ENTREVISTA: RONALDO LIDÓRIO – A primeira missão da igreja é “desglorificar-se” para glorificar a Deus
A turma de Jesus ESPECIAL PEDOFILIA E PERDÃO
MISSÃO INTEGRAL JESUS CRISTO, SENHOR DE TUDO E DE TODOS
DA LINHA DE FRENTE OS BRAÇOS DE FÁBIO Maio-Junho, 2010
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A bertura
Caim e a neurocientista do Alabama
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impossível entender. Uma doutora em genética pela Universidade de Harvard, 44 anos, casada, três filhos, só porque não foi promovida ao cargo de professora titular da Universidade do Alabama, abre a bolsa, apanha uma arma e atira em seis de seus colegas, matando três deles. A tragédia aconteceu durante uma reunião de professores de biologia — a ciência da vida — no dia 12 de fevereiro de 2010. Nenhuma resposta, seja da psicologia, psiquiatria, antropologia, sociologia e outras ciências, satisfaz plenamente a sede de explicação que o acontecimento exige. Outros dramas históricos e frequentes, como a guerra, o terrorismo, o narcotráfico, a opressão dos poderosos (palavra usada no cântico de Maria) contra os mais fracos, os terremotos e os tsunamis, também ficam sem resposta adequada. A não ser que se recorra à Bíblia, à tradição judaico-cristã. Porém exatamente os intelectuais oferecem resistência à explicação teológica da questão. E ela é formidável. Imediatamente após a queda, o Criador decretou: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15). A guerra entre Deus e o Maligno, entre o bem e o mal, entre os seres humanos e a serpente foi deflagrada nesse dia e continua até hoje. Na página seguinte do livro de Gênesis, lê-se que uma pessoa foi tomada de inveja por outra, que a inveja levou à ira e esta, ao crime. O que aconteceu na ocasião foi mais hediondo do que o crime cometido no Alabama. O assassino e a vítima eram filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Trata-se de uma tragédia dupla, pois a morte de Abel foi a estreia da morte e o
primeiro morto não morreu por causa de uma doença ou de um acidente, mas por causa da violência de Caim (Gn 4.1-8). A maior parte das versões usa a palavra inimizade; outras preferem a palavra hostilidade (BJ, TEB, EP), e a Edição Pastoral Catequética emprega a palavra ódio. Seja qual for a tradução, o embate foi declarado (Gn 3.15) e inaugurado (Gn 4.8) logo no início da história da humanidade. O antagonismo entre os seres humanos e o que a serpente significa acontece na superfície e no mais íntimo de qualquer ser humano, em qualquer tempo (a guerra entre o amor e o ódio, entre o escrúpulo e o desejo maligno, entre a voz da consciência e os reclames do mal, entre a educação e o instinto, entre a sensatez e a loucura, entre a carne e o Espírito). Esse conflito é a principal matéria da mídia. Está nos livros de ficção e de história. É o dia-a-dia de toda sociedade. Nessa guerra, a serpente fere o calcanhar do descendente da mulher (é bom lembrar que os pés e as mãos de Jesus foram perfurados pelos cravos da crucificação, Sl 22.16) e o descendente da mulher fere a cabeça da serpente (é bom lembrar a promessa de que o Deus da paz esmagará Satanás debaixo dos nossos pés, Rm 16.20). Além de explicar o drama do fracasso e do sofrimento humano, o decreto do Criador (“Porei inimizade entre a serpente e a mulher”) é o primeiro clarão da vitória de Jesus sobre a serpente, sobre as potestades do ar, sobre a violência, sobre a opressão, sobre a dor, sobre a doença, sobre a morte e seu irmão gêmeo, o pecado. Na plenitude desse clarão veremos a redenção de toda a criação — os novos céus e nova terra!
Na plenitude dos tempos, veremos a redenção de toda a criação — os novos céus e nova terra
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fundada em 1968
ao leitor
ISSN 14153-3165 Revista Ultimato – Ano XLIII – Nº 324 Maio-Junho 2010 www.ultimato.com.br Publicação evangélica destinada à evangelização e edificação, não denominacional, Ultimato relaciona Escritura com Escritura e acontecimentos com Escrituras. Visa contribuir para criar uma mentalidade bíblica e estimular a arte de encarar os acontecimentos sob uma perspectiva cristã. Pretende associar a teoria com a prática, a fé com as obras, a evangelização com a ação social, a oração com a ação, a conversão com santidade de vida, o suor de hoje com a glória por vir. Circula em meses ímpares Diretor de redação e jornalista responsável: Elben M. Lenz César – MTb 13.162 MG Arte: Liz Valente Foto de capa: Mark Ford Impressão: Plural Tiragem: 35.000 exemplares Colunistas: Alderi Matos • Bráulia Ribeiro Carlinhos Veiga • Marcos Bontempo Paul Freston • René Padilla Ricardo Barbosa de Sousa • Ricardo Gondim Robinson Cavalcanti • Rubem Amorese Valdir Steuernagel Participam desta edição: Lissânder Dias • Philip Greenwood • Ricardo Gouvêa • Rodolfo Amorim Vittoria Andreas Publicidade: anuncio@ultimato.com.br Assinaturas e edições anteriores: atendimento@ultimato.com.br Reprodução permitida: Favor mencionar a fonte. Os artigos não assinados são de autoria da redação. Publicado pela Editora Ultimato Ltda., membro da Associação de Editores Cristãos (AsEC) Editora Ultimato Telefone: (31) 3611-8500 Caixa Postal 43 36570-000 — Viçosa, MG Administração: Klênia Fassoni • Daniela Cabral Ivny Monteiro Editorial e Produção: Marcos Bontempo Bernadete Ribeiro • Djanira Momesso César Fernanda Brandão Lobato • Gláucia Siqueira Paula Mendes • Paulo Alexandre Lobato Finanças/Circulação: Emmanuel Bastos Aline Melo • Cristina Pereira • Daniel César Edson Ramos • Luís Carlos Gonçalves Rodrigo Duarte • Solange dos Santos Vendas: Lúcia Viana • Lívia Moraes Lucinéa Campos • Romilda Oliveira Sabrina Machado • Vanilda Costa Estagiários: Ariane Santos • Euniciléa Ferreira Jamille Filgueiras • Juliani Lenz • Thales Moura Lima 4
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Desabamentos
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omeçamos o ano com os trágicos desabamentos em Angra dos Reis e o segundo trimestre com os trágicos desabamentos no Rio de Janeiro e em Niterói. O que aconteceu com as casas construídas sobre toneladas de lixo, no morro do Bumba, em Niterói, nos leva ao final daquele longo sermão que Jesus proferiu do alto do monte Chifres de Hatim, entre o mar da Galileia e a cidade de Cafarnaum. Nessa ocasião, Jesus faz referência a dois tremendos desabamentos. O primeiro envolve a destruição de um imóvel construído imprudentemente sem apoio algum. Trocando a palavra “terra” por “lixão”, o texto relata exatamente o que aconteceu em Niterói: “[Certo] homem construiu uma casa no lixão, sem alicerce. Quando a água bateu contra aquela casa, ela caiu logo e ficou totalmente destruída” (Lc 6.49, NTLH). O segundo envolve a repentina destruição de um projeto de fé e esperança construído sem o alicerce necessário. Jesus é a pedra sobre a qual se constrói a fé e a conduta do crente. Sem esse fundamento, mais cedo ou mais tarde, a casa desaba. Se alguém construir o seu edifício religioso sobre a pedra e não sobre a areia, a terra ou o lixão, mesmo que a água bata contra essa casa, ela não se abalará nem desmoronará (Lc 6.46-49). Se é difícil convencer um morador a não construir sua casa sobre um lugar de risco, quanto mais convencer um pecador a construir sua fé e sua conduta sobre a pessoa e o ensino de Jesus Cristo! A possibilidade de acreditar no desmoronamento de uma casa construída no lixão é difícil; a possibilidade de acreditar no desmoronamento de uma esperança é muito mais. É assim que Jesus termina o Sermão do Monte! Elben César
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“Eu era fariseu...”
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testemunho de conversão de Paulo ganha muito mais realce na Nova Tradução na Linguagem de Hoje: “Eu era fariseu... Eu era tão fanático, que persegui a Igreja” (Fp 3.5-6). Lembrar a sua militância dentro do partido religioso e político dos fariseus foi um ato de extrema coragem de Paulo. Jesus denunciou essa seita judaica com grande veemência, principalmente num dos seus últimos discursos. No capítulo 23 de Mateus, ele os chama abertamente de hipócritas sete vezes. Os fariseus explicam a lei de Moisés, mas “não fazem o que ensinam” (v. 3). Amarram fardos pesados nas costas dos outros, mas não os ajudam “nem ao menos com um dedo a carregar esses fardos” (v. 4). Copiam e amarram na testa e nos braços trechos das Sagradas Escrituras só para serem notados pelos outros (v. 5). Adoram ser tratados com respeito e chamados de mestres nos espaços públicos (v. 7). Trancam a porta do reino do céu, não entram “nem deixam que entrem os que estão querendo entrar” (v. 13). Exploram as viúvas, roubamlhes os bens e, “para disfarçarem, fazem longas orações” (v. 14). Atravessam os mares e viajam por todas as terras fazendo proselitismo e, quando alguém se converte, “tornam essa pessoa duas vezes mais merecedora do inferno” do que eles mesmos (v. 15). Ensinam uma porção de coisas inexatas, dão o dízimo até da ervadoce, “mas não obedecem aos mandamentos mais importantes da lei” (v. 23) e têm o vício de coar mosquitos e engolir um camelo (v. 24). O pior de tudo é que os fariseus fazem questão de lavar o copo e o prato só por fora, deixando dentro deles as coisas que “conseguiram pela violência e pela ganância” (v. 25). Ao dizer que os fariseus eram “como túmulos pintados de branco, que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos e podridão” (v. 27), Jesus poderia ter usado o dito popular “Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento” ou o seu correspondente “Por fora, muita farofa; por dentro, não tem miolo”. 6
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Certamente, Paulo, nem mesmo antes da sua conversão, tinha essas características próprias dos fariseus. Porém viajava de cidade em cidade para desconverter os cristãos. Ele mesmo conta ao rei Agripa: “Durante muito tempo eu os castiguei em todas as sinagogas e os forcei a negar a sua fé. Tinha tanto ódio deles, que até fui a outras cidades para persegui-los” (At 26.11). Não é fácil mudar de vida. Não é fácil deixar de lado estilos de vida herdados, ensinados, aprendidos, experimentados, adotados, vivenciados e arraigados por muitos anos. Também não é fácil livrar-se de certas dependências, como a dependência do álcool, da maconha, da cocaína, da pornografia. Não é nada fácil mudar de comportamento, do ódio para o amor, do egoísmo para o altruísmo, da soberba para a humanidade, do pão-durismo para a mão aberta. Não é nada fácil mudar de posição religiosa, do ceticismo para a fé, da indiferença para o fervor, da ignorância para as convicções, da irreverência para o temor do Senhor. Todavia, além do exemplo de Paulo, a história bíblica e a história moderna estão cheias de mudanças reais e definitivas. No último instante de vida, um dos ladrões crucificados ao lado de Jesus deixou de escarnecer do Senhor (Mt 27.44) e passou para o lado dele (Lc 23.39-43). Paulo garante que muitos cristãos de Corinto, na Grécia, o elo entre Roma, a capital de império, e o Oriente, eram ex-adúlteros, ex-alcoolistas, ex-assaltantes, ex-fofoqueiros, ex-homossexuais ativos e passivos, ex-trapasseiros. Todos foram poderosamente alcançados pela graça especial de Deus, lavados, justificados e santificados em Cristo Jesus (1Co 6.9-11). Ainda há esperança para homens e mulheres de qualquer lugar, de qualquer idade e de qualquer situação. Muitos ainda podem vir a declarar como Paulo: “Eu era fariseu... Eu era tão fanático, que persegui a Igreja”.
Josep Altarriba
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Especial Cristo é mais!, Ricardo Quadros Gouvêa Pedofilia e perdão
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Da linha de frente Os braços de Fábio, Bráulia Ribeiro
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Missão integral Jesus Cristo, Senhor de tudo e de todos, René Padilla Ética Espiritualidade cristã e vida intelectual: alguns modelos históricos, Paul Freston O caminho do coração Coração compungido e contrito, Ricardo Barbosa de Sousa Reflexão 50 anos de crente: 1960-2010 (parte 2), Robinson Cavalcanti Graça, Ricardo Gondim Redescobrindo a Palavra de Deus Chamados para expulsar demônios: denúncia de morte, anúncio de vida, Valdir Steuernagel História Flertando com o adversário: os evangélicos e a teologia liberal, Alderi Souza de Matos Entrevista A primeira missão da igreja é “desglorificar-se” para glorificar a Deus, Ronaldo Lidório Ponto final E que governe bem a própria casa, Rubem Amorese
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A turma de Jesus Os porta-vozes Os familiares Os empolgados Os acompanhantes Os agradecidos Os protetores Os continuadores Os redimidos
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Abertura Carta ao leitor Pastorais Cartas Frases Mais do que notícias Nomes Notícias Números De hoje em diante... Altos papos Meio ambiente e fé cristã Caminhos da missão Novos acordes Vamos ler! Deixem que elas mesmas falem
ABREVIAÇÕES:
AS21 - Almeida Século 21; BH - Bíblia Hebraica; BJ - A Bíblia de Jerusalém; BP – A Bíblia do Peregrino; BV - A Bíblia Viva; CNBB - Tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; EP - Edição Pastoral; EPC - Edição Pastoral Catequética; NTLH - Nova Tradução na Linguagem de Hoje; TEB - Tradução Ecumênica da Bíblia. As referências bíblicas não seguidas de indicação foram retiradas da Edição Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil, ou da Nova Versão Internacional, da Sociedade Bíblica Internacional.
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Deus não está calado! Deus não está calado! é uma das melhores matérias de capa de Ultimato. É bom saber que Deus continua levantando verdadeiros profetas, fiéis à ortodoxia e de inquestionável lucidez intelectual. Aproveito para citar o “quinto elemento”, o caçula do grupo, também anglicano. Alister McGrath, exateu, seguidor de Lewis, biofísico e teólogo, é autor de obras como O Delírio de Dawkins, Como Lidar com a Dúvida, Uma Introdução à Espiritualidade Cristã e outras. Vale a pena conhecer. Antônio Márcio da Cunha, Belo Horizonte, MG A edição de março/abril é uma das melhores de todos os tempos. A matéria de capa, Deus não está
calado!, é profunda e singular. Em 2007, morei na Inglaterra e pude experimentar o que é viver em um país pós-cristão. Também tive experiências maravilhosas que enriqueceram meu ministério. Visitei a casa e museu de John Wesley, estive na igreja de Charles Spurgeon e, apesar de tudo, vi que naquele país ainda há pessoas comprometidas com o reino de Deus. Precisamos orar mais pela Inglaterra e por toda a Europa. Daniel Moda Júnior, Mogi Mirim, SP
Teologia da surpresa A respeito do artigo Teologia da surpresa (“Abertura”, março/abril de 2010), realmente é uma surpresa terrível quando se perde, no meu caso, uma filha querida, Adriana Francisca van Sluys, que morreu em 31 de maio de 2009 no acidente com o voo da Air France. Ao longo das investigações, que tenho acompanhado de perto, ficou claro que o airbus (e não o boeing, como está escrito) falhou porque seu elevado grau de automação, ou seja, a eletrônica, não deixou lugar para a intervenção manual humana. Em condições atmosféricas instáveis, a dependência da ciência
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foi tão “soberana” que a dádiva de Deus, ou seja, o raciocínio — que poderia ter evitado a tragédia —, foi posta de lado. Assim como o profeta Isaías, poderíamos repetir: “Faço tornar atrás os sábios, cujo saber converto em loucura” (Is 44.25). Até quando? Martem van Sluys, Fortaleza, CE
Por que não sou de esquerda Nenhum cristão precisa se declarar conservador ou de esquerda. Para defender causas nobres, basta ser cristão. Falar dos assassinatos dos hitleristas-nazistas ou dos comunistas e tratá-los como ciclo diabólico (o que de fato são), sem mencionar os mesmos atos dos capitalistas, dos ditadores militares latino-americanos, também é diabólico. Pedro Virgílio, Serrinha, BA Mostrando um desconhecimento sociológico gritante, Norma Braga restringe o pensamento esquerdista ao malfadado stalinismo de viés soviético. Não cita as variações existentes no universo esquerdista, como o trabalhismo, a social-democracia, o anarquismo, o socialismo
democrático etc. Para ela, o mundo é dividido de forma dual. Ou se é fã do falido capitalismo laissezfaire, ou se cultua o ineficiente regime estatizante norte-coreano. No universo de Norma não há uma Dinamarca, que historicamente une o que há de melhor no capitalismo e no socialismo. Para piorar, os argumentos bíblicos são sofríveis, não merecendo sequer uma linha para refutá-los. André de Oliveira, São Paulo, SP O texto de Norma Braga chega a ser simplório. Como ela não aponta os crimes e investidas contra o projeto de Deus para a humanidade perpetrados pelos regimes de direita, pelos conservadores de sempre e pelo sistema capitalista, não dá para discutir um mínimo denominador comum sobre posições possíveis ao cristão no exercício de sua cidadania e de opções no quadro político-partidário. Da minha parte, tenho tranquilidade em dizer que, graças a Deus, sou de esquerda, sem pretender absolutizar minha posição. A rigor, cristãos de direita e de esquerda são chamados pelo Pai eterno a uma lealdade infinitamente superior e distinta daquela que podemos assumir em relação a partido, facção, ideário, afeição ou inclinação e
mesmo a qualquer grupo. No céu não haverá tais distinções. Enquanto não chego lá, sendo brasileiro, latino-americano, afrodescendente e com o conhecimento e a trajetória de vida que tenho, digo com todas as letras: sou cristão, de tradição reformada e presbiteriana, e sou de esquerda. É simples assim. André Martins, Sobradinho, DF Adorei o artigo de Norma Braga. Que venham outros da lavra dela. Eduardo Vaz, Nova Lima, MG Norma Braga não soube expressar bem sua consciência cristã. A origem dos termos direita e esquerda remonta à Revolução Francesa, em que os do clero (Primeiro Estado) e os da nobreza (Segundo Estado) se sentavam à direita do rei e eram favoráveis a todas as decisões que eles mesmos tomavam. Os mais radicais, que normalmente eram contra as decisões, ficaram conhecidos como “os da esquerda”, pois se sentavam à esquerda do rei — eram os membros do Terceiro Estado (e não eram do clero nem da nobreza). Assim, a esquerda geralmente implicava apoio a uma mudança social com o intuito de criar
condições para uma sociedade mais igualitária, apoiando a república e a secularização do Estado. No Brasil, existe uma enorme parcela de nossos patrícios que, há quinhentos anos, vive à margem da sociedade. Porque, como em todo governo humano, “o sistema trabalha a favor daqueles que detêm o poder e a influência para mudá-lo” (Bell e Golden, em Jesus Quer Salvar os Cristãos). Paulo da Anunciação, Maringá, PR Se o artigo de Norma Braga fosse Por que não sou de algumas esquerdas, eu, honestamente, permaneceria calado. Como não foi o caso, acho difícil me segurar. Todas as vezes que o cristianismo falou com voz política, falou grosso, pela boca de reis, do clero e de governos que muitas vezes esmagaram os mais pobres. Da mesma forma, alguma possível esquizofrênica “esquerda única cristã” faria as mesmas ou piores atrocidades, com a mesma legitimidade, caso estivesse no poder. Ou seja, não há lado bom quando se mistura Estado e ideologia religiosa oficial. Por isso, também tenho minhas dúvidas sobre a esquerda — mas ela dá um banho na direita. André Soares, Niterói, RJ
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Carta aberta Obrigado pela coragem e ternura de Ultimato. Apoio integralmente a linha editorial da revista, sua política de distribuição e seu quadro de articulistas. Osmar Ludovico, Lauro de Freitas, BA Aprecio a visão de reino de Ultimato. Ela não se restringe a batistas, presbiterianos, metodistas ou qualquer outra denominação. É triste ver o tempo que a igreja perde com briguinhas por coisas pequenas. Se esse esforço fosse gasto para amar os não salvos, o cristianismo no Brasil seria mais verdadeiro. Fernanda Siqueira, Belo Horizonte, MG A propósito da Carta aberta (também franca e dolorida), digo apenas: prossigam! O preconceito é um veneno terrível. Mas o evangelho de Jesus Cristo vale a pena! Antônio Carlos Santini, Belo Horizonte, MG A Carta aberta está bem pontuada, transparente e participativa. Ministérios amplos e influenciadores, como o de Ultimato, serão sempre objetos de observação, participação, elogios e críticas. Há três
coisas a fazermos em relação às críticas. Primeiro, não as jogarmos fora, pois mesmo aquelas feitas sem motivação cristã, ou impulsionadas pelo desejo do puro questionamento, podem conter alguma verdade útil a nosso respeito. Portanto, o Senhor pode transformá-las em sinais que guiam. Segundo, não dormirmos com a crítica. É necessário avaliá-la na presença Deus, com coração aberto — observar sua consistência, conversar com amigos a respeito e tomar atitudes necessárias. Porém, dormir com ela pode gerar uma ansiedade crônica no coração, que entristece e pode nos paralisar. Terceiro, não nos tornarmos críticos. As pessoas mais críticas que conheço foram muito criticadas no passado. Ataques com críticas não apenas abatem e destroem o alvo das mesmas, mas também têm o potencial de criar os neocríticos, que, a partir dos mecanismos de defesa sempre aguçados, vivem em guerra e não descansam em Deus. Ronaldo Lidório, Manaus, AM
em frente, do jeito que ela sempre foi: coerente, coerente e coerente. O Grande General de Ultimato é Cristo! Wilson de Oliveira Jr., Recife, PE
Totalmente desnecessária a Carta aberta. Não permitam que pessoas com boas ou más intenções atrapalhem a grande obra de vocês. Não percam o foco nem olhem para trás. Ultimato tem que ir
Assustei-me com a Carta aberta. É lamentável que as pessoas tenham o trabalho de atirar pedras em quem faz um trabalho sério e comprometido com o Senhor! Continuem firmes. Vocês são sérios. Se há
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Foi bom terem publicado a Carta aberta, mas não se preocupem com os críticos. A orientação que sempre dou é: ouça as críticas e veja se alguma coisa pega. Se não, esqueça-as; se pega em algo, procure corrigir e corrigir-se. Nos casos mencionados na Carta aberta, é evidente que, em geral, as críticas vêm de gente fanática, ou estreita, ou maldosa, ou invejosa, ou ignorante. Devemos dar graças a Deus quando recebemos críticas por sermos fiéis. Odayr Olivetti, Águas da Prata, SP Somos um rebanho (com ovelhas de todos os tipos) ou uma tropa, em que é proibido pensar além dos coronéis? Parabéns, Ultimato. Não se cale. Daniela de Souza, Goiânia, GO
Minha sugestão é que Ultimato não dê importância às críticas. Que siga sendo o que é. Que publique o que acha que deve publicar, à luz da direção de Deus. Só peço que pare de mentir para si mesma e para todos nós, alegando ser um periódico cristocêntrico e reformado, já que ficou claro que nem uma nem outra afirmação é verdadeira. A revista adota uma teologia plural, não reformada, e abriga autores que não engrandecem a Jesus Cristo — o que a impede de se caracterizar como cristocêntrica. Alex Meimaridis, São João da Boa Vista, SP
adolescência. Assino porque é uma revista de linha editorial equilibrada, não deprecia ninguém, é honesta nas avaliações e busca ser caridosa nas críticas. Porque é capaz de reconhecer que há conhecimento e ciência além das Escrituras, e que ciência e fé cristã não são inimigas nem adversárias, ainda que existam pontos focais de tensão. Porque não fica na mesmice e porque busca estimular respostas a novas questões, rever as antigas e reafirmá-las, se assim for considerado correto. Porque tem sido um dos recursos para minha santificação pessoal, desafio intelectual e elaboração de ideias. Há críticas irritantes, críticas pobres, críticas analfabetas e críticas razoáveis e sensatas. Estas últimas são úteis no conhecimento; as primeiras, para o exercício de uma santa paciência; as segundas, para o exercício da oração; as terceiras para o exercício da reflexão sobre como alfabetizar biblicamente quem não tem condições de o ser. Continuem buscando acertar, mesmo que errando. Continuem a buscar articulistas que sacudam visões envelhecidas e inúteis e nos apontem caminhos para um evangelho integral.
Conheço a revista Ultimato desde o final da minha
Eduardo Mundim, Belo Horizonte, MG
erros, credite-se na conta da humanidade de cada um de nós, sujeitos a isso. Mas não desanimem. Vocês não apresentam uma revista espiritualizada, como se fôssemos extraterrestres, mas espiritual e dirigida ao mundo em que vivemos, à realidade de nossas comunidades, que nem sempre são os sonhos da igreja que Deus idealizou para nós. Os autores são corajosos e talvez isso assuste alguns leitores. Nancy Dusilek, Rio de Janeiro, RJ
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or meio do mecanismo da sedução, o Diabo tornou o automóvel um objeto de desejo humano, pois o carro nos dá um onipotente sentimento de liberdade: locomovo-me quando quero, para onde quero e com quem quero! Jorge Wilheim, arquiteto e urbanista, ex-secretário estadual de Meio Ambiente do Estado de São Paulo
German Lorca
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”
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monge não busca o paraíso pela “fuga mundi”. A clausura não é tanto uma questão física. É mais uma questão espiritual, de silenciar o coração para ter foco na espiritualidade. Carlos Eduardo Uchôa, reitor do Colégio e Faculdade São Bento
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única saída para Brasília seria chover muito fogo e muito enxofre por lá. Rene G. Santana, de Jundiaí, SP, em carta à Folha de São Paulo
“D
Arquivo pessoal
sala do conselho
”
Sônia Rodrigues — Pecar ocupa tempo e dá trabalho. Ariovaldo Ramos — Ética é isto: a coerência entre o meio e o fim. Ser ético, então, para a igreja, é ser coerente na história, em meio à sociedade, com a complexidade de sua natureza e finalidade. N. T. Wright — Santidade não é simplesmente uma questão de ULTIMATO
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”
stamos pensando em ajudar pessoas que serão ricas daqui a cem anos, mas deixando de ajudar as pessoas pobres que estão aqui agora. Este é, para mim, o grande dilema ético: nós nos importamos tanto com os ricos do futuro e tão pouco com os pobres do presente. Bjorn Lomborg, cientista político dinamarquês
”
Sem princípios, os crentes perdem a vitalidade; “o que salva é ter muitos conselheiros” (Pv 11.14).
José Carlos Barcellos — Vivemos uma crise de valores na qual bem e mal, salvação e perdição, apresentam-se inextrincavelmente misturados e confundidos.
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s armas nucleares são um perigo para todo o mundo, mas são também uma razão para que potências nucleares não façam mais guerras entre si. Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Ciência e Tecnologia
” “E
evemos procurar mais gente para indicar o caminho certo e menos gente para mostrar o que está errado. Mais gente para investir em missões e menos gente que gasta muito com gatos e cães. Jeremias Pereira da Silva, pastor da Oitava Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte
Na
“A
encontrar o caminho por onde Deus quer que andemos. Também não é obediência a regras arbitrárias ou ultrapassadas. Santidade é uma questão de transformação, a começar pela mente. Rikk Watts — O amor ao poder é a maior tentação que enfrentamos. Desenhar círculos para determinar quem fica dentro e quem fica fora é uma forma sutil de exercício do poder. Isidoro Mazzarolo — A preguiça é sempre uma forma de agir que cria dificuldades e acúmulos de peso sobre o outro.
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Michal Zacharzewski
+ DO QUE NOTí C IAS
Cartunista coloca veneno na imaginação dos teenagers e se manda
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oi na Folhateen, o caderno semanal da Folha de São Paulo dedicado ao público teenager — adolescentes entre 13 e 19 anos. Na última página da edição de 15 de fevereiro de 2010, estava escrito, entre outras coisas: “Afinal, pra que serve o casamento? Antigamente as pessoas se casavam porque estavam desesperadas para fazer sexo com o seu par. Mas hoje, segundo sérios estudos, 99,63568% dos jovens perdem a virgindade antes do casamento. Os outros 0,36432% não quiseram dar depoimento. Concluímos,
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então, que o matrimônio perdeu todo o sentido. Se casamento fosse bom, não precisava de testemunhas.” “Antes de cometer a besteira de casar, conheça o pai ou a mãe do seu parceiro para saber como ele vai ficar depois de contrair o matrimônio. Veja o tamanho da pança do sogro e onde foram parar os seios da sogra. Digamos que o casamento é uma fábrica de monstros.” “Se você pode ter inúmeros parceiros, porque diabos vai escolher ter um só?” “O casamento é uma sociedade. Funciona co-
mo uma empresa. Tem um contrato, com assinaturas, rubricas, cláusulas, deveres, obrigações e carimbos de todas as cores. Quando essa empresa quebra é muito provável que seu “sócio” vire seu arquiinimigo. Lembre-se de que o casamento é que nem submarino. Pode até boiar, mas foi feito para afundar.” Quem assina o texto, ilustrado com vários desenhos, é o cartunista gaúcho Adão Iturrusgarai, de 45 anos. No final da página, há uma nota: “Isto é um texto de humor, entendido?”
O crime desse Adão lembra o crime daquele inimigo que, de noite, enquanto todos dormiam, entrou na lavoura alheia, semeou joio no meio do trigo e se foi (Mt 13.25). Depois de semear veneno na imaginação e na memória de meninos e meninas, o artista dá uma explicação e se manda. E todos o aplaudem, inclusive os pais dos teenagers. Isso faz parte do tal antagonismo entre a serpente e os seres humanos. (Veja Caim e a neurocientista do Alabama, pág. 3.)
+ DO QUE NOTí CIAS
O que o Ministério da Saúde faz hoje as igrejas evangélicas já faziam ontem
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igreja nem sempre erra. Costuma acertar e tomar a dianteira na solução de alguns problemas. Desde que foram implantadas no Brasil, a partir da segunda metade do século 19, as igrejas evangélicas de missão eram contrárias ao fumo. Antes de ser batizado nas igrejas congregacionais presbiterianas, metodistas e batistas, o novo convertido era encorajado a deixar de fumar. Mais tarde, quando chegaram os primeiros pentecostais (Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil), a mesma medida foi adotada. Milhares de fumantes brasileiros abandonaram o vício (como era chamado). Alguns tiveram dificuldade e demoraram anos para se
livrar dos cigarros. Por causa do ensino da igreja e do exemplo dos pais, uma enorme quantidade de adolescentes e jovens nunca se iniciou no tabaco. E como há uma relação entre a dependência do fumo e a de substâncias ilícitas, a vantagem foi maior do que se esperava. De alguma forma, esse comportamento livrou muitas pessoas do câncer, de outras doenças e da morte, além de oxigenar o ambiente. O que o evangelho fez e ainda faz, é feito hoje pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde, por meio de muitas leis, muita propaganda e muitos gastos. E também com bons resultados — cerca de 21 milhões de brasileiros deixaram de fumar nas últimas duas décadas.
CNBB começa a distribuir 1 milhão de Bíblias no país
N
o dia 6 de março foi lançado em Teresina, no Piauí, o Projeto Um Milhão de Bíblias, desenvolvido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em parceria com a Comissão para a Missão Continental no Brasil. O objetivo da companhia é levar a Palavra de Deus a todos os brasileiros que não têm condições de comprar a Bíblia. A doação de 1 milhão de Bíblias não será feita de qualquer jeito. Cada diocese ou arquidiocese terá de apresentar um projeto de evangelização para ser analisado por uma comissão responsável. Se aprovado, a diocese receberá quantas Bíblias forem necessárias, acompanhadas de outros itens (uma Bíblia infantil, um pequeno catecismo e um livreto sobre a iniciação à leitura da Bíblia). É oportuno lembrar que a evangelização do Brasil começou com a introdução da Bíblia no país por meio dos chamados colportores (distribuidores de Bíblia). Provavelmente, a primeira
remessa das Escrituras em língua portuguesa ocorreu em 1712, quase 150 anos antes da chegada do primeiro missionário protestante. Foram 150 exemplares do Evangelho de Mateus, na tradução de João Ferreira de Almeida, impressos em Amsterdã e publicados pela Sociedade Promotora da Religião Cristã. Os Evangelhos estavam a caminho de Goa, colônia portuguesa encravada no sul da Índia, mas o navio holandês que os transportava foi surpreendido por uma esquadra francesa e veio parar no Brasil. A partir de 1818, a distribuição da Bíblia no Brasil passou a ser feita efetivamente por meio dos agentes das duas sociedades bíblicas existentes — a britânica e a americana. Organizada em 1948, a Sociedade Bíblica do Brasil, em menos de 60 anos (de 1948 a 2007), colocou em circulação quase 70 milhões de Bíblias, mais de 13 milhões de Novos Testamentos, mais de 104 milhões de Porções Bíblicas e quase 4 bilhões de Seleções Bíblicas. Maio-Junho, 2010
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Nomes
Adília e Binho
O “bebadozinho” de Itaguaí P
arece que ninguém sabe ao certo o nome do pastor. Chamam-no Binho. É pastor Binho prá lá e pra cá. E Binho não é o diminutivo do seu nome, mas de “bebinho”, uma corruptela de bebadozinho. Como é possível chamar um pastor de 45 anos de um nome que lembra o estado de embriaguez de alguém que bebe demais? A história, porém, justifica o apelido e traz sempre à lembrança uma graça de Deus que sua mãe não quer esquecer. Jorcelino da Silva, o Binho, é o sexto filho de Adília da Silva. Nasceu em Itaguaí, no Estado do Rio de Janeiro, no dia 11 de fevereiro de 1965. O bebê parecia normal. Nos três primeiros meses, seu peso aumentava 200 gramas por 16
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semana. Nos três seguintes, baixou para 120 por semana, como costuma acontecer. Porém, quando chegou a hora de sentarse no berço, apoiando-se em algum encosto, o bebê não conseguiu. A mãe pensou que fosse preguiça do moleque. Chegou o décimo mês de vida e a criança não se firmava, não engatinhava nem ficava de pé. Foi a partir daí que a própria mãe passou a chamá-lo carinhosamente de “meu Bebinho”. Adília levou o filho ao médico. Ele constatou que a criança havia nascido com um tipo delicado de paralisia e a encaminhou para o Hospital Pediátrico Menino Jesus, na Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Apesar das responsabilidades domésticas e dos ou-
tros cinco filhos, a piedosa mulher, dia sim, dia não, tomava o trem, na época conhecido como Cacareco, e chegava ao hospital às oito horas da manhã. A criança era levada para dentro e fazia o tratamento de fisioterapia disponível na época. Adília permanecia do lado de fora. Ao meio-dia, um atendente levava-lhe um lanche e às quatro da tarde ela pegava o Cacareco de volta para Itaguaí. Essa rotina durou quatro anos e o querido “Bebadozinho” começou a andar. Para dar continuidade ao tratamento, a mãe levava o garoto à praia para caminhar, correr e brincar na areia, o que fortalecia cada vez mais os músculos da perna. Nessa mesma época, Adília adotou um menino sem lar e lhe deu o
nome de Moisés, porque o tinha tirado não das águas, mas da rua. Apesar de ter se recuperado do problema sem nenhuma sequela, o apelido de Binho ficou. Há 22 anos servindo ao Senhor, primeiro como evangelista (de 1991 a 2001) e depois como ministro ordenado, Jorcelino Silva é hoje pastor da Igreja Presbiteriana do Calvário, em Sorocaba, São Paulo. Casado com Léia Simioni da Cunha e Silva, sua colega no Instituto Bíblico Eduardo Lane, em Patrocínio, Minas Gerais, e obreira da mesma igreja, o pastor Binho é também graduando em psicologia pela Universidade Paulista. Tal história pode ser contada a propósito do Dia das Mães, no segundo domingo de maio.
N OTíCIAS
Biografia de Marina Silva terá 100 mil exemplares Será lançada em junho uma das biografias com maior tiragem em 2010: Marina, que conta a história da senadora Marina Silva (PV-AC). Escrito pela jornalista evangélica Marília de Camargo César, o livro será publicado por uma editora também evangélica (Mundo Cristão) e terá uma tiragem inicial de 100 mil exemplares. A autora do livro disse à Folha de São Paulo que “Marina chorou várias vezes nas entrevistas”. Com formato de livro-reportagem, Marina conta a história da senadora desde a vida no seringal, a luta pela saúde, o ingresso em movimentos militantes, a carreira política e a luta em favor do meio ambiente. O prefácio é do cineasta Fernando Meirelles, que define Marina como “boa escutadora, [que] conhece e respeita o peso das palavras e as usa com coerência, precisão e propósito”. Segundo Mark Carpenter, diretor da editora Mundo Cristão, o livro vem sendo produzido há dois anos, época em que o contrato foi assinado e quando a senadora ainda era ministra do Meio Ambiente. A trajetória de Marina não é marcada apenas pela luta política, mas também pela debilidade física (foi vítima de hepatite, leishmaniose e consequente contaminação com mercúrio) e por uma profunda transformação espiritual (queria ser freira, mas se tornou evangélica da Igreja Assembleia de Deus). Um dos capítulos do livro traz o depoimento de Fábio Vaz, esposo de Marina. Ele conta como ela deixou o ateísmo marxista e retornou à fé cristã. “Ela chegou a me dizer que Deus não existia. Ela diz hoje que, no fundo, acreditava em Deus, mas publicamente defendia que a religião era a utopia do povo. Aquele discurso marxista era de consenso. Todos aderiram a isso. A gente se converteu a essa visão; era o que todos nós consumíamos”, afirma. Em entrevista à revista TPM (13 de novembro de 2009), Marina afirmou nunca ter sofrido preconceito por causa da cor, por ser pobre ou por ter trabalhado como empregada doméstica. Mas por ser evangélica, sim. “As pessoas têm uma visão preconcebida [...]. Preconceito é quando você generaliza uma coisa: se você é evangélico, é conservador.” Maio-Junho, 2010
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revista Povos
crianças de seis anos não conseguiram passar do primeiro para o segundo ano nas escolas brasileiras em 2008 (a porcentagem é pequena: 3,5% dos matriculados).
419.200.000
reais foi a arrecadação com multas de trânsito em 2009 só na cidade de São Paulo, um aumento de 25% sobre o ano anterior.
34.000
brasileiros morrem por ano em acidentes de trânsito (média de uma morte para cada 260 veículos).
85.000.000
de habitantes da União Europeia estão de braços dados com a pobreza (uma família com ganhos inferiores a 60% da renda média do seu país é considerada pobre na Europa).
40.000
toneladas de alimentos vão para o lixo diariamente no Brasil.
273.000
casamentos foram celebrados na França em 2007. No mesmo ano, o número de divórcios foi quase a metade: 135 mil. No Brasil, também em 2007, houve 916 mil casamentos e 152 mil divórcios. 18
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Vista de mercado popular em Jemaa El Fna, Marrakech
Marrocos intensifica deportações de missionários Uma onda de deportações tem atingido o trabalho missionário no Marrocos. Segundo o missionário brasileiro Estevão Ibrahim (pseudônimo), desde o fim de 2009 cerca de sessenta missionários evangélicos foram deportados pelo governo do Marrocos, sob a acusação de proselitismo. Em um único dia, vinte pessoas foram mandadas de volta para seus países de origem. É o caso de um missionário inglês que estava há dezoito anos entre os marroquinos. Por falar o árabe local e ensinar o árabe clássico, era considerado um dos missionários mais respeitados. Até obreiros que cuidavam de crianças órfãs tiveram de abandoná-las por serem obrigados a deixar o país. Estevão Ibrahim morou de 2003 a 2005 no Marrocos e conta que, ao contrário das estatísticas mais otimistas que estimam 10 mil crentes, o país conta com apenas cerca de setecentos evangélicos. Isso porque as igrejas são, em sua maioria, clandestinas, o que não permite fazer estimativas exatas. “Creio que essa onda de deportações é um alerta de Deus para os cristãos em Marrocos”, afirma. Outro missionário brasileiro, que não quis revelar o nome, tem a mesma opinião: “Deus está agindo e, ao vermos missionários sendo expulsos, pode bem ser o caso de estarmos presenciando uma nova realidade: a pequena igreja marroquina terá de corajosamente assumir a sua responsabilidade dentro de seu próprio país. Ao longo da história os planos de Deus prevalecem, seja a que custo for. Mesmo a preço de cruz”. Marrocos é uma monarquia e está localizado no extremo noroeste da África, na fronteira com a Espanha. É um país com 99% da população islâmica.
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Evangélicos ajudam 10º município mais pobre do Brasil Uma das igrejas organizadas no município “Jesus Cristo, nosso de Portel pela Associação Pró-Ribeirinho fundamento” — esse é o lema estampado no barco da Associação Pró-Ribeirinho. Pelas águas dos rios que banham o município de Portel, PA, no extremo norte do Brasil, equipes missionárias chegam a dezenas de pequenas aldeias isoladas e levam literatura bíblica, oferecem atendimentos médicos, desenvolvem projetos comunitários para geração de renda e investem na alfabetização de adultos e no reforço escolar de crianças. Os beneficiários são os chamados ribeirinhos, moradores tradicionais das margens dos rios. “Somos enviados para que nos identifiquemos com as pessoas, pois Jesus Cristo se identificou conosco”, diz o pastor Luiz Fernando Oliveira, presidente da associação. Portel é o 10º município mais pobre do Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de analfabetismo chega a 44% e 78% da sua população vive abaixo da linha de pobreza. O projeto Pró-ribeirinho enviou sua primeira equipe em 1993. Graças a ele, dez igrejas evangélicas já foram plantadas no município. A iniciativa tem o apoio da Aliança Missionária da Suíça e da Aliança das Igrejas Cristãs Evangélicas do Brasil (AICEB).
Cristãos asiáticos buscam aproximação com brasileiros A Sealink, rede de plantio de igrejas para o sudeste asiático, e a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) vão promover uma consulta missionária entre os dias 16 e 18 de novembro, em São Paulo. Sete líderes do sudeste asiático, especialistas em plantio de igrejas, querem dialogar com pastores, líderes de departamentos de missões, professores, missionários e diretores de agências missionárias. A ideia é construir pontes de comunicação e de trabalho entre as lideranças brasileira e asiática. A expectativa da AMTB é que, a partir desse encontro, surjam oportunidades de trabalho missionário para a igreja brasileira no sudeste asiático. Informações: www.consultamissionaria.com. 20
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Site explica como as igrejas devem tratar as crianças O recém-lançado hotsite da Campanha Latino-Americana pelos Bons Tratos da Criança no Brasil traz um farto material sobre como cristãos e igrejas devem tratar as crianças. Entre os recursos disponíveis é possível encontrar estudos bíblicos, artigos, notícias, um guia metodológico da campanha e um questionário para as igrejas locais avaliarem como estão se relacionando com as crianças. O endereço é www.maosdadas.org/bonstratos. A violência infantil é um problema mundial. As Nações Unidas estimam que de 133 a 275 milhões de crianças em todo o mundo testemunham violência doméstica anualmente. A Organização Mundial de Saúde calculou, usando dados nacionais limitados, que quase 53 mil crianças morreram em todo o mundo em 2002 em decorrência de homicídios.
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Brasileiro é eleito diretor de divisão da Aliança Batista Mundial O pastor e professor Raimundo César Barreto foi eleito em março deste ano diretor da Divisão de Liberdade e Justiça da Aliança Batista Mundial (ABM, www.bwanet.org). Barreto é a primeira pessoa a assumir o cargo. A divisão trata de questões de direitos humanos e liberdade religiosa. A ABM mantém membresia em várias agências das Nações Unidas e Barreto vai coordenar o relacionamento entre a ABM e essas agências. O líder batista graduouse no Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, em Recife, PE, e é doutor em ética social cristã pelo Seminário Teológico Princeton, em Nova Jersey, Estados Unidos. Barreto foi pastor da Igreja Batista Esperança em Salvador, BA, e coordenador geral para o Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. no Brasil. Os interessados em conhecer o trabalho da ABM no campo dos direitos humanos podem escrever para rbarreto@bwanet.org.
Pesquisa propõe oito padrões de qualidade para a igreja local Quais os padrões de qualidade para o crescimento de uma igreja local? Em busca de respostas, os estudiosos Christian A. Schwarz e Christoph Schalk fizeram, durante dez anos, em conjunto com a Universidade de Würzburg, na Alemanha, um levantamento em mais de mil igrejas, em 32 países de cinco continentes. O objetivo da pesquisa foi descobrir quais os fatores e as razões que provocam ou não o crescimento de igrejas. Os dois estudiosos estabeleceram oito padrões que, segundo eles, em essência, estão presentes em todas as igrejas e dos quais depende a saúde de cada uma: liderança capacitadora, ministérios orientados pelos dons, espiritualidade contagiante, estruturas eficazes, culto inspirador, grupos pequenos holísticos (células ou familiares), evangelização orientada para as necessidades e relacionamentos marcados pelo amor fraternal. Schwarz e Schalk garantem que não estão apresentando mais um modelo de crescimento de igreja, mas sim oferecendo princípios que têm validade para igrejas em todo o mundo e que não dependem “de receitas prontas”. O resultado dessa pesquisa está descrito no livro O Desenvolvimento Natural da Igreja, publicado pela Editora Esperança. 22
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Consulta quer repensar caminhos da Missão Integral “De Lausanne à Cidade do Cabo — Caminhos, Descaminhos e Novos Desafios para a Missão Integral no Brasil.” Este é o tema da consulta anual da Fraternidade Teológica Latino-Americana — Brasil (FTL). O objetivo da consulta é “fazer uma releitura da caminhada da Teologia da Missão Integral, visando construir e renovar caminhos para a reflexão teológica e ação pastoral”. Haverá meditações bíblicas, conferências, apresentação de trabalhos acadêmicos, testemunhos, debates e um festival de artes. O evento será realizado na Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, entre 3 e 5 de junho. Informações: secretaria@ftl.org.br. Além dos membros da FTL-Brasil, estarão presentes na consulta os brasileiros que irão ao Congresso de Evangelização Mundial Cidade do Cabo 2010, organizado pelo Comitê Lausanne.
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A turma de Jesus
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nquanto viveu aqui como Filho de Deus e como Filho do homem, Jesus nunca esteve sozinho, nem em seu nascimento, nem em seu ministério, tampouco na sua morte e ressurreição. Ele estava cercado de anjos, desde o anúncio da concepção dado à Maria — “Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Jesus” (Mt 1.23) — até o anúncio da ressurreição, dado às mulheres que foram ao túmulo para embalsamar o seu corpo — “Sei que vocês estão procurando Jesus que foi crucificado [mas] ele não está aqui; ressuscitou como havia dito” (Mt 28.5-6). Ele estava cercado de pessoas prontas para servi-lo em qualquer circunstância: Maria emprestou-lhe o ventre, o colo e o seio; certo morador de um povoado próximo a Betfagé emprestou-lhe uma jumenta e o seu jumentinho para a entrada triunfal; outro proprietário emprestou-lhe uma grande sala mobiliada e arrumada em Jerusalém para ele comer a Páscoa com os discípulos; e mulheres da Galileia, curadas e perdoadas por ele, davam-lhe assistência com seus bens. Até as crianças o rodeavam e gritavam espontaneamente: “Viva o Filho de Davi!” (Mt 21.15, BV). Jesus estava cercado de pecadores, considerados, na época, os piores de todos, como os publicanos e as prostitutas. Pessoas de certo prestígio e de posses se aproximavam de Jesus e lhe prestavam algum benefício. Entre elas está Joana, mulher de Cuza, que era procurador de Herodes Antipas. Outros dois são Nicodemos e José de Arimateia, ambos ricos, conceituados e membros do Sinédrio. Inicialmente discípulos
ocultos de Jesus, eles saíram corajosamente do armário quando solicitaram a Pilatos o corpo do Senhor e o desceram da cruz para embalsamá-lo e dar-lhe sepultura. A natureza também esteve ao lado de Jesus. Na escuridão da noite em que ele nasceu, houve imensa claridade, porque a luz gloriosa do Senhor brilhou nos céus de Belém. Na claridade do dia em que ele morreu, houve densas trevas sobre a face da terra, porque “o sol parou de brilhar” do meio-dia às 3 horas da tarde. Para tornar aquela tarde ainda mais sinistra, a terra tremeu e as rochas se partiram. É muito significativo que, depois de quase dois milênios, o nome de Jesus não caiu no esquecimento e suas palavras e milagres são continuamente lembrados em todo o mundo. Havia tanto assunto sobre Jesus que João temia que o mundo inteiro não seria suficiente para caber todos os livros a serem escritos (Jo 21.25). O fenômeno persiste até hoje: três dias antes do Natal de 2002, o Jornal do Brasil publicou um artigo de Deonísio da Silva, professor da Universidade de São Carlos, o qual mencionava que haviam sido publicados mais livros sobre Jesus entre o final do segundo milênio e o alvorecer do terceiro, do que em todos os séculos anteriores. Porém, Jesus não é e nunca foi unanimidade. No correr do tempo, ele tem sido o centro da atenção de muitos e também o centro da repulsão para outros tantos. Todavia, quando se anuncia o evangelho com autoridade, coerência e convicção, muitos se convertem e fazem questão de se chamar “a turma de Jesus”! Maio-Junho, 2010
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Os porta-vozes capa
O salmista de Jesus O rei Davi viveu aproximadamente mil anos antes de Cristo e trezentos anos antes do profeta Isaías. Desde rapazinho tocava harpa muito bem. Chegou a ser musicoterapeuta do rei Saul. Era cantor e autor da maior parte dos poemas que estão no livro de Salmos. Ele é o salmista de Jesus porque compôs um poema sobre o sofrimento do Messias e outro
sobre a glória do Messias. Aqui cabe, perfeitamente, a explicação de Pedro: “Homens santos falaram da parte de Deus movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). No Salmo 22, Davi dá a impressão que estava descrevendo ao vivo a paixão de Jesus. Além de mencionar a crucificação (22.12-21), o salmista refere-se também aos detalhes da distribuição da roupa de Jesus e do
sorteio da peça principal (22.18; Jo19.23-24 ). No Salmo 110, Davi menciona a glória futura de Jesus: “Disse o Senhor [o Pai] ao meu Senhor [o Filho]: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés” (v. 1). Essa é a passagem do Antigo Testamento mais citada no Novo.
Os profetas de Jesus Por ter escrito a história de Jesus tendo em vista os judeus, Mateus faz questão de mostrar que os acontecimentos se deram porque estavam escritos em alguma passagem do Antigo Testamento. Daí a expressão que Mateus usa doze vezes: isso aconteceu
Os familiares A mãe de Jesus
O “padrasto” de Jesus
Os irmãos de Jesus
Por escolha divina, Maria cedeu o ventre para gerar, os seios para amamentar e o colo para carregar e mimar o Verbo feito carne. Quando todo o processo começou, Maria ainda era solteira. Engravidada misteriosamente por obra do Espírito Santo, casou-se com um homem que era carpinteiro. Por essa participação na encarnação de Jesus, a jovem quase perdeu o noivo (Mt 1.19). O cântico de Maria é um dos mais conhecidos e apreciados poemas religiosos. Nele, ela reconhece tanto seu demérito pessoal como a misericórdia divina (Lc 1.46-55). Maria foi uma mulher não apenas muito favorecida (Lc 1.28) e bendita (Lc 1.42). Foi, também, uma mulher sofrida, principalmente por ter assistido à cruel crucificação de seu filho primogênito (Jo 19.25) e por ter tido conhecimento dos maus-tratos dispensados a ele, desde a madrugada daquela sexta-feira (murros, bofetadas, tapas, cusparadas, desrespeito, irreverência etc.). Deve ter causado intenso sofrimento em Maria o fato de seus filhos nascidos de seu casamento com José acharem que o meio-irmão era megalomaníaco (Jo 7.1-5).
José era marido de Maria, “da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo” (Mt 1.16). Quando soube que a noiva estava grávida, sem que tivesse tido relação com ela, José “decidiu romper o noivado, mas em segredo, porque não queria desmoralizar Maria publicamente” (Mt 1.19, BV). Foi aí que Deus explicou a José o que de fato estava acontecendo a despeito de qualquer mistério. Então, o carpinteiro casou-se com Maria e passou a liderar todas as providências para proteger a segurança da criança nascida da esposa. José levou Maria e o menino para o Egito, livrando o “enteado” da violência de Herodes (Mt 2.13). Morto Herodes, a família voltou do Egito e se fixou em Nazaré (Mt 2.19-23). Quando Jesus completou 12 anos, José e Maria foram com o filho a Jerusalém para a festa da Páscoa (Lc 2.42). Em Nazaré, Jesus era submisso tanto a Maria como a José (Lc 2.51). Este teria morrido nos anos seguintes, provavelmente no início do ministério de Jesus, depois do nascimento de seus filhos e filhas (Mt 13.55-56).
A discreta informação de que José, ao casar-se com Maria, “não a conheceu na intimidade” (Mt 1.25, na Bíblia Almeida Século 21), ou “não teve relações com ela” (NTLH), ou que Maria “permaneceu virgem” (BV) até o nascimento de Jesus, faz uma boa ligação com a informação de que Jesus tinha irmãos e irmãs por parte de mãe. Eles eram filhos de José e Maria, e Jesus era filho só de Maria. Maria teve do marido pelo menos quatro rapazes — Tiago, José, Simão e Judas — e duas moças (são no mínimo duas, visto que a palavra está no plural). Jesus era o unigênito de Deus (Jo 3.16) e o primogênito de Maria (Lc 2.7). Muito estranhamente, os irmãos de Jesus, todos mais jovens, não criam nele (Jo 7.5). Os rapazes queriam que o irmão fizesse algo espetacular durante a festa em Jerusalém para chamar a atenção de todos. A boa notícia, todavia, é que depois da ressurreição de Jesus (não haveria acontecimento mais sensacional), eles se converteram (At 1.14).
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para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor “por intermédio do profeta”. Em seis dessas ocasiões, ele não cita o nome do profeta; nas outras, ele menciona duas vezes o nome de Jeremias (2.17; 27.9) e quatro vezes o nome de Isaías (3.3; 4.14; 8.17; 12.17). Os mais citados dos profetas de Jesus — aqueles que disseram alguma coisa que pudesse se aplicar à pessoa e ao ministério do Senhor — são Isaías, Jeremias, Oseias, Miqueias, Zacarias e Malaquias. O mais messiânico desses seis é o profeta Isaías. Suas profecias dizem respeito ao nascimento de Jesus (Is 9.1-7), à sua cidade natal (Mq 5.2), ao nome Emanuel (Is 7.14), à morte dos inocentes (Jr 31.15), à
entrada triunfal (Zc 9.9), ao preço da traição (Zc 11.12) e à paixão de Jesus (Is 53.1-13).
O precursor de Jesus O homem era estranho em tudo: usava uma veste de pelos de camelo, cingia-se com um cinturão de couro e alimenta-se de gafanhotos e mel silvestre. Seus sermões eram acusativos ao extremo. Não tinha papas na língua. Entretanto, “o povo de Jerusalém, de todo o Vale do Jordão e de cada região da Judeia saía ao deserto para ouvir João pregar” (Mt 3.5, BV). João Batista era, ao mesmo tempo, o cumprimento da profecia
de Isaías (Is 40.3) e a resposta da oração de Zacarias, seu pai (Lc 1.13). Seu ministério específico, segundo a determinação do Senhor, era convencer muitos pecadores a voltarem para Deus, preparando, assim, o povo para a chegada de Jesus (Lc 1.16-17). Foi João Batista que apresentou Jesus como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). Embora o Senhor tenha afirmado que “entre os nascidos de mulher não surgiu ninguém maior do que João Batista” (Mt 11.11), o precursor de Jesus foi decapitado com pouco mais de 30 anos a fim de satisfazer os caprichos de uma mulher má e sofisticada (Mt 14.6-8).
Os empolgados Os anjos de Jesus
Os magos de Jesus
Os velhos de Jesus
Anjos são pessoas. São seres vivos que estão a serviço de Deus. Movem-se nos céus e na terra. Sob o ponto de vista humano, não é irreverência chamá-los de extraterrestres. Jesus esteve cercado de anjos, do princípio ao fim, desde o nascimento até a ascensão. A participação do nascimento de Jesus foi feita por um anjo: “Hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor”. Em seguida, houve uma eclosão de muitos outros anjos dando glória a Deus por aquele evento (Lc 2.8-14). Após o jejum de quarenta dias e a tentação, “vieram anjos e o serviram” (Mt 4.11). No auge da agonia do Getsêmani “lhe apareceu um anjo do céu que o confortava” (Lc 22.43). Se Jesus quisesse, se Jesus pedisse, se a morte vicária pudesse ser dispensada, “mais de doze legiões de anjos” poderiam, se necessário, impedir a prisão de Jesus (Mt 26.53). Três dias depois, quem removeu a “grande pedra” (Mt 27.60) para que Jesus saísse vivo do túmulo foi um anjo que desceu do céu (Mt 28.2). E dois anjos, em figura humana, estavam com Jesus em sua ascensão (At 1.10-11).
Há uma grande diferença entre astronomia e astrologia. Os homens que vieram do Oriente para adorar e presentear o recém-nascido Rei dos judeus eram magos (palavra de origem iraniana que indica originalmente os observadores e estudiosos dos corpos celestes). A seriedade dada ao nascimento e à pessoa de Jesus mostra que os magos eram astrônomos — e não astrólogos —, pessoas acentuadamente religiosas e devotas. Não se sabe ao certo se eles vieram da Pérsia (atual Irã) ou da Babilônia (atual Iraque). O que se sabe é que eles viram alguma coisa diferente no espaço que apontava para um evento de grande importância na história da humanidade — o nascimento de Jesus. Muito bem informados a respeito do recém-nascido, os magos trouxeram ouro, incenso e mirra à criança e a adoraram, para surpresa de Maria e José (Mt 2.1-12). O gesto deles contrasta com o gesto de Herodes e o presente deles contrasta com a pobreza da manjedoura! O culto prestado pelos magos ao Rei dos judeus prenuncia o louvor universal que será dado ao nome de Jesus (Fp 2.10-11).
Quando Jesus estava para nascer e também logo após o seu nascimento, havia ao seu redor mais velhos do que jovens. Maria seria a única jovem. Nada se sabe a respeito da idade de José. Pensa-se que era bem mais velho do que Maria. Há quatro idosos na história do nascimento de Jesus. São pessoas notáveis quanto à piedade pessoal e quanto ao envolvimento. Zacarias e Isabel eram justos e viviam de forma irrepreensível diante de Deus. Ambos eram “avançados em dias” (Lc 1.6-7). Deus abriu a madre de Isabel e ela deu à luz João Batista, o precursor de Jesus, apesar da idade e de ser estéril até então (Lc 1.13). Os outros velhos de Jesus são o homem que tinha a certeza de ver o Senhor antes de morrer e a viúva de 84 anos que “não deixava o templo, mas adorava noite e dia em jejuns e orações” (Lc 2.37). Simeão não somente viu o recém-nascido de quarenta dias como o pegou no colo (Lc 2.28). Ana, por sua vez, também teve o privilégio de ver o menino e de falar a respeito dele com muita gente (Lc 1.36-38). Maio-Junho, 2010
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Os apóstolos de Jesus Certo dia ao amanhecer, depois de passar a noite orando a Deus no alto de uma montanha, Jesus chamou seus discípulos e escolheu doze deles para serem apóstolos. Dois se chamavam Simão: o Simão Pedro e o Simão Zelote. Dois se chamavam Judas: o filho de Tiago e o filho de José Iscariotes. Dois se chamavam Tiago: o filho de Zebedeu e o filho de Alfeu. Os outros seis são: André, João, Filipe, Bartolomeu, Mateus e Tomé (Lc 6.12-16). Jesus se dispôs a fazê-los capazes de exercer o ofício de apóstolo por meio da convivência, do ensino, de correções e de estágios. Eles comiam e viajavam juntos. Também enfrentavam, juntos, a oposição e as intempéries. O curso, por assim dizer, durou cerca de três anos. Havia inveja, ciúmes e atritos entre eles. Nem todos se tornaram notáveis. O que não se pode dizer de Pedro e André, Tiago e João, Mateus e Tomé. Dois dos quatro Evangelhos, cinco das 21 epístolas e o Apocalipse foram escritos por quatro dos doze apóstolos. Segundo a tradição, Tomé foi missionário na Índia.
O trio de Jesus Logo no início de seu ministério, Jesus encontrou-se numa das praias do mar da Galileia com duas duplas de irmãos e pescadores. Ele viu, primeiro, Pedro e André; depois, Tiago e João. Naquele mesmo dia, os quatro pescadores largaram as redes e os barcos e tornaram-se seguidores e discípulos de Jesus (Mt 4.18-22). Pouco mais tarde, os quatro foram escolhidos para serem apóstolos (Mt 10.1-4). Não havia nenhum superapóstolo no grupo. No entanto, três deles conviveram com o Senhor mais do que os outros, sempre por iniciativa do próprio Jesus. Jesus não deixou ninguém entrar com ele na casa de Jairo, senão o trio Pedro, Tiago e João e os pais da menina que ele iria ressuscitar (Lc 8.51). Jesus não levou ninguém para orar com ele no monte onde aconteceu a transfiguração, senão o trio Pedro, Tiago e João (Lc 9.28). Jesus não solicitou a ajuda de ninguém na agonia do Getsêmani, senão a do trio Pedro, Tiago e João (Mt 26.37).
As mantenedoras de Jesus Embora nascido em Belém, na Judeia, Jesus foi criado em Nazaré, na Galileia. Ali iniciou o seu ministério. Nessa mesma região, ele curou algumas mulheres de espíritos malignos e de enfermidades. De Maria Madalena, por exemplo, saíram sete demônios. Entre muitas mulheres da Galileia, os Evangelhos citam Joana e Suzana (Lc 8.3), Maria (mãe de Tiago, o menor, e de José) e Salomé (Mc 15. 40-41). Joana era esposa de Cuza, procurador do rei Herodes. Movidas pela força da gratidão, essas mulheres não só acompanhavam Jesus em suas viagens de aldeia em aldeia, como também lhe prestavam assistência com suas posses (Lc 8.1-3). Elas estavam em Jerusalém por ocasião da última semana de Jesus e assistiram a sua crucificação. Duas dessas mantenedoras de Jesus — Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e José — seguiram Nicodemos e José de Arimateia para saber onde eles sepultariam o Senhor (Mc 15.47). E, no primeiro dia da semana, essas duas senhoras e Salomé foram até lá para ungirem o corpo de Jesus (Mc 16.1). 28
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As perdoadas de Jesus Ao longo de sua caminhada, Jesus encontrou-se com três mulheres sem nome: a mulher samaritana, a mulher adúltera e a mulher pecadora. As três foram perdoadas por ele. As três ficaram muito agradecidas a ele. A mulher samaritana não parava com marido algum. Jesus sabia que ela já tinha vivido com cinco companheiros e que o atual não era seu marido. Alguns minutos de conversa, a mulher descobriu que aquele estranho era o Salvador do mundo e bebeu da água viva que lhe fora oferecida (Jo 4.1-30). A mulher adúltera passou o vexame de ser apanhada em adultério e foi trazida à presença de Jesus. Acusadores queriam que o Senhor autorizasse o apedrejamento dela, mas isso não aconteceu. Jesus a perdoou e pediu que ela não pecasse outras vezes (Jo 8.1-11). A mulher pecadora, por ter sido perdoada por Jesus numa ocasião anterior, muito emocionada, irrompeu na casa de Simão, o fariseu, e lavou os pés de Jesus com suas lágrimas, enxugou-os com seus cabelos e os ungiu com óleo (Lc 7.36-50).
Os ressuscitados de Jesus O recado que Jesus mandou para João Batista é explícito: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho” (Mt 11.4-5).
agradecidos
A essa altura, Jesus já havia ressuscitado dois jovens, a filha de Jairo (Lc 8.40-56) e o filho da viúva de Naim (Lc 11.11-17). A ressurreição de Lázaro ocorreria mais tarde (Jo 11.1-46). É possível que Jesus tenha ressuscitado outros mortos. Os Evangelhos mencionam apenas essas três ressurreições, talvez por uma questão didática. Elas mostram o poder de Jesus sobre a morte quando ela acaba de ocorrer (caso da filha de Jairo) e quando ela já provoca mau cheiro (caso de Lázaro). No meio dos dois extremos está o caso do filho da viúva. O corpo do rapaz não está nem no leito de morte, nem no túmulo — está entre um e outro, a caminho do cemitério.
Os ressuscitados de Jesus mostram que os mortos não sofrem discriminação de gênero, faixa etária nem condição social.
Os anfitriões de Jesus A menos de três quilômetros de Jerusalém, havia um povoado chamado Betânia. Lá moravam três irmãos: Maria, Marta e Lázaro. Não se sabe ao certo se eram casados ou solteiros. Provavelmente solteiros. Apesar da diferença de temperamento entre as duas irmãs, era de fato uma família muito unida. Talvez tivessem mais recursos do que muitos outros, pois Maria teve dinheiro suficiente para comprar um perfume que valia o
equivalente ao trabalho de quase um ano inteiro de um trabalhador braçal (Jo 12. 3-5). Era também uma família muito crente. Por ocasião da ressurreição de Lázaro, Marta fez uma confissão de fé que deixaria arrepiados os cabelos dos saduceus: “Eu sei que ele [Lázaro] há de ressurgir na ressurreição do último dia” (Jo 11.24). A essa altura, Jesus já tinha se hospedado com aquela família, a convite de Marta (Lc 10.38). Algum tempo depois, na tarde do dia da entrada triunfal em Jerusalém, Jesus “saiu para Betânia com os doze” (Mc 11.11), certamente para a casa de seus costumeiros anfitriões. Maio-Junho, 2010
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Os protetores A defensora de Jesus
O carregador de Jesus
Os coveiros de Jesus
Não foram somente Jesus e os apóstolos que não dormiram naquela noite de quinta para sexta-feira. A primeira-dama pegou no sono e logo teve um pesadelo horrível. Ficou acordada a noite inteira e sofreu muito. Ela sonhou com Jesus ou, melhor, com a inocência de Jesus. O pesadelo a fez pensar nas consequências que poderiam advir a quem se pusesse contra ele. Aquele homem de trinta e poucos anos poderia ser entregue a seu marido, o governador romano, para ser condenado ou solto. Ela temia que Pilatos tomasse uma decisão injusta. Quando a primeira-dama se levantou, o marido já estava assentado no tribunal e Jesus já estava na frente dele para ser julgado. Mais do que depressa, ela escreveu e mandou para Pilatos o seguinte bilhete: “Livre-se de qualquer culpa, de qualquer cumplicidade, de qualquer envolvimento com a morte deste homem inocente, porque esta noite, num sonho, eu sofri muito por causa dele” (Mt 27.19). Pilatos, porém, não atendeu ao pedido da mulher e condenou Jesus à morte.
Os soldados do exército romano encarregados pelo governador de conduzir Jesus ao Lugar da Caveira e de formalizar ali a sua crucificação, logo no início do trajeto, tomaram uma providência inusitada, movidos, provavelmente, mais pelas circunstâncias do que pela caridade. Eles obrigaram ou recrutaram certo transeunte, que tinha acabado de entrar na cidade proveniente do campo, a carregar para Jesus a cruz ou o travessão vertical dela, daquele ponto em diante — a cruz inteira pesaria cerca de treze a vinte quilos. Os Evangelhos sinóticos explicam que esse carregador da cruz de Cristo era um africano de Cirene, na época a mais importante cidade da atual Líbia. Seu nome era Simão e ele era pai de Alexandre e Rufo (Mc 15.21). Esse imprevisto trouxe grande benefício para Simão, pois além de carregar literalmente a cruz de Cristo, muito provavelmente foi aí que ele começou a carregar também a cruz de Cristo no sentido simbólico (Mc 8.34). Seu filho Rufo era um dos proeminentes membros da igreja em Roma e sua esposa era tratada como mãe por Paulo (Rm 16.13).
Ainda bem que não foram os soldados de Caifás, nem os de Pilatos que deram sepultura a Jesus. Não foram os meio-irmãos de Jesus, nem os apóstolos, tampouco as mulheres da Galileia que colocaram o corpo de Jesus num túmulo. Os coveiros de Jesus não eram frios profissionais do ramo. Foram dois homens muito importantes que tomaram a iniciativa de tirar o corpo da cruz e sepultálo, cumprindo, assim, a profecia de Isaías, escrita setecentos anos antes: “Morreu como um criminoso, mas foi enterrado junto com os ricos” (Is 53.9, BV). Os dois sepultadores de Jesus eram discípulos até então ocultos. Um deles chamava-se Nicodemos, “mestre em Israel” (Jo 3.10), e o outro chamava-se José, da cidade de Arimateia, homem correto e também rico, membro do Sinédrio (Lc 23.51; Mt 27.57). Foi esse último quem pediu ao governador autorização para retirar e sepultar o corpo do Senhor. Antes de começar o sábado, o corpo chicoteado, traspassado e cortado de Jesus, embalsamado e envolto num lençol novo de linho, estava deitado sobre a lápide de um túmulo novo no jardim da casa do coveiro-mor!
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Os continuadores As testemunhas de Jesus A função da primeira leva de discípulos era testemunhar tudo o que tinham visto e ouvido da parte de Jesus. Eles eram testemunhas oculares, auditivas e palpáveis de Jesus Cristo. A segunda leva e as demais seriam testemunhas daquilo que ouvissem das testemunhas anteriores e daquilo que lessem nos Evangelhos. A Grande Comissão consiste em testemunhar: “Recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo e sereis minhas testemunhas” (At 1.8). O substituto de Judas deveria ser uma testemunha pessoal de Jesus, desde o início até a ressurreição e a ascensão dele (At 1.21-22). Os apóstolos emprestavam força à sua pregação com o argumento: “Nós somos testemunhas destes fatos” (At 5.32) ou “Nós somos testemunhas de tudo o que ele fez na terra dos judeus e em Jerusalém” (At 10.39). Em sua segunda epístola, Pedro lembra que ele não inventou coisa alguma, mas foi testemunha ocular da majestade de Jesus no monte da transfiguração (2Pe 1.16). Em Damasco, Paulo recebeu a incumbência de ser ministro e testemunha de Jesus (At 26.16).
Os missionários de Jesus A última ordem de Jesus não era confusa. Os discípulos não deveriam deixar Jerusalém até a descida do Espírito e, depois disso, deveriam viajar para o norte e para o sul, para o leste e para o oeste, para as regiões mais próximas e para as regiões
mais longínquas. Na verdade, eles deveriam chegar até o fim do mundo (At 1.8). Não se tratava, porém, de viagens de passeio e turismo. O propósito das muitas e longas viagens era encher a terra do conhecimento do Senhor (Is 11.9) e espalhar para todas as tribos, raças e nações as boas novas da salvação inteira, da morte vicária e da ressurreição de Jesus (Mt 28.19; Mc 16.15; At 1.8). A vontade de Jesus foi feita. Os que foram dispersos por causa da tribulação foram os primeiros missionários de Jesus. Anunciaram a palavra na Judeia e Samaria, na Fenícia e na ilha de Chipre (At 8.1; 11.19). Os outros missionários foram Filipe, Pedro, João, Paulo, Barnabé, João Marcos, Timóteo, Silas, Lucas, dentre outros. O mais notável foi Saulo de Tarso, que também foi o mais chicoteado, o mais encarcerado e o mais ameaçado de morte (2Co 11.23-27)!
Os mártires de Jesus No relato dos Evangelhos não se efetua nenhuma prisão, a não ser a de João Batista. Diversas vezes tentaram prender Jesus, mas sem sucesso. Depois da ascensão de Jesus e da descida do Espírito Santo, porém, a situação é outra. Com o crescimento territorial e numérico da igreja,
começa a era dos mártires. Pedro e João são os primeiros a ser presos (At 4.1-3). O mesmo acontece com os demais apóstolos (At 5.18) e com outros irmãos e outra vez com Pedro (At 12.1). O primeiro a ser linchado é o formidável Estêvão (At 7.59). O segundo é Tiago, irmão de João, um dos doze apóstolos (At 12.1-2). O diácono é apedrejado e o apóstolo é decapitado. Muitos são perseguidos, maltratados e torturados por sua fé. Quase todos os crentes fogem para outras cidades ou regiões a fim de escaparem de tudo isso (At 8.1). João é exilado na ilha de Patmos (Ap 1.9). E aquele que viajava para prender e torturar homens e mulheres (At 22.4; 26.10-11) acaba se convertendo e passa a viajar agora para anunciar Jesus. Esses homens e mulheres são os primeiros mártires de Jesus! Maio-Junho, 2010
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Os redimidos Os seguidores de Jesus
A família de Jesus
A igreja de Jesus
Seguidor é aquele que vai atrás de alguém ou de alguma ideia. O Apocalipse chama de “os seguidores do Cordeiro” a multidão de 144 mil pessoas “que tinham o nome dele e o nome do Pai dele escritos na testa delas” e que “seguem o Cordeiro aonde ele vai” (Ap 14.1-5, NTLH). A vida cristã começa quando o pecador ouve o evangelho, sente algum interesse e se dispõe a seguir a Jesus. Porque o novo caminho é apertado e difícil e porque não é o caminho das multidões, nem todos os seguidores continuam. Nunca passou pela cabeça de Jesus facilitar a carreira cristã em benefício de um número maior de conversões. Ao contrário, certa ocasião ele virou-se para a multidão e os discípulos que estavam atrás dele e exclamou: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8.34). Em outra oportunidade, Jesus repetiu: “Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não merece ser meu seguidor” (Mt 10.37, NTLH).
A família de Jesus é enorme. Está espalhada no tempo e no espaço. Pode ser uma adolescente negra, um jovem germânico, uma mulher indígena, um idoso aborígene. Pode ser um ex-promíscuo, um ex-consumista, um ex-incrédulo, uma ex-prostituta, um ex-ladrão, um ex-pedófilo, um ex-corruptor de menores, um extraficante. Pode ser um sem-terra, um fazendeiro rico, alguém da classe mais alta, alguém da classe mais baixa, e assim por diante — contanto que cada um deles faça a vontade do Pai. Foi o próprio Jesus quem definiu a questão. Mesmo estando na presença da mãe e dos meio-irmãos biológicos, ele apontou com as mãos para os discípulos e declarou em alto e bom som: “Eis minha mãe e meus irmãos”. E explicou por que: “Qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12.46-50). Jesus não forçou nada ao fazer essa declaração surpreendente. Se a comida dele era fazer a vontade do Pai (Jo 4.34), todos que pensam e agem do mesmo modo são, pois, seus irmãos, irmãs e mães.
A rigor, ninguém em lugar algum e em tempo algum pode usar o pronome possessivo minha para se referir à igreja. A igreja, em seu sentido místico, é de Jesus Cristo. As palavras ditas a Pedro devem ser sempre lembradas: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mt 16.18). É preciso diferenciar as igrejas locais (a igreja de Antioquia, a igreja de Cencreia, a igreja dos tessalonicenses, as igrejas na Galácia etc.) e as igrejas denominacionais (igreja católica, igreja reformada, igreja batista, igreja pentecostal etc.) da Igreja de Cristo ou Igreja de Deus (At 20.28; 1Co 15.9; 1Tm 3.15). Esta é a única que é o corpo místico de Cristo. Nela se congregam apenas pecadores arrependidos e perdoados, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Nas igrejas locais e denominacionais há uma mistura de joio e trigo, o que não acontece na Igreja de Cristo. Jesus é a pedra angular e o cabeça dessa Igreja, tanto da que reúne os vivos (igreja militante) como da que reúne os mortos (igreja triunfante).
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á quem pense que o problema de muitos evangélicos hoje seja o seu fanatismo religioso, sua devoção extravagante, sua religiosidade exacerbada. Penso que há aqui um engano, uma interpretação superficial da questão. Até porque tal devoção pode ser amor próprio disfarçado (Cl 2.23), tal religiosidade pode ser um culto ao próprio ventre (Fp 3.19), e tal fanatismo pode ser mera idolatria (Is 1.13-17). O verdadeiro problema é justamente o oposto disso. É o seu menosprezo para com a pessoa de Cristo. É a maneira reducionista de muitos evangélicos perceberem a Cristo. É a construção de uma espiritualidade neo-pagã em que a pessoa de Cristo é secundária (onde deveria ser central), instrumentalizada em um discurso cujo centro é o consumo de bens espirituais (Mt 6.24, 31-32). O problema de muitos evangélicos é não perceber o tamanho do evangelho de Cristo e quem de fato Cristo é. Há no discurso evangélico uma presença muito clara do nome de Jesus, mas uma presença que beira à magia, já que se trata de um uso instrumental e ritualístico do nome de Jesus, e que beira à idolatria (pasmem! uma idolatria de Jesus!), pois o nome de Jesus é apresentado desvestido e desencarnado da pessoa de Jesus Cristo, de seu ensino e de seu significado teológico como redentor da humanidade (Mt 7.21). 34
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Quando a Bíblia nos ensina a orar “em nome de Jesus Cristo” (1Co 5.4; Ef 5.20), isso não é uma fórmula mágica que carrega em si poder para realizar milagres. A expressão significa que os cristãos são representantes de Cristo na terra, e por isso devem falar em nome de Cristo, fazendo a oração que ele próprio faria. Jesus ficou reduzido a isso em boa parte do discurso evangélico: uma palavra mágica, um ícone, um significante cujo significado se tornou propositadamente difuso. Com isso, foi-se esquecendo do verdadeiro Jesus Cristo, o mestre a quem se deve seguir (Mt 11.28-29; Cl 2.8), dos seus ensinos de amor por palavras e atos, da sua pregação sobre o desprendimento e a humildade (Mt 6.25-34; Lc 22.26; Jo 13.1-17), de seu esvaziamento no serviço (Fp 2.5-8). De fato, há muita extravagância religiosa entre os evangélicos, que vai das coreografias sem profundidade às expressões faciais agônicas; dos discursos inflamados sobre cura e poder à rigidez moralista das propostas de conduta cerceadoras da liberdade em nome de um pudor muito distante daquilo que a Bíblia indica (Mq 6.8; Cl 2.20-23); do dogmatismo que faz de Cristo um mero item doutrinário ao sectarismo individualista que nos faz esquecer as dimensões sócio-políticas da redenção no aqui e agora. Cristo é mais! O que Cristo pode fazer pelos seres humanos é muito mais do que está sendo muitas vezes apresentado pelos evangélicos e aos evangélicos. Não se limita aos benefícios materiais e curas, mas a uma vida tão
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plena de sentido e de senso de vocação que os bens materiais e a saúde deixam de ser primordiais. Cristo é mais! Foi-se esquecendo das dimensões mais profundas da redenção que há em Cristo. Essa redenção ficou reduzida à garantia de uma vida feliz após a morte, à esperança materialista de um céu de recompensas luxuosas (devido a interpretações literalistas dos símbolos bíblicos: Ap 2.10; 21.11), esperança que não indica nenhum desapego, mas antes ressentimento e inveja em relação aos ricos e poderosos. A redenção em Cristo já não é percebida como o resgate de uma vida diferenciada, uma vez que dotada de sentido e valor aqui e agora, na missão, no serviço, no convívio amoroso e no desfrutar da criação divina. Cristo é mais! O individualismo da modernidade nos fez crer que o dom de Cristo se limita ao que pode fazer por cada pessoa enquanto indivíduo, deixando de lado as dimensões sociais do evangelho, e tudo que ele significa para a nação (Sl 33.12): um futuro melhor para nossos filhos, uma cultura calcada na integridade e na justiça, no amor e na sabedoria, a construção de uma sociedade que vive de acordo com os valores do reino de Deus (Mt 28.20). Em vez disso, vemos que as preocupações éticas e a preparação para a cidadania estão descartadas da pregação e fora do ensino religioso nas igrejas (Is 1.10-17). Tampouco pode ser Cristo reduzido a mero elemento do sistema doutrinário, como se minha fé incluísse, entre outras, doutrinas acerca
com Cristo nos leva a viver a sua vida, da pessoa de Cristo e acerca de sua obra nos eleva para perto de sua própria de salvação. estatura espiritual (Ef 4.13), promete Cristo é mais! Ele é o centro de nossa fé. É nele que cremos, em sua vida nos tornar coparticipantes da natureza divina (2Pe1.4), e nos convida a viver conosco, na sua presença (Mt 28.20; Jo 14.16-18) e no seu pastoreio (Sl 23.1; desde já possuídos pela glória de Deus (2Co 3.18) e entusiasmados pelo Jo 10.11). Ninguém deve se considerar Espírito Santo (Ef 5.18). salvo em Cristo porque subscreve à Cristo doutrina da salvação é mais! Na pela graça mediante verdade, é a fé. Mera aceitação Há quem pense que o problema muito mais do de doutrinas é de muitos evangélicos seja que pensamos obra meritória de o fanatismo ou a devoção ou podemos cunho intelectual imaginar. Temos e ritualista extravagante. Porém a devoção que esperar (Rm 3.20, 28). pode ser amor próprio sermos por ele Somos salvos disfarçado e o fanatismo pode surpreendidos pela graça divina (Ef 3.20), como mediante a fé ser mera idolatria um leão que (Ef 2.8-10) na não pode ser possibilidade de adestrado, que estarmos unidos é bom, mas que não é domesticado a Cristo em sua morte e em sua (como sugere C. S. Lewis acerca de ressurreição (Cl 2.12; 2Tm 2.11) — Aslam), como um tigre que subitamente uma realidade a ser vivenciada aqui e coloca suas patas dianteiras sobre nosso agora! peito exigindo-nos a nossa atenção para Cristo é mais! A redenção em Cristo seu poder e sua beleza (como sugere não se limita ao perdão da culpa dos Thomas Howard em Christ the Tiger). pecados, à nossa justificação pela união Por mais que tentemos enlatar a Cristo, com Cristo em sua morte na cruz, condicioná-lo, fazê-lo nos servir, qual mas se estende à esperança da glória gênio da lâmpada, ele nos escapará do (Ef 1.18; Cl 1.27), à santificação pela controle e nos surpreenderá, porque presença de Cristo em nós Cristo é muito mais! (Rm 6.22; Hb 12.14), que nos Lamento pelas multidões de cristãos torna seus discípulos e imitadores que se esqueceram, que se iludiram, que (1Co11.1; 1Ts 1.6). A fé protestante se deixaram levar por pregações acerca está centrada na vida do Cristo de Cristo e em nome de Cristo que o ressurreto (1Co15.14, 19; Rm 6.5). reduziram a algo ridiculamente menor Não somos convidados a viver, em do que ele de fato é, a um simulacro, Cristo, como penitentes! Antes, a uma um instrumento religioso a serviço de vida abundante (Jo10.10)! Nossa união
igrejas que são também simulacros de igreja cristã, e que, por esta genuína apostasia (Lc 18.8; 2Ts 2.3), deixam de ser igreja de Cristo para serem igrejas do anticristo, pois o anticristo nada mais é que o simulacro de Cristo (Mt 24.24), uma abominável desolação! Lamento principalmente pela perda do verdadeiro Jesus Cristo, que pode dar sentido à vida, que pode curar a nação, que pode resgatar a humanidade em direção da sua própria glória, a glória da vida do amor de Deus. Estamos trocando a Cristo por simulacros, pois, ao reduzi-lo a fórmulas mágicas, eclesiásticas ou teológicas, ele se torna menos do que ele é: a presença viva, aqui e agora, da pessoa que me convida a segui-lo, a encarnar o seu próprio Espírito, e abraçar o projeto supremo de viver, nele, a vida eterna e abundante de Deus. Ricardo Quadros Gouvêa é pastor da Igreja Presbiteriana do Bairro do Limão, em São Paulo, professor de teologia da Faculdade Unida de Vitória, ES, e do programa de pós-graduação em ciências da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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Pedofilia e perdão O
s escândalos acontecem nos países mais prósperos e cultos da Europa (Alemanha, Áustria, Espanha, Holanda, Irlanda, Itália e Suíça) e na mais poderosa nação do planeta (Estados Unidos). Atingem também a Austrália. Destes, quatro são países de maioria católica. O número de crianças, adolescentes e jovens abusados por padres é assustador. Só na Irlanda, os dossiês publicados em 2009 apontam mais de 15 mil vítimas. Na Holanda são cerca de 1.100 casos presumíveis de
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abuso sexual cometidos por membros do clero na década de 1950.1 Na Alemanha houve um “tsunami” de denúncias, nas palavras de Elke Huemmeler, chefe da força-tarefa criada para prevenir novos casos. Nos Estados Unidos, o crime foi cometido contra duzentas crianças com deficiência auditiva por um único padre durante 24 anos (1950-1974) e na mesma instituição (St. John’s School). No Brasil, sabe-se que três padres da Diocese de Penedo, em Alagoas, acabam de ser ouvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Fórum da Justiça Estadual, em Arapiraca, a 146 quilômetros de Maceió, e reconhecidos como pedófilos. O padre mais novo tem 43 anos e o mais idoso, 83. Os três foram ordenados aos 25 anos. Seus nomes ainda estão na mais recente edição do Anuário Católico do Brasil, mas consta que teriam sido afastados do exercício do sacerdócio. Ainda em Alagoas, foram encontradas em 2009, na casa de um padre alemão, 1.300 fotos com cenas de sexo explícito ou pornografia infantil envolvendo meninos. Centenas de artigos e editoriais sobre o assunto estão sendo publicados ao redor do mundo, inclusive no Brasil. A Igreja Católica Romana e o próprio papa estão sendo duramente fustigados. A observação de Roseli Fischmann, professora de pósgraduação em educação da
USP, parece oportuna: “Copiando a má prática humana na política, [autoridades católicas] esperam a máxima visibilidade dos méritos e a completa impunidade dos erros”.2 A questão do celibato vem à tona novamente. Alguns tentam defender a Igreja Católica e outros a atacam sem clemência. O jornalista João Pereira Coutinho, da Folha de São Paulo, esforça-se para minimizar as coisas, lembrando que, das 210 mil denúncias de abuso contra crianças na Alemanha desde 1995, apenas 300 (0,2%) envolveram padres católicos.3 No entanto, ele esquece que essa minoria é composta por pessoas que, por serem ministras de Deus, têm muito mais responsabilidade que as outras. Já o editorial do dia 28 de março do mesmo jornal diz que “há uma diferença básica entre a compaixão pelo pecador, de ordem essencialmente privada, e o esforço, de ordem corporativa e política, de preservar a instituição [tradicionalmente voltada ao segredo e à intransparência] dos escândalos que a acometem”. Embora seja contrário ao celibato dos padres, o psicanalista Contardo Calligaris não acredita que o fim do celibato seria remédio contra a pedofilia.4 Já o teólogo Hans Küng, conhecido como o mentor dos intelectuais católicos, diz que o celibato “é a raiz de todos esses males”.5 O leigo católico Antônio Carlos Ribeiro Fester, autor de Justiça e Paz, endossa o texto de Hans Küng e propõe que o celibato seja optativo para os padres seculares.6 Seja como for, a observação de Paulo deve ser considerada: “Já que existe tanta
imoralidade sexual, cada homem deve ter a sua própria esposa, e cada mulher, o seu próprio marido” (1Co 7.2, NTLH). Nem Jesus nem os apóstolos instituíram o celibato obrigatório para ministros religiosos. O que eles propõem é a castidade para solteiros, viúvos e casados, para padres e leigos, para homens e mulheres. Nem todo celibatário é casto. Há que se diferenciar uma coisa e outra. É mais fácil ser celibatário do que ser casto. O voto de celibato e de castidade e o próprio casamento, sozinhos, não garantem a ausência de transgressões e escândalos. Desde a queda, o homem e a mulher têm uma forte índole pecaminosa, não fazem o bem que preferem, mas o mal que detestam, porque o pecado habita neles, como testemunha Paulo (Rm 7.15-16). Ninguém, religioso ou leigo, pode ser ingênuo: todos têm a mesma potencialidade dupla (tanto para o certo como para o errado). Jesus deixou claro que é do interior do coração humano que vem uma porção de coisas más, e entre elas está a imoralidade sexual e o adultério (Mc 7.20-23). Um dos heróis do romancista russo Fiodor Dostoievski diz que “há uma luta entre Deus e o Diabo e seu palco é o coração humano”. C. S. Lewis, o celebrado autor de As Crônicas de Nárnia, avisa que todos precisamos enxergar nossa própria pecaminosidade, “além dos atos pecaminosos em particular”. E o filósofo alemão Immanuel Kant confessa: “Somos um lenho torto do qual não se podem tirar tábuas retas”. À vista desse problema crônico, não é o celibato nem o casamento que vai nos livrar da pornografia, da infidelidade conjugal, da prostituição, do homossexualismo e da pedofilia. Só há um remédio, aquele que Jesus sabiamente receitou: negar-se a si mesmo, isto é, dizer não à vontade pecaminosa todas as vezes que ela se manifestar, como, por exemplo, a vontade de abusar de uma criança (Lc 9.23). O bispo de Petrópolis, Dom Filippo Santoro, tem uma palavra precisa e aliviadora: “O momento presente,
marcado pela acirrada discussão sobre a pedofilia, é uma grande ocasião de purificação e conversão da Igreja para poder comunicar com transparência a todos o abraço da justiça e da misericórdia de Deus, que é a razão pela qual ela existe”. A corrupção generalizada e escandalosa do clero no século 15 provocou, na primeira metade do século seguinte, a Reforma Protestante e o Concílio de Trento. Os escândalos, por serem insuportáveis, muitas vezes precedem movimentos bem-sucedidos e demorados de reforma moral e religiosa. Resta saber se há perdão para o padre que mantém relações sexuais com uma mulher com a qual não se casou ou com uma pessoa do mesmo sexo, ou que abusa da inocência de uma criança. É claro que sim, desde que haja transparência, arrependimento — do tipo que João Batista exige (Lc 3.8) —, confissão e propósitos renovados. O mesmo pode acontecer com pastores protestantes e leigos acusados de escândalos sexuais ou outros quaisquer. A Bíblia é um catálogo de pessoas perdoadas, sobretudo nessa área. Basta ler a história da prostituta Raabe, do escândalo de Davi, da “mulher surpreendida em adultério” (Jo 8.3), da “mulher pecadora” (Lc 7.36-50), do homem da igreja de Corinto que se atreveu “a possuir a mulher de seu próprio pai” (1Co 5.1; 2Co 2.5-11) e dos ex-homossexuais passivos ou ativos que foram transformados e perdoados “pela invocação do Senhor nosso Jesus e pelo Espírito de nosso Deus” (1Co 6.11, BP). O fato é que, se não houver denúncia, se não houver disciplina e se não houver arrependimento e mudança, a pedofilia poderá tornar-se uma prática tão “normal” quanto a prostituição, o amor livre, o adultério, o lesbianismo e o homossexualismo!
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Notas
1. Estado de Minas, 21 de março de 2010, p. 22. 2. Folha de São Paulo, 29 de março de 2010, p. A-14. 3. Folha de São Paulo, 23 de março de 2010, p. E-8. 4. Folha de São Paulo, 1º de abril 2010, p. E-12. 5. Folha de São Paulo, 21 de março de 2010, p. 3 (caderno “Mais!”). 6. Folha de São Paulo, 31 de março de 2010, p. A-3. Maio-Junho, 2010
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HO JE EM DIANTE...
Não quero brigar com ninguém!
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Fran Priestley
partir de hoje, com a ajuda de Deus, vou pôr um ponto final em meus desentendimentos com todas as pessoas com as quais convivo ou com as quais me encontro. Chega de briga, de discussões, de gritaria, de grosseria, de palavrões, de agressões, de antipatia. Estou cansado de depender do outro para parar de brigar. Vou tomar a iniciativa. Não sou ingênuo. Estou ciente de que será difícil. Porém não digo mais que será impossível. Reconheço que já avancei um pouco e quero dar continuidade a esse pouco. A partir daí, Deus me dará outras vitórias. Sei que o relacionamento entre duas ou mais pessoas é sempre complicado por causa da nossa herança adâmica. Lembro-me de Abel e Caim, de Sara e Agar, de Jacó e Esaú, de Raquel e Lia, de José e seus irmãos, de Maria e Marta, de Paulo e Barnabé e da membresia da igreja de Corinto. Estou ciente de que eu e meu cônjuge, eu e meus filhos, eu e meus vizinhos, eu e meus colegas de trabalho, eu e meus irmãos na fé — somos muito diferentes, o que me leva a crer que o relacionamento entre nós não será automático. Vai exigir esforço, temperamento controlado e autonegação continuada. Eu e eles temos temperamentos, históricos, ênfases, experiências, reações, defeitos,
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virtudes, capacidades e dons diferentes. Além disso, eu e eles somos — pelo menos potencialmente — invejosos, ciumentos, egoístas, orgulhosos, impacientes, briguentos e outras coisas mais. Para viver em paz, preciso passar por cima de tudo isso. Preciso andar a segunda milha de que fala Jesus (Mt 5.41) e perdoar setenta vezes sete, também de acordo com Jesus (Mt 18.22). Meu relacionamento no circuito mais próximo e íntimo (no lar) e no circuito mais amplo e público (no trabalho e na igreja) vai depender de certas virtudes claras. Preciso conhecer e respeitar o outro. Preciso amar e perdoar o outro. Preciso tolerar o outro e ter paciência com ele. Preciso ter sabedoria e acerto para conviver com o outro. Preciso de humildade para não me encher de glória à custa do esvaziamento da glória do outro. Preciso repudiar a comparação, a competição e a concorrência com o outro. Preciso descolar da memória qualquer lembrança negativa — tanto recente, como remota — do outro. Preciso pedir desculpas e desculpar. Preciso conversar, dialogar e desabafar com o outro. Preciso evitar qualquer oportunidade que possa gerar aborrecimento com o outro. Preciso interceder pelo outro. De hoje em diante vai ser assim. Que o Senhor me socorra! Amém.
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AMBIENTE E fé cristã
Fernando Oliveira
No meio do jardim e da cidade, o meio ambiente Se toda a poesia numa palavra Eu ficaria com Jardim. Gerson Borges
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á muitos anos, quando Jacques Cousteau revelava imagens da vida marinha, ao mesmo tempo em que mostrava preocupação com a manutenção do equilíbrio da ecologia e com a preservação das espécies, ambientalismo e ecologia eram assuntos para poucos. Parece que a ficha começa a cair cada vez mais para a maioria das pessoas. Ter consciência ecológica e cuidado com o planeta significa atentar-se para a própria casa. Aliás, a expressão eco, tão presente hoje em dia, vem do grego e significa “casa”. A Bíblia começa num jardim e termina numa cidade. Há o jardim do Éden em Gênesis e há a Nova Jerusalém em Apocalipse. Ambos — jardim e cidade santa — não têm santuário, pois Deus mesmo é o seu santuário e em ambos a vida se dá em sua presença de forma ininterrupta, plena e sem obstáculos. Vivemos entre o jardim que passou e a cidade celestial que virá. Perdemos o jardim e dele sentimos saudade; moramos na cidade e vemos com esperança a Nova Jerusalém. Até a árvore da vida está lá. O jardim foi feito por Deus e lá ele colocou o homem, criado conforme sua imagem e semelhança, para com ele se relacionar e cuidar da criação. A Nova Jerusalém desce do céu, da parte de Deus, para se instalar entre os homens. Se o jardim é criação das mãos bondosas de Deus, a cidade é
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realização das mãos ensanguentadas de Caim, que edificou a primeira, para nela habitar, depois de ter matado o irmão, Abel, e se retirado da presença do Senhor. Porém, o grande construtor de cidades foi Ninrode, neto de Cam, que era filho de Noé. É o primeiro homem descrito na Bíblia como poderoso e caçador. Edificou várias cidades, entre elas Babel e Nínive, cidades emblemáticas na história bíblica.
Ser discípulo de Jesus é trabalhar hoje para que o jardim brote novamente no meio da cidade No livro The Meaning of the City, Jacques Ellul vê na edificação da cidade um ato de rejeição da proteção de Deus, pois quando o homem a edifica ele rejeita a criação de Deus, opondo-se ao jardim. Segundo Ellul, em sua origem a cidade é lugar da autoproteção do homem e ao mesmo tempo uma tentativa de fugir da maldição de Deus. Por isso, ela é resultado da alienação de Deus, e também elemento alienante para o homem do resto da criação. O homem refugiou-se na cidade para não ter de
dizer: “O Senhor é a minha rocha, a minha cidadela” (Sl 18.2). Na cidade o homem enganosamente pensou que não precisava mais do jardim. A Nova Jerusalém é fruto da graça de Deus que trouxe redenção ao homem e a tantas das suas realizações. É fruto final da busca amorosa de Deus pelas cidades. É o caso de Nínive, Jerusalém, Samaria. Assim, a Nova Jerusalém é habitação eterna do Criador com sua criatura, a união dos propósitos divinos que santificam os projetos humanos por meio do Cordeiro. É cidade com alma de jardim. A redenção de Jesus Cristo abrange toda a criação. Paulo deixa isso claro em Romanos 8.19-22. Ser discípulo de Jesus não é só voltar à comunhão com Deus perdida no jardim — é encher-se de esperança pela realização da cidade santa trabalhando hoje para que o jardim brote novamente no meio da cidade. Isso é dar o devido valor e dignidade àquilo que Deus criou. É ter a mente de um cidadão e o coração de um jardineiro. LIVRO
Jesus e a Terra, James Jones, Ed. Ultimato
MÚSICA “Criatividade”, Silvestre Kuhlmann, CD Alvíssaras! SITE
www.arocha.org
Fernando Oliveira mora em São Paulo, é pastor da Igreja Nova Aliança há vinte anos e apresenta o programa Papo na Rede, no portal www.koinoniaonline.com.br. fco@osite.com.br
Philip John Greenwood
C AMINHOS
DA MISSã O
Abandonando a velha desculpa
Q
uando cheguei ao Brasil, um dos ditados populares que mais me chamavam a atenção era: “O Brasil é o país do futuro, e sempre será”. Lembro-me de sentir um misto de surpresa e tristeza. Naquela época, a inflação tinha atingido 45% ao mês e ninguém investiria no futuro do país. Hoje é bem diferente. O Financial Time resumiu assim o Brasil: “Tratase de uma democracia madura, com uma economia diversificada e uma população jovem e adaptável, fazendo a festa com cada vez mais empregos estáveis e melhores salários” (7/7/09). Hoje há muita gente querendo investir no Brasil. O futuro parece bem melhor, materialmente. Diante deste quadro animador, o que nós, como discípulos de Jesus, devemos fazer? Certamente Deus tem nos abençoado não para ficarmos contentes, gordos e indiferentes aos que passam necessidade. Há cada vez mais igrejas assumindo um compromisso maior com a necessidade do próximo. Isso é louvável, mas é apenas um começo; é só um passo na caminhada de fé que Deus nos propõe. Em Isaías 49.6, Deus declara que não está satisfeito abençoando somente o seu próprio povo. Ele tem planos para tornar este povo uma bênção para todo o mundo. Jesus enfatizou isso quando deu suas ordens
finais, de fazer discípulos de todas as nações. Há muitas regiões do mundo onde há ignorância quase total sobre as boas novas de Jesus. Em boa parte delas, há também grandes necessidades sociais e econômicas. Quem irá? Como proclamar as boas novas em tais contextos? O mais apto para responder a este desafio é aquele que consegue associar seu testemunho à sua contribuição profissional e prática para abençoar o povo em todas as suas áreas de carência.
É preciso parar de investir em tijolos e cimento, para investir em vidas Assim como um novo dia raiou para o futuro econômico do Brasil, um novo dia está raiando para a participação da igreja brasileira na missão mundial. Deus nos abençoou para nos tornarmos bênção para todas as nações! Chegou o dia em que a igreja brasileira precisa acordar. A força missionária brasileira é pequena e precisa crescer — muito! É preciso abandonar a velha desculpa de que não temos condições econômicas.
Hoje temos condições, sim. É preciso parar de investir em tijolos e cimento, para investir em vidas. Mesmo não acreditando em seus próprios recursos, a igreja precisa acreditar em Deus e obedecer a ele. Precisa ver que há um mundo morrendo por falta de conhecimento das boas novas de Jesus. Precisa repensar suas prioridades e estratégias, e redobrar os esforços. Há uma tarefa para todos nessa aventura de fé em missões mundiais. Ore, informe-se, procure novas oportunidades e novas formas de cumprir a missão, em dependência do Espírito Santo. A missão que Deus nos entregou é integral, no modelo de Jesus. É missão que visa a restauração da dignidade humana, que luta pela justiça, que se coloca ao lado do pobre e marginalizado, que abre espaço para todo tipo de profissional em missão: administradores, professores, engenheiros, mecânicos, cabeleireiros, médicos, enfermeiros, eletricistas. O limite é a nossa falta de fé e a nossa desobediência. Que as boas novas sejam pregadas aos pobres, que a liberdade seja proclamada aos presos, que os cegos recuperem a vista e os oprimidos, a liberdade, pois chegou o ano — e o dia — da graça do Senhor (Lc 4.18-19).
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Philip Greenwood é diretor da Escola de Missões do Centro Evangélico de Missões (CEM), em Viçosa, MG.
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N OVOS
ACORdES
Carlinhos Veiga
Simples Gestos
Elen Lara
Elen Lara é uma musicista completa. Bacharel em piano e canto, mestre em música, especialista em voz e acadêmica em fonoaudiologia. Como se não bastasse, é uma grande instrumentista, cantora e compositora. Simples Gestos é seu primeiro CD, com sete faixas, todas de sua autoria, e três playbacks. Destaque para as canções “Samaritana” e “Rendido a ti”. Elen divide os vocais com o marido, Dámon Farias. Esse trabalho foi gravado, mixado e masterizado no Estúdio Zero Db, em Goiânia, por Olemir Cândido, e contou com uma banda de alto nível: Jader Steter na bateria, Bruno Rejan nos baixos e Olemir Cândido na guitarra. A produção musical é da própria Elen. Para conhecer mais, www.elenlara.com.br. Contatos pelo telefone 62 3233-6917.
Na Fôrma
Vida Verdadeira
Para quem pensa que o VPC só vive das canções antigas e consagradas, uma novidade: chegou Na Fôrma. Na verdade, é apenas um aperitivo: um single com três músicas, mas que reaviva o mais importante grupo cristão brasileiro de todos os tempos. A formação atual da banda utiliza uma linguagem nova e contemporânea. Dá para perceber desde o invólucro: um papel reciclado com impressões que remetem à xilogravura. No conteúdo, uma canção inédita de Jader Gudin, Felipe Moraes e Thiago Guimarães e outras duas já conhecidas, porém reinventadas, de Gladir Cabral. A produção executiva é de Uassyr Verotti e Banda VPC. Davi Heller abraça a produção geral. Para adquirir, www.vpc.com.br.
Um convite a olhar para dentro e buscar a voz de Deus no íntimo. Essa é a proposta do Vida Verdadeira, de Cláudio Martos, um brasileiro de alma, nascido na Argentina. É um CD que valoriza as parcerias. Em cada faixa, ele não só divide a composição, como também compartilha a produção com o co-autor. “Vida verdadeira” é partilhada com Silvestre Khulmann, “Acende a candeia” com Jonas Souza, entre outras. Destaque para “Navegares”, parceria de Cláudio com Rodrigo Viriato, embalada pelos bandoneons de Emílio Mendonça e Martin Mirol. O projeto gráfico é fantástico — uma sacada original de Alexandre Valdívia. A arte do CD convida o ouvinte a também passear pelo site que, de certa forma, complementa esse trabalho: www.wix.com/vidaverdadeira/CD.
Vencedores Por Cristo
Cláudio Martos
N o t a s d e p a ssa g em Acontece em Arujá, São Paulo, entre os dias 27 e 29 de agosto, a 4ª edição do
Nossa Música Brasileira.
Dessa vez, novidades como Expresso Luz, Edson e Tita Lobo, Sal da Terra, entre outros. Mais informações pelo site da missão Jovens da Verdade: www.jovensdaverdade.com.br.
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O Amart é um ministério que utiliza elementos da cultura popular para a evangelização, a edificação do corpo de Cristo e a inclusão social. Eles estão estabelecidos em Pernambuco e fazem um trabalho fantástico a partir da literatura de cordel, do maracatu, do coco e das demais expressões artísticas e culturais nordestinas — fizeram a alegria do Som do Céu este ano. Conheça mais acessando www.amartpe.blogspot.com.
Durante a 26ª edição do Som do Céu, gravei vários podcasts com artistas fantásticos. Muita coisa boa vem por aí. Fique ligado: a cada quinzena um novo podcast Novos Acordes no ar. www.ultimato.com.br. E se você ainda não visitou o meu blog, passe lá: www.carlinhosveiga.com.br — um novo site-blog em parceria com a editora Ultimato.
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DA
LI N H A DE F R ENT E
Bráulia Ribeiro
Os braços de Fábio
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que usamos, ao carro que temos, aos figurões que conhecemos. Nosso valor individual também se condiciona à nossa capacidade de conformação. Os que não se conformam, nos perturbam. Em vez de nos enriquecerem, as diferenças são nosso problema. Diferenças teológicas, ideológicas e políticas se tornam a razão da minha guerra contra o outro. Ele pensa diferente; portanto, não faz parte, não o reconheço, não existe pra mim. Até Cristo, aquele que me incluiu num reino que eu não merecia, se torna desculpa para a exclusão. Excluo de meu
Diane Schallert
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uando Fábio morreu, eu não conseguia pensar em mais nada a não ser em seus braços, na pele que iria se decompor. Pensamento mórbido, eu sei, mas só me lembrava das tatuagens que decoravam os braços daquele homem e no que aconteceria com elas após a morte. No tempo em que ele se deixou marcar, tatuagens eram símbolo de rebeldia antissistema, uma espécie de selo de não-pertencimento a algo que a geração de Fábio desprezou. “Não pertenço a tudo o que vocês hipocritamente valorizam, às suas teologias frívolas, às coisas mínimas que lhes parecem tão grandes. Me tatuo pra mostrar que meu corpo é um canvas de Cristo, assim como minha mente. Me tatuo para mostrar o que não sou”. Essa paixão pela iconoclastia custou caro a Fábio. Viveu boa parte da vida tentando construir a utopia da igreja que abraça e não exclui. Viveu ignorado pelo mainstream do evangelho brasileiro — talvez reconhecido nos últimos anos como um produto esquizofrênico da geração tribal. Útil, mas ainda assim, estranho. Para alguns, o utilitarismo falava mais alto e a bizarra Caverna de Adulão, fundada por Fábio, se tornava até palatável, porque alcançava a quem as igrejas convencionais não conseguiam alcançar. Para os mais fundamentalistas, ele nunca deixaria de ser um equívoco teológico, uma anormalidade pósmoderna, sincrético e perdido. Porém, não escrevo sobre Fábio — escrevo sobre nós. A cultura brasileira nos ensina a cordialidade superficial, mas nos deseduca no entender o valor do indivíduo. Nosso valor é condicionado às marcas das roupas
convívio tudo o que diz respeito ao nãocristão; sua linguagem, sua música, e até ele mesmo. Meu mundo não tem lugar para o diferente. Esquecemos que a cruz representa o abraço incondicional de Deus a nós, o outro, os estranhos e doentes pecadores. Fábio sabia disso sem ler a teologia de Miroslav Volf. A cruz que abraça os excluídos fez parte de sua vida. O abraço e a ignomínia estão juntos na cruz e, portanto, a rejeição também não lhe era estranha — fez parte de sua jornada, mas nunca se tornou sua teologia. Quando nos convertemos, por melhor que nos pareça a vida que recebemos, o sabor do sangue está sempre presente. Sangue da difícil renúncia pessoal no dia-a-dia, sangue que nos custa amar aos
próximos e aos distantes e perdoar aos que nos ferem. Sangue que nos brota como suor na luta incansável contra o pecado. A morte está presente mesmo na glória da ressurreição. Na alegria de ver mais um salvo se presencia o começo de sua vergonha, agora que ele também caminha abraçado à cruz. Essa cruz nos faz caminhar em perdão constante, ainda que sofrendo a rejeição ao que ela representa. Assim andou Fábio. Olho a igreja brasileira e seus descaminhos e me pergunto: vamos aprender um dia? Vamos apear do cavalo e galgar a cruz? Vamos nos alegrar porque o Mané de cabelo azul ficou sabendo que existe esperança quando um cara de cabelo comprido e braços tatuados como os dele lhe mostrou esperança em forma de amigo? Vamos entender e abraçar o diferente? Quando é que os Fábios que circulam por nossas igrejas vão nos ser mais caros que o estarmos certos? Quando é que vamos ouvir as ruas e nos amar na multiformidade de nossa expressão cristã brasileira? — Lembra, Geraldo, daqueles braços marcados? Ninguém mais era como ele. No meu delírio, Geraldo responde: — Não pude secar-lhe a pele, mas lhe sequei o olhar. Sabe aquele olhar de perplexidade que ele às vezes tinha quando descobria uma coisa nova? Era como um menino encontrando um doce escondido. Guardo esse olhar comigo. Também quero esse olhar pra mim. Olhar o diferente com uma surpresa esperançosa. Será que parte de Deus vem dele pra mim? _______________________________ Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona com sua família e está envolvida em projetos internacionais de desenvolvimento na Ásia. É autora de Chamado Radical (Editora Ultimato). braulia.ribeiro@uol.com.br
René Padilla
M ISS ãO
I N TE GR AL
Jesus Cristo, Senhor de tudo e de todos
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autoridade que Jesus Cristo recebeu do Pai ao ressuscitar, segundo sua própria declaração em Mateus 28.18, é uma autoridade universal: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”. Em outras palavras, sua autoridade se estende sobre a totalidade da criação e sobre todos os aspectos da vida humana. Não há nada nem ninguém que esteja fora da órbita da autoridade de Jesus Cristo. Ele tem autoridade não apenas sobre a igreja, mas também sobre o mundo. Não apenas sobre o domingo, mas também sobre o restante da semana. Não apenas sobre o que está relacionado com as práticas religiosas, mas também sobre o que concerne à família e ao trabalho, à arte e à ciência, à economia e à política. Isto não significa, porém, que todos reconheçam essa autoridade de Cristo, mas sim que todos deveriam reconhecê-la. Com efeito, o que distingue os cristãos dos não-cristãos é o fato de que aqueles reconhecem e, portanto, confessam, a autoridade universal de Jesus Cristo e vivem à luz desse reconhecimento, enquanto estes não a reconhecem nem a confessam. Como afirma o apóstolo Paulo: “Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (Rm 10.12). Como veremos mais adiante, isto é o que torna necessária a missão da igreja, cuja essência é a proclamação de Jesus Cristo
como Senhor. “Isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo (Rm 10.8b-9). Infelizmente, com muita frequência nós cristãos nos deixamos levar pela dicotomia entre a esfera do sagrado e a esfera do secular.
Não há nada nem ninguém que esteja fora da órbita da autoridade de Jesus Cristo
Fazemos separação entre a ética e a religião, entre o público e o privado, entre o mundo e a igreja. Como consequência, estamos marcados pela incoerência entre nossa confissão de Jesus Cristo como Senhor de tudo e de todos, por um lado, e nosso estilo de vida, por outro. Esta incoerência se faz visível hoje em dia, por exemplo, na maneira como permitimos que a sociedade de consumo defina nosso estilo de vida, impondo-nos valores alheios aos do reino de Deus. A sociedade de consumo transformou o aforismo do filósofo francês Rene Descartes cogino, ergo sum (“penso, logo existo”)
em consumo, logo existo. Como resultado, a maioria das pessoas na sociedade moderna, especialmente no mundo dominado pelo capitalismo, não consome para viver, mas vive para consumir. Pressupõe que, se uma pessoa quer chegar a ser alguém entre seus contemporâneos, deve ter capacidade para adquirir os símbolos de status que a sociedade de consumo oferece. E, para alcançar este objetivo, muitas pessoas estão dispostas a pagar um alto preço: a saúde, as boas relações conjugais e familiares, a satisfação fruto do exercício de uma vocação escolhida livremente. Em contraste com o estilo de vida que reflete os valores da sociedade de consumo, o estilo de vida coerente com a confissão de Jesus Cristo como Senhor de tudo e de todos renuncia a estes valores e se compromete com a realização do propósito de Deus para a vida humana exemplificado por seu Filho. É um estilo de vida em que prevalecem os valores do reino de Deus que se resumem em shalom: harmonia com Deus, harmonia com o próximo, harmonia com a criação de Deus. E é nesta direção que aponta a missão integral. Traduzido por Wagner Guimarães
C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica LatinoAmericana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral? (Editora Ultimato).
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Paul Freston
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Espiritualidade cristã e vida intelectual: alguns modelos históricos
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os últimos anos, muito se tem falado nas igrejas brasileiras da necessidade de viver a vida cristã fora do contexto eclesiástico. A falta de ensino e de modelos de vida cristã prática nos mais diversos ramos profissionais tem contribuído para a deterioração da imagem evangélica na sociedade. Em parte por causa disso, a necessidade de modelos se faz ainda maior para os estudantes, professores e pesquisadores ligados à vida universitária. Aqui, quero compartilhar três “achados” que têm me ajudado a refletir sobre algumas dimensões cristãs da vida intelectual.
Beda : um modelo de intelectual cristão em plena “era das trevas” Estive recentemente no Nordeste da Inglaterra, na cidade de Durham, onde está enterrado Beda, o Venerável. Beda (673-735) foi um dos homens mais cultos de sua época em toda a Europa, apesar de morar nos limites setentrionais do “mundo civilizado” no período após a desintegração do Império Romano que conhecemos como a “era das trevas”. Beda é conhecido principalmente por sua História Eclesiástica do Povo Inglês, obra pela qual chegou a ser chamado “pai da historiografia inglesa”. Porém ele também escreveu muitos comentários e homilias sobre textos bíblicos. Suas Homilias sobre os Evangelhos tiveram uma influência imensa durante muitos séculos. O interessante em Beda não é só a combinação de interesses acadêmicos que atravessava a divisória entre o que hoje chamaríamos o “secular” e o “religioso” (história e exegese
bíblica), mas também os valores que ele expressava em sua vida intelectual. Numa introdução moderna a sua História Eclesiástica, lemos que ele “combinava a paixão evangelística dos missionários celtas e a devoção disciplinada dos monges beneditinos”. Contudo, à paixão evangelística e devoção disciplinada, acrescentava virtudes relacionadas especificamente com a atividade intelectual. Nas suas obras históricas, “nunca distorcia as ações das pessoas cujas convicções ele não compartilhava”; um excelente ideal não só para todos que trabalham nas ciências humanas, mas também para todos os cristãos que se envolvem em polêmicas inter- ou intrarreligiosas! Mais ainda, avaliando as ações dos atores históricos, Beda era “generoso em reconhecer méritos, piedoso em reverenciar a santidade, mas sábio em perceber defeitos”. Por isso, o legado que deixou era duplo: a inspiração de uma vida santa e o valor de uma grande obra.
Tomás de Aquino : oração e estudo Tomás de Aquino foi um dos maiores intelectuais de todos os tempos, e a influência de sua obra é imensa desde os últimos séculos da Idade Média. Infelizmente, para muitos evangélicos, este italiano do século 13 é associado ao catolicismo medieval contra o qual a Reforma Protestante se insurgiu. Porém diz-se que a única de suas obras que ele próprio carregava consigo em viagens era a Catena Áurea. O título significa “cadeia dourada”; trata-se de um comentário bíblico (em vários volumes) sobre os quatro Evangelhos. Mas este comentário não é uma obra original de Tomás de Aquino. Todo o texto consiste de frases tiradas dos grandes autores patrísticos (pessoas como Agostinho, João Crisóstomo, Ambrósio, Hilário, Orígenes, Jerônimo, Gregório, o Grande, e outros); Tomás somente escolheu as frases e as ordenou numa sequência lógica. Onde os autores divergem entre si, ele oferece as várias interpretações alternativas. Para quem
ama os Evangelhos, é uma verdadeira mina, ainda mais porque a era patrística, em alguns sentidos, guarda mais semelhanças com a nossa época do que as épocas que vieram depois. Este grande intelectual Tomás de Aquino, que amava a Bíblia e pouco tempo antes de morrer teve uma profunda experiência mística com Cristo, também escreveu uma fascinante Oração antes do Estudo. Apresento aqui uma versão resumida. Criador de todas as coisas, verdadeira fonte de luz e sabedoria: Que um raio do teu esplendor penetre minha mente, e tire de mim a dupla escuridão do pecado e da ignorância. Dá-me uma compreensão clara, uma memória aguçada e a capacidade de captar a essência das coisas de maneira correta. Concede-me o talento de ser preciso nas minhas explicações, com esmero e graça. Indica-me por onde começar, guia-me no caminho e ajuda-me a terminar. Por Cristo nosso Senhor. Amém.
“Inspira-nos, na variedade de nossas vocações, a fazer o trabalho que nos deste com singeleza de coração, como teus servos e para o bem comum” O apelo à iluminação divina não pretende substituir, claro, a dedicação ao estudo, mas sim reconhecer duas coisas. Primeiro, que (como diz o grande sociólogo Max Weber em seu ensaio A Ciência como Vocação) a inspiração científica não é garantida nem pela dedicação, nem pelo entusiasmo, mas
depende “de um destino que nos está oculto, e além disso da posse de um dom”. Segundo, a doutrina cristã de que a “queda” do ser humano afetou todas as suas funções, mesmo as intelectuais. Por isso, a nossa escuridão é dupla: não só da ignorância, mas também do pecado. A oração de Tomás reconhece também, sabiamente, a dificuldade não só de começar, mas de terminar; uma dificuldade que muitas vezes resulta do perfeccionismo. Gosto também do duplo pedido por precisão nas explicações “com esmero e graça”, outra combinação difícil!
A Oração Anglicana das Vocações O último “achado” que quero compartilhar aqui é uma brevíssima oração tirada da Grande Litania da Igreja Anglicana. Baseia-se no reconhecimento protestante das profissões “seculares” como vocações cristãs. Diz a oração: Inspira-nos, na variedade de nossas vocações, a fazer o trabalho que nos deste com singeleza de coração, como teus servos e para o bem comum.
Primeiro, reconhece-se a variedade de vocações legítimas no reino de Deus. E, se essas vocações são tão diversas, também o deve ser a variedade de talentos e personalidades no reino de Deus. Em seguida, roga-se pelas qualidades comuns que devem caracterizar todos os vocacionados cristãos. Consistem de um meio (singeleza de coração) e dois fins (para servir a Deus e ao bem comum). Na quase infinita variedade de vocações no reino, a busca dessas qualidades é o que nos une.
Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. Maio-Junho, 2010
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CAMINHO DO CORA çãO
Ricardo Barbosa
Coração compungido e contrito
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ma das marcas do nosso tempo é o abandono do temor a Deus. Temor é uma palavra que a cultura contemporânea excluiu do dicionário. No lugar dela, cresce a busca pela autoconfiança. Uma vez que não temos nenhum referencial fora de nós, assumimos que somos nosso próprio deus. Num mundo assim, não existem limites ou fronteiras. Tudo é possível, permitido e aceitável. Surge então um desequilíbrio perigoso. A oração do rei Davi no Salmo 51 é uma das pérolas da Bíblia. Não posso imaginar a vida sem essa oração, que nos conduz às profundezas da alma humana. Encontramos nela o espelho dos movimentos mais profundos de nossas emoções. Ela descreve a anatomia da alma humana e demonstra um equilíbrio maduro entre o temor a Deus e uma autoestima saudável. O contexto é bem conhecido. Trata-se do terrível adultério do rei Davi com Bate-Seba, seguido da trama para matar seu marido, Urias. O plano perverso de Davi acontece. Depois da morte de Urias, ele se casa com Bate-Seba e o filho nasce. Porém, Davi não consegue conviver em paz com seu pecado. Graças a Deus por isso. Ele tentou esquecer, remendar, mas nada adiantou. Seu corpo começou a sentir o peso do pecado. Por mais que a cultura moderna nos tente convencer que o pecado não existe, seus sinais estão por toda parte. Não havia sacrifício para o pecado de Davi, já que o crime que cometeu
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fora premeditado. É por isso que ele diz: “Pois não te comprazes em sacrifícios; do contrário, eu tos daria; e não te agradas de holocaustos”. Davi então entende que o sacrifício com o qual Deus se agrada é um espírito quebrantado e um coração compungido e contrito. Pouca coisa descreve melhor a necessidade humana do que essa declaração. Algumas razões: Um espírito quebrantado e um coração contrito nos conduzem à realidade sobre quem somos. Observe os pronomes usados por ele: “minhas transgressões; minha iniquidade; meu pecado; eu pequei contra ti; eu fiz o que é mau, eu nasci na iniquidade”. Davi tem consciência de quem ele é. Isso nos ajuda a parar de jogar e brincar com a vida — a nossa e a dos outros. Por causa desse coração e espírito, ele assume seu erro e pecado. Não busca justificar seu erro com o erro dos outros, com aquelas desculpas conhecidas: “todo mundo faz o mesmo”, “não tive escolha”, “fui pressionado”. Ele não diz que foi “consensual”. Adultério é adultério, mesmo sendo consensual. Ele sabe que sua ofensa atinge primeiramente a Deus: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mal perante os teus olhos; esconde o rosto dos meus pecados; não me repulses da tua presença, nem me retires teu Santo Espírito”. É a Deus que ele ofendeu, antes de Bate-Seba e Urias. É isso que o temor a Deus produz. Essa oração nos conduz também a uma compreensão real sobre Deus. Veja a forma como ele se refere
a Deus: compaixão, benignidade, misericórdia, amor, justiça, santidade. Ao pedir para ver a glória de Deus, Moisés ouviu a seguinte resposta: “Farei passar toda a minha bondade diante de ti... terei misericórdia e compaixão”. Davi volta-se para essa revelação, para o amor eterno, amor da aliança. É nesse amor que ele se apega. É nessa compaixão que ele deposita sua confiança. É uma oração que nos conduz a um milagre. Encontramos nela afirmações enfáticas: “Purifica-me, lava-me, fazeme ouvir júbilo e alegria, cria em mim um coração puro, renova dentro em mim um espírito inabalável, apaga as minhas transgressões, restitui-me a alegria da salvação, sustenta-me com um espírito voluntário, livra-me dos crimes, abre meus lábios”. Ao suplicar pelo milagre de um coração puro, Davi usa a mesma palavra de Gênesis 1: Deus criando a partir do nada. Somente ele pode criar uma nova realidade, uma nova criação. É exatamente o que Jesus veio fazer: “Eis que faço novas todas as coisas”. Deus não despreza um espírito quebrantado e um coração contrito. É somente com um temor sincero para com ele que podemos desenvolver uma compreensão clara sobre nós. É essa atitude que torna possível ao ser humano construir uma autoconfiança saudável.
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em www.ultimato.com.br
Guia para estudo em grupo baseado neste artigo.
Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de Janelas para a Vida e O Caminho do Coração.
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Robinson Cavalcanti
50 anos de crente (...)
Marek Bernat
Desligo-me da Igreja Romana em plena efervescência do Concílio Vaticano II, cujos documentos finais eu acompanhei e estudei. Passo doze anos na condição de aluno e, depois, professor na Universidade Católica de Pernambuco (dos jesuítas), exposto às encíclicas sociais pontifícias e à filosofia solidarista de Gabriel Marcel, Jacques Maritain e Emmanuel Mounier. Rompo com a eclesiologia e a soteriologia romanas, mas retenho muito da sua doutrina social. Ao término dos cursos de ciências sociais e direito, entro em um dilema existencial: advocacia, carreira diplomática, pós-graduação no exterior, ordenação ao pastoreio de uma igreja luterana, casamento? Convidado por Paul Little para assistir à Conferência Missionária de Urbana (1967), ouço John Stott expor a Segunda Carta a Timóteo e sinto um chamado para o ministério, mas não sei qual. De volta ao Brasil, recebo um convite para ser assessor (obreiro) da Aliança Bíblica Universitária (ABU), que foi um marco na minha vida quando eu, ainda estudante, havia sido discipulado pelo missionário batista inglês Dionísio Pape. Um mês depois, sou convidado para lecionar na Universidade Católica. É a resposta
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(1960-2010) parte 2 de Deus: profissão e ministério na academia. Estou com 23 anos. Permaneço mais de dez anos como missionário da ABU, cobrindo, inicialmente, uma área que vai de Manaus a Salvador. Em 1969, aos 25 anos, me caso com Miriam (já são 41 anos de casados). As portas do magistério se escancaram. Recebo propostas do colégio Presbiteriano Agnes, Americano Batista, Eucarístico (católico), da Faculdade Frassinetti do Recife e do Seminário Presbiteriano do Norte. Aprovado nos concursos para professor de ciência política nas Universidades Rural e Federal de Pernambuco, fecho o escritório de advocacia, para tristeza do meu pai, e suspendo a ordenação pastoral (permanecendo como evangelista). Aos 26 anos, por sugestão de Neuza Itioka e a convite de Ricardo Sturz (pai), participo do processo de fundação da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL) como “caçula”. Em 1970, compartilho da histórica 1ª Consulta de Cochabamba, onde integro a comissão executiva por sete anos. Além disso, participo dos CLADEs 2 e 3 — o primeiro, em Huampani, no Peru (fiz parte da comissão diretora), e o segundo, em Quito, no Equador. Por dez anos escrevo na coluna evangélica dominical do Jornal do Commercio, de Recife. O apoio de
Richard Sturtz à minha publicação de Cristo na Universidade Brasileira? torname um escritor (1972). Aos 30 anos (1974), estou no Rio de Janeiro cursando mestrado em ciência política na Cândido Mendes (IUPERJ) e servindo na ABU — Região Leste. Sou convidado para participar do Congresso de Lausanne, onde tenho a liberdade de falar e integrar a Comissão de Convocação. Em seguida, sou eleito membro-suplente de Faninni e Gesiel Gomes na Comissão de Continuação, depois Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE), por quatro anos. Com a constante falta de titulares, compareço a todas
Ouço John Stott expor a Segunda Carta a Timóteo e sinto um chamado para o ministério as reuniões e participo da maioria das consultas da fase fecunda (1974–1982) — responsabilidade social; evangelho e cultura; estilo de vida simples — e do Congresso de Pattaya, na Tailândia. No Congresso Missionário (Curitiba, 1976) publico o livro Uma Bênção Chamada Sexo. Sou o primeiro autor evangélico a se aventurar (a levar pedradas) pelo tema. Em seguida, publico O Cristão, Esse Chato! De volta a Recife, passo a ocupar cargos na administração universitária, como coordenador, chefe de departamento, diretor de centro, membro dos conselhos superiores. Sirvo como obreiro na ABU e como membro dos Gideões Internacionais. Sou convidado para integrar a Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial (WEF),
subcomissão Ética e Sociedade, por quatro anos. Em 1978, por sugestão de amados irmãos, encerro minha abençoada década de obreiro da ABU. Ajudo a criar um movimento evangélico de conscientização política (MCDC) e preparo o livro Cristianismo e Política. A convite do pastor presbiteriano João Campos de Oliveira, coopero por três anos em um programa de televisão. O fato de ter militantes políticos na família — meu pai foi vereador e presidente de sindicato empresarial — e de ter participado da política estudantil, sindical e partidária leva-me à candidatura a deputado estadual (com a Lei Falcão e o voto vinculado) como evangélico não-marxista contra a ditadura militar — saio do gabinete e vou à escola das ruas, com os riscos da ocasião. Por doze anos sou abençoado como membro da Igreja Luterana (IELB), à qual devo minha formação no pensamento da Reforma e minhas convicções doutrinárias ortodoxas. Questões periféricas pontuais (germanismo cultural, ceia restrita, regeneração batismal, governo não-episcopal), depois de um período de discernimento, me levaram à desvinculação da IELB e a uma transição ao anglicanismo (1976). Aos 32 anos, já sou influenciado por Jonh Stott, C. S. Lewis, J. I. Packer e Michael Greene (missões aos nacionais no Nordeste). Continuo a viajar (1978–1997), pelo país e exterior, a convite de várias denominações e instituições... (Continua na próxima edição.) Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada. www.dar.org.br. Maio-Junho, 2010
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Ricardo Gondim
Thiago Tavares
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inda há pouco, ao reler o admirável Sermão do Monte, percebi como a graça esteve presente nos princípios expostos por Jesus. Mesmo reconhecendo que a graça foi exaustivamente estudada e definida pela teologia, é preciso redescobri-la nos lábios do Nazareno. Os favores imerecidos de Deus não podem ficar circunscritos às codificações teológicas. Naquele relvado, na encosta de um morro qualquer, Cristo falou de assuntos diversos, mas não se esqueceu de explicitar que Deus se relaciona com seus filhos diferente de todas as divindades conhecidas. Após séculos de argumentação sobre os significados da graça, os cristãos precisam despertar para ao fato de que ela é o chão da espiritualidade cristã. Um neopaganismo levedou a fé de 54
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tal forma que muitos transformaram a oração em uma simples fórmula para canalizar e receber os favores divinos. Para obter resposta às petições, implora-se, pena-se, insistese, no aguardo de que Deus escute. Quando não se recebe, justifica-se assumindo culpas irreais, como falta de disciplina. Acha-se que é necessário continuar implorando para Deus se sensibilizar. Mede-se a espiritualidade pelo número de respostas aos seus pedidos e, quando malsucedidos, castiga-se por não merecer. A própria linguagem denuncia romeiros católicos evangélicos, que lotam os espaços religiosos: é preciso “alcançar uma graça”. Graça liberta do imperativo de dar certo. O Sermão da Montanha começa felicitando pobres em espírito, chorosos, mansos e perseguidos. Os triunfantes não podem se gloriar de
serem mais privilegiados do que os malogrados. Graça revela um Deus teimosamente insistindo em permanecer do lado de quem não conseguiu triunfar; até porque a companhia de Deus não significa automática reversão das adversidades. Graça permite o autoexame, a análise das motivações mais secretas da alma, sem medo. Na série de afirmações sobre ódio, adultério, divórcio e vingança, Cristo deixou claro que ninguém pode se vangloriar quando desce às profundezas do coração. No nível das intenções, todos são carentes. O olhar sutil indica adultério. O ódio despistado revela homicidas em potencial. A vingança disfarçada contamina as ações superficiais. Lá onde brotam as fontes das decisões, tudo é confuso; vícios e virtudes se confundem. Somente com a certeza de que não
Basta atentar para os lírios do campo e pardais para perceber que as ambições devem escapar à mesquinhez de passar a vida administrando o dia-a-dia. Graça devolve leveza para que os filhos de Deus sintam-se à vontade em sua presença, como meninos na casa dos avós. Graça libera as pessoas para se tornarem amigas de Deus, em vez de vê-lo como um adestrador inclemente. Graça não permite delírios narcisistas. Nenhuma soberba se sustenta diante da percepção de que Deus aposta na humanidade e Enquanto a graça não for ainda se convida a cear entre redescoberta como a mais preciosa amigos. Graça distensiona o culto verdade da fé, as pessoas podem porque avisa: tudo o que até afirmar que foram livres, precisava acontecer para reconciliar a humanidade mas continuarão presas à lógica com Deus foi concluído: religiosa das compensações Consumatum est. Portanto, enquanto a graça não for redescoberta de fato como a mais reconhecimento e admiração por tão preciosa verdade da fé, as pessoas grande amor, se sentem impulsionadas podem até afirmar que foram livres, a imitá-lo. Deus surpreende por mas continuarão presas à lógica dispensar bondade sem contrapartida religiosa das compensações. Devedores, de virtude. Assim, na improbabilidade jamais entenderão que o reino de de os seres humanos se mostrarem Deus é alegria. A graça liquida com graciosos, os discípulos devem almejar pendências legais. Não restam alegações a única virtude que pode torná-los a serem lançadas em rosto — “Quem perfeitos como Deus — o amor. intentará acusação contra os escolhidos Graça é convicção de que o acesso de Deus?”. a Deus não depende de competência. A religiosidade legalista insiste Quem acredita que será aceito pelo que é perigoso falar excessivamente tom de voz piedoso ou pela insistência sobre a graça. Anteparos seriam então em repetir preces nega a paternidade necessários para proteger as pessoas divina. Antes de pedirmos qualquer da liberdade que a graça gera. Mas coisa, Deus já estava voltado para nós. o amor que tudo crê, tudo espera e Os exercícios espirituais não precisam tudo suporta não aceita outro tipo de ser dominados como uma técnica, mas relacionamento senão abrindo espaço desenvolvidos como uma intimidade. para que haja amadurecimento. Deus O secreto do quarto fechado representa ama assim, e o Sermão da Montanha um convite à solitude, à tranquilidade não deixa dúvidas de que todo discurso que não acontece com sofreguidão. sobre o reino de Deus deve começar Graça libera energia espiritual que com graça. pode ser dirigida ao próximo. Buscar o Soli Deo Gloria. reino de Deus e sua justiça só é possível porque não é preciso preocupar-se ____________________________ Ricardo Gondim é pastor da Assembleia de Deus Betesda no com o que comer e vestir e por jamais Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, Eu Creio, ter de bater na porta do sagrado para mas Tenho Dúvidas (Editora Ultimato). conquistar benefícios particulares. www.ricardogondim.com.br haverá rejeição é possível confrontar coração para ser íntegro. Graça convida a amar. Jesus afirmou que Deus “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”. Para revelar sua bondade, Deus não precisou ser convencido a querer bem. Deus não faz acepção de pessoas; o seu amor não está condicionado a méritos. Quando as pessoas são inspiradas por gratidão,
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Rodolfo Amorim Carlos de Souza
Um diálogo entre a arte e a fé cristã
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rande parte dos cristãos brasileiros ainda questiona o lugar da arte na vida cristã ou a relevância e validade do envolvimento do cristão no universo das artes. Quando o assunto vem à tona, as questões que comumente surgem variam das mais tradicionais e conservadoras às mais progressivas e liberais. Alguns questionam: “Qual a função da arte na vida da Igreja, diante da grande e urgente tarefa evangelística?”; “Não seria o campo das artes “fora” da igreja um terreno dominado por forças mundanas e cheio de tentações aos cristãos?”. Outros insistem: “Existe alguma relação entre a religião, com seus dogmas, crenças e liturgias, e o universo rico, espontâneo e livre das artes?”; “Não seria muita pretensão tentar mediar a ação de um artista em busca de sua expressão com princípios religiosos de qualquer sorte, dando à sua arte um tom cristão?”. Diante de tais extremos de perplexidade e posicionamentos, o livro A Arte e a Bíblia, de Francis Schaeffer, busca traçar, de maneira simples e ao mesmo tempo profunda, caminhos de reflexão e direções de aprofundamento relevantes para a construção de um diálogo saudável entre arte e fé cristã. O autor considera tanto o rico fundamento da fé cristã como
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a realidade inegável dos imensos potenciais artísticos presentes na realidade criada, cultivada e compartilhada por todos os homens. Em resposta às questões de um grande número de pessoas confusas e perplexas quanto ao lugar da arte na vida cristã e ao aparente caos do universo artístico que visitavam as comunidades L’Abri, Francis Schaeffer aborda de forma simples e clara duas temáticas principais em A Arte e a Bíblia. No capítulo um, “A Arte e a Bíblia”, ele aponta, por meio de exemplos bíblicos, como as artes formam uma realidade enriquecedora e instigante na história da redenção de todas as coisas por Deus. Revela como formas artísticas variadas como a pintura, a dança, a escultura, a poesia, o drama e a música estão ricamente entretecidas na complexa trama bíblica, afirmando sua legitimidade e singularidade como expressão ao mesmo tempo humana e divina. No capítulo dois, “Algumas Perspectivas sobre a Arte”, Schaeffer compartilha onze perspectivas sobre a arte, contribuindo para um discernimento cristão que facilite tanto o seu usufruto quanto a análise crítica.
A Arte e a Bíblia, Francis Schaeffer Editora Ultimato 80 páginas
Ainda que esteja distante de uma teoria estética cristã acadêmica sobre as artes — o que o autor não pretendia que fosse —, A Arte e a Bíblia continua relevante para aqueles que querem desfrutar da plenitude da realidade criada por Deus, a qual inclui o rico universo das artes, com discernimento e sabedoria especificamente cristãos. Rodolfo Amorim Carlos de Souza, analista em assuntos internacionais e mestre em sociologia, é obreiro do L’Abri Brasil e um dos organizadores do livro Fé Cristã e Cultura Contemporânea.
Valdir Steuernagel
R EDESCOBRINDO
A PALAVRA DE D EUS
Chamados para expulsar demônios: denúncia de morte, anúncio de vida
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Era a primeira vez que me aventurava a ir num congresso internacional em inglês — que, aliás, eu sabia pouco. É claro que não aproveitei muito. Certa noite, projetaram um filme sobre Jesus e fui buscar refúgio em alguma tradução. Porém, houve uma cena que nem precisou de palavras para me falar fundo: o momento em que Jesus, ao descer do monte, encontra-se com um menino que vem subindo a colina. Não sou uma pessoa de detalhes e olhares, mas a cena daquele encontro me marcou profundamente. O olhar de Jesus, a forma como ele tocou a cabeça do menino, tinha tudo a ver com saudação, aceitação, identificação e estabelecimento de relação. Jesus amou o menino e disso não havia dúvida.
É fascinante mergulhar nos Evangelhos e ver como Jesus caminha em meio às pessoas e suas comunidades, construindo com elas uma relação de significado. Logo se estabelece entre eles abertura e confiança, e as pessoas sentemse à vontade para lhe expor suas
A presença de Jesus traz o anúncio de um evangelho que restaura e acolhe e a denúncia de uma realidade de opressão, escravização e morte
vulnerabilidades mais profundas e suas dores mais agudas. Jesus olhavaas com compaixão e via-as como “ovelhas sem pastor” (Mc 6.34). Acolhia-as com abraços, olhares e palavras. As mulheres falavam das doenças que as afligiam por anos, os amigos furavam o teto da casa para baixar o paralítico diante de Jesus, as crianças corriam para os seus braços e eram recebidas com ternura. Já os demônios... Bem, com eles a história era outra. Diante dele os demônios se sentiam ameaçados e, descontrolados, bradavam: “O que queres conosco, Jesus de Nazaré?”, como aconteceu na sinagoga em Cafarnaum (Mc 1.24). Se com as “ovelhas sem pastor” ele se mostrava terno e receptivo, com os espíritos imundos a conversa era curta Maio-Junho, 2010
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e seca. “Cale-se e saia dele!”, disse ele na mesma ocasião (Mc 1.25). O caráter confrontador e libertador dos encontros de Jesus com o maligno é real e suas consequências podem ser imediatamente constatadas. Um desses encontros, descrito pelos evangelhos sinóticos, acontece na terra dos gerasenos, ocupada predominantemente por gentios, e envolve uma pessoa absurdamente possessa (Mt 8.26-39, Mc 5.1-4, Lc 8.26-39). O encontro não poderia ser mais emblemático e a descrição da realidade desse pobre homem é triste e realista. Não possui nem nome — só se identifica como “Legião”, pois, “muitos demônios haviam entrado nele” (Lc 8.30). A comunidade não sabe o que fazer com ele; nem as correntes com as quais cidadãos e autoridades locais tentam amarrar, dominar e segurar esse “problema público” resistem à sua força descomunal. Seu perambular público é um escândalo. Quando ele se aproxima, as mães escondem as filhas para poupá-las da vergonhosa cena, enquanto os meninos, em grupos barulhentos, munem-se de paus e pedras para aprofundar o fosso dessa ausência de racionalidade e humanidade. Ora fugindo, ora atacando, o pobre homem busca refúgio no cemitério, pois coisas elementares como casa,
família, cama, mesa e banho ele já não tem há muito. O resultado do encontro de Jesus com esse homem gera comoção na cidade inteira. Findada a “batalha” e amplamente divulgada a notícia, “o povo foi ver o que havia acontecido” (v. 34). Assustados e amedrontados, pedem que Jesus vá embora dali. Uns emudecem, boquiabertos; outros falam sem parar, em claro sinal de nervosismo; mas todos veem o que jamais se poderia imaginar: “O homem de quem haviam saído os demônios estava assentado aos pés de Jesus, vestido e em perfeito juízo” (v. 35). As mães, que ainda ontem escondiam suas filhas à vista do “homem-legião”, agora as conduzem pela mão com assustada tranquilidade. As autoridades, que sempre tinham esse “problema” na pauta das reuniões, agora se entreolham, pasmas. Os meninos, que ontem ajuntavam pedras para atirar naquela “ameaça”, agora ficam cochichando sobre o ocorrido. E “o homem de quem haviam saído os demônios [...], vestido e em perfeito juízo”, assiste a tudo isso com um discreto sorriso nos lábios e sem conseguir tirar os olhos de Jesus. Também, pudera! É difícil descrever uma mudança tão rápida e radical e, — por que não dizer — simples. “O problema” de ontem foi transformado não apenas numa pessoa
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normal, mas também num discípulo de Jesus e testemunha do que ele pode fazer. É isso que Jesus faz e o que sua presença significa: ele liberta e resgata para a vida. Onde quer que vá, sua presença traz anúncio e denúncia. Anúncio de um evangelho que restaura e acolhe a quem quer que cruze o seu caminho, e de forma belíssima, especialmente quem estava acostumado a ser pobre, excluído e desprezado. Denúncia de uma realidade de opressão, escravização, desfiguração e morte. Aquele que não tinha nome, passa a ser cidadão. Aquele que espantava, agora acolhe para contar sua história. Quem era problema, passa a ser resposta. A denúncia de Jesus é também anúncio — da aurora de uma Nova Esperança a quem até os demônios precisam se submeter. E disso Jesus tem tranquila convicção: “Mas se é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios, então chegou a vocês o Reino de Deus” (Lc 11.20). Ainda hoje dizemos: Aleluia!
Valdir Steuernagel é pastor luterano e trabalha com a Visão Mundial Internacional e com o Centro Pastoral e Missão, em Curitiba, PR. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.
Vittoria Andreas
d eixem
que elas mesmas falem
Fé perseguida, provada e aprovada
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conteceu em maio de 2009, em um país islâmico. Após ter viajado cerca de 1h30, encontramos um lugar agradável que ficava ao pé de um lago. Ali paramos para comer, descansar, cantar e meditar na Palavra de Deus. Depois de alguns hinos, o responsável pelo pic-nic nos apresentou a um homem idoso, pele queimada, mãos grossas, que tinha uma perna mais curta do que a outra e carregava nas mãos uma pasta surrada. Aquele homem de aparência rústica, não apresentável e que não inspirava expectativa alguma, começou a contar o seu testemunho. Na infância, conheceu uma mulher, amiga de sua mãe, cuja profissão era parteira. Um dia, essa mulher preparou uma festa de aniversário para uma das crianças das quais havia feito o parto. E, nessa festa, passou o filme Jesus. Uma imagem, então, ficou vívida em sua mente: “Aquele homem [Jesus] tinha algo”. Aos 19 anos, o homem conheceu alguns missionários que havia ajudado com mudanças e outras tarefas. Numa manhã, já adulto, levantou-se com sede de conhecer a Palavra de Deus. Procurou, então, um missionário que o conduziu a uma sala e lhe falou sobre o evangelho. No entanto, eles não ficaram ali por muito tempo, pois tinham que recepcionar um grupo que iria chegar à missão.
Na hora do almoço, um dos jovens abriu a Bíblia e leu o texto de Romanos 8.1: “Agora nenhuma condenação há para aqueles que estão e Cristo Jesus”. O homem, então, começou a chorar e se entregou a Cristo. Ele era casado e tinha dois filhos pequenos. Quando chegou o Ramadã — mês em que o jejum é obrigatório para os muçulmanos — não o fez. E por isso foi preso ao ser denunciado por um amigo. Na prisão, o homem foi interrogado e torturado. Ele se sentia só e pensava na esposa e nos filhos. Não havia ajuda, pois eles eram considerados traidores, por terem abandonado a fé islâmica. Às vezes, aparecia um policial que lhe dizia: “Negue o cristianismo e você será liberto!”. Entretanto, a convicção que ele tinha da sua fé em Cristo o manteve firme, mesmo diante da perseguição. Um dia, esse homem recebeu a visita de sua esposa, que estava em prantos. Ele logo percebeu que sua família estava com problemas: eles não tinham o que comer. Se ele negasse a Jesus, poderia sair dali e ajudar a sua família. Porém não o fez. Essa visita o deixou muito angustiado. Ele, então, chorou e clamou a Deus. De repente, no caminho para o quarto, o homem avistou um pedaço de jornal que voava em sua direção. Ele pegou aquele pedaço de papel onde estava escrito: “A nossa luta não é contra
carne nem sangue” (Ef 6.12). Como foi que o jornal parou ali? Após alguns dias, o chefe da prisão pediu ao homem que fizesse um trabalho para um de seus filhos, cujo tema era “liberdade”. Muitos anos antes esse país havia sido protetorado francês. Ao ler o trabalho, o chefe lhe disse: “Você tem razão! Nós somos livres!”. Seis meses depois, ele foi solto — dias depois de ter lido aquele pedaço de jornal. Ele foi solto porque cria que Jesus Cristo o libertaria. Hoje, com mais de 60 anos, o homem tem cinco filhos e todos estão nos caminhos do Senhor, servindo-o. Um deles casou-se com uma espanhola e tem um programa de evangelização no rádio e discipulado por extensão. Outra é líder de um grupo de senhoras e os outros dois também dirigem grupos de convívio. Sua nora, a espanhola, foi há pouco tempo expulsa do país por estar com algumas nacionais em um apartamento estudando a Bíblia. Ela havia sido denunciada por um vizinho que percebeu uma movimentação estranha naqueles dias. Porém, continuam firmes no evangelho. Pode, portanto, haver cadeias, arresto, perseguição, prisão, mas “não há nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). “A palavra de Deus não voltará vazia, antes dará o seu fruto” (Is 55.11). Vittoria Andreas é missionária transcultural. Serviu na Bolívia, Inglaterra e em um país muçulmano do Norte da África, nas áreas de ensino missiológico e teológico, e capacitação de novos obreiros.
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H ISTÓRIA
Alderi Souza de Matos
Flertando com o adversário:
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m traço intrigante de alguns movimentos religiosos é o fato de experimentarem transformações tão radicais ao longo de sua história a ponto de se distanciarem por completo de suas convicções iniciais. Um bom exemplo disso foi o que ocorreu com o puritanismo norte-americano. Originalmente comprometido com uma fé profundamente bíblica e uma espiritualidade fervorosa, algumas gerações mais tarde ele deu origem ao movimento unitário, fruto do racionalismo iluminista. Diversos observadores entendem que esse mesmo fenômeno está ocorrendo nos dias atuais com o movimento evangélico ou evangelicalismo, não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Consciente ou inconscientemente, segmentos evangélicos anteriormente conservadores, apegados à fé cristã histórica, estão aos poucos abraçando pressupostos e atitudes característicos do liberalismo teológico.
Antecedentes históricos Até o século 18, o protestantismo atribuiu grande importância à inspiração divina, autoridade e suficiência das Escrituras, bem como a outras convicções decorrentes desses fundamentos, preservando as ênfases dos reformadores do século 16. Os princípios de sola Scriptura (somente a Escritura), tota Scriptura (toda a Escritura) e o direito de livre exame revitalizaram a igreja e transformaram sociedades inteiras. Todavia, com o advento do Iluminismo, surgiu a tendência de embasar a religiosidade e a fé em outras autoridades que não a Bíblia e os credos cristãos históricos. Inicialmente, foi entronizada a razão, concluindo-se que só podia ser aceito 60
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como verdade religiosa o que pudesse ser demonstrado pelo intelecto humano. É o que se denominou religião natural ou racional, cuja expressão mais conhecida foi o deísmo inglês. Posteriormente, o filósofo alemão Immanuel Kant mostrou os limites da razão, relegando a religião ao âmbito exclusivo da moralidade (“razão prática”). Embora as realidades transcendentes fossem consideradas inacessíveis ao conhecimento humano, a crença em Deus foi mantida como um suporte para o viver ético. No século 19, Friedrich Scheiermacher, considerado o “pai da teologia liberal”, deu um passo adiante ao definir a essência da religião como o senso de dependência absoluta da realidade última. Agora, o critério da verdade passou a ser o sentimento, a experiência subjetiva. Ele também relativizou a importância do cristianismo, já que esse sentimento de dependência podia existir em qualquer religião. Outro grande forjador da teologia liberal, Albrecht Ritschl, apesar de ter atribuído maior valor à Escritura e à fé cristã, manteve a ênfase ética em detrimento das preocupações doutrinárias. A segunda metade do século 19 assistiu ao pleno florescimento do liberalismo teológico, caracterizado pelo esforço de harmonizar o cristianismo com o pensamento, a arte e a ciência contemporânea. O campo em que isso ficou mais evidente foi o estudo da Escritura. A Bíblia passou a ser encarada desde uma perspectiva naturalista, sendo negadas a sua inspiração e autoridade divina. Ela deixou de ser vista como uma fonte de verdades eternas, sendo apenas o registro culturalmente condicionado das experiências religiosas do povo de Israel e dos primeiros cristãos. Jesus foi considerado simplesmente um ser humano com profunda percepção das realidades espirituais, um grande mestre
moral e religioso. Esse personagem histórico nada tinha a ver com o ente divino-humano, operador de milagres e ressurreto dentre os mortos retratado nos Evangelhos, que teria sido imaginado pela igreja primitiva (“o Cristo da fé”).
Surge o evangelicalismo No início do século 20, protestantes conservadores nos Estados Unidos ficaram alarmados com o avanço do liberalismo ou modernismo teológico. Como já havia ocorrido na Europa, a teologia liberal estava rapidamente ocupando espaços nas igrejas e nos seminários norte-americanos. Ocorreu nesse contexto a célebre controvérsia “modernista-fundamentalista”, na qual os conservadores afirmaram enfaticamente a necessidade de preservar as convicções cristãs históricas sobre as Escrituras e a pessoa de Cristo, que eles criam estar sendo solapadas pelas novas ênfases teológicas. John Gresham Machen, professor de Novo Testamento no Seminário de Princeton e o representante mais culto do movimento conservador, escreveu o livro Cristianismo e Liberalismo (1923), argumentando que os termos desse título se referiam a duas religiões inteiramente distintas. Por defenderem doutrinas consideradas fundamentais para a fé cristã, os conservadores ficaram conhecidos como fundamentalistas. Infelizmente, alguns deles também começaram a insistir numa questão não essencial, o dispensacionalismo, e a manifestar atitudes intolerantes e cismáticas em relação aos que não concordavam com eles. O movimento então se dividiu, ficando de um lado os radicais, sob a liderança de Carl McIntire, e do outro, os evangélicos,
os evangélicos e a teologia liberal mais moderados, liderados por homens como Harold Ockenga, Carl F. Henry e Billy Graham. Houve também uma versão européia do movimento, tendo à frente John Stott, J. I. Packer, Martyn Lloyd-Jones e Francis Schaeffer, entre outros. O liberalismo clássico, caracterizado por seu imenso otimismo quanto à bondade inata do ser humano e ao progresso inexorável da humanidade, sofreu fortes abalos com a Primeira Guerra Mundial e a neo-ortodoxia de Karl Barth, mas conseguiu sobreviver. Embora muitos liberais fossem homens cultos e íntegros, sua teologia contribuiu para que boa parte das igrejas da Europa e da América do Norte perdesse sua identidade doutrinária,
têm soado um brado de alerta quanto a algumas transformações recentes do evangelicalismo norte-americano. Dois movimentos em especial geram apreensões: as igrejas norteadas pelo marketing religioso e as chamadas igrejas emergentes. Elas têm em comum uma forte ênfase antropocêntrica que torna os desejos, as necessidades e as experiências humanas o critério dominante da vida espiritual, e, em consequencia disso, uma preocupação cada vez menor com doutrinas, com convicções claras e firmes. Como sempre acontece, muitas igrejas evangélicas brasileiras têm sentido o impacto dessas influências procedentes do hemisfério norte. O evangelho da prosperidade e o pragmatismo religioso têm levado a uma preocupação com o sucesso, com números, em detrimento da integridade bíblica e teológica. Em muitos púlpitos já não se ouvem as doutrinas da graça, os grandes temas da Reforma do Século 16, e sim mensagens condescendentes de autoajuda psicológica. Afinal, é muito mais interessante ouvir um sermão sobre como ser feliz e bem-sucedido do que sobre o pecado, a justiça de Deus ou a santificação. A falta de interesse por questões doutrinárias tem levado um bom número de igrejas e líderes a gradativamente abrirem espaços para a penetração de influências liberais. Há vários anos, denominações históricas outrora conservadoras vêm permitindo que instituições vitais, como os seus seminários, sejam controladas por corpos docentes de orientação progressista. Recentemente, até mesmo grupos pentecostais, na ânsia
No desejo de ser relevante, atual e sintonizada com o mundo, a igreja corre o risco de fazer concessões excessivas à sociedade e à cultura vitalidade espiritual e zelo evangelístico. Durante algumas décadas, os evangélicos ou evangelicais procuraram preservar esses valores por meio de suas igrejas, instituições e publicações. Todavia, a partir dos anos 80, determinados segmentos começaram a tomar rumos preocupantes.
O dilema atual Autores contemporâneos como David Wells (Coragem de Ser Protestante) e Michael Horton (Cristianismo sem Cristo)
de encontrarem professores pósgraduados para seus cursos de teologia reconhecidos pelo governo e para programas de validação de diplomas, têm feito contratações levando em conta apenas a titulação acadêmica e não as preferências teológicas dos docentes. Em consequência, grande número de pastores e leigos têm ficado expostos a conceitos doutrinários muito diferentes daqueles adotados oficialmente por suas igrejas.
Conclusão A mentalidade pós-moderna se caracteriza pelo pluralismo, o relativismo e o abandono de valores absolutos. No desejo de ser relevante, atual e sintonizada com o mundo, a igreja corre o risco de fazer concessões excessivas à sociedade e à cultura, comprometendo a integridade do evangelho da graça. Nesse contexto, a teologia é um dos recursos mais essenciais para a vitalidade do povo de Deus. Se ela for desprezada, a vida devocional, o culto comunitário, o senso de missão e o testemunho da fé perdem sua solidez e coerência. Por sua vez, sem olhar atentamente para a Escritura, a história da igreja e as contribuições do passado, a reflexão teológica se torna refém das opiniões subjetivas, dos modismos flutuantes e dos ditames culturais de cada geração. Que as igrejas evangélicas do Brasil possam retornar às suas raízes, à herança dos reformadores, aplicando-a com fidelidade, sabedoria e sensibilidade aos complexos problemas e carências dos dias atuais. Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil. asdm@mackenzie.com.br Maio-Junho, 2010
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Ronaldo Lidório
Arquivo pessoal
A primeira missão da igreja é “desglorificar-se” para glorificar a Deus
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os 616 mil indígenas brasileiros, 52% ainda habitam em aldeamentos e 48% já moram em regiões urbanizadas. A igreja evangélica indígena é maior do que se imaginava e continua crescendo. Há inclusive três fortes movimentos indígenas: o Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (CONPLEI), a Associação de Mulheres Evangélicas Indígenas (AMEI) e a Associação Indígena de Tradutores Evangélicos (AITE). Contudo, ainda há muito por fazer. Especialistas em missões indígenas afirmam que o Brasil precisa atualmente de quinhentos novos missionários. Para deixar a igreja evangélica brasileira informada, Ultimato entrevista o missiólogo e missionário Ronaldo Lidório, a propósito do Relatório Etnias Indígenas Brasileiras 2010, organizado por ele e por uma equipe de trabalho formada por Edson Bakairi, Stan Anonby, Wilsamara Filgueiras, Andreas Fuchs, Cassiano Luz, Adriano Hedler e Richard Eger, além do acompanhamento de Rocindes Correia e Edward Luz.
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Qual o panorama geral das etnias indígenas brasileiras? As pesquisas e análises mais atuais apresentam o universo indígena brasileiro formado por 228 etnias conhecidas, 37 isoladas, 41 ressurgidas, nove possivelmente extintas e 25 a pesquisar, totalizando 340 etnias distintas. O panorama sociocultural é também bastante eclético e envolve uma crescente migração urbana, uma explosão de indivíduos que passaram a se autodeclarar indígenas nos últimos quinze anos, uma acelerada perda da língua materna nas etnias periféricas às áreas urbanas e uma intensificação dos problemas de saúde, educação e subsistência nos ambientes de aldeamento.
O que é o Relatório Etnias Indígenas Brasileiras 2010? A coordenação de pesquisa do Departamento de Assuntos Indígenas da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) deu seguimento ao precioso trabalho já realizado por diversas pessoas, como Carl Harrison, Rinaldo de Mattos, Isaac Souza, Ana Bacon, Osvaldo Álvares, Ted Limpic, Enoque Faria e, nos últimos anos, Paulo Bottrel. Nessa atualização do banco de dados, contamos com
a participação de vários parceiros, como o CONPLEI, a Sociedade Internacional de Linguística (SIL), as agências missionárias ligadas à AMTB, SEPAL e Instituto Antropos, além de diversos pesquisadores de campo e colaboradores de análise. Na revisão de 2010 foram feitas 27 pesquisas de campo e 76 entrevistas com líderes indígenas, e consultados os bancos de dados do IBGE, FUNASA e FUNAI, entre outros, com um total de 4.200 dados avaliados. O resultado é o Relatório Etnias Indígenas 2010 (disponível no site www.indigena.org.br). Seu objetivo é observar as tendências demográfica, sociocultural, linguística e religiosa dos povos indígenas e nortear as iniciativas, sobretudo evangélicas, de forma mais focada nas áreas de real carência.
A migração para centros urbanos é uma realidade no meio indígena? Reconhecemos a população indígena brasileira como sendo formada por 616.000 pessoas em 2010. Dentre elas, 52% habitam em aldeamentos e 48%, em regiões urbanizadas ou em urbanização, sendo que aproximadamente 60% da população indígena brasileira habita a Amazônia Legal. A partir das leituras de movimentos demográficos, porém,
em cinco anos haverá igualdade entre aqueles que habitam as aldeias e os que habitam as pequenas e grandes cidades. A partir de 2015, a quantidade de indígenas habitando áreas urbanas será maior, e em aumento gradativo. Os principais fatores para a urbanização são quatro: busca por educação formal em português, proximidade a uma melhor assistência de saúde, acesso a produtos assimilados (roupas, alimentos, material de caça e pesca, entretenimento e álcool), e busca por melhor subsistência.
Qual é a representatividade da igreja evangélica indígena? A igreja evangélica indígena é maior do que imaginamos e está em franco crescimento. Isto se dá a partir das relações intertribais locais, atuação missionária com ênfase na evangelização, discipulado e treinamento indígena, acesso à Bíblia e três fortes movimentos indígenas nacionais, que são o CONPLEI, a AMEI e a AITE. A igreja indígena está presente em 150 etnias, possuindo igreja local com liderança própria em 51 e sem liderança própria em 99, o que ainda é um grande desafio. Além disso, há 54 etnias sem programa algum de ensino bíblico; tal fato demonstra que o crescimento não é proporcional ao desenvolvimento do ensino e treinamento. Isso pode gerar graves problemas, como sincretismo e nominalismo. Há 121 etnias pouco evangelizadas ou não evangelizadas.
Como é a presença missionária evangélica entre indígenas e sua relação com ações sociais? Há missionários evangélicos
em 182 etnias indígenas. Tal presença representa mais de trinta agências missionárias e quase cem denominações diferentes. Como a evangelização é parte da natureza da Igreja, as ações evangelizadoras estão presentes em várias frentes. Porém, é preciso destacar também que a presença missionária evangélica é responsável por um número expressivo de ações e iniciativas sociais. Em 165 dessas etnias há programas e projetos sociais coordenados por missionários evangélicos, com ênfase nas áreas de educação (análise linguística, registro, letramento, publicações locais e tradução), saúde, subsistência e na área sociocultural (valorização cultural, promoção da cidadania, mercado justo e inclusão social).
evangelização é dialógica e expositiva. A catequese se comunica a partir dos códigos do transmissor (o que fala), sua língua e seus costumes, importando e enraizando seus valores; a evangelização se dá com a utilização dos códigos do receptor (o que ouve), sua língua, cultura e ambiente, respeitando os valores locais e focando na comunicação da mensagem como inteligível e aplicável ao seu universo. A AMTB preparou um manifesto sobre o assunto e chegou a algumas afirmações importantes. A primeira é que nenhum elemento deve ser imposto a uma sociedade, seja indígena ou nãoindígena. A segunda é que a cultura humana não é o destino do homem e sim seu meio de existência. Ela é dinâmica, provocando e sofrendo processos de mudança, seja por motivações internas ou a partir de trocas interculturais. Portanto, cabe ao próprio grupo refletir sobre sua organização social, tabus e crenças, e promover (ou não) ajustes sociais que julgue de benefício. Vemos isso em relação ao infanticídio e valiosas iniciativas da organização ATINI. Esse manifesto expressa também que a motivação missionária da igreja precisa ser respeitada, pois não se deve confundir motivação cristã com imposição do cristianismo.
A evangelização difere da catequese. O conteúdo desta é a Igreja, com seus símbolos, estrutura e práticas; o daquela é o evangelho, os valores cristãos e a pessoa de Cristo
Qual a diferença entre evangelização e catequese? A evangelização difere-se da catequese principalmente em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação. O conteúdo da catequese é a igreja, com seus símbolos, estrutura e práticas, ou seja, a sua eclesiologia; o da evangelização é o evangelho, os valores cristãos e a pessoa de Jesus Cristo. A abordagem da catequese é impositiva e coercitiva; a da
Para quantas línguas indígenas a Bíblia já foi traduzida e o que falta ser feito? Hoje contamos com 58 línguas que possuem porções bíblicas, o Novo Testamento ou a Bíblia completa em Maio-Junho, 2010
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seu próprio idioma — material que serve a 66 etnias. Em três línguas há a Bíblia completa (que serve a sete etnias); em 32, o Novo Testamento completo (que serve a 36 etnias) e em 23, porções bíblicas, que servem ao mesmo número de etnias. Há dez línguas conhecidas com clara necessidade de tradução da Bíblia, 28 com necessidade de um projeto especial de tradução com base na oralidade e 31 com situação ainda indefinida. Essas 31 línguas a avaliar são faladas por 59 etnias; portanto, o desafio linguístico quanto à tradução bíblica é enorme. Tanto as línguas com necessidade de projetos de tradução quanto aquelas com necessidade de um projeto especial de oralidade possuem pouca possibilidade de compreensão do evangelho em alguma outra língua, por outros meios de comunicação ou outros grupos próximos.
se a necessidade de, no mínimo, 357 A presença de linguistas, educadores e tradutores missionários, novos missionários para reforçar o trabalho existente e dar início a catalogando, analisando e novos. Levando em consideração produzindo material de letramento as ações nas línguas especializadas indígenas, além A primeira missão da e o trabalho da tradução da igreja não é proclamar administrativo, Bíblia, colabora para a valorização logístico e o evangelho, mas pastoral que tanto linguística, social perder os valores da precedem quanto e cultural da acompanham população indígena. carne e ser revestida tais iniciativas, É uma das ações de dos valores de Deus grande relevância são necessários quinhentos novos espiritual e social. missionários para É possível quantificar a este momento do trabalho indígena.
necessidade de novos missionários?
Mais de 40% das ações missionárias em andamento demandam com urgência mais pessoas para assegurar o seu prosseguimento e 95 etnias conhecidas permanecem sem presença missionária. Assim, estima-
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Quais os maiores desafios para a igreja indígena? As 99 etnias com igreja evangélica, mas sem liderança própria, representam a extensão do desafio de treinamento em nossos dias. Além disso, 67 delas têm pouco acesso a
cursos bíblicos e 54 não têm acesso algum. Há, portanto, necessidade de fortalecer os seminários e cursos já implementados para o treinamento indígena, investir em novas iniciativas, como a Capacitação Bíblica Missionária Indígena (CBMI), e encorajar os movimentos de treinamento de própria iniciativa indígena, como o CONPLEI.
À medida que as iniciativas missionárias crescem e se tornam mais complexas, qual o principal desafio quanto ao apoio especializado? O apoio técnico é muito necessário. Podemos observar instituições e iniciativas, como Asas do Socorro, e sua atuação no apoio logístico, transporte, comunicação e ações sociais. Tais iniciativas especializadas multiplicam as ações missionárias, melhoram a qualidade do serviço
e são parte fundamental do trabalho realizado. Podemos citar ainda áreas como linguística, antropologia, missiologia, pesquisa, desenvolvimento comunitário e consultoria jurídica. Sem um fortalecimento do apoio especializado, as ações missionárias entre os povos indígenas perderão força, qualidade e oportunidade.
Como a igreja brasileira pode se engajar de forma mais prática? Cada igreja deve se envolver com uma iniciativa nova e com outra em andamento, para, ao mesmo tempo, aplacar seu afã por novas iniciativas e dar a atenção necessária às atividades missionárias em andamento ou em fase de consolidação. Pode-se utilizar o material disponível (www.indigena.org.br) para informação, reflexão, mobilização e despertamento missionário da igreja em prol das questões indígenas.
A igreja precisa investir na capacitação e no envio dos que são vocacionados. É preciso orar pelos povos indígenas, suas lutas e suas dores. Amá-los e transmitir esse amor tanto na evangelização bíblica quanto nas ações sociais, tão necessárias. É preciso também se aproximar da igreja indígena para conhecê-la de perto, ver seu rosto e caminhar de mãos dadas. Uma forma de fazer isso é por meio do CONPLEI. Porém, sabemos que a primeira missão da igreja não é enviar missionários, proclamar o evangelho ou saciar os famintos. Sua primeira missão é morrer. Perder os valores da carne e ser revestida com os valores de Deus. É se “desglorificar” para glorificar a Deus. Somente morrendo para nós mesmos teremos olhos abertos o suficiente para enxergar com os olhos de Cristo e de fato fazer aquilo que há muito sabemos ser necessário.
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P ONTO
FINAL
Rubem Amorese
E que governe bem a própria casa
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uero propor que, nas eleições deste ano, você vote em um economista. Não estranhe, não é qualquer economista. Para merecer seu voto, ele precisará ser competente, no sentido proposto pelo apóstolo Paulo, ao falar em eleições para presbíteros e diáconos (1Tm 3.4, 12). Deixe-me explicar: a palavra economia é formada do grego oikos (casa) + nomos (ordem, governo). Economia, então, era a boa administração da casa. Assim, Paulo nos recomenda que examinemos a vida familiar daquele que aspira ao episcopado, “pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja de Deus?” (v. 5). Essa proposta pode suscitar um questionamento razoável, no sentido de que não devemos transpor nossos padrões ao mundo, nem lhe impingir nossa fé. Afinal, pretendemo-nos uma república laica. Concordo. Mas, não é isso que estou propondo. Estou apenas sugerindo aos meus irmãos cristãos um critério de escolha. Um critério bíblico, usado na igreja. Proponho um modo eclesiástico de olhar para um candidato secular. Você já reparou como, em muitos lugares do mundo, os políticos fazem questão de aparecer em público acompanhados do cônjuge e dos filhos? Claro que não estão pensando na Bíblia. Estão pensando em marketing político. E, mesmo que vivam às turras com o cônjuge ou que estejam se divorciando, em época de eleição isso precisa ser escondido, a qualquer preço. São proverbiais os casos de políticos que pagam uma fortuna para ter o cônjuge, sorridente, no seu palanque. Ora, se esse fenômeno, mesmo visto como hipocrisia burguesa, ainda vigora em muitas sociedades modernas, até nas mais secularizadas, por que não usar tal critério, agora, em tempos de luscofusco moral e político?
Alguém dirá que uma família de bandidos pode ser muito bem administrada pelo facínora maior. É verdade. Há famílias dedicadas ao crime com invejável “economia”. Porém, não somos eleitores tão ingênuos e alienados assim. Se procurarmos saber da vida privada daquele candidato que mora em nossa cidade, cujo filho vai à mesma escola que o nosso e cuja esposa compra no mesmo supermercado, então muita coisa poderá ser levantada sobre a competência “econômica” daquele candidato. Talvez essa seja uma das vantagens do voto distrital — os candidatos estão mais perto dos eleitores. Concentre-se nas relações familiares. Descubra como ele ou ela vive em família. Se possível, monte uma rede de informações, com seus irmãos e amigos. Dê preferência àquele candidato que tem a casa em ordem, independente de ele ser um iniciante, com pouco “ibope”. Eu sei, é muito pouco. E as propostas dele? E o seu passado político? E as alianças que já fez ou que terá de fazer? Claro, tudo isso é importante. Mas, se tudo isso estiver muito confuso para você, e todos, na televisão, parecerem cópias uns dos outros, então aplique ao caso o conselho de Paulo. E, se você descobrir que aquela pessoa super cotada pela mídia é um desastre em “oikonomia”, não tenha dúvida, escolha outra. Pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da coisa pública?
Dê preferência ao candidato que tem a casa em ordem, independente de ele ser um iniciante
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Rubem Amorese é consultor legislativo no Senado Federal e presbítero na Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília. É autor de, entre outros, Louvor, Adoração e Liturgia e Fábrica de Missionários — nem leigos, nem santos. ruben@amorese.com.br
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