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,,Editorial

,,Destaque

Ricardo Paulouro

© Margarida Dias

Pesquisar a obra e a carreira de Jorge Molder é descobrir a multiplicidade. Robert Bresson disse-o de uma maneira exemplar que talvez possamos aplicar ao trabalho de Molder: “Onde não existe tudo, mas onde a cada palavra, a cada olhar, a cada gesto algo mais subjaz”. De facto, a fotografia confronta-nos com o silêncio mas oculta as palavras que, a qualquer momento, rompem a fotografia e nos invadem. A já longa carreira de Jorge Molder faz dele não só um dos melhores artistas portugueses, mas sobretudo um dos melhores fotógrafos do século XX. O que aqui se reproduz são imagens, “folhas” soltas (ou não) de várias imagens que o próprio artista organiza sob o nome “Entrada por Saída”. O resto é a impressão de uma estética única, que dialoga aqui com a linguagem cinematográfica, tão próxima, aliás, da fotografia, o preto e branco, o corpo que lança ao espectador um enigma… o resto é Jorge Molder. A pretexto dessa escrita com imagens, a A23 associa-se a uma iniciativa tão louvável como é o Imago, desta vez subordinado ao tema “Da película ao HD”. Se, por si só, o Festival de Cinema é uma lufada de ar fresco no Interior do país, mais uma vez com lugar marcado na cidade do Fundão, a programação faz jus à qualidade a que o Imago já nos habituou: Jonas Mekas; David Lynch; Rui Poças; Xavi Gimenez; Khan; Gonzalez; Kalabrese e tantos outros nomes integrados neste evento que reúne jovens realizadores e oferece a possibilidade ao público português assistir a filmes habitualmente não distribuídos no nosso país. À exposição de credos estéticos consagrados, soma-se o facto de jovens artistas verem as suas obras partilharem o mesmo espaço. É essa não separação que gostaríamos de realçar aqui: é apenas a obra a protagonista e que, por isso, não se importa com falsas modéstias nem de agradar a todos. Para além do grande tema que domina esta revista – o cinema, a A23 dá continuidade a um dos géneros mais prezados, pela forma como a objectividade se conjuga com a subjectividade: a Reportagem. Neste número, a grande reportagem abre uma janela sobre a forma como o sexo é visto e “consumido” pelas populações das cidades do Interior. Vários estudos têm sido publicados a este respeito, convergindo na ideia de que o conceito de sexo em Portugal está a mudar. Mas muitos hábitos permanecem e conformam a nossa forma de encarar a sexualidade, ainda hoje para muitos assunto privado e tabu. Num registo diferente, a escritora Antonieta Preto aceitou o desafio da A23 de acompanhar a rota de um dos maiores barcos de velas do mundo – a “Traslatio Literaria e Xacobea” que, com partida a 12 de Agosto, revisitou a antiga rota marítima da Idade Média, entre Valência e Santiago de Compostela. Através do olhar e da sensibilidade poética de uma escritora, o mar correu nas veias dos que embarcaram nesta aventura, onde marcaram presença outros escritores como o português Possidónio Cachapa, a escritora galega Luísa Castro e o poeta Xulio Valcárcel. Destaque ainda para o Dossier deste número que reflecte sobre a preocupante e quase inexistência de espaços verdes nas cidades, contribuindo sobremaneira para a degradação da qualidade de vida dos seus habitantes. Olga Roriz, em discurso directo ou o perfil de um nome forte da Arquitectura como Chorão Ramalho sobressaem neste número. Ainda com o dedo no mapa da nossa vida, as crónicas de Manuel da Silva Ramos e de Rita Barata Silvério e muitos outros temas para descobrir. Faz-se assim o balanço do terceiro número desta publicação, já com um ano de existência. Continua a interessar-nos tudo acerca da cultura e da sociedade, hábitos, tradições, estéticas que exigem ser ditas. O desejo mantém-se: o de fazer da A23 um interlocutor com todos aqueles que nos vão mostrando como, todos os dias, há novas ideias que nos espantam e que nos dão prazer.

© Rui Monteiro

Retocar o real com o cinema

P.04 REPORTAGEM

P.02 OPINIÃO

Reportagem libertina, entre bordéis à beira da estrada, estudos sobre sexualidade na adolescência e segredinhos sexuais, escondidos nas alcovas do puritanismo beirão. Com Ovídio como companheiro e os ensinamentos da “Arte de Amar” no bolso, partimos à procura de sexo sem vista para o mar …

P.10 PORTFÓLIO

O amor exposto é para consumo na casa

P.08 DOSSIER CIDADANIA

Verde Urbano

Preocupada com a manutenção dos espaços verdes nas cidades, a Comissão Europeia encomendou recentemente um estudo sobre o assunto. Esse estudo concluiu que as zonas verdes, os parques e jardins das cidades, são essenciais a três níveis: ambiental, social e psicológico. Alem de serem agentes contribuidores para a diminuição da poluição citadina e temperadores do clima, representam ainda um importante pólo de encontro e diversão social, potenciador do equilíbrio emocional na vida atribulada e de stress do cidadão urbano. Viajámos pelas cidades da Guarda, Covilhã, Fundão e Castelo Branco e tentámos apurar se são ou não “cidades verdes”.

“A crise da democracia”; “A aldeia”; “O rei vai nu” Jorge Molder - “Entrada por Saída”

P.17 SUPLEMENTO ESPECIAL “IMAGO”

P.25 CRÓNICA

“Uma aventura na noite de Monsieur Ramos”

P.26 ENSAIO

“Antonioni e o duplo”

P.28 ENTREVISTA

“Olga Roriz - Dançar com as palavras, escrever com o corpo”

P.30 ARQUITECTURA

Chorão Ramalho: “a obra e a pessoa”

P.32 VIAGEM

Escritores a bordo

No dia 12 de Agosto atracou em Lisboa um dos maiores barco de velas do mundo para nele embarcarem os escritores portugueses Antonieta Preto e Possidónio Cachapa, juntando-se a mais de uma vintena de escritores espanhóis, que foram embarcando nos vários portos. A rota, denominada como “Traslatio Literaria e Xacobea” pretende recuperar a antiga rota marítima (entre Valência e Santiago de Compostela) da Idade média, e rememorar a última viagem dos restos do apóstolo São Tiago quando foi trasladado desde Jerusalém até Santiago de Compostela. A A23 pediu à escritora Antonieta Preto que transmitisse o seu olhar sobre a viagem...

P.36 CULTURA

“Do subterrâneo da cultura, a geração instintiva, o teatro manifesto”; “A essência da subtração”; “Eve, o perigo da banalidade”

P.38 INTRIGAS CINÉFILAS P.39 GASTRONOMIA

“Quinta da Hera - Um Éden de Restaurante na Cova da Beira”

P.40 MEMÓRIA

Director/ Ricardo Paulouro Director-adjunto/ Pedro Leal Salvado Chefe de Redacção/ Margarida Gil dos Reis Colaboram neste número/ Antonieta Preto, António Leal Salvado, César Rodrigues, Jacinto Galião de Tormes, Luiz Antunes, Manuel da Silva Ramos, Nuno Teotónio Pereira, Pedro Fiúza, Pedro Ramos, Rita Barata Silvério, Rodrigo César, Rui Pelejão Marques, Sérgio Felizardo, Vasco Paulouro Neves Design Gráfico/ contiudo.com | David Duarte, Nuno Lages Foto de Capa/ Jorge Molder Fotografia/ Adriano Batista, David Duarte, Filipa Carvalho, Jorge Molder, Margarida Dias, Nuno Reis Gonçalves, Rui Dias Monteiro Ilustração/ Lucas Almeida , Sicrano Periodicidade/ Trimestral Tiragem/ 10.000 exemplares Impressão/ Mirandela Artes Gráficas Distribuição/ Gratuita Propriedade/ Associação Cultural A.23 | associacao23@gmail.com | www.contiudo.com | contiudo@gmail.com Número registo na ERC/ 125073 Morada e sede de redacção/ Rua dos Três Lagares - Edifício Laranjeiras, Torre 3, 6º - 6230 Fundão A.23 // 01


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Sinais

+ Aquilino Ribeiro no Panteão Nacional Os restos mortais de Aquilino Ribeiro foram trasladados para o Panteão Nacional. Mestre da língua, Aquilino recebe assim uma das maiores homenagens que a Pátria presta aos seus nomes maiores. É de salientar aqui a iniciativa da Assembleia da República que, com esta iniciativa, reforça a importância de Aquilino Ribeiro no panorama da cultura em Portugal. 44 anos passados da sua morte (Aquilino morreu em 1963), esta homenagem era já aguardada por muitos, não pela homenagem ao morto mas, pelo contrário, a provar que a presença e as palavras de Aquilino continuam vivas dentro de todos os que o leram, ouviram ou com ele privaram.

- Onde pára o Cineclube Gardunha? Nos últimos anos, o Interior do país tem conseguido ganhar verdadeiras apostas a vários níveis, tentando fugir, de uma forma ou de outra, ao fatalismo deprimido de se tratar de uma região hierarquizada, em termos culturais, relativamente às grandes cidades. No entanto, iniciativas como a do Cineclube Gardunha trouxeram ao Fundão um sopro de vitalidade que atraía espectadores de todas as idades. A 7ª arte continua a ser das mais procuradas e, um pouco por todo o mundo, tornou-se uma arte democratizada, ao alcance de todos. Contudo, é de lamentar que iniciativas desta natureza esmoreçam e não exerçam uma actividade regular. Mais triste ainda é que os habitantes da cidade do Fundão se tenham de deslocar às localidades vizinhas – Covilhã ou Castelo Branco - para assistirem a um filme. Estranho será o facto de, com a inauguração, há precisamente um ano, de uma estrutura cultural como a Moagem, esta situação se manter. Não terá o século XXI chegado ao mesmo tempo para todos?

- As cidades de betão Quando se fala em ‘qualidade’ de vida não é difícil associarmos esta expressão a espaços onde a qualidade do ar, o convívio com a natureza é preservado. Contudo, se é certo que as cidades do Interior do País reúnem todas as condições para atraírem mais habitantes, movidos por este desejo, assistimos, cada vez com mais velocidade, à construção urbanística desmesurada e, sobretudo, desorganizada. O verde das serras continua a existir, a tentar servir de pulmão, mas nas cidades os pequenos espaços verdes de lazer parecem estar condenados a desaparecerem. O jardim não é um terreno desperdiçado. Muito pelo contrário, é uma necessidade vital.

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A crise da democracia

Texto | Vasco Paulouro

Em meados do século XX, muitos intelectuais e teóricos políticos ocupavam o seu precioso tempo a reflectir sobre a natureza da relação entre o capitalismo e a democracia, nomeadamente quanto à possível incompatibilidade “genética” entre os avanços em matéria de direitos democráticos nas sociedades centrais do sistema capitalista mundial e a própria essência do desigual sistema capitalista. Dito de outro modo, julgava-se que o carácter igualitário e inclusivo do processo de democratização iria inevitavelmente entrar em ruptura com o capitalismo, por natureza desigual e excludente. Aquilo que nos parece hoje uma análise absurda era na altura bem compreensível. Vivia-se então em plena “euforia” do pósguerra, o crescimento avassalador da economia mundial coincidia com a emergência de um Estado-Providência que era fruto da pressão de um movimento operário poderoso e activo, assim como do “papão” comunista, a União Soviética imperial, que emergira dos escombros da segunda guerra mundial. A época era de optimismo e de crença no progresso. O ritmo impressionante das conquistas sociais promovido através do Estado-Providência e a redistribuição económica que o mesmo impunha, e que teve como consequência mais óbvia a inclusão política dos trabalhadores nas democracias liberais, deixava antever uma transformação interna radical do capitalismo, quem sabe até mesmo a sua superação. O sonho da social-democracia parecia estar a concretizar-se. Hoje, é evidente que esta suposta incompatibilidade foi contrariada pelo caminhar da História. Não só capitalismo e democracia se revelaram compatíveis, como o avanço da democracia, desde a chamada terceira vaga da democratização protagonizada pelos países do sul da Europa, nos anos 70, até à actual “exportação” do modelo democrático a todo o mundo, se fez a par com a emergência do processo de globalização neoliberal e as suas dramáticas regressões ao nível dos direitos sociais adquiridos no pós-guerra. A democracia passou mesmo a

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constar, a par das famosas medidas de reajustamento estrutural, no programa de receitas neoliberais elaborado pelo FMI ou o Banco Mundial. A apresentação da receita neoliberal – regressão em relação aos direitos sociais adquiridos no pós-guerra, privatização dos serviços públicos ou a desregulação e “flexibilidade” das relações laborais são alguns dos elementos mais óbvios desta receita – como uma realidade inquestionável e impossível de contrariar, está a dar origem a um crescente desencanto em relação à democracia e à política. “Não há alternativa!”, repetem-nos insistentemente, não vamos nós suspeitar dos novos iluminados da economia. Através de um falso realismo, aparentemente neutral e objectivo, a ideologia hegemónica afunilou a realidade social, reduzindo a política ao deprimente papel da mera gestão do capitalismo realmente existente. Se a História chegou ao fim, como dizia Fukuiama, também a política se tornou uma futilidade dispensável. Esta enorme decepção, que frustra tanto aqueles que tinham a justa expectativa de maior inclusão social com o advento da democracia, como aqueles que, nas sociedades centrais, se julgavam seguros e que vêem agora os seus direitos esfumaremse, só vai alimentar, cada vez mais, e de uma forma que pode ser dramática, a crise da democracia enquanto regime político. A crescente abstenção eleitoral, o cinismo e o cansaço em relação à vida política ou o descrédito dos partidos políticos perante os cidadãos são sinais claros e inquestionáveis dessa crise. Foi como se tivesse sido invertido o modelo relacional explicativo de que falámos no início deste texto. Não é a democracia que vai provocar a crise do capitalismo, mas sim a radicalização do capitalismo que está a levar à crise da democracia. E neste contexto, o perigo da emergência do populismo e da extremadireita na cena política europeia é cada vez mais uma realidade. Pelo menos neste aspecto a consciência histórica da Europa é inegavelmente curta. [x]

A aldeia

Texto | César Rodrigues

Quando se imagina a capital à distância de alguns quilómetros, no aconchego de um vale ladeado por altas serranias, imaginamo-la com gente apressada, socialmente activa e disponível para surpreendentes divertimentos. Mas eis que quando mergulhamos no seu âmago, nos bairros históricos, destapamos a vida aldeã que julgáramos inexistente. Nos núcleos populacionais antigos de Lisboa fervilha o espírito bairrista, que pouco se diferencia do aldeão, a não ser talvez pela indumentária dos mais jovens - o boné e o brinco na orelha, tudo misturado com o andar gingão -, a pronúncia e o ritmo apressado com que se desfiam conversas. Talvez escasseiem características diferenciadoras que o leitor se tenha lembrado. Esta rua donde escrevo, a paredes-meias com os Sapadores, é tal qual a rua principal de uma aldeia. Aliás, a população que a habita e os que vêm de um pouco mais distante para dela tirarem proveito é em número igual ou superior a algumas aldeias beirãs. Ela desce em direcção ao centro do vale, é

extensa, mas estreita a tal ponto que os automóveis quando a atravessam, todos no mesmo sentido, desaceleram. Tem tascas, onde alguns aldeões populares refrescam a garganta com o sabor da cevada gelada e borbulhante ou com o barato vinho, desde a juventude do dia até ao anoitecer. Falam de futebol, pois então. E emprestam aos argumentos fervorosos sentimentos, pois se trata do tema central para os pouco desenvolvidos espíritos. Enquanto isso, as mulheres atravessam a rua, em movimento pelas mercearias, donde sacam o manjar, ainda nas formas rudimentares dos legumes. Trazem soltas as crianças, algumas delas pobremente vestidas. Uns e outros falam alto, como se entre eles houvesse um campo de trigo. O mais certo é que o cinema, esplanadas, conferências é coisa que estes aldeões desconhecem. É como se aqueles altíssimos prédios além fossem montanhas. A cultura e a urbanidade está lá ao longe, bem longe. [x]


,,O rei vai nu Texto | António Leal Salvado

Informação e Comunicação Chamar a isto em que vivemos a sociedade da comunicação é um lugar comum. Por isso mesmo é que é importante dizê-lo e, sobretudo, pensá-lo. Desde logo, por ter-se tornado lugar comum – com todos os malefícios, os da banalização e os agregados – e pela ênfase com que se eleva ao estatuto de característica definidora o acto mais instintivo e rudimentar do animal social. Mas também porque não é por acaso que no centro da vida pública o dicionário fez deslizar para um certo sentido de comunicação os benefícios dos prodigiosos recursos da informação. Sentido único, apetece adiantar – mas já lá chegaremos. Já não falamos dos factos da informação, dos meios e dos agentes de informação; falamos dos objectivos da comunicação, dos recursos e das agências de comunicação. Como por ironia, as técnicas que poderiam melhorar a transformação do conceito de informar num fluxo de conhecimento nos dois sentidos levaram os seus novos donos (das técnicas) a transfigurar a informação interactiva numa nova arte de comunicação unilateral. Os novos técnicos de comunicação sabem como tornar aparentemente vivo o que ainda não nasceu e, quem sabe, poderá jamais nascer. A esperteza da nova comunicação tem várias técnicas – desde a de saber averiguar o que o destinatário prefere ouvir até à de adocicar o presente com bálsamos de uma ideia de futuro que, por ser de futuro, só é possível de vislumbrar como projecto, sendo que um projecto é o que é: uma figuração da realidade e não a própria realidade – e aqui a questão é a de tornar a figuração tão verosímil, tão plausível, tão parecida com a realidade, que aqueles que esperam por César se bastem com admirar a mulher de César. Evitemos a incómoda palavra que é manipulação e digamos que o engenho dos novos espertos da comunicação é o de saberem vender um futuro incerto numa embalagem de presente certo. Tudo está em saber escolher o que se diz e o que se omite, na cuidada aproximação do que é ao que parece, como no caso da mulher de César. O mundo da Economia deu o mote: gerou o marketing, conceito de etimologia curiosa mas de resultados sérios. Os novos césares, os grandes césares e os pequenos césares, deixaram-se seduzir pela arte da sedução. E na tautologia da sedução descobriram que não é mais que uma tautologia o estatuto deles próprios: têm mais argumentos porque usam mais os argumentos. Enquanto se tiram as provas da bondade dos argumentos eles governam e enquanto governam têm mais argumentos. O que é preciso é argumentos – e produzir argumentos é incomparavelmente mais fácil do que produzir obra. Afinal não é difícil chegar a César.

Os césares O uso da propaganda (da tal comunicação dos objectivos, técnicas e agências) se é mais antiga que o grande César, é hoje moda obsessiva dos novos césares. E tornou-se num compulsivo vício – mais um – para os pequenos césares. O recurso aos fazedores de imagem, mais venenoso quando aplicado a grandes multidões e pelos meios mais massivos, é mais apetecível e está mais à mão dos que falam para auditórios menores, embora mais sujeito a ser desmascarado pelas próprias pedras da calçada que qualquer comum mortal pisa no quotidiano. Mas, porque por natureza se contenta

com objectivos de curto prazo, ainda dá mais resultados do que reveses. Daí os pequenos césares que, uma vez instalados no império de uma simples autarquia, ditam fiat lux com a mesma convicção com que se curvaram em amen intermináveis e invariáveis até que conseguissem o ceptro do império. O desastre do apelo à pedrada feito recentemente por um pequeno-grande césar para reagir à queda da máscara da legalidade, mesmo tendo ocorrido no cavaquistão, só aconteceu porque por detrás das notórias deficiências de comunicação havia outras deficiências mais profundas.

Um festival No passeio de final de férias pela Província, a artista da capital soube do festival e achou piada à designação, talvez pela convivência da toponímia tradicional com o layout anglo-saxónico. Nas letras pequenas do anúncio grande descobriu o horário de uma exposição – parecia ser de artes plásticas. Dirigiu-se à rua de memórias muitas e entrou na velha loja que albergava a esperada expressão de cultura. Entrou e viu espaços vazios. Perguntou o que havia para ver na exposição. Responderam-lhe que não era para ver, era para imaginar – que cada visitante visse nos espaços vazios o que bem lhe desse na real gana. A entendida senhora olhou a toda a volta e de relevante não conseguiu descortinar mais do que dois pequenos quadriláteros de azulejo numa parede – e voilà, eureka, atenção. Pelo sim pelo não, perguntou à voluntariosa assistente do lugar se o cerne da exposição era aquela geométrica mostra de azulejaria. Que não, uops, que os azulejos tinham ficado agarrados à parede da antiga loja de comércio… A visitante saiu, dispensando o “olho clínico” de quem levou uma vida a transpirar obras de arte e preferindo refugiar-se na imaginação das coisas genuínas da vila erudita de outrora, como que sublimando a parola megalomania da cidade kitsch de hoje. Prosseguiu na rua de nome tradicional, de nome igual ao do “festival” pomposamente alardeado, como se o que lera nos outdoors, de vocabulário tipo néon e redacção tipo pimba, não fosse mais que o ingénuo espelho de algum ideólogo suburbano que os mandou imprimir em hora de “deu-me para aqui”. Procurou pela animação da rua tradicional que era suposto acolher o festival. Nada. Do festival só lhe deram a saber que nesse mesmo dia haveria uma performance na velha praça da cidade. Local central, bom tempo para o serão na esplanada, fachada do belo edifício local a emoldurar – e descobriu-se o evento dito artístico. Uma pandilha vinda de muito longe estava no alto de um palco ambulante a desfazer-se num desempenho que se decifrava nisto: hora e meia a confeccionar uma inutilidade culinária de um país de outro mundo, de uma cultura de mundo nenhum. Dos ombros caridosamente encolhidos da assistência ainda houve quem aventasse que aquilo eram palhaços. Saciada a meio da palhaçada, a forasteira indagou discretamente pelo boné da moedita para a desfanfarra. Desnecessário – a facécia era patrocinada e estava paga. Dinheiro vivo e verdadeiro da banca, com generoso endosso municipal. Presente da autarquia local. Fim do festival de nome espavento-tradicional para a artista visitante. Regressada a Lisboa, dizia no estremunhado cartão dirigido a um filho da terra: ”Que pena! Tudo isso não passa de uma ridícula mentira!”.

Mentira Mentira. A palavra é dura, fria, cruel… digamos: certeira. Tão certeira e eficaz que ela própria, a palavra, é muitas vezes mentirosa. Ilude a sua condição de sóbrio substantivo e impõe-se no lugar que lhe não pertence. No desengraçado caso do festival que a artista de Lisboa não viu, o que sucedeu, dêem-se aos adjectivos as voltas que se derem, foi que os eventos, as performances, os performers e o próprio cenário não eram bons nem maus, não eram belos nem feios, não eram sérios nem brejeiros – eram mentira. Simples e friamente, pura e redonda aldrabice. Mentira parola, diria eu, não tivesse já visto este adjectivo ‘ser’, também ele, incómodo que nem uma carapuça. Mentira é um vocábulo diabólico. Tão diabólico que em situações de tal significativa insignificância se transforma na única (e divinal) palavra que exprime a verdade. Diabólica, sim, é o que a mentira é. Diabólica nas manhas com que seduz os enganados – mas ainda mais diabólica na irresistibilidade com que se dá ao manejo dos que vivem de ludibriar o alheio, quantas vezes à sombra das cuidadas paredes do engenho e das artes. Afinal, muitos medram à sombra do que não é mas convém que pareça – e muitos mais são enrolados no que parece muito mas não é coisa nenhuma. O pior é que aquilo que parece ingénua ficção de somenos é muitas vezes astuta intrujice de coisas sérias. Num mundo em que as técnicas da comunicação e do marketing são ou arranjam solução para quase tudo, mentir é um caminho curto para se chegar longe. A esperteza de urdir, amplificar e instituir a mentira pública é uma poderosa ferramenta ao serviço daquilo a que chamam imagem – que é como quem diz propaganda. A vida pública tornou-se num circo em que o importante é exibir o número mais aparatoso. Mentir compensa. No ilustrativo exemplo da exposição que a artista de Lisboa pensava encontrar há um maquiavélico traço de união entre as obras que não estiveram expostas, a festa que não aconteceu na rua do festival e os palhaços que não fizeram graça: no vazio dos conteúdos que (não) aconteceram houve uma mão cheia de acontecimentos que se propagandearam. No deserto da inteligência cultivou-se a sombra da esperteza. Questão de cultura, ou de imagem – ou da miragem. A bilheteira do circo abriu, cada um que veja o número como lhe der na real gana, pede-se um forte aplauso que o espectáculo terminou. Recolhe-se o arame, desmontam-se os trapézios, folgam os animais – e os palhaços já preparam novas graças. [x]

Diabólica, sim, é o que a mentira é. Diabólica nas manhas com que seduz os enganados – mas ainda mais diabólica na irresistibilidade com que se dá ao manejo dos que vivem de ludibriar o alheio, quantas vezes à sombra das cuidadas paredes do engenho e das artes. OPINIÃO // 03


Este artigo contém linguagem explícita e não deve ser lido na presença de encarregados de educação, membros do clero ou outras autoridades incompetentes.

,,O amor exposto é para consumo na casa Texto | Rui Pelejão Marques Fotografia | Adriano Batista

Reportagem libertina, entre bordéis à beira da estrada, estudos sobre sexualidade na adolescência e segredinhos sexuais, escondidos nas alcovas do puritanismo beirão. Com Ovídio como companheiro e os ensinamentos da “Arte de Amar” no bolso, partimos à procura de sexo sem vista para o mar … 4 // REPORTAGEM


“Portugal é um país de moralistas que até chateia. Precisava era de ser pasteurizado em merda de uma ponta à outra”. José Cardoso Pires, em “A balada da praia dos cães” Um jardim Zoológico em Amesterdão guindou-se às páginas dos “fait-divers” da imprensa internacional quando promoveu o primeiro encontro “online” entre orangotangos, instalando “webcams” para os primatas holandeses poderem conhecer potenciais parceiros sexuais na Indonésia. Está-se mesmo a ver – orangotango respeitável, com boa posição social, procura orangotanga jovem, para relacionamento honesto. Esta alcovitice da macacada é apenas um dos milhares de artigos sobre sexualidade animal que é possível bisbilhotar na Internet. Mas afinal, qual é o maior predador sexual a caminhar sobre a Terra? Pois é, o tal que inventou a roda, foi à lua, criou a pílula e o Viagra, o vibrador, as algemas e a pornografia “payper-view”? Sobre os seus hábitos e comportamentos sexuais multiplicam-se estudos credíveis e de ciência certa, misturados com balelas humoradas, que nos garantem, por exemplo, que os filipinos são quem mais se masturba (6 vezes por semana); que as italianas são as europeias que se destacam na prática da ginasticazinha sexual, com uma média de quatro sessões por semana; ou até que o futuro da humanidade é o bissexualismo, como defende um antigo Ministro da Saúde italiano. Mas, se como escreve Manuel da Silva Ramos no seu último livro – a Internet é uma foda mal dada – não há nada sobre sexo que o Google nos possa desvendar que Freud não tenha coscuvilhado já. Especialmente se o que nos interessar for o sexo sem vista para o mar, no interior de Portugal. Por isso, toca de embalar a trouxa e zarpar para esta reportagem libertina com um companheiro de odisseia muito especial…

A ronda da noite A lua cheia de Agosto inunda com o seu candeeiro de luz branca a Cova da Beira. Noite de lua cheia como um queijo da Soalheira, de lobisomens e de apetites sexuais. Sento-me num bar do Fundão com o meu companheiro de viagem. Pedimos dois tintos da adega cooperativa para soltar a língua. Passo às apresentações - Públio Ovídio Nasão, poeta romano que viveu no dealbar da nossa era, cronometrada pelo nascimento de Cristo. Grande lírico do amor, era o preferido da mundana sociedade do seu tempo e conquistou a imortalidade com a sua obra “A Arte de Amar”- virtuoso guia para a perda da virtude. Um livro onde enaltece e glorifica as paixões libertinas, o amor ligeiro, o desejo carnal sem culpa nem angústia, e em que descreve com precisão intemporal as artimanhas para saquear os Templos de Vénus; os locais onde encontrar mulheres e como conquistá-las; dando-lhes a elas conselhos de igual índole. No Fundão, até Ovídio teria dificuldade em planificar a sua guerra dos sexos, que como alguém dizia, é a única que o homem não pode vencer. A julgar pelos bares locais num sábado à noite, até o Quartel de Abrantes tem mais mulheres disponíveis. O grupo de rapazes motociclistas que se agremia ao balcão a contar proezas de Valentão Rossi na estrada para o Souto da Casa, está disponível para dois dedos de conversa sobre sexo: “Não há gajas no Fundão e as que há, ou são muito novinhas ou já estão ocupadas, e por isso são muito caseirinhas. Em Agosto isto anima com as franciús, por isso costumamos andar aí a bater todas as festas”, informa o notório líder deste grémio motorizado, um calmeirão de vinte e tal anos e pinta de futebolista da Atalaia do Campo. Ovídio pigarreia, e educa a jovem plateia: “O caçador sabe muito bem onde há-de armar as suas redes para caçar; conhece perfeitamente os vales nos quais grunhe o javali; o

pescador com o seu anzol sabe perfeitamente em que águas nadam os peixes, por isso tu também deves ser o primeiro a saber onde encontrar grande quantidade de donzelas. Para achares este lugar não é mister que te faças ao mar, ou percorras um longo caminho. Se te agradam os encantos juvenis e o seu desabrochar, oferecer-se-á aos teus olhos, intacta, uma virgem. Preferes uma beleza feita? Agradar-teão milhares delas, na plenitude da sua beleza, de modo que, com mágoa tua, não saberás qual escolher. E se porventura te inclinas para uma idade madura e experimentada, o ramalhete será ainda mais completo.” Já se viu que Ovídio tem um fraquinho pelas balzaquianas, mas aqui no Fundão parece de difícil aplicação prática a sua dardejante teoria. Levamos o poeta numa ronda pelos bares da cidade da cereja. Tudo às moscas e com um ar fúnebre. Poucos clientes e na maioria homens, que abatem imperiais ou Red Bull com whisky, enquanto olham com ar sonolento o resumo do dia na Sport TV. Se o pulsar de uma cidade média se pode medir pela animação nocturna e pela sexualidade potencial que dela emerge, então somos levados a pensar que o Fundão mais parece um mosteiro beneditino ou um velório sexual. Que cidade macambúzia esta, que apenas se excita nas segundas-feiras de mercado com o corrupio de gente das aldeias, os emigrantes e o colorido próprio de uma cidade-feira; do queijo ao regador, das sementes de abóbora ao CD pirata da Romana. Recorremos à filosofia de balcão e ao barman para a epistemologia deste Agosto beirão: “Está muita gente de férias, e há muitas festas por aí nas terreolas, mas é verdade que o Fundão está uma cidade cada vez mais morta. Só aos sábados à noite é que anima e os bares se enchem.” Longe vão os tempos áureos do English Bar que em Agosto parecia uma discoteca de Ibiza, à pinha de gente em noites quentes que se prolongavam até ao madrugar na Santa, o miradouro sobre a cidade onde tantos amores passageiros e duradouros despertaram com o sol fresco da manhã. Agora, o velho e carismático English Bar mudou de nome e deu lugar a uma discoteca moderninha, ascética e igual a tantas outras. Há mais garrafas na montra que clientes na pista e nem o esforço do DJ a “puxar” com um “hip-hop” viril consegue arrancar os cotovelos do balcão aos clientes; essencialmente malta do “tuning”, de brinco gingão e boné à banda. De copo na mão, Ovídio defende os encantos que territórios povoados oferecem para a caça do belo sexo. No seu tempo eram as corridas e o circo, agora o sucedâneo mais provável são as discotecas: “O circo fornece múltiplas oportunidades, por ser frequentado por um público numeroso. Não terás necessidade de usar a linguagem das mãos nem de fazer sinais com a cabeça para que te dêem consentimento. Nada te impede de te sentares ao lado da bela que te agrada; aproxima o mais possível o teu corpo ao dela; felizmente que o tamanho dos assentos força as pessoas, quer gostem ou não, a chegarem-se e a bela não tem outro remédio senão deixar-se tocar. Procura então entabular conversa e que sejam banais as tuas primeiras palavras.” A estratégia de engate de Ovídio soa familiar. Uma discoteca à cunha mais parece um palco de rituais de insinuação sexual, onde a música a bombar convida à libertação dos corpos, e esse grande desinibidor sexual que é o álcool, predispõe os espíritos para o amor: “O vinho prepara os corações e torna-os propícios aos ardores amorosos; as preocupações desaparecem e afogam-se. Nasce então o riso, o tímido torna-se afoito. A franqueza tão rara no nosso tempo, abre as nossas almas; depois do vinho, Vénus é fogo sobre fogo. Mas deves saber que a luz das lâmpadas causa muitas vezes equívocos: não deves confiar muito nela. A noite e o vinho são maus elementos para julgar a beleza.” Como muito bem sabe Jorge, recém-licenciado em Engenharia, que

REPORTAGEM // 5


bebe um copo sozinho ao balcão: “Não há mulheres feias, só há falta de whisky. Já me aconteceu engatar uma miúda que à noite parecia a Cameron Diaz, e no outro dia encontrar-lhe semelhanças com a minha porteira”, confessa entre uma risada galhofeira “não tenho lá muito jeito para meter conversa em discotecas. Além disso, as miúdas daqui não dão grande bola e por isso acabo por beber demais para ganhar coragem, e a única coisa que acabo por levar para casa é uma grande bebedeira.” Mas será que as miúdas daqui são assim tão inacessíveis? Para defesa da honra e para que não digam que esta é uma reportagem totalmente machista e misógina (só é um bocadinho), vamos visitar as depauperadas fileiras do inimigo mais querido. É verdade que não ligam nenhuma aos rapazes cá da terra? Fala a defesa, a cargo de Joana, Luísa e Alice, três universitárias de férias no Fundão, que aterram no English Bar, conquistando de imediato a atenção carnívora das aves de rapina que afiam os bicos nos copos de Red Bull: “Isso não é verdade. Só não ligamos a quem não nos interessa. É essa a diferença. Para os rapazes tudo o que mexe, marcha. Nós somos mais selectivas.” Explica Joana, a mais desinibida do triunvirato. Como dizia com graça, o actor americano Billy Cristal – “As mulheres precisam de uma razão para fazer amor, os homens só precisam de um sítio”. O aforismo merece a concordância da Alice, a intelectual do grupo: “Acho que nós mulheres precisamos de um mínimo de ligação afectiva, os homens são mais dados à contabilidade, só lhes apetece é somar. É óbvio que isto é uma generalização. Também há mulheres que gostam do sexo pelo sexo, e homens que são mais sentimentais. O problema do Fundão é que é uma cidade pequena, onde toda a gente se conhece. Isso acaba por ser um inibidor sexual, já que se vamos para a cama com alguém, no outro dia toda a gente sabe, e isso pode ser muito desagradável numa terra pequena. Quando vamos estudar para fora acabamos por viver a nossa sexualidade de uma forma mais descomprometida, isso é bom.” A invulgar franqueza de Alice destapa um pouco do véu sobre a sexualidade oculta no interior, a tal que se esconde sob uma capa de puritanismo assexuado numa região onde é raro ver um casal de mão dada ou trocando beijos em público. O sexo é aqui assunto privado e até tabu, conforme descobriu Patrícia Alçada Rosa, investigadora da Universidade da Beira Interior que realizou um estudo sobre as vivências sexuais dos jovens da Beira Interior, abarcando um universo de 200 jovens adolescentes entre os 16 e os 20 anos, distribuídos por Castelo Branco, Covilhã e Guarda.

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Para confirmar o amor Apesar do sexo nos entrar todos os dias pela janelinha indiscreta da televisão, com imagens publicitárias e ficções que exploram o fruto proibido até à última dentada, a vivência sexual continua a ser objecto de cochicho e vergonha. Os assuntos de cama são para morrer nela. E quando se tenta espreitar a bem do conhecimento e da ciência, o mais provável é taparem a fechadura. “Foi muito difícil fazer este estudo por causa das barreiras que se ergueram, sobretudo barreiras institucionais nas escolas, porque o objecto deste estudo foi a população escolar. Ao contrário disto, a adesão dos miúdos foi extraordinária, fizemos os inquéritos por SMS que trocavam entre eles”. Apesar das cintas de castidade da burocracia puritana vigente, Patrícia Alçada chegou a conclusões interessantes. Assim, 72 por cento dos inquiridos já iniciou a sua vida sexual. Sendo que a idade média com que trincaram a mação do pecado pela primeira vez foi aos 15 anos. De acordo com o estudo, as raparigas começam a sua vida sexual mais tarde do que os rapazes. Para a noite de estreia, a esmagadora maioria dos inquiridos (64 %) preferiu o namorado/a, o que segundo Patrícia Alçada induz “uma tendência para um parceiro com quem se está emocionalmente ligado”, o que se confirma também pelo facto de 74 % dos inquiridos indicar o namorado/a como parceiro mais frequente, e apenas 2 %, um desconhecido. Aliás, existe uma forte componente romântica e emocional associada a algumas respostas. Assim a razão principal para ter sexo evocada pelos inquiridos foi “para confirmar o amor” (53%), enquanto apenas 14 % admitiram que queriam apenas obter “satisfação física” e 5% “divertimento”. A propensão para a monogamia acentua-se quando 59 % dos adolescentes afirma ter até agora tido apenas um parceiro e 73 % dos inquiridos esperam só vir a ter um parceiro sexual no futuro. Ovídio até se arrepia com a ideia. Curiosamente, os padrões de comportamento sexual revelados por este estudo são compatíveis com os de um inquérito informal e sem objectivos científicos, realizado no Fundão a uma faixa etária superior (entre os 18 e os 30 anos), em que a sexualidade aparece também associada a ligações afectivas e a hábitos monogâmicos. Neste caso, 68 por cento dos inquiridos tem uma relação estável e pratica sexo com o namorado/a, enquanto 28 % já teve relações de uma noite só (sobretudo os homens). Tranquilizem-se os ciumentos, porque apenas 18

% das mulheres confessou ter sido infiel ao seu namorado. Menos tranquilas devem ficar as mulheres, já que no caso dos homens a infidelidade admitida sobe até aos 39 %. Para fechar este departamento estatístico, é curioso referir que 96 por cento dos inquiridos no estudo de Patrícia Alçada afirmaram nunca ter tido contacto sexual com o mesmo sexo, o que remete a homossexualidade para um fenómeno relativamente marginal (mas não inexistente) nos jovens da Beira Interior. Outro assunto tabu, o da masturbação, merece análise no estudo conduzido pela investigadora social, onde apenas 42 % dos inquiridos admitem fazê-lo habitualmente, sendo que apenas 7 % deles são mulheres. Outra diferença de género é o facto da masturbação ser essencialmente induzida pela pornografia para 53 % das respostas positivas, com larga maioria desse método a ser reconhecido pelos homens. Então a pornografia é coisa de homens? Para Rita Barata Silvério, dona e senhora do blogue www.rititi.com, voz descomplexada e cintilante da sexualidade feminina na blogosfera portuguesa: “A pornografia é coisa machista, existe apenas para excitar os homens. Não sou contra a pornografia, sou contra a pornografia machista, que é quase toda. Já repararam que não há filmes sexuais orientados para as fantasias e desejos das mulheres. O homenzarrão peludo entesoado aparece sempre em plano de domínio e os ângulos de câmara e a realização é toda feita sob o ponto de vista do macho.” Procuro revistas pornográficas para ver como anda a indústria da pornochachada, e nos quiosques da avenida do Fundão não consegui nem uma para mostrar a Ovídio. Então que é feito das velhas “Ginas” da nossa adolescência, das mais refinadas “Penthouse” ou até dos relatos escabrosos do “Jornal da Sexologia”. Nem sinal delas, esfumaram-se misteriosamente das bancas. No clube de vídeo, apenas alguns filmes mais hard-core, mas com pouca saída, explica o empregado: “Há poucos clientes para a pornografia, ou é por vergonha ou então hoje em dia com a TV por cabo, e o canal Playboy, as coelhinhas chegam lá a casa directamente.” Então onde se esconde a pornografia caseira? No telecomando da TV ou na Internet, essa mega-montra para o voyeurismo libidinoso. A Internet é definitivamente um grande bordel de fodas mal dadas. Será? D. Quixote e Dulcineia (nicknames) conheceram-se num chat da Internet, ele é do Porto e ela da Covilhã, ambos andam perto dos trinta anos e vivem com os respectivos namorados relações estáveis. Encontraram-se pela primeira vez no festival Imago há


dois anos, e a partir daí começaram a ter encontros sexuais furtivos, alimentando essa relação proibida num blogue secreto: “É lá que escrevemos as nossas fantasias, os nossos desejos mais íntimos, e vamos aumentando a tensão para estar juntos. Mais do que sexo puro e duro, trata-se de fugir à rotina das nossas relações e poder ter uma sexualidade proibida, que é muito excitante. Encontrámonos poucas vezes durante o ano, mas criamos sempre uma história fetiche. Uma vez combinámos encontrarmo-nos no comboio, como se fossemos desconhecidos e fomos comer-nos para a casa de banho. Foi espectacular”, explica quixotescamente, o galã cibernético. Afinal o luar de Agosto da Beira, também esconde paixões devassas e proibidas, tão do agrado de Ovídio: “Não penseis que, armado em censor severo, vos condeno a ter só uma amiga. Tal coisa não agrada aos deuses. É difícil, mesmo a uma mulher casada, manter esta conduta. Diverti-vos, mas sede prudentes; que o vosso erro se mantenha escondido e clandestino. O amor proibido agrada igualmente ao homem e à mulher. Apenas acontece que o homem não sabe dissimular e a mulher esconde muito melhor os seus desejos.”

Retratos do país-bordel A luz vermelha na longa recta de uma estrada próxima do Fundão, chama imediatamente à atenção. Não são os foguetes proibidos da festa do Anjo da Guarda, mas apenas um velho bordel de estrada. Outrora uma churrasqueira que se passou a dedicar a outro tipo de comércio de carne. À porta, uma motocultivadora, duas carrinhas agrícolas a cair da tripeça e uma motorizada, deixam adivinhar o tipo de clientela. Avançamos decididos para o balcão-altar com um poster do Sporting campeão (uma raridade), uma imagem da Nossa Senhora e as garrafas em parada militar à espera de ser dissipadas. Como é época alta, este bordel tem agora seis meninas: três brasileiras, duas romenas e uma ucraniana. “Normalmente só cá temos três ou quatro. Chega e sobra”, resmunga-nos o barman com fronha de poucos amigos, enquanto nos serve um Licor Beirão. As prostitutas estão sentadas nas mesas com três ou quatro clientes. Os restantes ganham coragem e embalo no balcão. Mesmo a pagantes é preciso coragem. Todos parecem sonâmbulos de olhar perdido. As putas de serviço são entradotas, gorduchas e ficam a dever uns centavos a uma beleza, que porventura se dissipou com o uso. Percebe-se que

é um bordel pobre, à medida da carteira de clientes pobres. Uma das prostitutas, a mais nova, levanta-se com dificuldade sobre os saltos e aborda-nos com um português tão desengonçado como o andar: “Olá, chamo-me Alessandra e tu?” Convida-nos para nos sentarmos. Aceitamos pagarlhe um flute xaroposo de whisky cola a vinte euros, porque sabemos que “amor de mulher da vida e convite de taberneiro, só por dinheiro.” A história é um disco tantas vezes riscado neste país-bordel, onde o amor se encontra exposto para consumo na casa. Um país de públicas virtudes e vícios privados, varrido a campos de golfe, casas de passe e bares de alterne: “Sou da Roménia, tenho vinte e seis anos. Trabalhava numa fábrica de cablagens”, lá vai ela apalpando o português fanhoso e a perna de Ovídio, “vim para Portugal há três meses com uma amiga. Comecei a trabalhar numa casa em Vila Velha de Ródão, depois estive em Castelo Branco e agora o patrão mandou-me para aqui.” Faz uma careta de repúdio. Não gosta deste fim do mundo: “Vim de Bucareste para fugir à miséria, e aqui há uma miséria ainda maior. Não me importo com o que faço, mas os clientes daqui são muito miseráveis, não cheiram bem como tu!”, e aponta para Ovídio “queres vir?”. São 60 euros por uma hora e tal. Declina o convite que se estendia para o corredor dos fundos, onde recebem os clientes em quartinhos abafados, com uma cama, uma pechiché e uma mesinha de cabeceira. Alessandra mostra um sorriso desdentado, mas franco: “Tá bem. Olha, há uma coisa que gosto em Portugal. Sabes o que é? A comida”. E deixa-nos, para dar atenção ao cliente da mesa ao lado, que cambaleia a cabeça sobre a enésima garrafa de Super Bock. Reconheço-o. É M., meu amigo de infância. Costumávamos brincar juntos no campo a guardar as cabras e as ovelhas do rebanho do pai dele. Agora está gasto pelo álcool e pelo azedo da vida. Os olhos varejados de sangue já não têm o lampejo do rapaz irrequieto que eu conheci. Só saiu daqui para cumprir o serviço militar, onde agarrou o vício do Ventil e das Minis. De regresso à terra, trabalhou no campo, guardou rebanhos e deu ao litro nas obras. Todo o tusto que amealhou foi estoirado nos copos. Por aqui, mulheres em idade casadoira é mentira e a caminho dos 40, M. perdeu a esperança no amor. Agora afoga-se nos whiskys caros e no amor pago a 50 euros à beira da estrada. Trágico foi também o destino de um velhote da aldeia, que animado pelo vigor inesperado do Viagra e pela miragem da luz vermelha, uma noite, já bêbado que nem um cacho depois de uma sessão com uma brasileira, tomou a pé o

caminho errado e entrou pela A23, onde morreu atropelado à entrada do túnel da Gardunha. É M. quem me conta esta história, concluindo: “Um dia sou eu.” Homem pobre, homem rico. Bordel pobre, bordel rico. Prosseguimos para um bar de alterne, a caminho da Covilhã. Uma vivenda vistosa e recatada, com Mercedes e outras bólides de matrícula francesa estacionadas à porta. Dez euros de consumo mínimo. Entramos e na pista, dança-se ao som de “As meninas da Ribeira do Sado é que é/ lavram a terra com as unhas dos pés”. Não me parece a mais adequada canção para a sensualidade do roça-roça, mas os clientes parecem gostar. São também poucos, mais novos e mais bem vestidos do que no bordel de estrada. As meninas também têm um ar mais cuidado e insinuante. Num bar de alterne o negócio é pagar copos em troca de atenção e alguns apalpões. Lu, uma mineirinha rechonchuda e bonita, sentase à nossa mesa e pede o inevitável xarope de whisky com água suja do capitalismo, agora a 25 euros. Percebe-se que tem outro traquejo. Veio do Brasil há já um ano e define-se como “garota de programa” e não como “quenga”: “Vivo com uma amiga na Covilhã, e recebemos senhores em casa, mas apenas clientela seleccionada. A maior parte deles são de outras cidades, ou empresários em viagem, já que é raro alguém da Covilhã bancar um programa. Sabe como é, para mijar fora do penico, convém ser longe de casa.” Lu explica que “nesta discoteca não se pode subir com o cliente, estamos aqui apenas para conversar, dar algum carinho e recebemos percentagem nas bebidas. Se a menina quiser, pode encontrar com o cliente, mas lá fora.” Uma noite com Lu pode custar até 200 euros, “tudo depende, do que o cliente quer. Tenho um um senhor de posição da Guarda que me visita apenas para me ver tocar e dar palmadinha na minha bundinha. Não pede mais nada.” Nos sofás repolhudos na zona mais escura do bar um cliente ressona copiosamente, estendido com as peúgas brancas a assomarem no escuro: Ovídio boceja. A noite já vai longa e o licor beirão pesa-lhe na pestana. Desanimado, encolho os ombros. Fiquei a saber tanto sobre sexo no interior como sobre a vida sexual das tartarugas do Índico. Sei apenas que cada um deve descobrir o seu caminho para a felicidade sexual, iluminado pela Luz da Lua de Agosto, porque vida só há uma e tem essa estranha mania de se gastar depressa. Ovídio anima-me: “Mas eis que o leito cúmplice recebeu dois amantes. Detém-te, Musa, à porta fechada deste quarto. Sem a tua ajuda, completamente sós, as palavras, acorrerão em tropel, e na cama, a mão esquerda não ficará inactiva. Os dedos acharão com que ocupar-se nas partes onde, misteriosamente o Amor deixa cair os seus dardos.” Este Ovídio é que a sabe toda. [x]

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Verde Urbano

Texto | Pedro Leal Salvado Fotografia | contiudo.com | David Duarte

Preocupada com a manutenção dos espaços verdes nas cidades, a Comissão Europeia encomendou recentemente um estudo sobre o assunto. Esse estudo concluiu que as zonas verdes, os parques e jardins das cidades, são essenciais a três níveis: ambiental, social e psicológico. Alem de serem agentes contribuidores para a diminuição da poluição citadina e temperadores do clima, representam ainda um importante pólo de encontro e diversão social, potenciador do equilíbrio emocional na vida atribulada e de stress do cidadão urbano. A A.23 viajou pelas cidades da Guarda, Covilhã, Fundão e Castelo Branco e tentou apurar se são ou não “cidades verdes”. 8 // DOSSIER CIDADANIA


A década de 1980 ficou marcada negativamente no que se refere a urbanismo. Foi a década em que foram cometidas as maiores atrocidades urbanísticas no nosso País. Um pouco por todo o lado plantaram-se torres de betão, as cidades cresceram desorganizadamente e sem qualquer plano, destruindo-se sem dó o património e esquecendo-se por completo as zonas antigas e históricas que passaram a ser empecilhos à ganância desenfreada dos senhores do betão. A partir de meados da década de 1990, começaram a surgir novas preocupações ligadas ao urbanismo, tendose começado um pouco por todo o lado a pensar a cidade na sua totalidade e não apenas lote a lote. Na sequência desta mudança de mentalidade surgiu o programa “Polis”, dinamizador não só da recuperação das zonas antigas e históricas das cidades, mas também do ordenamento e planeamento das mesmas. Nesse planeamento voltam a ter lugar os espaços verdes, espaços fulcrais para a qualidade de vida dos pólos urbanos, não só qualidade de vida ambiental mas social. Outrora donos dos espaços nobres de todas as cidades, os parques e jardins foram sendo progressivamente ocupados por cimento, pedra e betão, acabando em muitos casos por desaparecer por completo.

No entanto, também a Covilhã aproveitou o programa “Polis” para dotar a cidade de mais verde e, em Janeiro de 2005, foi inaugurada a maior área verde da Covilhã, o Jardim do Lago. A Covilhã passou assim a estar dotada de um verdadeiro espaço verde que reúne os benefícios eco-ambientais com o lazer e encontro social. Construído num anfiteatro natural, o Jardim do Lago oferece as condições óptimas para o descanso e lazer dos habitantes da cidade, com muitas sombras, um extenso relvado e relaxantes espelhos de água. Mas dizer que a Covilhã tem um excelente espaço verde, não é dizer que existe na cidade um equilíbrio entre o verde e o betão. Aquando da inauguração do referido jardim, referiu o presidente da autarquia Carlos Pinto que “o urbanismo dita que exista um equilíbrio entre áreas edificadas e zonas verdes”. Pena que passados quase três anos sobre aquela inauguração, se assista ao crescer desmesurado da cidade, onde as torres de betão e cimento são rainhas e onde no meio delas não nasceu – nem sequer se deixou espaço para – qualquer zona verde. Assim e apesar da criação de uma excelente infra-estrutura verde, como é o Jardim do Lago, a Covilhã ainda carece de um verdadeiro plano verde que aumente a qualidade de vida dos covilhanenses.

Guarda

Fundão

O aumento da área verde da cidade foi uma das maiores preocupações do programa “Polis” da cidade da Guarda. No âmbito daquele programa, pretende a cidade aumentar a área verde disponível de 16,7 para 88,0 hectares. Actualmente o Parque Municipal continua a ser o maior espaço verde da cidade. Parque bem arranjado com algumas sombras e relva, que não descura a função social de uma zona verde incorporando no recinto uma ludoteca. No entanto, a Guarda continua hoje deficitária no que toca a espaços verdes, sendo uma cidade onde continua a imperar o betão das zonas residenciais e a pedra granito da zona histórica, sendo raros e quase inexistentes jardins ou parques que quebrem a monotonia do cimento. Prova da predominância do betão sobre o verde é a recente construção do Teatro Municipal, obra que não contempla um único espaço verde.

A cidade do Fundão goza em relação às outras cidades analisadas de uma grande vantagem: a sua situação natural na encosta da (ainda) verdejante Serra da Gardunha. Assim, a análise da questão na cidade do Fundão tem de ser feita em duas vertentes: numa vertente urbana, ou seja, da existência ou não de zonas verdes propriamente ditas; e numa outra, uma vertente de património eco-ambiental. Comecemos pelo património eco-ambiental. O Fundão tem como quadro de fundo uma encosta totalmente verde da Serra da Gardunha miraculosamente sobrevivente aos incêndios que fustigaram a região nos últimos anos. A existência de tão extensa área verde natural é por si só incrementadora da qualidade de vida dos fundanenses. Sucede que, também aqui os senhores do betão falam mais alto e vão subindo a encosta da serra, substituindo o tapete verde por um negro de alcatrão, as árvores por postes de iluminação e edifícios. Curioso observar o silêncio das associações para-ambientais locais… Quanto a espaços verdes dentro da cidade, subsistem apenas dois: o jardim da Praça do Município, invadido nos últimos anos por trânsito automóvel e transformado em parque de estacionamento de viaturas municipais, e o pequeno Parque das Tílias. Nas imediações da cidade foi inaugurado em 2006 um

Covilhã Até 2005, a cidade da Covilhã tinha como seu único significativo espaço verde o Jardim Público Municipal, construído no ano de 1908, nos antigos terrenos da cerca conventual do extinto convento de São Francisco.

“corredor verde”. No entanto, dificilmente cumpre quer a função ambiental, uma vez que se situa entre uma estrada de quatro faixas e uma zona industrial; quer a função social e de lazer, dado que se encontra fora da cidade e é cortado por acessos à zona industrial do Fundão, sendo perigoso para crianças. Assim, também no Fundão é imperador o betão, o cimento e a pedra, não existindo um planeamento verdadeiramente “verde”, que eleve a qualidade de vida dos fundanenses.

Castelo Branco Na cidade de Castelo Branco encontramos dois espaços verdes emblemáticos: o Jardim do Paço Episcopal – conhecido por jardim das estátuas – e o Parque da Cidade/Jardim Municipal de Castelo Branco. O Jardim do Paço Episcopal construído no século XVIII, é um espaço verde decorativo com inúmeras estátuas de granito e com um percurso demarcado por arbustos. Não cumpre as funções acima assinaladas, ou seja, a ambiental e a de encontro social. Já o Parque da Cidade/Jardim Municipal de Castelo Branco é um abundante espaço verde, transformado em jardim público no ano de 1934. É o jardim urbano tradicional, com muita vegetação, espelhos de água e alamedas. É o verdadeiro

pulmão da cidade, local de convívio social com dimensão suficiente para oferecer resguardo do rebuliço do trânsito e da normal agitação urbana. No entanto, também Castelo Branco sofreu a euforia do betão da década de 1980, apresentando zonas com muita densidade de construção onde não há quaisquer espaços verdes. Quanto às novas urbanizações, a preocupação com os espaços verdes não é uniforme, havendo zonas onde o equilíbrio entre o verde e o cimento foi respeitado e outras onde apenas houve espaço para o betão. Mesmo assim, há que referir que ao abrigo do programa “Polis”, foram criadas e sofreram obras de beneficiação cerca de 44.500 m2 de áreas verdes na cidade – continua, no entanto, a ser grande o desequilíbrio entre o espaço edificado e os espaços verdes. Analisadas as quatro cidades do Interior, conclui-se que os espaços verdes começam a fazer parte do planeamento urbanístico. No entanto, é uma mudança de mentalidades que é lenta. Os “homens do betão” têm ainda muito – demasiado – poder. Continuamos a assistir em pleno século XXI à transformação das nossas cidades em aglomerados de betão, cimento e alcatrão, frias, irrespiráveis e desumanas. [x] DOSSIER CIDADANIA // 9


,,Portfolio

Jorge Molder

“Entrada por Saída” 2000/2007 Dimensões Variáveis, Impressão Digital 10 // PORTFÓLIO


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Texto | Margarida Gil dos Reis

* de “Estilo”, de Herberto Helder, in Os Passos em Volta, Lisboa, Portugália Editora, 1963: 14.

12 // PORTFÓLIO


Sabe ao menos do que lhe estive a falar? Da vida? * Primeiro, o corpo aparece assim, tornado imagem, como para ser mostrado ou mostrar qualquer coisa. O sujeito representado apresenta um ar grave, um olhar intenso, uma presença que nunca chegamos a saber se é também uma ausência. Mas a luz, como o corpo, no seu ponto de fuga, indicam que estão ali para serem olhados. Sombras inatingíveis das quais restam as ilusões platónicas, corpos em movimento que desafiam o olhar insistente da máquina fotográfica, sabendo que ela quer e vai fixar para sempre uma aparência. Toda a arte de Jorge Molder consiste em apoderar-se de um instante que se oferece consciente da contingência de desaparecer a qualquer momento. Como se as situações surgissem por si, sem nexo aparente, mas criassem elos inexplicáveis. Ele partilha a sua aura, a sua presença, a sua expressão, nós somos incumbidos de decifrar o enigma que qualquer imagem coloca: o mistério daquele que se torna visível e que nos convida a habitar o seu próprio espaço dentro da fotografia. Roland Barthes já o havia dito: “A Fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa”. Por isso, o corpo entra como sai, alternadamente, desloca-se, cai, desafia o tempo na evanescência das suas formas. Ao mesmo tempo que é fixado pela fotografia adquire leveza, ganha velocidade, porque a forma pouco interessa. O tempo é, afinal, esse “agente secreto” (que deu também nome a uma das suas séries, em 1991) que actua sobre as coisas. Quem se move primeiro? O corpo ou o tempo? Este conjunto de imagens a que Jorge Molder chamou “Entrada por

Saída” expõe, em toda a sua dimensão, um jogo com o tempo e uma capacidade de olhar que deixa uma impressão nos olhos do espectador. Uma mistura de diferentes séries e trabalhos que têm em comum uma característica: são as pistas de que precisamos para também nós começarmos a jogar um jogo que não tem princípio nem fim, onde tudo se pode baralhar e tirar de ordem, onde a entrada pode, afinal, ser a saída, e vice-versa. Desde Uma Exposição (1979) até Entrada por Saída (2007), toma-se como protagonista o corpo em fuga que vence os rasgões da luz do preto e branco. Poderíamos quase dizer que o corpo acompanha a velocidade a que corre a vida: a vida na grande cidade (como na série NYC, 1991) ou a velocidade de movimentos da série Waiters (1986), onde um conjunto de empregados de um café se sucedem entre si como sombras. Um movimento que associo ao exercício de Esgrimistas (1986), às sucessivas quedas em Nox (1999) ou à sequência de imagens do vídeo Linha do Tempo (2000). Em todas elas, o tempo parece-me ruidoso, friamente expressivo como os corredores ou as portas por onde o corpo vai passando. Uma das fotografias que sempre me intrigou é uma imagem de Corredor (2000): um corredor muito estreito, quase claustrofóbico, que confere um secretismo à imagem; lá ao fundo o corpo, quase todo ocultado pela escuridão, entrecortado pelas paredes frias do corredor onde se vislumbra pouco mais do que um colarinho branco com gravata. Esperamos, a qualquer momento, pela anulação da distância em relação a esse corpo, como se ele viesse numa difícil marcha, lentamente. Mas a dúvida permanece, perturbante, como a presença que é também

ausência. O efeito de silêncio conseguido nesta imagem faz-nos pensar como a fuga é uma construção porque, como se diz no título de uma das suas séries (1994-1995), tudo são points of no return. O corredor, como a porta, são lugares charneira que oferecem inesgotáveis possibilidades. O mesmo se passa com as ‘imagens vídeo’, fragmentos da dupla condição do sujeito: o que olha e é olhado. O que procuram então estes corpos que vagueiam por vários cenários, onde se chega, como se parte? Como se o sujeito fosse também um actor, aquele que entra e sai constantemente do palco, o que projecta a sua duplicidade no espelho, aquele que ora procura a escuridão, ora a luz. Certo é que, em Jorge Molder, em vários momentos ao longo da sua obra, passam-se muitas portas que são muito mais do que simples aberturas feitas numa parede. São perspectiva ou plano cego, cinematografia simples onde corpos ou vultos se movimentam. O vai e vem é o suporte do homem. Por mais que viaje, que encontre na presença/ausência um ponto de fuga, ele sustenta-se na procura. Persegue-o sempre qualquer coisa e o corpo pressagia, de várias formas, a terrível duplicidade que existe no homem. A nós, espectadores, resta-nos seguir com o olhar o vai e vem do corpo e entregarmo-nos ao mistério da evidência muda e silenciosa da fotografia. Como as imagens que nos olham, a vida corre exactamente nesse mesmo vai e vem. Todas as imagens de Molder olham-nos e são-nos reenviadas. Elas são um momento de dádiva porque a sua razão de existir encontra-se já em cada um de nós.[x] PORTFÓLIO // 13


14 // PORTFÓLIO


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16 // PORTFÓLIO



18 // SUPLEMENTO ESPECIAL



20 // SUPLEMENTO ESPECIAL


SUPLEMENTO ESPECIAL // 21


22 // SUPLEMENTO ESPECIAL


SUPLEMENTO ESPECIAL // 23


24 // SUPLEMENTO ESPECIAL


,, Uma aventura na noite de Monsieur

Ramos

Acabara de rever “ A Aventura “ do Antonioni na Cinemateca --- uma das mais belas e estranhas histórias de amor da sétima arte como dizia o Le Clézio --- e, lançando todo o meu património inexistente para as urtigas, perdi-me na noite. Encontrei-me ( pensando sempre em Monica Vitti com os seus cabelos loiros olhando a estranheza da vida da janela de um comboio) num sítio estranho do Bairro Alto: a travessa das Bolas. Aí, à frente de um muro esquisito composto por bolas incrustadas num painel granítico, lá estava ela, de seios de fora, Hernia, a jovem vinda da Morávia e que falava só alguns picles de português. Aproximei-me e vi que a sua beleza era como um doce conventual, antiga e serena. - Gosto bravo de make amor com muribundos ! disse ela para me experimentar. A União Europeia pagava rios de dinheiro a jovens para eles através do programa Erasmus convidarem a convivialidade à mesa da curiosidade. Mas só a sexualidade era chamada e se apresentava quase sempre com o seu manto espesso e complicado de lontra. Levei-a nesse estado catatónico a uma mercearia da rua da Rosa (aberta a essas horas tardias porque o dono acabava de morrer e entravam os cangalheiros) e de uma prateleira retirei uma garrafa de azeite Gallo. Deixei o dinheiro no balcão

e transitei com Hernia para uma transversal que ia dar à rua da Atalaia. À porta de uma lojeca que vendia preservativos de todos os tamanhos e feitios deitei o primeiro pingo desse azeite virginal e soberbo que é a glória do nosso país no seio direito da checa. Ela não deu um gritinho, só riu com esse riso alimentado desde a infância de cogumelos. Depois chupei-o com a ânsia de um homem que sempre viu filmes de cowboys na vida. A noite era nossa e depois de termos apostado forte e perdido numa banca portátil que uns africanos mantinham com um só baralho no miradouro de Santa Catarina descemos para a Bica. Neste bairro labiríntico fácil foi encontrar uma outra mercearia onde comprei um bocado de sabão Clarim. No fontanário público ela sentou-se na escadas comidas pelo tempo e eu de joelhos religiosamente lavei-lhe a conaça com os seus pêlos postados como índios esperando uma diligência. Ela ria agora como a trombeta que anuncia a chegada da sétima cavalaria para terminar a chacina. Beijei-a na boca molhada enquanto com um dedo esguio me assegurei que a sua vagina estava chuvosa. Levantámo-nos depois e começámos a subir a ladeira dos melhores sonhos de Lisboa e que nos ia instalar na linha imorredoura do eléctrico 28. Direcção sexo súbito.

Texto | Manuel da Silva Ramos Fotografia | Margarida Dias

Vulcano ! murmurou ela de repente. Não sei se ela invocava o vulcão da sua cona da Boémia com os seus cinco casos nominativos. Só sei que ela me pegou na mão, entrou num pequeno restaurante, fomos à cozinha, e aí ela levou os nossos dedos unidos à chama azul transparente. Queimámo-nos ligeiramente. Mas eu sabia que este gesto à beira da velha marca mundialmente conhecida era a união que nos faltava para sermos felizes em qualquer lado. Rejubilava interiormente. Perdi-a quando descíamos a Calçada do Combro. Eu fiquei para trás para ver o horário da biblioteca do Camões onde devia consultar um livro sobre cogumelos checos que crescem nas florestas da Morávia e gritando o seu nome ninguém me respondeu: Perguntei a várias pessoas que subiam se tinham visto uma estrangeira de seios à mostra mas as pessoas riram de mim... Fui a um bar do Poço dos Negros beber uma aguardente que não imitava a slivovice e regressei a casa de táxi. Consultei o relógio no banco fofo. Tinham passado noventa minutos desde que encontrara Hernia e a perdera para sempre. Era o tempo de um bom filme... Mas como eu não gosto de encontrar duas vezes as mesmas jovens perturbadas e anacronicamente felizes aqui fica também a palavra FIM. [x]

CRÓNICA // 25


Criou uma linguagem própria que marcou a história do Cinema. “Blow-Up” foi o primeiro filme em língua inglesa do realizador Michelangelo Antonioni e um sucesso sem precedentes. Controverso, na década de 60, pelo seu conteúdo sexual e pela nudez feminina, “Blow-Up” valeu a Antonioni um Óscar pelo melhor realizador. Antonioni morreu a 30 de Julho e o Cinema ficou mais pobre. Ficou o sentimento de orfandade face à ausência do mestre

,,Antonioni e o Duplo

Texto | Margarida Gil dos Reis

Em 1860, em “Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire contribuiu para a definição do “flâneur” como o homem moderno, por excelência, um “observador, errante, filósofo” que condensa toda a fragmentação e ambiguidade da modernidade. Percorrendo as ruas da cidade, o “flâneur” busca a singularidade ao mesmo tempo que interpreta a realidade como se esta fosse um espectáculo passível de ser contemplado. Saliente-se que Baudelaire rejeitava a ideia de que a arte fosse uma imitação da natureza. Talvez por isso fosse tão pessimista em relação às intenções artísticas dos fotógrafos, algo que ficou, aliás, bem expresso no Salão de 1859: “Nestes lamentáveis dias surgiu uma nova indústria que contribuiu pouco para que a chã estupidez fosse reforçada na sua crença (…) que a arte não é, e mais não pode ser, do que a reprodução exacta da natureza”. A proposta artística de Baudelaire, fundada numa consciência do tempo, mostra-nos como o instante é essencial e como o artista é o arquivista da vida. A função da arte seria, seguindo esta linha de pensamento, construir uma realidade, afastada de quaisquer parâmetros realistas, que surgisse da percepção do cruzamento da mudança com o que era imutável. O “flâneur” oitocentista, assim como nos é apresentado por Baudelaire, mas também por Walter Banjamin, é esse homem fascinado pelo anonimato mas que tem consciência da sua singularidade entre a multidão. Talvez, por isso, para Benjamin, o “flâneur” fosse mais do que o homem que deambula anónimo pelas ruas para ser o detective, por excelência, aquele cuja sensibilidade lhe permite emitir juízos críticos sobre a sociedade. Este “flâneur” não é mais um, é aquele que é visto e que, por isso mesmo, tem a sua observação condicionada pelos parâmetros sociais. O olhar passa a ser cada vez mais valorizado, numa sociedade onde, face ao progressivo desenvolvimento das artes dita mecânicas, a velocidade e a imediatez passam a ser fundamentais no acto de representar. Se na pintura esta instantaneidade se traduziu numa simplificação do que é descrito, como uma maior definição dos contornos, na fotografia os detalhes ganham protagonismo. No cinema vinga a ideia de “olho variável”, começando-se a variar os pontos de vista, das técnicas de montagem e do movimento da própria câmara. A mobilidade do olho conduz-nos à possibilidade de reter o «aqui» e o «agora» com a máquina, isto é, mesmo sendo a fotografia uma forma de arte pessoal, tal como a pintura, a sua singularidade está também associada ao seu poder maquinal – uma visão rápida, automática e repetível. Em finais do século XIX, o fotógrafo segue as mesmas linhas do “flâneur”, mesmo que isso signifique captar as temáticas mais banais. Citando Henri 26 // ENSAIO

Cartier-Bresson, num registo autobiográfico: “Fui a Marselha. (…) Acabava de descobrir a Leica. Tornou-se na extensão dos meus olhos e, desde que a encontrei, nunca mais me separei dela. Vagueava pelas ruas todo o dia, tenso e preparado para atacar, determinado a ‘capturar’ a vida, a preservá-la no acto de viver”. Na década de 60, mais precisamente em 1966, eis que surge o filme “Blow-Up”, realizado por Michelangelo Antonioni, onde o papel do fotógrafo e, até certo ponto, da fotografia é de novo questionado, retomando algumas das questões até aqui referidas. Inspirado na figura do famoso fotógrafo inglês, David Bailey, a história é aparentemente linear: Thomas, interpretado por David Hemmings, é um fotógrafo de fotoreportagem e de moda. Certo dia, dispersa-se por Londres, simplesmente à procura de imagens. Num jardim, encontra um casal que lhe prende a atenção. Anónimo e escondido, tal como o “flâneur”, o fotógrafo capta aquele que lhe parece ser um encontro amoroso. Mais tarde, observa o trabalho e repara num detalhe: o indício de um cadáver. Têm então lugar uma série de ampliações feitas em laboratório. Mas, progressivamente, instala-se uma zona de incerteza: ao mesmo tempo que as ampliações desvendam aspectos ocultos da realidade, encaminham-se também para uma indefinição de contornos, próximas da pintura abstracta. Esta será, numa primeira análise, a definição de fotografia feita por Antonioni: a fotografia guarda muito mais do que aquilo que aparentemente revela, como se esta imagem mecânica fosse uma aparência que esconde outra, até ao infinito. Esta reflexão serve para introduzir aqueles que consideramos serem dois dos aspectos mais importantes na análise deste filme: em primeiro lugar, não será “Blow-Up” uma metáfora linguística, um discurso sobre o discurso? Em segundo lugar, como se estrutura a relação entre o director e o protagonista, e de que forma esta relação é transmitida na construção da imagem do próprio filme? Chamamos assim a atenção para algumas das cenas do filme, a partir das quais podemos perguntar: até que ponto a câmara do fotógrafo está em sintonia com a câmara de filmar do realizador? Em várias entrevistas, Antonioni assumiu este filme como o seu mais autobiográfico. Será então que o espectador vê tudo a partir do ponto de vista do fotógrafo ou, pelo contrário, Antonioni reserva-se o estatuto de observador, mas vai marcando a sua presença e o seu ponto de vista através do processo de montagem? É certo que os possíveis significados deste filme acabam por ser ambíguos e múltiplos. Examina-se a relação entre um indivíduo e a realidade, mais ainda do que as relações interpessoais.


Desde o inicio da história que a inter-relação entre verdade, realidade, aparência e arte se afigura como sendo cada vez mais importante. O protagonista, Thomas, tem, aliás, um percurso evolutivo do ponto de vista social, na medida em que, progressivamente, adquire um sentido de partilha social, como é bem visível na última cena do filme. Sendo esta uma história sobre a capacidade de observação e, mais especificamente, de participação artística, o espectador acaba por assistir a quase tudo do ponto de vista do protagonista. No entanto, o processo de filmagem é feito a partir de uma perspectiva exterior às personagens. Poderemos assim falar dos diferentes pontos de vista existentes em “Blow-Up” e na forma como os mesmos são determinantes para a construção da imagem do filme. No que diz respeito ao ponto de vista do realizador, existe uma clara identificação com o do protagonista. Note-se que o facto de se tratar de um fotógrafo aproxima ainda mais o realizador da personagem pois trata-se de uma clara ligação entre a máquina fotográfica e a câmara. Analisemos uma das cenas do filme onde a convergência, melhor, a complementaridade de pontos de vista é mais evidente. Quando Thomas fotografa a modelo Verushka, a câmara move-se, acompanhando os movimentos da máquina fotográfica, como se também ela estivesse a participar da sessão, usufruindo até da iluminação do estúdio fotográfico. No entanto, a câmara destaca-se da imobilidade da máquina fotográfica ao criar um efeito de movimento que, ilusoriamente, nos faz crer que a máquina fotográfica se move com aquela rapidez. A mesma situação ocorre quando, no parque, a câmara se move tentando reproduzir o movimento da máquina fotográfica de Thomas. Não será talvez por acaso que Antonioni localiza esta cena num parque, um local aparentemente natural mas que estabelece, por si só, uma dicotomia com o social e o artificial. A cena desenrola-se lentamente e, a determinada altura, existe um intervalo entre o que o fotógrafo vê e o que o espectador vê, como se existisse um terceiro ângulo, o do realizador, que marca a sua presença e, simultaneamente, mostra qual é o seu papel. Existe aqui uma ruptura, de ponto de vista, significativa: a câmara não acompanha Thomas; ela foca ao longe a sua entrada no parque, sugerindo uma presença que orienta o filme à medida que cresce o clima de mistério. Mais uma vez, o grande tema aqui equacionado é o olhar e as diferentes perspectivas que ele pode ter. Quando, mais tarde, no seu atelier, Thomas tenta criar uma sequência lógica para as várias ampliações das fotografias que tirou no parque, tentando reconstruir o crime, a câmara de Antonioni move-se em sucessivos zoom sobre as imagens imóveis, assumindo-se como plataforma de comunicação entre as imagens/objecto e a própria máquina fotográfica. Procura-se, através das sucessivas ampliações de negativos, uma verdade visual, isto é, a correspondência entre a realidade e a representação, e constrói-se uma narrativa, à semelhança do processo de montagem. O que nos parece mais curioso é o facto de as ampliações serem colocadas na parede numa ordem lógica, em busca de uma equivalência entre realidade e representação. Ao se tomar consciência da necessidade de construir uma narrativa, as fronteiras entre o fotógrafo e o realizador tornam-se mais permeáveis, pois também na montagem o realizador justapõe as imagens a fim de encontrar uma sequência lógica. Apesar de podermos interpretar esta cena como um paradoxo – quanto mais as imagens são ampliadas ao ponto de abstracção, menos leitura têm – parece-nos que a questão central reside justamente na interpretação oposta: o crime é descoberto através de sucessivas ampliações, mostrando-nos como a verdade também pode ser encontrada nas representações abstractas. Em “Blow-Up”, Antonioni transcende o estádio de simplesmente mostrar coisas para alcançar o “stage of ecstasy”. Ao converter a realidade em abstracção, a arte ‘trai’ a realidade no sentido em que ultrapassa os seus limites. Apesar da obsessão pelo detalhe, várias vezes referida pela crítica, Antonioni formula, nesta cena, uma das questões mais pertinentes sobre a fotografia: será a ampliação reveladora da realidade? Como veremos ao longo do filme, até certo ponto sim, mas a fotografia é incapaz de nos dar toda a história, na medida em que o sentido não está na imagem mas em quem a observa. Mais uma vez se coloca a questão dos

limites entre a realidade e a ficção: regressando ao parque, a fim de comprovar aquilo que a fotografia havia registado, Thomas não encontra o corpo. A questão que se coloca de imediato é: terá de facto existido algum crime? A fotografia capta e fixa o real mas existirá um intervalo entre a realidade e a representação? Diferenciando a fotografia do texto, Roland Barthes definiu a fotografia de “contingência pura”, isto é, a fotografia é sempre aquilo que é representado. Enquanto o texto é indissociável de um sentido, a fotografia é do domínio do contingente, do semsentido, no entanto, “a fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é ‘pensativa’. Justamente porque o referente da fotografia é diferente dos outros sistemas de representação; na fotografia a presença das coisas nunca é metafórica mas real, ela é a presença imediata da coisa no mundo. Talvez por isso possamos dizer que a fotografia se autentifica a si mesma ou, como diria Barthes, ao contrário da ficção, a fotografia olha-nos nos olhos. Contudo, “a visão do fotógrafo não consiste em «ver» mas em estar lá”, isto é, a fotografia é melhor reconhecida, por vezes, se recordada, do que vista no momento. Não menos importante, nesta relação entre o realizador e o protagonista, é o facto de Thomas ser humanamente problemático. Arrogante, quase anti-social, o mundo da moda que o rodeia acaba por ser um universo grotesco pela sua artificialidade. A humanidade cede lugar às “birds” e às “bitches”, mulheres-objectos, vulneráveis, servis. Ao dirigir-se a uma das aspirantes a modelo, Thomas pergunta-lhe o nome para, em seguida, se apressar a dizer: “what’s the use of a name?” De facto, a identidade dos que o rodeiam é irrelevante. Porque terá Antonioni incutido traços despidos de humanidade no protagonista, tem sido uma das perguntas frequentemente colocadas pela crítica. Certo é que, ao fazê-lo, Antonioni ocupa o lugar de crítico, ironicamente distanciado, explorando a natureza da criatividade artística. Na última cena do filme, onde Thomas acaba por participar num estranho mas surpreendente jogo de ténis, assistimos, numa primeira análise, a um confronto entre a cultura e a natureza. Na verdade, a maioria das cenas principais do filme tem lugar num parque, um local que é o produto de uma construção, um artifício pela forma como faz conviver a natureza e a cultura. Nesse jogo de ténis, o que se questiona, mais uma vez, não é a realidade e o seu significado mas a mobilidade dos significados; a realidade surge como uma construção, permitindo jogar uma partida de ténis imaginária, pois o seu significado depende do contexto. Nesse jogo, existe novamente um diálogo entre a câmara e a personagem. Thomas assiste incrédulo ao jogo de ténis, enquanto a câmara segue o movimento da bola imaginária. Mesmo que o espectador não consiga ver a bola, ao seguir o seu movimento Antonioni mostra-nos como podem ser ténues as fronteiras entre a realidade e a ficção, como a personagem, Thomas, é ficcional e apenas ele, o realizador, tem o poder de controlar o nosso olhar. Resta ao espectador entrar ou não naquele que é um jogo de sentidos. Apesar da correspondência diagética entre a câmara e a máquina fotográfica, a câmara de Antonioni faz muito mais do que reproduzir a máquina fotográfica de Thomas. Poderíamos arriscar ao dizer que Thomas funciona como o duplo do realizador, um duplo fundado na ambiguidade, no facto de significar contraste e oposição, mas também semelhança ou complementaridade. Nesse mundo de imagens falacioso e ambíguo onde Antonioni nos projecta, encontramos pelo menos quatro pontos de vista: o de Thomas, o fotógrafo; o de Thomas, o ‘voyeur’, aquele que vê e não vê; o da máquina enquanto intermediária; o do realizador. Em “Blow-Up” Antonioni define qualidades únicas da fotografia, associando cada imagem a um palimpsesto, isto é, cada imagem contém mais do que aquilo que aparentemente revela. Esse passa a ser, aliás, o papel do fotógrafo na contemporaneidade: aquele que experimenta a fotografia até aos seus limites e, no conjunto dos seus detalhes, reconhece a acumulação histórica do mundo. “Blow-Up” chama a atenção para o significado que a realidade pode ter para além da sua aparência. Talvez por isso o fotógrafo seja aqui o duplo do realizador na medida em que ambos – fotografia e cinema – descobrem e isolam o detalhe. “Blow-Up” poderá talvez ser lido como uma metáfora da busca, na medida em que a problemática inspiradora é a aparência da realidade. Cada um pode, por isso, pensar o que quiser. Porque, tal como o olho humano se ilude, também a imagem mecânica mostra ser mera aparência que esconde muitas outras. [x]

ENSAIO // 27


,,Dançar com as palavras, escrever com o corpo

Olga Roriz

Abrir a porta para aquele Mundo é como abrir a porta de uma qualquer, (ora grande ora pequena) Alice, para o País das Maravilhas do conto de Lewis Carroll. Pequenas nuvens de fumo de incenso viajam entre pinturas, fotografias, objectos cheios de vida e significação, dissipando-se de encontro com as pedras da muralha Fernandina de Lisboa. No sofá uma mulher, mãe, criadora de ilusões e confusões reais, uma amiga, uma inventora de novas respirações para o corpo, para o movimento, para a dança. Um ser pensante, com ideias sobre homens e mulheres, daqui e dali. Os cigarros são compridos, as mãos são alongadas como as pontas dos pés de uma bailarina. O dourado do isqueiro encandeia o rosto, ao cuspir fogo em linha paralela ao esguio pescoço de uma garça-real. Escreve muitas palavras, mas para si. Os movimentos não os escreve como qualquer coreógrafo (escritora de movimento), inscreve-os primeiro no seu corpo, depois para corpos alheios que de alguma forma já foram seus, carregados de vivências, plenos de significância. Chez Madame não habita a abstracção, cada movimento, cada gesto precede uma ideia e transmite uma emoção, um estado, um estar. Os seus 50 anos de idade, 30 de carreira e 10 de companhia, transformaram o ano de 2005, num ano de comemorações e de “Felicitações Madame”, título do primeiro filme de dança em Portugal dirigido e realizado pela Madame Roriz, a estrear em Junho deste ano. Falar de Olga Roriz é descobrir alguém com histórias no corpo e na cabeça, daí precisar de racionalizar a emoção lendo ensaios e poucos romances, é descobrir que “a pele é uma venda e um poço de memórias”. A maior coreógrafa da história da dança em Portugal, é uma Diva, não pela maneira como a tratam muitas vezes, mas pela forma como trata. O seu trabalho como coreógrafa revela um fascínio pelo drama. Quando prepara uma coreografia pretende que ela seja mais do que uma dança, seja um espectáculo? OLGA RORIZ – Acho que nunca pensei de outra maneira senão essa. Nunca pensei que a dança fosse esvaziada de sentido e de conteúdo dramático. Achei que era uma via, sobretudo numa fase inicial, para dizer alguma coisa, mesmo que através do corpo. Desde cedo, nunca me fez muito sentido a ‘dança abstracta’, se é que ela existe, mas sim os movimentos terem por base uma ideia. Ao partir deste pressuposto, o que acontece é que a súmula desses porquês e dessas ideias segue uma linha dramática, mais ou menos teatral. Mesmo tendo feito o meu percurso na Gulbenkian, durante 18 anos, de pesquisa ao nível do movimento e da linguagem do corpo, a partir de certa altura deixou de me interessar o lado da malha coreográfica, pela malha dramatúrgica, pelas ideias em si.

Entrevista | Luiz Antunes Fotografia | Rodrigo César

Subida íngreme, caminho de pedra e sem saída. Ao fundo uma porta de cor verde, talvez demasiado estreita e alta, encimada por uma vidraça em arco e sobre esta uma pequena janela rasgada na parede que deixa sair alguma luz para o exterior da envolvente casa da Madame Roriz. 28 // ENTREVISTA

Qual é, para si, o peso da palavra neste processo criativo? Quase poderia dizer que o meu ideal é essa junção perfeita, que ainda não sei bem o que é, entre a dança e a palavra. Ainda procuro o momento perfeito em que o corpo possa estar em movimento e complete a sintonia com a palavra. Tenho feito esse percurso, desde há dois anos, com uma das bailarinas que está na companhia. Quais são as vozes literárias que a acompanham? Geralmente não elejo ninguém, em nenhuma área. Tenho cruzamentos que são muito importantes, motivados, sobretudo, por vivências. Desde muito nova que sempre preferi o ensaio aos romances ou à ficção. Li muitos ensaios filosóficos, Nietzsche, Schopenhauer… Foram autores marcantes, sobretudo para uma rapariga muito jovem. Nietzsche é um autor muito masculino,


quase cruel para as mulheres… Depois li todo aquele conjunto de autores que são quase cliché, tais como o Sartre, o Camus, Fernando Pessoa, que ainda hoje continuo a ler. Há ainda todo um conjunto de escritores que estão na prateleira há anos e que estão ali à espera do momento, mesmo sabendo que é quase um pecado não os ter lido! É quase a retenção de um desejo. Hoje em dia deixei de ter o hábito de ir à livraria comprar um livro. O que me faz conhecer novas músicas, novos escritores e artistas é a pesquisa que faço para todos os meus trabalhos. Mesmo que isso só aconteça de oito em oito meses, são momentos muito enriquecedores para mim. A escrita distanciou-a de algum modo da leitura? Sim, sem dúvida. Não escrevo para ninguém ler, apesar de já me terem pedido para editar os meus Diários Falsos, que já vão no quarto volume. Acho que é uma questão de necessidade. Sempre escrevi para mim, e alguns pequenos textos para figurarem nos programas de certos espectáculos meus. Mesmo esses textos pequenos eram dolorosos porque sabia de antemão que eram públicos. Esses textos foram-se alongando e a certa altura, por incentivo de várias pessoas, comecei a escrever com um pouco mais de tranquilidade. Em 1996 escrevi um texto bastante longo para um espectáculo e, talvez a partir dessa altura, escrevo todos os dias. Neste momento, escrevo mais do que danço. Não trato todos os dias o meu corpo como bailarina, mas todos os dias tenho de escrever. Uma das coisas que me dá, por exemplo, muito prazer é a coreografia da escrita que tem a ver com o meu ritmo interno, com a minha dinâmica. Sendo a coreografia um grafismo do movimento, de que forma é que, tanto as palavras que escreve influenciam esse movimento ou vice-versa? A escrita tem sobretudo a ver com as minhas ideias e não necessariamente com o movimento. É a descoberta dessas ideias que me facilita depois a organização das coisas no espaço. As palavras, assim como a música no cinema, são coisas independentes, discursos que estão ali pelo que valem e não por estarem a servir qualquer outra coisa. Beckett disse: “Encontramos sempre alguma coisa para nos dar a impressão de que existimos”. Sente essa necessidade de interiorização no seu processo criativo? Acho que tudo começa pela necessidade. Não tenho de dizer a mim própria que existo sempre que faço alguma coisa. Essa interiorização não é para comunicar nada mas apenas por uma necessidade egoísta. É ali que eu existo como pessoa e tenho o privilégio de ser e fazer o que quero, onde e como quero viver. É certo que poderia ter pesquisado o meu espaço de várias maneiras, através da pintura, da fotografia, mas foi esta a forma que encontrei para me exprimir. Quais são os seus medos? Uns já não tenho, outros ainda permanecem. Tenho várias fobias mas que se têm desvanecido porque talvez as enfrente. Acho que tenho medo das coisas que penso que tenho medo. A solidão, o silêncio, a noite, são alguns dos medos que se têm vindo a transformar em algo presente. Tenho outros medos mais físicos, por exemplo o medo da queda, algo que é estranho, sobretudo sendo eu uma coreógrafa que constantemente trabalhou sobre este tema. Justamente o momento que gosto mais é o momento em que já não há retorno na queda. Tenho medo do pânico, da morte, não me apetecia morrer.

Sente que existe uma dimensão de monstruosidade no seu trabalho coreográfico? Não tenho essa noção. No entanto, sei que alguns monstros me perseguem. Mas só trabalho com coisas que me atormentam de forma a exorcizá-las. A criação é uma despoluição. Qualquer artista ao não conseguir enfrentar ou lidar com uma dada realidade ilude-se e vive nessa ilusão. Muitas vezes utilizo certas coisas inconscientemente e quando as racionalizo consigo compreendêlas e estabelecer ligações com a minha própria vida. Por exemplo, o Start and Stop Again foi apresentado aos bailarinos como um projecto inspirado no filme Os Cavalos também se Abatem e, a determinada altura, apresentei-o como um projecto sobre o tempo. Algum tempo depois do trabalho conjunto sobre este projecto, um dos bailarinos perguntou-me porque é que eu tinha mudado de linha temática. Eu, que não estava à espera desta pergunta, disse impulsivamente e de forma inconsciente: “Porque pela primeira vez na minha vida estou sozinha em casa e o meu tempo modificou-se completamente”. O Amor ao Canto do Bar trata um confronto terrível mas que ao mesmo tempo me tranquilizou. Foi algo que retirei de mim de forma a conseguir resolver este conflito interior.

Olga Roriz tem um quase percurso paralelo relativamente à dança em Portugal que, mesmo tendo interceptado algumas vezes, sempre manteve a sua rota. Sente que abriu novas portas na dança? Sobretudo neste último ano, em que a Companhia foi muito pública, sinto que houve de facto um percurso contínuo, apesar da existência de fases distintas, fruto de uma natural evolução. O que é muito interessante para mim é perceber que mesmo hoje em dia ainda abro portas, ou cabeças, a pessoas muito jovens. É isso que me dá a noção de que não fiquei parada no tempo. É muito gratificante, por exemplo, ter fãs da idade da minha filha.

Trabalhando diariamente com o corpo, considera que ele pode ser monstruoso e simultaneamente belo nessa monstruosidade? Há uma dualidade muito grande no corpo, com o passar dos anos: o corpo vai-se deteriorando mas cada vez sabe mais. Essa sabedoria é uma poderosa ferramenta que contraria o envelhecimento da máquina. O último solo que repus do Jardim de Inverno, que foi feito há 16 anos, lançou-me numa fase inicial algumas questões porque naturalmente nessa altura eu tinha um poder físico muito grande. Curiosamente, ao fazê-lo recentemente apercebi-me que pela sabedoria que este corpo agora já tinha eu consegui que esse solo fosse, pelo menos para mim, muito mais interessante. O meu corpo tem sido muito bom para mim porque responde e corresponde à minha cabeça. Obviamente que a minha linguagem cresce através deste corpo que eu tenho, com um lado feminino e um lado masculino que sabem conversar muito bem.

A limpeza de movimentos que traz à dança, partindo deste estado para chegar a uma sujidade, a uma naturalidade, é um contributo inédito à dança em Portugal. A questão da naturalidade é uma coisa que vem desde muito cedo, do tempo da Gulbenkian. Muitos problemas eu tive com bailarinos quando apelava a uma naturalidade! Durante muito tempo tive algumas dúvidas sobre se estaria certa relativamente a essa naturalidade mas o que é certo é que nunca perdi essa característica. A dualidade masculina e feminina fez também com que num determinado momento da minha carreira preferisse trabalhar com homens porque as mulheres, sobretudo as do tempo da Gulbenkian, não estavam prontas para certas coisas, não conseguiam exteriorizar a força quase masculina que eu procurava. Quando pus em cena o espectáculo Três Canções de Nina Hagen, fui abordada por várias pessoas na rua que me perguntavam porque é que as mulheres eram tão mal tratadas. Exactamente por isso: porque é horrível.

Há cerca de dois anos atrás, Olga Roriz disse: “O silêncio não existe. Ou melhor, existe antes ou depois de nós”. Interessa-lhe viver o instante, sem retrospectivas ou projecções? Eu costumo dizer que tenho saudades do futuro. Por muito que queira ou não, não consigo descolar de mim o que está para trás. O que me interessa é continuar, não só porque somos empurrados para o próximo minuto, mas também porque o que é preciso é construir esse minuto. O cenário, para si, é também um espaço de habitação? Acho que esta questão tem muito a ver com o realismo do lado teatral. Há muito tempo que deixei o chamado cenário decorativo. Um espaço ou está vazio ou se há alguma coisa deve funcionar como um discurso paralelo, conversar com esse objecto. Tenho sempre muito a tendência de usar objectos quotidianos: nada mais quotidiano do que as cadeiras que são um sítio para estar. Essa minha recorrência de uma série de objectos que falam com o corpo tem a ver com uma linguagem de necessidade e com a vontade de que o público faça uma reflexão rápida. Quando comecei a coreografar eu não sabia o que queria, mas sim o que não queria. Foi muito bom por isso ter o Vasco Wallemkamp ao meu lado, porque me obrigou a fazer esta reflexão. A distância com o público foi uma das coisas que quis eliminar, aproximando o público do palco, tentando falar e exprimir problemas comuns a todos.

Traz para cena constantemente a figura da mulher, frágil mas simultaneamente com uma força muito masculina… Eu sou assim. Lembro-me de me criticarem a minha violência gestual quotidiana e de ter consciência desse lado forte mas acho que essa situação tem a ver sobretudo com a minha personalidade, com o meu lado de excessos, de pujança física…A coisa mais minimal que eu fiz, no sentido geométrico, foi a Terra do Norte mas ao mesmo tempo era tudo tão térreo e tão tribal! Eu nunca fui muito atrás de correntes, géneros ou modas.

O momento de dança, para si, é a suspensão ou o desequilíbrio? São várias coisas. Ambas fazem parte de mim. Os opostos são muito importantes para mim, assim como o preciosismo, que é outro lado meu, presente na Casta Diva. São os vários eus, da intérprete e da coreógrafa. Quase heterónimos… Não sei… eu sinto-me uma pessoa muito una mas tenho duas cargas muito fortes, bem distintas: a mulher forte, sensual e a miúda que não cresce. Por ocasião dos seus três aniversários - 50 anos de vida, os 30 anos da sua carreira como dançarina e coreógrafa e os dez anos sobre a existência da Companhia Olga Roriz – surge o filme Felicitações Madame. A Morte do Cisne, uma das cenas filmadas, mostra esse lado mais infantil. O processo de criação é sobretudo um impulso, uma vontade? Não sei explicar, é algo que cresce repentinamente. Pensei como depois de tantos anos eu consegui dar a volta à Morte do Cisne. Ao mesmo tempo sem deixar de ser eu. Eu gosto muito de dançar e tenho pena de não conseguir ter trabalhado comigo não como coreógrafa mas como bailarina. [x] ENTREVISTA // 29


,, Chorão Ramalho: a obra e a pessoa Texto | Nuno Teotónio Pereira_ Arquitecto Fotografia | Filipa Carvalho

Escrever sobre Raul Chorão Ramalho e a sua obra é recuar meio século no tempo, quando eu trabalhava como tirocinante no atelier do inesquecível Carlos Ramos, juntamente com seu filho Carlos Manuel Martins e outros que não recordo. Lembro-me que a certa altura caíu no atelier um trabalho de invulgar responsabilidade a que era preciso dar resposta e a mão d’obra disponível era formada por principiantes como nós. Ouvi então dizer a Carlos Ramos que tinha obtido a colaboração de um jovem muito talentoso e já com provas dadas no atelier de Paulo Cunha: era o Chorão Ramalho. Fomos depois companheiros nos primeiros anos da minha vida profissional, já que partilhávamos do mesmo atelier, juntamente com Manuel Tainha, Alzina de Meneses, Bartolomeu Costa Cabral e mais tarde Nuno Portas. Ramalho foi assim para a minha geração como que um irmão mais velho, cujo conselho era sempre de grande proveito. Dotado de grande sensibilidade, cedo aprendeu a lidar bem com os diversos materiais e a agir sobre o estirador com uma imaginação contida, conduzida por uma grande disciplina interior. Era assim que criava com total liberdade numa linguagem própria, de grande consistência, despida de artificialismos e modismos.

Iniciando a actividade profissional por volta do Congresso de 48, quando a imposição dos modelos nacionalistas começava a deixar de ser regra geral, mas ainda se mantinha com rigidez em muitas encomendas de Obras Públicas, Chorão Ramalho teve a sorte de ter como clientes organismos oficiais dispondo de uma certa autonomia e onde os aspectos técnicos prevaleciam em prejuízo dos ideológicos. Teve assim a oportunidade de, face à fortaleza das suas convicções e à integridade do seu carácter, conquistar a liberdade de expressão que frequentemente era negada a muitos arquitectos. Efectivamente, os modelos impostos pelo salazarismo começavam a ser nessa época ignorados por entidades como a Câmara de Lisboa, o governo de Macau, as Caixas de Previdência, as Obras de Hidráulica Agrícola ou a Caixa Geral de Depósitos. Chorão Ramalho pode assim gabar-se de nunca ter visto um projecto recusado por razões estilistas. Ao longo de uma produção intensa espalhada pelo Continente, pela Madeira e por Macau, Ramalho personifica uma posição ética na arquitectura. Ética que se revela num certo número de atitudes e comportamentos: a resposta atenta às exigências dos programas, com uma grande atenção aos aspectos de ordem funcional; o conhecimento

das técnicas e dos materiais, buscando com rigor os mais adequados para cada obra; a lealdade e frontalidade para com os clientes e a Administração; o rigor do desenho, desde a concepção espacial até aos pormenores cuidadosamente estudados. Mas englobando tudo isto, que configura com um sólido profissionalismo, uma profunda consciência cívica. Daí a grande unidade que transparece na sua obra, para além de programas e contextos muito diferenciados, e ao longo de cinco décadas. Efectivamente, através de uma diversidade de linguagens que foi adoptando para cada caso, as obras de Chorão Ramalho têm qualquer coisa de comum que resulta de uma permanente têm qualquer coisa de comum que resulta de uma permanente finalidade aos valores que nunca deixou de cultivar. Entre esses valores está sem dúvida uma extrema atenção ao meio envolvente. Não que haja qualquer preocupação mimética nas suas obras: em alguns casos, como no complexo da Previdência no Funchal ou no Hospital de Viana do Castelo, os volumes sobressaem com um contido dinamismo dos tecidos circundantes. Mas com uma coragem lúcida e sensível, sem arrogância ou sobranceira: não esmagam, antes constituem elementos dominantes que ajudam a estruturar a paisagem urbana.


A perfeita noção daquilo a que os arquitectos chamam escala é aqui determinante qualquer que seja a dimensão dos edifícios, grande ou pequena, a escala estabelece uma relação de harmonia com o contexto, sempre presente nas obras de Ramalho. E tem alguma relação com isto o cuidado posto na criação de espaços de ligação à volta dos seus edifícios. Estes nunca são objectos isolados, caídos de pára-quedas, pois o arquitecto empenha-se no desenho de elementos de suporte ou envolvimento que estabelecem uma relação com o que se passa à volta. São exemplos desta atitude as generosas plataformas pedonais que acompanham os edifícios do Centro Comercial do Restelo, toda a organização do espaço no Cemitério do Funchal, articulando as diferentes construções, e sobretudo a embaixada de Brasília, que levou Chorão Ramalho a projectar a Praça de Portugal, já fora dos limites do lote, mas parte integrante de um mesmo conjunto carregado de coerência. Neste caso foi uma grande perda para a arquitectura portuguesa que não tivesse sido construído na totalidade este monumento. Outra das características do arquitecto é a imaginosa e sábia relação entre interior e exterior, patente em muitas das obras projectas, a começar exactamente por esta de Brasília. Espaços alpendrados, pátios, espelhos de água, caminhos pedonais e coberturas tratadas como espaços verdes, são uma constante na sua obra. Para além de Brasília, o Centro regional de Segurança Social de Setúbal, o Hospital de Viana, a Escola Pedro Nolasco em Macau e a Assembleia regional da Madeira são exemplos eloquentes desta interpenetração interior / exterior, de que a nossa arquitectura contemporânea não é particularmente rica. As obras já citadas e muitas outras, como os edifícios da Caixa Geral de Depósitos, atestam mais uma característica do trabalho de Chorão Ramalho: a dignidade conferida aos equipamentos públicos e aos edifícios da Administração. Esta dignidade, obtida com a recusa total de expressões de grandiloquência ou gigantismo, resulta da profunda consciência cívica a que já aludi. Pode dizer-se que Ramalho transmite nestes edifícios o conceito de que a dignidade das instituições não se exprime à custa do esmagamento dos cidadãos, mas representa antes, na organização do espaço edificado, uma clara ideia de urbanidade. Nos edifícios de habitação, de que são exemplo o conjunto da Praça Pasteur e Avenida de Paris, em co-autoria, os blocos de Olivais - Sul ou os prédios do Funchal e de Macau, é patente a sua atenção à problemática da arquitectura doméstica e ao cuidado de fazer cidade, em que se demonstra uma sábia contenção formal a favor do equilíbrio e da harmonia do conjunto urbano. A obra de Raúl Chorão Ramalho, aí está, polifacetada mas coerente, para mostrar como um arquitecto consciente e competente, sereno mas determinado, trazendo para os seus trabalhos a colaboração frequente de artistas plásticos e amando a sua profissão, deu um contributo inconfundível e de grande qualidade à arquitectura portuguesa desta segunda metade do século.” [x]

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No dia 12 de Agosto atracou em Lisboa um dos maiores barco de velas do mundo para nele embarcarem os escritores portugueses Antonieta Preto e Possidónio Cachapa, a escritora galega Luísa Castro e o poeta Xulio Valcárcel, juntando-se a mais de uma vintena de escritores galegos, espanhóis, e peregrinos, que foram embarcando nos vários portos. A rota, denominada como “Traslatio Literaria e Xacobea” pretende recuperar a antiga rota marítima (entre Valência e Santiago de Compostela) da Idade média, e rememorar a última viagem dos restos do apóstolo São Tiago quando foi trasladado desde Jerusalém até Santiago de Compostela. Na última etapa da viagem, feita a pé até à capital da Galiza, juntaram-se outros escritores como Carlos Quiroga, Eva Rumí, Espido Freire, David Castillo, Asier Serrano, Juan Manuel Prada, entre outros. Os escritores descreverão a sua experiência vivida a bordo, deste “barco literário”, e a pé, num livro a ser lançado ainda este ano em Madrid. A A23 pediu à escritora Antonieta Preto que transmitisse o seu olhar sobre a viagem... Etapas e Portos da Viagem

,, Viagem Literária Texto | Antonieta Preto Fotografia | IAGO RV - Xacobeo e Luís Vera

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Valência - Cartaxena - 4 a 6 de Agosto. Escritores: Fernando Marías e Marta Rivera de la Cruz. Cartaxena - Málaga - 6 a 8 de Agosto. Escritores: Fanny Rubio, Ramón Pernas, Milagros Frías, Manuel Francisco Reina y Francisco Quintero. Málaga - Cádiz - 8 e 9 de Agosto. Escritores: Rosa Regàs, Guillermos Galván, Gustavo Martín Garzo, Carmen Gurruchaga, Emilio Ruiz Barrachina, Ángeles Macua, Lucís Novas e Elvira Riveiro Tobío. Cádiz - Lisboa - 9 a 12 de Agosto. Escritores: Almudena de Arteaga, Fernando Martínez Laínez, Carlos Franz e Juan Bolea. Lisboa – Vilagarcia de Arousa – 12 a 15 de Agosto. Escritores: Antonieta Preto, Possidónio Cachapa, Luísa Castro e Xulio López Valcárcel. Peregrinação a Pé (20 quilómetros), desde Padrón até à catedral de Santiago de Compostela. Escritores: Carlos Quiroga, Eva Rumí, Possidónio Cachapa, Antonieta Preto, Asier Serrano, Felipe Juaristi, Espido Freire, Juan Manuel de Prada, David Castillo, Pedro Ramos, José Ramón Trujillo, Basílio Rodríguez e José María Paz.


O silêncio do sol, quente, na tarde de domingo, dia 12 de Agosto, perto das quatro, no cais da Rocha em Lisboa. Já veio de outras paragens, tal como a embarcação, isso, denuncia-se, logo, nos tons, uns mais escuros do que outros, dos rostos serenos, tranquilos. Andaram pelo mediterrâneo, peregrinos, escritores, jornalistas, políticos, chegaram ao atlântico onde continuarão a viver as novas experiências no interior do barco russo “Mir”, (cujo nome significa paz) até chegarem à Galiza. Os olhos e os corpos encostados às varandas do barco ficam a receber os novos viajantes que chegam com as bagagens. “Vamos à aventura?”questiona Possidónio Cachapa quando me encontra. Resposta minha: “Claro”. À aventura (a tantas coisas mais, também, ficarão em mim, pensei) Possidónio transporta uma mochila às costas. Eu já “guardei” a bagagem no bar (o “meu camarote” estava em limpeza). Luís Ulloa (coordenador do projecto xacobeo) assegurou-me de que não havia problema em deixar a bagagem numa qualquer divisão do barco. Sorte, a minha, e a de todos que aqui viajam, porque, Possidónio, há um mês que espera notícias da sua mala desaparecida numa das últimas viagens de avião. Vergonhas aéreas. A conversa entre nós interrompese naturalmente com o movimento de outros passageiros que começam a chegar. A escritora, Luísa Castro e o poeta galego Xulio López Valcárcel, Pepa, vocalista dos próximos dias do grupo musical Medio Cabalo – cujo nome nasceu de um grupo de pedras que estão no meio do mar, avistá-las-emos, próximas de ilhas e da costa Corrubedo (famosa pelas suas dunas) não muito longe de Vilagarciade Arousa, onde irá terminar esta viagem por mar – Carlos Izquierdo e Gonzalo Mato, ambos membros do grupo. A música da partida, o som que vem de um tempo muito antigo. Amigos, familiares, jornalistas, fotógrafos ficam no cais a olhar os novos e os antigos passageiros, registando o momento. Gonzalo grita, na sua língua espanhola, a um amigo: tudo o que precisares, eu não estou, mas telefona para a minha mulher, que é como se fosse eu. O músico pergunta-me, (nessa altura já sabíamos os nomes) fixando o meu olhar: Antonieta, estás emocionada de deixar Lisboa? Entreguei-lhe uma resposta algo vaga, mas, agora que escrevo este texto Gonzalo, digo-te, não, não. As terras nunca partem, só os homens. Talvez por isso a partida se sinta tanto, às vezes, como uma morte. Tão insuportável a morte biológica...

Lisboa, Lisboa... O adeus – há uma música do corpo e da alma que se agita e se acentua – levar o olhar ao alto e contemplar a belíssima tela com S. Jerónimo de Durer, os painéis de S. Vicente de Nuno Gonçalves ou S. Leonardo de Andrea della Robbia que enchem, alheios a polémicas e guerras hierárquicas indesejáveis, as fachadas amarelas do magnífico museu de Arte Antiga, as escadas elegantíssimas da 24 de Julho por onde se sobe até ao jardim do museu – Jardim 9 de Abril (data da batalha de la lys) – a esplanada estendida sobre o rio... Lisboa vista da direita, para a esquerda, a luz, os telhados, o mosteiro dos Jerónimos ...Curro, homem da câmara, discreto e apaixonado pela imagem fascinar-se-á com o que verá a seguir. “ Nunca tinha tido esta visão de Lisboa. O monumento aos descobridores, a Torre de Belém, nunca os contemplara antes, a partir do mar, eles foram construídos para serem contemplados daqui. Vê-los banhados pelo mar e pelo sol... Uma autêntica preciosidade”. Outras preciosidades ficarão registadas entre 14 horas de filmagens, reduzidas a 45 minutos para o documentário (que ele e Ángela Palomares, outra profissional da câmara, hão-de preparar sobre a viagem) , entre elas, observo, no segundo dia de viagem, uma das mais brilhantes filmadas por Curro à saída de Lisboa – “ gravar um mastro com mais de cinquenta metros de altura é impressionante mas, quando apareceu a ponte no visor, encolhi-me. A grandiosidade do mastro, com mais de cinquenta metros, com as suas velas atadas, a ponte, majestosa, imponente, unidos numa mesma imagem e com o sol em contraluz, fez-me sentir muito pequenino. Por um momento, mastro e ponte uniram-se, o sol ocultou-se. A magia tornou-se realidade e o barco seguiu o seu caminho connosco nas entranhas. Num momento assim, sentimo-nos pequeninos, ínfimos, maravilhados por ter contemplado uma coisa deste género”. Há sempre lugar para uma perspectiva original, uma descoberta resultante das mais diversas origens, graças aos olhares que olham de dentro para fora e de fora para dentro. As imagens são como as obras. Como diz o escritor Oliver Rolin “as obras não jorram de uma origem, mas de um emaranhado de origens”.

O começo da transformação da pele Já deixámos Lisboa, atravessámos as casas, a terra imensa. O que iremos ter pela frente, todos, sem excepção: apenas elementos naturais. Sol ou Nuvens, Mar e Céu. Que sublime. É o começo da transformação da pele, que é a alma. É o começo de novas linguagens que cada um descobrirá. Algumas apenas se podem fotografar dentro. É o que acontecerá a Iago, fotógrafo profissional. Revelar-me-á ele uma linguagem secreta, que lhe chegou e de que falarei mais tarde. Tento arrumar a bagagem num dos armários do camarote. Arrumo-a entre o bambolear do barco que percorre a rota mítica (e que ressuscita, com esta iniciativa organizada pela Junta da Galiza e a Associação de Amigos do Caminho de Santiago, um dos itinerários marítimos mais populares da idade Média caído em desuso com a reforma protestante). Um bambolear, decerto, mais suave do que o bambolear da barca que, segundo a lenda, terá partido, sem remos nem capitão, transportando no seu interior os restos do apóstolo Santiago, depois de ter sido degolado em Jerusalém, depois dos seus discípulos lhe descobrirem o corpo e o depositarem na barca. A primeira cidade espanhola por onde terão passado os seus restos terá sido Valencia. Seguiu-se Cartagena, Málaga, Cádiz, Lisboa, chegando finalmente a Santiago de Compostela, onde se diz estar soterrado o seu corpo. Penso, seguidamente, nos romanos, povo conquistador que tinha a sua águia imperial. Como ela, também eles tinham de chegar o mais longe possível. Depois de subirem as terras do sul espanhol, já conquistadas, seguiram em direcção a um país desconhecido, mas do qual já tinham ouvido falar. O país onde se acreditava acabar o mundo: Galiza ( o final do percurso. Como a morte, o fim biológico de uma vida – mas não é verdade que a matéria se pode transformar? ) O lugar para onde nos encaminhávamos. Mas, até onde chegaria eu nesta viagem? De que forma? O importante era chegar, ou fazer o caminho, enfrentar alguns problemas, que, no caso do mar, se concentravam numa primeira fase nas indisposições, nos enjoos, por parte de alguns viajantes? Talvez os dissabores representassem etapas na busca de um conhecimento. Recordome da indisposição de Carlos Izquierdo, na primeira noite, junto e sobre a água - símbolo da purificação. A primeira limpeza do corpo preparado, depois disso, para receber uma qualquer outra coisa? Observá-lo-ia, nos dias seguintes, numa contemplação de paz, colhendo o mar, o sol, a viagem, a paisagem humana, em estado de fascinação. O mesmo se passaria com Hermínia Filgaira (guitarrista). Em terra, demostrar-me-ia o desejo do regresso. A repetição da viagem. Até onde chegariam, pois, o resto dos viajantes a bordo do veleiro? Que razões existiam para esta peregrinação por mar, mais tarde por terra? Que dimensão espiritual era esta que eu arrancava devagar do meu corpo, corpo-alma, guardando-a até hoje, e da qual só desejo revelar, hoje e no futuro, apenas uma parte?

Receber o mar Penso na grafia do Mar. Detenho-me nos sons e vibrações da palavra. Detenho-me nas diferentes grafias que encontro, de acordo com o alfabeto de cada país, para uma única verdade: a de que o mar é quase sempre recebido. Mas também, não poucas vezes, rejeitado, como a fé. Contudo, a primeira e talvez a única forma de a aceitar é recebendo-a interiormente. É o que faço com este mar. Não haverá ninguém no interior do barco a rejeitar esta imensidão. Outras coisas sim. Amparo Sánchez, da Associação de Amigos do Caminho de Santiago da Comunidade Valenciana, tem o rosto quase preto, contemplativo. Está sentada sobre o chão do barco. Quando deambulando pelo convés a encontro e lhe pergunto se deseja a ouvir a música que trago colada ao ouvido, é categórica: “Só quero ouvir o mar, aquilo que apenas consigo e desejo ouvir”. Há muito que Amparo já ouve o mar, há muito que vem de longe, de águas quentes e cúmplices. Iniciou o seu percurso em Valência, no dia 4 de Agosto, onde ela, outros peregrinos e os escritores Fernando Marías e Marta Rivera de la Cruz foram os primeiros a entrar num dos maiores barcos de vela do mundo. Outros se seguiram até ao percurso final já por terra, no Padrón, antiga cidade de Iria Flavia, onde terão chegado

na barca os restos do apóstolo. A lenda conta que os mesmos seguiriam depois por terra, para serem enterrados num bosque. Dez séculos depois, um eremita que passava por aqueles lugares viu cair uma grande chuva de estrelas. Avisou o bispo da Galiza. Dizia-se que uma estrela fixa iluminava o local do sepulcro onde estavam os restos do apóstolo. O cemitério da época romana ficou conhecido como “El Campo de la Estrela”. O rei de Espanha Afonso II mandou, então, edificar um pequeno templo que protegesse a campa. Assim nasceu “São Tiago do Campo das Estrelas”. Assim nasceu o nome de Santiago de Compostela. Detenho-me, agora, num peregrino recostado numa cadeira, de frente para o mar. Sustêm nas mãos o livro En Tiempo de Prodigios” de Marta Rivera de la Cruz. A escritora deixou-o autografado antes de desembarcar em Lisboa( no decorrer das etapas há escritores que embarcam e outros que desembarcam, conforme os portos) à Associação de Amigos do Caminho de Santiago. Todos os dias, ele recostar-se-à na cadeira. Novas páginas juntar-se-ão às já lidas anteriormente. Entusiasmado com a leitura prefere falar dela quando chegar ao fim. Se chegar, adverte. O tempo pode ser curto. Será mais certo percorrer o caminho místico, por mar, mais tarde por terra, e, nesse percurso, chegar ao fim.

Em cada instante de corpo, morro... O veleiro é uma fogueira de passos felizes, autênticos, curiosos, pensativos, contemplativos, meditativos, interrogativos. Rubén Lois, (director geral do turismo da galiza), caminha com o cérebro, para trás e para a frente. Que pensa aquele homem, enquanto a sua mulher, deitada sobre o chão do barco, recebe numa paz de mar o sol, o sol com o mar, mescla impressionante, geradora de energia, transformadora daquilo com que entra em contacto? Recebe ela, recebe a Sara Zanón (peregrina), recebe a Maria José (professora na universidade da Corunha) a Luisa Chas (professora de Economia na Universidade de Santiago de Compostela) a Sílvia Pérez (directora das Imagines Ediciones, editora que publicará o livro com o relatos dos escritores ) a Carolina Saborido (peregrina), a Susana Camino( política da área da educação) a Flávia Ramil (responsável pelo sector de turismo de Santiago de Compostela), a Lanzada Catatayud (directora dos cursos internacionais da Universidade de Santiago de Compostela) , a Beatriz Sevilla (coordenadora das actividades no barco), e eu ( pele de água, de vento, de sol. Pele de mastro. Pele pendurada na subida da linguagem) e outros corpos que nunca os perderei no tempo. Corpos estendidos, ou dobrados, que se espalham mansos, naturais. Corpos plurais, singulares, no princípio e no final –deixaram de respirar, pelo poder do mar e do sol. Sinto: é o mar que nos respira, nos renova e nos destrói na sua vibração composta. Corpos mortos na guerra. Às vezes, vivo, e, nessa tentativa de viver sobre a vida, levanto preguiçosamente o corpo, ou talvez seja apenas a pele, e detenho-me nesta imagem belíssima, cinematográfica, entre a morte e a morte (vida). Entre o misticismo cinematográfico, o sagrado e o terreno. Os rostos, das mulheres estendidas, fechados,lábios de sangue, estão mais sangue, cada minuto que passa. Em cada instante de corpo, morro. E, como um alquimista, sinto-me a transformar cada vez mais a minha matéria interior.

Astronomia em alto mar Quando chegar a noite e olhar o céu, misturarei os corpos da manhã com as palavras que a tarde me deu no livro “A Noite do Índio”. “ Lá bem no alto está o céu que, durante incontáveis séculos, derramou lágrimas de compaixão sobre os nossos antepassados; Hoje ele está limpo, amanhã poderá apresentar-se coberto de nuvens. As minhas palavras são como estrelas que nunca se apagam. O grande Chefe Washington pode confiar no que o Seattle diz, tanto como os nossos irmãos de cara pálida confiam no regresso das estações. O filho do Chefe- Branco afirma que o seu pai nos envia cumprimentos de amizade e boa-vontade. Ele está a ser gentil porque sabemos que tem pouca necessidade da nossa amizade, uma vez que o seu povo é numeroso. As suas gentes são como a erva que cobre as vastas pradarias, enquanto que o meu povo é reduzido em número. Somos como árvores dispersas numa planície varrida pelas tempestades”. Confio no Seattle, que transcende os homens. Confio no poder das árvores. Das montanhas. Dos rios. Do mar. Do sol. No poder que os

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elementos naturais exerce sobre os homens. Confio no céu. Quando chegar a noite haverá céu e um homem que o explica: Fernando Ballesteros, astrónomo. No seu imenso firmamento, espreitará um raio verde. Nunca o “vi”. Estarei atenta a partir de agora. Fernando explica que o efeito acontece porque atmosfera reflecte os últimos raios do sol, (que na realidade já se esconderam atrás do horizonte) e vemo-los refractados em sete cores: as do arco-íris. De entre elas, a cor verde é a última que nos salta à vista. O astrónomo seguirá no firmamento com a lua. A lua muito maior, parece-nos, quando está mais baixa. Trata-se de um outro efeito, este, psicológico. Tudo o que observamos acima dos nossos olhos, o cérebro interpreta como mais pequeno. Visão peculiar do cérebro, não dos olhos. Prova disso é que, se esticarmos o braço, podemos tapar a lua com o dedo mais pequeno da nossa mão. Quer a lua se encontre mais em baixo, ou mais em cima.

O saber dos antigos sábios, surpresas... O meu corpo exausto na cama, estendendo as surpresas, durante a longa noite, que Carlos Izquierdo me foi traduzindo, quando não entendia a rapidez da linguagem espanhola de Fernando. Estender-se-ão até ao sonho. Não é que Fernando pôs em causa o saber dos antigos sábios, a astrologia grega, os signos do zodíaco? As constelações por onde passa o sol, e que marca cada signo zodiacal, não têm todas o mesmo tamanho. São bem diversas, assegura. Por isso, o sol passa por elas durante mais dias (dois meses por exemplo e, nalguns dos casos, apenas durante uma semana). Então, os períodos regulares dos signos do zodíaco que conhecemos (um mês cada um) corresponde a uma organização prática, não real, da situação dos astros. Posições astronómicas, racionalistas, astrológicas e outras encheriam esta revista. Para Carlos Quiroga, escritor galego, amigo – juntar-se-á a nós ao chegarmos a terra – seriam estas mais do que suficientes para um debate. Pois, pois, Carlos, sorri enquanto lês. Já sei o que estás a pensar.

Outra manhã de mar. Os cheiros dessa grande massa de água salgada vivem no meu corpo inteiro. Vemo-nos todos, obrigatoriamente, nas refeições russas e pontuais: oito horas, pequeno-almoço, 12 h, almoço 16 h,

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conta: “Não dormi na noite anterior a entrar no barco, preparando uma exposição: El Espírito de La Letra” e que trata da evolução histórica da comarca de Requena (Valência) desde o século XI até à actualidade. Não dormir, por duas causas como estas...”. Flávia, que nunca teve o prazer de ver o mar turbulento (como isso a estimularia), descobri-la-ei na roda do leme numa manhã de sol. A tripulação ficou nas suas mãos, uma boa meia hora, sem que desse por isso. Grande domínio, assegura o comandante. Juntar-me-ei a ela na experiência. Impressões boas, terríficas. A sensação de levar o barco no sentido contrário, de me fugir, de ir para trás. Abandonei-o, passando-o para mãos seguras.

Literatura no meio do mar

lanche, 20 h, jantar. Vemo-nos todos quando não estamos, muitas vezes, em lugares secretos que vamos descobrindo (nos dias mais frios arranco uma manta da cama e uma almofada, estendo-a no chão, junto a um abrigo, perto da proa, onde não há ninguém, para tentar ler as palavras que trouxe de Portugal e o mar). De quando em vez, vejo o Possidónio. Costuma trazer na mão um livro sobre cinema. Decerto servirá para o seu documentário que está a preparar sobre o escritor português Urbano Tavares Rodrigues. Ou, Carolina, absorvida pela magia. Há uma água que dança nos seus olhos. Antecipam a despedida? Há palavras que ela podia grafar no corpo, como grafou no papel “esta viagem foi uma ruptura com o passado e com os medos, um encontro com o destino, o começo do resto da minha vida”. Ou Beatriz, corpo sensível, irrequieto, a deixar escapar lágrimas a que Iago não está desatento. Iago, fotógrafo, discreto, poderoso no gesto de captar, a encontrar outros melhores momentos – por exemplo, o espectáculo impressionante dos cadetes do barco russo a içarem as velas – a encontrar as “linguagens entre os momentos de solidão dos corpos que procuravam os seus lugares no barco”. No entanto, haverá uma que ele jamais poderá fotografar. “Não pude fotografar o som do vento e do mar pela noite que, ajudados pelas velas e madeiras do barco, pareciam inventar uma linguagem. Só eu a poderia compreender”. Iago compreendê-la-ia. Guardá-la-ia como uma concha que se traz para sempre ou como uma pulseira simbólica que se põe na pele e no coração. Vejo, às vezes, Pepa, recolhida ao sol a descansar. Fala dos seus dois bebés. Há muito que a impedem de repousar. Em contrapartida, depois dos seus nascimentos, Pepa entendeu serem a paz e a saúde as únicas coisas importantes na vida. De paz fala o peregrino Fernando Albi (que voluntariamente escolheu deambular sozinho pelo barco) quando Sílvia lhe pede a ele e a todos que se apresentem. A felicidade de viajar num barco à vela, com um grupo de paz, isso... é tudo, diz. Emílio Nogueira (secretário geral do conselho de Inovação e Indústria e Junta da Galiza) vejo-o, muitas vezes, a contemplar o mar. Fica fixo como os seus olhos. Nem uma palavra se desprende. Emílio, Sara, Maria Pilar (peregrina) o seu companheiro, também. Assim como Maria López, (peregrina) que capta a vida do mar e a dos homens, também, em fotografia. E Fernando Moya, igualmente peregrino, olhos ternos, pele que o sol queimou desde Cartaxena, à conversa,

Virá a tarde. Chegarão de muito perto, Xulio Valcárcel, poeta, Luísa Castro, escritora e poetisa, talvez do bar, do camarote ou dos corredores, cujo cheiro se nos entranhou no nariz. Literatura no mar. Entre o microfone, as duas cadeiras, mar, sol. Um quadro vivo. Faz-se. Ouve-se. Poesia. Ou prosadentro dos corpos, onde por vezes o vento se atravessa. Xúlio diz: “tenho lido os meus poemas em muitos sítios, nunca no meio do mar, o sol espalhando os últimos raios dourados sobre a água e o menear dos mastros e o zunido do vento...”. Outras palavras rebentam. Saem veleiros do poeta “Mirade os veleiros\ Mirade as suas velas, fortes como peito de varón, levas como blusas de rapaza”. Saem homens e mulheres de Luísa. Amores complexos, de que trata o último livro da escritora “La última mujer”. O sol começa a desaparecer para amanhã voltar. Ou não. Como o amor. Hora do jantar. (Atrasos, nem pensar, caso contrário, ficarei sem refeição, ou quase, como aconteceu a um dos pequenos-almoços. Helena, a cozinheira russa, é implacável, ou outra coisa que gosto de silenciar sobre os fascinantes comportamentos humanos. Depois de ter varrido tudo quanto estava na mesa onde me sentara, acabou por deixar as quatro fatias de queijo que sobravam num pires). As canecas de esmalte com sumo, lá no fundo, de sabor irreconhecível. Mais bom do que mau pela sua estranheza. Parece-me sumo de rosas. Sopas recheadas de vinagre, vegetais e carne. Carnes, massas. Incógnitas. Gosto da estranheza. Amanhã, repetir-seão os horários pontuais, as conversas entre os viajantes à hora das refeições. O burburinho mistura-se com aquilo que inundou a nossa pele: o som contínuo do balouçar do barco, o som do mar e o som das línguas. A beleza, o contraste dos sons e das vibrações das línguas galega, espanhola, portuguesa, por entre as mesas. De repente, detenho-me numa musicalidade, discreta, suave, mas cheia de energia, de mistérios e de sinais – indecifráveis quando se não está atento, quando se não acredita. Sei de que língua vem... Na tarde do dia seguinte, depois da ternura dos golfinhos que nos visitaram, falar-se-à de literatura portuguesa. Histórias excêntricas, bizarras, terríveis – irão dar ao amor, às memórias afectivas, à violência escondida. Possidónio lê, entre a fúria do vento, sentado no soalho do barco, passagens do seu belíssimo livro “Materna Doçura” e conta o seu percurso de vida: escritor, dramaturgo, argumentista... e tantos livros já (uma vasta e excelente obra, sou eu que o digo, não o Possidónio). Eu, depois do percurso, linhas violentas de um dos contos do livro “Chovem cabelos na Fotografia” lido a três, na língua galega, por Xulio Valcarcél, na espanhola por Carlos Izquierdo , na portuguesa por mim. Em terra, já em Portugal, chegar-me ia um mail assim: “Dejarom una honda impresión em mim alma aquellas terribles palavras que leiste de tu libro. No puedo olvidar el incómodo silencio y desasosiego que produjeron en mi y en todos los que las oyeron”. O maior objectivo do conto havia sido alcançado.

“ …E dá-te ao vento como um veleiro solto no mais alto mar ...” Eu corpo, procuro o canto na boca do mar, encontro-lhe a língua, abro-lhe todas as velas que há no corpo. Nós, corpos, chegados ao canto da noite, aos cantos últimos. Pepa, vocalista,

Carlos (guitarra, coros) e Gonzalo (flauta, saxofone, coros) – ainda a presença de um cadete que aprendeu a tocar tambor por estes dias – darão um concerto a partir das 22 h de que não há memória. Fado, cantado por uma espanhola. “Se Amália cantou em espanhol porque não poderei cantar em Português”, perguntava Pepa a brincar. E cantou. Admiravelmente. Possidónio Cachapa considerou-a melhor do que uma das grandes fadistas portuguesas da actualidade. Vieram depois os sons brasileiros: Simone, Vinicius de Morais, João Gilberto, Caetano Veloso, Djavan, entre outros, e, claro, os ritmos espanhóis. Uma da manhã. O barco de pé. Medio Cabalo mantinha a mesma energia. Como era possível? Leio o que Mário Benso, crítico musical, escreveu sobre o grupo. “A sua musica sale como de uma chisfera; hay algo de mágico en todo ello y el público notará el resultado de esta mezcla de sonidos, que adquiere unos matices e fuerza expresiva poco habituales en outras agrupaciones de estas características”. Cadetes, todos, acordados. Viajantes, todos, contagiados. Observo os olhos de Possidónio, que está sentado, a dançarem. Observo Ángel Pasero (jornalista da agência Ares) a observar. Há uma fila interminável de corpos que se soltaram neste veleiro, como o refrão da canção do Lume de Mafalda Veiga “ …e dá-te ao vento como um veleiro, solto no mais alto mar”: Lanzada, Beatriz, Flávia, Luísa, Luís, Maria Nieves Chillón (peregrina, que subirá ao palco para cantar)... os meus olhos deixam de ver, voltam a mirar quando, surpreendentemente, Curro abandona a câmara e se apodera do microfone para cantar e dançar. “ Não percas tempo/ o tempo corre/só quando dói é devagar…”. “Ángela não perdeu tempo, como Curro, e encarrega-se da câmara. Iago, peregrinos, somos nós todos, pegam nas máquinas fotográficas. Curro, dir-me-á mais tarde “La pena de aquella noche fue que no hubiessemos podido continuar en proa por culpa del tiempo. Estaríamos ahora todos viviendo juntos en una comuna”. Chegámos a terra no dia 15 de Agosto, a VilaGarcia de Arousa, lugar onde novos escritores se juntarão aos outros escritores e peregrinos embarcados, afim de concretizar a última etapa, desta vez por terra. Carlos Quiroga, escritor galego, será um deles. Percorreremos vinte quilómetros a pé desde o Padrón até Santiago de Compostela. Ouviremos os nossos passos. Sentiremos o nosso caminho. Falaremos de literatura. Da vida. (Não é a vida literatura e o contrário?) De tudo o que só se fala em privado e entre amigos de países diferentes que não se encontram há muito. Observaremos paisagens belas e terríveis. Teremos cada um o nosso olhar. Terá o Carlos, o Possidónio, a Susana, o José Arenal, veterano das peregrinações, terá o Alec Rus (médico que nos acompanhou durante toda a viagem) – dirme-ia que “a vida para as pessoas sem fé deve ser muito feia” – e os restantes peregrinos, como Luís Torcida, mais um veterano, e escritores como Eva Rumí (olhar atento e grande sobre o que a rodeia ) David Castillo, Asier Serrano, Felipe Juaristi, Emílio Ruiz Barrachina (o escritor encontra-se a preparar um documentário cinematográfico sobre a viagem ) Juan Manuel Prada que perguntava a dada altura do percurso “Não nos enganámos no caminho?” Espido Freire, José Ramón Trujillo, Basilio Rodríguez, Pedro Ramos, José María Paz Gago e Lucía Novas. O final desta viagem bem podia ter o título de um dos livros de Carlos Quiroga “O Regresso a Arder” (livro profundo e belo como a língua.). E, antes do regresso, quando o barco se encosta à pele da terra, em VilaGarcia de Arousa , e aperta forte o abraço do mar e da ria , aí, nesse lugar último, quando já só se ouve o ruído poderoso da alma, saberemos como nos encontrar. No regresso, a cada país, palavras que se enviam apenas assim: Já na minha Lisboa de sempre. Quando cheguei, Lisboa encheu-se de Mar e de Afectos. Depois, pediu-me uma concha e eu entreguei- ª. Beberemos juntas o reino sagrado das águas. Viveremos a morte e a ressurreição. No regresso enviar-se-ão e receber-se-ão palavras dissimuladas por entre este longo texto. No regresso quando a distância já é, e a linguagem dentro entregou tudo sobre os telhados de granito escalonados da imponente catedral de Santiago de Compostela, e o corpo desfaleceu sobre as praças, ruas e os montes históricos que rodeiam a cidade, o fundo fica sempre perto... [x]

VIAGEM // 35


,,Do subterrâneo da cultura, a geração instintiva, o teatro manifesto

Texto | Pedro Fiúza Fotografia | Nuno Reis Gonçalves

É-me sempre complicado arranjar títulos e começar textos com títulos e começar textos em geral. Neste número desta revista não me quero repetir, portanto este não será um texto de teoria maçuda sobre teatro e sobre a minha perspectiva individual sobre teatro. Vou aproveitar esta oportunidade para fazer uma espécie de análise sobre o espectáculo que acabei de fazer, assim tenho sempre uma base prática, um objecto de reflexão concreto, uma referência. Nos últimos números desta revista acabei por cometer o erro de entrar em dissertações mais ou menos abstractas sobre uma prática possível, sobre uma espécie de teatro de sonho. As coisas são bem diferentes. Quero aqui meter dois conceitos à força: optimismo teórico e pessimismo prático. Voltando ao assunto que me interessa, acabei de fazer um monólogo auto-encenado chamado Do Subterrâneo, construído com base nos Cadernos do Subterrâneo de Dostoievski. Um monólogo é sempre uma coisa difícil de gerir e um monólogo sem uma direcção, sem uma encenação, que procure criar linhas e limpar as máscaras que o actor usa para defesa de si e do espectáculo é ainda mais complicado, enfim… lá me meti eu em mais uma aventura impossível! Em primeiro lugar quero dizer que não considero o espectáculo que fiz uma aventura ganha, calendário mal escolhido, tempo de preparação quase nulo, apoios nenhuns (para não variar), a continuação da procura da forma, o medo do texto na estreia, a duração oscilante do espectáculo por causa dos branqueamentos do texto, a falta de público, enfim… que raio de actor fui eu sair e, mais ainda, que raio de produtor sou eu!!! Aproveito para dizer que preciso de um produtor!!! Bem, nunca tinha sentido tanto medo de um espectáculo como neste, no dia da estreia parecia que a barriga se me comia, ainda por cima com o texto inseguro… imaginem lá a bomba que não é… aquilo cheio, as pessoas, o stress, o texto a não aparecer… ter de inventar texto para não dar seca e para manter aquilo minimamente consistente… ai, ai! Foi mesmo estupidamente complicado e frustrante e chorei no fim e tudo quando o público saiu, claro, estava-me a roer de vergonha! O espectáculo lá foi crescendo com a oscilação normal que qualquer espectáculo tem, os actores não são máquinas, o texto lá foi ficando mais ou menos seguro, o espaço mais ou menos dominado, mas faltava o salto, faltava o público. Enquanto escrevo isto faltam três apresentações para acabar a carreira do espectáculo e tenho a esperança que o salto comece hoje!!! Também quem é que se iria lembrar de estar duas semanas em cena no Fundão? Ao menos já estou na história… enfim! O público do Fundão é estranho, vou aqui desabafar, porque afinal de contas agora pode-se desabafar, dizem as escrituras que durante não sei quantos anos vivemos no cinzentismo do vazio cultural de uma determinada orientação política, dizem que antes não havia nada, dizem que nada se passava e que esta terra era o sinónimo mais certeiro e afiado do marasmo, pois bem, posso concordar com o que dizem as escrituras, mas alguém me sabe dizer o que é que está a ser feito para fazer as pazes das pessoas com a cultura? Alguém me sabe dizer qual é a direcção do que está a ser feito? Cada vez me parece mais que o problema da interioridade tem a ver com uma certa deriva, todos os que passam pelo poder vão fazendo certas escolhas e vão tomando certas opções e depois vão-se embora e quem vem a seguir que assuma as responsabilidades e que use o que foi feito, nada deita nada ao ar, tudo se vai construindo ruína sobre ruína. O que, para mim, é o maior problema é que o poder não consegue pensar a longo prazo e esquece-se que quem cá vai estar sempre somos nós, cidadãos normais, mais ou menos comprometidos com as coisas, mais ou menos interessados na cultura ou no futebol ou na novela ou na vida dos cafés. Já perdi o fio ao que queria dizer. Já sei: o Fundão tem habitantes, é verdade, mas será que o Fundão tem público? Qual tem sido a estratégia para a criação de públicos? Um dia chegaremos a uma resposta concreta quando 36 // CULTURA

percebermos o que se passa. Voltando ao espectáculo… os objectivos de um espectáculo de teatro são, para mim, sempre os mesmos: fazer algo que toque nas pessoas, fazer algo para as pessoas. Não estou a dizer que se façam concessões, estou a dizer que é importante que o teatro seja como uma zona de partilha de vida. Este texto era assumidamente difícil, para já, era escrito de uma forma completamente literária como só um dos mestres o conseguiria escrever, depois, tem um contexto mas não tem propriamente uma acção, há um homem num espaço que faz divagações teóricas para um público, isto é bastante complicado de gerir, ainda por cima quando não se procuram inventar muletas, uma espécie de sequências de acção mais ou menos justificadas que permitam partir o texto e dar-lhe uma consistência interpretativa que não seja maçuda para o espectador e o ajude a compreender o que é dito. Mais uma vez, o risco de quem não sabe e mesmo assim comete a loucura de sonhar: procurei o lado mais centrado da linguagem, mais orientado, não recorri a imagens nem a subterfúgios, não usei qualquer banda sonora, foi o actor em risco, eu em risco… não estou a dizer que o tenha ganho, nem todos os riscos se ganham, mas mesmo assim cometo a loucura de assumir que quero fazer espectáculos impossíveis! Espectáculos com interpretações limite, coisas em que acredite, não defendo nem posso defender o teatro pelo entretenimento puro, é preciso dizer coisas, é preciso chegar ao público. Não estou a falar de uma arte panfletária, estou a falar de compromisso, teatro é compromisso. E falhei nele quando me engasguei na estreia e falhei nele quando escolhi estas datas e falhei nele porque talvez não tenha escolhido a melhor forma de divulgação!!! Também quero aproveitar para dizer que desde que estou em cena nenhum membro dos A.C.E.O.P. (Assistentes da Cultura Expressamente Orientada para o Poder), nenhum desses senhores foi ver o espectáculo. Pergunto-me se para esses senhores a cultura será apenas o que organizam? Será que para esses senhores a cultura é apenas o que tem o seu símbolo nos cartazes? E até pergunto mais: quando o senhor Manuel Frexes afirma com tristeza que há cavalheiros no Fundão que não vão dar apoio à Grande Verdade e que preferem dar apoio a outras pequenas verdades insignificantes e exteriores, será que o senhor Manuel Frexes consegue perceber que talvez esses cavalheiros não se revejam na Grande Verdade, que até há, de facto, poucos cavalheiros a reverem-se nela, se tivermos em conta os números. Porque para estes senhores a cultura é festa, é tasquinhas, é petisco… não é uma programação, é um festival!!! A cultura é acção. A cultura faz-se a partir de dentro. Todos os contágios são bem recebidos se não forem imposições. Toda a programação é bem vinda se não for uma programação de catálogo chapa 5 cena muintáfrente, porque não é assim que se criam hábitos, isto já nem sequer está sujeito a discussão! Enfim, estou um bocado enervado… é o Subterrâneo a provocar as descargas!!! O texto é mesmo bom. O livro está dividido em duas partes, a primeira é a teórica e a segunda é a prática, é o ser em movimento, agora fiz este e quero mostrá-lo por aí, onde quer que seja, no máximo de lugares possíveis, em Novembro quero começar a fazer a segunda parte, é um espectáculo sequela, e um dia se me der na gana faço um fim de semana com os dois. Neste país e em especial nesta cidade, uma pessoa tem de se inventar para sobreviver. Outro dia perguntaram-me como é que se vive do teatro no Fundão, respondi: com um pé dentro e outro fora, é a cidade que temos. De uma coisa tenho orgulho: fiz mais um espectáculo e continuo a combater a indiferença. E já agora, senhor Manuel Frexes, fiz um espectáculo no Fundão, por acaso foi ver? [x]


,,Essência

da subtracção

Texto | Luiz Antunes

Nos últimos anos, continua a assistir-se a um fenómeno de rejeição, do ponto de vista moral e estético, sobre a disciplina e rigor; parece que os criadores nacionais continuam a disparar numa guerra já extinta, na tentativa de libertar os corpos dos espartilhos que os encerravam, rompendo todas as normas que governavam a dança. Esta “estética da recusa” foi postulada pela coreógrafa norteamericana Yvonne Rainer, em 1965, aquando da escrita do seu texto-manifesto em que afirmava: “NÂO ao espectáculo, não ao virtuosismo, não às transformações e à magia e ao uso de truques, não ao ‘glamour’ e à transcendência da imagem da star, não ao heroísmo, não ao anti-heroísmo, não às imaginárias de pechisbeque, não ao comprometimento do bailarino ou do espectador, não ao estilo, não às maneiras afectadas, não à sedução do espectador graças aos estratagemas do bailarino, não à excentricidade, não ao facto de alguém se mover ou se fazer mover”. Mais de quatro décadas passadas, a criação actual parece ainda viver à sombra destas inúmeras recusas – trazidas para Portugal pela geração da Nova Dança (João Fiadeiro, Vera Mantero, Francisco Camacho, etc.), tendo sido fundamentais para a evolução/revolução da dança teatral no nosso país – não tolerando uma inversão salutar deste postulado tão datado. Yvonne Rainner no seu manifesto acaba por recusar a própria dança na frase final: “não ao facto de alguém se mover ou se fazer mover”, tendo dito mais tarde que não tinha tido bem a consciência do que tinha afirmado. Mas o sentido parece ser claro: por exemplo, Marcel Duchamp na arte pictórica expôs um objecto cru (um urinol), o readymade, um objecto paradoxal, simultaneamente artístico e não artístico, representando o despojamento da forma artística; melhor: extraindo da pintura tudo o que lhe não pertence, mostrando que o que se designa por “objecto de arte” não é mais que um conjunto de convenções e tudo é possível de ser transformado num objecto artístico. A coreógrafa americana parece ter feito um paralelo, mas indo mais longe que Duchamp, que nunca deixou a ambiguidade do readymade, nunca afirmando “o fim da arte”. Depois de ter recusado todos os elementos que considerava exteriores à dança, não que a sua intenção fosse propor “o fim da dança”, Yvone Rainner viu-se enleada no seu próprio enunciado de recusa absoluta. Mas em matéria de arte não existe revolução das formas se as posições tomadas não forem absolutas; no fundo, “o fim da dança” não era mais que um processo de negação das técnicas, formas e conteúdos, actuando como um princípio regulador de um novo movimento progressivo de transformação da “antiga dança”; se o acto de questionar já era de alguma maneira a génese do acto criativo, assume uma força redobrada. A dança teatral, terrivelmente cortante na sua essência devoradora e absoluta, interroga-nos constantemente; hoje parece que o questionamento assumiu uma força tal que se sobrepôs à própria resposta, a questão surge como um objecto paradoxal, perdendo o discurso uma linha coerente no sentido da discussão, pois não existem pontos de vista, apenas perguntas, por vezes sem qualquer género de análise ou tratamento. O produto passa a ser a metodologia, o próprio espectáculo. O excesso de questionamento leva à inércia dos corpos. Quando o movimento surge, completamente justificado pelo brilhante acto da pergunta, aparece por si; a dramaturgia é imóvel, as obras parece que já não necessitam de falar por si, mas que falem por elas. A realidade trazida para cena acaba por ser mais distante que os contos de fadas, no fundo são contos de fadas mas imperceptíveis, pois o postulado dos corpos reais e desnudos de tudo é distante e ausente. No tempo da transdisciplinariedade, o conteúdo perdeuse em detrimento da “categorização” da obra. É urgente “escutar a nossa própria época”, entrar em zonas de risco, devir, reformular e criar uma nova ideia do que são “os conceitos disciplinares e da tradução contemporânea de expressões artísticas multíplices”, sem se ficar preso a postulados datados e assumindo-os constantemente como contemporâneos. [x]

Texto | Rita Barata Silvério (escreve diariamente no blog www.rititi.com)

,,As grandes cabras da ficção:

Eve, o perigo da banalidade (All About Eve)

Eve. Eve the Golden Girl, the Cover Girl, the Girl Next Door, the Girl on the Moon. A queriducha que sempre está disponível, o ombro amigo, a vítima da vida, a devota discípula. A que guarda a faca debaixo da almofada. O que quer Eve? Êxito? Amor? Glória e um homem? Que lhe falta a Eve, que se dá com tanta facilidade? Um apartamento em Manhattan? Uma peça na Broadway? Nem por isso. À inocente e pura da Eve o que lhe dói é ser simplezeca, minúsculas, sem nada a acrescentar que um lambe-botismo irritante. Eve precisa o que os outros têm: a vida de Margo, o marido de Karen, a fortuna de Max, a genialidade de Bill. O que lhe sobra a Eve – inveja, mediocridade, banalidade – faltalhe em escrúpulos e valores. Eve não tem moral a que se agarrar, só raiva por não ser plena e feliz, como os demais, como Margo, a vítima perfeita no seu plano demente. Eve, Eve, always Eve. Pois é Margo, sempre Eve, a sombra, a que espera que adormeças para te arrancar os olhos, a que não tem limites na mentira. Não há personagem masculina no cinema que chegue aos pérfidos calcanhares de Eve. A filha da putice é algo tão feminino, que vem de dentro, uma víscera estranha que domina o carácter e a mente. Lecter era requintado, um génio do mal. Eve não procura a arte nem a perfeição nas

sua obras, só foder, ser cabra, roubar a vida alheia, parasita ela das suas próprias tristezas. Que triste, Eve, ao fim premiada e sozinha. Afinal, Eve, de que serviu tudo? Eve não suporta o êxito alheio, a glorificação do próximo, porque nela só reside mesquinhice e uma infelicidade crónica, de quem jamais foi amada. Eve, no final, é comida pela mesma avareza que a levou a criar a tragédia na vida de Margo - porque o género feminino está cheio de pequenas e insignificantes Eves, de sanguessugas das riquezas que nunca poderão ter. O problema da banalidade é que de nada servem os prémios ou as glórias fáceis. É sempre preciso mais, foder mais, roubar mais, mentir mais, invejar mais, que os outros sofram mais. Claro que só as mulheres conseguem cheirar a léguas as Eves deste mundo (partilhamos os mesmos genes). Por vezes só damos pelo monstro que temos ao nosso lado quando o terramoto já é inevitável, quando se nos cai a casa na cabeça, como lhe acontece à ciumenta e velha Margo, a quem Eve saca proveito dos pequenos pecados, das fraquezas da diva. Eve não suporta esta estrela egocêntrica e adorada por um mundo que não precisa de heróis perfeitos. Eve, ao apontar o dedo às debilidades de Margo, mais não faz que sacar à luz a sua própria merda. Porque o tempo nada perdoa. Nem a Eve, a rapariga dourada, a rapariga da capa, a rapariga da porta do lado, a rapariga na Lua. [x]


,,E no fim é tudo um gag… Exclamações, provocações, insinuações, prevaricações e o fino humor de realizadores e actores de cinema. Sobre eles, os filmes, o sexo, o álcool e essa grande comédia que é a vida. Porque no fim é tudo um gag…

”Os amantes de filmes são pessoas doentes.”

“Querido, as pernas não são assim tão bonitas, eu só sei o que fazer com elas.”

“Não me lembro de nada que alguém tenha dito num filme do John Ford. Não acontece nada, a não ser acção.”

Marlene Dietrich

Elia Kazan

“O que é que eu uso na cama? Chanel nº5, claro.”.

Marilyn Monroe

“Nunca confundas o tamanho do teu cheque, com o tamanho do teu talento.”

“Todos os homens que eu conheci queriam ir para a cama com a Gilda, e acordaram comigo.”

“Os actores são gado.”

Rita Hayworth

Alfred Hitchcock

Clint Eastwood

“Não se casem com actrizes, porque elas também são actrizes na cama.”

“Disney tem o melhor casting . Se não gostar de um actor pode simplesmente apagá-lo.”

“Tudo o que preciso para fazer uma comédia é um jardim, um polícia e uma rapariga bonita.”

“Falo duas línguas: Inglês e corporal.”

Charlie Chaplin

Mae West

“Roubo de todos os filmes que já foram feitos.”

“Uma mulher deve-se vestir como se fosse uma vedação de arame farpado - servindo o seu propósito sem obstruir a vista.”

François Truffaut “Dirigir filmes é um óptimo refúgio para os medíocres”

Orson Welles “Um bom começo e um bom final fazem um bom filme, desde que sejam perto um do outro.”

Frederico Fellini “Este filme custou 32 milhões de dólares. Com esta massa toda podia invadir um país.”

Quentin Tarantino

Roberto Rosselini

Marlon Brando

Alfred Hitchcok “Fala baixo, fala devagar e não fales demais.”

John Wayne “Não perguntes o que podes fazer pelo teu país, pergunta antes o que é o almoço”.

Orson Welles

“O cinema é uma velha puta que sabe dar vários tipos de prazeres.”

Sophia Loren

Federico Fellini

“Como é que cheguei a Hollywood? De comboio.”

”O meu médico aconselhou-me a acabar com jantares íntimos para quatro, a não ser que haja outros três convidados”

John Ford

Orson Welles

“Sexo é uma porta para algo tão poderoso e místico, mas os filmes normalmente usam-no de uma maneira aborrecida.”

“Nos westerns podíamos beijar o cavalo, mas nunca a rapariga.”

Gary Cooper

“Suponho que uma das grandes ironias da vida é fazer as coisas erradas no momento certo.”

“É mais fácil que um actor faça de cowboy, que um cowboy faça de actor.”

“No final, é tudo um gag.”

David Lynch “Na América o sexo é uma obsessão, em outras partes do mundo, é um facto”.

Marlene Dietrich

38 // INTRIGAS CINÉFILAS

John Ford

Charlie Chaplin Charlie Chaplin


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Quinta da Hera

Um Éden de Restaurante na Cova da Beira Texto | Jacinto Galeão de Tormes Fotografia | contiudo.com | David Duarte

Há restaurantes que por mais voltas que dê a terra nunca mais se esquecem. E porquê ? Porque eles convocam imediatamente os sabores da nossa infância ou simplesmente a nossa infância. É o caso do restaurante da Quinta da Hera nos arredores da Covilhã que foi outrora a quinta do Bêbado Mau, um homem irascível voltado constantemente para a bebida. Ainda me lembro. Nós íamos lá aos figos, a uma figueira gigantesca ou às uvas repletas de sol doce. E o derrancado do homem ao ver a situação perseguia-nos vociferando ou prometendo tiros. Nunca nos apanhava pois nesse tempo o gozo das vitaminas roubadas davanos asas. A vitória ainda era mais certa quando depois de o termos despistado nos sentávamos na linha férrea próxima que vinha de Lisboa e o comboio das três nos espalmava as moedas brancas que algumas mãos familiares nos davam com o intuito de sermos mais estudiosos. O quinteiro Bêbado Mau morreu, a quinta foi vendida e hoje parte dela pertence à simpática Manuela Pereira que fez aí um paraíso e dentro dele um restaurante inaudito. Nos formosos jardins de Babilónia parece que havia sempre uma temperatura ideal e é o mesmo na Quinta da Hera. Manuela que é natural da Covilhã nunca se arrepende de ter comprado esta quinta que lhe foi oferecida numa bandeja por uma cliente teimosa do seu salão de estética que via nela a única guardiã das suas preocupações ecológicas. E conta-nos que nunca pensou ter aí um restaurante. Tudo começou quando uma amiga vendo a beleza do local quis casar nesse rincão absoluto de Adão e Eva. Improvisou uma tenda, um catering e depois desse primeiro sucesso construiu de raiz um restaurante e começou a fazer casamentos e nunca mais parou como que prolongando o tempo em que essas duas figuras edénicas faziam da felicidade um paraíso. Fico sempre em admiração quando me vejo em contacto com pessoas que puseram os seus sonhos em prática. Manuela Pereira é uma dessas raras que não tem frio nos olhos e oferece a Natureza nos seus magníficos pratos de faiança. São castanheiros centenários, uma dúzia de cerejeiras, plácidas nogueiras, aveleiras, diospireiros, figueiras, abrunheiros, e até uma pereira. A água corre em profusão, há um riacho, vários pequenos lagos e claro, muita relva. E claro, flores. Uma álea de belíssimas hortênsias passa ao lado do Cantinho da Leitura ( retirada solidão com sombra acolhedora ) e não muito longe do Cantinho dos Namorados e do Canto do Amor que rivalizam de verdura secreta e aconchegante. Um exército de heras bondosas invade todos os muros e árvores e com ele ganhamos uma paz incomensurável. Aposto que Thoreau, que era vegetariano, aqui teria um apetite dos demónios e comeria até à loucura empurrado por um castanheiro calmo. Depois deste banho magnífico de natureza onde só mesmo falta o rouxinol do Garrett (mais tarde ouviremos na noite cigarras e o coaxar das rãs) chegamos ao Templo da Hospitalidade. E ficamos estupefactos com a beleza da construção. É uma moderna igreja dos anos 60 ou o bojo de um transatlântico louco ? Entramos e logo outra paz nos invade. Numa sala única onde cabem sem incómodos sessenta pessoas. Em tons branco, verde e bege, e madeiras que fazem lembrar um país nórdico, a sala comum é um lugar tranquilo e apaziguador com grandíssimas janelas que dão para a densa natureza. Quanto ao mobiliário, também originalíssimo, pessoalíssimo, ele congrega a audácia e o conforto. As cadeiras, principalmente, em forma de um V ultraconfortável. Peças únicas feitas em Viseu para condizer com o edifício. Mas a cereja sobre o bolo são essas enormes vidraças cintilantes que nos torna ao mesmo tempo humanos e nus dentro do espesso arvoredo e na

sociedade. Lembro-me de repente que esse personagem de Calvino que vivia nas árvores estaria bem aqui perto do restaurante da Manuela Pereira... Sentámo-nos e rapidamente fomos abordados pelo eficaz David, um jovem recém-chegado de uma escola de hotelaria de Manteigas, que nos trouxe a carta dos vinhos e a ementa. Escolhemos um magnífico e bem frutado Quinta dos Termos ( tinto 2005 ) numa carta recheada com os nossos melhores vinhos da Cova da Beira ( lista bem guarnecida com preços equilibradíssimos ) mas também vimos bons vinhos nacionais como o Esteva do Douro ou a Herdade das Servas do Alentejo. Provámos o belo néctar e avançámos para o buffet onde nos servimos moderadamente. O grão com bacalhau cru desfeito revelou-se ser um regalo e da orelha de porco cortada com amor e muito bem temperada só posso dizer que foi uma delícia. Quanto às miniaturas que provei estavam

todas belas : estaladiças samussas, pastéis de bacalhau também equilibradíssimos e os rissóis como os croquetes todos vitoriosos. Olhámos a noite que tinha começado. Uma infinitude de estrelas vinha anunciar-nos que a alma do Bêbado Mau estava agora sossegada e que podíamos ancorar na baía dos pratos principais. Pedimos uma açorda de bacalhau e arroz de pato. Mas podíamos ter pedido outras especialidades tais como polvo à lagareiro, robalinho escalado na grelha, solomillo ibérico ao alhinho, costeletas de borrego no churrasco, Filet Mignon em cama de ananás, cabritinho na grelha com ervas de Provença ou bife à Quinta da Hera. Ao segundo copo de Quinta dos Termos atingimos a felicidade e rapidamente compreendemos que nunca tínhamos comido um arroz de pato assim: Maravilhoso, requintado e cheirando muito bem. Comeríamos toneladas deste arroz divinal, sem gordura. O pato desfeito, congregando-se sabiamente com um arroz leve e aéreo, levou-nos a comparações. Melhor que o da minha mãe que é, no entanto, uma maravilhosa cozinheira. Quanto ao segundo prato, bem apaladado, atraía também inexoravelmente o néctar do João Carvalho. A açorda estava pombalinamente picante e o tomate misturava-se bem com os coentros e o bacalhau vestido. Um saborosíssimo prato. Estávamos perante uma comida sã, muito caseira e muito beirã. E para termos a prova que o divino azeite da nossa Beira fazia a diferença pedimos uma simples salada de tomate e alface. Aí o paladar do verde e precioso líquido mudava o mundo. Olhámos de novo a noite que avançava com passos de burro em charola. Faltava-nos as sobremesas para concluirmos uma refeição triunfal. De novo avançámos para o buffet onde provámos um untuoso arroz doce tão bom como o da minha mãe, uma tigelada bem crostadinha, umas frescas natas com sabor a frutos silvestres e aqui parei porque já o meu estômago anunciava a meta à vista. Devia concluir com o queijo. E foi o que fiz sabendo-me já em altitudes beirãs. Foi um delicioso queijo da Serra que comi entabulando uma bela conversa com uma marmelada genial e forte. Manuela Pereira veio e antes de se sentar logo viu a nossa longa satisfação. «Adoro trabalhar nesta área que me dá contacto com o público e é mesmo um ramo que exige muita criatividade e eu adoro. Por exemplo, conto fazer aqui o S. João com rosmaninho e tudo. Mas também tenho um parque para churrascos, o Largo dos Magustos que é no dia 10 de Novembro e organizo festas de amigos e acolho também congressos e até faço festas de fim de ano. Já vê, não paro». Acreditamos e olhamos esta mulher voluntariosa que dorme pouco, cheia de carácter e que com pulso de ferro dirige esta casa também especialista em casamentos. «Os casamentos são feitos nesta enorme tenda para 300 pessoas e este ano já tenho dezoito marcados». conclui ela. Sorrio na noite estival. Oiço agora o coaxar das rãs, as cigarras e os grilos e penso que casados, divorciados, solteiros, sóbrios e menos sóbrios, gordos ou magros, faladores ou sisudos, não podem perder este éden às portas da Covilhã. [x] Restaurante Quinta da Hera Estrada Nacional 18 - Ribeiro Seco, Boidobra, Covilhã (Depois do Refúgio seguir pela nacional 18 e cortar na primeira à esquerda antes da ponte sobre a linha de caminho de ferro da Beira- Baixa) Tlm. 912 585 310 Menu a 13 euros de 2ª a 6ª feira com buffet livre, bons vinhos e pratos à lista que variam entre 9 e 12 euros. Preços Médios - 15 a 20 Euros GASTRONOMIA // 39


,,memória

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dvd

Eraserhead (1977) Considerado ainda hoje por muitos a obra-prima de David Lynch, este filme é sem dúvida uma obra-prima do surrealismo, ombreando com o melhor de Buñuel, Cocteau ou mesmo Dali. Eraserhead é tudo menos consensual, tendo sido apelidado de estranho, bizarro, frustrante, impossível de ver, um filme sem qualquer sentido, é, no entanto e sem dúvida alguma, inesquecível. Trata-se de uma verdadeira experiência cinematográfica em que o espectador é mergulhado dentro de um pesadelo alheio e é obrigado a vivenciá-lo dessa perspectiva. Lynch abriu com o Eraserhead as portas a um novo estilo de terror, surreal, esquizofrénico e tremendamente inquietante, onde a história é contada desconstrutivamente e o público experiência sensações nem sempre agradáveis. Por tudo isto Eraserhead tem hoje o incontornável estatuto de filme de culto. [*] Sé da Guarda

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luxos

Quanto custa uma ilha? Terminou o Verão e já pensa no ano seguinte? Pois fique sabendo que para ser considerado realmente VIP tem de ser dono de uma ilha. Segundo a revista Forbes, a segunda ilha mais cara é Sa Ferradura e foi comprada por um anónimo pela módica quantia de 33 milhões de euros. Mas não desespere: a mais cara de todas ainda está no mercado por 55 milhões de euros. Situada no mar das Caraíbas, este pedaço de terra não é assim tão pequeno. Tem 810 hectares, várias cascatas naturais e cascatas naturais. Espreite www.privateislandonline.com. A ilha mais barata custa 20.000 euros aproximadamente.

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ainda se lembra

“Se queres ser dos nossos, tens que ter um Fá. Fá é fabuloso, é o melhor que há”. Era este o jingle que anunciava na TV os granizados Fá na década de 1980. A um preço acessível a todos – 2$50 (0,012Euros) os granizados Fá faziam a delícia de todas as crianças. Existiam em três tamanhos diferentes e nos sabores de morango, limão, laranja e cola.

,,design Este objecto criação da dupla João Sabino e Miguel Taborda para o Estoril Open 2006, nasce da ideia de “aglomeração de matéria”, partindo do objecto singular, bola de ténis, que ao ser unido repetidamente, acaba num paralelepípedo rectangular, conferindo-lhe uma nova função no seu uso através da encadeamento da unidade assumem-se as novas formas pretendidas: mesa de apoio e banco. A dupla criativa desenvolve projectos na área do design, arquitectura e cenografia, tendo participado em eventos como o Optimus Open Air 2006, LisboaDakar 2007, Estoril Open 2007 e Futebol Show 2007. PUB




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