Revista Ultimato 334

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FECHAMENTO AUTORIZADO. Pode ser aberto pelos Correios.

J A N E I R O – F E V E R E I R O 2 0 1 2 • A N O X LV • N º 3 3 4

Como se livrar da

culpa e da mancha

ESPECIAL

CARLOS “CATITO” GRZYBOWSKI

A IGREJA SEGUE CAMINHANDO, A DESPEITO DAS CRÍTICAS

ELA (ELE) MUDOU: UMA QUEIXA COMUM DEPOIS DO CASAMENTO

TEMPO DE SER IGREJA

FUI ENGANADO!

ROBINSON CAVALCANTI

CONFLITO DE SÍMBOLOS E MANDATO CULTURAL Janeiro-Fevereiro, 2012

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A bertura

Os mais santos e os menos santos

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hegou a hora de os mais piedosos e os mais santos contarem aos menos piedosos e aos menos santos que, se eles são de fato assim, é unicamente por causa da graça, pois eles também têm os mesmos ou maiores embaraços que os demais. Chegou a hora de os mais piedosos e os mais santos terem a coragem de proclamar bem alto: “Nós somos apenas seres humanos, como vocês” (At 14.15). Chegou a hora de os que entrevistam os mais piedosos e os mais santos, e escrevem a biografia deles, afirmarem sem o menor receio, como a Bíblia faz, que o formidável profeta Elias “era um ser humano como nós” (Tg 5.17). Já passou da hora de os mais piedosos e os mais santos revelarem que eles não têm uma santidade inata nem fácil. Potencialmente eles também têm inveja, raiva, olhos adúlteros, vontade de aparecer, desejos pecaminosos, momentos de desânimo, crises de depressão e talvez tenham até problemas na área da homossexualidade. Se eles de fato são mais piedosos e mais santos do que o cristão comum que aspira ser piedoso e santo, é porque levam a sério o que Jesus disse: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8.34).

Os mais santos e os menos santos estão em um mesmo nível quanto à natureza caída, quanto à necessidade de perdão e quanto à fraqueza frente à tentação. Estes e aqueles são, ao mesmo tempo, atraídos por Deus e pelo mal. Ambos são tentados pela carne, pelo mundo e pelo diabo. O primeiro não é nenhum gigante e o segundo, nenhum pigmeu. A diferença não é essa, mas está no fato de que os mais santos consideram-se mortos para o pecado e o conseguem com o auxílio de Jesus. O Senhor ainda diz: “Quem está unido comigo [a Videira] e eu com ele, esse dá muito fruto porque sem mim vocês não podem fazer nada” (Jo 15.5). Já os menos santos ainda estão engatinhando e escorregando por todo lado. Em qualquer momento os menos santos podem entrar na fileira dos mais santos e os mais santos, se não tomarem cuidado (1Co 10.12), engrossar a fileira dos menos santos! Chegou a hora de tirar a roupa e mostrar a nudez natural, que começou no Éden e que o anjo da igreja de Laodiceia ignorava ou escondia (Ap 3.18). Para o bem de todos — dos agora mais piedosos e mais santos (para intensificar neles o sentimento de humildade) e dos agora menos piedosos e menos santos (para arrancar deles o sentimento de fracasso). Janeiro-Fevereiro, 2012

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C arta

ao leitor

fundada em 1968

Publicação evangélica destinada à evangelização e edificação, não denominacional, Ultimato relaciona Escritura com Escritura e acontecimentos com Escrituras. Visa contribuir para criar uma mentalidade bíblica e estimular a arte de encarar os acontecimentos sob uma perspectiva cristã. Pretende associar a teoria com a prática, a fé com as obras, a evangelização com a ação social, a oração com a ação, a conversão com santidade de vida, o suor de hoje com a glória por vir. Circula em meses ímpares

Não deixemos desvanecer a glória de Deus no correr de 2012! Bjorgvin Gudmundsson

ISSN 1415-3165 Revista Ultimato – Ano XLV – Nº 334 Janeiro-Fevereiro 2012 www.ultimato.com.br

Diretor de redação e jornalista responsável: Elben M. Lenz César – MTb 13.162 MG Arte: Liz Valente Impressão: Plural Tiragem: 35.000 exemplares Colunistas: Alderi Matos • Bráulia Ribeiro Carlos “Catito” Grzybowski • Carlinhos Veiga Dagmar Fuchs Grzybowski • Ed René Kivitz Jorge Barro • Lissânder Dias • Marcos Bontempo Marina Silva • Paul Freston • René Padilla Ricardo Barbosa de Sousa • Robinson Cavalcanti Rubem Amorese • Valdir Steuernagel Participam desta edição: Ageu Heringer Lisboa Antonia Leonora van der Meer • Bruno Tardim Doug van Bronkhorst Publicidade: anuncio@ultimato.com.br Assinaturas e edições anteriores: atendimento@ultimato.com.br Reprodução permitida: Favor mencionar a fonte. Os artigos não assinados são de autoria da redação. Publicado pela Editora Ultimato Ltda., membro da Associação de Editores Cristãos (AsEC) Editora Ultimato Telefone: (31) 3611-8500 Caixa Postal 43 36570-000 — Viçosa, MG Administração/Marketing: Klênia Fassoni Ana Cláudia Nunes • Ariane dos Santos Daniela Cabral • Ivny Monteiro • Lucas Rolim Luiza Pacheco EDITORIAL/PRODUÇÃO/ULTIMATO ONLINE: Marcos Bontempo • Bernadete Ribeiro Djanira Momesso César • Gláucia Siqueira Lissânder Dias • Mariana Furst • Pabline Félix FINANÇAS/CIRCULAÇÃO: Emmanuel Bastos Aline Melo • Ana Paula Fernandes • Cristina Pereira Daniel César • Edson Ramos • Jair Avillez Luís Carlos Gonçalves • Rodrigo Duarte Solange dos Santos VENDAS: Lúcia Viana • Henife Oliveira Lucinéia Campos • Marcela Pimentel • Romilda Oliveira Tatiana Alves • Vanilda Costa ESTAGIÁRIOS: Bruno Menezes • Jaklene Batista Raquel Bastos 4 4 ULTIMATO 2012 ULTIMATO I I Janeiro-Fevereiro, Janeiro-Fevereiro, 2012

A

Bíblia registra que Jesus se sentou ao lado direito de Deus, o Todo-Poderoso, “depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados” (Hb 1.3). Não está escrito apenas “depois de ter perdoado os pecadores de seus pecados”. Registra-se também que Jesus deu a vida pela igreja, “lavando-a com água e purificando-a com a sua palavra” (Ef 5.26). No dia da expiação, o sacerdote só vestiria as vestes sagradas e entraria no Santo dos Santos depois de banhar o seu corpo com água (Lv 16.4). Além disso, ele purificaria e santificaria o altar com o sangue do novilho e do bode, aspergindo-os sete vezes sobre ele (Lv 16.19). E aquele que levasse o bode sobrecarregado de pecados para o deserto (longe do povo) só poderia voltar ao acampamento depois de lavar suas roupas e tomar banho (Lv 16.28). Essa é a importância que as boas novas dão à purificação daquele que peca. É possível que os pecadores de hoje, quando cientes de seus pecados, pensem mais no perdão e menos na purificação. Todavia, culpa e mancha são irmãs gêmeas e o pecador precisa se livrar delas, para sentir alívio de ambos os problemas e não de um só. O sacrifício vicário de Jesus é a provisão certa para um e outro. No Apocalipse, os salvos, além de perdoados, estão sempre vestidos de roupas brancas (sem sujeira alguma), bem como os anjos e os 24 anciãos (3.4; 4.4; 6.11; 7.9, 13). Esse assunto solene é matéria de capa desta edição. Na seção “Cidade em foco”, Jorge Barro nos diz que antes do mandato evangelístico de ir por todo o mundo e pregar o evangelho de perdão e de purificação (Mc 16.15), Deus nos deu o mandato cultural de cuidar do mundo (Gn 1.28) (p. 58). Ed René Kivitz escreve um belo texto sobre a graça, aquela “disposição autodeterminada de Deus de amar e se relacionar com suas criaturas independentemente de seus méritos ou virtudes” (p. 38). Do belo texto ao artigo inquietante do bispo Robinson Cavalcanti, lemos neste que a chamada “civilização ocidental” é “cada vez mais ex-cristã, pós-cristã e anticristã” (p. 46). Finalmente, carreguemos no correr deste novo ano a exortação de Ricardo Barbosa de Sousa: “A glória de Deus se desvanece quando seu povo já não anda segundo seus propósitos” (p. 32 ). Elben César


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P astorais

Mateusz Atroszko

78.

Um bilhete debaixo da porta

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erta igreja cristã tinha um órgão de tubos, um sistema de som sem defeito, o mais sofisticado datashow e duas telas grandes, uma à direita do púlpito e outra à esquerda, além de uma tela pequena voltada para o ministro oficiante. Para os membros e visitantes falantes de outras línguas havia fones de ouvido com tradução simultânea do inglês para seis diferentes idiomas (português, francês, alemão, russo, chinês e coreano). Os deficientes auditivos tinham como captar a liturgia e o sermão, graças a um simpático e jovem casal que se comunicava com eles por meio da linguagem de sinais. O coro era formado de mais ou menos 100 pessoas, todas de beca, em quatro cores diferentes (branco para os sopranos, azul celeste para os contraltos, vermelho para os tenores e marrom para os baixos). Uma mulher bonita e elegante era a regente. Eles conheciam e cantavam quase todas as cantatas de Johann Sebastian Bach. Uma orquestra de câmara tocava o prelúdio, acompanhava os hinos congregacionais e, às vezes, acompanhava também o coro. O regente da orquestra era um senhor de meiaidade que usava um rabicho que combinava com as longas abas de seu fraque. Os bancos eram almofadados e espaçosos, com um confortável estrado para os pés. O pastor titular era culto, falava com eloquência, citava de cor palavras e frases do grego e do aramaico e trechos dos mais notáveis teólogos da Europa. Usava vestes talares de cores diferentes, uma para cada ocasião do calendário litúrgico. Para evitar a mania do

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pecado, ele quase não pregava sobre o assunto. Como consequência natural desse escrúpulo, o reverendo omitia também qualquer referência à expiação e ao perdão de Deus, mediante Jesus. A membresia era formada de homens e mulheres da alta sociedade. Todos estavam “bem de vida” e possuíam tudo de que precisavam e também o supérfluo. A aparência não podia ser melhor. Porém, no íntimo e aos olhos de Deus, eles, o pastor titular e os outros onze pastores (o número nunca era menor nem maior, para coincidir com os doze patriarcas e os doze apóstolos), eram todos miseráveis, infelizes, pobres, cegos e nus. De vez em quando, um ou outro membro da liderança sentia um forte arrepio e estremecia com a formalidade ostensiva da igreja e com o seu distanciamento cada vez maior do evangelho e da própria pessoa de Jesus. Certa manhã, quase na hora do culto matutino, quando os diáconos foram abrir as portas do templo, encontraram debaixo da porta principal um bilhete no qual estava escrito: “Eu estou [aqui do lado de fora] batendo à porta constantemente. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei e farei companhia a ele, e ele a mim”. Era um recado endereçado ao pastor titular, da parte “daquele por meio de quem Deus criou todas as coisas!” (Ap 3.14-22). Parece que a igreja não reagiu à altura e veio a morrer. Ela não existe mais. No quarteirão onde ficava o seu templo, hoje há um shopping center!


Bruno Neves

S umário

Colunistas O caminho do coração

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CAPA

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Só a Deus glória

Ricardo Barbosa de Sousa

Da linha de frente Como se livrar da culpa e da mancha

Embora sempre estejam juntas, culpa e mancha são sensações diferentes. Uma não deveria ser mais incômoda do que a outra. As duas são filhas do pecado. Ambas são mais subjetivas do que objetivas.

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Aprendendo a desaprender

Bráulia Ribeiro

Meio ambiente e fé cristã

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Crise civilizatória

Marina Silva

Casamento e família

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Fui enganado!

Carlos “Catito” e Dagmar Grzybowski

Missão integral

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Boas novas aos pobres

René Padilla

Reflexão

46 Conflito de símbolos e mandato

Seções

cultural

3 Abertura 4 Carta ao leitor 6 Pastorais 8 Cartas 12 Frases 12 Números 14 Mais do que notícias 18 Notícias l Lissânder Dias 38 O LEITOR PERGUNTA l Ed René Kivitz 40 Novos acordes l Carlinhos Veiga 41 De hoje em diante... 42 Altos papos l Bruno Tardim 54 entrevista l Doug Van Bronkhorst 57 Caminhos da missão l Antonia Leonora van der Meer 60 vamos ler! 62 especial

Robinson Cavalcanti Redescobrindo a Palavra de Deus

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História

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Paradigmas da Reforma: três visões da Igreja

Alderi Souza de Matos Ética

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O Pai-Nosso e as bem-aventuranças para hoje: Deus como Pai e seus filhos como pacificadores

Paul Freston

Cidade em foco

58 Passaram-se a tarde e a manhã... e já somos 7 bilhões de pessoas

ABREVIAÇÕES:

AS21 - Almeida Século 21; BH - Bíblia Hebraica; BJ - A Bíblia de Jerusalém; BP - A Bíblia do Peregrino; BV - A Bíblia Viva; CNBB - Tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; CT - Novo Testamento (Comunidade de Taizé); EP - Edição Pastoral; EPC - Edição Pastoral - Catequética; HR – Tradução de Huberto Rohden; KJ - King James (Nova Tradução Atualizada dos Quatro Evangelhos); NTLH - Nova Tradução na Linguagem de Hoje; TEB - Tradução Ecumênica da Bíblia. As referências bíblicas não seguidas de indicação foram retiradas da Edição Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil, ou da Nova Versão Internacional, da Sociedade Bíblica Internacional.

Quando Jesus entra numa casa

Valdir Steuernagel

Jorge Henrique Barro

Ponto final

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Evangelização por proximidade

Rubem Amorese

Um ponto de encontro www.ultimato.com.br Janeiro-Fevereiro, 2012

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C artas que ataca todos nós. Como deveríamos saber de maneira bem clara, que ela é “o caminho mais curto para o tombo”! Benedito Filho, Niterói, RJ

Orgulho Muito boa a matéria de capa da edição de novembro/dezembro de 2011. Como precisamos — todos nós, sem exceção — nos humilhar e abandonar o orgulho! Lembro-me de C. S. Lewis: “O orgulho é a galinha sob a qual todos os outros pecados são chocados”. Ele diz também que o orgulho está sempre olhando de cima para baixo e que, enquanto olharmos de cima para baixo, não veremos o que está acima de nós. David Figueiredo, Guarapuava, PR Ótima a matéria sobre orgulho. Muitas vezes não damos a devida atenção a essa “doença”

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Surpreendi-me com a ousadia da matéria de capa da edição de novembro/dezembro de 2011. Vivemos um momento difícil em nossas igrejas: mudanças repentinas e às vezes capitalistas demais. Aprendi muito com toda a matéria sobre orgulho. Li, reli e li para minha mãe. Marquei os pontos mais importantes e guardei no coração. Excelentes também os comentários e frases dos pastores citados. Eles demonstram que Ultimato não está clamando sozinha no deserto. Aline Melo, Viçosa, MG Uma carta que dói A carta do irmão Luciano dói (“Cartas”, novembro/dezembro de 2011). Temos alguém que crê ter sido salvo pela graça, que é chamado para uma nova vida e que a ela se submete, ao andar pelo caminho estreito e não pelo largo e conveniente. Mesmo que as Escrituras digam que o lugar dos covardes, incrédulos, depravados, dos que cometem imoralidade sexual, dos idólatras

e mentirosos será no lago de fogo que arde com enxofre (Ap 21.8) — o que isso quer dizer? Lembro-me de uma reportagem sobre um bispo — salvo engano, homossexual declarado — que entrou pela nave central da igreja com o companheiro. Nunca vi pastor algum desfilar pelo templo liturgicamente com a esposa a tiracolo. Ao agir assim, o bispo fez apologia à homossexualidade, liturgicamente. Um outro pastor — anteriormente metodista —, homossexual, entendeu que abrir uma denominação gay seria o melhor caminho. Em entrevista concedida, não deixa claro, mas compreende-se que ele tem contatos sexuais ocasionais. Estas não parecem ser as atitudes que o irmão Luciano busca. Como afirmar que não nos encontraremos na Nova Jerusalém por ele ser homossexual? É isto que as Escrituras afirmam? Isto é o que os evangélicos dizem que as Escrituras afirmam. Mesmo aqueles que não se assentam com os “Malafaias” e “Severos” da vida. Pessoas como o Luciano deveriam ser acolhidas e plenamente integradas à comunidade. Porém como, com todos os entraves que existem? Eduardo Mundim, Belo Horizonte, MG


— A igreja não tem autoridade para declarar que esta ou aquela pessoa estará dentro ou fora da Nova Jerusalém. Isso pertence exclusivamente a Deus. O profeta Isaías diz que Jesus não viria para esmagar a cana quebrada nem para apagar o pavio já quase apagado (Is 42.3). Isto quer dizer que Jesus não repudiaria os de pequena fé, os fracos, os publicanos, as meretrizes, os homossexuais. Ele mesmo o confirma: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes; [pois] eu não vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento” (Lc 5.31,32). Contudo, essas duas passagens e muitas outras não dão margem para que os desonestos, os corruptos, os hipócritas, os mentirosos, os adúlteros, as meretrizes, os homossexuais e outros continuem como estão. Jesus veio para curar e não simplesmente para acolher os doentes. Além disso, o que o doente quer é a cura. A salvação inclui o livramento da culpa do pecado (isso é justificação) e do poder do pecado (isso é santificação). Luciano não está sozinho. Todos os cristãos têm problemas em diferentes áreas. Todos têm que aprender a negarem a si mesmos

para serem discípulos de Jesus (Mc 8.34). (Veja Os mais santos e os menos santos, pág. 3, e A irrefreável homossexualização de homens e mulheres, pág. 15). Homossexualidade Após chegar da missa, onde lemos sobre o juízo definitivo em Mateus 25.31, sentei e comecei a ler Ultimato (novembro/ dezembro de 2011), revista que aprecio muito. Fiquei horrorizada ao chegar à página 15, onde se lê: É tão taxativa a condenação bíblica da homossexualidade?. Eu não conheço nenhum verso nos quatro Evangelhos em que Jesus condene alguém por comportamento sexual; menos ainda por orientação sexual. No juízo final ele levará em conta apenas se demos de comer, beber, vestir aos pobres, se visitamos os doentes, aceitamos os estrangeiros. Nada na área do sexo. Tive vários chefes homossexuais nos meus longos anos de trabalho, tanto homens como mulheres. Eram os mais competentes e os mais cristãos. Ajudavam no que era preciso. Acho que no juízo final estarão à direita de Jesus. As nossas igrejas, tanto católicas como protestantes, deveriam

sentar-se e perguntar-se de onde vem esta preocupação exagerada com o sexo. Irene Cacais, Brasília, DF Secularização Sempre gostei dos comentários de Ed René Kivitz. Porém, o último (“O leitor pergunta”, novembro/dezembro de 2011), em especial, chamou-me muito a atenção. De fato, no Brasil e no mundo as igrejas e movimentos não são monolíticos e estáticos. As igrejas têm passado por processos de secularização e o neopentecostalismo tem tido sucesso. A razão principal disso é o modo como as pessoas têm visto as igrejas e encarado a fé. Acredito que enquanto houver essa secularização a tendência é o surgimento de mais pessoas buscando Deus em lugares errados, onde encontram apenas respostas para seus problemas existenciais e onde haja um deus que não se intromete nas demais áreas de suas vidas. Marcela Pimentel, Viçosa, MG Longevidade Acompanho Ultimato há muitos anos. Sempre incentivo as ovelhas que pastoreio a fazerem uma assinatura, pois sei o grande comprometimento que a revista tem com a

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C artas Bíblia, além de publicar matérias edificantes. Aproveito a liberdade que imagino ter com vocês para fazer uma sugestão. Sem questionar o profissionalismo das pessoas que trabalham na área, preferiria que não houvesse fundo com cor nas páginas da revista, como aconteceu na edição anterior (“Entrevista”, novembro/dezembro de 2011). Isso dificulta a leitura para os mais velhos. Tenho uma ovelha de 91 anos, totalmente lúcida, ativa, frequente, independente e com muito vigor. Ela se chama Eunice e é uma das assinantes que fazem parte de uma assinatura coletiva. Apesar de ter boa saúde, ela tem enfrentado dificuldades com a visão. Porém, não desiste da leitura. Comprou uma pequena lupa para auxiliá-la na leitura diária da Bíblia e de revistas. Fiquei comovido quando ela nos disse esta semana para eu dar a assinatura dela de presente a alguém, devido à dificuldade de leitura. Seria bom que Ultimato tivesse algum tipo de tiragem especial, na qual as letras fossem maiores. Continuem exercendo este excelente trabalho com afinco e amor. Pr. Cícero Muniz, São Paulo, SP

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Alegria, alegria, por favor! Há muito tempo não leio algo tão edificante, que não fosse na própria Bíblia! Ultimato me surpreendeu com a matéria sobre a alegria (setembro/outubro de 2011). Débora de Melo, Fortaleza, CE Quando comecei a leitura de Alegria, alegria, por favor!, fiquei pensando como seria a conclusão. Porém fiquei feliz e contente no decorrer da leitura por poder compartilhar da verdadeira alegria. A alegria no Senhor deve ser disseminada, para evitar a euforia mundana que leva muitos jovens (e adultos) à frustração. A mensagem que vocês publicaram é transformadora e libertadora. O povo padece por falta de conhecimento. Queli Nogueira, São José do Rio Pardo, SP Fiquei maravilhado com tanta riqueza! Ultimato tem nos ajudado a nos despertar nesta época em que a iniquidade se alastra em nosso meio. Alegria, alegria! — não a que o mundo oferece, mas a que Deus nos concede por misericórdia e caridade. Roniltom de Campos, Várzea Paulista, SP

Bráulia Acompanho pela Ultimato o que pensam algumas mentes humildemente brilhantes do meio evangélico. Achei interessante no artigo de Braúlia Ribeiro, Quando morre uma língua... (“Da linha de frente”, setembro/outubro de 2011), a maneira de pensar da autora sobre o que se perde quando uma língua morre. Gostaria de pontuar apenas que a diversidade de línguas na terra é consequência de um castigo, não de um plano original de Deus. Francisco Júnior, Colônia do Gurgueia, PI Catito Por mais simples que pareça, achei excelente o artigo Amigos, nossa nova família (“Casamento e família”, setembro/outubro de 2011), de Catito e Dagmar Grzybowski (aprecio também os livros do autor). Algumas vezes, na complexidade da vida, perdemos o que é essencial, como a amizade. Muitos casais sofrem justamente com isto. E, de fato, é uma opção “cara” investir em amizade. Porém, preciosa! Acredito


que o evangelho de Jesus é cheio de simplicidade. Ele questionava a religiosidade e os métodos inúteis dos fariseus e doutores da lei. Retomemos o simples e o essencial. Obrigada por me lembrar disto, autores! Giovanna Amaral, São Paulo, SP Ashbel Simonton e Gunnar Vingren O leitor Moizes Gomes, lamentavelmente, faz um comentário (“Cartas”, setembro/ outubro de 2011) desprovido de análise crítica e de espírito fraterno sobre a comparação do resultado do trabalho do missionário Simonton, fundador da Igreja Presbiteriana no Brasil, com o dos fundadores da Assembleia de Deus. Segundo o leitor, o trabalho de Simonton não teve grande resultado por não ter este acreditado na mensagem do “evangelho pleno”. O leitor não deixa claro o que chama de “resultado”. Ainda bem que Ultimato esclareceu o posicionamento de Simonton sobre a teologia do “batismo do Espírito Santo”. Acrescento apenas o contexto no qual foram fundadas as duas igrejas. Simonton foi um dos pioneiros do evangelho no Brasil. Ele chegou aqui quando o

Brasil era Império e o catolicismo era a religião oficial do Estado. Qualquer templo religioso ou manifestação pública religiosa eram proibidos, segundo a Constituição de 1824. Quando a Assembleia de Deus foi fundada, o solo já estava preparado por missionários vindos de igrejas não-pentecostais, pois estas ainda não existiam. Hoje as igrejas que mais crescem são as neopentecostais, que também professam o “evangelho pleno”. No entanto, as atitudes dessas igrejas são doutrinária e eticamente suspeitas. Seriam os seus líderes mais plenos do Espírito Santo que os missionários pioneiros, que deram literalmente suas vidas ao trabalho do reino? Nilson Carneiro, Rio de Janeiro, RJ Escola Dominical Agradeço a Ultimato pelas matérias maravilhosas, de grande valia para aqueles que lecionam na Escola Bíblica Dominical. Sempre com temas relevantes e instigantes, faz-nos refletir e aprender cada vez mais. Márcio Vieira, Pindamonhangaba, SP

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N ÚMEROS

F RASES

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Daniele Devoti

missionários católicos brasileiros estão no além-mar. Mais de 80% deles são mulheres

70.000.000

de deficientes auditivos do mundo inteiro se comunicam por meio da língua de sinais

“A

ideia da extinção definitiva [da religião] continuará sendo intolerável para o ser humano comum, que continuará a encontrar na fé aquela esperança de uma sobrevivência além da morte, à qual nunca pôde renunciar. Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura e agnóstico

13.000

“S

er cego separa as pessoas das coisas, mas ser surdo separa as pessoas das pessoas. Bruce Smith, presidente da Wycliffe Associates

cristão é assassinado por razão de sua fé a cada cinco minutos. É um verdadeiro holocausto pouco divulgado. Só na primeira década do século 21 o número de martirizados chegou a 160 mil

150.000

chineses são batizados em igrejas cristãs a cada ano

2.200.000

reais foi quanto um brasileiro de muitas posses e servo fiel da causa de Cristo ofertou de uma só vez para a obra missionária realizada pela Agência Presbiteriana de Missões Transculturais (APMT)

84.424

novos cristãos foram batizados em junho de 2011 por ocasião da comemoração do Centenário das Assembleias de Deus no Brasil 12

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Arquivo pessoal

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“P

arece-me que a tecnologia, a vida virtual e a velocidade com que as coisas acontecem hoje cauterizam nossa consciência. Lourenço Stelio Rega, diretor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo, SP

“T

er a humildade de aceitar Cristo Jesus como Filho unigênito de Deus é o passo inicial para superar o ateísmo. Dom Antonio Afonso de Miranda, bispo emérito de Taubaté, SP

“T

odos nós somos evangelistas — de Deus ou do diabo. Não há meio-termo. Leo Garilva, professor de teologia nas Filipinas

“S

e Jesus fosse neopentecostal não teria distribuído pães e peixes de graça para o povo, de jeito nenhum! O pão ou o peixe seriam ‘adquiridos’ através de uma pequena moeda de cinquenta dracmas e quem comesse o tal pão ou peixe milagrosos seria curado de suas enfermidades. Felipe Almada, músico metodista

“Q

uanto mais truculentas forem as atitudes dos crentes com relação às descrenças, mais descrentes haverá, e com razão. Quanto mais gente houver que se acha portadora da lista dos que vão desfrutar do céu e dos que vão torrar no inferno, mais gente vai se declarar descrente. Quanto mais exclusivistas forem as instituições religiosas, tanto mais pessoas vão considerá-las irrelevantes e antipáticas. Márcio Rosa, pastor da Igreja Betesda de Boa Vista, PR

“C

omeço a ficar com medo do meu futuro, já que no ano passado completei 45 anos. Será que eu também irei virar a casaca depois de tantos anos? Será que serei capaz de trair meus amigos, negligenciar meu trabalho, adquirir hábitos desprezíveis, tudo isso depois dos 50 anos, época em que me imaginei com uma vida emocional e financeira estável, serena? Espero que não. Maria Regina Canhos Vicentin, escritora

“A

maledicência contamina a alma do maledicente [e] o maledicente é um ‘inventor de males’ que intimamente torce para que o mal contado sobre o outro seja verdade, sempre inventando detalhes. João Falcão Sobrinho, presidente emérito da Convenção Batista Brasileira

Arquivo pessoal

casos de câncer são provocados pelo consumo de álcool anualmente na Grã-Bretanha, 9 mil em homens e 4 mil em mulheres


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+ DO QUE NOTí C IAS O câncer da intolerância 140 mil dólares jogados fora Arquivo pessoal

Maurício Zagari: a igreja tornou-se intolerante com a igreja

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situação é preocupante. “A igreja emergente não suporta a opinião dos ortodoxos e os ortodoxos discordam veementemente das crenças da miscigenação igreja-sociedade da igreja emergente”. Os teólogos da teologia relacional não suportam a crença de que Deus está no controle das catástrofes mundiais e quem defende a soberania de Deus sobre tudo o que ocorre no mundo não suporta a opinião dos defensores da teologia relacional. Os “desigrejados” não suportam a igreja institucional e quem frequenta a igreja institucional não suporta a opinião dos sem-igreja. Os arminianos não suportam as crenças dos calvinistas e os calvinistas pensam que o arminianismo é uma ignorância teológica. Esta análise é feita pelo jornalista Maurício Zagari, membro da Igreja Pentecostal de Nova Vida em Copacabana, RJ, e professor de filosofia e ética cristã 14

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no seminário teológico da Assembleia de Deus na Ilha do Governador, RJ. Segundo ele, não se trata da intolerância contra o pecado, contra grupos gays, contra o governo, mas da intolerância contra outros membros do próprio Corpo de Cristo. Na opinião dele “a igreja tornou-se intolerante com a igreja. A mão não suporta que o pé tenha cinco dedos, o pé não suporta que a barriga tenha umbigo e a barriga não suporta a crença da boca de que ela tem 32 dentes”. Na maioria dos casos, acrescenta Maurício, “a nossa discordância se torna intolerância e a intolerância se torna o pecado da falta de amor ao próximo. E, como um abismo chama outro abismo, o passo seguinte à falta de amor ao próximo é outro grande pecado que tem assolado a igreja evangélica brasileira: a desunião”. Para que ninguém tenha dúvida dessa doença grave que tem infectado os evangélicos, a qual ele chama de “o câncer da intolerância”, Maurício sugere: “Olhe em volta, leia o que é escrito todos os dias nas redes sociais cristãs. Ouça o que os telepastores dizem. Sente-se para comer uma pizza com os irmãos de sua igreja e escute o que eles falam sobre as outras denominações. O que você vai encontrar é um oceano de intolerância”. Fonte: Apenas

O

americano Robert Fitzpatrick, de 60 anos, gastou 140 mil dólares para espalhar a notícia de um terremoto que atingiria o planeta no dia 21 de maio de 2011. Ele acreditou piamente na profecia de outro americano, chamado Harold Camping, fundador e diretor da Family Radio, com sede em Oakland, na Califórnia. Como centenas de outras, essa profecia não se cumpriu. Aqui no Brasil, o porta-voz do movimento Salvar Almas, formado por leigos católicos moradores do estado de Santa Catarina, garantiu que o fim dos tempos aconteceria no dia 21 de dezembro de 2011. Essas profecias só servem para ridicularizar e desacreditar o cristianismo. Além disso, elas conseguem exatamente o oposto. Em vez de aguardar com segurança as promessas bíblicas que dizem respeito à escatologia, o povo zomba delas. Os falsos profetas e seus sectários são indesculpáveis, pois Jesus deixou claro que não nos compete saber “os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade” (At 1.7). Ninguém tem o direito de invadir a privacidade do Todo-poderoso e ninguém tem acesso à sua agenda. O próprio Jesus, em outro momento, declarou enfaticamente: “Quanto ao dia e à hora [dos acontecimentos escatológicos] ninguém sabe” (Mc 13.32).

O grande erro do americano que jogou fora 140 mil dólares (o equivalente a 245 mil reais) para anunciar o juízo final não foi a providência em si, mas a imprudência de aceitar como certa a profecia de Harold Camping. Apesar das sucessivas falsas profecias, o verdadeiro cristão continua crendo, esperando, pregando e alimentando a esperança da plenitude da salvação. Essa plenitude arrola os eventos mais desejáveis do ser humano em todos os tempos: a ressurreição de todos os mortos, a transformação de todos os vivos, a morte da morte, o juízo final e os novos céus e a nova terra. E o que vai dar início a essa esperança é a própria parusia, ou segunda vinda de Cristo. O cristão não pode deixar de acreditar piamente, tranquilamente, alegremente, que Jesus “aparecerá segunda vez” (Hb 9.28), “com poder e muita glória” (Mt 24.30), e que “todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram, e que todos os povos da terra se lamentarão por causa dele” (Ap 1.7). Com os 140 mil dólares jogados fora por Robert Fitzpatrick seria possível comprar e distribuir à vontade 50 mil quilos (15 milhões de exemplares) de folhetos da Interlink — organização evangélica que publica pequenos folhetos para evangelização — no Nordeste do Brasil.


+ DO QUE NOTí CIAS A irrefreável homossexualização de homens e mulheres

U

m garoto de 8 anos, adotado por um casal de lésbicas, na Califórnia, faz tratamento para trocar de sexo. A juíza da Vara de Infância e Juventude da Austrália aprova “mudanças de sexo” de meninos e meninas. Uma das denominações presbiterianas dos Estados Unidos, depois de retirar de sua constituição a norma que exigia “fidelidade no casamento entre um homem e uma mulher, ou castidade no celibato”, readmite ao ministério o pastor que há vinte anos renunciou ao cargo por ser gay. Um blog feito por jovens e para jovens encoraja os adolescentes de 12 anos para cima a assumir a homossexualidade, a ser eles mesmos e a conhecer os seus direitos. A ministra das Finanças da Austrália anunciou em 2011 que sua parceira estava grávida, graças a uma fertilização in vitro. Uma lésbica brasileira, ex-assembleiana, apresentase como “líder missionária, pregadora, conferencista internacional, capelã, escritora” e também “lavada, remida no sangue de Jesus e justificada pelo poder da salvação”. Ela e sua companheira são

fundadoras e pastoras de uma comunidade evangélica em São Paulo. Segundo pesquisa do Datafolha de 2009, o Brasil tem mais de 5 milhões de bissexuais. Em setembro de 2010 eles comemoraram o Dia do Orgulho Bissexual. Em seu livro Acompanhamento de Vocações Homossexuais (Paulus, 2008), José Lisboa Moreira de Oliveira, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, afirma que: 1) “hoje, em toda parte, aumenta cada vez mais o número de vocacionados e vocacionadas homossexuais” (p. 5); 2) “em países como os Estados Unidos, já é comum encontrar seminários e casas de formação com pelo menos metade de seus membros formada de pessoas homossexuais” (p. 5); 3) “na maioria dos casos, os vocacionados e vocacionadas praticam a homossexualidade de forma ativa e intensa mantendo relações sexuais constantes com parceiros fixos e exclusivos, ou com diversos parceiros no mesmo período ou em períodos diferentes” (p. 43). Em Homossexualidade — ciência e consciência (Loyola, 1985), o professor

Javier Gafo, da Universidad Pontificia Comillas, de Madri, menciona as pesquisas de C. S. Ford e F. A. Bead, segundo as quais há “mais grupos humanos que permitem a homossexualidade do que aqueles que a proíbem absolutamente” (p. 95). Nada disso, porém, altera o que as Escrituras dizem sobre o assunto. É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que encontrar respaldo bíblico para a prática homossexual (Ultimato, setembro/ outubro de 1998, p. 20, e novembro/dezembro de 2011, p. 15). Muitos, por ignorância ou maldade, “tomam carona” nos episódios da mulher adúltera e de Zaqueu para facilitar as coisas. De fato, Jesus estendeu os braços graciosamente aos pecadores mais notórios, como afirmavam os fariseus. Contudo, depois de desautorizar o apedrejamento da mulher surpreendida em adultério e de declarar a ela o famoso “Eu também não a condeno”, Jesus acrescentou de forma imperativa: “Agora vá e abandone sua vida de pecado” (Jo 8.11). É cinismo mencionar a

primeira frase e omitir a segunda. No caso de Zaqueu, o próprio publicano declarou: “Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais” (Lc 19.8). Jesus trata o homossexual do mesmo jeito: recebe-o como pecador, pela graça, e provavelmente lhe diria: “Agora vá e abandone [custe o que custar] a prática homossexual”. O evangelho não distorcido faz o casamento da justificação com a santificação. Daí a pergunta de Paulo: “O que vamos dizer? Será que devemos continuar no pecado [no adultério, na roubalheira e no homossexualismo] para que a graça de Deus aumente ainda mais? É claro que não! Nós já morremos para o pecado; então como podemos continuar vivendo nele?” (Rm 6.1-2). E isso não é só teoria. Na igreja de Corinto havia ex-homossexuais passivos e ex-homossexuais ativos. Eles “foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus” (1Co 6.11). Janeiro-Fevereiro, 2012

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+ DO QUE NOTí CIAS Dois pesos e duas medidas

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verdade nua e crua é que as portas estão escandalosamente abertas para o islamismo no Brasil (e em todos os outros países democráticos) e hermeticamente fechadas para o cristianismo em quase todos os países islâmicos. Segundo o CDIAL (Centro de Divulgação do Islã para a América Latina), há vinte anos havia aproximadamente dezoito mesquitas e vinte pontos de oração no Brasil. Hoje são sessenta mesquitas e noventa pontos. O censo de 2000 apontava mais de 27 mil muçulmanos. Hoje, o CDIAL calcula que deva haver pelo menos 1,5 milhão. A liberdade é tal que cerca de cinquenta xeques estrangeiros, a maior parte da África (Egito e Marrocos), vivem no Brasil. Oito deles são de Moçambique, para facilitar a comunicação. O CDIAL e outras organizações muçulmanas estão trabalhando para criar dentro de cinco anos o primeiro curso universitário de teologia islâmica no país, para formar xeques aqui mesmo (hoje doze brasileiros estudam em universidades da Arábia Saudita e da Síria). Um dos xeques moçambicanos, que vive em uma cidade do interior de São Paulo, elogia a sociedade 16

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brasileira: “Aqui se aceita todo ser humano, o que não acontece às vezes em outros países”. Na maioria dos países muçulmanos ocorre exatamente o contrário. Em agosto de 2011, por exemplo, o xeque salafita Adel el-Ghihadi, em uma entrevista publicada no Rose Al-Yusuf, declarou: “Os judeus e os cristãos para nós são kafir, não crentes. Eu como muçulmano devo apoiar o muçulmano, antes do cristão. Os demais são considerados inimigos. Se não incomodam, podem ser tratados com certa benevolência. Sempre dentro de certos limites. Os cristãos não devem ocupar um lugar de importância, como o de juízes de tribunais, nem no exército nem na polícia. Eles são livres para rezar em suas igrejas. Mas se forem motivos de discórdia e houver problemas, eu as destruirei. Não posso contradizer minha religião para contentar as pessoas. Quem quer viver em um país de maioria muçulmana deve aceitar suas leis. Ou paga o tributo, ou se torna muçulmano, ou é morto”. A respeito da revolução egípcia, o mesmo xeque declara: “Completaremos a islamização das nações em torno de nós, enviando missionários ao Sudão e à

Líbia. Depois passaremos estado por estado, para converter todos ao Islã. E fazer aceitar a sharia. Prepararemos um exército egípcio capaz de formar outros exércitos islâmicos, aos quais Alá dará seguramente a vitória”. É muito oportuna a palavra de Dominique Mamberti, secretário do

Vaticano para as Relações com Outros Estados: “A liberdade religiosa não pode se limitar à simples liberdade de culto. Ela inclui, entre outros, o direito de pregar, educar, converter, contribuir para o discurso político e participar plenamente das atividades públicas”. Fontes: Folha de São Paulo, 3 nov. 2011, p. A-14; Zenit, 24 set. 2011, p. 28.

O rei dos reis escondido dentro de uma tubulação de concreto

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misterioso Apocalipse diz que ao quebrar o sexto selo do livro que continha o propósito divino para o mundo em caos, houve várias manifestações do juízo de Deus. A situação era tão terrível que “os reis do mundo inteiro, os governadores e os chefes militares, os ricos e os poderosos e todas as outras

pessoas, escravos ou livres, se esconderam nas cavernas e debaixo das rochas das montanhas” (Ap 6.15). Por uma questão de mera coincidência, na manhã do dia 20 de outubro de 2011, um desses reis, desses chefes militares e poderosos, para sobreviver ao cerco dos que se opunham a sua ditadura de 42 anos, se escondeu não em uma caverna, mas dentro de uma tubulação de concreto em sua cidade natal, de onde foi retirado e morto. O nome dele é Muamar Kadafi, de 69 anos, e se autointitulava rei dos reis da África.


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N OTíCIAS por Lissânder Dias

Cem anos de evangelização indígena A igreja evangélica indígena vai comemorar 100 anos de trabalho missionário no Brasil em 2012. Para isso, o 7º Congresso Nacional do CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas), que acontece de 18 a 22 de julho, espera reunir 5 mil pessoas, a maioria indígenas, em Chapada dos Guimarães, MT. A maior parte da programação — que inclui devocionais, palestras, música, testemunhos e esportes — será conduzida pelos próprios indígenas. Em 1912 registraram-se os primeiros frutos concretos da ação missionária evangélica entre

De cracolândias a cristolândias

Junta de Missões Nacionais/CBB

Uma iniciativa de igrejas batistas está ajudando dependentes químicos das chamadas “cracolândias” (redutos de viciados em crack) a libertarem-se da droga. A Missão Batista Cristolândia começou em São Paulo, SP, e já chegou ao Rio de Janeiro e Minas Gerais. A metodologia da missão inclui abordagem direta e atendimento em casas de acolhimento, as chamadas “cristolândias”. O trabalho começa com voluntários — muitos deles ex-dependentes — que visitam a cracolândia e oferecem alimentação e abrigo aos dependentes, além de orientação espiritual. Estes são acolhidos e têm suas necessidades básicas supridas. 18

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os indígenas no Brasil, com o povo Terena. Foi o início do que o antropólogo e missionário brasileiro Isaac Costa de Souza chamou de “primeira onda missionária”, o movimento das missões estrangeiras. A partir de 1925 viria a “segunda onda”, protagonizada por missionários nacionais e agências brasileiras. A mais recente é a “terceira onda” ou “onda indígena”, iniciada na década de oitenta e caracterizada pela valorização dos indígenas como atores na evangelização. “O que bem caracteriza essa terceira onda é a aproximação entre líderes evangélicos indígenas. As igrejas indígenas têm contribuído para a evangelização entre os próprios parentes, graças ao esforço das ondas anteriores”, diz Ricardo Poquiviqui Terena, pastor

e secretário executivo da Missão Indígena UNIEDAS. “Nos últimos dez anos testemunhamos um crescimento inédito em termos de evangelização dos povos indígenas no Brasil. Este avanço foi alavancado por vários movimentos missionários entre as agências que trabalham em muitos campos indígenas, sejam elas de acesso fácil ou não”, afirmam Henrique Terena e Joshua H. Chang, no prefácio do livro comemorativo CONPLEI — Movimento da 3ª onda missionária.

Aos dependentes que aceitam tratamento, o projeto oferece também possibilidade de estudo em centros de formação cristã e apoio em comunidades terapêuticas.

O projeto começou oficialmente em março de 2010, com a liderança do casal de missionários Humberto e Soraya Machado. De outubro de 2010 a setembro de 2011, as cristolândias atenderam mais de 34 mil pessoas. Destas, quase 2 mil foram encaminhadas a comunidades terapêuticas e cerca de 600 decidiram estudar em centros de formação cristã. A inserção de exdependentes em igrejas locais é um dos pontos fortes do projeto. Só na Primeira Igreja Batista de São Paulo 171 pessoas foram batizadas e sessenta se reconciliaram com Cristo. Dados do IBGE de 2010 indicam que pode haver mais de 1 milhão de usuários de crack no Brasil.

Grupo da Missão Batista Cristolândia

Atualmente há cinco destas comunidades: duas masculinas (em Minas Gerais) e três femininas (no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Goiás).


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N OTíCIAS

Plano para evangelizar sertão nordestino nos próximos dez anos Dez mil novas igrejas em todo o sertão nordestino nos próximos dez anos. Este é o alvo do Movimento Nacional de Evangelização do Sertão Nordestino, que elaborará um plano evangelístico em março de 2012 durante um congresso nacional. A expectativa é de que mil pessoas participem do evento. O foco do plano são as cidades do interior de nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Dados informados pelo movimento dizem que o Nordeste possui cerca de 53 milhões de habitantes. Destes, 46 milhões vivem no sertão. Setenta e um por cento das cidades menos evangelizadas estão localizadas na região.

Nova missão quer alcançar muçulmanos no Brasil A MEAB (Missão Evangélica Árabe do Brasil) é a mais nova organização missionária evangélica específica para o trabalho com árabes e muçulmanos. Entre as grandes religiões, o islamismo é a que mais cresce no mundo. 20

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Segundo o pastor e líder do movimento, Jonathan dos Santos, “tem vindo ao meu espírito um pensamento constante: o congresso e o movimento poderão se tornar motivação forte para um novo despertamento de missões”. O Movimento Nacional de Evangelização do Sertão Nordestino pretende desenvolver pesquisas de campo com o objetivo de descobrir os pontos menos evangelizados na região. Os dados serão apresentados às igrejas e organizações evangélicas. Faz parte do plano realizar também

mais cinco congressos, além do de 2012, a cada dois anos. O Congresso Nacional de Evangelização do Sertão Nordestino acontece de 19 a 24 de março, em Juazeiro do Norte, CE, e pretende produzir “ações práticas”, com sugestões, planos e modelos viáveis à evangelização. Nele estarão reunidos preletores engajados com o sertão: Carlos Queiroz, Bárbara Burns, Cirino Refosto, Siméia Meldrum, John Medcraft, Sérgio Ribeiro, entre outros.

Fundada há pouco mais de um ano, a MEAB tem sua sede em Foz do Iguaçu, PR, considerado um dos lugares de maior concentração de muçulmanos no país. Com o objetivo de capacitar a igreja cristã, a proposta desta nova organização está baseada no tripé: mobilização, evangelismo

e treinamento. Há quatro tipos de treinamentos disponíveis: curso básico (janeiro e julho), intermediário (6 meses), avançado (1 ano) e básico semanal (para líderes e crentes locais). “Queremos ajudar a igreja a entender que é possível ganhar os muçulmanos e árabes aqui no Brasil e fazê-los testemunhas na comunidade”, diz Flávio Ramos, um dos fundadores da MEAB.


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[Capa]

Como se livrar da

culpa

Bjorgvin Gudmundsson

e da mancha

culpa e mancha

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mbora sempre estejam juntas, culpa e mancha são sensações diferentes. Uma não deveria ser mais incômoda do que a outra. As duas são filhas do pecado. Ambas são mais subjetivas do que objetivas. Culpa é aquele apito do guarda de trânsito que nos faz parar, aquele aguilhão que nos machuca, aquele peso que nos oprime, aquela sirene que não para de tocar. O sentimento de culpa faz surgir um conglomerado de emoções desconcertantes, como medo, vergonha, remorso, baixa autoestima, nervosismo, desespero (dependendo do grau de conscientização do mal praticado). A culpa está emparelhada com a sensação de nudez moral. Nos casos mais intensos e mais graves não resolvidos, pode resultar em suicídio, como aconteceu com Judas.

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A culpa provém mais da violação da lei de Deus do que da violação de qualquer norma estabelecida em algum lugar ou tempo. Por meio dela, percebe-se a dessemelhança do ser humano com Deus. Alguém acertadamente disse que a “relação entre pecado e culpa possui uma conotação redentora, pois a partir do reconhecimento de ambos a aceitação da graça torna-se inevitável”. Mancha é a marca do pecado, o sinal evidente de alguma falta cometida. É como o café derramado no vestido da noiva ou como o leite, no terno do noivo. Depois do acidente, o café ou o leite chamam mais atenção do que o vestido e o terno. Mancha é aquilo que enfeia. É o mesmo que desdouro, desonra, laivo, mácula ou nódoa. Pode significar também imundície, lixo, porcaria ou sujeira.


Sete bilhões de pessoas culpadas e manchadas

E

Mancha é mais um problema interno do que externo. É mais fácil lavar o prato e o copo por fora do que por dentro. A mancha pode não aparecer, mas não deixa de existir. Quanto mais escondida, maior será o mal, pois o esforço de escondê-la gera a hipocrisia. Daí a franqueza de Jesus: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície” (Mt 23.27). Mancha é a desagradável sensação de sujidade, como a do rapaz que não permitiu que o amigo o cumprimentasse dando-lhe um caloroso abraço porque se sentia imundo ao voltar da zona de meretrício.

m 1951 dois rapazes estavam assentados em um banco da estação Deodoro, no subúrbio do Rio de Janeiro, à espera do trem. Um era soldado, o outro, aluno do Instituto Bíblico da Pedra. O seminarista achou por bem evangelizar o soldado, que nunca antes tinha visto uma Bíblia. O cristão abriu a Epístola de Paulo aos Romanos, apontou e leu o versículo 23 do capítulo três: “Todos pecaram e estão destituídos da Glória de Deus”. Em seguida perguntou ao não cristão: “Quantos pecaram?”. O rapaz não soube responder à pergunta nem na primeira nem nas outras três ou quatro leituras. Como o seminarista insistisse na questão, o soldado respondeu com simplicidade: “23”, o único número que ali estava (até então ele jamais tinha visto um livro com frases numeradas). A intenção do que estava evangelizando era chegar a Jesus, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). Naquele ano, a expressão “todos pecaram” apontava a existência de 2,5 bilhões de pecadores vivos na face da terra. Em outubro de 2011, 60 anos depois — com o nascimento de alguma criança, provavelmente na China ou na Índia —, o número de pecadores subiu para 7 bilhões (número 2,8 vezes maior do que o anterior).

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O hissopo molhado no sangue do Cordeiro

O problema da mancha em Davi Pieter Fransz. de Grebber (1600–1652)

S O rei Davi em oração

Um caminho sem atalho

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ara escapar da culpa, da vergonha e do escândalo, muitos pecadores tomam providências inúteis. Costumam abafar, acobertar, encobrir, esconder ou ocultar o pecado cometido. Outra providência de pouca duração é negar o que de fato aconteceu. A família e as autoridades civis ou religiosas às vezes tentam engavetar o processo ou desqualificar os denunciantes ou as vítimas em benefício do verdadeiro culpado. Outro expediente que o transgressor toma é inverter a culpa, como Adão fez: “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da

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árvore, e eu comi” (Gn 3.12). Culpa-se o diabo, os poderes ocultos, o decote da mulher alheia, o celibato, a genética, a educação recebida no lar, as oportunidades para o mal (como o convite da mulher de Potifar) e coisas assim. Nem sempre, porém, o caminho de volta começa antes da condenação. Nem sempre a tolerância corrige o faltoso. A restauração de Davi só começou quando o profeta com dedo em riste falou para ele: “Tu és o homem” (2Sm12.7). Nesse exato momento, Davi abriu os olhos para sua culpa e sua mancha e subiu o primeiro degrau da restauração.

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e no Salmo 32 o adúltero e assassino quer livrar-se da culpa, no Salmo 51 ele quer livrar-se da mancha. Davi quer se desfazer do escândalo, então, por duas vezes, usa o verbo apagar: “Por tua grande compaixão, apaga as minhas transgressões” (v. 1) e “Apaga todas as minhas iniquidades” (v. 9). Davi quer ficar limpo, então, por duas vezes, usa o verbo lavar e, em outras duas, purificar: “Lava-me de toda minha culpa e purifica-me de meu pecado” (v. 2). E ainda: “Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e mais branco que a neve serei” (v. 7). A mancha era visível para o rei e para seus súditos. Por sua posição (a autoridade máxima de Israel), seu prestígio (todo mundo o aclamava), seu histórico (a começar com a vitória sobre Golias), sua veia musical (exímio tocador de harpa, cantor e compositor de salmos de louvor) e sua espiritualidade (expressa no Salmo 23), a queda de Davi não foi uma queda qualquer. Ele se enlameou por culpa de sua leviandade, seus olhos adúlteros, sua cobiça, seu imediatismo, seu adultério, sua hipocrisia e seu crime de morte. De fato foi um vexame, uma vergonha, um horror! Dadas essas circunstâncias, teria sido menos vergonhoso ficar de quatro, comer capim com os bois, deixar crescer os pelos e as unhas por sete anos, como aconteceu com outro rei (Dn 4.23). Porém, graças à confissão de seu pecado e à misericórdia de Deus, Davi saiu da sujeira e ela saiu dele! A memória de Davi estava afiada quando ele compôs o Salmo 51. Ele se lembrou do arbusto aromático de um metro de altura, com cachos de flores amareladas, que crescia nas fendas das rochas e era cultivado nos muros das varandas, que se chama hissopo. Ele se lembrou, no momento certo, da décima praga, quando todos os primogênitos do Egito morreram e os de Israel sobreviveram, porque os israelitas molharam um feixe de hissopo no sangue de um cordeiro sem defeito morto naquele dia e besuntaram o alto e as laterais da porta de suas casas. Graças a essa providência, que prefigurava o sacrifício do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), eles foram poupados e puderam sair do Egito (Êx 12.22). Ele se lembrou também do uso do hissopo nas cerimônias de purificação estabelecidas por Moisés (Lv 14.51-52). Daí a sua oração: “Purifica-me com hissopo, e ficarei puro” (Sl 51.7). Muitos anos depois, João diria que “o sangue de Jesus, o Filho de Deus, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7).


O sereno que seca no calor do verão

Tossaporn Santad

O problema da culpa em Davi

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mão de Deus é muito pesada por algumas horas. Quanto mais por nove meses seguidos! Durante esse longo período, o vigor de Davi foi se esgotando como “o sereno que seca no calor do verão”. O esforço para manter oculto por muito tempo o pecado é desgastante. Enquanto a providência é essa, não há alívio de espécie alguma. Davi mesmo explica: “O sofrimento continuou até que admiti minha culpa e não escondi mais o meu pecado”. Como consequência, “o Senhor perdoou a culpa do meu pecado” (Sl 32.5). A remoção da culpa não se dá de qualquer maneira. Ela só acontece depois da confissão e esta só vem após a plena consciência do pecado. A confissão formal não resolve nada. Não pode haver trapaça, falsidade, hipocrisia, barganha ou desculpa na confissão. O confessante não pode dividir sua culpa com outros, mesmo que ele não tenha pecado sozinho. No momento da confissão, ele não pode acusar

ninguém, não pode ver nem sequer o cisco que está no olho dos outros; antes, precisa se concentrar na tábua que está no seu próprio (Mt 7.3). Essa é a rota do perdão. A absolvição, a remoção da culpa é algo absolutamente certo. Depois de todo o processo, cuja velocidade depende da não resistência e da humildade do pecador, a ofensa é tirada, a culpa é cancelada, o débito é enterrado e o pecado é coberto. Antes era o pecador quem cobria seu próprio pecado, e a culpa persistia. Agora é o perdoador quem dá sumiço ao pecado, atirando-o “nas profundezas do mar” (Mq 7.19). Antes o entusiasmo de Davi pela vida era como um sereno secado pelo calor do sol. Depois da confissão, o pecado de Davi é como a neblina da manhã que o sol faz desaparecer (Is 44.22). Livre da culpa deixada pelo adultério e pelo assassinato de Urias, Davi pode cantar: “Como é feliz aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados apagados” (Sl 32.1).

Trapos de imundícia em vez de boas obras

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confissão mais pesada da Bíblia acha-se no livro de Isaías: “Todos nós nos tornamos impuros. As nossas boas ações, que pensamos ser um lindo manto de justiça, não passam de trapos imundos” (Is 64.6, NBV). Outras versões chegam mais perto do que o profeta quer dizer e mencionam

“roupa manchada” (BP) e “panos repugnantes” (TEB). A tradução da CNBB acerta: “Nossa justiça toda é como sangue menstrual”. Esses trapos imundos são os absorventes da época. É um choque quando o véu da autoavaliação equivocada é removido

e o culpado chega a ponto de saber que suas possíveis boas obras são como trapos de imundícia. Porém, se existe sangue menstrual, existe também sangue remidor e purificador! Nota: Sobre as versões da Bíblia citadas, ver pág. 7. Janeiro-Fevereiro, 2012

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Culpa e perdão, mancha e purificação

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s palavras mancha e culpa aparecem juntas na seguinte passagem das Escrituras: “Agora, por meio da morte do seu Filho na cruz, Deus fez com que vocês [antes inimigos] ficassem seus amigos, a fim de trazê-los à sua presença, para serem somente dele, não tendo mancha nem culpa” (Cl 1.22). Em geral, presta-se mais atenção à culpa do que à mancha. Porém, a conduta pecaminosa gera ambos os incômodos. A sensação de dívida não deve ser maior nem menor do que a sensação de sujidade e vice-versa. Curiosamente, as palavras que tratam da remoção da culpa e da mancha também aparecem juntas em outra passagem da Bíblia: “Se confessarmos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9). Se o perdão remove a culpa, a purificação remove a mancha. Então, o alívio não é complicado nem demorado nem pela metade. Se o pecado cometido produz dois tormentos gêmeos (culpa e mancha), a verdadeira confissão de pecado gera dois alívios gêmeos (perdão e purificação).

O perdão é muito necessário Em um dos cânticos de romagem, o salmista busca perdão: “Se tu tivesses feito uma lista dos nossos pecados, quem escaparia da condenação? Mas tu nos perdoas, e por isso nós te tememos” (Sl 130.3-4).

Na bela oração em favor do povo de Israel, depois de declarar repetidas vezes: “Nós temos cometido pecado”, o profeta Daniel clama: “Perdoa-nos, ó Senhor!” (Dn 9.19). Na oração de consagração do templo de Jerusalém, o rei Salomão enumera algumas desgraças que podem cair sobre o povo por causa do pecado e pede que, quando elas acontecerem e o povo se arrepender e confessar, ele seja perdoado: “Perdoa os pecados que o teu povo tem cometido contra ti” (1Rs 8.22-53). A singela súplica “perdoa” aparece muitas vezes na história de Israel, desde o deserto até o exílio (Êx 34.9; Nm 14.19; Sl 79.9; Os 14.2; Am 7.2 etc.). Na oração mais repetida em todos os lugares e em todos os tempos, uma das súplicas é “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 7.17).

A purificação é muito necessária O patriarca Jacó reuniu a família e ordenou: “Joguem fora todas as imagens dos deuses estrangeiros que vocês têm, purifiquem-se e vistam roupas limpas!” (Gn 35.2). Depois de descrever a imundícia moral do povo de Israel (“Da cabeça até os pés, o corpo de vocês está machucado, cheio de ferimentos e de chagas abertas, que não foram lavadas, nem enfaixadas, nem limpadas com azeite”), o Senhor ordena: “Lavem-se e purifiquem-se! Não quero mais ver as suas maldades!” (Is 1.16).

A agonia da mancha em Lady Macbeth

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lgumas bruxas disseram ao nobre Macbeth de Morey que ele seria rei da Escócia. A partir de então, ele comete uma série de assassinatos para ver a profecia realizada. Em 1040, Lady Macbeth ajuda o marido a matar o rei Ducan I, da Escócia, em uma 26

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batalha travada perto de Elgin, e Morey sobe ao trono. Pouco tempo depois, Lady Macbeth entra em uma crise de culpa e adoece. Sente a mão sempre suja de sangue, mesmo que lavada cuidadosamente vezes seguidas. Começa a delirar e exclama: “Quem

diria que o velho [Duncan I] tinha tanto sangue...”. E confessa: “Nem todos os perfumes da Arábia jamais limparão esta pequena mão”. Esta é uma das mais conhecidas peças de Willian Shakespeare (1564–1616), considerado o maior dramaturgo do mundo e o melhor poeta


Sou um sacerdote sujo: lava-me, Senhor!

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Aos coríntios, Paulo exorta: “Purifiquemo-nos a nós mesmos de tudo o que torna impuro o nosso corpo e a nossa alma” (2Co 7.1). A Timóteo, o mesmo Paulo escreve: “Quem se purificar de todos esses erros de que tenho falado será usado para fins especiais porque é dedicado e útil ao seu Mestre e está pronto para fazer tudo o que é bom” (2Tm 2.21). Em carta aos cristãos da diáspora, Tiago ordena: “Lavem as mãos, pecadores! Limpem o coração, hipócritas” (Tg 4.8). João, por sua vez, explica: “Todo aquele que tem essa esperança [de se tornar parecido com Cristo] purifica-se a si mesmo, assim como Cristo é puro” (1Jo 3.3).

da língua inglesa. Escrita por volta de 1606, Macbeth é a mais poética das grandes tragédias de Shakespeare. À época, com a morte da rainha Elizabeth, em 1603, a produção literária do autor inglês revela mais pessimismo que otimismo.

avi não foi a única pessoa a clamar: “Lavame!” (Sl 51.2). Antes e depois dele, na história bíblica e na história eclesiástica, muitos têm dobrado os joelhos e feito a mesma súplica, tanto pessoal como representativa. O jornal católico O Lutador, em agosto de 2011, publicou um belo texto escrito pelo frei Patrício Alessandro Sciadini, de 64 anos, frade carmelita nascido na Itália, missionário no Brasil, conhecido como pregador de retiros espirituais e tradutor de algumas obras clássicas de espiritualidade. Embora use a primeira pessoa do singular, Sciadini certamente não está se referindo apenas a sua própria sujeira. Trata-se antes de uma confissão representativa que todos deveríamos assinar. A palavra sujo aparece várias vezes, como se pode ver em seguida: Toda Quinta-Feira Santa, sintome como sacerdote pequeno-grande, sujo, um pouco traidor e medroso como os apóstolos no Cenáculo. Sinto-me sujo por fora e por dentro. Tenho caminhado pelas estradas do mundo e tenho me deixado contaminar por tanta sujeira; pela sujeira do relativismo teológico e moral. Sou sujo porque tenho fugido da cruz e fingido amá-la. Estou sujo pelos meus pecados e pelos pecados dos outros, por todas as vezes que não tenho dado bom exemplo e não tenho falado a verdade por medo dos outros; tenho mimetizado e dulcificado o evangelho de Jesus para não perder amigos e amigas.

Tenho o coração sujo porque não sei amar, ou amo fazendo particularidades e separando a humanidade em bons e maus, deixando de lado tantos irmãos e irmãs que vivem ao meu redor e que são, sem dúvida, melhores do que eu. O coração está sujo porque apegado às coisas da terra, e não sei olhar para o céu. Senhor, sinto-me sujo. É por isso que em cada Quinta-Feira Santa quero que tu me laves, não os pés, mas todo o corpo, a alma, o coração, para que possa sentar-me na Ceia e ser digno de comer do teu corpo e beber do teu sangue. Sei que voltarei a sujar a minha vida, mas sei também que a tua misericórdia me chamará de novo para ser purificado. Não há como duvidar, Senhor, que todo pecado é traição do teu amor, mas que os pecados dos teus ministros sacerdotes, bispos de tua Igreja, e mesmo do papa, por mínimos que sejam, são sempre grandes porque todos os olhos do povo peregrino, nômade, sofrido nas noites escuras, fixam-se em nós, procurando em nós o rosto de Cristo. Que te posso dizer, Senhor? Sou um sacerdote sujo: lava-me, purificame e torna-me capaz de derramar sobre os outros, pelo sacramento da confissão, o teu sangue que lava e dá nova vida a todos os pecadores. Deixa, Senhor, que eu desça de meu pedestal e imite a ti, não só uma vez, no rito de Quinta-Feira Santa, no lava-pés, mas todos os dias eu saiba me cingir de toalhas e lavar os pés dos outros e enxugá-los! Fonte: O Lutador, 11-20 ago. 2011, p. 13.

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de todo pecado” (1Jo 1.7). Talvez o mais veemente seja “Alvo mais que a neve”: Seja bendito o Cordeiro Que na cruz por nós padeceu; Seja bendito o seu sangue Que por nós, pecadores, verteu. Eis que no sangue lavados E tendo puro o coração, Os pecadores remidos Por Jesus têm com Deus comunhão

Perdão e purificação nos hinos que a igreja canta

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ários hinos, quase todos compostos no final do século 19 e cantados por muitos anos nas igrejas evangélicas brasileiras, fazem alusão à culpa e à mancha e imploram, por causa delas, perdão e purificação. Entre aqueles que enfrentam o problema da mancha, destacam-se as seguintes estrofes: Vem me lavar dos vis pecados meus Conforme prometeste, meu bom Deus. Faze-me arder e consumir de amor, Pois quero te magnificar. A minha alma purifica Em teu sangue remidor; Faze que, leal e humilde, Eu te sirva, meu Senhor. Minha mancha tão impura Tu bem podes retirar; E deixar em ti segura A minha alma descansar. A minha alma está manchada De pecado e corrupção, Pois em mim não há justiça Santidade ou retidão. 28

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Sim, pecador, a suplicar perdão, Embora não mereça o teu favor; Mas dá-me, peço, a purificação! Tem compaixão de mim, sou pecador. A mim tu podes perdoar, De toda mancha me lavar; Vem dar-me um novo coração, Ó Deus de amor e compaixão. Mas o sangue precioso Que na cruz o Redentor Derramou, tão generoso, Teu poder expiador: Purifica, purifica O mais ímpio pecador.

Outro hino que clama por purificação acaba de ser traduzido e musicado por João Wilson Faustini. A letra original é de Sinésio de Cirene (c. 430 d.C.). A primeira estrofe diz: De mim te lembres, Senhor Vem me purificar Das vis paixões ao meu redor Minha alma vem lavar.

Além das declarações melancólicas (e saudáveis) das manchas deixadas pelo pecado, alguns hinos proclamam a certeza de que “o sangue de Jesus nos purifica

Alvo mais que a neve, Alvo mais que a neve! Sim, nesse sangue lavado Mais alvo que a neve eu estou. Quão espinhosa a coroa Que Jesus por nós suportou! Oh! Quão profundas as chagas Que nos provam o quanto ele amou! Eis nessas chagas pureza Para o maior pecador, A quem mais alvo que a neve O teu sangue transforma, Senhor. Se as faltas nós confessarmos E seguirmos na tua luz, Tu não somente perdoas; Purificas também, ó Jesus! Lavas de todo pecado, Que maravilha de amor! Pois que mais alvo que a neve O teu sangue nos torna, Senhor.

A nova hinologia geralmente é mais triunfante do que confessante e suplicante. Os cânticos de hoje focalizam pouco a culpa e a mancha e, como consequência, não se pede perdão e purificação como outrora. Uma das exceções é o cântico “Purificação”, de Rubem Amorese. Em um trecho pede-se tanto o perdão como a purificação: Chego à tua casa sem saber Se hás de aceitar meu bem-querer, Pois, de conflitos e pecados, Meu cantar Macularia teu altar. Ai, meu Senhor! Faze meu louvor Purificar-se em teu altar, Em teu altar. Separa a dor Da acusação, Liberta-me com teu perdão, Com teu perdão; Liberta a minha adoração, Adoração. Fontes: Novo Cântico e Cantos da Fé Cristã


Culpa pecaminosa

Glenda Otero

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epois do perdão de Deus, o pecador não precisa mais sentir-se culpado do pecado confessado, nem precisa confessar outra vez o mesmo pecado. Nova confissão e novo perdão serão necessários se ele cometer outra vez aquele pecado ou outro qualquer. Deus não brinca com o pecador. Se este faz, de fato, a parte que lhe cabe (a confissão), Deus certamente faz a parte dele (conceder o perdão). Essa é uma norma estabelecida e absolutamente segura. É preciso haver certeza a respeito disso. Trata-se de uma promessa feita pelo Deus que “não pode mentir” (Tt 1.2): “Se confessarmos os nossos pecados, ele [Deus] é fiel e justo para perdoar os nossos pecados...” (1Jo 1.9). A comprovação da eficácia do perdão depende muito mais da palavra de Deus do que de emoções. A sensação de perdão virá a seu tempo, mas não é o carro-chefe. É a consequência e não a prova do perdão. Na parábola do fariseu e do publicano, o primeiro não confessou coisa alguma, mas o segundo, batendo no próprio peito, fez a mais curta confissão da Bíblia: “Ó Deus, tenha misericórdia de mim, um pecador”. Jesus explicou que o publicano, e não o fariseu, voltou para casa sem culpa e em paz com Deus. Ele foi perdoado (ou absolvido) e tornado justo (Lc 18.13-14).

O único pecado que precisa ser confessado repetidas vezes é o pecado latente, pois ele nunca desaparece neste corpo e neste mundo. Por estranho que pareça, não é o pecado mais lembrado nem o mais reconhecido. Esse pecado, para ser confessado, é o que mais requer humildade. Confessa-se não o pecado cometido, mas o desejado — um problema complexo, enraizado e generalizado. À vista de tudo isso, a culpa cancelada pela misericórdia de Deus que continua a amargurar e desgastar o pecador perdoado é um desperdício, uma insensatez, uma ingratidão, uma perda de tempo. Na verdade, o perdão não vivido é uma culpa pecaminosa.

Roupas brancas em vez de folhas de figueira

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intomaticamente, logo após o primeiro pecado cometido na face da terra e na história humana, Adão e Eva perceberam-se nus e “foram então juntar folhas de figueira para cobrir-se” (Gn 3.7). Essa significativa passagem bíblica narra a primeira tentativa

inadequada de resolver o problema do pecado. É curioso e edificante perceber que tanto o primeiro como o último livros da Bíblia mencionam a desagradável sensação de nudez gerada pelo pecado. Mais interessante ainda é que em

Gênesis fala-se em tangas feitas com folhas de figueira e em Apocalipse, em roupas brancas lavadas no sangue do Cordeiro (Ap 7.14). A providência humana não dá certo, mas a providência divina resolve o complicado problema da culpa e da mancha. Janeiro-Fevereiro, 2012

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Culpa patológica O incômodo que nos acompanha Ageu Heringer Lisboa

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psicanálise e todo romancista sabem e trabalham com o pressuposto de que o mal está entranhado no ser humano e que cumpre a todos a tarefa de domá-lo. Trata-se de um caldeirão energético de que o processo civilizatório busca dar conta, subjugando a besta-fera que nos espreita de dentro. Uma associação entre pecado, doença e impureza esteve presente em praticamente todas as expressões religiosas. Entre os judeus, temos as prescrições de purificação no livro de Levítico e em outras passagens. Em algumas religiões há processos de santificação que passam por autoflagelação e penitências, as quais funcionam como catarse na busca de alívio da consciência pela mortificação, na tentativa desesperada de acertar-se com o mundo espiritual.1 Estas manifestações demonstram o quanto as representações do sagrado vinculadas aos afetos da alma estão inscritas no psiquismo humano. Nesse sentido, é significativo o drama da vida de Cristo, apresentado como o Cordeiro do sacrifício expiatório e substitutivo. No que diz respeito às culpas do dia a dia, existem as reais e as imaginárias, as fabricadas e a neurótica. Contudo, há também esperança para quem sofre de culpabilidade patológica. Algumas pessoas, em uma conversação rotineira, pedem desculpas por qualquer motivo, seja por tossir ou por escorregar da cadeira. Este cacoete linguístico indica um cuidado constante para não errar e uma tentativa de acertar ou agradar sempre. Quando me deparo com pessoas assim, que pedem des-culpas a todo tempo, digo-lhes que não têm dez, nem nove, nem uma culpa; decifrado o jogo linguístico, elas costumam sorrir e se desarmam. Com alguma ajuda poderão se sentir mais livres para desfrutar da existência sem medo, que é o que Deus deseja para todos. Por um lado, há pessoas dominadas pela escrupulosidade e obsessividade constrangedoras e limitantes. Não querem incomodar, nem errar, e filtram tudo. Sentem-se erradas sempre e pedem desculpas até por existir. São inseguras, possuídas por um senso moral rígido e alimentadas por noções inadequadas a respeito de si mesmas. Descobre-se nelas, com frequência, um histórico de fortes cobranças e moralismo nas relações 30

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familiares vindo de pais e mães castradores, pregações acusadoras ou outras ameaças. Essas pessoas aprenderam a desconfiar de si mesmas, a sofrer e a não desfrutar da vida. Incorporaram noções exageradas de culpa e impureza. Não sabem como descansar na graça de Deus, que está disposto a acolhê-las, pois carregam um enorme fardo de culpa — neurótica, aprendida, que complica a situação. Um gracioso processo de aconselhamento ou psicoterapia pode quebrar as distorções, promover uma reordenação cognitiva (“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”) e libertá-las emocional e espiritualmente. Por outro lado, há pessoas que dificilmente admitem estar erradas. Sofrem quando têm que pedir desculpas. Pedir perdão é ainda mais difícil; só mesmo quando pressionadas admitem a culpa, contorcendo-se e tentando se desculpar. Ser “durão” é algo encorajado em certas culturas. Na hedonista cultura brasileira, por exemplo, celebra-se uma glamourização do transgressivo, estimula-se a esperteza e a busca de vantagens em detrimento do outro. “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, é o que se canta. Os excessos deste processo cultural podem ser percebidos tanto nos territórios dominados pelos traficantes e policiais, como na corrupção política que dirige o país. Pena que estes poderosos não se sentem culpados! Como fazem falta pessoas como João Batista para enfrentar tamanha insensibilidade ética. Um ser humano bem constituído é capaz de sentir e respeitar limites próprios e do outro. Só é possível o laço social quando se tem a lei sobre todos. No plano individual, carregamos ou somos ativados pelo “supereu”, ou superego, nosso dinamismo ético-espiritual, a consciência trabalhada pela lei e adquirida no processo de educação e formação de caráter, o que nos faz humanos maduros, responsáveis, capazes de sofrimento e fraternidade. Quando ele falha, temos difíceis processos de reeducação e socialização pela frente. O caso extremo da psicopatologia é a psicopatia. O psicopata é o narcisista frio, alguém incapaz de sentir culpa ou remorso. O contrário, então, a capacidade de sofrer com a culpa, é sinal de vitalidade do equipamento psíquico, da existência de sensor moral e vida espiritual, de humanidade preservada.


Podemos ser controlados por culpas neuróticas, falsas e Culpa e religião cristã culturais. Algumas delas vêm por meio da imposição legalista Há uma longa história de equívocos nas comunidades cristãs, da cobrança de dízimos nas igrejas, do não cumprimento do que desde os primeiros séculos possuíam visões ascéticas extempo de jejum, de não ter orado ou lido a Bíblia suficientremas, com uma série de interdições controlando a vida das temente, de não ter participado de alguma campanha. Jesus pessoas. O corpo e a sexualidade foram os grandes vilões. Se lidava com as pessoas de modo diferente. Aquele que estava rabis e sacerdotes judeus criaram mais de 600 artigos compleoprimido encontrava acolhida, graça, proteção e respeito à sua mentares ao Decálogo (e vemos como Jesus desmontou esta individualidade. falsa espiritualidade que complicava a vida das pessoas), no Há a autêntica culpa, sabida ou oculta, que é a transgressão meio cristão passou-se por processo semelhante em nome de objetiva e real do mandamento do doutrinas e interesses de sistemas reliamor. Neste caso, o Espírito Santo giosos. Alguns líderes são criadores e incomoda, esclarece, induz ao arrevítimas de imagens doentias de Deus, pendimento e perdoa (Sl 19.12-13). de um deus pequeno, complexado, Somos perdoados e libertos quando vingativo, narcisista, semelhante a um Felizmente, para submetemos nossa consciência ao guarda rodoviário sem misericórdia, qualquer pessoa Espírito de Deus e clamamos por que fica à espreita da menor falta para perdão e graça àquele que sonda as flagrar o faltoso e puni-lo. Assim se faz — mesmo as mais mentes e os corações. Pode-se orar um deus diabólico, doentio. afetadas por má assim: “Tu, Senhor, que sonda meu Este tipo de mensagem sobre Deus educação, violência interior e sabe o que há em mim, causa muito sofrimento, gerando nas torna-me consciente de minhas pessoas sentimentos persecutórios e psíquica, bullying faltas e guia-me pelo caminho da sensação de impotência e ausência espiritual — é possível retidão”. de perdão. Pinta-se um deus instável, Para quem, mesmo sendo dediarbitrário, não confiável, como as diuma cura substancial cado à oração, ainda se sente ameavindades pagãs, que precisam ser aplados transtornos e a çado pelas lembranças de pecados, cadas com sacrifícios. Assim, de forma retomada de uma vida um conselho: busque ajuda de um maldosa, sádica e até criminosa temos bom profissional ou de pessoas uma indústria religiosa do medo, que digna alegres e maduras na fé, que o ajuexplora a fraqueza de pessoas incultas darão a desativar os mecanismos de e incautas. Na periferia de São Paulo, sabotagem adquiridos. Sua mente por exemplo, veem-se cristãos paupérsofre devido à má digestão de experimos e angustiados devido a cobranriências emocionais familiares, ao desconhecimento das boas ças de dízimos. Nas emissoras de rádio e televisão cultiva-se novas relatadas nas Escrituras, ao estresse e à desordem bioo medo: a pessoa tida como indigna de Deus pode perder a química. Um psicoterapeuta ou psiquiatra poderá diagnosticar salvação, ser tratada como herege e excluída da comunidade, o problema, que tem reparação medicamentosa. É o caso de dependendo do julgamento de terceiros. Isso aprofunda as muitos que sofrem por sentir que pecaram contra o Espírito fissuras psíquicas pré-existentes e adoece a relação com Deus. Santo. Tanto os sentimentos quanto as habilidades funcionais Felizmente, para qualquer pessoa — mesmo as mais são ensinados pelos pais e demais instâncias formadoras. Aos afetadas por má educação, violência psíquica, bullying espiconteúdos que se quer inculcar na criança e no adolescente ritual — é possível uma cura substancial dos transtornos e a agrega-se a carga emocional que acompanha o processo de retomada de uma vida digna. Pode-se ouvir, no íntimo, a voz socialização e educação. Este é um fenômeno universal e apliterna do Pai, que declara um amor incondicional, como no ca-se a todos os âmbitos da vida, notadamente em questões batismo de Jesus: “Tu és o meu filho e me dás muita alegria!” de orientação religiosa e de ordem sexual. Está presente na (Mc 1.11). Por fim, podemos entrar no paraíso, desde agora, família, na igreja, na sinagoga, na mesquita ou no terreiro de ao contemplarmos Jesus na cruz, pois ele mesmo nos sussurra candomblé e é elemento decisivo para a saúde mental das futuras gerações. Se a instrução vem pela via amorosa, afirmativa e nos garante isto (Lc 23.42-43). Esta é uma realidade para o presente, instaurada pelo Jesus que diz: “Vinde a mim os que e paciente, encontramos pessoas emocionalmente saudáveis, estão cansados e oprimidos e tenham descanso”; “Tudo está com raciocínio mais tranquilo. Pais e mães que funcionam consumado”. Desde a cruz, estamos livres de toda maldição e como “nutridores emocionais” espelham uma imagem de Deus amorosa, forte, justa, encorajadora. No entanto, se Deus poder (Is 53). “Vinde, benditos do meu Pai!” é expresso com rigidez, criticismo, suspeitas e castigos, enconNota 1. Mircea Eliade é autor clássico no tema. tramos pessoas inseguras, sofridas e com dificuldade de crer na graça incondicional. Assim, a construção da identidade segura, Ageu Heringer Lisboa, psicólogo clínico, é mestre em ciências da religião e membro amorosa, ética tem a ver com os padrões desenvolvidos. fundador do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. ageuhl@gmail.com Janeiro-Fevereiro, 2012

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CAMINHO DO CORA çãO

Ricardo Barbosa

Só a Deus glória

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urante os domingos do mês de outubro de 2011 meditamos sobre os cinco solas da Reforma (Sola Scriptura, Solus Christus, Sola gratia, Sola fide e Soli Deo gloria). Estas cinco declarações representam uma síntese do pensamento dos reformadores do século 16. As quatro primeiras têm uma definição objetiva. Já a quinta — Só a Deus glória — permanece para muitos cristãos como uma afirmação subjetiva. Os dicionários definem a palavra glória como: beleza, esplendor, honra, exaltação, grandeza, fama. O pôr do sol em Brasília, nos meses de setembro e outubro, é de uma beleza indescritível. Podemos chamar isto de glória. Receber nove medalhas olímpicas, das quais cinco são de ouro, e a nota máxima na ginástica olímpica, um feito inédito, deu à romena Nadia Comaneci em 1976 a glória de sair na capa da revista Times com os seguintes dizeres: “Ela é perfeita”. Porém, quando nos referimos à glória de Deus, o que ela significa? Para muitos cristãos, significa que qualquer mérito a eles atribuído deve ser redirecionado a Deus. Foi para a glória de Deus — dizem. Embora seja um gesto correto, permanece como uma compreensão bastante limitada do que significa a glória de Deus. Podemos dizer que ela significa a majestade, grandeza e beleza de Deus. É verdade, mas de que forma um conceito tão eloquente e majestoso pode ser compreendido de forma mais objetiva por nós? A glória de Deus não é um conceito abstrato, tampouco podemos limitá-la a algo que ofertamos a ele.

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Deus revela sua glória na beleza, harmonia e exuberância da sua perfeita e boa criação: “Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de sua mão” (Sl 19.1). Na criação perfeita de Deus encontramos todos os seus atributos, como poder, justiça, misericórdia, bondade, sabedoria. O salmista, em outro salmo, afirma: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e

A glória de Deus é o povo vivendo a nova criação e enchendo toda a terra com justiça, bondade, misericórdia e verdade de Deus as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste” (Sl 8.3-5). Homem e mulher criados à imagem e semelhança de Deus são a coroa da criação e expressam a glória dele. Sabemos que toda a natureza realiza aquilo para o qual foi criada. As aves do céu, os animais do campo, as estrelas no firmamento cumprem o propósito da criação e declaram a glória de Deus. Porém, o ser humano não vive por instintos como o restante da criação. A ele foi dada a vontade e a razão. Contudo, preferiu virar as

costas ao Criador, ao desobedecer os seus mandamentos. A palavra icabode aparece na Bíblia como um nome próprio e significa que a glória se foi. Descreve não apenas uma pessoa, mas um período sem brilho e sem beleza para o povo de Deus. A glória de Deus se desvanece quando seu povo já não anda segundo seus propósitos. O princípio que determina toda a ação de Deus é que ele nos criou para sua glória (Is 43.7). É por meio do seu povo que a terra se encherá do conhecimento e da glória de Deus. Por meio dele o louvor de Deus será proclamado (Is 43.21). Em resposta à sua redenção, o povo de Deus (Israel) se juntará aos céus, vales, montanhas e florestas (toda a criação) para mostrar a glória de Deus entre as nações (Is 44.23). Como podemos nos alinhar a este propósito divino? No Novo Testamento vemos a glória de Deus revelada em seu Filho unigênito. Ele é o “resplendor da glória de Deus” (Hb 1.3). A glória do primeiro Adão se foi — icabode. A glória do segundo Adão foi manifestada na cruz. Jesus, pela sua obediência e pela oferta de sua vida na cruz do Calvário pode, agora, conduzir “muitos filhos à glória” (Hb 2.9-10). Viver para a glória de Deus não se limita a dedicar uma música ou algumas horas da semana para uma atividade missionária. A glória de Deus é o povo de Deus vivendo a nova criação e enchendo toda a terra com justiça, bondade, misericórdia e verdade de Deus. Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.


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LI NHA DE F R E N T E

Bráulia Ribeiro

Aprendendo a desaprender

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omo estou escrevendo um livro sobre cultura brasileira, volto ao assunto cultura. Difícil abandoná-lo neste momento em que o evangelho no Brasil requer mudanças radicais para continuar crescendo. Sinto uma espécie de estagnação no ar. Precisamos andar para frente. Muitos dizem que necessitamos de mais teologia. Concordo. Mais “teo” sempre faz bem: teodiálogos, teoteorias, teosoluções. O que não precisamos é de teopessoas posando de Deus e dizendo que este ou aquele movimento pertence ou não a Deus. Precisamos aprender a nos consertar sem nos jogar fora. “Cobeligerância” é o que falta a muitos grupos cristãos: lutarmos juntos pelas mesmas causas, ainda que sendo diferentes, e tornar o Brasil melhor a partir da unidade. Infelizmente muitos querem que uma espécie de peneira divina retire do meio dos “puros” os que se deixaram corromper, para que o evangelho continue salgando. A pressuposição de que salgamos pela pureza doutrinária é falsa. Salgamos porque fomos perdoados, porque ele salga. Não estou tentando justificar pecados ou teorias anticristo com isto. Porém, creio que ele é. Ele se encarrega de nos encher de graça e trabalha apesar de nós. É nisto que encontro minha paz e minha paixão pela unidade funcional dos cristãos na tarefa de transformação do país.

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Dos teóricos que li, o que mais me ajuda neste momento é Lingenfelter. A pressuposição missiológica anterior a ele era de que a cultura humana é um veículo neutro. Em seu livro Transforming Culture — a challenge for christian mission, Lingenfelter propõe que as culturas são intrinsecamente ímpias. Ninguém pode servir ao reino se não se tornar um emigrante, sem caminhar para fora de sua identidade e em direção à cultura do reino.

Trabalhei a partir da pressuposição de Kraft da neutralidade de culturas indígenas extremamente cruéis. A realidade ao meu redor me feria, mas minha missiologia me instruía a me conformar. Fomos despertados no ano 2000 pelos próprios índios, quando eles mesmos gritaram: “Não queremos mais ser assim, queremos mudar”. A partir de então os males da cultura, bem como as pessoas que eram presas por eles, ficaram evidentes pra nós. O ser humano é sempre o mesmo em qualquer cultura que seja: pecador, humano e divino ao mesmo tempo. É bonito, pois carrega em si a semente do

divino, e feio, porque a corrompeu. As culturas são lindas e horríveis — nunca neutras. Não podemos engaiolar a imago Dei na “prisão da desobediência”, como Ligenfelter chama a cultura. No que diz respeito ao Brasil de hoje, há um caminho claro para a igreja. Um caminho difícil, de debates e busca, mas um caminho possível. É o caminho proposto por Lingenfelter, no qual aprendemos a desaprender. Desaprendemos o brasileirismo escravizante, o “malazartismo”, o “macunaimismo”, o pessimismo de Drummond, a promiscuidade de Vinícius (o amor não é eterno enquanto dura, é eterno porque escolhemos que ele seja), desaprendemos a ser família à moda de Nelson Rodrigues, ou a ser corruptos. Aprendemos a ser brasileiros sem ser brasileiros. Como uma lagarta que sai do casulo, saímos da casca velha e bolorenta para nos tornarmos quem devemos ser: brasileiros do reino, para os quais a brasilidade não é a principal identidade e referência, mas a Palavra de Deus. A brasilidade é um dom que levaremos ao trono, devidamente domesticado pelos valores daquele que nos amou primeiro. A igreja morta fala a mesma língua do mundo a seu redor. Temos que falar a língua do reino. Estou feliz enquanto me “desbrasileiro”. Feliz “desbrasileiramento” para você também. Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical. braulia_ribeiro@yahoo.com


Marina Silva

M EIO

AMBIE NTE E fé cristã

Crise civilizatória

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stive em Lisboa em outubro de 2011, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, para participar do ciclo de palestras chamado “Ambiente. Por que ler os clássicos?”. Coube-me comentar o texto Nosso futuro comum, também chamado Relatório Brundtland, encomendado pela ONU à ex-primeira ministra da Noruega, Gro Brundtland, em 1984. O estudo, concluído em 1987, inspirou vários desdobramentos na governança ambiental global, além de eventos como a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que conhecemos também como Cúpula da Terra ou Rio 92. Passados 24 anos, e às vésperas da Conferência Rio + 20, que será realizada em junho de 2012, vejo, com certa tristeza, que foram muitos os descaminhos. Os alertas e as recomendações feitos no relatório tiveram efeitos, mas não suficientes para que, na primeira década do século seguinte à publicação, estivéssemos em situação menos complicada. Temos um mundo convulso em crises superpostas e uma avaliação equivocada na hierarquização dessas crises. A crise econômica arrasta o sistema financeiro mundial para o colapso. A crise social nos exibe rostos magros de 2 bilhões de pessoas com fome. A crise política, nascida do descolamento entre a representação democrática dos povos e a atuação parlamentar de características

corporativistas, denuncia que valores e significados estão sendo perigosamente postos de lado na condução dos interesses públicos. E a crise ambiental, resultante de um modelo de desenvolvimento em que o crescimento econômico não quer ter limites e espolia a base natural de todos os ecossistemas da terra, pode levar à esterilização do planeta pelo aquecimento climático a uma temperatura incompatível com a existência da vida.

É importante propiciar o encontro do homem com Deus, consigo mesmo, com os outros homens e com a criação

A humanidade se dedica alegremente ao consumismo, às preocupações de curto prazo, sem pensar nas condições que as futuras gerações terão para viver. Isso nos leva a identificar outra crise: a da utopia, do sonho de solidariedade, de fraternidade, do planeta pleno de vida. Em Genesis 1.22 o ato criativo de Deus significa um planeta cheio de vida na terra, nas águas e no ar, com plantas e animais, pássaros e peixes, e o ser humano por fiel guardião de tudo isso. No

ano de 2012 da era cristã, essa vida está também ameaçada em todos os quadrantes da terra. Nossos processos institucionais e políticos não zelam pela democracia. Nossos processos produtivos desconhecem a inteligência da engenharia sistêmica de Deus e exploram os bens materiais do planeta até seu esgotamento, gerando poluição e outras disfuncionalidades nos ecossistemas. O fruto do trabalho de nossas mãos no campo visa o lucro, é mal distribuído e não chega às bocas famintas nos países pobres. Nossa infraestrutura cara e mal planejada é ambientalmente inadequada, além de injustiçar os povos que sofrem os impactos sem ter os benefícios. Nosso gigantesco sistema financeiro privatiza os lucros, mas impõe à humanidade os prejuízos de suas operações, resultando em perda de milhões de empregos. As múltiplas crises que constituem a crise civilizatória que vivenciamos exigem de homens e mulheres sentido de urgência e mobilização para o imperativo ético da mudança de atitude que precisaremos ter face à destruição da vida abundante com que Deus agraciou o planeta. Para isso é importante propiciar o necessário encontro entre política e ética, economia e ecologia e, para os que creem no propósito restaurador da obra de Deus, do homem com Deus, consigo mesmo, com os outros homens e com a criação. Marina Silva é professora de história e ex-senadora pelo PV-AC.

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C a s a m ento

e fa m í l i a

Carlos “Catito” e Dagmar Grzybowski

Moi Cody

Fui enganado!

E

ssa é a queixa de muitos casais que vêm ao aconselhamento. Dizem que, após a cerimônia do casamento, o cônjuge mudou e que se sentem enganados pelo que o outro prometia e representava ser durante o namoro. O que ocorre, na verdade, é que a primeira fase do relacionamento conjugal está acabando. Todo relacionamento é dinâmico e passa por um processo de desenvolvimento. Ao contrário da ideia que muitas vezes é passada nas cerimônias civis, o casamento não é algo estático em que se entra e nada mais é preciso fazer — “o santo estado do matrimônio”, como afirmam os juízes de paz. O dinamismo de um casamento pode ser comparado ao processo de crescimento de um organismo vivo, que passa por várias etapas — infância, adolescência, juventude e maturidade. A passagem de uma etapa a outra neste processo é sempre um período de desorganização e reorganização, pois se abre mão de algo que se domina para adentrar em um campo de que não se tem nenhum domínio — a etapa seguinte. A primeira etapa no relacionamento conjugal é o romantismo. Ela se inicia quando duas pessoas se conhecem e se apaixonam. Este sentimento misterioso e inexplicável (pois ninguém sabe exatamente por que se apaixona por uma pessoa específica e não pelas outras tantas disponíveis) leva a um período de muitos sonhos e ilusões. Acredita-

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se que se encontrou alguém que o fará enaltecimentos. Por exemplo, um afirma: feliz — e, afinal, não é isso que sempre “Querido, como você é atencioso”; o buscamos? outro então diz: “Ah, isso não é nada se Nesta busca do sonho de ser feliz há comparado ao seu jeito carinhoso!”. muitas promessas irrealizáveis, tais como: Gastam-se horas conversando sobre “Eu te darei o céu, meu bem, e o meu assuntos triviais, pois na verdade o que amor também!”. Mesmo sendo irrealizá- importa não é o conteúdo das conversas, veis, os apaixonados dão crédito a elas. e sim o fato de estar junto com a pessoa Acreditam que jamais terão desentendipela qual se está apaixonado. mentos ou, se os tiverem, tudo será facilNossa sociedade supervaloriza o mente superado pela paixão. Também há romantismo e, por isso, muitas pessoas uma idealização acreditam que no do outro e de suas momento em que ele O dinamismo de um casamento virtudes, chegannão estiver mais prepode ser comparado ao processo do-se a “inventar” sente não valerá mais de crescimento de um organismo certos aspectos da a pena permanecer vivo, que passa por várias etapas personalidade dele juntos. Entendem que não existem. que “acabou o amor”, E não há arguquando na realidade mentação com quem está apaixonado. o que acabou foi a paixão estruturada soSe você disser a uma jovem para tomar bre um romantismo de sonhos e ilusões. cuidado com certo rapaz porque já é a Apenas o primeiro passo foi dado no caquinta vez que ele sai da penitenciária minho da descoberta do verdadeiro amor, por tráfico de drogas, ela alegará que o pois este “jamais acaba” (1Co 13.8). “mundo não o entende”, mas que quanNas próximas edições falaremos sobre do eles se casarem, tudo vai mudar. as fases subsequentes — são sete ao todo Esta idealização tem, no fundo, uma — deste organismo vivo e mutante que motivação egoísta, pois afinal “eu” mere- é o relacionamento conjugal, sobre suas ço o melhor e quanto mais eu destacar as características principais e sobre como virtudes da pessoa que escolhi — ainda estruturar um relacionamento sobre um que algumas delas não existam — mais fundamento mais sólido que o mero estarei valorizando a mim mesmo neste romantismo — um amor baseado em processo de escolha. sentimentos, mas também em atitudes e Como a idealização é mútua, ações! desenvolve-se entre o casal o que Carlos “Catito” e Dagmar são casados, ambos psicólogos e chamamos de uma relação simbiótica, terapeutas de casais e de família. Catito é autor de Como ou seja, quanto mais um enaltece se Livrar de um Mau Casamento e Macho e Fêmea os Criou, entre outros. o outro, mais o outro retribui com


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leitor pergunta

Ed René Kivitz

Envie sua pergunta para: edrenekivitz@ultimato.com.br

graça

CONDENAÇÃO

Vivo um conflito a respeito da graça de Deus. Desde que me libertei dos legalismos, me senti menos culpado e mais livre, mas também sem forças para lutar contra o pecado e sem muita vontade de querer ser bom. Parece que o evangelho de regras, que ameaça e exige fidelidade a Deus para conquistar bênçãos, funciona mais. O que o senhor acha disso? — Paulo Roberto Paulo Roberto, não existe evangelho senão o da graça de Deus. Apenas a fé cristã conhece o conceito de graça: a disposição autodeterminada de Deus em amar e se relacionar com suas criaturas independentemente de seus méritos ou virtudes. A graça é a firmação de que Deus não faz barganhas e não pode ser manipulado para o bem (abençoar) ou para o mal (amaldiçoar). A graça implica necessariamente a superação de um relacionamento com Deus baseado em sacrifícios humanos, medo e culpa. A experiência da graça de Deus nos liberta da tirania da necessidade de fazer por merecer o amor de Deus. Porém, é um erro achar que o incondicional amor de Deus se destina apenas a nos livrar dos horrores do inferno pós-morte ou das maldições divinas ainda nesta vida. Viver sob a graça e o amor de Deus vai além da mera gestão de pecado e se concretiza em plenitude em uma vida dedicada a Deus: o amor de Cristo nos constrange a viver para ele (2Co 5.14-15). Pode ser que uma mensagem baseada em regras que definem os critérios para bênçãos e maldições seja mais eficaz em termos de controle de mentes e consciências, mas definitivamente não é o evangelho de Jesus Cristo. E porque não é o evangelho de Jesus Cristo, perpetua a escravidão, isto é, sustenta neuroses, mantém as pessoas infantilizadas e amedrontadas, oportuniza hipocrisias e abusa de consciências ignorantes e corações em sofrimento. O evangelho de Jesus Cristo é diferente: “Vocês conhecerão a verdade, e a verdade os libertará. E se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres” (Jo 8.32, 36).

Minhas colegas de faculdade levantaram um questionamento: “Se Deus me ama, e eu tenho a liberdade de escolher se quero servi-lo ou não, então por que seria destruída se escolhesse não servi-lo?”. O argumento é: “Religião é a crença de que existe um ser invisível que observa tudo o que fazemos. Ele tem uma lista de dez coisas que não se pode fazer e, caso façamos uma delas, ele nos manda para um lugar onde iremos queimar por toda a eternidade”. Como responder? — Carolina A definição de religião que você enviou é elementar e inclusive muito comum, embora absolutamente equivocada. Apenas pessoas que querem destruir a religião levantam esse tipo de questionamento. Reduzir Deus ou a experiência religiosa a uma questão moral é um simplismo. A pergunta correta não diz respeito ao que acontece comigo se eu desobedecer aos Dez Mandamentos (questão moral), mas ao que acontece comigo se eu pular do 37° andar, ou o que acontece se, para fugir da violência urbana, eu tentar viver nas profundezas do oceano (questão ontológica: da natureza do ser). Acreditar que Deus é um velhinho barbudo e melindroso não é muito diferente de acreditar em Papai Noel. Apenas mentes infantis, ou mal intencionadas, ou que lucram com isso, se interessam em reforçar esse tipo de crença. A consciência de que não existe vida autônoma em relação a Deus não é apenas cristã. Os poetas gregos também intuíram o que a Bíblia Sagrada afirma: em Deus “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Isso significa que o nome do jogo não é “condenação ao inferno por causa de desobediência moral”. O pecado, portanto, não é uma questão de Dez Mandamentos, mas se assemelha muito mais à pretensão do braço de continuar vivo depois de amputar-se do corpo, ou à do ventilador que acredita que vai continuar funcionando depois de desplugar-se da tomada.

Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia www.edrenekivitz.com

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N OVOS

ACORdES

Carlinhos Veiga

Coração em paz Natã Gonçalves

O som de Minas soa diferente quando feito pelos próprios mineiros. Tem um quê da paz, do frescor das montanhas e do sentimento deste povo acolhedor. Assim é a música de Natã Gonçalves. Para esse CD ele reuniu músicos de primeira linha, como Enéias Xavier (baixo), Lincoln Cheib (bateria), Beto Lopes (violão), César Santos (guitarra e violão), Mauro Rodrigues (flauta transversal), entre outros. Quem conhece Minas certamente conhece esses nomes. Dirigidos por Enéias e César eles desenharam os arranjos para as singelas canções de Natã, que variam de músicas de adoração a hinos contemporâneos. O projeto gráfico, limpo e harmônico, foi criado por Rike Arte Gráfica. Para conhecer esse som, visite www.myspace. com/natanoficial.

Cangaço pós-moderno Sérgio Boi

Um CD que mistura canções de Chico Buarque, Expresso Luz, Luiz Gonzaga, Janires; com doses rítmicas de xote e reggae, baião e rock, além de rap, côco e embolada; soma-se ainda a sonoridade de guitarras distorcidas e alfaias. Isso é um pouco do que vem a ser o Cangaço pósmoderno. Sérgio Boi é um artista pernambucano multimídia. Transitou profissionalmente pela fotografia, cinema, teatro e música. Agora reúne toda essa rica experiência em apresentações performáticas, a um só tempo cômicas e proféticas. O CD não consegue traduzir toda a riqueza criativa, mas aponta para o que o Cangaço pós-moderno propõe. O trabalho vinha sendo produzido há pelo menos 10 anos, porém só agora é lançado no mercado. Os interessados em conhecê-lo devem escrever para boi@ig.com.br.

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Dalit’s livres

Missão Desafio Os dalit’s, ou “intocáveis”, são os últimos do sistema de castas do hinduísmo. Vivem uma subvida, como escravos. As crianças são vendidas para a exploração sexual ou braçal, não tendo outra opção de vida. A Missão Desafio conheceu essa realidade em 2008 e desde então trabalha na construção da Escola de Resgate de Crianças Dalit’s, na cidade de Ghataprabha, na Índia. O CD é o segundo esforço da missão para o levantamento de recursos para o projeto. O idealizador e produtor musical do Dalit’s Livres é o pastor Fernando Martins, que contou com a colaboração de artistas renomados, como Hélio Delmiro, João Alexandre, Isabêh, Paulo César Baruk, Tiago Grulha, Gerson Ortega, Stênio Marcius, entre outros. No repertório há canções variadas com o predomínio dos estilos soul e black music. Contatos: 11 2283-2939.

Aovivo@somdocéu Gerson Borges

Na Páscoa de 2011, Gerson Borges comemorou 20 anos de ministério musical com a gravação ao vivo de seu mais novo CD. A comemoração aconteceu no Som do Céu, evento realizado pela Mocidade Para Cristo, em Belo Horizonte. No repertório estão músicas de seus CDs anteriores e algumas inéditas, como a belíssima “Alhambra”, em parceria com Gladir Cabral, uma das mais lindas canções dos últimos tempos. Difícil ouvir o CD sem se emocionar. Acredito que estamos vivendo um dos momentos mais ricos da música popular brasileira cristã, e o CD de Gerson corrobora essa tese. A produção foi do próprio Gerson e a co-produção, de Márcio Teixeira. Participações de Carol Gualberto, Tiago Vianna, Fernando Merlino, Telo Borges, Dennis Campos, Elly Aguiar, Alann Marino, entre outros. Mais informações pelo site www.gersonborges.com.


DE

HOJE EM DIANTE...

Liz Valente

Não quero beber mais

J

á bebi muito. Já andei cambaleando demais. Já fui levado para casa por mãos amigas e inúmeras vezes por mãos desconhecidas. Já passei vergonha. Já tratei mal a minha esposa e meus filhos. Tenho envergonhado a minha família. Já fui despedido do emprego várias vezes. O mais grave é que prometi aos meus íntimos e a mim mesmo, uma quantidade enorme de vezes, não mais beber. Foram tantas as reincidências que ninguém mais acredita em mim. Sei que posso morrer por causa do álcool. Estou consciente de tudo, mas não me conserto, não consigo deixar de beber. Sou escravo da bebida. Apesar de tudo, a partir de hoje, não vou beber mais, não vou me embriagar,

não vou segurar na mão a latinha de cerveja ou a garrafa de vinho, não me deixarei enganar pelas sensações que uma taça de vinho provoca em mim. Não pretendo me consertar, mas ser consertado. Meus fracassos anteriores foram devidos à simplificação de algo complicado. Não confio mais na minha boa vontade, nem nas minhas decisões, nas minhas promessas, nos meus esforços. Desisti de mim. Resolvi colocar Deus nessa questão. Eu não posso me livrar, mas ele pode. Eu não tenho poder, mas ele tem. Eu não sei segurar as cordas, mas ele sabe. Aprendi a trocar a autoajuda pela ajuda dele. Antes, eu falava: “Tudo posso”; hoje, eu falo: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.13).

É com o auxílio de Deus que eu não quero beber nunca mais! O que me arrastou a esse ponto foi a pergunta que me fizeram e a resposta que me deram: “Quem tem o coração carregado de dor? De quem são as tristezas? Quem vive brigando e se queixando? De quem são os ferimentos desnecessários? Quem está sempre de olhos fechados? É o homem que passa horas e horas bebendo vinho” (Pv 23.29-30). Fui misteriosamente tocado pela Palavra e pelo Espírito. E é por isso que eu não quero mais beber. Com a ajuda dele, está decidido! Ao lado de todas as providências de ordem religiosa, procurarei também tratamento médico e me filiarei aos alcoólicos anônimos.

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Bruno Oliveira Tardin

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M ISSãO

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René Padilla

Boas novas aos pobres

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a edição anterior vimos que, segundo o testemunho dos Evangelhos Sinóticos resumido em Mateus 4.23 e 9.35, a missão terrena de Jesus teve como cenário preferencial a província da Galileia. Cabe agora perguntar-nos que implicações essa concentração na região periférica da nação judia de seu tempo tem para a missão da igreja. Em outras palavras, cabe perguntar-nos se, em algum sentido, a localização espacial da missão de Jesus Cristo provê o modelo para a localização espacial da missão da igreja, a comunidade que foi chamada a prolongar na história essa missão até a consumação dos séculos.

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De início, devemos esclarecer que a opção galileia de Jesus não significou de maneira alguma indiferença às necessidades dos que não se identificavam com as multidões que o seguiam na Galileia. Os Evangelhos incluem narrações de seus encontros com pessoas que ostentavam poder socioeconômico, político e, ou, religioso. É o caso dos cobradores de impostos (empregados do Império Romano), dos saduceus, dos fariseus e dos intérpretes da lei. Mais especificamente, temos o caso de Levi (Lc 5.27-31), de Simão (Lc 7.36-50), de Zaqueu (Lc 19.1-10), de Nicodemos (Jo 3.1-10), que raramente são

mencionados por nome. Estes casos, como também o do centurião romano em Cafarnaum (Lc 7.1-10) e o do jovem rico (Lc 18.18-23), dão base para afirmarmos que a opção galileia de Jesus não significava a exclusão total de um setor da sociedade. Era, na verdade, como dissemos anteriormente, a realização do propósito de Deus para o Messias, tal como se vislumbra no Antigo Testamento: o de estabelecer um reinado de paz e justiça, reconciliação e equidade. Como missão do reino de Deus inserida na história por Jesus Cristo, um dos fundamentos da missão da igreja até a consumação dos séculos é o que Jesus expressou em seu “manifesto”


programático na sinagoga de Nazaré da Orlando Costas tem razão quando Galileia. Nela afirmou o cumprimento, afirma: “Se, como vários livros do Novo em sua própria pessoa e obra, de Testamento ensinam, a evangelização Isaías 61.1-2: “O Espírito do Senhor se dirige em primeiro lugar aos pobres, está sobre mim, pelo que me ungiu aos despossuídos e aos oprimidos, e se para evangelizar os pobres; enviou-me eles são os que estão mais habilitados para proclamar libertação aos cativos a entender o significado do evangelho e restauração da vista aos cegos, para (ver Mt 11.25), então a Galilea, pôr em liberdade os oprimidos, e como símbolo da periferia, deve ser apregoar o ano aceitável do Senhor” entendida como princípio universal (Lc 4.18-19). em relação à teologia da O anúncio evangelização. Assim, A Galilea, como símbolo das boas novas a particularidade da às multidões periferia deve informar da periferia, deve ser empobrecidas todo e cada contexto de entendida como princípio da província da evangelização”. E Costas universal em relação à Galileia estava também tem razão ao teologia da evangelização no coração da julgar que, quando a missão de Jesus. evangelização começa Quando João nos setores populares — Batista mandou seus discípulos lhe os deserdados da terra —, demonstra perguntarem: “És tu aquele que estava com clareza que o evangelho de Jesus para vir [o Messias] ou havemos de Cristo é poder de Deus para restaurar esperar outro?”, sua resposta foi: “Ide e a totalidade da vida humana e abre anunciai a João o que vistes e ouvistes: caminhos para a liberdade, a justiça os cegos veem, os coxos andam, os e a paz. Em contraste, acrescenta leprosos são purificados, os surdos o autor, quando a evangelização ouvem, os mortos são ressuscitados, começa nos centros de poder, seus e aos pobres, anuncia-se-lhes o conteúdos geralmente acabam sendo evangelho. E bem-aventurado é aquele um acomodamento barato e fácil aos que não achar em mim motivo de interesses dos poderosos e dos ricos. tropeço” (Lc 7.22-23). O anúncio das Traduzido por Wagner Guimarães boas novas aos pobres, por palavra e C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e ação, evidenciava que ele era de fato o membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral? . Messias!

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Robinson Cavalcanti

Pedro Ignácio Loyola Frota

R EFLE XÃO

Conflito de símbolos e mandato cultural

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panorama religioso do mundo mudou profundamente nas últimas décadas, após o fim da Guerra Fria: de um lado o “mundo livre”, ou a civilização ocidental e cristã, e de outro os “inimigos” do império soviético — em um esquema maniqueísta. Há sinais de vitalidade religiosa em áreas do antigo regime marxista, bem como de declínio religioso em áreas da antiga “civilização ocidental”. Esta está cada vez mais ex-cristã, pós-cristã e anticristã. Há bolsões de repressão religiosa no que resta de países comunistas, mas o fato novo — e preocupante — é o florescimento de partidos e movimentos hinduístas, budistas e islâmicos extremistas advogando o fim da separação entre religião e Estado e afirmando suas nacionalidades pela vinculação à

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religião. E, ainda, a consequente discriminação contra as demais religiões, notadamente o cristianismo. Uma revista brasileira de circulação nacional, em recente reportagem, mostrou a crescente perseguição aos cristãos em amplas áreas do globo. A Inglaterra, ex-celeiro de missionários, é o epicentro do secularismo anticristão no Ocidente, que vai rapidamente se espalhando. É considerado normal para um judeu ortodoxo usar um solidéu, para uma islâmica, um véu, para o sikh, um turbante, porém, o uso da cruz vai sendo banido, tido como “ofensivo” para a sociedade secularista (multiculturalismo + politicamente correto + agenda GLSBT). A periodização histórica em “antes de Cristo” e “depois de Cristo” vai sendo substituída pelo antes e depois da “Era Comum”. Ministérios estudantis, como a ABU (Aliança Bíblica

Universitária), vão sendo restringidos, por apresentarem apenas um caminho de salvação e um modo de se viver a sexualidade. Nos Estados Unidos se proíbe a Tábua da Lei em tribunais ou o uso da saudação “Feliz Natal” (deve ser dito apenas “boas festas”). E os símbolos cristãos (cruz, peixe, alfa e ômega, cordeiro) vão sendo varridos dos espaços públicos. É proibido, ainda, o uso do argumento religioso na esfera pública. Os cristãos ocidentais vão sendo empurrados para um gueto, com sua fé restrita às suas consciências, lares e templos, sem relevância histórica ou influência social. O ódio secularista se dirige, prioritariamente, ao monoteísmo de revelação, visto que este afirma conceitos e preceitos morais tidos como preconceitos por uma sociedade relativista, amoral e hedonista. Enquanto isso, o Islã — financiado


pelos “petrodólares” — vai construindo enormes e visíveis mesquitas no Ocidente, para onde emigraram, e em países periféricos onde atuam, com a torre de seus minaretes nos lugares mais altos, em uma afirmação de influência e de poder. O conflito político-ideológicoeconômico vai sendo substituído por um conflito de símbolos religiosos, como expressão mais tangível do que já foi denominado de “choque de civilizações”, pois por trás dos símbolos há valores e estilos de vida

O secularismo quer varrer os símbolos cristãos para varrer nossa presença e influência com profundos desdobramentos para os povos. Enquanto isso, nós cristãos somos ensinados que a humanidade tem um mandato cultural que foi maculado pelo pecado original e que é dever da Igreja recuperá-lo segundo o ideal do Criador, ao promover os valores do reino de Deus, o direito

natural e o bem comum. Também aprendemos que devemos fazer isto como mensageiros, missionários, evangelistas, embaixadores, sal e luz, não de uma cristandade políticomilitar ou teocrática, mas como uma comunidade afirmadora da soberania de Deus sobre a história e do reinado do singular Jesus Cristo sobre as nações — o que implica uma evangelização das culturas chamadas à transformação segundo o projeto do Senhor e o caráter de Cristo. Todas elas estarão um dia diante do Cordeiro. O próximo momento da história será, sem dúvida, um conflito de símbolos (hoje já proibidos ou restringidos). O bispo anglicano Julian Dobbs tem mostrado a necessidade urgente e imperiosa de uma ampla campanha para que o povo cristão use uma cruz ou outro símbolo cristão como adereço (cordões, lapelas), e os clérigos, o seu colarinho ou outra expressão exterior da sua condição, como forma de identificação, afirmação, resistência e testemunho. Nesse sentido, o protestantismo latino-americano, com sua radical iconoclastia, rejeitando toda beleza, arte plástica e símbolos

na adoração (arquitetura e decoração de templos, vestes clericais etc.) — associando-os equivocadamente com a idolatria ou com a Igreja Romana —, dá um tiro no pé, tornandose “inocente útil” dos adversários, despreparado e fazendo gol contra. O secularismo, que quer varrer os nossos símbolos para varrer nossa presença e influência, e o Islã, que quer afirmar os deles — bem como sua hegemonia mundial —, agradecem. Ou o protestantismo latino-americano (e brasileiro) iconoclasta — presentista e informalista — permite que Deus o cure dessa enfermidade espiritual imatura, para ir além do discurso ou do show, resgatando uma rica herança, um patrimônio de toda a cristandade, ou vamos ter uma ausência de protagonismo, ou um protagonismo negativo no próximo capítulo da história da civilização e na história da igreja. A Bíblia, a história, a antropologia cultural e a psicologia social ajudariam neste salto de qualidade. Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica, A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada e Anglicanismo — identidade, relevância, desafios. www.dar.org.br

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R EDESCOBRINDO

A PALAVRA DE DEUS

Valdir Steuernagel

Quando Jesus entra numa casa...

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fácil perceber, ao olhar para os Evangelhos, como Jesus é um causador de confusões. Nada continua da mesma maneira depois que ele chega. Sua presença nos confronta com a realidade. Ele chega, por assim dizer, “destampando as panelas” e revelando o que tem dentro delas. Se uma está vazia, a outra exala o aroma irresistível de um belo cozido. Já na terceira, só há comida estragada e logo o cheiro se espalha por todo o ambiente. A presença de Jesus é sinal de esperança, mas também evidencia toda confusão vital e relacional. Ela denuncia todos os esquemas que acumulamos nos nossos bojos familiares, os quais acabam machucando e oprimindo os que se relacionam conosco. No capítulo 3 do Evangelho de Marcos (a partir do versículo 20), lemos que Jesus entra numa casa e logo a confusão se instala. A casa se enche de gente: uns são meros curiosos; outros estão ansiosos para ouvir o que ele diz; alguns não conseguem esconder sua dor; outros, 48

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de olhar petrificado, lutam contra algo ruim que os consome por dentro. Há também os que analisam cada gesto de Jesus, prontos a denunciar o que quer que ele diga ou faça que não caiba no parâmetro ideológico-religioso deles. A demanda é tão grande que eles não conseguem nem comer. Em meio a tudo isso ocorre um significativo desencontro na própria família de Jesus. Eles estavam passando por um momento difícil e não sabiam mais o que fazer. Jesus não se encaixava no “formato familiar” e estava comprometendo o que eles criam e a imagem que haviam construído. Era só Maria entrar no armazém da esquina que o dono dizia: “Ele não é seu filho? E vocês não fazem nada?”. Então, ela saía dali reprimindo as lágrimas, que eram uma pequena expressão do seu caos interno. Lembrava-se da promessa de quando ele fora gerado, do jeito como ele crescera “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2.52) e de seus primeiros passos ministeriais. Eram exatamente

estes passos que a deixavam confusa. Por um lado, era claro como ele se relacionava com as pessoas e lhes devolvia a inteireza de vida, e também como a sua palavra fazia absoluto sentido. Por outro lado, às vezes parecia radical e arrogante, ao denunciar a estrutura político-religiosa na qual viviam. O pior não era a opinião dos outros, mas a confusão gerada no seio da família. Ela não aguentava mais as intermináveis discussões em casa e acabou concordando com a decisão de ir buscá-lo e ver o que se podia fazer. Porém, isso não era nada fácil. Quando tentou fazê-lo, a coisa se tornou pública. Havia gente por todo lado e o próprio Jesus piorou a situação ao dizer: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”. E logo emendou, apontando para uma nova realidade: “Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3.33, 35). A presença de Jesus nas nossas famílias precisa causar confusão e pode até provocar desagregação. Uns aceitam-no, bem como a sua palavra, enquanto


seguidores de Jesus (At 1.14). A família havia se convertido. Havia reconhecido o seu erro de tentar interpretar e enquadrar Jesus e havia permitido que ele desse um novo sentido para eles, ajudando-os a descobrir o seu vínculo com a família de Deus. Afinal, é na família de Deus que as nossas manias, vícios e esquemas limitadores e destruidores são confrontados. Nela descobrimos a liberdade do reino de Deus e da sua justiça, e todas as demais coisas nos são acrescentadas (Mt 6.33). Quando, após a descida do Espírito Santo, a igreja começa a ganhar forma, vemos emergir a nova família de Deus. Nela são estabelecidas as relações e padrões de cuidado mútuo, aceitação da diversidade, inclusão de pessoas novas e, em conjunto, A presença de Jesus canta-se e vive-se de acordo com expõe nossas estruturas e a melodia do novo céu e da nova terra: “Todos os dias, continuavam esquemas de desencontros, a reunir-se no pátio do templo. desajustes e até de Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeiexploração e opressão ções, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor pela integração na nova família da qual lhes acrescentava diariamente os que Jesus falava — a família dos que fazem iam sendo salvos” (At 2.46-47). A igreja a vontade de Deus e encontram nisso o precisa experimentar a contínua vocação sentido da vida. de ser expressão da família de Deus. O testemunho de Maria caminha nessa direção. Na crucificação de Jesus, 1. A figura de José desaparece dos Evangelhos depois do episódio no templo, quando Jesus tinha 12 anos ela está aos pés da cruz. Ali o vemos (Lc 2.41-51). Por isso, uma interpretação bastante manifestar seu cuidado para com a mãe, comum é a de que José, sendo bem mais velho que Maria, teria morrido cedo. abrigando-a em uma família como a que ele havia aludido em seu ministério Valdir Steuernagel é pastor luterano e trabalha com a Visão (Jo 19.25-27). Nos primórdios da igreja Mundial Internacional e com o Centro Pastoral e Missão, em primitiva, Maria está presente com seus Curitiba, PR. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas. filhos, reunidos em oração com outros outros o colocam sob suspeita, podendo rejeitá-lo. Sua presença expõe nossas estruturas e esquemas de desencontros, desajustes e até de exploração e opressão. E como toda família tem algo assim, a presença de Jesus gera desconforto e inconformidade. Afinal, em nossa casa também há “comida estragada na panela”. Até mesmo Maria, que havia lutado tanto para construir uma família unida e comprometida com os valores e o sentido do reino de Deus, precisou tomar consciência de que a sua família era apenas a família humana de Maria e seus filhos e filhas1 (Mc 6.3), com seus esquemas e desencontros. A esperança para eles passava pela desconstrução e

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Alderi Souza de Matos

Paradigmas da Reforma: três visões da Igreja

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entro de poucos anos será comemorado o 5º centenário da Reforma Protestante. Isso significa que até 2017 muito irá se falar, escrever e debater sobre o significado e as implicações desse importante movimento do século 16, do qual muitas igrejas evangélicas se consideram herdeiras. Como se sabe, os diferentes reformadores abraçaram um conjunto de convicções e princípios comuns. Embora fundamentais, esses princípios não impediram que o movimento protestante se fracionasse em diversas correntes. No século 16, esses grupos foram quatro — luteranos, reformados, anabatistas e anglicanos. Nos séculos seguintes, surgiram muitos outros, todos os quais, de alguma forma, desenvolveram ênfases que já estavam presentes nos quatro movimentos iniciais. Assim, os ramos pioneiros da Reforma representaram não somente diferentes confissões religiosas, mas também diferentes maneiras de entender a igreja e a vida cristã.

Tradição Os reformadores se defrontaram com um dilema: eles queriam romper 50

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com certos elementos dogmáticos e comportamentais da igreja majoritária, mas ao mesmo tempo desejavam demonstrar um senso de continuidade com a longa história cristã anterior a eles. Em outras palavras, eles questionaram alguns aspectos do passado cristão, mas se esforçaram por manter outros. Isso aconteceu em diferentes graus nos movimentos iniciais da Reforma. Dois desses grupos foram especialmente escrupulosos no sentido de preservar tudo o que fosse possível da tradição cristã anterior: luteranos e anglicanos. Isso fica evidente em diversas áreas da vida da igreja, como o entendimento do ministério e do culto cristão. Apesar de sua crítica contundente do catolicismo medieval, Lutero e seus seguidores preservaram o episcopado, um entendimento semicatólico da Ceia do Senhor, um forte destaque ao calendário eclesiástico e uma liturgia elaborada. Os anglicanos foram ainda mais enfáticos nesse esforço, dando imenso valor à sucessão apostólica, à hierarquiaa e a um culto aparatoso, fortemente marcado pelo ritual. Para um observador desavisado, uma cerimônia anglicana se parece bastante com sua equivalente católico-romana.

Não obstante a influência inicial da tradição reformada ou calvinista, o anglicanismo abraçou consciente e intencionalmente uma síntese católicoprotestante, apesar da presença de uma ala nitidamente evangélica nessa igreja (“Low Church”). Luteranos e anglicanos também procuraram manter o ideal da cristandade, ou seja, uma igreja única e hegemônica fortemente aliada ao Estado.

Experiência Outro grupo inicial da Reforma Protestante tomou um rumo diametralmente oposto ao das igrejas retromencionadas — os anabatistas, também conhecidos como “irmãos suíços”. Para esse segmento, o mais importante não eram os 1.500 anos de história e tradição anteriores, mas as origens mesmas do cristianismo, isto é, o Novo Testamento. Seu grande ideal foi voltar a viver como os cristãos da igreja primitiva. Com isso, seu movimento se caracterizou pela rejeição da pesada herança dogmática, litúrgica e institucional do catolicismo e do protestantismo magisterial. Para a mentalidade anabatista, o mais importante era o elemento experimental da fé cristã: o relacionamento com

trevor henry

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Deus, a necessidade de conversão, a separação do mundo e o exercício da fé. Esses traços deram grande vitalidade espiritual aos “irmãos” e os capacitaram a enfrentar corajosamente as horríveis perseguições de que foram objeto em diversas regiões da Europa. Ao mesmo tempo, seu experiencialismo foi uma fonte de dificuldades que foram lamentadas pelos reformadores principais. Entre estas podem ser mencionadas o apelo a revelações diretas do Espírito Santo, o perigo de lideranças personalistas e o fanatismo

luterana e anglicana, o calvinismo tem um imenso respeito pela história cristã ao longo dos séculos, por muita coisa que os cristãos fizeram e falaram de positivo nos 1.500 anos anteriores à Reforma. São exemplos disso a sua apreciação pelos pais da igreja e pelas grandes formulações dos credos históricos, bem como pela riqueza e profundidade espiritual das liturgias antigas. De igual modo, a tradição reformada sempre valorizou os aspectos existenciais e práticos da vida cristã, como a vida devocional, a oração, a santificação e a obediência à lei de Deus. Tudo isso, no entanto, Os ramos pioneiros da Reforma fica sempre subordinado à representaram diferentes Palavra, que deve ter prioridade em tudo o que diz respeito à fé, maneiras de entender a igreja e ao culto e à vida.

a vida cristã

Conclusão gerado por convicções milenaristas. Com o tempo, esse grupo adquiriu maior sobriedade e equilíbrio, sob a direção de homens como o holandês Menno Simons, o originador dos menonitas.

Escritura Uma terceira abordagem entre os grupos protestantes foi adotada pelos reformados ou calvinistas, que privilegiaram uma posição mediana entre o tradicionalismo dos luteranos e anglicanos e o experiencialismo dos anabatistas, ainda que abraçando certas preocupações desses movimentos. Historicamente, os reformados têm sido conhecidos por sua ênfase na Palavra de Deus, a revelação bíblica, como o fundamento primordial da igreja e da fé cristã. Eles entendem que nem a tradição nem a experiência devem ter a última palavra na vida e na espiritualidade cristã, mas devem estar sempre submissas à revelação objetiva de Deus nas Escrituras. Como foi dito, o movimento reformado abraçou uma posição intermediária entre as outras duas alternativas, porém não as rejeitou por completo. À semelhança das tradições

Todas as igrejas protestantes que surgiram a partir do século 17 são herdeiras desses paradigmas do século 16, mesclando-os em diferentes proporções. No mundo contemporâneo, temos confissões que se destacam por sua reverência pelo passado, seu senso de continuidade histórica, sua valorização de formas institucionais e litúrgicas consagradas pela tradição. Outros grupos se caracterizam primariamente por sua espontaneidade, informalidade e intensidade espiritual, a partir de uma experiência direta do divino. Finalmente, há aqueles que, sem desprezar a tradição e a experiência, entendem que sua identidade deve ser moldada acima de tudo pelo compromisso com o que Deus revelou em sua Palavra — o sola Scriptura dos reformadores do século 16. Que as igrejas filhas da Reforma reafirmem esse compromisso solene, para que possam ser fiéis ao evangelho de Cristo nos momentosos dias atuais. Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil. asdm@ mackenzie.com.br Janeiro-Fevereiro, 2012

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Paul Freston

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O Pai-Nosso e as bem-aventuranças para hoje Deus como Pai e seus filhos como pacificadores

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grande pai da igreja cristã Gregório de Nissa, escrevendo por volta do ano 380, relaciona o Pai-Nosso e as bem-aventuranças ao falar do caráter de Deus como Pai e da necessidade de sermos pacificadores se quisermos ser seus filhos. Como vimos nas edições anteriores (maio/ junho e setembro/outubro de 2011), Gregório aborda esses dois textos com uma profundidade teológica e ética que desafia a nossa compreensão da mensagem evangélica. Mateus 6.9 — Pai nosso, que estás nos céus Gregório começa ressaltando o contraste entre o modo de Deus

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se revelar nos dois Testamentos. O cristianismo é a religião do acesso democrático a Deus. “Quando Cristo nos traz a graça divina, ele não nos leva ao monte Sinai coberto de escuridão, nem mete medo em nós pelo barulho insensato de trombetas. Tampouco ele deixa a multidão para trás no pé da montanha.” Os fenômenos aterrorizantes e o distanciamento criado por intermediários não caracterizam a fé cristã. Em Cristo, todos são chamados a testemunhar o poder divino. Mais do que isso, somos convidados a participar desse poder, assumindo “parentesco com a natureza divina”. Isto está implícito na primeira frase da oração que Jesus nos ensina. Com essas palavras, afirma Gregório, somos

convidados a deixar a terra para trás, repousar a nossa mente em Deus e abordá-lo pelo nome mais íntimo possível: Pai! Porém, há um problema: estamos tão acostumados com a prática cristã de se referir a Deus dessa maneira, que dificilmente percebemos o que está em jogo. Gregório, então, nos lembra da grandiosidade dessa oração. Para ele, “um ser humano tentando entender Deus não ousaria chamar Deus pelo nome de Pai, pois não vê nele mesmo as coisas que vê em Deus”. Deus é bom; como pode ser Pai de alguém com vida impura? Deus não muda, é sempre confiável; como pode ser Pai de seres humanos instáveis e inconfiáveis? Como pode o Pai da vida ter filhos sujeitos a envelhecer e morrer? Ou como pode


um Deus que constantemente dá de si mesmo ser Pai de alguém tão ensimesmado como eu? “O injusto e impuro não pode dizer ‘Pai’ ao que é justo e puro, pois seria apenas orgulho e zombaria.” Chamar Deus de Pai é estabelecer para nós mesmos “a vida mais sublime como nossa regra”. Temos que provar pela nossa vida que o parentesco é real. Gregório não minimiza as implicações desse desafio: “Se fizeres

A paz nada mais é do que uma disposição amorosa para com o próximo tal oração enquanto absorto em dinheiro, ou na busca da fama, ou escravizado pelas paixões... que dirá ele? ‘Não reconheço em ti a imagem da minha natureza’”. O Doador generoso está distante da pessoa cobiçosa; o Misercordioso, da pessoa cruel. A oração do Pai-Nosso começa a parecer zombaria da parte de Jesus, tamanha é a incongruência entre o Pai e os supostos filhos. Entretanto, graças a Deus, há um sentido mais profundo. De acordo com Gregório, as palavras “Pai nosso que estás nos céus” nos lembram “da pátria da qual caímos e da dignidade que perdemos”. A alusão nesta frase é à parábola do filho pródigo. A virada na parábola é quando o filho cai em si e se arrepende: “Pai, pequei contra os céus e diante de Ti”. Esta confissão lhe dá acesso ao pai. Gregório, como muitos pais da igreja, gosta de relacionar os símbolos da parábola com a inversão da história da entrada do pecado no Éden. Assim, o manto colocado pelo pai no filho arrependido é o manto de glória perdido no jardim; o anel

significa a recuperação da imagem de Deus; e as sandálias são para protegernos da mordida da serpente. Deste modo, para Gregório, a primeira frase da oração do Pai-Nosso nos faz “lembrar da nossa pátria”, da terra do nosso Pai. Contudo, como acrescenta, “a distância entre o divino e o humano não é geográfica; antes, está na escolha de cada pessoa”. Permanece, porém, o desafio de “nos tornar igual ao nosso Pai por meio de uma vida digna”. Gregório nos desafia ainda mais ao dizer: “Mas a pessoa caracterizada por inveja, ódio, maledicência, orgulho, avareza, luxúria e ambição louca... que tipo de pai a ouvirá? Não o celeste, mas o infernal. Enquanto a pessoa má persiste na sua maldade, sua oração é uma invocação ao diabo!”. Mateus 5.9 — Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Uma característica em especial distingue os filhos de Deus: a de ser pacificadores. Pensemos nos líderes eclesiásticos, nas pessoas que nos são propostas como exemplos cristãos, e perguntemo-nos quais deles demonstram essa característica. Gregório fica maravilhado ao refletir sobre as implicações da bemaventurança: “Que dom incrível! O homem transcende a sua própria natureza, e de homem se transforma em deus, pois possuirá a dignidade do Pai”. Quem são, então, os filhos de Deus? “São os que imitam o amor divino pelos seres humanos. Esta obra ele ordena para você: expulsar o ódio e abolir a guerra, exterminar a inveja e banir o conflito, tirar a hipocrisia e extinguir o ressentimento no seu coração”, introduzindo em seu lugar os frutos do Espírito. Por que Deus valoriza tanto o papel de pacificador? Porque “de tudo que os homens desejam, nada é melhor do que a paz. Pois todas as coisas

aprazíveis da vida precisam da paz para serem desfrutadas. Bens, saúde, família, casa, amigos... que valem todos eles, se a guerra abrevia o seu proveito? A paz, então, adoça tudo que é valorizado na vida. Quem tem bom senso valoriza a paz acima de todas as coisas”. Por que é tão difícil ser pacificador? “Um pacificador dá paz a outra pessoa; mas ninguém pode dar o que ele próprio não possui. A paz nada mais é do que uma disposição amorosa para com o próximo. É oposta igualmente ao ódio, à ira, à inveja, ao ressentimento, à hipocrisia e à guerra.” O não pacificador prejudica os outros e faz mal a si mesmo. “Pensemos em todas as devastações produzidas na alma pelas paixões ligadas ao ódio. Os sintomas do demônio e os sintomas da ira são iguais [...]; e os sintomas de alguém consumido pela inveja são iguais aos sintomas da morte.” A missão cristã é resumida na conclusão de Gregório: “Deus deseja que a graça da paz abunde na tua vida, para que a tua vida cure as doenças dos outros”. Portanto, aquele que chama Deus de Pai cai em si e reconhece que está distante de casa, da terra do Pai, que é a origem e a finalidade da sua existência. A partir de então, vive na tensão entre, de um lado, os braços abertos e tratamento generoso do Pai e, de outro, o desafio permanente de manifestar os traços familiares. Um traço que resume boa parte da tensão é o de pacificador. Somente uma mensagem cristã que se caracteriza por criar pacificadores com uma “disposição amorosa para com o próximo”, porque primeiro cura as “devastações da alma” no interior da própria pessoa, merece vingar. Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. É autor de, entre outros, Nem Monge Nem Executivo. Janeiro-Fevereiro, 2012

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Doug Van Bronkhorst

Arquivo Pessoal

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Quando a economia melhorar...

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epois de fazer o curso de engenharia elétrica na Michigan State University (1965–1969) e uma pós-graduação em teologia na Trinity Evangelical Divinity School, em Illinois, Doug Van Bronkhorst dedicou-se inteiramente ao ministério cristão. Foi pastor titular da Igreja Presbiteriana de Walnut Creek, próxima a São Francisco, Califórnia, e, mais recentemente, da Primeira Igreja Reformada de Grandville, Michigan. Por “ter missões no seu DNA” (o avô foi missionário no Japão) e por influência de um pastor com o qual havia trabalhado na área de educação cristã, Doug começou a dedicar-se a missões. Hoje ele é diretor executivo da Interserve (uma missão fundada na Índia em 1852) nos Estados Unidos.

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Nesse ministério, Doug tem dado assistência a muitos casais de missionários espalhados em vários países (Tailândia, Bangladesh, Nepal e Tibete, por exemplo). Ele e sua esposa, Kathy, visitaram o Brasil pela primeira vez em outubro de 2011. Foi ele quem pregou na comemoração do 28° aniversário do Centro Evangélico de Missões, em Viçosa, MG. Segundo ele, os americanos continuam comprometidos com missões transculturais. Confessa que no ano passado as doações para missões e outras causas diminuíram, mas acredita que “quando a economia melhorar, isso vai melhorar”.

Mesmo tendo nascido em um lar evangélico e participado de Escola Dominical na infância e na adolescência, o

senhor só assumiu o compromisso com o evangelho na universidade. O ambiente universitário é propício a uma decisão por Cristo? Qualquer universidade oferece tipos diferentes de “ambientes” sociais e intelectuais, alguns saudáveis e que levam ao crescimento pessoal, e outros que levam justamente ao caminho contrário. Na melhor das hipóteses, a universidade incentiva os jovens, em um estágio muito influenciável de suas vidas, a buscar respostas para as questões mais importantes, como a existência de Deus — e é por isso que o ministério com jovens universitários é sempre importante.

Entre o missionário tradicional (de

tempo integral) e o missionário biocupacional, qual deles seria mais necessário hoje? Para mim, não existe “missionário de meio período”. Todos os cristãos são chamados para um ministério de tempo integral, a fim de usarem seus dons a cada dia para a glória de Deus. O mundo precisa desesperadamente deles em todas as esferas da vida, em todas as carreiras, em famílias que entendem e seguem esse princípio. Alguns cristãos podem dedicar a maior parte do tempo pregando ou liderando uma igreja; portanto, pastores e evangelistas são bem-vindos, mas eles não são a chave para que se cumpra a Grande Comissão de Cristo. O que realmente importa para impregnar a


Em novembro de 2011 você e Kathy se tornaram avós. Alguma coisa mudou na vida de vocês? Estamos começando a descobrir o que estas mudanças são e o que representarão daqui para frente; mas já sabemos que este é um relacionamento especial, com grande alegria e muitas responsabilidades. Estamos felizes por nosso filho e nossa nora, por receberem este presente de amor em suas vidas, que os ensina a confiar em Deus e um no outro para cuidar da June Elizabeth, que, aliás, é a garotinha mais linda do mundo!

Qual a sua percepção da crise econômica e como ela afeta o movimento de missão integral (tanto na ajuda social como na missão transcultural)? Acho que a crise tem prejudicado todo tipo de missão. É preciso dinheiro para se alcançar as pessoas, cuidar dos pobres, ultrapassar as barreiras linguísticas e culturais pelo evangelho.

Espero que os norte-americanos parem de dar esmolas às pessoas. Mesmo com boas intenções, a longo prazo, isso faz mais mal do que bem

cultura com o evangelho é afirmar e mobilizar os membros do Corpo de Cristo, encorajando-os a compartilhar sua fé e viver para Cristo onde quer que trabalhem e vivam, e em cada relacionamento.

Os Estados Unidos realmente “pararam” de enviar missionários para países de risco devido à situação política?

americanos da Interserve, um médico oftalmologista e um estagiário de 24 anos. Por que eles foram mortos?

Não. Os cristãos norteamericanos ainda se dispõem a ir para os lugares mais difíceis da terra, como o Afeganistão, e a igreja ainda os envia. Há pessoas que defendem as missões locais, outras, as missões feitas por nativos nas suas regiões, e há ainda outras que se concentram em alcançar imigrantes em regiões difíceis fora de seu país de origem, mas estas são apenas parte da grande e diversificada igreja dos Estados Unidos, e nem de longe são a maioria.

Eles foram mortos por pessoas que lutavam contra o atual governo afegão e as tropas estrangeiras. Esses militantes muçulmanos se encontraram com os norte-americanos por acaso e os mataram sem se importar em saber quem eram aqueles estrangeiros e por que estavam no país. Os afegãos acreditam que matar estrangeiros (os quais eles sempre presumem que são cristãos) é bom para a causa deles. Muitos deles condenaram os assassinatos porque reconheciam que Tom Little e seus companheiros eram profissionais da saúde. Logo, a questão é política

Em agosto de 2010, entre os dez estrangeiros assassinados no Afeganistão, estavam dois profissionais

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Como os missionários americanos vivenciam a questão do sofrimento e perseguição no campo? Como reagem? Na época em que Tom e outros foram assassinados, havia dez pessoas “na linha de frente” se preparando para ir para o Afeganistão conosco. Desde os assassinatos, sete se mudaram para lá e começaram o trabalho, e os outros três estão levantando apoio para fazê-lo. Assim, um tipo de reação tem sido fé renovada e coragem admiráveis. Ao mesmo tempo, o sofrimento e a perseguição são dolorosos. Alguns que

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O mundo precisa desesperadamente de cristãos em todas as esferas da vida, em todas as carreiras

e religiosa; mas, para os muçulmanos, esses assuntos estão sempre interligados.

estavam no Afeganistão voltaram para os Estados Unidos e podem ou não retornar ao exterior. Eles reagiram buscando preservar a saúde mental, emocional e física deles e de suas famílias. Ainda é cedo para dizer quais serão os efeitos a longo prazo, mas tenho confiança de que os cristãos norteamericanos vão continuar servindo em lugares difíceis.

Os Estados Unidos são conhecidos por sua generosidade histórica em missões. Esta

generosidade continua na crise? Como canalizar esta qualidade sem “prejudicar” o desenvolvimento autóctone? Sim, ainda há generosidade, mas existem problemas. Muitos estão desanimados por causa da crise, alguns estão deprimidos. Doações para todas as causas (e não apenas para os cristãos) estiveram também em baixa em 2010. Quando a economia melhorar, isso vai voltar. Espero que os norte-americanos parem de dar esmolas às pessoas. Mesmo com boas intenções, a longo prazo, isso faz mais mal do que bem. A Interserve trabalha para as pessoas se tornarem autossuficientes, e não dependentes, e também para ser um modelo de trabalho em uma cultura diferente, e não apenas estar na folha de pagamentos de uma igreja nos Estados Unidos. Devido à pobreza de muitos dos lugares onde trabalham, os parceiros da Interserve precisam receber ajuda dos Estados Unidos, mas, ainda assim, possuem um emprego legal e trabalho no país de serviço.


Antonia Leonora van der Meer

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articipei ativamente de cinco dos seis Congressos Brasileiros de Missão. Este foi o primeiro realizado na região Centro-Oeste, na cidade de Caldas Novas, GO. Tenho percebido uma crescente maturidade e uma maior unidade e cooperação entre as agências e igrejas brasileiras. Nos anos 90 tínhamos o sonho do Brasil como o “celeiro de missões”. Podíamos enviar muito mais missionários, mas não havia o progresso desejado. Os missionários continuam voltando do campo por falta de preparo, de sustento e de acompanhamento pastoral, contudo, em menor número do que há dez anos. As missões e igrejas enviadoras precisam se arrepender do cuidado deficiente e se responsabilizar pelos enviados. Por que então o otimismo? Estamos mais realistas; conhecemos melhor nosso potencial e nossas limitações. Isso nos fez voltar às Escrituras a fim de encontrar nelas ensino, correção, inspiração e motivação. Durante o congresso, ouvimos mensagens bíblicas profundas, encorajadoras e desafiadoras, ministradas por pessoas com conhecimento bíblicoteológico e compromisso missionário; pessoas de diversas denominações e regiões do país ministraram com

sabedoria, autoridade e humildade. Não houve estrelismo. Havia uma nova compreensão sobre o ensino bíblico de missão que começa em Gênesis 1 e revela o interesse de Deus em restaurar todas as nações e toda a criação. Foi uma alegria ouvir as palestras dos líderes do CONPLEI (Conselho de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas), Henrique Terena e Eli Tikuna. O CONPLEI cresceu e amadureceu nessa última década.

Há uma crescente maturidade e uma maior unidade e cooperação entre as agências missionárias e igrejas brasileiras Houve conversas sérias sobre parcerias entre agências, intercessão para que aprendamos a apoiar e servir uns aos outros, compreensão da necessidade de trabalhar juntos para alcançar os objetivos missionários, em vez da simples defesa do nosso próprio “pedaço de queijo”. O louvor ministrado por Carlinhos Veiga tocou profundamente o coração brasileiro, mas também os participantes de outras nacionalidades. Como de costume, tivemos uma grande variedade de oficinas e painéis no período da

C AMINHOS

DA MISSã O

tarde, o que permitiu maior integração e participação. Tivemos assembleias da APMB (Associação de Professores de Missões no Brasil), da AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras), do CIM (Cuidado Integral do Missionário) e do novo departamento que uniu Profissionais em Missão e Missão Empresarial. Isso sem falar de pequenas reuniões marcadas na hora das refeições e dos contatos pessoais que se davam durante os intervalos, nos corredores e nos estandes. Um aspecto positivo foi os testemunhos de missionários experientes. Penso que poderíamos realizar mais atividades em grupos menores: estudos bíblicos, discussões, grupos de oração. As atividades em plenária são boas, mas acabam sendo cansativas. Em grupos menores absorveríamos melhor tanto ensino de qualidade. Durante o congresso foram lançados alguns livros ligados ao cuidado dos missionários e dos filhos de missionários, bem como sobre o sustento missionário e outras temáticas. Que Deus nos ajude em nosso processo de amadurecimento e crescimento na obra missionária! Antonia Leonora van der Meer (Tonica) é deã e professora da Escola de Missões do Centro Evangélico de Missões, em Viçosa, MG, e membro da diretoria da AMTB —Associação de Missões Transculturais Brasileiras.

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C idade em foco

Jorge Henrique Barro

Passaram-se a tarde e a manhã... e já somos 7 bilhões de pessoas

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o dia 31 de outubro de 2011 foi anunciado que o mundo possui 7 bilhões de pessoas.

Depois de atingir 7 bilhões na próxima segunda-feira (31), o número de habitantes seguirá avançando. A ONU estima que o planeta terá 9,3 bilhões de pessoas em 2050 e mais de 10 bilhões no fim deste século. A maior parte desse aumento virá de países com alta taxa de fertilidade, sendo 39 africanos, nove asiáticos, quatro latinoamericanos e seis da Oceania.1

Uma parte do chamado mandato cultural vem sendo cumprido à risca pelo ser humano: “Sejam férteis e multipliquem-se” (Gn 1.28a). Foi pelo fato de terem sido fiéis a essa primeira parte do mandato cultural que o povo de Deus sofreu no Egito, pois “os filhos de Israel foram fecundos, e aumentaram muito, e se multiplicaram, e grandemente se fortaleceram, de maneira que a terra se encheu deles” (Êx 1.7). Essa multiplicação e aumento tornou-se um problema: “Eis que o povo dos filhos de Israel é mais

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numeroso e mais forte do que nós. Eia, usemos de astúcia para com ele, para que não se multiplique, e seja o caso que, vindo guerra, ele se ajunte com os nossos inimigos, peleje contra nós e saia da terra” (Êx 1.9-10). O problema era um conflito de classe entre os israelitas (dominada rural) versus nós (dominante urbana). A questão é clara: poder e dominação são as raízes das muitas injustiças e opressões no mundo. A guerra prevista pelo rei como uma ameaça não é uma guerra para a destruição do nós [peleje contra nós], mas uma guerra da libertação, uma guerra para escapar do país. Isto é intolerável aos olhos do rei e seus associados, e eles decidiram tomar medidas necessárias.2

As “medidas necessárias” do novo rei para controlar o crescimento de Israel tiveram três faces monstruosas. Primeiro, a exploração. O rei colocou sobre eles “feitores de obras, para os afligirem com suas cargas” (Êx 1.11). Porém, quanto mais eram opressos, mais se multiplicavam e espalhavam.

Segundo, a selvageria. Os egípcios, “com tirania, faziam servir os filhos de Israel e lhes fizeram amargar a vida com dura servidão, em barro, e em tijolos, e com todo o trabalho no campo; com todo o serviço em que na tirania os serviam” (Êx 1.13-14). Terceiro, o genocídio. A ordem para as parteiras hebreias Sifrá e Puá foi: “Quando servirdes de parteira às hebreias examinai, se for filho, matai-o; mas se for filha, que viva” (Êx 1.16). As parteiras temeram a Deus, deixando os meninos viverem. Como resultado, “o povo aumentou e se tornou muito forte” (Êx 1.20). O conflito entre o faraó e os israelitas começou a tomar lugar como um conflito entre vida e morte. A segunda parte do mandato cultural, subjugar e dominar a terra, anda de mal a pior: “Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra... E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia” (Gn 1.28, 31).


Subjugar e dominar significa mordomia e cuidado. O grito do profeta continua ecoando: “Fizeram dela uma terra devastada; e devastada ela pranteia diante de mim. A terra toda foi devastada, mas não há quem se importe com isso” (Jr 12.11). A igreja também não se importa com isso (apesar das exceções). A grande maioria dos líderes e membros ainda pensa que a questão da ecologia é de responsabilidade governamental e das ONGs. Antes do

Antes do mandato evangelístico de ir por todo o mundo e pregar o evangelho, Deus nos deu o mandato cultural para cuidar do seu mundo mandato evangelístico de ir por todo o mundo e pregar o evangelho, Deus nos deu o mandato cultural para cuidar do seu mundo. Um complementa o outro e não existe contradição ao cumprir os dois simultaneamente. [Calvino] foi muito além e desenvolveu a doutrina das vocações diárias da vida, segundo a qual toda esfera e

atividade humana é santificada e trazida à obediência de Cristo, o qual é o soberano Senhor de toda área do viver e do transcorrer humano e social. Igualmente a doutrina da criação, tanto nas implicações da ideia da imagem de Deus no ser humano como na noção do mandato cultural, segundo o qual o ser humano deve governar sobre a baixa criação administrando a totalidade da vida humana para a glória de Deus, provém do espaço e orientação para reconhecer que a teologia e a vida cristã devem estar interessadas e envolvidas em toda sorte de atividade e problemas humanos.3

Há jeito pra o mundo? Depende de nós Se esse mundo ainda tem jeito Apesar do que o homem tem feito Se a vida sobreviverá Que os ventos cantem nos galhos Que as folhas bebam o orvalho Que o sol descortine mais as manhãs4

Uma coisa é certa: “A criação aguarda a manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8.19). Que os filhos se apresentem! Notas 1. MILANESI, Daniela. Extraído de http://economia. estadao.com.br/noticias/economia,para-onumarca-de-7-bilhoes-de-habitantes-traz-desafiosformidaveis,89726,0.htm. Acesso em 01 nov. 2011. 2. PIXLEY, Jorge V. On Exodus; a liberation perspective. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1987.

3. LOPEZ, Salatiel Palomini. Herencia reformada e busqueda de raíces. In: SERVANTE-ORTIZ, Leopoldo, ed. Juan Calvino; su vida y obra a 500 anõs de su nascimiento. Barcelona: Editorial Clie, 2009. p. 30. 4. Música “Depende de nós”, de Ivan Lins.

Jorge Henrique Barro é professor da Faculdade Teológica Sul Americana e presidente da Fraternidade Teológica Latino Americana (continental).

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Vamos

l er !

Superando a Tristeza e a Depressão com a Fé Richard Baxter 96 páginas Arte Editorial, 2008 www.arteeditorial.com.br

A alma eo corpo são parceiros nas doenças e na cura. Se não sabemos como isso acontece, a experiência nos mostra que é assim.” Richard Baxter (1615–1691) exerceu na Inglaterra um ministério pastoral profícuo, que atingiu desde pessoas do povo até a corte de Charles II. Muito antes do surgimento da psicologia como ciência, ele praticou a cura de almas em sua acepção ampla. Visitava os paroquianos, acompanhava indivíduos e famílias, sempre comentando as Escrituras, recomendando cuidados práticos e orando pelos doentes. Este conhecimento lhe possibilitou escrever uma penetrante análise do sofrimento psíquico e do transtorno espiritual dos paroquianos. Seu texto demonstra profundo interesse em despertar as pessoas para a realidade da presença curadora de Deus, a qual não apenas as livra do inferno futuro, mas das dificuldades pessoais. Além disso, o livro ajuda o leitor a pensar a partir das Escrituras, espantando a ignorância 60

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e promovendo a libertação da alma e o crescimento emocional pelo desfrutar da graça de Deus. Finalmente, anuncia a esperança como âncora da alma e vê o amor como equilíbrio da vida e indicativo de sanidade e santidade. Quando criança, Baxter foi incentivado pelo pai a ler as partes históricas da Bíblia e, assim, ele aprendeu a amá-la. Esta foi a base para a sua opinião sobre a Escritura como verdade e para o entusiasmo com que a ensinava a seu rebanho, e que lhe serviu também como referencial para a sua arte da cura. Superando a Tristeza e a Depressão com a Fé é enriquecido por uma introdução para os nossos dias, feita pelo psiquiatra Uriel Heckert, e por uma biografia, de autoria do pastor Cláudio Marra. por Klênia Fassoni

história caminhará para o soberano desígnio de Deus para a sua criação.”

Missão, Missões, Antimissão

Este não é um livro para se concordar de pronto. É uma provocação. O leitor deve brigar com os autores, com a desconstrução do modus operandi tradicional. O que eles propõem, se levado a termo, provocará uma profunda revisão da história das missões. Confesso que perdi a batalha, dei-me por vencido. Concordei em boa parte com eles, preservei alguma coisa, mas reconheci o muito que precisava ser revisto. por Ariovaldo Ramos

O projeto de Deus e os empreendimentos humanos Analzira Nascimento e Jarbas Ferreira da Silva 212 páginas Editora Reflexão, 2011 www.editorareflexao.com.br

A redenção de homens e mulheres e de toda a criação, cativa do pecado e do mal, é decreto divino em Cristo, e o desenrolar da

Há missão a se fazer! E esta é de Deus, que a tem desde a criação. Nós entramos na festa como agentes da missão. Os autores mostram que tão importante quanto saber sobre a missão a ser feita é saber como fazê-la. É necessário conquistar o direito de fazer missão. Não se pode mais chegar a uma cultura e impor uma nova forma de relacionarse com o transcendente. A conquista do direito de propor um novo relacionamento surge do serviço prestado, em uma atitude genuína e incondicional de amor, de modo a despertar no outro a pergunta sobre como tais servidores se tornaram esse tipo de ser humano, e se isso é acessível a todos.

Vida e Música Thatiane Pellissier (org.) 216 páginas Descoberta Editora, 2011 www.descoberta.com.br

As letras das canções têm enorme peso na vida espiritual da igreja contemporânea. Letras com conteúdo equivocado produzem cristãos equivocados.” [Stênio Marcius e Selma de Oliveira] O livro reúne contribuições de treze autores, entre eles Asaph Borba, Carlinhos Veiga, Sérgio Pereira, Luciano Manga, Selma de Oliveira e Stênio Marcius. Alguns textos são mais reflexivos, como Louvor, adoração e missões e O coração do músico; outros, mais práticos, como Atitude profissional do ministério musical, Letra e conteúdo das canções e Alcançando o coração da criança através da música. De todas as artes, a música é provavelmente a que nos afeta com mais intensidade e abrangência. Recentes descobertas revelam que a região do cérebro associada à música também está ligada às memórias mais vívidas de uma pessoa. Esta região parece servir de


centro que liga música conhecida, memórias e emoções. A música se presta à gratidão e à adoração a Deus, bem como ao lamento, à transmissão de conteúdos de fé e valores, à celebração e ao encorajamento nas comunidades cristãs, à intercessão, à lembrança eucarística. Além disso, é uma linguagem universal. A importância do tema, a qualidade dos textos, o testemunho de vida dos autores, a necessidade de discernimento diante da confusão que permeia a “música gospel” atestam a pertinência dessa iniciativa. Thatiane Pellissier, organizadora do livro, tem apenas 27 anos. É formada em administração, revisora de textos e atua em ministérios e equipes de louvor há mais de dez anos. por Klênia Fassoni

Mangá — Motim

Anjos e homens em rebeldia total Ryo Azumi 304 páginas Edições Vida Nova, 2011

A série de histórias da Bíblia no estilo quadrinhos, lançada pelas Edições Vida Nova, chega ao terceiro volume. O primeiro, Jesus Messias, retrata a vida e o ministério de Jesus; o segundo, Metamorfose, a vida do apóstolo Paulo. Motim, que pretende ser uma adaptação das Escrituras, traz nas primeiras páginas o relato da queda de Lúcifer e da rebelião dos anjos, seguidas pelas consequências da desobediência de Adão e Eva. Daí o título Motim — anjos e homens em rebeldia total.

E rebeldia é o que não falta nas histórias ilustradas, que continuam fiéis tanto aos textos bíblicos quanto ao estilo mangá. Uma das marcas de Motim é a quantidade de personagens. Enquanto os dois primeiros trazem apenas um personagem principal, o terceiro apresenta uma narrativa que gira em torno de Abraão, Jacó, José e Moisés. São tantos protagonistas, que ao final do livro há uma espécie de árvore genealógica e um mapa indicando o caminho que cada um percorreu. Apesar do fluxo da trama, fica nítida a ligação dos fatos e a importância deles para a formação do povo de Israel. Os autores não omitiram nem mesmo os detalhes vergonhosos, como o assassinato de Caim, as mentiras de Abraão, o incesto das filhas de Ló e

a crueldade dos irmãos de José. Como em Jesus Messias e Metamorfose, há muitos efeitos visuais e a costumeira utilização de cores e expressões fortes para retratar, por exemplo, a mulher de Ló se transformando em uma estátua e a fúria de Esaú ao ser enganado pelo irmão. Ler os complexos enredos do Antigo Testamento em forma de mangá é quase como ver um filme de aventura. Resumir cerca de 800 anos de história em 304 páginas não deve ter sido uma tarefa fácil. Porém a combinação caiu como uma luva. Afinal, o que esperamos encontrar em um mangá — aventura, efeitos especiais, cenas chocantes e seres sobrenaturais — é justamente o que não falta nos manuscritos antigos. por Paula Mendes

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Tempo de ser igreja

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ste Especial celebra a Igreja em ação. A despeito das muitas (e legítimas) críticas feitas a ela, cristãos em todos os cantos do Brasil (e do mundo) estão vivendo como seguidores de Cristo e participando da missão de Deus. A Igreja segue caminhando. Contar estas boas novas é a contribuição de Ultimato à unidade da Igreja, para evidenciar o que Deus tem feito por meio de anônimos, organizações, igrejas e pessoas de todas as idades. “Tempo de ser igreja” é o nome da campanha atual do portal Ultimato. Acompanhe em www.ultimato.com.br mais notícias, artigos e boas novas da Igreja de Cristo espalhada no Brasil e no mundo. 62

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Igreja da Palavra 6 bilhões de Bíblias não são suficientes para 7 bilhões de habitantes Estatísticas oficiais mostram que já foram distribuídos no mundo 4 bilhões de Bíblias. Contudo, alguns estimam que a marca mais acertada seria de 6 bilhões. Caso ela esteja correta, cada habitante do mundo em idade de leitura teria acesso a mais de um exemplar da Bíblia. Os números, porém, não devem impressionar, pois significam apenas que ela está à disposição do leitor. Boa parte das ações das Sociedades Bíblicas Unidas está direcionada a incentivar a leitura, a meditação e a prática das Escrituras. A rede mundial de computadores é um dos meios onde isto acontece. Segundo o ranking da AllFacebook.com, que coloca as páginas em ordem de interações (curtir, comentar e compartilhar no Facebook),

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a página The Bible do Facebook, administrada pela Sociedade Unida da Bíblia, em Reading, Inglaterra, tem mais de 1 milhão de interações e supera, por exemplo, a página da coqueluche Justin Bieber, que conta com aproximadamente 690 mil interações (dados de 06/11/2011). O programa Lectionautas — leitura orante e vivencial da Bíblia — é outra iniciativa. A Lectio Divina — uma iniciativa do Cebipal (Centro Bíblico Pastoral para a América Latina) e das Sociedades Bíblicas Unidas, presentes em mais de dezoito países —, une jovens em torno da leitura orante da Palavra. No Brasil, o projeto é desenvolvido por meio de uma parceria entre a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a SBB (Sociedade Bíblica do Brasil). A leitura orante é uma prática adotada pelos cristãos desde os primeiros

séculos. O método da Lectio Divina adaptado para atender o público jovem tem o objetivo de promover a comunhão com Deus a partir de cinco passos: leitura, meditação, oração, contemplação e ação. No site www.lectionautas.com.br, os usuários encontram manual para a prática da leitura orante.

Igreja missionária Lawence Olson se alegraria A Assembleia de Deus, maior denominação evangélica brasileira, dedicou três meses de estudo à teologia da missão integral em 2011, ano de seu centenário. Durante treze domingos, professores e alunos usaram a revista Lições Bíblicas, com o tema A Missão Integral da Igreja — porque o reino de Deus está entre vocês. Muitas igrejas da denominação adotaram as lições. Os comentários são do pastorWagner Gaby,


“Nossos maiores obstáculos não são denominacionais, nem nossas pequenas diferenças de governabilidade. Somos nós mesmos.” Ricardo Barbosa, no 1º Fórum da Aliança Evangélica Brasileira

primeiro capelão pentecostal das Forças Armadas, escritor, membro da Academia Evangélica de Letras. Na revista do professor, cada lição traz leituras bíblicas para a semana, o texto áureo, hinos sugeridos, orientações pedagógicas, comentário, bibliografia sugerida e auxílios biográficos. Com ótimo texto e bela apresentação gráfica, as lições discutem temas como: “Igreja: agente de transformação da sociedade”, “A Atuação Social da Igreja”, “O Reino de Deus através da Igreja”, “A Influência Cultural da Igreja”. Citam, ainda, frases de pensadores da missão integral, como René Padilla, David Bosch, John Stott e Gene Getz. Charles Colson e Nancy Pearcey, autores de três títulos da CPAD (Casa Publicadora das Assembleias de Deus), são frequentemente

mencionados. O texto retirado do livro O Cristão na Cultura de Hoje impressiona: “Mas então devemos proceder à restauração de toda a criação de Deus, o que inclui as virtudes privadas e públicas: a vida pessoal e familiar, a educação e a comunidade; o trabalho, a política e a lei; a ciência, a medicina; a literatura, a arte e a música. Este objetivo redentor permeia tudo o que fizermos, porque não existe uma linha divisória invisível entre o que é sagrado e o que é secular. Devemos ‘trazer todas as coisas’ sob a soberania de Cristo...”. No material há também o Pacto de Lausanne, com transcrições. Lawrence Olson (1910–1993), missionário norte-americano da Assembleia de Deus que viveu no Brasil entre 1938 e 1989, se alegraria com esta notícia. Foi ele quem primeiro publicou

“Não adianta fazermos concessões que o século quer, pois no final o século vai nos rejeitar de qualquer forma.”

Robinson Cavalcanti, no 1º Fórum da Aliança Evangélica Brasileira

em português o Pacto de Lausanne.

Igreja que adora Adoração em espírito, em verdade e em árabe O primeiro Encontro de Adoradores Árabes promovido pelo ministério Pontes de Amor, em conjunto com o Integrity Music, dos Estados Unidos, aconteceu em setembro de 2003, na ilha de Barnabé, no Chipre. Desde então, mais de dez edições foram realizadas em diferentes países (Jordânia, Egito, Líbano, Síria, Emirados Árabes e Turquia). O trabalho começou em 1997, quando, convidado pela missão Portas Abertas, o cantor Asaph Borba foi pela primeira vez à Jordânia com o objetivo de produzir um álbum para um pequeno grupo de músicos cristãos. O nome do CD é Toobak (“Bem-aventurados”). Depois deste, veio Saalam (“Paz”). As músicas

provocaram impacto tanto nos cristãos locais quanto nas igrejas de outros países do Oriente Médio. Mais tarde, foi construído um estúdio de produção onde cristãos do Iraque, Palestina, Síria, Egito, Líbano e Sudão produziram músicas na língua árabe e em dialetos, como o antigo assírio. Um pequeno grupo de produção foi treinado e hoje o ministério conta com uma web rádio que transmite programação para todo o mundo árabe. A cada ano são produzidos e distribuídos milhares de CDs e DVDs. Os encontros periódicos de louvor e adoração têm favorecido a continuidade do trabalho, cujo objetivo, segundo Asaph, é “colocar os adoradores fazendo aquilo que o Pai procura: verdadeira adoração, o resto vem com o tempo”. “O árabe ama música. O som é livre, pode ser cantado e tocado, pode ser colocado na Janeiro-Fevereiro, 2012

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Igreja unida: “Contempla a tua Igreja Dá divina redenção Antes que ela desfaleça E se torne sem vigor.”

Segunda estrofe do hino “Vivifica”, cantado no 1º Fórum da Aliança Evangélica Brasileira

internet e propagado por rádio e televisão”, podendo se tornar “uma ferramenta poderosa nas mãos de Deus para evangelizar os povos do mundo árabe”, declara.

Igreja compassiva Mais que dó de Codó Codó é uma das cidades mais pobres do Maranhão, um dos estados mais pobres do Brasil. Habitualmente, a primeira refeição de algumas crianças é café fraco misturado com farinha. É esta mistura, de baixo valor nutricional, que preenche por horas o estômago delas. Mateus, 6 anos, ilustra bem como é a vida de parte das crianças de Codó. Ele mora com a mãe, dois irmãos e o padrasto. A casa tem paredes de barro, cobertura de sapé e um único cômodo grande que funciona como sala, quarto e cozinha, espaços delimitados pelos poucos itens da casa: um jarro de água, uma mesa, uma rede. Não há geladeira nem despensa. A família 64

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usa uma fossa fora da casa como banheiro. Para tomar banho, um balde substitui o chuveiro. Acilâine e seu marido, Edivaldo, pastores da Igreja Evangélica Cristã em Codó, desenvolvem há alguns anos um trabalho com as crianças da cidade, que compreende reforço alimentar, escolar, atividades recreativas e ensino bíblico. Em abril de 2010, a ONG cristã Compassion firmou parceria com a igreja e o projeto pôde ampliar o número de crianças atendidas, realizando o trabalho de maneira mais efetiva. Como na história bíblica que lhe empresta o nome, as pessoas do Projeto Bom Samaritano, além de terem dó, estão cuidando, disponibilizando oportunidades e, assim, contribuindo para quebrar o ciclo de pobreza em Codó. por Klênia Fassoni

fragilidade e força

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fragilidade de uma planta que acaba de nascer esconde a força que tem para se tornar uma árvore. Por isso são necessárias paciência e modéstia para acompanhar o processo de crescimento, que, embora inadiável, às vezes é lento e cheio de riscos. Assim é com a unidade: frágil e forte, ao mesmo tempo. A unidade é um valor cristão difícil de ser alcançado. Em se tratando da unidade da Igreja, a questão é ainda mais complexa, pois envolve heranças eclesiásticas e teológicas, contextos culturais, questões polêmicas, pecados coletivos e orgulhos pessoais. Daí a necessidade de valorizar e celebrar todo esforço honesto em favor da unidade. A Aliança Evangélica Brasileira tem sido importante nesse sentido nos últimos dois anos. Participei do 1º Fórum da Aliança, realizado entre os dias 24 e 26 de novembro de 2011, em Brasília, DF, com o tema “Unidade, Identidade e Missão” e a presença de cerca de 100 pessoas. Vi uma vontade persistente de que a oração de Cristo seja real: “Para que todos sejam um...” (Jo 17). Mesmo que não estejamos preparados para enfrentar todas as demandas desta

oração — sobretudo em uma igreja evangélica tão difusa como a nossa —, a súplica sinaliza o caminho apropriado a ser seguido. É como a caminhada misteriosa de Abraão, que, “sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia” (Hb 11.8). Sabemos que devemos caminhar, mas não temos total certeza de como será a caminhada. Não é uma questão de planejamento (o qual é sempre bem-vindo), mas de fé diante de coisas que nenhum planejamento pode mensurar. A Aliança precisa crer que Deus realmente quer e fará com que a unidade volte a ser uma virtude essencial para a vida cristã. Ela parece não buscar apenas teoria. Antes, quer estar com os braços abertos para a missão: amor, serviço e proclamação. Este é o seu lema: “Unidade em missão”. Ele nos afasta das palavras fáceis e das declarações bonitas, mas vazias, bem como do corpo oco dos ajuntamentos sem propósito. Desafio imenso! A fragilidade da pequena planta é um fato, mas confiamos no Jardineiro, que não tem medo do trabalho e é o mais interessado em que a planta se torne uma árvore frondosa. por Lissânder Dias


Abertura de alma

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ou um presbiteriano convicto e realizado. Recebi influência de meu avô, convertido aos 18 anos, nos primórdios do presbiterianismo nordestino, em 1878, com o trabalho missionário de John Rockwell Smith, embora ele tenha morrido no ano em que eu nasci (1930). Recebi influência também de meu pai, de meus tios e tias. Eles eram pastores presbiterianos e elas eram esposas de pastores presbiterianos. Considero saudável a fidelidade denominacional. Ordenado há 56 anos, nunca passei por outras denominações. Não senti nem a necessidade nem a tentação de fazer isso. Porém, não sou nem quero ser denominacionalista. Oro para que Deus me guarde desse pecado. Confesso, com vergonha, que tenho sido tomado, no

fundo, por certa inveja ou ciúme de outras igrejas e denominações. Esses sentimentos desalojam a alegria que eu deveria sentir pela expansão do reino de Deus verificada em uma denominação tão evangélica quanto à que pertenço. Sei que aí está o germe indomável da vexatória competição religiosa no Brasil e no mundo. O Espírito Santo e a minha consciência me mostram claramente que a única motivação para a plantação de igrejas e para a obra missionária deve ser Jesus Cristo. Devo vigiar e suplicar a Deus diariamente, para que me livre da inveja e do ciúme. Não me privo, também, de enxergar algumas coisas positivas que estão acontecendo em certos setores do catolicismo. Encontro-as nas revistas e nos jornais católicos que recebo. Como protestante, não tenho escrúpulo de repassar essas coisas,

especialmente quando elas enfatizam a leitura proveitosa da Palavra de Deus e a unicidade e centralidade de Jesus Cristo. Cito, por exemplo, o oferecimento de 1 milhão de Bíblias nos próximos anos, principalmente nos lugares mais carentes do país, por iniciativa da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Assim como no meio protestante, há muitos membros do clero católico e pessoas leigas derramando lágrimas e orações diante de Deus em favor de uma renovação da igreja. O mesmo aconteceu na Europa antes da explosão da Reforma Protestante do Século 16. Muitos católicos sabem e dizem que o sucesso dos padres cantores não vai modificar a situação. A maior preocupação dessa liderança que chora, ora e confessa não é competir com o avanço protestante

(que nem sempre significa a expansão do reino de Deus) nem manter a primazia numérica no país mais católico do mundo. Suponho que o clamor mais alto e mais sofrido vem de religiosas e religiosos que, nos conventos e mosteiros, têm mais contato com a leitura orante da Bíblia e com a oração. Diz-se que os remanescentes da teologia da libertação, das Comunidades Eclesiais de Base e dos movimentos libertários parecem hoje mais alinhados com o projeto redentor apresentado nas Escrituras e sonham com uma igreja mais popular. Oremos para que os ventos que sopram por lá nos refrigerem também. Todos os cristãos precisam de coerência e de aprofundamento na cristologia, na redescoberta da pessoa e da obra salvífica de Jesus Cristo, para recolocá-lo no lugar central. por Elben M. Lenz César

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P ONTO

FINAL

Rubem Amorese

Evangelização por proximidade

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vida. Porque ouvimos palavras de vida, porque nele eus estava, em Cristo, evangelizando o estava a vida, sua luz nos iluminou. E isso quisemos mundo. Esta boa nova, certamente, não anunciar. era desconhecida, insuspeita; já havia sido Entretanto, se é assim o caminho da evangelização, profetizada muitas vezes e de diversas maneiras. A e se aceitamos o encargo de sermos seus ajudadores, encarnação aconteceu na história, resultado de muita por que o fazemos tão à distância? Por que permitimos preparação; na plenitude de tempos e movimentos de as separações físicas e emocionais que nos afastam homens, anjos e do próprio Deus. do modelo? É bem verdade que as cartas, os livros, Entretanto, Deus estava, agora, consumando os sermões para as multidões e outros meios não seus propósitos, concebidos em tempos imemoriais. foram invalidados. Serviram e servem ao propósito Oferecia-nos a sua reconciliação, a sua paz, por meio do reconciliador. Porém, ficou provado que, se eram estreitamento dos laços, da proximidade, de gestos de necessários, não foram suficientes. Foi preciso encarnar. amor dadivoso. A encarnação, essa sim, se mostraria necessária e Sim, agora seu método seria o de se fazer um suficiente. conosco, por meio de seu Filho, Onde tem origem toda essa saga? achado em figura humana. Emanuel. No coração paterno amoroso e As distâncias insuportáveis a quem sacrificialmente dadivoso. Um coração ama foram eliminadas e o único Há que se considerar disposto ao que for necessário para imponderável seria se lhe permitiríamos o amor com o qual salvar alguns. Lavar pés, se preciso; tal proximidade, se o aceitaríamos Deus nos amou. enfrentar a morte, certamente (ambos em nossos espaços íntimos, se o Um amor tal que o foram requeridos). receberíamos em nossas casas. moveu a dar-se Talvez a nossa preferência pela Talvez fosse esperar demais de gente isenção afetiva esteja relacionada a que lhe dera tantas provas de soberba uma equivocada percepção do Natal. e independência. Seríamos capazes de E nossa imitação se enfraquece, abrir mão da nossa aparente autonomia pois já não sabemos ou não queremos amar como ele para aceitar seu senhorio? Não seria esse um plano amou. Talvez já não compreendamos o quão essencial destinado ao fracasso? Não haveríamos de rejeitá-lo para é o pulsar do coração por proximidade pessoal, por preservar nosso maior tesouro, o nosso ego? Sim, talvez fosse um plano maluco. Entretanto, há que intimidade, para a evangelização evangélica. Onde encontrar o ensino sobre uma atitude se considerar o amor com o qual nos amou. Um amor tão altruísta, profunda, integral? Examinemos, tal que o moveu a dar-se. E assim fez. Vimos o menino, cuidadosamente, o Natal e a Páscoa. Esses eventos nos conhecemos o homem e contemplamos a cruz. Nela falam do amor de Deus em ação entre os homens. estava a prova cabal desse amor quase incompreensível. Se considerarmos as perspectivas de reciprocidade, as Rubem Amorese é presbítero na Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília, e foi chances eram pequenas. professor na Faculdade Teológica Batista de Brasília por vinte anos. Antes de se aposentar, Contudo, assim foi e assim se fez. E o que os nossos foi consultor legislativo no Senado Federal e diretor de informática no Centro de Informática olhos viram, e as nossas mãos apalparam, isso nos e Processamento de Dados do Senado Federal. É autor de, entre outros, Louvor, Adoração e Liturgia e Fábrica de Missionários — nem leigos, nem santos. ruben@amorese.com.br transtornou. Como que por milagre, trouxe-nos nova

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