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O QUEBRA-NOZES E A INVENÇÃO DO NATAL MODERNO

O QUEBRA-NOZES E A INVENÇÃO DO NATAL MODERNO

Por Anneliese Kappey

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Composto em 1892 como um ballet em dois atos para ser coreografado por Marius Petipa e Lev Ivanov, o Quebra-Nozes não agradou. O libreto foi adaptado por Alexandre Dumas da estória de E. T. A. Hoffmann, “O Quebra-Nozes e o Rato Rei”, e a recepção do público foi amena. Hoje, no entanto, mais de cem anos depois, o ballet é reproduzido por inúmeras companhias profissionais, especialmente no Estados Unidos. A venda de ingressos para a tradição natalina de ver o Quebra-Nozes ao vivo representa cerca metade do orçamento anual de algumas companhias. O ballet completo é uma das mais famosas e, mais populares composições de Pyotr Ilyich Tchaikovsky. O que aconteceu e que transformou esse ballet de fez de um fracasso inicial em, um enorme sucesso?

A resposta está na astúcia de um outro nativo da antiga União Soviética, George Balanchine. Em 1954, o New York City Ballet, fundado por Mr. B apenas seis anos antes, sabendo do potencial nas áreas mais remotas dos Estados Unidos, ainda pouco apresentadas a artes, e especialmente ao ballet clássico, viu alguns fatores àa disposição de seu uso. A estabilidade econômica do pós-guerra não havia, até então, existido em nenhum lugar do mundo. Uma necessidade de grandeza e engrandecimento por parte dos americanos, agora que se sentiam parte do mundo e líderes morais deste mesmo mundo - enquanto a Europa se reconstruía. Oras, nada é mais encantador aos olhos do nouveau riche do que exposição a artes e cultura. Com a abundância de renda disponível e a necessidade de continuar a fundar sua relativamente nova companhia na cidade de Nova York, Balanchine viu no Quebra-Nozes a enorme oportunidade de unir a fome com a vontade de comer. E o fez. Incrivelmente bem, por sinal. Balanchine vendeu o Quebra-Nozes como um dos espetáculos que ‘não se pode perder’. Sendo russo, tendo visto tudo o que americanos nunca viram do lado de lá, George Balanchine se posicionou como influencer, num mundo pré-Instagram. Num país cada vez mais secular e fiel à religião capitalista, Ba- lanchine vendeu uma tradição natali- na que tinha tudo, menos Cristo. Todo mundo aplaudiu.

Nos próximos anos seguintes, companhias pelo país inteiro a ouviram o chamado. Começaram a viajar e fazer turnê com o Quebra-Nozes, “versão de Balanchine”, eles escreviam nos cartaes! Em Nova York, oO Quebra-Nozes nunca mais saiu de cartaz, desde 1954. Todos os anos esperamos pelo espetáculo, levamos família e amigos, tira- mos fotos e postamos. O espetáculo se ampliou-adicionou e hoje acompanha a lista que inclui as “Rockettes to Radio City Music Hall”, a produção da “Flauta Mágica”, de Mozart, pelo Metropolitan Opera, e a rendição de “Messiah”, de Handel, pela filarmônica de Nova York. No resto do país, companhias de ballet, colégios, faculdades, centros comunitários, teatros amadores: todos apresentam o Quebra-Nozes. Que o Natal capitalista moderno foi inventa- do em Nova York, é algo que já foi até especulado em teoria econômica. Já se escreveu a respeito da participação de Balanchine nesta trajetória. Mas onde encontramos Tchaikovsky neste quadro atual?

Na música. Na lindíssima música do “Grand Pas de Deux” entre a Fada Açucarada e seu Cavalier - uma parte criada após a morte da irmã do compositor; com melodia composta baseada numa sequência de uma única escala de oitava, porque o compositor havia apostado

com um amigo que podia fazê-lo. Ou na exuberante “Valsa das Flores” que precede o Pas de Deux, e é a representação sonora da mais bela flor que cada um de nós imagina colher. Tchaikovsky está na riqueza de detalhes em cada uma das nações representadas no Reino dos Doces, ou segundo ato. Na rápida e intrigante dança flamenca dos espanhóis, na frenética e contagiante energia dos russos, nda calma e misteriosa sabedoria dos árabes, na hospitalidade dos chineses.

Começamos, então, a entender melhor a recepção calorosa e universal do ballet em uma cidade como Nova York, especialmente quando apresentado com o conhecimento de um mestre como George Balanchine. Tchaikovsky nunca achou que o Quebra-Nozes fosse tudo isso, e morreu preferindo seus outros ballets. De qualquer forma, estamos gratos pela música, pela dança e pela oportunidade de criar tradições natalinas que separam a Igreja e o Estado, ao menos por enquanto.

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