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BIXIGA 70 E SEU SOM UNIVERSAL
BIXIGA 70 E O SEU SOM UNIVERSAL
Da levada do reggae às tradições dos pontos de Candomblé e Umbanda, tudo é inspiração para a banda que saiu do bairro homônimo para ganhar o mundo. E lá se vão dez anos de história!
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Por Ana Sniesko
Quando as lojas de discos eram uma parada em nosso caminho, as placas sobre as gôndolas indicavam onde cada qual se encaixava. Como se não existisse espaço para pluralidade, um determinado disco precisava ser rotulado. Pop, soul, jazz, música erudita. E pra quê?
“A divisão entre a música instrumental e a popular não pode existir. Ela só existe para servir à elite e desacreditar as pessoas”, defende Maurício Fleury, tecladista e guitarrista do Bixiga 70, banda que acaba de completar dez anos e que faz música que toca o coração – os deles e os nossos.
A banda, que começou a partir do encontro de diversos músicos no estúdio Traquitana, endereço onde os integrantes ainda se reúnem religiosamente todas às terças-feiras, no bairro do Bixiga (claro!), em São Paulo, faz questão de se desvencilhar de rótulos. “Nós podemos tocar tanto num festival de jazz, quanto em um de música eletrônica ou de música brasileira”, diz.
Como bem disse o maestro João Carlos Martins na última edição da revista 440Hz, só existe música boa. E é esse o som do Bixiga, com um mix de referências que permite um mergulho no som do Mali ou uma viagem através dos timbres até a Índia. “A gente vai desenvolvendo várias linguagens. Tudo sempre foi bem coletivo. No começo, tinha muita inspiração do afrobeat, do Fela Kuti e da música nigeriana, música de Gana, do Mali, da Guiné... O Décio, que é o baterista, e o Rômulo, que é o percussionista, tocaram muito tempo com a Fanta Konate, que é uma dançarina e cantora da Guiné”, justifica.
É sobre esse mix que eles se debruçam para criar um som para ser sentido, livre de obrigações e fórmulas prontas. “Reunimos tudo o que faz sentido, o que nos emociona. Como falar de Airto Moreira, de Hermeto Pascoal... Não dá para rotular a música desses caras. É muito mais do que um som, eles lidam com a gênese da música dentro dos povos”, diz. O que diz muito sobre a própria banda paulistana, que já é cidadã do mundo.
Neste contexto, a ponte entre o popular e o instrumental é uma só e Maurício traz como exemplo o trabalho de Sebastião Bianco, músico da Banda de Pífanos de Caruaru, que recém completou 100 anos e ainda segue emocionando. “Ela tá aí fazendo música instrumental, tocando flauta... Como dizer que isso não é popular também? A música vem do ar que eles respiram, de onde eles vêm, da mata, dessa origem. É uma fluidez que deixa qualquer rótulo para trás”, conta.
SALADA MISTA
Quem vai em um show do Bixiga sente a sincronia como uma característica do grupo, mas por trás dessa harmonia existe uma reunião de músicos com origens e referências distintas. “Apesar de não parecer tanto, nós somos uma banda heterogênea. Cada um veio de um canto”, comenta o tecladista.
O baterista Décio 7 e o guitarrista Cris Scabello tinham uma banda de reggae chamada Afetos. Dali partiram para o dub, onde foram duas figuras das mais proeminentes desse cenário. Já o saxofonista Daniel Nogueira tem uma big band de música brasileira, o Projeto Coisa Fina. Maurício conversa ainda com o rock e com a música eletrônica, como DJ.
O baixista Marcelo Dworecki também toca com Alzira Espíndola e é um dos integrantes do Canções Velhas para Embrulhar Peixes. Douglas Antunes, o mais novo dos integrantes, é um prodígio do trombone e, há pouco, foi convidado para se apresentar ao lado de João Donato. “São vários diálogos paralelos. Tem uma galera que gosta de jazz, que gosta de rock, que curte o dub... A música indiana é uma influência que veio para todos, porque a gente foi para a Índia tocar. Ainda assim, cada um recebeu essa referência de uma maneira. Eu fui atrás dos discos de Bollywood, outros caras foram atrás da percussão”, relembra, ao se referir a uma temporada de shows no país ao lado da cantora Tulipa Ruiz, em 2013. Esse mix garante novidades sempre frescas, onde tudo o que vale a pena ser ouvido é tinta para a nova pintura. “É um negócio bem caleidoscópico. Pode soar como qualquer coisa. A gente não tem outra intenção que não seja soar divertido, animado, é essa a nossa essência”, diz. Como uma raiz comum para todos, os pontos de religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, também foram alimento nessa história.
“Uma banda que foi muito importante pra gente no começo foram Os Tincoãs, um grupo vocal dos anos 1960 e 1970, do qual faz parte o Mateus Aleluia, que é o único que está vivo e na ativa. Eles fazem a transposição dos pontos de Umbanda para a música e é uma inspiração para nós”, conta Fleury.
O percussionista Pedro Santos, conhecido como Pedro Sorongo, é outro com presença marcada na bagagem inspiracional do Bixiga. “Ele é um percussionista maravilhoso que fez um trabalho sem precedentes, isso nos idos de 1950 e 1960”, dizem, se referindo principalmente ao álbum Krishnanda, um disco experimental lançado em 1968.
DO PALCO AO ESTÚDIO
Como fazer para organizar todas essas ideias e esses sentires diferentes? “Não faz. É o caos que é criativo. A gente só precisa de organização para pegar um voo, fazer um show... Criativamente a gente não tenta organizar, cada um vai colocando o que acha. Vai soando diferente para cada um”, fala sobre o processo de composição.
E assim, livres e leves, as ideias chegam e o som da big band sai. “Vamos somando as ideias e às vezes desafiando um ao outro. Toca uma coisa assim, faz um som diferente... Hoje em dia não tem mais essa de quem cria. Quando vem uma música, a composição é coletiva”, comenta.
Depois de três álbuns encarando a espontaneidade das gravações ao vivo, Quebra Cabeça foi criado com a precisão das gravações de estúdio. “Somos uma banda de palco, mas a gente se formou no estúdio. No começo, gravamos bem à moda antiga, tudo valendo, sem overdub. Depois de três discos assim, nós fizemos uma versão dub do terceiro, chamado The Copan Connection, pelo nosso selo Glitterbeat”, conta sobre a obra que foi lançada na Europa. Produzida por Victor Rice, foi o encerramento, em grande estilo, de uma parceria que começou no primeiro álbum.
“A gente achou que era hora de fazer um disco diferente, mais linear, com a produção do Gustavo Lenza. Ele foi uma figura bem importante, porque não sabíamos muito para onde ir. E ele foi fundamental para dar esse tom”, comenta sobre o trabalho do produtor, que algum tempo antes levou o Grammy Latino de melhor engenharia de som com o álbum Tropix, da Céu. Sobre o resultado, Maurício considera um disco melhor para ouvir. “Tudo a gente foi testando e ampliando o leque de possibilidades. Tem uma música chamada Camelo que é quase um house, uma música bem reta, como uma música eletrônica”, exemplifica.
Embora a catarse da gravação ao vivo seja uma injeção de adrenalina, eles já estavam cansados. “Gravar ao vivo é legal pra caramba, mas exige muito. Dessa vez foi com muita atenção para cada detalhe. É mais um disco que vale por si do que o cartão de visita de uma banda de palco”, comenta.
Lenza conduziu o trabalho do coletivo com respeito às vontades, embora a horizontalidade natural do grupo tenha sido comandada desta vez. “Era hora de alguém ajudar a gente a bater o martelo. O Lenza não cortou nada. Ele deu as ideias dele, mas não nos proibiu de nada”, conta.
“Agora a gente quer um barulho de reverbe, que é aquele barulho de molas nas guitarras. E ele ligou o reverbe dele de molas, deu uns tapas lá e saiu o som. É esse, é esse... Vamos! Sem medo e sem julgar. Sem pudores. Ele não foi um produtor nada careta. Ele só quis saber de tocar e seremos eternamente gratos por isso. A gente aprendeu muito sobre cada etapa do processo, sobre a gente... Foi incrível”, fala sobre o nascimento de Quebra Cabeça.
UMA CRIA COLETIVA
Ainda no quesito referências, Tim Maia é unanimidade entre todos os integrantes do Bixiga 70. “Ele foi uma figura muito ímpar para a nossa música. Tim não foi só um grande músico, ele foi o maior produtor que o Brasil já teve. Os discos dele dão pau em muito disco gringo. Ele sabia exatamente o que queria. Por mais difícil que ele fosse, a indústria não conseguia ficar sem. A genialidade dele falava mais alto”, comenta.
Com os relançamentos da obra nos Estados Unidos e Europa, Maurício acredita que, finalmente, ele conquistou o seu lugar no panteão dos maiores gênios da música mundial. “São poucos no mundo que tiveram a visão do Tim Maia. Ele conseguiu fazer uma obra primorosa. Os discos independentes dele são muito melhores do que obras das gravadoras com mais grana, com mais possibilidades”, opina.
Fonte de inspiração para o Bixiga, Maurício conta que a banda Vitória Régia faz parte do crescimento do grupo. “É uma fonte inesgotável de inspiração. Quando chegou a soul music no Brasil, só o Tim Maia conhecia. Ele plantou sementes que nunca vão morrer, como o movimento Black Rio”, exemplifica. Assim como era para Tim, o Bixiga 70 acredita que música sem diversão não vale a pena. É por isso que cada apresentação do grupo é única e coloca todo mundo para dançar. “Toda música é instrumental. A letra é a poesia do negócio. Tudo inspira a gente a fazer músicas que não são um exercício de melodia e harmonia. São melodias simples, cantáveis... É uma questão do que emociona a gente”, comenta. “Sempre fomos uma banda de canções instrumentais. Pensamos em histórias sendo cantadas por melodia. A gente tem letras de brincadeira para quase todas as músicas”, ri. E para quem quer cantar, uma nota basta.