um funk no final da peça”, diz ela. Mas ressalta: “hoje não penso que essas músicas integrem meu repertório. Muita gente gravou em versões quase definitivas: a Bibi (Ferreira), a Gal (Costa) e o próprio Chico, por exemplo”. Seu parceiro de palco lamenta: “nós estamos tentando convencê-la de que, pelo menos, ela grave Paó, que ela musicou”.

NÃO TÃO COADJUVANTES

Ninguém ofusca estrelas, mas Aysha Nascimento e Rodrigo Mercadante têm luz próprias. Se Corina e Creonte são personagens centrais, a atuação e sensibilidade dos atores os coloca em evidência. É a força da interpretação no sentido mais literal da palavra.

Logo no início da peça, Aysha domina o palco com uma performance de dança que representa a pomba-gira de Joana. “Já me perguntaram se eu incorporo no palco. Mas não, imagina, a pomba-gira ia ter de saber a deixa” ri a atriz, mas ressalta que para a cena ela, que é adepta do candomblé, faz uma preparação espiritual, que começa antes mesmo de a peça estrear, pede licença ao santo, que está representado pela champanhe e três rosas presentes no palco.

A atriz pensa no teatro integrado com as demais artes e a música é um elemento importante do teatro épico (linha estética que segue Aysha e o grupo que teve Brecht como um de seus principais expoentes). Assim, a música ao vivo e a dança entram em cena naturalmente nas montagens. Sendo atriz desde pequena e frequentando desde os 17 anos a Escola Livre de Teatro, cursou Dança na faculdade como uma forma de expandir seus conhecimentos sobre o palco.

Já a figura de Rodrigo Mercadante contrasta com a se sua personagem. O ator é boa praça, de modos gentis e conversa que se perde entre digressões. Enquanto se preparavam para apresentar a peça e cada um fazia seu aquecimento, o ator pegou emprestado o violão de cena e começou a tocar Foguete, composição de J. Velloso e Roque Ferreira. “É uma música de um nível de delicadeza poética e musical. Tem um verso lindo que diz você chegou no amiudar do dia. É lindo”.

E nessa conversa poética ele, que na peça representa a face brutal da sociedade, conta como foi sua experiência: “a gente aprende a gostar de poesia pela música” e ele diz que foi um presente poder fazer esse texto de Chico Buarque e Paulo Pontes, “que é rimado e surpreende porque não parece rimado e seu ritmo tem a batida de samba canção”.

Nessas presenças marcantes na peça, pelo texto e pela atuação Aysha/Corina e Rodrigo/Creonte também se destacam ao se contrapor na peça. Cada um representa um extremo, ela a lavadeira e a cultura popular, ele o empresário. Rodrigo revela na conversa, inclusive, suas próprias questões referentes à raça: “Tenho ascendência negra, por parte de mãe. Mas não me sentiria no direito de me dizer negro, uma vez que sou “lido” socialmente como branco. Não tenho na memória registro de ter sofrido racismo da maneira como relatam meus companheiros negros. Minhas memórias de opressão vêm mais pelo viés da orientação sexual. Isso não me impede de saber em que lado da luta eu quero estar”.

Os atores contam sobre a experiência com Juçara no palco. “É uma loucura cantar Chico do lado da Juçara. Eu fico do lado dela, você viu!” diz Aysha. Já Rodrigo diz que “é um processo pelo qual ela precisa passar”.

PODE SER A GOTA D’ÁGUA

As linguagens musicais do funk e do rap invadem o samba-canção acadêmico de Chico Buarque na peça, a banda conta com um DJ e Instrumentistas de primeira linha. O sampler de Gota d’água é onipresente e as vozes de Chico e Bibi Ferreira aparecem durante peça em inserções.

O músico Gabriel Loghitano, que assume guitarra, violão e cavaco (além de trabalhar com os atores o aquecimento de voz antes de entrarem em cena), conta que sempre se emociona quando toca Basta um dia com a estrutura da música e a linha do sax tocado por Suka Figueiredo. Embora tocar Chico Buarque não seja uma novidade para ele, que se apresenta com o projeto Dos Chicos tocando o Buarque, o César e o Science, se preparou para a peça com foco em alguns pontos específicos, estudou a peça, trabalhou as estéticas da montagem e estudou guitarra caribenha.

Um recurso de cena é interessante. Apesar de todos os atores usarem microfone de lapela, em determinados momentos da peça, em especial naqueles em que os atores se desdobram no HipHop, eles usam microfones posicionados em pedestais no palco. O curioso é que os microfones precisam ser abertos para isso e os de lapela fechados pelo técnico de som no mesmo instante, sob o risco da proximidade entre eles os anularem.

Apesar desta conversa entre o rap e a MPB ser uma linha que conduz a montagem, musicalmente é um diálogo que já vem sendo travado por muitos. Neste caso, o grupo o faz com a maior competência. Mas são duas intervenções que impressionam, a composição original de Juçara sobre Paó, que ela canta com a força dessa peça inteira em sua voz e a versão de Flor da idade em um funk. A música ganha novos ares, o que a renova do desgaste que o tempo, impele aos sucessos e a ressignifica, renovando toda a peça. É por meio dessas duas músicas que o grupo restitui ao imaginário popular a peça.

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