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E então se fez Hip Hop

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E ENTÃO SE FEZ HIP HOP

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O som que mudou o mundo a partir das periferias tem seu endereço visitado

POR ANNELIESE KAPPEY

Cindy, a irmãzinha mais nova, queria dinheiro para comprar roupas na Delancey Street, no Lower East Side, em Manhattan. Seu irmão, que ainda era conhecido como Clive Campbell, planejou uma festa para arrecadar a grana. No dia 11 de agosto de 1973, as meninas pagaram 25 centavos e meninos pagaram 50 centavos de entrada. A atração principal? Duas turntables e um mixer. Dois álbuns idênticos e sem rótulo, para que ninguém soubesse o que estava rodando ali. O menino, então com dezesseis anos, fazia essa coisa de marcar a parte legal da música, o groove, sem a cantoria ou enrolação. A parte legal era marcada em ambos os bolachões de vinil. Quando a parte legal acabava do lado direito, ele colocava a agulha no lugar certo do lado esquerdo e soltava a mão. O volume de um lado no máximo e do outro no mínimo, essa coisa ia por quanto tempo fosse. A galera amava. A galera dançava. A galera fumava maconha. A galera gritava, animada. E ninguém tinha a menor ideia de que um fenômeno mundial começava ali. Também não poderia imaginar que uma indústria multimilionária estava por nascer em um bairro nova-iorquino que era, literalmente, negligenciado e esquecido por todos. Um bairro pelo qual, de tão pobre e tão negro, ninguém do mundo imobiliário se aventurava. Os edifícios, que ficavam vazios sem ninguém para alugar os apartamentos, acabavam em chamas porque assim os proprietários ao menos arrecadavam dinheiro das seguradoras. Quem tocava fogo nos tais prédios eram meninos adolescentes que, soltos na rua, vendiam drogas e participavam de gangues. Veteranos da guerra do Vietnã estavam voltando para casa com todo o terror e nenhum apoio de quem os mandara à guerra.

Do Bronx ninguém saía e, certamente, ninguém tentava entrar. Era assim. Os azarados que por ali nasciam faziam o que dava, e isso não era muito. Para se divertir, as pessoas dançavam em festas, e para animar as festas, alguns poucos que conseguiam comprar vitrolas e discos tocavam o que estivesse disponível. Quando o menino Campbell inventou a moda de cortar as músicas da maneira que bem entendesse, ele não tinha a menor ideia de que estava, de fato, revolucionando a indústria da música, para sempre. Naquela noite, então, as pessoas dançaram e a festa estava cheia. O convite tinha sido feito à mão. O prédio era um conjunto habitacional destinado àqueles que precisavam de auxílio com moradia. A mãe deles fez sanduíches e serviu refrigerante e cerveja para alguns. O endereço era 1520, Sedgwick Avenue.

QUANDO A MÚSICA TRANSFORMA Existe uma lenda urbana sobre quem estava e quem não estava lá naquela noite. Mas La Rock estava. Sem planejar, ele, amigo do menino Campbell, quis animar a festa. Então, pegou um microfone e começou a “falar” com a galera. Nada de especial. Começou a dar comandos de “hey”, “vamos”, “dance”, “levante”, “isso aí pessoal”, “agora”, “quero mais”, “vamos lá”, “hey”, “legal”. Ele repetia estas palavras curtas com intenção e seguindo a batida da música que seu amigo estivesse cortando e repetindo, cortando e repetindo. Com este ritmo e esta “fala”, o hip hop nasceu na noite de 11 de agosto de 1973, na Sedgwick Avenue, número 1520, no bairro do Bronx, na cidade de Nova York. Campbell dormiu desconhecido e acordou DJ Kool Herc. Passou a ser contratado para tocar em praticamente todos lugares, por $150 dólares por noite. Todo mundo o queria presente, e quem não queria contratá-lo, queria certamente imitá-lo. As festas “get

down”, um nome que aconteceu por causa das pessoas que adoravam dançar breakdance - literalmente, a dança do “break” na música - estavam por todos os lugares. As festas acenderam chamas por todo o Bronx, mais rápido que os meninos queimando prédios para sacanear as companhias de seguro. Levaria anos para que chegássemos até o ponto de conhecer a música gravada por The Sugarhill Gang, “Rapper’s Delight”, lançada em 1979. “Rapper’s Delight” tem mérito de ter sido a primeira gravação a atingir ouvintes fora dos limites do Bronx ou Harlem ou Brooklyn. E foi o blecaute que aconteceu no verão de 1977 que construiu uma ponte entre as festas underground que estavam acontecendo por todo o Bronx e a gravação e o lançamento de “Rapper’s Delight”. Por dois dias e noites inteiros, a cidade não tinha luz. Todos os bairros, com exceção de uma pequena parte do sul do Queens, estavam no escuro. O verão daquele ano foi um dos mais quentes já registrados e os verões na cidade de Nova York são famosos por serem absolutamente terríveis, quentes, infernais, úmidos, sem lugar para escapar além de algumas poucas praias lotadas. Nos dias 13 e 14 de julho, a utilização indiscriminada de ares-condicionados e ventiladores em todos os lugares, initerruptamente, provou ser mais do que a rede elétrica da cidade podia aguentar. Tudo se apagou. A cidade, que constantemente cortava fundos do Bronx antes de qualquer outro lugar (as pessoas de lá importam menos do que as pessoas de, por exemplo, Manhattan), havia cortado verbas dos departamentos de polícia e bombeiros. No escuro, no suor, no cansaço, na desmoralização, na falta de paciência, na falta de chance, na falta de educação e atenção adolescentes no Bronx quebraram vitrines com tijolos. Quais vitrines eles quebraram? As das lojas de eletrônicos e lojas de disco.

Levaram tudo o que puderam carregar. De repente, depois dos dois dias no escuro naquele verão dos infernos, a luz no fim do túnel apareceu para vários. O Bronx tinha agora vários DJs novos, do dia para a noite. O fogo do Bronx espalhou-se rapidamente. Nas comunidades negras em todo o país, ao final dos anos 70 e começo dos anos 80, se multiplicavam festas e DJs e nascia a “cena hip hop”. As diferenças regionais e estaduais começaram a aparecer, naturalmente, cada área refletindo seus próprios sons, experiências e influências culturais. A música sempre esteve diretamente ligada à dança, e os DJs muitas vezes criavam os nomes dos movimentos que viam nas pistas de dança. A arte do grafite e o “tag” de cada artista e gangue também indicavam quais territórios pertenciam a quem. Hip Hop nunca foi isolado. Sim, o som específico e o formato de ritmo e palavras foram criados naquela noite pelo DJ Kool Herc, mas a dança, as roupas, a arte de rua, a atitude são importantíssimos aspectos até hoje. É a voz de quem tem que gritar para ser ouvido. É o isolamento nos guetos e decadência de quem está exausto de viver num mundo que parece não ter sido feito para quem ouse vir a este mundo coberto de melanina. Aquela noite, aquela comunidade, aquele bairro, aquela cidade mudaram o mundo. Se hoje existe a menor chance de que um dia veremos igualdade num país incrivelmente racista como os Estados Unidos, a grande razão talvez esteja exatamente ligada ao fato de o Hip Hop ser hoje tão comum. Quando brancos começaram a ouvir, ou melhor, quando os filhos dos brancos começaram a ouvir, dançar, vestir e falar Hip Hop, a conversa teve que acontecer, mesmo que a contragosto. Agora estava ali, na casa do branco - a cultura tão diferente da sua, tão alta, tão explícita, tão cheia de cor e batuque - e o branco não teve mais

Naquela noite, então, as pessoas dançaram e a festa estava cheia. O convite tinha sido feito à mão. O prédio era um conjunto habitacional destinado àqueles que precisavam de auxílio com moradia. A mãe deles fez sanduíches e serviu refrigerante e cerveja para alguns. O endereço era 1520, Sedgwick Avenue

como ignorar quem estava criando e vivendo esta cultura. Se o diálogo não está nem perto de ser resolvido, pelo menos o Hip Hop fez com que comunidades inteiras em todo o país fossem, forçosamente, vistas. Kool Herc só dá entrevistas se for pago. Cansou de ter essa história contada por quem quer que fosse da maneira que fosse e sem nenhum crédito verdadeiro a ele. A história se repete - teve um Elvis, um dia, que podia dançar do jeito negro, mas era branco, então podia. Agora tem Miley Cyrus com a língua de fora seminua e ela pode, porque é branca. As letras de música que outrora mandaram vários homens negros à cadeia, como no caso das festas em Miami, Flórida, agora são cantadas com os mesmos palavrões por vozes brancas. O prédio da Sedgwick Avenue o homem branco também quis comprar. Tombado pela prefeitura como lugar histórico, com a benção do New York Times, que reconheceu o endereço como o local de nascimento do Hip Hop, o prédio agora está seguro e famílias de trabalhadores moram lá, como sempre foi. Pelo menos por enquanto, esta batalha está vencida.

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