ISSN-OI03- 6963 A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-O 103- 6963) é uma publicação anual da Associação Brasileim de Litemtura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultuml que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Litemtum Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.
DIRETORIA DA ABRALIC - 1990/1992 Presidente: Silviano Santiago(UFF); vice-presidente: Laura Cavalcante Padilha(UFF); secretária: Marília Rothier Cardoso(UERJ); suplente: Renato Cordeiro Gomes(UERJ); tesoureiro: Edson Rosa da Silva(UFRJ); suplente: Jorge Fernandes da Silveira(UFRJ). CONSELHO DA ABRALIC - 1990/1992 Ângela Mota de Gutierrez(UFC), Davi Arrigucci Júnior(USP), Eneida Maria de Souza(UFMG), Luiz Costa Lima(PUC-RJ, UERJ), Marlyse Meyer(UNICAMP), Nádia Battella Gotlib(USP), Raúl Antelo(UFSC), Tania Franco Carvalhal(UFRGS), Wander Melo Miranda(UFMG), Donaldo Schüller(UFRGS, suplente), Maria Helena de Souza(UFG, suplente). CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Boris Schnaiderman, Dirce Côrtes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel.
Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores.
REDAÇÃO E ASSINATURAS Abralic - Instituto de Letras da UFF Campus do Gmgoatá Rua Visconde do Rio Bmnco, s/no - BL. C, sala 212 24000 - Niterói - Rio de Janeiro DISTRIBUIÇÃO EDITORA ROCCO LTDA. Rua João Romariz, I SI Te!.: (021) 290-6047 21031 - Rio de Janeiro - RJ
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1991. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais/orem os meios empregados. sem permissão por escrito.
Editoração: Eneida Maria de Souza Nádia Battella Gotlib Wander Melo Miranda Produção Gráfica: Andrea Costa Gomes Cláudio Rezende Composição: ArteLaser Editorial Ltda. Impressão: Segrac - Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária Tiragem: 1000 exemplares
Revista Brasileira de Literatura Comparada. v. 1 - 1991 Niterói, 1991 - v. 1. Literatura Comparada - Periódicos
CDD - 809
NOTA PRÉVIA
A criação da Revista Brasileira de Literatura Comparada, durante a gestão da Diretoria da Abralic (1988-1990), inaugura uma publicação voltada para os estudos de Literatura Comparada realizados no Brasil e no exterior. Com o objetivo de oferecer uma reflexão mais aprofundada de temas relevantes ligados à disciplina no interior da cultura brasileira, a revista contribuirá também para a divulgação da nossa atual produção científica. Este número, organizado por Eneida Maria de Souza, Nádia Battella Gotlib e Wander Melo Miranda, membros da Diretoria da Abralic (1988-1990), conta com a colaboração de pesquisadores nacionais e estrangeiros que aceitaram nosso convite para participar deste primeiro número da Revista Brasileira de Literatura Comparada. Os ensaios aqui reunidos tratam não só de questões que visam à releitura do conceito de identidade cultural na Modernidade· e na Pós-Modernidade, com especial ênfase nos movimentos modernistas no Brasil, como de reflexões sobre a prática interdiscursiva em textos literários e paraliterários. Integram ainda a revista estudos que evidenciam a escolha de temas próprios da contemporaneidade: a estratégia interdisciplinar da Literatura Comparada, a crítica literária e a interpretação, o ensaio-conto parapolicial, ou a transfiguração estética do tempo e da morte. Pautados pela construção de objetos teóricos e conceitos operacionais relevantes para a constituição de um pensamento crítico de Literatura Comparada no Brasil, os artigos que compõem este volume comprovam a oportuna contribuição desta revista para o aquecimento do debate cultural entre nós.
Eneida Maria de Souza Presidente da Abralic -1988-1990
SUMÁRIO Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar Tania Franco Carvalhal
Tesis sobre el cuento Ricardo Piglia
Da crítica, a crítica E.M. de Melo e Castro
Sujeito e identidade cultural Eneida Maria de Souza
Modernidade e tradição popular Silviano Santiago
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o duplo e a falta: construção do Outro e identidade nacional na Literatura Brasileira Ettore Finazzi-Agro
Antropofagia e controle do imaginário Luiz Costa Lima
Histórias do Brasil Raúl Antelo
Postmodernity and transnational capitalism in Latin America George Yúdice
Machado de Assis: a consciência do tempo Dirce Côrtes Riedel
As escrituras da morte Maria Luiza Ramos
Caminhos do imaginário no Brasil: Maria Padilha e toda a sua quadrilha Marlyse Meyer
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LITERATURA COMPARADA: A ESTRATÉGIA INTERDISCIPLINAR Tania Franco CaNalhal
Se à época de seu surgimento, no século XIX, a Literatura Comparada punha em relação duas literaturas diferentes ou perseguia a migração de um elemento literário de um campo literário a outro, atravessando as fronteiras nacionais, hoje é ~ível diier que sua atuação se ampliou largamente. Essa ampliação, que corresponde a mudança de paradigmas e que provocou diversas alterações metodológicas na disciplina, constitui a própria história do comparativismo literário. De sua fase inicial, em que era concebida como subsidiária da historiografia literária ("une branche de I'histoire littéraire" ,como diria Carré) ~ a exercer outras funções, mais adequadas a outros tempos. Surgida de uma ~dade de evitar o fechamento em si das nações recém constituídas e com uma intenção de cosmopolitismo literário, a Literatura Comparada deixa de exercer e&')él função "internacionalista" para converter-se em uma disciplina que põe em relação diferentes campos das Ciências Humanas. O contexto é sem dúvida diverso. Do mesmo modo que se poderia explicar a inexistência de comparativismo literário como atividade sistemática no século XVIII por não haver ainda se fortalecido integralmente o conceito de nação e o estabelecimento de seus limites definitivos, poder-se-ia compreender as alterações por que passa a Literatura Comparada em nosso século no exame da constituição das diferentes disciplinas que compreendem o domínio das
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I. VANTlEGHEM. P.l.a LiueralUre CO/llparee. Paris: A. Colin, 1931. p.
67-68.
Ciências Humanas e da necessidade que surge em relacioná-las para a compreensão dos fenômenos. Vista a questão de outro ângulo, o de sua definição, é ainda numa perspectiva histórica que se poderia dizer que se antes a especificidade da Literatura Comparada era assegurada por uma restrição de campos e modos de atuação, hoje, essa mesma especificidade é lograda pela atribuição à disciplina da possibilidade de atuar entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, próprios aos objetos que ela coloca em relação. Este novo modo de entendimento acentua, então, um traço de mobilidade na atuação comparativista enquanto preserva sua natureza "mediadora", intermediária, característica de um procedimento crítico que se move "entre" dois ou vários elementos, explorando nexos e relações. Fixa-se, em definitivo, seu caráter "interdisciplinar. " Nesse contexto cabe evocar que já no livro cleissico de P. Van Tieghem, La Littérature Comparée (1931), o futuro da disciplina se esboçava nessa direção. No capítulo intitulado "Différents domaines de la littérature comparée", delineava-se a ampliação dos domínios comparativistas para outras fronteiras. Dizia o autor: "Les études de littérature comparée peuvent porter sur des sujets tres différents" e mencionava, a seguir, "Le vaste domaine de la littérature comparée, domaine qui s' accroitra peut -être encore des provinces nou velles" . É certo que Van Tieghem não podia prever para onde se encaminhariam os estudos futuros, em terrenos ainda inexistentes, mas ele intuia sua expansão e a expressa de fonna quase metafórica ao falar de "províncias novas". Mais adiante ainda acrescentaria: "Toute étude de littérature comparée, avons-nous dit, a pour but de décrire UIl passage le fait que quelque chose de Iittéraire est transporté au-delà d'une frontiere linguistique." I De novo, ao empregar o tenno "passage", Van Tieghem evoca metaforicamente a situação intervalar da Literatura Comparada que se coloca "em meio a", registrando sua característica essencial. Sabemos todos que aquele autor logrou fixar em seu manual pioneiro o que era usual na prática corrente: o estudo da natureza dos empréstimos e sua história. Utilizava ele duas perspectivas: a do emissor, que proporcionava a aneilise do "sucesso" ou da influência e a do receptor, que permitia chegar às "fontes", recuperando, neste trajeto, o papel dos intennediários. Essa tenninologia e seu emprego fixo não estão reproduzidos aqui para que lhes seja feita a crítica. Muitos já o fizeram. René Wellek, em primeiro. Interessa apenas recuperei-los para esclarecimento do contexto no qual o tenno "passage" foi primeiramente empregado, tendo-se presente seu alcance inicial. Com efeito, essa "passagem" ou transladação devia ser exclusiva-
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mente literária e envol via diferentes sistemas lingüísticos como cabia numa época em que era preciso combater o isolacionismo nacionalista. O primeiro largo passo de ampliação desse processo de "mise en relation", característico da disciplina, foi no campo das relações inter-artísticas. É uma ampliação sintomática: nos anos 40, no pós Segunda Grande Guerra, emerge esse espírito aglutinador que o filósofo Alain defendera e CJue o simbolismo, com suas correspondências, tentara ilustrar. A obra de Thomas M. Greene, intitulada The Arts and the Ar! of Criticism (1940) a expressa integralmente. Em novo momento de fortalecimento do espírito nacional, o escopo internacionalista, que fundamentava a transposição de fronteiras, se dilata para o terreno das artes. Todavia, guarda ainda o comparati vismo a exigência de que um desses meios de expressão seja o literário mas, pouco a pouco, perde a perspectiva dominante desse sobre as outras formas de expressão artística. E sobretudo é a primeira manifestação clara de que a comparação não é um fim em si mesma mas apenas um instrumento de trabalho, um recurso para colocar em relação, uma fonna de ver mais objetivamente pelo contraste, pelo confronto de elementos não necessariamente similares e, por vezes mesmo, díspares. Além disso, fica igualmente claro que comparar não é justapor ou sobrepor mas é, sobretudo, investigar, indagar, fonnular questões que nos digam não somente sobre os elementos em jogo (o literário, o artístico) mas sobre o que os ampara (o cultural, por extensão, o social). É o início do que hoje entendemos como o vasto campo das relações inter-semióticas. Foi natural que essa expansão se desse também no terreno das artes que constituíam, por si, partes de uma totalidade: a estética. Não mais a visão romântica, como a de Schumann, que entendia a estética da arte sendo una, diversificada pela mudança de material: uma arte só, di vidindo-se em várias como a luz em cores. É buscada, de início, a Correspondência das artes, para empregarmos o titulo do também clássico livro de Etienne Souriau, de 1947. Contudo a diversidade lingüística já não serve de base à comparação~ fala-se agora de diversidade de "linguagens" ou de "fonnas de expressão" particulares e divergentes. É, aliás, a especificidade (ou a divergência) que começa a se impor acima das analogias ou similitudes. Por isso, E. Souriau não deixa de alertar para o que julga fundamental, ou seja, que apesar das semelhanças existentes entre o trabalho de um músico e o de um pintor há que lembrar sempre que "o músico pensou musicalmente, o pintor plasticamente". Além da diversidade de meios, a diferença de concepção. E completa o autor: ··E é nos próprios princípios da arte específica de cada um e na experiência
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2. SOURIAU, E. A cor-
respondência das artes: elementos de estética comparada. São Paulo: Cultrix, Edusp, 1983. p. 31.
3. BROWN, C.S. 'I"be relations between music and literature as a field of study. Year BooIc of Ge-
neral and Comparative Lileralure. Indiana: University Press, v. XXII, v. 2, p. 102. 1970.
4. REMAK, Hemy H.H. Comparative Literature, its defmition and function. In: STALLKNECHT e FRENZ (ed.). Comparative Literature: MethodandPers-
pective. Illinois: Southem IIIinois University Press, 1971. p. 1.
S. Cf. WEISSTEIN, U. apud CUPERS, 1.L. Euterpe et Harpocrate; ou le défi Iiuéraire de la musique. Bruxelles: Publications des Facultés Uni-
ativa e concreta que adquiriram, em seus respectivos trabalhos, dos imperativos e optativos destes, que estavam secretamente implicadas as razões dessa similitude. ,,2 É nesta linha de uma estética da interação das artes que se situam as obras de Calvin S. Brown, Music and Literature. A Comparison ofthe Arts (1948) e Th. Munro, The Arts and Their Interrelations (1949) e é nessa perspectiva que avança U. Weisstein em sua Introdução à ciência comparada da literatura (1968) ao dedicar o capítulo 8 à "Iluminação recíproca das artes". Não interessa aqui fazer o inventário dos textos que promoveram a reflexão nesse campo inter-artístico mas lembrar dois aspectos essenciais: que vigora ainda, nessa concepção comparativista, a intenção de abrangência, o intuito de dar conta do geral pelo particular e, também, que esta ampliação corresponde a uma alteração de definição e de paradigma. Leia-se, nesse sentido, como C.S. Browri ao definir a Literatura Comparada dirá que ela inclui "o estudo da literatura além de fronteiras lingüísticas e nacionais e qualquer estudo de literatura envolvendo, pelo menos, dois diferentes meios de expressão. ,,3 Não estamos longe da definição de· Henry H.H. Remak que irá, mais tarde, alargar, em definitivo, o alcance dos estudos literários comparados. Para Remak, "a Literatura Comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país em particular, e o estudo das relações entre literatura de um lado e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura, música) filosofia, história, as ciências sociais (política, economia, sociologia) as ciências, religiões, etc. de outro. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana". 4 Como se percebe, há uma ampliação gradativa que se anuncia primeiramente nas comparações inter-artísticas. Ora, essa ampliação de campos de investigação pressupõe uma duplicação (ou multiplicação) de competências. O comparativista terá de aprofundar-se em mais de uma área, ou seja, em todas aquelas que vai relacionar, dominando terminologias específicas e movimentando-se num e noutro terreno com igual eficácia. A exigência de dupla (ou múltipla) competência acarreta, sem dúvida, alguns inconvenientes. A dupla especialização ocasiona uma dispersão de esforços que seriam concentrados em apenas uma área mas tem também suas vantagens: de enriquecimento metodológico, dos contrastes e analogias que tornam possíveis essas relações, permitindo leituras muito mais ricas e esclarecedoras. s Entendida assim, a Literatura Comparada toma-se no mínimo duplamente comparativa, atuando simultaneamente em mais de uma área.
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Voltada não só para as investigações inter-literárias, a Literanua Comparada vai privilegiar confrontos que digam mais sobre os procedimentos textuais. É o caso, por exemplo, das comparações da literatura com os escritos históricos, que analisa a presença em ambos de esquemas narrativos semelhantes e semelhantes esquemas de compreensão. Tais estudos levam à identificação de certas qualidades e certas operações de linguagem que caracterizam a produção textual. Nessa direção não é difícil perceber como o comparati vismo literário pode ser uma forma de reflexão generalizadora e mesmo teorizadora sobre o fenômeno literário. Já nos distanciamos da definição que considerava a Literatura Comparada apenas um ramo da história literária, pois ela será entendida como uma "certa tendência ou ramo da investigação literária,,6 que encontrará sua especificidade justamente nos problemas que propõe e na sua mobilidade para resolvê-los. Vista assim, é uma prática intelectual que, sem deixar de ter no literário o seu objeto central, confronta-o com outras formas de expressão cultural. É, portanto, uma maneira específica de interrogar os textos literários, concebendo-os não como sistemas fechados em si mesmos mas na sua interação com outros textos, literários ou não.
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versitaires Saint-Louis, 1988. p. 83: uThe linking of classical philology wilh the study of Gennan literature has, for him who is oniy moderately equipped, lhe disadvantage of dissipating his strength and not letting him attain in both areas what he. could perhaps achieve in one, but it has advantages which compensate for that drawback."
6. GUILLÉN, C. Entre lo uno y do diverso: introducción a la literatura comparada. Barcelona: Critica, 1985. p. 14. Guillén defme-a como "una tendencia de los estudios literários, o sea, una forma de exploración intelectual, un quehacer orientado por inquietudes y interrogaciones específicas. "
A COMPARAÇÃO ~TER-ARTÍSTICA: LITERATURA E MUSICA Esta ampliação interdisciplinar dos domínios da Literatura Comparada a que me venho referindo não é nova no campo das relações inter-artísticas, sobretudo se pensarmos que quase dois séculos nos separam do clássico estudo de G.E. Lessing, Laocoon. Também não lhe tem faltado rigor nem tentativa de lhe estabelecer uma formalização de validade mais universal, como se pode ver pelos estudos de Roman Jakobson em Questions de poétique, particularmente no ensaio "Musicologie et Linguistique." 7 Todavia, é bem recente a sua aceitação como um aspecto reconhecido do estudo estético e como parte integrante da Literatura Comparada. As relações mútuas entre as artes têm. sofrido muitas restrições. Alguns lhe negam o valor, sobretudo quando se deparam com estudos ligeiros nos quais são abundantes as metáforas ou as tentati vas de simplesmente transpor de uma arte para outra uma nomenclatura. Chamam de "sinfonia" um poema ou um romance sem dar ao epíteto ajusta medida metafórica, assinalando que "nada em pintura ou em música pode jamais ser literalmente a mesma coisa que o correspondente literário" .8 Outros criticam, além da nebulosa contaminação terminológica, a falta, nesses estudos, daquele "esprit
7. JAKOBSON, R. QuesriollS de poérique. Paris: Seuil, 1977. Veja-se, ainda, no mesmo livro, Sur I 'art verbal des poêtespeintres - Blake, Rousseau et Klee.
8. Veja-se BROWN, Calvins. Preface à obra citada de CUPERS, Bruxelles, 1988.
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9. Veja-se BROWN. op. cit .• nota 8.
10. Apud CUPERS, oI'. ei\.. p. 20.
de géométrie" a que se referia Pascal, por oposição ao "esprit de finesse ... Na verdade, afora certos estudos sistemáticos, como são realizados principalmente entre os comparativistas americanos, a grande maioria dos trabalhos efetua aproximações episódicas e mesmo intuitivas. Cabe lembrar, nesse contexto, a pequena história contada por Calvin S. Brown em prefácio recente ao livro de Jean-Louis Cupers, intitulado Eltterpe et Harpocrate ou le défi littéraire de la mu.sique. Neste texto introdutório, Brown evoca que um dia Abraham Lincoln foi envolvido numa disputa na qual alguém insistia em confundir as questões em pauta alegando casos hipotéticos e adotando definições arbitrárias. Exasperado, Lincoln interrompe-o. "Digamos, disse ele, que chame pata a cauda de um gato: quantas patas ele terá? Cinco, respondeu o interlocutor com segurança a que Lincoln retrucou que não. Haverá sempre quatro. Não será porque você chama de pata a' ,,9 ' . cauda que eIa se tornara em uma apenas por ISSO. Essa passagem, quase anedótica e simples, contém um dado significativo para essas relações entre as artes: nada pode alterar a natureza de um dos elementos relacionados. Assim, o poema não se converte em sinfonia por sua simples designação como tal, continua a ser um poema, com uma estrutura que lhe é própria e jamais será exatamente a mesma da outra arte. Isso não invalida que similitudes sejam reconhecidas e comprovadas nem que se teçam analogias e paralelos. Contudo há que manter a diferença de base, a que aludia Souriau, mesmo que a literatura possa aspirar à plasticidade da escultura tanto quanto à sugestividade da müsica ou ao colorido da pintura. Sabemos que uma determinada forma de expressão pode se apropriar de características de outra embora não perca sua especificidade. Por vezes, isso acontece devido a confluências ou ao que poderíamos ainda denominar de tendências dominantes na sensibilidade ou no gosto de uma dada época. Tal como observa Jules Romain em Les hommes de bonne volonté: "à chaque époque la littérature et I'un des autres arts se rencontrent curieusement autour de préoccupations analogues, et tentent des efforts d'expression paralleles." 10 Como se percebe, também essa noção de confluência nos auxi lia a tratar a questão das influências com rigor. Paralelamente aos fatores dominantes em detenninado período, há dados da fonnação de cada autor e de interesses por ele manifestos que nos penllitem caminhar com segurança nesse terreno das inter-relações artísticas. Não apenas o caso dos talentos duplos ou mesmo mültiplos como Da Vinci mas a simples inclinação não desenvolvida de um autor que tenta recriar, nos domínios de sua arte, efeitos ou recursos técnicos
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de outra fonna de expressão com que esteja familiarizado. São essas "transposições" que nos possibilitam estudos de ressonâncias de uma arte sobre outra, a par daqueles que têm por objeto as obras onde duas artes se conjugam ou se encontram: a ópera, o lied, etc. Sem dúvida o estudo e a descrição dos elementos comuns às duas artes é indispensável nesse tipo de investigação porque ele envolve outro tipo de pesquisa, essencialmente estética, que procura articular, no esquema geral das artes, as posições respectiva.. das fonnas postas em confronto. São questões como essas que Jean-Lollis Cupers discute no livro publicado em 1988 com o sub-título de" Aspects méthodologiques de I'approche musico-littéraire". Além de nos dar ali a história implícita dos estudos entre música e literatura, o autor se detém em aspectos metodológicos que são indispemiáveis a trabalhos dessa natureza. Para ele, "le tout littéraire est, en réalité, beaucollp plus proche qu'on ne le dit souvent, tant en qualité qu'en strllcture, du fait musical. En d'autres tennes, ni la Iittérature ne peut se faire uniqllement musique, ni la musique uniquement littérature. Cela ne les empêche pas de pouvoir s'avancer três loin, la musique du côté littéraire, la littérature du côté musical". 11 E com Brown, ele aponta que a música tem sido uma importante fonte de inspiração e de técnicas para a literatura moderna, bastando citar autores como M. Proust, Conrad Aiken e Thomas Mann. A essas considerações acrescenta que os autores recorrem à música não para teproduzirem-na simple!'>1uente mas para, através dela, traduzirem o intradllzível. É nessa colaboração assim enunciada que se pode entender a presença do componente musical no literário não como algo acessório, constituinte de uma atmosfera mas como elemento integrante e fundamentaI da criação literária. Em todas as épocas, a literatura é farta em exemplos dessa natureza. Sobretudo entre os modernos, não é difícil encontrannos a transposição para o campo literário de elementos de outras artes: Muitos, como Baudelaire, dedicaram-se à crítica de outra fonua de expressão que não a literária. E sendo o hibridismo de gêneros uma dominante na literatura contemporânea, é freqüente que a própria dissolução das características fonnais de um texto por oposição ao modelo clássico seja marcada por essa interpenetração artística. Assim um vasto campo de investigação se desdobra diante do pesquisador que se ocupa em saber o que atrai um artista para outro modo de expressão além do seu a ponto de querer transpô~lo em sua própria realização. No fundo, é certo que o crítico deseja descobrir o que existe de misterioso nessas contaminações, pois, como observa Jean-Louis Cupers em suas conclusões, "qu'elle soit littéraire, musicale, pictu-
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11. CUPERS. op. cit.. p. 36.
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12. Idem,p. 147.
13. Veja-se, nesse sentido, O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, de Gilda de Mello e Souza (São Paulo: Duas Cidades, 1979).
rale, l'un des problêmes fondamentaux de toute étude esthétique, de toute critique d'art, est bien cette difficulté de dépasser le niveau de la pure description de structures, squelettes décharnés et vides, afin d'éclairer en quelque sorte la fascination de la chair même de l'art. Sans doute est-ce d'ailleurs parce qu'elles offrent une sorte de tramplin idéal qui permette d' attendre à I' essentiel, que les études interartielles en général fascinent le chercheur. Illui semble qu'il va enfin pouvoir saisir le secret de I' art, non ses structures. 11 va pouvoir enfin transcender ces différents schêmes qu'il veut comprendre en les comparant. " 12 Se de um lado, pondo em relação duas ou mais literaturas o investigador quer melhor compreender a literatura em si mesma, de outro, relacionar duas ou mais formas de expressão artísticas nos diria mais sobre os fenômenos estéticos em si. Por isso na obra de Machado de Assis (1839-1908), um dos grandes romancistas brasileiros, muitas vezes essa apropriação de elementos musicais tem a intenção de traduzir aspectos fundamentais de seu projeto estético: vale-se da música Ce de músicos) para falar sobre a criação literária e seus problemas. Há, então, em Machado uma correspondência estreita entre projeto musical e projeto literário: a música, para ele, simbolizaria o eterno e o universal. Mais do que a literatura, uma arte supostamente impura. É natural, portanto, que a música esteja intimamente vinculada à sua produção, embora não fosse ele um conhecedor profundo de leitura musical nem um executor de qualquer instrumento. Era, isso sim, um ouvinte privilegiado, com formação autodidata, graças a seus amigos compositores e artistas. No contexto literário brasileiro é Machado de Assis,juntamente com Mário de Andrade, exemplo significativo dessa relação interartística. A obra de ambos manifesta a implicação entre música e literatura, desde aspectos mais superficiais a repercussões estruturais profundas. Basta pensarmos no subtítulo de Macunaíma, essa "rapsódia" que é uma das chaves para a sua leitura. 13 Em Mário, professor de música e pianista, autor de uma História da música no Brasil, é muito mais fácil de entender essa articulação. Contudo, Machado de Assis, mesmo na sua condição de "ouvinte" também explora fartamente as relações musicais, baseando-se em Tristão e Isolda, de Wagner, por exemplo, para a escrita do Memorial de Aires, como já o apontou a crítica. E, por isso, nos 150 anos de seu nascimento cabe revisar essas transposições que traduzem a presença freqüente da música em seus textos literários. A obra de Machado de Assis ilustra, assim, essa atuação interdisciplinar que é um dos campos mais fecundos da investigação comparativista.
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MACHADO DE ASSIS: PROJETO MUSICAL E PROJETO LITERÁRIO É necessário salientar, desde logo, que a música não tem, na obra de Machado de Assis, uma função decorativa ou que ela esteja ali somente para criar atmosfera. É certo também que a grande maioria dos textos machadianos refere-se à música, pois há quase sempre personagens que cantam ou tocam um instrumento-piano ou violino-ou cantam uma ária de ópera ou simples melodias de rua. Valsas, polcas, pregões e quadrilhas povoam os textos de Machado a ponto de podermos dizer que o autor, ao escrever, usava um ouvido musical e mesmo, tal como o Conselheiro Aires, de seu último romance, tivesse uma certa frustração em não saber cantar ou executar. Mas afora essas hipóteses de natureza biográfica, que poderiam ser exploradas no próprio texto, interessa aqui sobretudo acentuar que há, em Machado, uma intenção clara de apropriar-se literariamente de formas ou elementos musicais. Apropriações que não foram fruto de estudo ou pesquisa mas que deconem do domínio da experiência. As associações musicais, em sua produção, são, portanto, motivadas pelo conjunto de experiências que constituiam seu universo cultural. Desde as "musas" cantoras a que Jean-Michel Massa refere em A juventude de Machado de Assis14 aos amigos músicos como Francisco Braga, Leopoldo Miguez e o pianista Artur Napoleão, até seu gosto pelo teatro lírico que se expressou na crítica musical com que se ocupou, é possível notar esse "gosto" de que foi enriquecida sua formação. Dirá sobre isso Raymond Sayers, em "A música na obra de Machado de Assis": "Não sabia tocar instrumento nenhum, não conhecia a teoria musical, mas tinha escutado muita música com o seu ouvido de homem inteligente, e conhecia compositores e artistas".15 Convivera, também, com Alberto Nepomuceno, regente e compositor conhecido, que provavelmente lhe aguçara o interesse para a música alemã, Wagner particularmente. Na obra de Machado, além disso, a presença constante da música reflete um dado sociológico, pois testemunha hábitos de época. No' Brasil de final de século XIX, "toca-se e canta-se em todos os saraus, tanto nos palacetes dos ricos como em casas mais humildes, e a música ou a vida musical são um assunto infalível de conversação.,,16 Mas o que desperta a curiosidade do pesquisador é a freqüência dessas notações musicais na obra. Dir-se-ia, usando uma expressão de E. Souriau, que a música é "a forma de fundo" da produção machadiana. Se isso ocorre dispersadamente nos textos em geral, em alguns centraliza a narrativa. É o caso de "Trio em lá menor", de
14. MASSA, Jean-Mi-
chel. Ajuventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilimção Brasileira,l97l.
15. SAYERS, R. Onze estudosde literaturabrasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileim, INL, 1983. p. 170. Texto fomecidoporZilá Bemd.
16. Idem, p. 164.
18 - Rev. Bras. de til. Canparada. ~ 1 - 03/91 Várias histórias, de "Cantiga de esponsais", de Histórias sem data, 17. Mac:hadode Assisfoi analisado por Antonio Candido, em O observador literário (l9S9), tendo em vista a presença da música na narrativa machadiana, sobretudo em Memorial de Aires, canfrontando.a com sua teSsonãncia em OIlteMll, de Raúl Pompéia. Veja, ainda, sobre relações interartísticas o ensaio de CANDIDO, Melodia impura: ensaio sobre o gosto e as experiências musicais de Stendhal, em 'lese e anlitese, (1964).
e de vários outros textos. Bastaria, para ilustrar alguns aspectos dessa inter-relação, a leitura atenta do conto" Um homem célebre" . 17 Ali, a figura de um músico centraliza o narrado, dividido entre vocação e ambição: um festejado autor de polcas que ambicionava compor obras mais perenes. Machado retoma, através da figura do músico Pestana, o que já desenvolvera em outros textos: a busca frustrada da glória permanente. Pestana quer compor obras elevadas mas, traído pela memória, só consegue reproduzir Mozart e Chopin. Sua criação mais legítima gera apenas polcas que rapidamente atingem popularidade mas que serão, também de efêmera lembrança. Diferentemente de outras passagens, a música é nesta narrativa tema central, sem repercussões na estrutura. Mas, sob a música, o autor explora o tema da própria criação artística como se percebe neste trecho: Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, defmida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.
o trecho reproduz, sem dúvida, o esforço criador independente de se tratar, nele, da criação musical. Os dados em jogo: inspiração, imaginação, memória e invenção, constituintes básicos do processo criador, podem referir-se indiferentemente à criação literária, como à musical ou outra. Entre inspiração e invenção estaria contida toda a seqüência de procedimentos criativos e a invenção, nesse contexto, supõe originalidade. Chamam a atenção as metáforas empregadas: "a aurora de idéia" para evocar o despertar, a imaginação "a dormir", como em estado de preguiça, a repetição da memória que conduz à imitação e à cópia. Colocados juntos esses termos, percebe-se que há uma tentati va de insinuar uma movimentação lenta dessa idéia que deveria funcionar como fator de descoberta. Só nessa parece estar o original, o único, o novo. Essas três qualidades, Pestana as encontraria na elaboração das polcas: leves, alegres e próprias. Tal como descreve Machado:
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Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera até o preto, que o esperava com a bengala e o guardachuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha SÓ, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. Confrontado com o texto anterior, este último sintetiza a facilidade da composição, até mesmo o caráter inebriante do ato criador. Se Machado, neste conto, ocupa-se com a criação, paralelamente nele desdobra o tema da insatisfação, da exigência do compositor com ele mesmo. Vê-se, então, que a experiência do artista lhe serve para atingir o humano, entrelaçando os dois temas. Daí a ironia do título, "Um homem célebre": uma celebridade efêmera e insatisfatória, celebridade que encobre o drama humano da não-realização. Trata-se da mesma insatisfação que persegue Mestre Romão, personagem de "Cantiga de esponsais", destinado a reger músicas alheias. Diz Machado sobre isso: "Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não a têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de hannonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel" (grifos meus). Retoma aqui não só o tema da impossibilidade de expressão, da incapacidade de traduzir o que desejaria manifestar mas surgem, explicitados, os conceitos de "novo" e de "original" que no texto de "Um homem célebre" estavam implícitos. A partir desse confronto pode-se dizer que, para Machado, a criação estava estreitamente vinculada à noção de originalidade, não só àquilo que seria particular mas também ainda não realizado. Em mestre Romão o drama da criação frustrada se resolve pelo da execução bem sucedida: a uns é dado criar; a outros, executar, sugere Machado. Todavia, no centro dessa trama está a ausência dos meios de expressão, a "língua" a que ele se refere como veículo,
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20 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 como recurso único e factível entre inclinação e realização. No entanto, não há, em Machado, o esclarecimento sobre o esforço de obtenção dessa "língua" mas seu entendimento como dom concedido, presente das musas ou do céu. Daí a imagem expressiva que encontra para aludir à impossibilidade da expressão: a inspiração que não logra concretizar-se em ato criador é "como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado... ". A figura desse pássaro encarcerado e a representação de sua luta dramática pela liberdade, igualmente presente em outros textos machadianos, são aqui símbolo da dramaticidade interna em que se encontra o personagem sem ultrapassar o "lá.. .lá.. .lá" onde interrompera sua composição. A frase musical, inacabada, alude, ao fmal, à impossibilidade de traduzir algo que se ansia dizer mas cuja busca é sem retorno. Observa com justeza Sayers que são raras as metáforas musicais na obra de Machado. Não recorre o autor a elementos de outra forma de expressão artística para inseri-los no texto literário a não ser sugestões estruturais ou componentes temáticos. Suas metáforas são predominantemente literárias e mesmo assim era com elas bastante parcimonioso. A crítica às metáforas de adorno é também uma constante em sua obra. Considera~as quase sempre "excessos de estilo" próprios da linguagem da oratória, corrente na época: citações, metáforas, lugares-comuns e adjetivação faziam as delícias dos ouvintes enquanto serviam para encobrir a mediocridade do pensamento. Deste modo, metáforas e comparações, em Machado, são extremamente eficazes e nunca funcionam como ornamento à expressão. Ao contrário, elas emergem como surge a música em seus textos: como recurso eficaz de expressar por alusão. É por isso, talvez, que ele privilegie os compositores para explorar o tema da criação. Possivelmente, para ele, a música seria a forma de expressão mais fácil quando haveria talento e a mais difícil diante da inexistência deste. Ao mesmo tempo, um campo tão vasto e nuançado a partir do qual é possível a realização e o êxito menor por contraste com as grandes realizações que asseguram a eternidade e o universal. Sem falar de literatura nem de literatos, mas de música e de compositores, Machado atinge à primeira através da última. Não é por acaso, então, que Machado de Assis recorre tantas vezes à figura do músico. Dito de outro modo, perguntar-se-ia em que medida a representação do músico poderia estar vinculada à do escritor? Em que medida as polcas não seriam os textos fáceis, de agrado popular? Em que medida não falando de si mesmo, nem de seus pares, Machado podia refletir sobre a criaçãO literária pelo viés da da criação musical?
Literatura Comparada: A Estratégia ... -
Essa relação entre projeto literário e Projeto musical fica ainda mais explicitada se pensannos que, no Memorial de Aires, o Conselheiro lamenta não comfOr ou tocar algum instrumento. Para ele, "a arte é também língua" 1 ,uma maneira de expressar-se, a única possível. É também a arte que "naturaliza a todos na mesma pátria superior". As considerações do Conselheiro Aires, registro de memória, nos autorizam a pensar num conceito de instrumental e numa noção de universalidade que estariam na base do pensamento machadiano, justificando a identificação entre música e literatura que perpassa sua obra. Se as hipóteses se confmnam, o projeto estético de Machado de Assis teria seu equivalente no projeto musical onde ele esboça critérios como "puro" (no sentido de clássico) e eterno. Ao longo de seus textos fica claro que, para ele, é a música a fonna de expressão mais completa e uni versal. Tal vez a única que possa manifestar tantas nuanças de emoções como as por que passa o Conselheiro Aires que recupera, pela memória, o que já foi e se vê nos outros, na mocidade de Fidélia e Tristão que lhe dão consciência de sua velhice e lhe fazem sentir "saudade de si mesmo." São associações entre a música vigorosa de Wagner, a vivacidade de Mozart, a nostalgia dos compositores românticos alemães e os momentos instáveis do sábio Conselheiro que dizem mais sobre ele mesmo do que as palavras que registra em seu "memorial." Por outro lado, no momento da leitura dos textos machadianos, essas associações se reproduzem de imediato na sensibilidade do leitor, também ele um ouvinte. Fonna-se uma rede de associações advinda do es~ímulo auditivo que o autor sugere a partir de seu contexto cultural. Essas se transferem no ato da leitura para o leitor, ouvinte cúmplice daquelas melodias. Este, por sua vez, as reinterpreta e as enriquece com suas próprias motivações e inferências culturais. Por isso nos é possível falar de um denominador comum nas linguagens estéticas e da propriedade que têm de funcionarem como sistemas de signos que põem em movimento toda uma série de associações fundadas em experiências individuais e coletivas. Estamos, sem dúvida, no terreno da recepção quando tudo ecoa nos ouvidos do leitor onde as associações, por fim, tomam sentido. Machado sabia disso. O Conselheiro Aires também.
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18. MACHAOO DE ASSISo Memorial de Aires. Rio de Janeiro: Jackson, 1957. p. 131.
TESIS SOBRE EL CUENTO Ricardo Piglla
I En uno de sus cuadernos de notas Chejov registró esta anécdota: "Un hombre, en Montecarlo, va al Casino, gana un milión, vuelve a sua casa, se suicida". La fonnacIásicadel cuenroestá condensada en el mícleo de ese relato futuro y no escrito. Contra 10 previsible y convencional (jugar-perder-suicidarse) la intriga se plantea como una paradoja. La anécdota tiende a desvincular la historia del juego y la historia del suicidio. Esa escisión es clave para defInir el carácter doble de la fonna del cuento. Primera tesis: Un cuento siempre cuenta dos historias.
II El cuento clásico (poe, Quiroga) narra en primer pláno la historia 1 (el relato del juego) y construye en secreto la historia 2 (el relato del suicidio). El arte del cuentista consiste en saber cifrar la historia 2 en los intersticios de la historia 1. Un relato visible esconde un relato secreto, narrado de un modo elíptico y fragmentario. El efecto de sorpresa se produce cuando el fInal de la historia secreta aparece en la superficie.
III Cada una de las dos historias se cuenta de modo distinto. Trabajar con dos historias quiere decir trabajar con dos sistemas
Tesis Sobre El Conto -
diferentes de causalidad. Los mismos acontecimientos entran simultáneamente en dos lógicas narrativas antagónicas. Los elementos esenciales de un cuento tienen doble función y son usados de manera diferente en cada una de las dos historias. Los puntos de cruce son el fundamento de la construcción.
IV En "La muerte y la brújula" ,al comienzo delrelato, un tendero se decide a publicar un libro. Ese libro está ahí porque es imprescindible en el armado de la historia secreta. ¿Cómo hacer para que un gangster como Red Scharlach esté al tanto de las complejas tradiciones judías y sea capaz de tenderle a LOnrot una trampa mística y filosófica? Borges lo consigue ese libro para que se instruya. Al mismo tiempo usa la historia 1 para disimular esa función: el libro parece estar ahí por contigüidad con el asesinato de Yarmolinsky y responde a una causalidad irónica. "Uno de eses tenderos que han descubierto que cualquier hombre se resigna a comprar cualquier libro publicó una edición popular de la Historia secreta de los Hasidim". Lo que es superfluo en una historia, es básico en la otra. El libro del tendero es un ejemplo (como el volumen de Las 100 1 noches en "El sur"~ como la cicatriz en "La fonoa de la espada") de la materia ambígua que hace funcionar la microscópica máquina narra- . tiva que es un cuento.
V El cuento es un relato que encierra un relato secreto. No se trata de un sentido oculto que dependa de la interpretación: el enigma no es otra cosa que una historia que se cuente de un modo enigmático. La estrategia del relato está puesta al servicio de esa narración cifrada. ¿Cómo contar una historia mientras se está contando otra? Esa pregunta sintetiza los problemas técnicos 4el cuento. Segunda tesis: la historia secreta es la clave de la fonna del cuento y sus variantes.
VI La versión moderna del cuento que viene de Chejov, Katherine Mansfleld, Sherwood Anderson, el Joyce de Dublineses, abandona el final sorpresivo y la estructura cerrada~ trabaja la tensión entre las dos historias sin resolverla nunca. La historia secreta se cuenta de un modo cada vez más elusivo. El cuento clásico a la Poe contaba una
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24 - Rev. Sras. de Ut. Comparada, n! 1 - 03/91 historia anunciando que había otra; el cuento moderno cuenta dos historias como si fueran una sola. La teoría del iceberg de Hemingway es la primera síntesis de ese proceso de transformación: lo más importante nunca ,se cuenta. La historia secreta se construye con lo no dicho, con el sobreentendido y la alusión.
VII "El gran río de los dos corazones", uno de los relatos fundamentales de Hemingway cifra hasta tal punto la historia 2 (los efectos de la guerra en Nick Adams) que el cuento parece la descriptión tri,i:cd de una excursión de pesca. Hemingway pone toda su pericia en la narración hermética de la historia secreta. Usa con tal maestria el arte de la elipsis que logra que se note la ausencia del otro relato. ¿Qué hubiera hecho Hemingway con la anécdota de Chejov? Narrar con detalles precisos la partida y el ambiente donde sedesarolla el juego y la técnica que usa el jugador para apostar y el tipo de bebida que toma. No decir nunca que ese hombre se va a suicidar, pero escribir el cuento como si el lector ya lo supiera.
VIII Kafka cuenta con claridad y sencillez la historia secreta, ynarra sigilosamente la historia visible hasta convertirla en algo enigmático y oscuro. Esa inversión funda lo "kafkiano." La historia del suicidio en la anécdota de Chejov sería narrada por Kafka en primer plano y con toda naturalidad. Lo terrible estaría centrado en la partida, narrada de un modo elíptico y amenazador. IX Para Borges la historia 1 es un género y la historia 2 es siempre la misma. Para atenuar o disimular la esencial monotonía de esa historia secreta, Borges recurre a las variantes narrativas que le ofrecen los géneros. Todos los cuentos de Borges están construidos con ese procedimiento. La historia visible, el juego en la anécdota de Chejov, sería contada por Borges según los estereotipos (levemente parodiados) de una tradición o de un género. Una partida en un almacén, en la llanura entrerriana, contada por un viejo soldado de la caballería de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. El relato del suicidio sería una historia construida con la duplicidad y la condensación de la vida de un hombre en una escena o acto único que defme su destino.
Tesis Sobre El Conto -
x La variante fundamental que introdujo Borges en la historia del cuento consistió en hacer de la construcción cifrada de la historia 2 el tema del relato. Borges narra las maniobras de alguien que construye perversamente una trama secreta con los materiales de una historia visible. En "La' muerte y la brújula" la historia 2 es una construcción deliberada de Scharlach. Lo mismo sucede con Acevedo Bandeira en "El muerto"; con Nolan en "Tema del traidor y del héroe"; con Emma Zunz. Borges (como Poe, como Kafka) sabía transformar en anécdota los problemas de la forma de narrar.
XI El cuento se construye para hacer aparecer artificialmente algo que estaba oculto. Reproduce la busca siempre renovada de una experiencia única que nos permita ver, bajo la superficie opaca de la vida, una verdad secreta. "La visión instantánea que nos hace descu- . brir lo desconocido, no en una lejana terra incognita, sino en el corazón mismo de lo immediato" , decía Rimbaud. Esa iluminación profana se ha convertido en la forma del cuento.
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DA CRíTICA A CRíTICA 1
E. M. de Melo e Castro
Questionar a critica, nos seus fundamentos e nas suas práticas, tem sido, nos tempos recentes, a mais coerente maneira de fazer critica. Numerosos são os autores e as obras em que preocupações deste teor se refletem com maior ou menos nitidez e objetividade. Daí, a acusação freqüente por parte dos leitores que a crítica só serve para os críticos e que eles leitores ficam entregues a si próprios na tarefa árdua de "decifrar" as obras de poesia ou de ficção que a crítica e os críticos deveriam supostamente iluminar, esclarecer ou interpretar. Evidentemente que o problema ou os problemas não são assim tão simples sendo sobejamente conhecidos os estrondosos fracassos das críticas que pretendem explicar as obras aos leitores. Tal atitude é, a nossos olhos, totalmente ineficaz, primeiro porque nada explica verdadeiramente nada (ou nenhum texto pode explicar ou justificar outro texto) segundo, porque tal atitude é um atestado de menoridade que recai sobre quem lê. De fato, o que há, é pessoas que são capazes de ler e essas não necessitam de explicações porque encontram as suas próprias leituras, e pessoas que não são capazes de ler e, para essas, nunca haverá explicações que sejam suficientes. Efetivamente existem três poéticas concorrentes em qualquer texto; mas concorrentes não quer dizer convergentes. A poética do autor, a poética da escritura e a poética da leitura, se estão presentes em qualquer ato de leitura, estão-no duma forma diferente. A poética do autor é a que mais remota fica. A problemática que leva o autor a escrever o seu texto é fechada e só acessível ao leitor através de hipotéticas tentativas de penetração naquilo a que
Da Crítica, a Critica - 27
muitos chamaram "o mistério da criação". Essa poética é muitas vezes também pouco clara para o próprio produtor de textos, no momento mesmo da criação. A poética da escritura, essa, ainda que nem sempre transparente, é mais translúcida para o leitor, principalmente na escritura dita experimental ou seja naquela em que a questionação dos próprios processos e leis do escrever são o modo como a obra se organiza e materializa em códigos verbais. Mas toda a poesia e toda a ficção são susceptí veis de análise quanto à sua própria poética e aí se estabelece um possível elo entre quem escreve (quem usa um código) e quem lê (quem decifra esse código). Mas tal aproximação não é apenas racional ou metodológica, mas principalmente ela é intuitiva e emocional. A poética da escritura vai da emoção do autor à emoção do leitor através do desconhecimento recíproco, do distanciamento espacial e temporal e de conexões ignoradas e irreconhecíveis, além de totalmente imprevisíveis. Chegamos agora à poética da leitura, aquela em que cada leitor tem que responder por si próprio. É certo que pode haver e há teorias da recepção, mas não é de generalidades que se trata. A poética da leitura é o combate entre o leitor e o texto e, se o autor se debate com a página em branco no momento da escrita, o leitor, esse, no momento da leitura, debate-se com a página escrita, maculada e carregada de várias camadas de signos, à procura de significados. A possibilidade da crítica será assim necessariamente uma parte da poética da leitura. Poética essa que se transforma numa semiótica, precisamente porque o leitor, ao ler, penetra: num mar de signos que começam no objeto livro composto de páginas com uma configuração física, um toque, uma cor, uma mancha impressa com determinados caracteres (signos gráficos), numa determinada língua (código lingüístico), com um determinado estilo (código literário) circunstâncias sígnicas, essas, que provocam em quem lê o despertar de outros níveis sígnicos, conceptuais, emocionais, ideológicos ou lúdicos, quer de um modo narrativo ou não narrativo (presentativo), quer adjetivaI ou substantivamente, podendo denunciar toda uma diversa estratégia de enunciação que o autor dá como sinal de descodificação aos seus desconhecidos leitores. Deste modo, a noção peirciana de signo interpretante-como signo que o receptor forma na sua mente sob o estímulo dos signos primários ou representamen (a escritura) toma-se de capital importância para o entendimento do que seja uma poética da leitura. Interpretar poderá ser assim o colocar-se entre a escrita e a subjetividade do indivíduo que lê. Só que é ao próprio leitor que cabe a formação dos signos interpretantes e a tomada de conhecimento da sua própria
28 - Rev. Bras. Lit. Comparada, ri- 1 - 03/91 interpretação, atingindo assim aquilo a que Peirce chama o nível da terceiridade. Assim se pode propor uma passagem interdisciplinar entre a semiótica e a hermenêutica, na qual e pela qual se joga a possibilidade ou a impossibilidade da crítica. É, por isso, à luz da atual hermenêutica que devemos tentar entender a importância e função do signo interpretante de Peirce, tanto quanto ele faz parte dessa mesma hermenêutica. Paul Ricoeur na sua obra Teoria da interpretação chama a atenção para, pelo menos, três falácias correntes relativas à própria noção de interpretar. A primeira será a do historicismo, segundo a qual, interpretar é encontrar o contexto histórico-social de um signo, de uma palavra ou de um texto. No entanto, já Husserl nas Investigações lógicas, observava que não só os atos lógicos mas também os atos perceptivos, volitivos e emocionais constituem uma fenomenologia objetiva e todo o ato intencional se deve descrever pelo seu lado noético ou seja inovador e autônomo. A não historicidade dos métodos críticos de análise textual, retira daí a sua validade quanto à determinação da significação dum texto. Texto que não é primordialmente dirigido a nenhum leitor em especial, sendo sim, um objeto atemporal. Potencialmente um texto dirige-se a quem o puder ler. A objeti vidade do texto depende apenas da construção do próprio texto. Neste sentido, explicar um texto não tem sentido algum e compreendê-lo é conhecer as leis internas que o constituem e permitem que ele seja um texto. Outro equívoco é o da apropriação do texto, como retomo à exigência romântica de uma coincidência com o gênio do autor. Trata-se, efetivamente, dum vulgar preconceito hermenêutico que postula, primeiramente, a identificação do eu do autor com o texto e, em segundo lugar, exige a identificação do eu do leitor com o eu do autor do texto. Assim, a única interpretação válida é a que nos revela o que o autor pretendeu dizer. Na realidade, a intenção original do autor perdeu-se como evento psíquico no momento da escrita e a intenção do leitor, ao tentar ler e interpretar um texto, constitui outro, necessariamente diferente, evento psíquico que, de comum com o primeiro, nada tem. Entre eles está o texto que é mudo e indiferente a esses eventos psíquicos, já que só tem sentido verbal, constituindo uma entidade que em si própria é apenas material, sendo por isso passível de numerosas descodificações, da responsabilidade do leitor. A terceira falácia é a de que, assim sendo, toda a interpretação recai no campo da subjetividade do leitor, perdendo-se a relação com o autor e com a função do texto, como signo dum tempo e dum devir histórico-social.
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Encontramo-nos assim num círculo vicioso, em que a apropriação dum signo ou destrói esse mesmo signo, tornando-o noutra coisa, ou se torna manifestamente impossível. Frege e Husserl, perante este problema, notaram que um "significado" (dum signo, duma frase, dum texto) não é uma idéia que alguém tenha na sua mente, não é um conteúdo psíquico, mas um objeto ideal que pode ser identificado e reidentificado por diferentes indivíduos, em tempos diferentes, como sendo um só e o mesmo. Esta identidade não é, nem física, nem psíquica, mas está ligada à sua representação, ou seja, à sua materialidade que se constitui em signo ou conjunto de signos. Essa representação é a manifestação do caráter noético do próprio significado. Interpretar parece ser, assim, a construção duma nova representação que sirva a quem a produz. O signo interpretante de Peirce estará, deste modo, sujeito a todos estes condicionamentos e, quando afirmamos o valor de um signo, é a uma representação da representação que nos estamos a referir. Eis, assim, como semiótica e hermenêutica se interligam através da deslizante e ambígua noção de "representação". Por que, o que é "representar"? Para além da facilidade do caráter repetitivo do prefixo re, segundo o qual representar é presentar, ou apresentar, ou fazer presente uma segunda vez, as conotações de representação incluem fortes alusões ao teatro ou seja ao "fazer de conta", ao criar uma realidade que se sobrepõe a outra, ao estabelecer relações entre os fatos ou as pessoas, ou os seus signos, que só existem enquanto se realizam. Representar será, assim, criar uma realidade cuja existência é instantânea, mas que, enquanto existe, funciona como autêntica e totalizadora. Representar será, assim, criar um fato, como se ele fosse possí vel e real. Daí que, toda a interpretação, sendo representação, só se pode realizar COMO SE se pudesse realizar e só existe enquanto é criada (isto é, representada) pelo leitor ou pelo crítico. A hermenêutica torna-se, deste modo, o próprio terreno do instável e do ficcional imagético, uma vez que toda a representação é por sua vez geradora de imagens e todas as imagens são, em si próprias, desmaterializadas e fugidias. Poderá agora dizer-se que os resultados desta análise filosófica se repercutem na praxis da escrita da crítica, retirando-lhe todo o valor normativo, pois eles se conjugam subrepticiamente numa diluição epistemológica que afeta, desde as raízes, toda a atual produção literária, gerando uma síndrome de insegurança e de mal estar:
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Miguel Tamen, no notável ensaio "Hermenêutica e mal estar" publicado em 1987, estuda esta questão, em termos universais e com referências literárias de várias literaturas, inclusive da portuguesa, mostrando como questões deste teor fazem parte da estrutura da literatura moderna ocidental. A aproximação deste livro com o ensaio recentemente publicado "Presenças reais" de George Steiner, parece-me um exercício esclarecedor da profunda preocupação com essa síndrome do mal estar que toca a quem, neste fim de século, pratica a literatura e a crítica literária, acreditando que elas correspondem a um exercício necessário e, particularmente, que a crítica detém uma função ou complexo de funções, mas que, ao mesmo tempo, sente resvalarem e desagregarem-se os fundamentos dessas mesmas funções. Tais questões poderão ser sistematizadas, embora provisoriamente e em resumo, do seguinte modo: 1º - Dificuldade de definição do objeto da crítica. O que é literário e o que não o é? quais os limites? a tendência é para se assumir que os limites são fluidos e para apresentar a qualidade ou a literalidade como escapatória de avaliação crítica. 2º - Se criticar é interpretar, então o que é interpretar? a associação com o sentido musical de interpretar faz-nos recair numa outra falácia, pois acabaremos por tentar dizer o mesmo por outras palavras, o que em relação à obra literária, isto é, ao poema, é irrelevante, introduzindo fatores subjeti vos que só aumentam a imprecisão. 3º - Se interpretar é julgar, nos dois sentidos de julgar, isto é, o de "conjecturar ou pensar como" e o de "avaliar", como poderemos ter a certeza dum julgamento? Se meramente conjecturamos ou imaginamos o que uma obra é, acabamos por dela nos afastar. Se a julgamos, que medida ou que escala de valores inquestionáveis validarão o nosso juízo? A crítica atual assume estas incertezas como uma base epistemológica, isto é, exerce rigorosamente uma ação que sabe ser incerta, tal como interpreta o que sabe não ser interpretável. 4º - Se recorremos à noção de rigor como um objetivo a atingir pelo crítico, então, a crítica desse rigor vem-nos do lado das próprias ciências rigorosas, através do chamado "teorema de Godel" que nos diz que, dentro dum sistema coerente de proposições, existem algumas que só são demonstráveis através de proposições que não pertencem a esse mesmo sistema, o que equivale a dizer que o rigor não se basta a si próprio, mas precisa de apoios externos, mesmo nas ciências matemáticas. A procura de rigor na crítica literária pode ser detetada desde meados do século XIX, passando primeiro pela adoção de modelos da ciência histórica, depois da ciência biológica e, finalmente, das
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ciências matemáticas. Tal rigor encontra-se hoje altamente comprometido, pois como poderá o crítico apelar para o rigor da sua análise, se só fora do objeto analisado ele poderá fundamentar a sua análise? Análise que se refere ao poema; poema que é autotélico e original. Assim sendo, o poema nada tem que esteja fora de si próprio, nem existe além de si próprio, isto é, além da sua própria literalidade e dos materiais com que é construído. No entanto, o crítico, continua falando como se a sua intervenção tivesse fundamentos e prossegue criticando segundo valores que estão fora do próprio poema e, por isso, só indiretamente lhe dirão ou não dirão respeito. Uma situação semelhante se pássa com a noção de qualidade. Esta tem indiscutivelmente fatores subjetivos e manifesta-se num discurso altamente conotativo, onde as hipóteses dialogais são quase nulas. No entanto, dispomos, hoje, de uma noção universal de qualidade como "fitness to purpose" ou seja, qualidade como adequação ao objetivo ou função finalidade. No caso da qualidade literária, tal conceito desloca a questão para se saber qual é o objetivo, a finalidade e a função da obra literária, isto é, do poema. Assim, a própria noção de qualidade literária fica à mercê de conceitos e valores obviamente não literários. Ora, nós sabemos que o poema é por definição a condensação do especificamente literário, o que faz com que ele seja e contenha a sua própria finalidade. A poesia, se não tem função que não seja poética, contém em si a sua própria qualidade, o que sendo uma tautologia, propõe a questão crucial de: como julgar um poema de um ponto de.vista fora de si próprio? Daí que, quanto mais realizado ou mais especificamente poético for o poema, menos será possível julgá-lo em termos de qualidade, pois ele contém a sua própria finalidade, objetivo e função. É George Steiner quem nos adverte que o ato de leitura se baseia numa hipótese instável: "devemos ler como se ... como se o texto tivesse um sentido ... um sentido que não será o único se o texto for um texto sério, que nos obriga a responder à sua força de vida... mas não será um sentido de estrutura histórico-cultural, nem obtido por acumulação de consensos; sobretudo o sentido para o qual se tende não será um sentido que a exegese, o comentário, a tradução, a paráfrase, a descodificação psicanalítica ou sociológica, poderão alguma vez esgotar ou definir como total. É que só os maus poemas podem ser exaustivamente interpretados e compreendidos. Só nos textos triviais ou de circunstância é que o sentido total é igual à soma das suas partes" . Isto quer dizer, em última análise, que a crítica só se pode executar sobre a poesia que não é poesia e que a crítica, a realizar-se, deve fazer-se como se se pudesse realizar. Está assim aberto o caminho, que parece sempre ter existido em maior ou menor grau, para a
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32 - Rev. Bras. Lit. Comparada, ng 1 - 03/91 anarquia interpretativa e de julgamento literário, onde os valores subjetivos preponderam à solta e onde a opinião dos sábios vale tanto como a dos ignorantes, apenas se distinguindo uma da outra, pelo estilo da enunciação e pela bagagem ou parafernália referencial e erudita. Situação, esta, que não pode deixar de gerar uma sensação de estranho mal estar. Miguel Tamen, na já referida obra, observa: •à hipótese primeira (mas não a mais importante) deste trabalho deriva da questão da possibilidade de uma ciência feliz e da íntima suspeita de que do "procurar compreender" faz parte uma dimensão considerável de mal estar-talvez, quem sabe, por este ser na maior parte dos casos um procurar compreender tudo" . George Steiner, por seu lado, observa: "A relatividade, o arbitrário de todas as proposições estéticas, de todos os julgamentos de valor, são inerentes à consciência e à palavra humana. Qualquer pessoa pode dizer o que quiser sobre qualquer coisa" . Assim, afirmar que a poesia de Fernando Pessoa não tem interesse, ou que Camões poderia ter escrito o Ulisses, são afirmações verdadeiramente irrefutáveis no seu relativismo primário, como manifestações de uma posição subjetiva e incomunicável e, portanto, de um estado não cultural. Também, todas as teorias críticas assentam num ato consciente ou não, manifesto ou implícito, de uma adesão ou recusa subjetivas, . verdadeiramente indemonstráveis e, por isso, inquestionáveis. Intuições profundas, essas, a que só posteriormente se poderá chamar de crítica, quando passarem ao nível das formulações racionais ou pararacionais, explicitamente expressas, de um modo dialógico e dialogante. Por isso poderemos falar em ficção crítica, póis, de fato, a teorização literária releva de uma tentativa de inventar ou construir razões escriturais para as próprias intuições do teorizador e, entender ou compreender o que isso possa ser. Esta, é a questão que está no cerne mesmo daquilo a que se convencionou chamar a "crise da linguagem" protagonizada, duma forma aguda, -pela poesia, desde a segunda metade do século XIX até hoje e pelas vozes filosófico-reflexivas de Nietzsche, Freud, Heidegger, Walter Benjamin, Wittgenste in e também Fernando Pessoa. É que, se interpretar é julgar, o julgamento é o lugar do próprio efêmero, pois não saberemos, nem como realizar tal ação, nem poderemos julgar tudo e para sempre. Assim, desde as origens estóicas e talmúdicas, a hermenêutica tomou-se na ciência do instável, ou seja, a ciência que inclui a ausência das suas próprias bases científicas: instabilidade e ausência estas que se refletem na atual crítica literária. Por isso, só se pode ler, como se se soubesse ler; só se pode entender, se não desejarmos entender tudo; só se pode julgar, como
Da Crítica, a 0iIica -
se não fizessemos umjuizo. Colocados que estamos em tal situação, que sentido poderá fazer, hoje, a atividade crítica, se não o sentido da própria ausência de sentido, que caracteriza a epistemologia deslizante deste fim de século? Mas tal situação, para a qual a própria palavra crise já não parece ser suficiente, não será, por outro lado, um indício ou sintoma duma já imparável mudança de paradigma nas funções da relação dos homens consigo próprios e por isso da linguagem, com a própria linguagem?
Referências táficas:
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bibliog-
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nal. - Casa da Moeda, 1987.
SUJEITO E IDENTIDADE CULTURAL Eneida Maria de Souza
Quando,
nos últimos anos, publica-se na França grande quantidade de textos sobre a questão da alteridade nas Ciências Hmnanas (e cito, particulannente, Nous et les autres, de T. Todorov, e Étrangers à nous-mimes, de J. Kristeva) 1, percebe-se que algo de novo anda acontecendo para além das fronteiras nacionais. A comemoração do bicentenário da Revolução Francesa e a proximidade da efetiva unificação européia poderiam explicar o ressurgimento de tais preocupações, sem mencionar a própria situação da Europa (e da França, principalmente), onde ápluralidaderacial (e étnica) prolifera e atrapalha a "perfeita ordem" das cidades. Espaços, portanto, em qUe o espírito colonizador ainda não desapareceu de todo, repetindo-se, de forma diferente, na ámeaça existente pela invasão dos "bárbaros". Os dois autores acima citados, estrangeiros em Paris, têm razão e conhecimento para discorrer sobre a questão da alteridade' ao tomarem como base a reflexão francesa sobre o assunto. Repensar a alteridade conduz, necessariamente, ao exame do problema da identidade, assim como traz implícita uma série de associações binárias, ligadas às categorias de razão e instinto, nação e indivíduo, universal e particular, e assim por diante. Seguindo esse raciocínio, entende-seque a noção de identidade cultural estaria em concordância com as transformações sócio-políticas, construindo-se ora como efeito, ora como participação simultânea dessas mudanças. As manifestações artísticas, por sua vez, entendidas ou como reflexo do fato histórico-equívoco difícil de ser sanado-ou como parte
1. TOOOROV, Tzvetan. Nous et les autres: la réflexion française sur la diversité humaine. Paris: Seuil, 1989. KRm'EVA, lJIia. Étrangers à rious-mêmes. Paris: Fayard,1988.
Sujeito e Identidade Cultural- 35
2 FERRY, Luc e RENAUT, ALain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. S. PauLo: Ensaio, 1968.
integrante do acontecimento, sempre se apresentaram em posição crítica diante das contradições de seu tempo. Para o tema de discussão deste ensaio-revolução e identidade nacional-proponho-me a examinar alguns tópicos ligados à Teoria Literária e à Literatura Comparada, centralizando-me na leitura da noção de sujeito, seu lugar no discurso da crítica contemporânea, marcado por conotações históricas e contextuais. Essa postura, devedora da revolução do pensamento crítico dos anos 60 nas Ciências Humanas, possibilita a abertura para se pensar a identidade cultural, tal como ela é interpretada por pesquisadores nacionais e estrangeiros. A Literatura Comparada, dentre os vários objetivos a que se propõe, incide na relação entre culturas, reacendendo a polêmica da dependência cultural como forma de se repensar a própria identidade, encarada numa perspectiva que envolve a literatura e outros discursos a ela relacionados. Ao sujeito que se expõe como ator na cena enunciativa se justapõe o conceito de identidade cultural construído simultaneamente à encenação conjunta da realidade histórico-social e literária. O reconhecimento de que a revolução cultural, processada pelos acontecimentos de maio na França-com sua repercussão em outros países, principalmente no Brasil~, contou com a participação, mesmo que indireta, dos filósofos, se explica pela reunião da crítica ao humanismo com o horizonte histórico, como aftrmava J. Derrida, em conferência sobre os "fins do homem" . Na esteira de Freud, Marx e Heidegger, Deleuze, Bourdieu, Foucault e Althusser-para citar alguns dos mais importantes autores da desconstrução do sujeito filosóftco-contribuíram para a instauração de vários postulados, segundo teóricos do pensamento de maio de 68: a) o tema do ftm da filosofia; b) o paradigma da genealogia; c) a dissolução da idéia de verdade; d) a historicização das categorias e a relativização da referência ao universal? Reproduzindo as idéias defendidas por L. Ferry e A. Renaut, no livro Pensamento 68, e reconhecendo aí a presença de um pensamento conservador diante do sujeito, entende-se <tue a crítica ao discurso filosóftco realiza-se no interior da própria filosofia. Tal fato irá concorrer para a desconstrução do cogito racional, da "morte do sujeito" e do apagamento da origem, algumas das mais contundentes dissoluções do pensamento moderno. Embora pregando, como Foucault, a prática da análise genealógica nas Ciências Humanas, invertia-se o objeto de estudo ao se desprezar a indagação sobre o conteúdo
do discwfso, enfocandomals as suas" condições exteri.Óles deptooução". O desaparecimento do sujeito da "ciência" era, por sua vez, . tributário da retomada da posição nietzschiana sobre o conhecimento, quando se postula a inexistência de fatos e a presença, apenas, de
36 - Rev. BImI.lit. Comparada, ~ 1 - 03/91 interpretações. Em acirrada crítica aos discursos universalistas, especificamente centrados na razão ordenadora, procurava-se, como Foucault, contextualizar historicamente cada particularidade discursiva, tendo como princípio o recorte descontínuo, em oposição à causalidade positivista das práticas anteriores. A causalidade estrutural, substituindo a causalidade factual, inaugura, defmiti vamente, o novo campo epistemológico fundado em categorias-mestras da Modernidade: o descontínuo, a diferença e a ruptura. Some-se a esse panorama desconstrutor a lição da antropologia lévi-straussiana, no combate ao etnocentrismo, ao se descobrir o ""Outro" , selvagem e primitivo, como possuidor do mesmo esquema mental do civilizado. Mdda-se o objeto de pesquisa, uma vez que a alteridade passa constituir elemento instaurador de diferenças no próprio método de análise. Os discursos das Ciências Humanas recebem novo tratamento, e a crítica literária notadamente a dos países periféricos, encontra eco para suas inquietações. A gradativa não hierarquização dos discursos propiciava, felizmente, o permanente mal-estar trazido pelas incertezas da interpretação. Toma-se obsoleta a busca do sentido pleno, como obsoleta é toda tentativa de captação da totalidade do objeto. Interpretado enquanto categoria capaz de instaurar o sentido, o paradoxo rompia com o caráter unívoco do objeto, na medida em que a pluralidade interpretativa diluía a idéia de sentido como verdade absoluta. O texto se dá a ler pelas brechas e fendas, fissuras e silêncios que a psicanálise lacaniana soube muito bem captar, e que J. Derrida transpõe para a sua definição de escritura: ausência e presença contínuas do "logos" , mutilação do fantasma paterno e território de interditos. O sujeito, assim mal instalado, despe-se das roupas metafísicas do sujeito cartesiano (e filosófico) e se dissolve na superfície chapada da linguagem, na qual toda e qualquer noção de fundamento e princípio toma-se vazia. Efeito de discurso e da "máquina desejante" do sistema (nas palavras de Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo), esse sujeito se manifesta como diferença e alteridade, e se posiciona como ator, na cena enunciativa do discurso social e político. . Se a pSicanálise, na produção de conceitos e teorias, recuperou a metáfora teatral, notadamente no que se refere ao estatuto do sujeito como ator no discurso, a Sociologia política e a História irão também se utilizar dessa metáfora para a interpretação dos fatos. A conhecida reflexão de Valéry sobre a literatura, vista como a figuração do teatro mental, em que se processa a encenação de subjetividades - teorização retomada por Luiz Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional (1986)-, tem como objetivo distinguir o sujeito empírico do ficcional, pela maior ou menor intensidade de representação e distanciamento no discurso. Esse sujeito-ator relaciona-se ao sujeito que se
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eXibe em público, exercendo um papel e estabelecendo-se a ponte entre representação teatral e social. Nas palavras de Hannah Arendt, presentes no seu livro Da 3.ARENDT.Hannah. revolução 3, era comum o emprego da metáfora orgânica nas descriDa~. n.d.F.D. ções e interpretações das revoluções: Marx, por exemplo, fazia refeVIeÜa. São PIuIo: ÁIiCII/UNB. 1988. P. 84. rência "às dores do parto da revolução"; contudo, entre aqueles que efetivamente atuaram, a metáfora era retirada da linguagem do teatro. Cria-se a metáfora política, a persona, própria do vocabulário teatral, correspondente à máscara dos antigos atores e significando, ao mesmo tempo, esconder ou substituir a própria face e expressão do ator, de tal forma que fosse possível ouvir sua voz. Explica-se, dessa maneira, a diferença entre ~ comum e cidadão; esSe último, ao usar a máscara, desempenhava um papel na sociedade. Como exemplo d~a prática, Hannah Arendt associa na Revolução Francesa, o retirar "a máscara da hipocrisia" à outra figura, a do hipócrita, distinto da persona, por representar o próprio ator. Este, não mostrando nada sob a máscara, pelo simples fato de não se utilizar dela, finge fi papel que interpreta e, ao entrar no jogo cênico da sociedade, o faz sem qualquer idéia de representação teatral. A máscara é empregada com a intenção de fraude e não como .. tábua de 4. Idem, P. IS. salvação para a verdade". 4 A título de exemplo, cite-se o filme ligações perigosas. baseado na obra homônima de Laclos. Guardando as devidas diferenças entre o artifício e o embuste praticados pelo jogo social e a arte, reino do artifício, verifica-se, contudo, o elo criado entre o verossímil no palco e o verossímil na rua, pela indistinção entre o papel dos atores sociais e artísticos. Ao se encenar certo moralismo próprio do século XVllI, a hipocrisia tira a máscara e o espectador não cogita sobre critérios possíveis de moralidade ou imoralidade encenados. O artifício supera tais categorias, entendendo ser a arte representação astuta e amoral do jogo cênico da sociedade. Tr3nsportando a metáfora teatral para o final do século XIX e início da Modernidade, a situação do sujeito é a de se expor no espetáculo da rua e do discurso. Época marcada pela eloqüência das mudanças e pelo fantasma do progresso, pelas grandes exposições e inaugurações, esse sujeito irá também reaparecer de forma exposta, objeto a ser contemplado, desprovido de profundidade intimista ou de verdade interior. Nas obras da Modernidade persiste, de igual forma, a configuração do sujeito como "hipérbole da vacuidade", perdido que está na arquitetura fugidia dos espaços da cidade e de sua escrita. O caráter fragmentário e efêmero dos "tempos modernos", o crescimento desordenado das cidades, onde se vive sob a ilusão do novo e da máquina, a velocidade superando as distâncias e o tempo se espacializando, permitem a inserção desse sujeito-persona na pai-
38 - Rev. Bras. Lit. Comparada,n2 1- 03/91 sagem como peça de uma memória desértica e labiríntica. Robô ou manequim, exposto aos olhares públicos, esse personagem incorpora-se ao teatro da cidade e se reflete nas maquinarias desejantes do discurso. A crítica literária, seguindo o passo das manifestações artísticas e das transformações processadas no interior das Ciências Humanas, realiza a passagem do sujeito "máquina mental" do estruturalismo para o "sujeito vigilante" e em espetáculo, da fase mais atual, segundo afirmações de Luiz Costa Lima. O veto ao sujeito respondia à necessidade de "suspensão do juízo" em favor da neutralidade interpretativa, isolando-se, para tal, as questões relativas à própria construção da análise. Ao colocar a produção artística em posição de maior importância do que a recepção recalcava-se a figura do sujeito-leitor como co-criador do saber enunciativo. s . Afirmar, contudo, que a história, a subjetividade e o indivíduo estiveram ausentes das pesquisas dessa época não corresponderia à realidade, uma vez que essas categorias foram vetadas e domesticadas pelos próprios sujeitos-analistas. O sujeito volta, mas de modo diferente, ainda distanciado e atuando maquinalmente no discurso, produzido e alimentado por vários sujeitos. A inter-subjetividade passa a ter coloração mais forte e as interpretações seguem ainda a abertura infinita dos vários discursos que se encontram. A concepção desse sujeito como ator irá propiciar a caracterização da identidade cultural e das revoluções que se processaram no país nos últimos anos. Freud nos alertara há muito tempo para a descoberta de estar o estrangeiro, "o outro" , dentro de nós. Toma-se difícil, portanto, pensar em identidade como categoria estanque, ao . . d'lVlVUO . . d'd f d I se recoohecer que o m esta. cm 1 o e ragmenta o pe a marca desse outro que o habita. Portanto, discutir ou falar sobre identidade " . " . 'bTdad Ja e por SI so uma OOpOSSl 1 1 e. Do ponto de vista da recepção brasileira de teorias, essa identidade vai sendo construída pela interlocução que se estabelece com a cultura européia, tão simulada quanto a nossa, em que a própria noção de identidade não se apresenta também na sua integridade. Quando Roberto Schwarz, ao discutir sobre identidade nacional, aponta como falso problema a defesa que alguns críticos brasileiros fazem da cópia em detrimento do modelo, prende-se ainda a um desejo de constituição dessa identidade, fundada em causas mais eficazese e, mais especificamente, a causa econômica: A filosofia francesa recente é outro fator no descrédito do nacionalismo cultural. A orientação antitotalizadora, a preferência por níveis de historicidade alheios ao âmbito nacional, a desmontagem de andaimes convencionais da vida
S.Emvezdeumsujeito, pura e transparente máquina mental, passei mais modestamente a conceber um sujeito vigilantequantoàsuaplÓpria subjetividade, vigilãncia suficiente apenas
para eliminar sua autoreferencialidade, seu magistral narcisismo: incapaz contudo de ultrapassar sua pessoalidade.
Nestesentido,aconstrução analítica é também construção do sujeito analista. Mas construções apartirdeum umbigo, que pennanece sempreomesmo. LIMA, Luiz Costa. Nota introdutória. In: O con-
trole do imaginário: razãoeimaginaçãonoOcidente. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 8.
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6. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtIação.
In: -. Que Iwras silo? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 35.
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literária (tais como as noções de autoria, obra, influência, originalidade etc) desmancham, ou, ao menos, desprestigiam a correspondência romântica entre o heroismo do indivíduo, a realização da grande obra e a redenção da coletividade, correspondência cujo valor de conhecimento e potencial de mistificação não são desprezíveis e que anima os esquemas do nacionalista. 6 Estaria a conquista de identidades culturais submetida a um projeto de captação totalizadora da realidade? O apagamento das categorias convencionais da vida literária não seria também um meio de abertura para a "impropriedade" do discurso e o diálogo intersubjeti vo e plural? As grandes narrativas deveriam, portanto, ser a marca de mudanças expressivas na literatura de um país? Essas são algumas questões que deixo em suspenso, na esperança de apontar para outras saídas. Como contrapartida a essa postura de Schwarz, cite-se especificamente a de Silviano Santiago, quando elabora a concepção do entre-lugar do discurso latino-americano, reabilitando, assim, a contradição e o paradoxo, categorias tão ausentes no pensamento critico nacional. A opção por esse entre-lugar nas culturas não se restringe à oposição localismo x cosmopolitismo, particular x universal, o que sempre resulta em prisões ligadas a um nacionalismo tupiniquim ou à sofisticada defesa de idéias estrangeiras. Em depoimento ao Folhetim, da Folha de São Paulo, em edição comemorativa dedicada a Borges, Si! viano Santiago confessa, sob a forma de depoimento pessoal, a invenção do termo entre-lugar, declarando sua dívida a Borges; pelo viés do escritor argentino, inventa a expressão que resulta de sua experiência literária francesa, latinoamericana e nacional. Não se trata, efetivamente, de uma expressão retórica, mas de uma posição que vise a repensar a cultura brasileira entre outras, retirando da ficção e da teorização de autores nacionais e estrangeiros, novos objetos teóricos. Produzem-se, dessa forma, conceitos operacionais que, longe de funcionarem como chave que abre todas as portas, apontam para a necessidade de serem repensadas as noções de cultura e identidade nacionais. Em outra ocasião, no livro Stella Manhattan (1985), o autor apropria-se da metáfora da dobradiça, de Lygia Clark, transformando-a também em objeto teórico. Inventa a personagem dobradiça: Eduardo/Stella, duplos, fantasias do sujeito que rompem com a idéia de identidade e se concentram no múltiplo e na diferença. Mas diferença de dobradiça, com o "pé lá, outro cá" , de dentro para fora e vice-versa. A personagem Marcelo, de Stella Manhattan, ao discutir com o Professor Aníbal sobre uma peça de Albers que se encontra em
40 - Rev. Dam. Lit. Ccxnparada. ~ 1 - 03/91 sua casa, afmna ter Lygia Clark ido além de Albers e Bellmer (La poupée), ao unir a experiência estética dos dois. Constrói "Os bichos" e com esta obra a teoria da dobradiça e da mobilidade, provocando no espectador a necessidade de tocar, recriar e recompor as peças. Interpretação de mão dupla, vários toques que suscitamo olhar ambivalente e furtivo de quem contempla a peça. Dissocia-se, por conseguinte, a idéia de personagem idêntica a si própria-Stella/Eduardo-com uma só face, pela sua natureza de interface e máscara. Um pé lá, outro cá. O olhar lá e outro cá se processam na trajetória crítico/artística de Silviano Santiago, nos títulos de seus artigos-" Apesar de dependente, universal", entre outros, emblematizando, assim, a revitalização do paradoxo e da contradição. Borges, Gide, Lygia Clark, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Derrida, são alguns dos modelos inventados por Silviano Santiago, para se esboçar um possível pensamento critico brasileiro sobre as questões da dependência e da identidade cultural. Interpretar, portanto, com cautela, a recepção de teorias é uma das posições a serem assumidas diante da necessidade de se produzir um pensamento próprio, em contraponto e diálogo com a cultura estrangeira. O reconhecimento da própria alteridade possibilita a reflexão sobre o estatuto do outro, conseguindo-se separar o joio do trigo, sem se posicionar como repetidor, mas enquanto interlocutor da cultura metropolitana. A prática dessa interlocução é uma das respostas para os estudos de Literatura Comparada, nos quais se examina o intercâmbio de idéias com base em diferenças contextuais, questionando-se sempre o grau de recepção de teorias (e de literaturas), o lugar do discurso autoral, estratégias enunciati vas e jogos de poder, ou as razões sócioculturais de aceitabilidade desta ou daquela corrente metodológica. Como reflexão final, ficam aqui as palavras de J. Krlsteva contidas no livro Étrangers à nous-mêmes. em que se constata a volta de um certo narcisismo consciente do sujeito diante da situação histórica, dos seus próprios fantasmas e de sua radical alteridade: Uma comunidade paradoxal está prestes a surgir, feita de estrangeiros que se aceitam na medida em que eles se reconhecem estranhos a si próprios. A sociedade multinacional será assim o resultado de um individualismo extremo, mas consciehte de seu mal-estar e de seus limites, conhecendo apenas irredutíveis auxiliares na sua ~ueza que tem como outro nome a nossa estranheza radical.
7. KRlSTBVA, Julia. Op. ciI.. P. 290.
MODERNIDADE E TRADIÇAO POPULAR Silvia no Santiago Homenagem a Henriqueta Usboa
C
aso nos restrinjamos ao campo de atividade que mais nos toca que é o da palavra escrita e mais precisamente o da produção literária no sentido de "belles lettres", chegaremos à conclusão de que os valores da tradição erudita ocidental raramente estiveram em alta nos dois últimos séculos. De modo geral, as reflexões teóricas sobre a Literatura, feitas pelos críticos e ensaístas e sobretudo pelos próprios criadores, através de prefácios e manifestos, traduzem de maneira acintosá 9 desejo de inaugurar tudo a partir de um marco zero, de uma tabula rasa. O zero e o porvenir são estabelecidos a partir da rejeição e da abolição sistemática dos valores da tradição erudita ocidental. É muito conheci~ a frase de Mallarmé em que nomeia o nome de sua musa: "La Destructionfutma Béatrice". Todos conhecem também os princípios básicos do "Manifesto Futurista.., as;inado por Marinetti, e os dos demais movimentos artísticos que dele se valeram. Citemos apenas uma ~gem às vezes pouco lembrada do citado manifesto: Admirar um velho quadro é verter nossa sensibilidade numa urna funerária em vez de lançá-la adiante pelos jatos violentos da criação e da ação [... ]. Na verdade á freqüência cotidiana aos museus, às bibliotecas e às academias (esses cemitérios de esforços perdidos, esses calvários de sonhos crucificados, esses registros de impulsos quebrados! ... ) é para os artistas o que é a tutela prolongada dos pais para os
42 - Rev. Bras. Lit. Comparada, ng 1 - 03/91 rapazes inteligentes, ébrios de seu talento e de sua vontade ambiciosa. As instituições que preservam a produção erudita e letrada (museus, bibliotecas, academias, etc.) funcionam como "tutela prolongada dos pais"para rapazes que não mais delas necessitam. "Sapere aude!" Tenha a coragem de se servir da sua própria razão. Eis também o conselho que oferece Kant ao seu leitor, numa resposta a uma enquete sobre "O que é o Iluminismo?". Curiosamente, neste mesmo texto, reencontramos o esquema de metáforas de Marinetti, inspirado pela relação tutelar entre pai e filho: "11 est si aisé d'être mineur! Sij'ai un livre, qui me tient lieu d'entendement, un directeur, qui me tient lieu de conscience, un médecin, qui décide pour moi de mon régime, etc., je n'ai vraiment pas besoin de me donner de peine moi-même." Redescoberto recentemente pela inteligência arqueológica de Foucault, o texto de Kant serviu-lhe para configurar o conceito de "moderno" no momento em que o seu sentido se faz diferente, em que a diferença de significado se instaura. Do século V da nossa era até o Iluminismo, o conceito de moderno, como nos diz Jurgen Habermas, apoiando-se em Jauss, surgia e ressurgia "nos períodos em que na Europa se formava a consciência de uma nova época através de renovada relação com os antigos-sempre que, ademais, a antigüidade era considerada modelo que havia de se restabelecer por alguma espécie de imitação". Já a partir do Iluminismo, o "moderno" vem acompanhado da audácia que rejeita para o cidadão "iluminado" a condição de menor intelectual, audácia que emancipa, proporciona a liberdade e dissolve como ácido o possível fascínio exercido pela tutela da tradição clássica. O traço distintivo das obras que passam por modernas passa a ser a busca do "novo". Constitui este as bases de um devir histórico que valoriza a produção do novo pelo novo. Para Foucault, esse é o motn,ento em que o "presente" se torna um acontecimento filosófico. A pergunta que Kant fez pela primeira vez e que Foucault refaz hoje na tentativa de compreensão da Modernidade é a seguinte: "O que é esse' agora' no interior do qual estamos uns e outros, e que define o momento em que eu escrevo?" Ou de maneira mais explícita: "O que no presente faz sentido atualmente para uma reflexão filosófica?" Ser capaz de ousar refletir sobre o próprio presente é ato de maioridade intelectual, de emancipação, é afirmação de liberdade. Por outro viés e de maneira simbólica, é isso também que encontramos na História do urbanismo e da arquitetura desde o século XIX. Demolir o velho para que fossem construídos o novo edifício, a nova avenida e a nova cidade. O artista-independente dos mate-
Modernidade e Tradição Popular -
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riais com que trabalhava-estava predisposto a receber de modo positivo e pouco crítico o progresso e a higiene, o "bota-abaixo" e o conseqüente afrancesamento de todo o Ocidente, num desejo de modernização violenta e apressada da cidade. Ainda que, para fazer prevalecerem os valores da modernização, precisassem e precisem de se valer de governos autoritários e mesmo ditatoriais. Em 1904 o nosso Olavo Bilac tem rompantes líricos diante do espetáculo da demolição dos velhos casarões no centro do Rio de Janeiro, vendo ali a "vitória da higiene, do bom gosto e da arte" . Eis um trecho da sua crônica: No aluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia um longo gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio. A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse protesto impotente. Com que alegria cantavam elas-as picaretas regeneradoras! E como as almas dos que ali estavam compreendiam bem o que elas diziam, no seu clamor incessante e rítmico, celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte! Nicolau Sevcenko, no livro Literatura como missão, em belo capítulo que tem por título "A inserção compulsória do Brasil na Belle Époque", vê em todo esse período histórico a "condenação do mestre-de-obras, elemento popular e responsável por praticamente toda a edificação urbana até aquele momento". Sai o mestre-deobras, entra o arquiteto afrancesado. Anos mais tarde, a partir da década de 30 deste século, sai o arquiteto afrancesado e entra o todo-poderoso ditador do espaço urbano-arquiteto modernista, fundador de cidades na tabula rasa seja do morro do Castelo, seja do planalto goiano. Voltemos a Sevcenko e ao início do século. Conclui ele: "Ao estilo do mestre-de-obras, elaborado e transmitido de geração a geração, desde os tempos coloniais, constituindo-se ao fim em uma arte autenticamente nacional, sobrepôs-se o Art Nouveau rebuscado dos fins de Belle Époque". Charles Baudelaire, poeta por excelência da modernidade critica ocidental e precursor no olhar artista sobre a cidade que se moderniza pela destruição impiedosa do passado, reagiu de maneira ambígua a esse desejo de tabula rasa que passou a ser constante na paisagem urbana do Ocidente. Na sua bela reflexão poética sobre o cisne e a cidade, primeiro exclama:
44 - Rev. Bras. Ut. Comparada, n2 1 - 03/91 Le vieux Paris n'est plus (Ia fonne d'une ville Change plus vite, hélas! que le coeur d'une mortel), Para depois lamentar: Paris change! mais rien dans ma mélancolie N'a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs, Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie, Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.
2. Se a tradição, na relação do erudito com o erudito na Modernidade literária ocidental, esteve em baixa, ela por sua vez vai ter enonne peso num campo paralelo da produção artistica-o da literatura oral, querendo abranger este tenno as manifestações culturais tanto dos que são quanto dos que não são desprovidos de alfabetização. (A dicotomia é, portanto, interna, e será trabalhada mais tarde). Transmitida de geração a geração pela palavra falada, a fabulação popular foi objeto da curiosidade, do interesse e da pesquisa por parte de muitos daqueles que no seu trabalho desprezavam a tradição erudita ocidental. Tudo se passava como se o Ocidente, negando-se a ver a si mesmo duas vezes no espelho da História, como se a atitude narcísica diante do Passado fosse a Morte, transformasse o seu remorso no resgate das manifestações populares tradicionais. Portanto, a literatura moderna-de maneira nem tanto paradoxal-tem-se valido da tabula rasa para safar-se da minoridade intelectual e, ao mesmo tempo, tem-se adentrado pelo remorso letrado como compensação para a destruição da tradição oral de um povo (de uma comunidade, de um grupo social, de um clã). A dupla atitude, no entrechoque, tem servido para constituir os grandes textos artísticos da Modernidade. Abstraindo o que pode haver de confronto entre escrito e oral, entre erudito e popular, renovação e tradição no Romantismo europeu e ainda na literatura do final do século XIX, e detendo-se-por comodidade expositiva-no romance nordestino dos anos 30, chegaremos à conclusão de que teria sido completamente diferente essa ficção se os romancistas não tivessem se detido na pesquisa-de maneira intuitiva, é claro-da tradicão oral daquela região brasileira. Todas as vezes que o texto literário modernista brasileiro dramatiza a história de uma comunidade (a casa-grande e a senzala, por exemplo), ou de um clã (os Andrades, por exemplo), ele teve necessariamente de embeber-se nas narrati vas orais tradicionais, nas fabulações por elas orquestradas.
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Tomando como base o primeiro romance de José Lins do Rego, Menino de engenho, e o correspondente texto memorialista, Meus verdes anos, veremos que ambos se encontram perpassados pelas mais diversas formas de narrativas orais, todas elas trazendo contribuições susbstanciais para a riqueza final do universo romanesco. Vemos portanto no romance e nas memórias a tematização de um saber que foi transmitido de geração a geração, e isso independente da condição social de cada subnarrador no mundo econômico do engenho. Em outras palavras, romance e memórias se valem da história do nanador propriamente dito e de histórias de senhores, de mestres de ofício e de escravos. Além de Carlos de Melo, são também narradores tanto o avô Zé Paulino' quanto a negra Totonha, tanto os carapinas quanto o jovem negro José Joaquim. Poderíamos estabelecer, em caráter precário, uma tipologia dessas narrativas orais no universo ficcional de Lins do Rego para que se veja como contribuem de maneira ampla e variada para a pluralidade de vozes no texto aparentemente apenas escrito na primeira pessoa do singular. Para essa tipologia, levaremos em consideração o tema abordado pelas narrativas orais ou o gênero no qual se inscrevem. Temos, primeiro, as histórias de clã. Curiosamente elas podem ser tanto narradas pelo avô Zé Paulino quanto pelas negras da senzala. Ao contrário do que poderia supor um leitor apressado, não existe no universo de Lins do Rego uma identidade social tácita entre o nanador e o personagem da história que ele nana, ou seja, uma preta velha pode contar (em terceira pessoa "objetiva") histórias de gente branca. Por isso o texto afirma: "as conversas das negras foram as primeiras crônicas que me deram notícia da minha família". A falada-senzala é a que primeiro nomeia a "história" da família branca para o menino. Esse lugar, é claro, será posteriormente ocupado inteiramente pelo avô. O segundo grupo de histórias nos fala da região e são narradores os mestres de ofício. Estes só faziam "confissões" (a palavra é sintomática e é do texto) quando estavam entre eles, e se silenciavam à mesa diante dos moradores da casa-grande. Diz o romance: "Eram surdos-mudos para as conversas da casa-grande" , e por aí indicia que os homens livres pertenciam ao único grupo social hostil aos senhores do engenho. Tese, aliás, cara ao romancista da cordialidade negra que foi Lins do Rego. O terceiro grupo seria o dos narradores dos contos maravilhosos, das histórias de Trancoso e dos contos de fada. A velha preta, Totonha, reina única neste bloco. Nas suas narrativas, os personagens clássicos europeus vivem "desgeograficamente" na paisagem do engenho, gerando uma forma de transgressão à letra européia que
46 - Rev. Bras. Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 acaba por ser simbólica do que melhor se fez na Literatura Brasileira desde o Romantismo. Assim, o menino ouvindo as histórias narradas por ela podia concluir de maneira maravilhada que "o seu BarbaAzul era um senhor de engenho de Pernambuco" , tendo antes descoberto que "os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o [rio] Paraíba e a Mata do Rolo". Dentro da economia textual das memórias são as histórias narradas pela velha Totonha o melhor antídoto para a asma do menino. Conclui o memorialista depois de uma sessão de contos: "O meu puxado não resistira aos contos da velhinha". No quarto grupo estariam as histórias do passado escravocrata da sua raça contadas na sua língua pela angolana Galdina, em evidente contraste com as narrati vas do primeiro grupo. Eis como a descreve o memoralista: "A negra Galdina, de olhar assim como o da cachorra Baronesa, de beiços caídos, contava para nós as histórias da África. Em língua estranha, soava o gemido da negra vovó. E mexia com os pés inchados, num sacudir de balanceado de terreiro. A prima e eu não entendíamos nada e era como se entendêssemos" . Outra africana, a tia Maria Gorda "guardava no coração o ódio de todos os oprimidos" e sintomaticamente pouco fala no texto de Lins do Rego. Mais próximo da tia Maria Gorda está o falante José Joaquim, companheiro de aventuras do menino de engenho, e responsável pelo que poderíamos chamar de histórias sociais (quinto e último grupo). Nelas o narrador negro se identifica abertamente com os problemas e as necessidades da sua classe social. Narrador e personagem são um. E é por essas histórias que o menino branco entra no desconhecido, descobre a diferença econômica e a alteridade social. Diz o memorialista que José Joaquim "começou a sacudir a [sua] imaginação com fatos que não eram do [seu] conhecimento". Que fatos são esses? Vamos dar a palavra ao próprio narrador para que nos fale o que falou ao memorialista: •• Ah, menino, tu não sabe o que é a fome nascer. Tu não sabe o que é povo sem água, as mães sem leite, as cabras correndo por cima das pedras atrás de um verde cardeiro. A gente não tem força nem para chorar'· .
3. A incorporação da narrativa oral ao romance, ou seja, a incorporação dos valores da tradição de uma dada comunidade ao relato histórico-ficcional dessa comunidade, quando feita através de vozes diversificadas socialmente, pode trazer para o texto uma dramatização rica e multifacetada dos agentes sociais em jogo. Por isso o relato histórico-ficcional acaba por escapar à ditadura do narrador em primeira pessoa e distanciar-se até mesmo do que pode haver de auto-
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indulgência na narrativa que dava a impressão de se enriquecer apenas pelo exercício da memória individual. Essa, aliás, é uma das características básicas dos melhores romances modernistas, de Macunalma a Grande Sertão: Veredas. Conclui-se portanto que quanto mais diversificados econômica e socialmente forem os narradores orais dramatizados numa ficção, tanto mais complexa será a visão de mundo que o texto passa. Por esta simples razão: por mais que o narrador do romance e das memórias de Lins do Rego esbarre aqui e ali nas armadilhas da ideologia da cordialidade, transmitindo ao seu leitor uma imagem idealizada da bondade da família patriarcal nordestina e uma imagem idílica do regime escravocrata, não há dúvida que, por ter se apropriado da fala de um enorme número de outros narradores, narradores estes com marcas econômicas e soci~s diferentes da sua, o texto literário acaba por ser plural e, por isso, um objeto com mais faces do que a única que nos é dada pelo menino de engenho e sua escrita ingênua. A poesia de Carlos Drummond de Andrade poderia ser um outro e semelhante exemplo. Caso selecionemos para interpretação apenas os poemas que tratam da "identidade do sangue" (para usar uma expressão cara ao poeta mineiro), temos uma visão de mundo restrita e, por isso mesmo, ~utoreferencial e empobrecida. O próprio poeta se dá conta disso no belo e sintomático poema "Raiz" , quando articula os vários versos pelo advérbio "mesmo": as sucessivas gerações dos Andrades são a mesma. Fica-se pois no campo da identidade entre as várias gerações apesar das mudanças históricas. O relato histórico-poético (repetimos: caso nos restrinjamos aos poemas da "identidade do sangue") não se abre para uma compreensão do mundo que se enriquece ao se extravasar para os jogos da diferença econômica e da alteridade social. São estes os verdadeiros motores da mudança e da transformação, da revolução. Nos poemas da "identidade do sangue" encontramos uma lógica do social que se dá pela clave da semelhança na tradição, traduzindo de maneira poética a "verdade" que se encontra em provérbios como: tal pai, tal filho; filho de peixe, peixinho é, etc. Autoreferenciais e excludentes, os poemas da "corrente do sangue" visam a preservar o status quo pela palavra poética. A metáfora que melhor apreende o conservadorismo desse saber patriarcal e aristocratizante é a da árvore genealógica, ainda que em nação sem praticamente descendentes de legítimo sangue azul. Examinemos um minuto a metáfora. A diversidade dos agentes sociais em confronto numa sociedade é descartada para que o narrador se entregue à história da genealogia de um clã. Abole-se o que é outro, diferente, para entregar-se ao elogio do que é mesmo, semelhante. As obras iniciais de Pedro Nava seriam um bom pasto para se estudar a
48 - Rev. Bras. Lit. Comparada, ng 1 - 03/91 relação entre a metáfora da árvore genealógica e o conservadorismo nela implícito ou explícito. Em Nava, médico de profissão, constantemente temos a ingerência de uma compreensão genética do indivíduo transbordando para uma compreensão psicológica do modo de inserção desse indivíduo no campo social. Assim sendo, os traços familiares (ou seja, os traços que permanecem como defmidores de uma determinada linhagem) acabam por constituir uma espécie de nobreza da tradição e do clã, e acredita-se que é sentando o personagem no trono genealógico que melhor se o conhece. Não se trata de desmentir a realidade dessa concepção e mesmo o seu interesse para uma compreensão mais ampla da sociedade brasileira. Trata-se antes de se chamar a atenção para a mentalidade que está por detrás dela. Caso abandonemos Pedro Nava e nos aprofundemos nessa linha de pensamento, veríamos que as diversas teorias sociais racistas do final do século XIX estão ancoradas na compreensão genética do homem e da história. O darwinismo via na "struggle for life" (luta pela vida) o motor da evolução das espécies e os racistas da época-baseando-se única e exclusivamente na tradição greco-latina e cristã-inferiam que, como tinha sido a raça branca sempre a "vencedora", o mundo acabaria inexoravelmente governado pelos arianos. Os negros que procurassem o seu modo de embranquecimento rápido, já que os índios estavam fadados ao desaparecimento. A grande questão levantada pelo século XVIII, pela Revolução Francesa e pela Declaração dos Direitos do Homem está numa frase bastante simples mas explosiva quando se a joga dentro do cadinho da genealogia, da linhagem e da nobreza. Ela diz que todos nascemos iguais e, ao declarar isso, institui a possibilidade do cidadão. Uma das características básicas do pensamento-árvore-genealógica é afirmar que nascemos iguais apenas na perspectiva da economia interna da árvore; ou pior: se não pertencemos a árvore alguma, párias todos que somos. A frase que diz que somos todos iguais significa que nada existe que possa distinguir um do outro no momento do nascimento. A parábola do Filho Pródigo, em geral encontrada como suporte em textos literários que tematizam a história pela árvore genealógica, não deixa de ser um compromisso do conservadorismo com a necessidade absoluta do exercício da alteridade. O Pródigo sai porque desobedece ao Pai e, no ato de desobediência, ele se equipara (ainda que passageiramente) a todo e qualquer um no embate cara-a-cara com o Mundo. A volta do Pródigo à casa paterna é que reinstaura a "corrente do sangue" como verdade absoluta, graças à força fatal da lógica do mesmo. André Gide, em uma versão pessoal e iconoclasta da parábola, não a fecha com o retorno do Pródigo, mas a deixa em aberto para a fuga sem retorno do irmão mais novo. Gide, é bom
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lembrar, é o autor da frase: "Familles,je vous hais". Diz o pródigo ao caçula: ."Parta sem ruído. Vamos! Abrace-me, meu caro irmão: você leva todas as minhas esperanças. Tenha força: esqueça-nos, esqueça-me. Que você possa nunca mais voltar."
4. Euclides da Cunha é certamente o intelectual brasileiro que vivenciou com mais intensidade e paixão o conflito entre a modernidade erudita (destruição) e o tradicionalismo popular (preservação). Ou melhor: entre um melhor conhecimento do popular pelo erudito, e vice-versa, para que pud~ haver uma transformação social na jovem nação republicana que a colocasc;e em pé de igualdade com as grandes nações ocidentais. Dai a importância para ele da educação. A verdadeira vitória sobre os jagunços de Canudos residia na sua indispensável necessidade. Uma frase sua traduz bem o ponto de vista que defende: "Que pelas estradas ora abertas à passagem dos batalhões gloriosos, que por essas estradas amanhã silenciosas e desertas, siga depois da luta, modestamente, um herói anônimo sem triunfos ruidosos, mas que será, no caso vertente, o verdadeiro vencedor: o mestre-escola" . Completamente imerso nas teorias do fIm de século que enfatizavam a "implacável força motriz da História", que defendiam o progresso pela industrialização e pelo ideário republicano então intolerante, que profetizavam o desaparecimento gradativo das "subraças"sertanejas pelos padrões da ocidentalização periférica, Euclides encontra no acontecimento Canudos a possibilidade de trabalhar o conflito em toda a sua profundidade e extensão, vale dizer em toda a sua ambigüidade. Se a campanha militar conduziu o jovem estado brasileiro a 'Um "refluxo para o passado", por outro lado acabou por perpetrar um "crime" que precisava ser denunciado. O conflito entre os valores conservadores da tradição, tradição esta legitima manifestação de uma cultura popular e iletrada, e os valores revolucionários da transformação, transformação esta legítima manifestação de uma cultura tomada de empréstimo à Europa imperialista, cria o impasse em que se escrevem Os sertões. Os diversos textos que conduzem ao texto maior de Euclides, dos artigos intitulados" A nossa Vendéia" até a Caderneta de campo, representam~ lento caminhar, lúcido e precário, para o impasse. No impasse se cria um espaço progressista de reflexão sobre o Brasil que já não é mais a Europa transplantada de Bilac nem o Brasil ufanista do Conde Affonso Celso. Espaço de margens, marginal, periférico, que passa a ser o entre-lugar por onde se alicerça a reflexão concreta e empenhada sobre o pais. Nesse espaço se alicerçam os
50 - Rev. Bras. Lit. Comparada, nl 1 - 03/91 projetos de nação, as várias nações imaginadas para que o Brasil não continuasse senhorialmente o mesmo. Na década de 20 deste século o impasse euclidiano é retomado. Nos anos que seguem à explosão da Semana de Arte Moderna, um intenso, inquietante e inconoclasta diálogo é travado entre Graça Aranha, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Tem ele como ponto de partida a implantação da vanguarda entre nós. Graça Aranha defende a tabula rasa, numa nítida imitação do ideário futurista. Justifica-a por um duplo golpe de sorte dos brasileiros: não tínhamos uma tradição ocidental assentada e não tínhamos um passado indíge. na tão rico quanto os mexicanos e peruanos. Por isso, nada tínhamos a destruir, ao contrário dos europeus; nada tínhamos a conservar, ao contrário dos hispano-americanos. Tudo estava para ser inventado futuristicamente. Oswald de Andrade vai contrariar essa "invenção" futurista de Brasil por Graça Aranha, a ser constituída numa espécie de terreno baldio da História nacional, chamando a atenção para a necessidade de alicerçá-la na "alegria da ignorância que descobre", pela Antropofagia. &creve Oswald: "Graça Aranha é dos mais perigosos fenômenos de cultura que uma nação analfabeta pode desejar". &quecia ele no seu projeto de nação moderna da necessidade de se atentar para os "erros" populares, ou seja, para a "contribuição milionária de todos os erros". A riqueza de um saber primitivo, não-ocidental, ou perifericamente ocidental, pode e deve ser levada em conta, como aliás estava sendo a praxe nos movimentos de vanguarda européia posteriores ao Futurismo. A idoneidade cultural do primitivo, e não mais a vergonha diante do bárbaro como encontramos em Euclides, marca a diferença básica entre a geração de 70 e a geração de 22. Priorizar na qualificação da tradição o primitivo (ou popular) e rechaçar a tradição bacharelesca, jesuítica e militar (ou erudito) e ao mesmo tempo abrir as antenas para o espírito da vanguarda européia-foi a forma como os primeiros modernistas procuraram conciliar elementos antagônicos em um espaço que não poderia mais ser o do autenticamente nacional nem o do autenticamente ocidental. Essa marginalidade-mais invenção da imaginação do que realidade empírica-passa a governar o modo de convivência do erudito que, se quer se desvencilhar do conservadorismo, não o quer no popular, pois não admite como único motor de transformação da sociedade a violência modemizante e militarizada. Nesse particular é Mário de Andrade quem caminha só no momento em que faz uma crítica definitiva ao Oswald-pau-brasil (e por ricochete a Graça Aranha). Vai até os limites insuportáveis da imaginação cultural e política. Abandona os elementos puros da
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dicotomia (ou seja, o erudito de um lado, e o popular do outro), abandona a própria idéia de dicotomia, para constituir algo que lhe parece substantivo naquele momento: a sabença. Por um lado afirma: "Oswaldo está brincando com micróbios perigosos: contribuição milionária de todos os erros" . Por outro lado afirma: "Preconceitos pró ou contra a erudição não valem um derréis". E conclui: O difícil é saber saber. Tarsila, para ele, sabe saber. Ela é sabença. Diz Mário: Não repete nem imita os erros da pintura popular, escolhe com inteligência os fecundos, os que não são erros e se serve deles. Pintura de ateliê raciocinada no ateliê tornada erudita através dos climas palmilhados sejam a tela corrediça da matriz de Tiradentes os primitivos de Siena ou a invenção mais recente de Picasso.
o DUPLO E A FALTA Construção do Outro e identidade nacional na Literatura Brasileira Ettore Finazzi-Agrõ
O que este meu relato não quer e, afinal de contas, não pode ser é precisamente mo relato. Como se pode, com efeito, relatar de fonna acabada uma amência, mo vazio, qualquer coisa, em smna, que não consegue existir por si mesma, já que se coloca, desde sempre e para sempre, sob o signo do alheamento ab;;oluto ao existente-ao em-si e por-si? Como é ~ível, aliás, reconstruirmo percurso (fazer um sentido) dentro duma dimensão que não tem vias certas, que se apresenta sulcada por sendas infinitas e labirínticas que se perdem no nada? E como se pode, finalmente, falar de modo coerente do que, por não ter um Sentido, nem sequer tem palavras para se dizer e é forçado, portanto, à passividade do dis-curso de outrem, duma lógica emprestada mas fatabnente externa e incompleta? Foi dito que a Alteridade só pode falar a voz do silêncio, que ela ressoa a nudez. I E isso é verdade, mas porque, antes de mais nada, ela não tem, a rigor, nem espaço nem tempo: a sua pátria fica perpetuamente num "algures" insituável em relação ao "aqui" ao "agora"; numa "outra dimensão" constantemente anterior ou ulterior a respeito de qualquer possível concretização espácio-temporal. Qualquer coisa, por conseguinte, cuja essência não se pode prender-que, mais ainda, fica previamente fora do alcance de toda
Este texto foi apresentado na Faculdade de LelIas da UFMG, a convite do Curso de Pós-Oraduação em Letras em 21.08.1989.
I. Vejam-seporexemplo, as considemções de MichelFoucault sobre o "silêncio da louc:um", compendiadas no seu ensaio "La folie, I'absence d'oeuvre", publicadopela primeira vez na revista La 7àbIe Ronde em maio de 1964 (consultei a tra-
o Duplo e a Falta... 53 dução italiana desse artigo, incluída no apêndice da segunda edição italiana da Histoire de Ia/olie. Milano: Rizzoli, 1980. p. 475-84). 2. Foucault fala ainda, no ensaio citado, da «figure de la folie», mas a minha referência - sobre a ambigüidade da "figura" em geral e sobre a sua irredutibilidade a um sentido - é aqui sobretudo ao livro de Franco Relia, Miti e figure dei moderno. Panna: Pratiche, 1981.
com-preensão, recusando-se a uma percepção autônoma e tornandose, assim, qualquer coisa de fatalmente inexprimível "nesta língua" . Entidade anônima, enftm, mas que exatamente por não ter nem nome nem lugar, recuando, dá lugar (e tempo) a uma língua complexadeixa atrás de si um mundo feito de .. ftguras,,2: isto é, de imagens ambíguas que é difícil reconduzir a um sentido próprio, visto que elas vêm duma distância incomensurável ou brotám dum abismo insondável, chegando indistintas à representação, contaminadas pela indeterminação das suas origens. O Outro é, sob esse aspecto, o que se mexe além duma fronteira, num "fora" indeftnido e indefinível, num exterior sem horizonte que é, na verdade, um interior continuamente recalcado, constantemente projetado para aquele externo que vira em distância tranquilizadora o que se dá, pelo contrário, como inquietante proximidade. E mais profundamente, o que gera o Outro é mesmo essa fronteira, é esse limite que separa um dentro concluso dum fora inconcludente: borda trabalhada e instável, margem dilacerada e sempre recomposta ao longo da história, e todavia linha sagrada e inelutável, destinada a dividir o próprio do impróprio, a norma do desvio. Noções relativas, repare-se, mutáveis e dependentes uma da outra, mas que servem, contudo, para delimitar o âmbito dum modelo cultural (e ético, e religioso, e antropológico ... ) exclusivo. Do outro lado dessa fronteira ideal, a cultura européia acumulou de fato, durante séculos, tudo o que de incompreensível, de excessivo, de ambíguo, de irredutível ao Sentido, em suma, ela ia encontrando ou descobrindo no seu caminho. O "algures" tomou-se, assim, uma espécie de fantástico, ilimitado e emaranhado, bric-àbrac em que encontrou lugar um monte de coisas heterogêneas. O louco, o judeu, a mulher, o negro, o que se supunha, enftm, ligado ao instinto e às leis misteriosas do corpo, tudo isso entrou no imenso domínio da Alteridade que acabou, assim, por se transformar numa grande feira da Diversidade, povoada, com efeito, por objets féeriques e montada além das muralhas, fora da cidadela, na anônima e desmedida periferia do Idêntico. Peira das maravilhas e dos horrores, espaço ineprimivel da festa, do riso, do corpo, mas também vórtice ou abismo, "lugar de trevas", objeto de medo e de desejo, de repulsa e de atração. Nesta dimensão que não é uma dimensão-mas sim uma proliferação incontrolável de espaços e de tempos diferentes-impera, desde sempre, o Antitético ou seja, em termos fatalmente religiosos, o Anti-Cristo. O Dia-bo, em suma: aquele que "separa" (do grego dia-bàllein) e que aparece, ele mesmo, como dividido, múltiplo, contra a sacralidade do Não-divisível, do Sim-bólico, do que se apresenta, com efeito, como In-dividuus. E pense-se, nesse
54 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 sentido, no conto evangélico do endemoninhado de Gerasa (magistralmente analisado por Jean Starobinski)3, pense-se no exorcismo de Cristo contra um demônio que fala com voz plural, que se designa por "nós" atribuindo a si mesmo o nome coletivo de Legião: a ação divina, sobre esta «outra margem do mar», procura sobretudo fazer recobrar ao homem (ao corpo) possuído pela pluralidade a sua indi vidualidade e identidade, reconduzindo-o dentro da norma espiritual, devolvendo-lhe e devolvendo-o a uma Lógica que é, de per si, santificadora. Não por acaso, muitas crônicas de descobrimento ou de conquista da América contêm uma reprovação religiosa que condena as culturas "outras" como diabólicas só pelo fato de elas serem politeístas: traduzida nos termos da "verdadeira Fé", a multiplicidade é, já em si, uma manifestação clara de Satã, o aflorar duma corporeidade intolerável que no seu caráter plural, na impossibilidade duma individuação ética, encontra logo a sua definição demoníaca. A terra americana afigura-se assim, desde o início, como uma dimensão infernal sem deixar de aparecer, desde logo também, como um lugar edênico, como o espaço desejado para se livrar, enfim, dos vínculos e dos empecilhos da Razão: âmbito equívoco duma Natureza que atrai e repele o homem de Cultura europeu-convencido, aliás, de que o Paraíso Terrestre se encontraria exatamente onde ele encontra (acha) o Nov0 4 . Dessa ambigüidade, dessa ambivalência ideológica, se sustenta, de fato e durante muito tempo, a alteridade americana que nasce como simples articulação duma identidade que nela se espelha para se reconhecer ou para se diferenciar. E é suficiente, a esse respeito, determo-nos só num instante naquele que se pode considerar o primeiro documento "literário" sobre o (e do) Brasil-a Carta de Achamento, em que Pero Vaz de Caminha cruza considerações sobre a total diversidade da nova terra e dos seus habitantes com paralelos entre ela e os lugares e os moradores do mundo conhecido-numa trama de analogias e de diferenças que é, além disso, complicada pelas referências, implícitas ou explícitas, àquele outro, imenso, depósito de alteridade que era (e é) o continente africano. A imagem do Brasil surge, portanto, mais ainda do que aquela dos outros países da América Latina, sob a marca "diabólica" da multiplicidade, do pluralismo das alusões étnicas e culturais, como resultado dum emaranhado engaste de espaços e tempos heterogêneos que faz logo dela um coágulo exemplar de alteridade. Alteridade "devorante", considerando a conotação canibalesca que, para os europeus, acompanha desde sempre a Terra de Santa Cruz e que se reflete, por sua vez, na assimilação iconográfica e literária entre as imagens satânicas e a cenografia antropofágica (pense-se
3. STAROBINSKI,Jean. Troisfureurs. Paris: Gallimard. 1974 (trad. ir.: Tre furori. Milano: Garzanti. 1978. p. 59-1(0).
4. Sobre o emprego - em relação ao Novo Mundodos verbos buscar e achar. anterior ao uso do verbo descobrir em português, veja-se, entre outros, MAHN-LOT. Marianne. La découverte de I'Amérique. Paris: Flammarion, 1970. p. 114-17. Cf. também o meu Ir algures. A delimitação do ilimitado na literatura de viagens dos séculos XI e XVI. Vértice. II Série, n2 lI,fev. 1989,p. 81-89.
o Duplo e a Falta... 55 apenas nas xilogravuras inseridas no célebre livro de memórias de Hans Staden e que propõe à Europa espantada dos ftnais do século XVI e do século XVII um Brasil-Inferno, com os índios a substituírem os demônios em redor dos caldeirões em que fervem os 5. A obra de Staden (pubrancos-danados)5. E se, pelo menos no início, neste quadro mental, blicada pela primeita vez nesta "tela" imaginária entretecida duma diabólica pluralidade, falta em Matburg em 1557) materialmente um dos fios do enredo (o negro), a história se gozou, de fato, dum sucesso enonne, com três preocupará de o integrar entre os elementos essenciais da definição reedições na Alemanha e nacional, veriftcando, ainda que só a poste riori, aquela complexidade com traduções em latim e em várias línguas eIU'Oe aquele polimorfismo étnico e cultural que Caminha, sem saber, péias, que circularam inaugurara no plano textual. . desde o século XVI até o século XIX. Veja-se,aesÉ um fato, aliás, que nesse lento processo de definição se respeito, a introdução à nacional, o país deverá, durante muito tempo, suportar a imagem edição brasileita do livro de Hans Staden, publicaimposta pela cultura européia, se aceitando como "algures" em do sob o título de Duas relação ao Velho Mundo, acomodando-se numa Alteridade que ele viagens ao Brasil. Belo recebe do exterior como sinal distintivo da sua (não)identidade. Horizonte: Itatiaia, 1974, p. 5-24. Também nesta Inferno receado e/ou Éden perdido, a Terra brasilis sujeita-se, em edição aparecem as xilosuma, longamente, à ambiguidade da sua origem: se vê por fora, gravuras (desenhadas, com toda probabilidade, através dos olhos espantados dos europeus, como pátria da diversob a orientação do prósidade, vivendo, ao mesmo tempo, por dentro, no interior do seu prio autor) que apresentam significativos pontos corpo cultural, aquela condição de "lugar outro" que a discrimina em de contato com a iconorelação ao "aqui" europeu. E tudo isso deixa o Brasil como que grafia infemal européia daquela época. Em partisuspenso duma situação de incerteza ou, mais ainda, o condena a um cular, pode-se assinalar Álibi histórico-cultural, isto é, a não se encontrar nem aqui nem ali, uma tela anônima de esmas perenemente "algures" (o que álibi. com efeito, signiftca na cola portuguesa, dos . )6 . meados do séc. XVI ongem . (conservada no Museu de Quando, portanto, a classe intelectual brasileira tenta se Arte Antiga de Lisboa), representando uma cena descrever, faz isso ftcando inscrita. durante séculos, numa perspecinfernal em que os índios ti va alheia, sem conseguir sair daquela Diferença imposta do exterior. desempenham a função de demônios. Cf. MARe dentro da qual fracassam todas as tentativas de transformar em GARIDO, Alfredo. La positivo o que se dá, naturalmente, como negatividade em ato. O vision de l'autre (Africain et Indien d' AmériBrasil colonial, enquanto dimensão "outra" , não possui, de fato, um que) dans la Renaissance sentido próprio e é forçado, por isso, a importá-lo da Mãe-pátria portugaise, In: VVAA. (como tantas outras benfeitorias voluptuárias). O que implica que L "Humanisme poTlugais et l'Europe. Paris: Fonqualquer interpretação de si mesmo, qualquer auto-análise (ou autodation Calouste Gulben. exaltação, pense-se só no Ufanismo) passe obrigatoriamente por uma kian, 1984, p. 507-5$. ideologia, por uma língua, por uma cultura impróprias, filtrando 6. Sobre essa "laceraassim através da ótica dos portadores da única lógica possível, dos ção" espacial, veja-se também o nleu ensaio depositários exclusivos do Sentido. Condição paradoxal, esta, pela L 'ubiquità brasiliana: qual só insinuando-se nas imagens "emprestadas" pelos europeus, identità e logica spaziale nel Mondo Nuovo, a ser só recorrendo à língua literária deles, os intelectuais do Novo Mundo publicado nas Atas do podem reconhecer e nomear a sua especificidade que, sendo, todavia, Colóquio internacional adquirida dentro da visão ou da imaginação alheias, cessa, ipso facto, «Nliscita di una identità: la fonnazione delle nade ser uma especiftcidade. zionalità americane»
56 - Rev. Bras. de Lit. Canparada, fi! 1 - 03191 Para exemplificar esta situação, pode-se fazer referência ao próprio texto qUe se tornou paradigmático duma presumível tomada de consciência nacional brasileira: a famosíssima Canção do exflio, de Gonçalves Dias-poema que se apresenta ainda significativamente marcado pela contraposição espacial e ambiental entre o cá europeu e o lá brasileiro. Ora: apesar da forte carga de atração pela pátria longínqua, o autor não consegue todavia, na expressão deste desejo, se emancipar dos módulos estilísticos locais (o romantismo continental) nem chega, sobretudo, a evadir-se dos limites daquela perspectiva consolidada, daquela mitologia européia que vê, como já dissemos, no Brasil, o lugar edênico por excelência. E, de resto, não Se pode esquecer que a alegada afirmação duma individualidade americana, a suposta consagração duma "identidade-contra", se coloca, na realidade, sob o signo explícito de uma famosa lírica de Goethe, de que o texto de Gonçalves Dias acaba, portanto, por ser uma espécie de paráfrase poética-em que o Brasil mais não faz do que substituir, como polaridade do desejo, a Sicília goethiana7 • Tudo isso, a meu ver, confirma uma fatal subordinação ideológica que desequilibra, afinal, o esquema antinômico de superfície, isto é, que contradiz a aparente oposição de igual para igual entre o cá e o lá, termos que não podem delimitar âmbitos geo-culturais comparáveis. Se a Canção do exílio livra os seus significados só ficando dentro do modelo europeu, aquém da margem do cá, considerações semelhantes podem, também, ser colocadas acerca duma outra expressão literária julgada como típica duma identidade brasileira em gestação: refiro-me ao indianismo romântico-escola de que o próprio Gonçalves Dias foi um ilustre expoente. Tambémnesse caso, de fato, deparamos. a meu ver. com um grande equívoco ideológico. já que a escolha do índio qual emblema exclusivo do Brasil. como símbolo duma independência histórico-cultural (pense-se só nos <<trajes majestáticos». no disfarce indianista de Dom Pedro I), se dá, na verdade, sob o impulso da Romantik. Isto é, no momento em que o romantismo europeu se vira para o passado, -e para a Idade Média, em particular-para detectar nele as raízes e o sentido da sua· própria identidade, a intelectualidade brasileira, ecoando aquele impulso. escolhe colocar no lugar vazio daquele passado. que ela percebe como sendo finalmente de outrem, um fundamento histórico inventado, convencional, também vazio, também "outro". A figura do índio que se impõe na literatura (como na política) toma- se. assim, uma espécie de "fetiche", um objeto substituto do herói romântico europeu, que-como todos os fetiches-está destinado a ocultar uma ausência: o indígena, noutras palavras, ocupa o espaço oco dentro duma contradição. não Se identificando, no plano formal, com o herói do romance histórico ultramarino, sem todavia repropor. no plano
(Departamento de Estudos Americ:anos. Univer-. sidade de Roma ((La Sapiennt»,19a20dejaneirode 1989).
7. Como se sabe, opoeDlll de Gonçalves Dias vem antecedido duma epígra-
fe em que aparecem (com umas alterações) os faJIIIBB WSlDI CF Goeb;
na sua Mignon, dedicara à Sicília: «Kennst du das Land, wo die Zitronen blühn,1 bn dunkeln Laub die Gold-Orangen glühn, I [ ... ] I Kennst du est wohl? - Dahin, dahin! I Mõcht' ich ... ziehn». Dentro dessas coordenadas textuais (e estéticas), o Brasil de Gonçalves Dias toma~, fatahnente, \DD8 espécie de proje,ção americana da Ilha goethiana.
o Duplo e a Falta ... 57 substancial, nem a realidade do índio, que pennanece, pelo contrário, ainda censurada, estranha, muda. Identidade que não é, portanto, ou que, pelo menos, "não é ali", mas ainda e sempre "algures". Fato que condena o Brasil do século XIX a uma situação de persistente Ubiqüidade que liga o seu ser Outro, o seu estar além duma fronteira, a uma Identidade que fica, fatalmente, aquém da margem, desse lado do Oceano. Condição paradoxal, visto que o país percebe enfim a sua especificidade em relação à Mãe-pátria e à Europa, mas não consegue nomear a sua Diversidade senão através duma língua, duma ideologia, de "figuras", afinal, alheias. E a cultura brasileira fica assim suspensa no vazio dessa contradição irremediável, sem conseguir sair do seu Álibi histórico que a obriga a se reconhecer pelo trâmite dos outros. Ambigüidade que encontra comprovações significativas até mesmo em lugares textuais em que, ainda em pleno século XX, se tenta afinnar, de modo clamoroso, a Diferença americana. Eis, por exemplo, um fragmento do Manifesto antropófago de Oswald de Andrade:
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipejú. 8 8. Cito a partir da antologia de Gilberto Mendonça Teles, Vallguarda eu-
ropéia e Modemislllo brasileiro. 8'ed. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 356.
Como se vê, para nomear a especificidade indígena e para definir, de fonua mediata, a peculiaridade brasileira, se deve passar por uma identificação com os modelos europeus, que, por sua vez, transfonuam os índios em improváveis precursores do marxismo, em antecessores grotescos de Breton! E isso, para não falar daquela alusão à «idade do ouro», ao mito edênico, que iguala, por paradoxo, Oswald a Gonçalves Dias. Noutras palavras, parece-me óbvio que apoiando-se ainda numa imagem instrumental e, no fundo, européia do índio, a identidade brasileira não consiga sair do seu Álibi; isto é, não consiga se localizar, se enraizar num tempo e num espaço próprios, relegandose, pelo contrário, num "algures" que fica dependente e subalterno ao "aqui": a sua margem externa e o seu negativo. E a identificação parece ainda como qualquer coisa de culpadamente subtraída ao Colonizador; a identidade nasce, por assim dizer, à sombra dum grande remorso que é, ao mesmo tempo, consciência do "roubo" ideológico perpetrado em detrimento da cultura européia, mas também tentativa de exorcizar a perda de imagem, de justificar, consigo mesmo, a sua arrogância iconoclasta.
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o que, a meu ver, se pode detectar em tantos textos do Modernismo-isto é, da época em que com mais força se coloca a questão da identidade nacional-é, com efeito, exatamente um sentido de "falta": falta, repare-se, seja como "carência", como "ausência", seja também como "culpa" ou "defeito". O exemplo, claro no seu caráter hiperbólico, na sua linguagem excessiva, pode ser ainda fornecido pela Antropofagia: movimento que, por um lado, grita a "fome" secular do brasileiro, a sua bulimia, o seu desejo inesgotável de se apropriar do modelo europeu, anulando-o dentro de si, mas que, procura, por outro lado, compensar essa perda, tenta expiar a sua culpa sacralizando o modelo ingurgitado, tomando-o um objeto de culto (ainda no manifesto oswaldiano: «Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem»9). A mesma "falta" é aliás evidente num dos textos básicos da identidade brasileira. Refiro-me, claro, ao Macunaíma de Mário de Andrade: personagem que, de fato, se individualiza numa ausência de caráter mas que, ao mesmo tempo, se dispõe sob o signo duma carência moral e duma deficiência ética, que o acompanham ao longo do romance. O que aqui se enuncia é, todavia, qualquer coisa de muito novo, na minha opinião, qualquer coisa de decisivo no plano da identificação nacional: ou seja que é essa própria ausência, esses mesmos "defeitos" que estão na base da especificidade brasileira. Noutras palavras, Mário indica logo-desde o título-o papel positivo da "falta", transformando umpersonagem-sem no emblema heróico do brasileiro. E se a sua ascendência racial é ainda a indígena, as suas feições transmutam todavia do negro (<<preto retinto»), ao branco (<<branco louro e de olhos azuizinhos» lO, numa metamorfose étnica que é, de per si, extremamente significativa: já que o seu ser sem caráter, o seu não pertencer a uma raça determinada, lhe permite atravessar e/ou resumir no seu corpo as diferenças americanas, entregando- o, no fundo, a um estado (mítico) de plenitude virtual. De fato, o vazio organiza um sentido: sentido plural, contraditório, instável, constituído através da agregação provisória de muitas linguagens, numa encruzilhada inextricável de diferenças que só na vertigem da "falta" encontram uma mediação possível, descobrem a sua positividade. E não se esqueçam, por isso, como o autor de Macltnaíma ostenta repetidamente a natureza de pastiche que a sua obra-prima possui (lembrem-se, por exemplo, do que ele escreveu na célebre "carta aberta" a Raimundo Moraes, publicada no Diário Nacional de São Paulo, em setembro de 1931: «Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, de cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene
9. Ibidem, p. 359.
lO. Cf. Macunaíma. o herói sem nenhum caráter.
organizado por Telê Porto Ancona Lopez et alii. (Paris: Association Archives de la Littérature latino-americaine, des Caraibes et africaine du XX Siêcle, 1988. p. 5 ep. 37).
o Duplo e a Falta ... 59
I !.Ibidem, p. 427.
12. Cf. - em relação a esta «prática intertextual», a este <<roubo» literário confessado pelo autor - o belo ensaio de Eneida Maria de Souza, Mário de Andrade e a questão da propriedade literária, (Ellsaiosde Semiótica, Belo Horizonte, ano V, n2 lO, dez., 1983. p. 921). 13. Em carta a Alceu Amaroso Lima (de 19 de maio de 1928), o próprio Mário admite - se bem que a contragosto - que «Macunaíma vai sair, escrito em dezembro de 1926, inteirinho em seis dias, correto e aumentado em janeiro de 1927, e vai parecer inteiramente antropófago ... »
(Macullaíma, ed. cit., p. 400). 14. Cf. o meu O Neutro e o Multíplice - Identidade e Alteridade no primeiro Modernismo Brasileiro,
In: DimellSÕesdaAlteridade lias Culturas de Líllgua Portuguesa - O Outro (ATAS DO 1° SIMPÓSIO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS PORTUGUESES. Lisboa, 20-23 de Novembro de 1985), vol.lI,Lisboa,Dept°deEstudos Portugueses da Universidade Nova, s.d. (1988), p. 441-48.
língua dos colaboradores da Revista de Ungua Portuguesa»).11 Texto-collage, portanto, o Macunaíma, nos limites do qual se coadunam ou se entrecruzam textos de ascendência diversa, páginas copiadas ou parafraseadas, termos ou expressões da mais variada origem, que no seu combinar-se dão lugar a uma obra "sem nenhum caráter" que na realidade-como o protagonista-atravessa e sintetiza no seu "corpo" textual um número virtualmente infinito de caracteres, de identidades, de linguagens. 12 O que quero dizer é que Macunaíma, enquanto texto e enquanto personagem, é rroduto consciente dum ato, no fundo, ainda "antropofágico" 3: duma deglutição de elementos heterogêneos que, não sendo nem autônomos nem originais, definem todavia o lugar neutro em que se pode reencontrar uma real autonomia e originalidade. E é mesmo assim, secundando a própria "falta", tomando consciência da sua irredutibilidade a um Sentido unitário, que se abre caminho para o descobrimento da verdadeira especificidade brasileira: uma especifidade sem definições e sem características porque com demasiadas definições que não encontram um espaço e um tempo pontuais onde se enraizar, com infinitas características que não tem um centro a que se referir. 14 A grande proposta de Mário de Andrade assenta sobre esta simples intuição: que, sendo impossível sair dos limites duma perspecti va alheia, basta deter-se nesses limites, isto é, basta apropriar-se dos lugares comuns que os outros definiram para nós, para encher o vazio desses lugares, para fazer com que o "nós", fale, enfim, com sua voz pluraL Proposta, aliás, que tem um antigo nome literário: o de paródia. M ac unaíma é, de fato, uma paródia na medida em que utiliza ironicamente as imagens alheias, na medida em que se insinua, com mimetismo exasperado (pense-se só na Carta pras Icamiabas), na imaginação e na mitologia dos outros, desarticulando, do interior, a língua deles, corrompendo o seu Sentido até a emergência dum sentido novo e, ao mesmo tempo, antiqüíssimo, quase ancestral: o sentido duma identidade negada que só parodiando a Alteridade em que foi relegada, apenas repropondo-se ironicamente como "algures" , consegue se situar e se exprimir. Intenção em que também a Antropofagia se reconhece-apesar das incongruências assinaladas-pelo que de violentamente irônico se detecta nela, pelo seu instala-se, em todo o caso, num lugar comum europeu (o canibalismo dos índios) para o virar do avesso, para o converter, de forma satírica, num lugar próprio. A identidade está, também nesse caso, numa precária homogeneidade intestinal que é, ainda assim, o produto duma assimilação vertiginosa das diferenças. Talvez, mais do que nas imagens hiperbólicas dos seus manifestos, Oswald consegue atingir o núcleo paradoxal dessa iden-
60 - Rev. Bras. de Lil. Comparada, n! 1 - 03/91 tidade-sem, dessa "devorante" alteridade, numa outra obra: o conjunto de poemas que vai sob o título de História do Brasil, incluído, por sua vez, na célebre coletânea Pau Brasil (editada em Paris no ano de 1925).15 Esta obra, de fato, não é nada mais que urna coleção de paródias dos textos fundamentais da história e da cultura brasileiras, a partir exatamente da Carta de Achamento de Pera Vaz de Caminha. O que já aqui se encontra, antes mesmo do Macunaíma, é a confusa consciência de que para reconstruir um sentido é preciso render-se ao Sentido: isto é, que para delinear urna história do Brasil é necessário insinuar-se na história escrita pelos outros. Porque só graças a esta rendição ambígua é lícito saborear o gosto irrisório da vitória, só manipulando ou re-usando de modo distanciado os produtos alheios é possível recobrar aquela margem de identidade que ficaria, de outra forma, confundida numa alteridade sem palavras. Nem pode ser por acaso, a meu ver, que, além dos textos mencionados, a produção literária brasileira se apresente, no século XX, constelada por pastiches (só da Canção do exílio, para determos num exemplo já dado, contam-se Ptelo menos doze reescrituras: paródias duma paráfrase, portanto... ) 6. E é, de fato, nesse fenômeno, nessa constante citação/re-uso das obras anteriores, que se pode enxergar, creio eu, o desejo histórico de se definir dentro e através das definições alheias, a vontade de se espelhar ironicamente nas imagens do Outro. Guardando, nesta passividade, justamente um resíduo de positividade, ou melhor, corno já disse, uma margem de identidade: margem que surge, talvez, apenas corno produto duma sátira das fontes, dum manuseio ambíguo de elementos emprestados, mas que, exatamente nesta ambigüidade (que re-propõe, negando), precisamente na sua intertextualidade proclamada-ou seja na multiplicidade das referências ou das citações-recorta-se um seu próprio espaço textual, descobrindo uma especificidade dentro da falta de especificidade, uma coerência no interior mesmo da incoerência e da pluralidade. Para se apropriar dum sentido outro é preciso, afinal, passar, ironicamente, através duma experiência de expropriação, para encontrar um caráter próprio é necessário brincar (e a definição que Mário dá de Macunaíma é, com efeito, a de "brinquedo" ou de "brincadeira ") 17 com a "ausência de caráter". E é por isso que esta minha confusa, labiríntica, vagabundagem entre as figuras literárias da Alteridade no Brasil não pode se reconhecer na definição de "relato" nem, por outro lado, responder plenamente a um título (de que, aliás, sou eu mesmo totalmente responsável) em que aparece a palavra "construção": já que a Alteridade, pelo menos em literatura, mais do que o produto duma construção, é o resultado duma queda
15. Veja-se: ANDRADE, Oswald de. Poesias reullidas, 00. por H. de Campos. SI ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 7990.
16. Cf. MACHADO, Aires da Mata. Crítica de estilos. Rio de Janeiro: Agir, 1956. p. 30 e passim.
17. Cf. em particular, o prefácio que Mário escreveu (mas não publicou) logo depois de ter tenninado a primeira versão do romance: «Macunaíma [...1e um livro de ferias escrito no meio de mangas, abacaxis
o Duplo e a Falta... 61 e cigarras de Arnraquara; um brillquedo» (sublinhado meu; apud HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Macul/aíma: da literaltlra ao cillema. Rio de Janeiro; José Olympio I Embrafilme, 1978, p. 25).
18. Sobre a função do prefixo des- (do latim de ex) na Paü:üo segulldo G.R. assim como no Livro do Desassossego. de Fernando Pessoa -, cf. COELHO, Eduardo Prado. Pessoa; lógica do Desassossego, In: A mecâllica dos fluidos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. p. 21-31.
19. É conhecida a centralidade do Neutro nas teorias de Blanchot ou de Barthes: o que aqui se propõe é a possibilidade de ler, através da hipóstase do .. espaço neutro" para o qual apontam os textos literános, aquela prática da neutralização que opera, no Brasil, a nível cultural. A terceira margem do rio está, como se sabe, incluída nas Primeiras estórias de João Guinmrães Rosa (Rio de Janeiro: José OI}1l1pio, 19(2).
ou dum recuo-é, em suma, a renúncia à coerência e à univocacidade do que é Idêntico. Para chegar ao Outro, noutras palavras, é indispensável uma forma de passividade, é inevitável (e uso, aqui, uma palavra cara a Clarice Lispector, autora que fez da relação com o Outro o objeto privilegiado da sua obra), é inevitável, eu dizia, uma «desistência»: ou seja um desistir que é também um de-existir, um colocar-se aquém ou além do simples existir, aquém ou além em relação à língua habitual, para descobrir (ou re-descobrir) uma linguagem nova e, ao mesmo tempo, antiqüíssima: a linguagem passiva e "passional"com que se exprime a Diversidade que nos atravessa, que é, de modo inquietante, nossa-de todos nós, portanto, e não apenas dos bras!'1' euos. 18 Só ensaiando a "porosidade" da fronteira que separa o próprio do impróprio, só colocando-se numa condição de "permeabilidade" de Si em relação ao Alheio-só, no fundo, neste aparente abandono da solidez do Eu, desistir pode se tornar um sinônimo de resistir, descobrindo enfim uma forma de consistência. Ou, noutra perspectiva, só aceitando habitar a contradição entre Identidade e Diferença se pode chegar a uma espécie de ultrapassagem, pelo trâmite da paródia, das antinomias: é possível, em suma, enxergar a borda insituável, o limite movediço mas sagrado que divide e une o Lugar da Norma e o Não-Lugar que fica do "outro lado". E é ainda um grande escritor brasileiro como Guimarães Rosa que nos oferece a figura conclusiva, a imagem determinante na sua ambigüidade, dessa «terceira margem»: o que não está nem cá nem lá, mas que é também o ponto ideal, o "lugar neutro", em que cá e lá se entrecruzam e se compendiam; em que, mais p,rofundamente, eles encontram a sua origem e o seu cumprimento, 9 A escolha de viver sobre esse limite incerto, nesse terceiro lugar imaginário e, mesmo assim, real, pode servir de metáfora-sólida, consistente (como eu dizia) na sua fluidez, no seu caráter de abandono, de desistência-para uma nação que cedeu finalmente à sua Ubiqüidade, que se entregou ao seu Álibi, encontrando nesta "falta" como que uma plenitude que combina e harmoniza, dentro de si, todas as diferenças. Identidade, por fim, que sob o signo do Neutro descobre a eventualidade dum Sentido próprio, sem todavia nunca abdicar daquela multiplicidade-diabólica, não exorcizável que atravessa e "possui" o seu corpo histórico.
ANTROPOFAGIA E CONTROLE DO IMAGINÁRIO Luiz Costa Lima
Em 1928, Oswald de Andrade, na condição de porta-voz da vanguarda, publicou seu Manifesto antropófago. Reagindo contra o fraseado contínuo, que em seu caso poderia ser interpretado como imitação da lógica verbosa, Oswald escolheu para seu manifesto o que poderíamos chamar uma lógica de instantâneos-o desenvolvimento das idéias por frases curtas e rápidas, fragmentárias e multidirecionais. Associando agudeza e humor, o Manifesto antropófago tem como base uma questão existencial: a de ajustar a experiência brasileira da vida com a tradição que herdamos. O problema era como alcançá-lo. Provavelmente, a questão encontra sua melhor formulação na glosa tropical da frase shakespereana. Tupi, or not tupi that is the question
Com o título "Thinking abour Iiterature from a marginal place" e sob os auspícios do Dept. of Spanish and Portuguese, este texto foi originalmente apresentado como conferência na Stanford University, em 30 de novembrode 1989. Embora sua destinação oral tenha imposto uma excessiva leveza, preferimos aqui manter a estrita fidelidade ao então exposto. (Fora pequenas mudanças estilísticas, a única é representada pelo acréscimo da nota li).
Posso contudo me perguntar como 'tupi' podia dispor uma forma de ser. De acordo com o Manifesto, sua resposta envolveria o reconhecimento de que nunca fomos de fato colonizados. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. 1
L ANDRADE, Oswald de. Manifesto anlropÓfa-
Antropofagia e Controle do Imaginário go. (1928). In:-. Do Pau Brasil à a1ltropofagia e às utopias. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira/MEC. 1972. p.16.
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Dependendo do ponto de vista, se poderia pensar que nossa colonização fpi ou um fracasso ou uma completa farsa. Contra os catequizadores e antes de sua chegada, o Manifesto, declara que "já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista" e que mesmo antes da descoberta lusa, já tínhamos" descoberto a felicidade." A partir dessas breves anotações, poder-se-ia supor que o Manifesto antropófago seria uma espécie de utopia rousseauísta regressiva. Mas seria desentendê-lo. Oswald não era a tal ponto ingênuo que acreditasse em uma entidade primitiva, estável e indomável que teimosamente teria sobrevivido a séculos de colonização. Em vez de uma arqueologia assim estática, com uma camada primitiva e indelével e outra mais superficial, formada pela herança do branco, Oswald enfatiza uma força primitiva de resistência à doutrinação promovida pelo colonizador. Essa capacidade de resistência seria antes um traço cultural do que o produto de algum estoque étnico. E, por isso, identificada apenas pelo modo como opera; pelo canibalismo simbólico. Em poucas palavras, a doutrinação cristã e européia não teria superado o poder de resistência da sociedade colonial, que se manifestaria na manutenção de nossa capacidade de devorar e ser alimentado pelos corpos e valores consumidos. Considero por um instante a metáfora da antropofagia. Parece, em primeiro lugar, útil ressaltar que, na antropofagia, o inimigo não é identificado com algo impuro ou com um corpo poluído, cujo contato então se interditasse. Esta antes seria uma concepção própria antes aos puritanos. Deste modo, a negação do inimigo, sua condenação ao completo esquecimento representa o avesso do que postula o Manifesto. Em segundo lugar, convém destacar que a antropofagia, tanto no sentido literal como no metafórico, não recusa a existência do conflito, senão que implica a necessidade da luta. Recusa sim confundir o inimigo com o puro ato de vingança. A antropofagia é uma experiência cujo oposto significaria a crença em um limpo e mítico conjunto de traços, do qual a vida presente de um povo haveria de ser construída. De sua parte, o Manifesto se origina da busca de "a experiência pessoal renovada", que se fundaria na incorporação da alteridade. De acordo com as metas do Manifesto, essa incorporação agiria ao mesmo tempo nos planos pessoal e social. Conforme enuncia seu último fragmento:
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud-a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindo-
rama.
64 - Rev. Bras. Lil. Comparada, 112 1 - 03/90 De fato, o manifesto de 1928 é uma declaração libertária. Neste sentido, assemelha-se a vários outros aparecidos nos anos 20 e 30. Reduzir contudo o Manifesto oswaldiano ao denominador comum seria subestimá-lo. A antropofagia é uma metáfora que exige exame mais detalhado. Estarei sugerindo esse caminho analítico pela comparação entre o manifesto de 1928 e uma experiência cumprida dez anos depois, em Paris. Aludo a Le College de Sociologie, iniciativa pela qual foram responsáveis G. Bataille, R. Caillois e M. Leiris e que durou entre novembro de 1937 e julho de 1939. Por mais diversos que fossem os contextos sócio-históricos em que estavam inseridos, o Manifesto e o Col/ege partilhavam de um fundo comum: a experiência de profundo mal-estar com a situação político-econômica de suas sociedades. No que dizia respeito ao Brasil, esse mal-estar estava relacionado à permanência do que Oswald engenhosamente chamava de "as elites vegetais", incapazes de se mover senão sob a ameaça de mudanças sociais. (Como um de seus representantes diria, "a questão social é uma questão de polícia"). Até a década de 20, o Brasil fora uma economia agro-exportadora e a República, uma democracia de fachada. O poder era de fato exercido pela aliança do exército com os representantes políticos dos grandes proprietários de terra. A crise internacional dos 20 estimulou uma vontade de mudança, que se tornou visível política e intelectualmente em 1922. Como seria impossível aqui desenvolver uma análise detalhada do Brasil dos anos 20, assinalo alguns traços marcantes. Convém antes de tudo lembrar que a intensidade do mal-estar brasileiro e latino-americano de então poderia ser comparada com a do europeu contemporâneo. Conquanto isso seja evidente, ao mesmo tempo deve-se ter em conta uma certa similaridade expres."ia no Manifesto e nos textos que integravam o espírito do College. Minha tarefa será mostrar as semelhanças e diferenças implicadas nas experiências em que se situam. Enquanto, no Brasil, o Manifesto tomava posição contra a República Velha, na França, a experiência do Coltege fazia face à insatisfação provocada, de um lado, pela democracia burguesa, de outro, pela emergência do fascismo. A diferença implicada nestes contextos sociais deve ser correlacionada à diversidade de tom notada nos textos do Manifesto e nos que constituíram o acervo do College. Quanto ao primeiro, acentue-se que sua agressividade canibalística é temperada com uma dissipação de energias alegre, bem humorada e otimista. Se então nos voltamos para os textos do College, encontraremos aquela feliz beligerância convertida em algo distinto. Estes textos, sobretudo os assinados por Bataille, secretam um outro vitalismo. Ele é de tipo agônico e paroxístico e se revela na passagem em
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que, em uL'apprenti sorcier", Bataille denuncia o caráter da opinião pública nas democracias européias: Esta multidão exige com efeito que uma vida segura não depende mais que do cálculo e da decisão apropriadas. 2
2.BATAlLLE,G.L·~
pretllisorcier. ApudHOLLIER. D. Le ColLegede Sociologie. Paris: Gallimaro, 1979. p. 53.
E antepõe ao conformismo dominante um vitalismo alimentado pelo risco iminente da morte e da paixão: Mas esta vida "que se mede somente pela morte" escapa àqueles que perdem o gosto de incendiar-se, como fazem os amantes e os jogadores através de Uas chamas da esperança e do pavor". O destino humano quer o que o acaso caprichoso propõe; o que a razão substitui à rica vegetação dos acasos não é mais uma aventura a viver senão que a solução vazia e correta das dificuldades da existência. 3
3. Ibidem. p. 53-54.
4. Sobre este aspecto é particuiannente valiosa a leitura de um ensaio de autor que se tomaria o pensador político mais importante a aderir ao nazismo. Refiro-me a Die geislesgeschichlliche Lage des heuligetl Parlamentarismus (1923), de Carl Schmitt.
Tal ênfase na morte, dentro do quadro de uma vitalismo paroxístico, éde fato bem dissonante da agressividade alegre e irreverente do Manifesto. E essa diferença é reforçada pelas funções diferentes que Oswald e Bataille conferem ao mito. Em Bataille, é a ausência de um mito vivo que assinala o abismo entre sua proposta e a vida social presente. A convocação para e pelo mito aparece-lhe como a única solução possível contra o amorfismo e a insensibilidade coletivos que corroiriam a sociedade européia, mais precisamente a de. burguesa. 4 mocraCla (O mito) seria ficção se o acordo que um povo manifesta na agitação das festas não o convertesse na realidade humana vital. O mito é talvez fábula mas esta fábula está posta no lado contrário da ficção se se encara o povo que a dança, que a faz agir e de que ela é a verdade viva. (... ) Um mito não pode portanto ser assimilado aos fragmentos esparsos de um conjunto dissociado. Ele é solidário à existência total de que é a expressão sensível. s
5. Ibibem. p. 55-56.
Em Oswald, ao contrário, o mito é uma ficção crítica, um instrumento zombeteiro e capaz de assinalar que a colonização européia não domou uma energia primitiva. Em suma, posso dizer que, enquanto a ênfase de Bataille na morte eno mito proclama seu próprio Angelus novus, em Oswald o canibalismo jovial e a função pragmática do mito concretizam o cubismo construtivo do Serafim e do João
Miramar.
66 - Rev. Bras. Lit. Comparada, n! 1 - 03/90 Chegado a este ponto da exposição, pareço escutar uma voz que indaga pelo significado das últimas frases. Seria ainda necessário, sUssurra ela, que alguém tomasse a palavra para nos declarar que o contexto da vanguarda européia era dessemelhante aos contextos latino-americano e brasileiro?! Ou que a experiência emopéia de angústia e de frustração social era, na América Latina, substituída por um otimismo combativo? Se a comparação que apresento resumir-se a estes dois pontos, por certo que perdemos nosso tempo. Presumo contudo que outro resultado é possível. Para que o formule, é suficiente que continuemos a reflexão que fora interrompida pela hipotética voz. Baste-me apenas acrescentar que, se enfatizasse apenas as diferenças entre Oswald e Bataille e, por fim, as explicasse pela situação divergente de seus continentes, elidiria dois aspectos de rendimento ao menos surpreendente: 1. Pergunto-me o que usualmente significa correlacionar o vitalismo paroxístico de Bataille com a cena européia de entre as duas Grandes Guerras. Será algo mais que um subproduto, uma espécie de homenagem automática à velha conexão entre condicionamento histórico e produtos culturais? E o que é mais sério: 2. Essa correlação habitual não pressupõe um evolucionismo não confessado? Explicitamente: o otimismo oswaldiano não poderia ser promovido senão em uma sociedade menos sofisticada, que não resistiria à maior complexidade da sociedade européia, a qual estaria sim "representada" pela posição de Bataille. A explicitação permite entender melhor por que aquele tipo de comparação é ou evitado ou julgado desnecessário. É óbvia a razão de ambas as decisões: se não nos contentarmos com um resultado banal, seremos pressionados em ir além e então correremos o risco de descobrir que, sob o clichê do senso comum, se deposita ·um pressuposto evolucionista. Ora, ser evolucionista hoje em dia não parece uma bela identidade para o intelectual. O risco porém não se encerra nesta desagradável descoberta. Pois que sucede se aceitarmos que um fantasma evolucionista rondava e travava a evitada explicacão? Produz-se um resultado não surpreendente mas paradoxal. Formulando-o de forma direta: se supomos que o vitalismo agonístico de BataiHe era um sinal da maior complexidade de sua sociedade, não é então igualmente suposto que o nazismo era um rebento dessa complexidade? O nazismo então não seria uma experiência política regressiva mas sim um dos efeitos iminentes da sociedade industrial e pós-iluminista. Como entretanto o nazismo entrou no argumento? Porque, como é provável que já se tenha notado, a ênfase na morte e na função a ser exercida pelo mito eram tragicamente próximas ao mundo da praxis nazista-não importa o quanto Bataille o abominasse. Não é
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6. Cf. HOLLlER, op. cito
p. 121-128.
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então por acaso que o nazismo tivesse simpatizantes dentro do próprio College,' na verdade se tratava de um colaborador fortuito, Pierre Libra, bastante claro porém em sua concordância com "a política de força do nazismo ... 6 Assim, para evitar seja a pressuposição evolucionista, seja a conseqüência paradoxal de sua adoção, parece necessário articular a diferença manifesta entre o Manifesto antropófago e os textos de Bataille com a percepção da proximidade peculiar que os envolve. Estarei pois me indagando que têm em comum o canibalismo otimista de Oswald e o vitalismo agônico de Bataille. Suspeito que esse fundo comum se origina da mesma crítica a que o racionalismo ocidental é submetido. Testo a hipótese. Depois da Segunda Grande Guerra, a crítica do racionalismo fora convincente e pungentemente formulada por Horkheimer e Adorno, na Dialética do Iluminismo. Para quem conheça suas páginas, não será difícil entender por que Oswald e Bataille introduziram a necessidade de uma descontinuidade com a sua tradição. A civilização ocidental costumou e costuma pensar-se a si mesma como um agregado contínuo, que, começando na Grécia, prosseguiria, com maiores ou menores ansiedades apocalíticas, até nossos dias. O Manifesto antropófago e Le College de Sociologie, na verdade como inúmeros outros movimentos e autores contemporâneos, cOpIeçam a considerar a ruptura, a descontinuidade, não só como uma ferramenta mental e uma categoria intelectual mas também como uma exigência histórica. Desde esse ponto, a tradição pode significar duas coisas distintas: oifuma transmissão regular de valores ou o contato problemático com um solo rugoso. A partir de então, essas duas possíveis maneiras de experimentar a tradição emblematizarão, respectivamente, o pensamento conservador e o transformador. A opção de Oswald e Bataille é indiscutível. Em suma, a apresentação até agora consistiu em ressaltar dois aspectos básicos: tomando o Manifesto e o College como exemplos paradigmáticos da cena intelectual dos anos 20 e 30, procurei acentuar suas semelhanças e diferenças. Por fim, em ambos os casos sublinhou-se a sua crítica contra a transmissão de valores fundada sob a égide da continuidade. Agora o movimento expositi vo será outro. Partindo do suposto que o Manifesto apresentava uma interpretação que implicava uma descontinuidade com o modo pelo qual se costuma conceber a relação efetiva ou desejada da sociedade latino-americana com os valores ocidentais, indago-me agora pelo grau em que a descontinuidade era concebida. Se é verdade que Oswald ironizava e desprezava as velhas fórmulas que se consideravam necessárias para que a civilização
68 - Rev. Bras. Lit. Comparada, n! 1 - 03/90 chegasse aos trópicos-o embranquecimento da raça, as anquinhas postas aos instintos, a sisudez das barbas ancestrais-por outro é também evidente que seu canibalismo simbólico se encarava a si mesmo como o depositário fiel dos valores ocidentais. Que significa fundamentalmente a metáfora antropofágica senão que as forças, a energia, a vitalidade do inimigo capturado serão incorporadas a seu devorador? É certo que, se continuamos no nível da metáfora, na digestão canibalista há uma transformação patente. Como o próprio Manifesto estatui, glosando o famoso título de Preud, a antropofagia significa a transformação do tabu em tótem, Le., a metamorfose do símbolo de excludente em includente. Mas estatuir que aí se dá uma ·transformação significa mais radicalmente que, sob a ação de uma metamorfose, o valor prévio permanece e continua a circular em um novo corpo. Lembrando Nietzsche, poder-se-ia acrescentar que a ênfase na devoração- na necessidade cultural da devoração do outro-assumia o significado de uma "reabilitação da sensibilidade do gosto. " ("Rehabilitierung des Geschmackssinchkeit "), que vinha corrigir a tendência descorporizante acentuada desde o Iluminismo. Isso, com efeito, parece significativo e correto, embora não contradite o prévio enunciado. Combinando-os, pode-se postular: o Manifesto antropófago representa uma ruptura no processo da internalização brasileira dos valores ocidentais, se bem que seja uma ruptura restrita. Essa internalização é encenada por Oswald como não mais implicando a destruição do mundo não-branco primiti vo senão que a transfusão dos valores do branco em um corpo nativo. Noutros termos, a intuição oswaldina consistia em declarar que a autonomia intelectual brasileira (e latino- americana) implicava o diálogo entre uma capacidade local-canibalizar o quer que aqui chegasse-e o acervo ocidental. Além disso, através da canibalização, os valores ocidentais poderiam recuperar seu traço sensível, perdido pelo abstracionismo da razão iluminista. Mesmo porque não fôramos totalmente colonizados pelo Ocidente, poderíamos ajudá-lo a corrigir-se ...
Supondo que esse passo da demonstração tenha sido bem feito, pergunto-me agora por que enfatizei os limites da descontinuidade implícita na proposta interpretativa de Oswald. Por que disse que a profunda ligação do Manifesto com os valores ocidentais limitam sua ação operacional? Assim o fiz porque manter uma estreita dependência quanto aos valores do Ocidente ou implica que eles são no fundo isentos de crítica ou praticamente se abranda a crítica que se lhes faça. Eles seriam uma espécie de lar que tanto apreciamos que inibimos seu questionarilento. Mas, por que insisto em que, ao invés de man-
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tennos essa aliança, necessitamos desenvolver seu agudo questionamento? Para que justifique essas postulações, é necessário observar que, entre o Manifesto antropófago e o nosso próprio tempo, dois fenômenos sócio-históricos exerceram um impacto decisivo. Refirome (a) à experiência do Holocausto e (b) à onda de regimes ditatoriais que varreram a América Latina entre os anos 60 e 80. Umas poucas palavras sobre cada um. Parece um ato de estúpida arrogância ainda lembrar a unicidade da experiência do Holocausto. Chamo apenas a atenção para o fato de que essa unicidade não se justifica em tennos de estatística. É ridículo, para não dizer repugnante, comparar o número de mortos neste e noutros holocaustos conhecidos. Pode-se mesmo dar por suposto que o massacre das populações indígenas durante a conquista foi muitíssimo maior que o conseguido pelas câmaras de gás. Neste campo, o cálculo matemático não tem o que fazer. O Holocausto só pode ser entendido em tennos qualitativos. Quero dizer: os massacres registrados pela história antiga e moderna se fundavam na existência de certos valores. E, junto com eles, implicavam a atualização de respostas emocionais. Eram eles de fato impensáveis sem tais respostas. Posso estar certo de que esses valores provocam um sentimento de horror-seu reconhecimento nos leva a pensar que faz parte do processo de amadurecimento do ser humano e consciência de que somos repulsivos. Que poderia ser mais repulsivo do que a justificação do massacre das populações indígenas em nome do cristianismo? Basta contudo lerem-se os contemporâneos espanhóis e portugueses para constatar-se que esta era a sua crença. I.e., que a religião não era invocada apenas por cinismo. A propósito do Holocausto, contudo, não havia valores que explicassem o extennínió dos judeus e doutras minorias. Em vez de valores e as respostas emocionais conseqüentes, o Holocausto era produto de um puro cálculo. Implicava o foco de uma razão pura, não embaçada por sentimentos, justificada pelo que se considerava um fato científico-a necessidade de extirpar o mundo das raças "inferiores" . Obedecia-se à razão com perfeita assepsia. Candidatos à câmara de gás eram todos aqueles que a "ciência" detenninara como pertencentes a raças espúrias. O Holocausto era executado por uma razão tão puramente eficiente que os engajados em seu aparato funcionavam com uma despreocupada frieza. (Lembremo-nos do testemunho de Primo Levi, em Se questo e Im ltomo). Com o Holocausto, o Ocidente revela uma das faces de seu estimado logos, de sua louvada razão. Depois de saber-se do Holocausto, em vez de convocarem-se nossas energias para a propagação da razão, recomenda-se a cautela de repensar a própria razão. Neste sentido, o Holocausto não pertence ao passado. É o signo fundamen-
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g
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tal e incômodo de hoje. (Embora meu argumento tenha um desenvolvimento independente do de Lyotard em Le Différend, é aqui evidente a sua concordância). Não estou sugerindo que a razão deva ser repudiada ou posta de lado ou que deva ser confundida com um instrumento necessariamente imperialista. Quero simplesmente dizer que se torna forçoso repensar e reconsiderar seus limites, em vez de apenas aprender-se a "aplicá-la. " Ao lado do Holocausto, é a experiência recente das ditaduras latino-americanas que me forçou a estabelecer uma distância entre minha própria reflexão e o horizonte aberto pela metáfora da antropofagia. Não insinuo que essa pressão tenha atuado de forma consciente; exatamente, ela foi mais poderosa porque não o sabia. Usando uma argumentação semelhante à exposta há pouco, anoto que seria um contra-senso confiar a uma análise estatística a determinação do lugar ocupado pela recente onda ditatorial latino-americana. Ousaria acrescentar que, de um estrito ponto de vista sócio-político, nada parece diferenciar o fenômeno recente da praga usual, na América Latina, dos pronunciamientos. Entretanto, quem quer que tenha vivido sob a ditadura brasileira-aqui singularizada porque foi a verdadeira iniciadora de uma experiência, logo exportada para os países vizinhos -, será capaz de testemunha sua macabra originalidade. O golpe de estado de 1964 fora concebido e executado de acordo com o figurino habitual: a defesa da ordem, de nossas caras tradições e a preservação de nossa firme aliança contra o perigo vermelho. Mas já no início dos anos 70 essa justificação se restringia às falas oficiais. Na vida cotidiana efetiva, a ditadura inovava: a tortura política empregava e desenvolvia uma tecnologia "de ponta", sua sofisticação era acompanhada por uma, digamos, extrema limpeza. A despeito dos casos hoje publicamente conhecidos de sadismo, que se passavam mesmo .em centros "avançados" de investigação, a tortura se tornara uma profissão. Será excessivo dizer-se uma profissão liberal? De qualquer modo, uma profissão complexa, que envolvia vários técnicos, médicos e psicólogos. No fim da jornada de trabalho, como um homem de negócios ou outro qualquer profissional liberal, o torturador lavava as mãos, tomava seu carro e retornava a seu papel de pacífico pai de família. Em suma, em ambos os casos, tanto no Holocausto como nas recentes ditaduras latino-americanas, o massacre e a tortura afastavam o envolvimento emocional, mero resquício de uma conduta romântica e antiquada, e ressaltavam a eficiência da razão técnica. A razão pura se tornara uma razão instrumental. Foi isso um mero acidente, uma perversão eventual, como pensa Habermas, para quem
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7. G. ROSEN. S. 77te quarrel between philo-
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insistir nisso seria uma prova de neoconservadorismo? Ou essa lógica implica converter a razão em fetiche? Os dois fatores acima esboçados explicam por que, embora confesse meu débito à inteligência rápida de Oswald, minha própria interpretação do fenômeno litarário tomou um rumo divergente. Antes de especificá-lo acentuo ainda um dado correlato: Oswald de Andrade estava interessado em interpretar o curso que, de acordo com seu modo de pensar, seria o mais vantajoso para a vida social e cultural brasileira. De minha parte, meu interesse interpretativo não se restringe à situação brasileira e, por outro, não tenho a competência necessária para refletir sobre a cultura como um todo. Se ti ver alguma competência, ela se limita ao objeto literário. Portanto, minha ambição como intérprete é ao mesmo tempo mais ampla e mais restrita. Noutras palavras, o que tenho pesquisado e procurado mostrar em meus últimos livros é o que poderia caracterizar o fenômeno literário face à razão moderna. (Assinale-se a propósito que a atenção exclusiva aos tempos modernos tem apenas uma justificação operacional). Qual seria então o solo da hipótese com que tenho trabalhado? Formulando em palavras bem simples: a razão moderna é fortemente caracterizada por sua incapacidade ou, ao menos, sua inabilidade em reconhecer, i.e., em legitimar aqueles objetos culturais em que ela, enquanto razão, imediatamente não se reconheça. Esse é o motivo por que a razão moderna tem privilegiado a matemática-seu raciocínio dedutivo, o vôo livre do cálculo, não sujeito aos órgãos do sentido e às paixões de seu agente, transforma a pura ciência dos números em uma ciência ideal. A matemática torna-se então privilegiada como o caminho para a descoberta da verdade do objeto. Pelo mesmo motivo, porém, a razão moderna cultiva a suspeita ou mesm.o condena a imaginação. Se a razão está confortável diante dos instrumentos de cálculo, ao invés, sente-se extraviada diante das imagens, cujo desvio da fonte perceptual tende a considerar como desvio da possibilidade mesma de apreensão da verdade. É neste sentido que tenho me empenhado em conhecer melhor o controle moderno do imaginário. Nada de decisivo contudo impede de considerar o controle em uma extensão temporal bem mais ampla. Posso mesmo presumir que a existência, ao menos latente, do controle ocorreu desde que logos concebeu a verdade como uma propriedade do mundo, negando a contribuição do agente humano senão como seu reveladoro Neste sentido, uma primeira manifestação do poder controlador de logos poderia ser vista na vitória de Platão sobre os sofistas. Seria neste ponto produtivo explorar a relação estabelecida por Stanley Rosen entre a condenação platônica da mimesis e a capacidade de sua doutrina das idéias de corroer a aprioridade previamente concedida ao movimento e à mudança. 7 Ou é ainda conce-
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bível estabelecer-se uma relação entre o poder de controle da razão e a passagem da oralidade para a escrita-um tema recentemente sublinhado por E. Haveloc e Paul Zumthor. De qualquer maneira, parece injusto insistir em um tipo de pesquisa que não tenho realizado e que envolve conhecimentos que não domino. Apenas então concluo a sugestão de ampliação da hipótese com que tenho trabalhado, chamando a atenção para a passagem do De anima: Porque as imaginações permanecem nos órgãos do sentido e se assemelham a sensações, os animais em suas ações são amplamente guiados por elas, alguns (Le., os brutos) em virtude da não existência neles do pensamento, outros (Le., os homens) em virtude do eclipse temporário neles do pensamento, pelo sentimento ou moléstia ou sono. 8 Por uma série de fatores que não posso aqui detalhar, nos tempos modernos a imaginação foi submetida a um minucioso escrutínio da razão. Essa indagação alcançou seu primeiro clímax com Pierre Bayle. Do ponto de vista de meu tema, sua obra fundamental é a Réponse aux qllestions d'lln provincial, publicada em 1704. Na Réponse, na qual é explícita a influência de Malebranche acerca da imaginação, Bayle respondia às mais diversas questões. A que maisme importa dizia respeito à feitiçaria e aos processos contra as feiticeiras. Não obstante sua oposição aos católicos, o emigrado protestante recusava-se a endossar a opinião conforme a qual a feitiçaria era a conseqüência criminosa da manipulação exercida pelos padres; Le., Bayle negava-se a interpretar a feitiçaria como a conseqüência de uma credulidade induzida. Ao invés de repetir uma acusação então trivial entre seus companheiros de fé, ao longo de suas reflexões sobre a história da religião, Bayle bravamente acentuava a convergência da religião com a magia e a superstição. Como seria possível para um homem religioso como o autor, que fora perseguido por sua crença e em um tempo em que a dissensão religiosa estava no auge, manter sua fé e a confiança de seus parceiros, ao insistir em que a religião estava sempre sob o risco de contaminação com a magia? Fora do âmbito privado, interessa-nos saber como explicava a existência incessante da feitiçaria. A resposta de Bayle põe em funcionamento o processo contra a imaginação. Assim, com relação aos que eram trazidos aos tribunais, escreve:
C.. ) Estou persuadido que só a desordem da imaginação pode produzir pretensos possuidos (possedés) e que não é
sophy and poetry. LondOll: Routledge and Vegan Paul, 1988.
8. ARISTÓTELES. De
anima. In:-. 1he COIIIplete workofAristotle.l. BARNES, ed., vol. I. Princeton: Princeton University, 1984. p. 429 a 3-9.
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9. BAYLE, P. Réponses aux questions d'un provincial. Amsterdam: 1704. p. 285.
10. Ibidem. Aconcepção de imaginação em que se respalda o autor é melhor compreendida se consideramos a camcterização proposta por Malebranche: "(... ) Esta faculdade de imaginar oua imaginação consiste na potência que tem a alma de se formar imagens dos objetos, produzindo uma mudança nas fibms desta pane do cérebro
quesepodechamarparte principal. visto que ela responde a todas as partes de nosso cOlpo ( ...) MALEBRANCHE. De la recherche de la verité. In: Oluvres. v. I. G. Rodis Lewis ed., com a c0laboração de G. Malbreil.. Paris Pléiade, 1974. Ilpartie,p. 144.
necessário que a fraude ou que o suborno sempre esteja em jogo,9 Sua explicação mais circunstanciada parte da açao provocada pela imaginação, A imaginação produz o terror. Ativado pelo terror e ajudado por um meio social adequado, a credulidade impede o intercâmbio necessário com os sentidos externos e submete a criatura humana ao exclusivo efeito das sensações internas. A imaginação será mais forte do que a vista e pintará seus objetos como presentes, de modo que, ainda que se esteja acordado, acreditar-se-á ver uma coisa, que não está presente aos olhos mas apenas aos sentidos internos. Considerem um pouco o que se passa em nossos sonhos. As mais razoáveis cabeças desvairam ao dormir e se formam quimeras mais bizarras que os loucos, a quem encerramos nos hospícios. Estes objetos dos sonhos parecem como presentes aos sentidos externos: acredita-se que se vêem faunos e sátiros, escutar uma árvore ou um regato falar, etc. De onde vem tudo isso? Da interrupção da ação dos sentidos e de que a imaginação domine. 10 Ora, se recordamos a influência de Bayle sobre Hume e de Hume sobre Kant, podemos melhor compreender a progressão do que tenho chamado a hipótese do controle do imaginário, tal como exercido pela razão moderna. E, se aceitamos, mesmo que em termos provisórios, que a literatura-melhor, o que tecnicamente deftnimos como discurso ftccional-é a forma discursiva por excelência de . manifestação do imaginário, estaremos mais habilitados a captar por que esse controle tem-se exercido sobre a literatura.
Cerca de mil páginas cobrem a trilogia do controle. Seus volumes lidam com temas, problemas e/ou autores situados entre os séculos XVI e XX. Para lhes oferecer uma idéia mais clara de sua disposição, desenhe-se um certo mapa. Dois tipos de controle são descritos. O primeiro, chamado controle religioso, expande-se entre os séculos XVI e XVII. O segundo principia com o Iluminismo e, com maior ou menor resistência, se estende até hoje. É necessário acrescentar que cada um desses tipos é analisado em uma entre três situações: a européia, a hispano-americana, a brasileira. Sendo aqui impossível uma análise menos superftcial, apenas assinalo que não considero que a problemática do controle possa ser devidamente visualizada como uma merá questão
74 - Rev. BrM. til. COOlparada, n2 1 - 03/90 de expansionismo metropolitano. A conseqüência prática dessa recusa faz com que, em cada uma das situações mencionadas, se encontrem mecanismos específicos de resistência ou de cumplicidade com as agências controladoras. Seria excessivamente ingênuo de minha parte se supusesse que os resultados têm a plenitude que desejaria. Reconheço ao contrário que a tarefa implicada pela hipótese do controle de muito ultrapassa a capacidade de um único investigador. 11 A única desculpa que tenho em realizá-la consiste em que, se não a fizesse, ninguém mais poderia corrigi-la. Não é entretanto à impossibilidade pessoal de chegar ao estágio de pesquisa e reflexão necessários que guardo minhas últimas palav-ras~ mas sim ao fato de que tal hipótese tenha ocorrido a alguém que pertence e vive no eufemisticamente chamado terceiro mundo. Ligado a esse fato, gostaria de concentrar minha última reflexão nas possíveis conseqüências imediatas do controle. Elas concernem à reflexão da literatura e a seu ensino. Assinalo as mais importantes. A. Postular que a razão moderna tem domesticado a imaginação implica a oposição imediata à abordagem documentalista, (também conhecida como gênero do testemunho). Tal abordagem pode . ser descrita pelos seguintes traços: 1. Toma-se como incontestável que há obras literárias; Le., considera-se inútil e ocioso a procura de uma melhor demarcação do que a literatura (entenda-se: o discurso ficcional verbalmente configurado) poderia ser; 2. Considera-se que, de uma ou de outra maneira, as obras literárias são explicadas, se não determinadas, pelas condições sociais envolventes; 3. Daí é deduzido que a ênfase na análise social é o modo adequado para captar o significado de uma obra literária. Embora o documentalismo, sobretudo na América Latina, se apresente a si mesmo como uma corrente politicamente progressista, na verdade ele não ajuda senão a manter e a propagar os mecanismos de controle. Convém não esquecer que a primeira função do controle do imaginário consiste em obstruir as alternativas à chamada realidade, Le., ao mundo já existente. B. Do fato de me opor à abordagem documentalista não se deve inferir alguma simpatia pela abordagem textualista ou por sua variante desconstrucionista. A hipótese do controle supõe que a obra ficcional mantém-se em interação. numa interação tensa, com as idéias contemporaneamente em circulação; com essas idéias, as instituições a que se ligam e com a própria opinião pública. Tal múltipla interação não está de modo algum condensada dentro de um texto. Tampouco é melhor visualizada pela ampliação da idéia de texto, que hoje muitas vezes atinge as raias de uma verdadeira metafísica. Confrontar essa interação só é possível pela análise do ficcional dentro da topografia
li. o epílogo de Ludwig Pfeiffer à recente edição alemã do ConITOIe toma mais visivel a necessidade da colaboração de especialistas noutras áreas. Dedicando-se a detalhar a presença do cmtroIe na tradição da
ftlosoflA empirista, implicitamente Pfeiffer assinala a necessidade do desdobramento de sua pesquisa noutras frentes (cf. Pfeiffer, L.: "Nachwort Die Kontrolle des lmaginãren. Suhkamp Verlag, Frankfurt a.M. 1990, 349-361 (Nota à versão brasileita).
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dos discursos de uma época, que concretize as expectativas asseguradas a cada um, sobretudo sem descurar as características do que, então, se tome por o discurso da verdade. C. Parece óbvio que o maior adversário para a fecundidade da hipótese do controle é constituído pela manutenção do princípio de divisão das literaturas de acordo com um mero critério nacional. Essa separação é uma herança da historiografia politicamente orientada do século XIX. Em termos concretos, essa separação tem promovido a progressiva incompetência do especialista em literatura. Conhecer Cervantes, Dostoiévski, von Kleist é uma obrigação que contraímos desde que decidimos estudar a literatura. Se levamos a sério o critério "nacional, devemos estar certos que ninguém lerá efetivamente todos os autores indispensáveis, a exemplo daqueles, porque ninguém, no curso de uma vida, poderá ser ao mesmo tempo hispanista, eslavista e germanista. Além domais, a di visão dos campos literários de acordo com o critério nacional, à medida que engendra a ignorância recíproca, é potencialmente mais danosa para as literaturas dos países periféricos do que para a dos países metropolitanos, que, em princípio, sempre atrairão maiores contingentes de interessados. Em suma, ao contrário do que pensa o nacional-populismo, o isolamento nacional das literaturas só ajuda a preservação do status colonial.
12. Não estou pensando na LiteratuIa Comparada como um simples ato de aproximar autores pe:rtencentes a duas OU mais literaturas nacionais, i.e., como uma pseudo-Grenzwissenschaft, mas sim como ocasião de apagar os substancialismos nacionais redivivos, em favor de uma efetiva abordagem teórico-analítica do discurso fic:çional verbabnente realizado.
A hipótese cujos primeiros passos mostrei na trilogia do controle pode de fato progredir apenas através de uma efetiva abordagem comparativa. 12 Creio que só deste modo a reflexão sobre a literatura, desenvolvida a partir de um lugar marginal como o Brasil, pode superar seja a atitude colonialista, seja o complexo do colonizado. Stanford: outubro-novembro, 1989
HISTÓRIAS DO BRASIL RaúlAntelo
Ao concluir a primeira versão de Macuna(ma, em 1926, Mário
de Andrade redige mn prefácio em que tenta teorizar a falta de caráter do brasileiro mediante a idéia de uma identidade nacionallaxae em proc~. Para ilustrar seu mciocínio exemplifica, dizendo que os franceses têm caráter e, assim, os jorubas e os mexicanos. Curiosa fonnulação. Anacionalidade não está na totalidade (o brasileiro) mas sim na particularidade (o joruba) operação que, cindindo Estado e Nação,funcionacomoantídoto contra o Novo e platafonna do Moderno: a Nação é maior que o Estado, a parte mais do que o todo. Em oposição às teorias integrativas, Mário e, com ele, os modernistas estão elaborando uma teoria pluralista do nacionalismo. Contm a fusão e a mescla, o mosaico. Contra o amálgama, a tmma. A nação é uma tradução. Em todo caso, a tarefa pressupõe um desafio, o de harmonizar a pluralidade de vontades particulares, infmitas por definição, com uma vQntade coletiva que se quer reguladora. É o risco de confrontar a heterogenidade do social com a homogenidade do oficial, a legitimidade da participação versus a organização dessa representatividade. Não menos contraditória se nos apresenta a tarefa de os modernistas se questionarem pela identidade, que é sempre histórica, numa época que parece ter abolido a História. Melhor dizendo: contraditória para a concepção de tempo com que, até bem recentemente, lemos o modernismo no Brasil-tempo eufórico, lançado ao futuro. Oswald de Andrade, em grande parte, preparou essa leitura quando ao concluir outro prefácio, o de Serafim Ponte Grande,
Histórias do Brasil -
I. LECHNER, Notbert. Un desencanto lIamado posmodemo. In: CALDERÓN, Fernando. lmágenes desconocidas: la modemidad en la encrucijada post-modema. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 1988. p. 131.
2. "The avant-gardes certainly declined ali independence on the authority of history, but theirs was not antihistoricism in principie, but rather integral historicism because it suggested a radical citicism of the past and the affmnation of complete current reality - thus historical essence - of the present and prophesized, planned future". Cf. ARGAN, GiulioCarlo. HistoryandAntihistory. Milano, n. 125, dez. 1985, jan. 1986, p. 54. 3. Cf. VATTIMO,Gianni - El fin de la modernidad: nihilismo y hennenéutica en la cultura posmoderna. Trad. A. Bi-
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afirmou taxativo: "o meu relógio anda sempre para a frente. A Historia também". Se, de fato, a vanguarda se quer anti-tradicional, desperta perplexidade que a identidade moderna se elabore olhando para trás. Osório César, acompanhado por Tarsila do Amaral, a musa antropofágica oswaldiana, percorrendo a União Soviética, Onde o proletariado dirige (1932) não se espanta ao repetir uma versão evolucionista dos "fracassos" do cubismo e do suprematismo para, então, legitimar um oxymoron: o ideal de um classicismo de esquerda, que vê o moderno como sinônimo de clareza, harmonia e simplicidade. Essa linha de análise, que acata o passado no que ele tem de monolítico, como fardo que se transporta e transmite, antepõe a unidade social à controvérsia política, o que acarreta uma drástica redução das alternativas culturais a uma única versão linear, da qual foram expurgados todos os elementos descontínuos e conflitivos. Como analisa Norbert Lechner, o resultado é uma identidade, em primeiro lugar, fictícia, porque baseada em um passado artificialmente homogeneizado a fim de legitimar o presente e, além do mais, fechada, com pouca disponibilidade de modificar-se frente aos estímulos do processo social. I Creio, entretanto, que nossa leitura do modernismo hoje tende a ver, nas diversas "Histórias do Brasil" armadas por esses anos de crise, uma construção retrospectiva que revela, com variados graus e matizes, a pungência de um historicismo radical, para retomar a expressão de Giulio Carlo Argan. 2 Com efeito, as vanguardas históricas, em seu esforço por ultrapassar a alienação, entendida como reificação e entorpecimento da subjetividade, não raro propiciaram uma reapropriação do passado, muito embora ela não passe, para críticos severos da modernidade, como Gianni Vattim0 3 , de mero niilismo reativo. Em todo caso, os modernistas operaram na convicção de que o moderno era o outro, uma outra cultura encerrada nas tramas da linguagem e contida nos traços, nas marcas de nossos relatos de fundação. A teoria de uma tradição intermitente desdobra-se, em conseqüência, em dois planos, enquanto teoria de um texto intermitente e teoria de um nacional intermitente. Neste sentido, a intermitência se traduz como interremetência discursiva e interferência textual. Na mesma linha de raciocínio, a antropofagia oswaldiana, ao definir a identidade como diferença, nos mostrou que a identidade é uma urdidura de narrativas alheias, em que o próprio se deixa ouvir, em surdina, como declínio do ser ocidental e preparação de uma humanidade ultrametafísica. Numa das colaborações para "O Mês Modernista" , em dezembro de 1925, Prudente de Moraes Neto desentranha uma "Historinha do Brasil do diário de um Tupiniquim" em que, com deliberado
78 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 -03/91 anacronismo, o indianista observa, em pleno século 16, que a pro- xio. Barcelona: 1986, p. 30. priedade é um roubo, idéia, como sabemos, desfraldada como bandeira republicana pelo Chevalier em La Philosophie dans le boudoir 4. EtnMarcoZerodeAn(1795). A própria Revista de Antropofagia irá, oportunamente, recu- drade (Supl. Lit. de o Estado de São Paulo, 24 perar o Marquês de Sade perguntando "se é justo a lei que ordena ou... 19(4) Décio Pigna_ àquele que nada tem o respeito da propriedade daquele que tem tarijádestacavaaimportudo", o que ilustra o axioma que Oswald lançara como pedra do pemda tância dessa idéia, tecupor Haroldo de 4 direito antropofágico: a posse contra a propriedade. Mas para enten- Campos em "Uma poc;. der a reapropriação como plexo de operações convergentes, convém . tica da radicalidade", prefácio às Poesias Reunão esquecer aqui uma saborosa carta de Mário ao mesmo Prudente nidaç de Oswald, de Moraes, anterior à colaboração nóA Noite, em que o autor de (Obras Completas. Rio de Janeiro: Civilização Macunaíma confessa ter tido vontade, muitas vezes, de desapropriar Brasileira, 1972, vol. CertoS fedivers (a grafIa é de Prudentico, acatada por Mário) quem VII, p. xxxii) e, maisreobserva: "Aliás nos 19 Premes Elastiques tem um exemplo disso não centemente,porSilviano Santiago em As escrituse lembra? Não sei que outro, parece que dadaísta, Aragon ou Sou- tas falsas são; 34 /etras, 2 pault, tem também um poema desses. Eu, duma feita fIz um lindinho nset. ,RiodeJaneiro,n.S-6, 1989, p. 34. poema dadaísta 'Parlons Peinture' , copiando na íntegra o sumário de um número do Bulletill de la Vie Artistique que não sei quem me mandou de Paris. Procuro agora a contraprova que guardei porém só encontro um pedaço. Respeitei tudo, até a pontuação. Veja si não é gostoso mesmo de ironia, e de seqüência lógica na simultaneidade. Parlons Peinture EtWatteau? Le 'Sardanapale' entre au Louvre
L' Art Colonial à Marseille Les disparos La Saison d'art à Beauvois L' Art aztêque precolombien Pour le Salon d' Autumme Le Courier de la Presse La Curiosité. lei. .. ... et d'ailleurs Paroles. ,,5 Pois é esta a estratégia de Oswald de Andrade em sua "História do Brasil": defunção da obra como fIm transcendente e do artista como missionário; liberação de uma escritura que explora ao infInito a fragmentação de linguagens no espaço anti-canônico do arquivo. O texto passa a funcionar como memória contra-discursiva que se dobra, desdobra, redobra no sistema vertical e vertiginoso dos espelhos, linguagem que recusa, indefInidamente, a barreira, ao abrir, sem
5. KOIFMAN, Geotgina - Ca110Sde MáriodeAndrade a Prudente de Moraes, neto: 1924-1936.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 155156.
Histórias do Brasil 6. Cf. FOUCAULT, Michel Le langage à l'infini. Tel Que/, Paris, n. IS, 1963 e "La pensée du dehors", Critique, Paris, n. 229.jun. 1966.
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cessar, um espaço onde a linguagem é análoga a si mesma.6 Autêntica irrisão de indicadores, a "História do Brasil" de Oswald afirma um lugar atópico, que acolhe os textos passados num volume impossível, irrepresentável, abjeto, que vem, por sua vez, acrescentar seu sussurro sotto voce na junção de tantos outros volumes, passados, futuros. lci et d'ailleurs-paroles. É esse o trabalho de nomear o inominável, de falar pintura. reverso radical do Itt pictllra poiesis. Um texto sem voz, como a ""História do Brasil" , implica um espaço sem dimensões, onde a linguagem, superposta a si própria, desvenda uma abismalidade secreta: As fontes que há na terra sam infmitas Cujas águas fazem crescer a muitos e muy grandes rios Que por esta costa Assi na banda do Norte como do Oriente Entram no mar oceano.
o poema de Oswald duplica uma passagem do capítulo 11 de uma outra história, a História da Província de Santa Cruz (1576), "em que se descreve o sítio e qualidades desta província" . A situação é a citação, que se desdobra, diante de nós, em duas linhas: de um lado essa voz nomeia; de outro, ela torna visível. O recurso define, portanto, um "systema hidrographico", ou antes, a grafia de um sistema. A literatura, com efeito, é infinita. Ao recuperar as descontinuidades-do texto, da tradição, da sociedade-o trabalho da linguagem se assemelha a uma escansão do texto da memória, ou a uma pontuação errática do sublime. Tomemos, por exemplo, "salubridade", um dos poemas antecipados pela Revista do Brasil, em outubro de 1924: o ser ella tam salutífera e livre de enfermidades Procede dos ventos que cruzam nella E como todos procedem da parte do mar Vem tam puros e coados Que nam somente nam danam Mas recream e acrescentam a vida do homem. " A (máxima) imitação de Gandavo pode nos persuadir sobre a (nenhuma) transformação do texto segundo. Entretanto a cópia de Oswald marca a apropriação em deslizamentos sutis, erros da História, que manifestam outra verdade, outro saber. Assim, a salubridade modernista deriva dos ventos que cruzam a terra-que a atravessam em toda direção varrendo-a a contrapelo. Masem"Gandavo lemos que ela "procede dos ventos que cursão nella"-que correm por deter-
80 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, fi! 1 - 03/91 minados canais conhecidos, pré-determinados. Os ventos cursivos originais se insubordinam na recorrência disseminada que atravessa o texto da vanguarda. E ainda: eles "vem tam puros e coados", nos diz Oswald, que são muito benéficos. Porém Gandavo limitara-se a dizer, especularmente, que os ventos ventam, "ventam puros e coados". &ta potencialização da linguagem estabelece uma sorte de princípio de não relação entre as formas da expressão e as formas do conteúdo. Entre o que Gandavo viu e o que Oswald disse, detectamos uma radical heterogeneidade e, no entanto, uma mútua pressuposição' que nos demonstram o anisomorfismo dessas duas formas, diferentes em natureza e função, porém, marcadas pelo avesso da crença ingênua: o dizer é superior ao ver porque a essência da experiência se evaporou. Esses mesmos princípios de heterogeneidade, pressuposição e anisomorfismo reiteram outra estratificação vinculada à prinÍeira: um princípio de não relação entre o que se lê e o que se pensa, entre saber e poder. Uma leitura filológica destacaria, principalmente, o que estes poemas nomeiam, dissimulando a mudança de funções que acarreta a citação diferida. O sucesso dessa leitura radica, justamente, em anular as distâncias e interiorizar o modelo. 7 Entretánto, creio que pode ser mais rendoso observar o que estes poemas deixam ver nos descompassos arritmicos que pulsam em seu vazio. Para início de conversa, Oswald de Andrade, ao abrir mão do contínuo, afasta-se da concepção de experiência como superfície: a história, fruto da aceleração de leituras, é antes interfície. Indeterminando textos e contextos, passados e presentes, a História do Brasil de Oswald nos convida a ler o presente como se fosse passado, o contexto como se fosse texto, atentando, em todo caso, para aquilo que não foi observado: o tempo perdido (memória ou utopia) visto como fundamento da produção de imagens e ficções. A meio caminho entre o cartesianismo, para o qual o espírito é uma matéria que pensa, e o proustismo, que vê no espírito uma forma que dura, a antropofagia concilia ambas as posições, afirmando que a nossa história pensa, ou revelando, como o quer Virilio, que a primeira produção da consciência é a própria velocidade do processo de mediação interlinear, de tal modo que a velocidade pode ser considerada, ao mesmo tempo, uma idéia produtora de efeitos e uma idéia anterior à própria idéia. 8 Para esse conceito há um nome: intermitência, dobra. Duas constataçõés se impõem. A primeira é que a dobra gera a forma e a História do Brasil se deixa contar apenas graças à elipse. A História, impregnada de ficção, reivindica seu direito ao esquecimento. A segunda constatação é que a dobra destaca a matéria. A História do Brasil estrutura um campo em que diversos agentes (os cronistas, religiosos e profissionais, os políticos, os escritores e an-
7. ApartirdotIabalhode cotejo empreendido pelo Profl Dilea Zanotto Manfio pam a edição de Manifestos poesia de Oswald de Andrade, coordenada por Jorge Schwartz (a sair na coleção Arcbives da UNESCO), é possível c0mprovar que "a descoberta", "os selvagens" ~ "pri_ meiro chá n e "as meninas da gare" surgem da Carrade Pero ~de Caminha ao EI Rei D. Manuel (p. 24, 27, 30, 36 da edição de (900); "hospedagem" cita o prólogo ao leitor da História da Provlncia de Santa Cruz de Gandavo; "corografia", "salubridade" e "systema hidrographico" provêm do 11 capítulo dessa obra, como já ficou registrado, ao passo que "país de ouro" é um fragmento do capítulo IV, "Da Govemança que os moradores destas capitanias têm nestas partes e a maneira como se hão em seu modo de vida"; "natureza morta" e "riquezas naturais", por sua vez, aproveitam pas-
e
Histórias do Brasil sagens do capítulo V, "Das plantas, mantimentos e frutas que há nesta província", enquanto "festa da raça" cita a descrição da preguiça que se lê no capítulo VI de Gandavo: "Dos animais e bicp.os venenosos que há nesta provincia". A Histoire de la
Missioll des Peres CapucillselJL'isledeMaglJalJ et terres Circullvoylles é a matriz de "a moda", "cá e lá" e "o pais" (capitulos XLV, XLVI e X). "'Paisagem", nas aves" e "amor de inimiga" são extraidos do primeiro livro da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador (capitulos VI, X e XVII) enquanto "prosperidade de são paulo" acata a descrição do capitulo 11 do segundo livro dessa mesma Hist6ria. "Carta" lirnita-se a introduzir um verbo, "partirei", à declaração de Fernão Dias Paes, que se lê na carta dirigida a Bernardo Vieira Racasco em 20 de julho de 1674. "Civilização pernambucana" traz ao presente o que Frei Manoel Calado do Salvadorregistrou em imperfeito na abertura de
O Valeroso Lucidello e TriumpllO da Liberdade. "Vicio da fala" retoma a
Defillição da amizade... de 1816 de J. M. P. S., lida em Mosaico e Silva de Carnilo Castelo Branco. Por último, "carta ao
patriarca .. é uma paráfrase de uma carta de D. Pe-
dro I. Agradeço a Dilea Manfio a cessão dos originais para confronto.
8. Cf. VIRILlO, Paul. Estética de la desapariciÓIl. Trad. N. Benegas. Barcelona: Anagrama, 1988. p. 23. O conceito de dobra aponta, justamente, essa pluralidade. "Le multiple, ce n'est pas seulement ce qui a beaucoup de parties,
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tropólogos, viajantes e aventureiros, enfim, os boêmios) se valem de linguagens múltiplas para cercar, contornar, contrair e encrespar o tempo. Essa operação define uma cultura sem atributos: nacional. A intermitência da dobra separa a interioridade da exterioridade, indefinindo, conseqüentemente, qualquer superioridade entre o imposto e o exposto. As flexões, portanto, e não o contínuo, definem o objeto. Um texto (a História), uma nação (o Brasil) nada mais são do que a maneira em que uma matéria se dobra, donde seria possível dizer que, se o texto moderno se define como uma dobra infmita, uma intermitência constante, cabe pensar a literatura em função desta caracterização, de fundo barroco, como uma instituição revogável. A História do Brasil de Oswald de Andrade define, por extensão, uma historia que tanto se conjuga no passado como no presente, assumindo, além do mais, um espaço nacional que se confunde com o universal. É a interfície dessa História a que nos permite ler em filigrana os riscos de outros projetos infames que ela torna visíveis. Vale, então, para a leitura de Oswald, a análise de Beatriz Sarlo aplicada às ficções de Borges: elas traçam uma história de relações desiguais com os textos, com as línguas, com as culturas, com outros escritores. Nelas podemos ler um peculiar debate com o real, não nos moldes que vêem a imitação descansando na semelhança mas, ao contrário, na esteira dos que interpretam a mimes e como máxima dessemelhança. As soluções ficcionais desse debate serão as hordas borgianas e as dobras oswaldianas, pensadas ambas como espaços apropriá veis e não como territórios a adquirir sempre conforme a lógica do posseiro-aquele que sulca um terreno virgem, ou abandonado. A análise de Sarlo coincide, aliás, neste ponto, com a de Roberto Schwarz. 9 Eles nos mostram que as margens borgianas e os lapsusoswaldianos configuram uma resposta imaginária aos fantasmas emergentes da mudança. Bordas e dobras são barras: limites e julgamentos de valor, contenção e expansão das formas. Situar o Brasil na literatura, citar a literatura no Brasil. Com História do Brasil, Oswald busca afastar-se da razão e do dogma e antecipa, por meio desse desvio, o que lemos no Manifesto Antropófago: contra a memória fonte do costume e pela experiência pessoal renovada. Desviando o lirismo ao ensaio, a máscara de Oswald superpãe-se à de Borges: reflexão sobre uma modernidade marginal sem culpas, sobre a lateralidade da persona (o literal) e da própria instituição (o literário). Lemos em Oswald (porque lemos em Borges) que pensar é esquecer diferenças, abstrair, generalizar. Quem inventa o Brasil (descobre pela busca e busca pelo descobrimento) se coloca nos antípodas de Isidoro Funes para quem só existiam detalhes imediatos, verificáveis. Pensar, completaria Pierre Menard, não é um ato anômalo mas a normal respiração da inteligência.
82 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, 01 1 - 03/91 Relembrar com ingênuo estopor aquilo que o doetor universa- mais ce qui est plié de beaucoup de façons", lis já pensou é confessar nossa barbárie e do que se trata ao escrever diz Deleuze em Le pU. a História do Brasil não é de acumular uma infinita mixórdia de textos Leibniz et le baroque (Paris: Minuit, 1988. p. e estilos, entre os muros de uma "biblioteca nacional", o que só 5), retomando linhas de preservaria os privilégios da "barbárie antiga". Ao contrário, o ob- tlabalho de Foucault já apresentadas por ele jetivo para Oswald como, mais tarde, para Benjamin ou Borges, será mesmo: Foucault. 'Iiad. cunhar um novo conceito de barbárie, um conceito positivo de bar- I. V. Perez. Buenos Aibárie, que trabalhe com a elipse e com o menos para libertar o homem res: Paidós, 1987). de toda experiência. Saturado e exausto de saberes, só lhe resta ao 9. Cf. SARLO, Beatriz. novo bárbaro aspirar à iluminação de uma matéria digna e decente UI/a modemidad periféextraída dos escombros do antigo saber. Ele não age mais por acumu- rica. Buel/Os Aires 1920 y 1930. Buenos Aires: lação. Para isso estão os Elysio de Carvalho 10: "os homens que Nueva VlSion, 1988. p. sabiam tudo (e que) se deformaram como babéis de borracha. Reben- 43-50 e 206-215, bem corno o ensaio que retotaram de enciclopedismo" . Em seu lugar síntese, invenção e surpresa tna algutnas dessas para os novos bárbaros, pitorescos e crédulos. A intermitência ganha, idéias, "Borges y la liteatgentina ": Punlo assim, uma nova tradução: irreverência. Nas dobras irônicas de Os- ratura de vista, Buenos Aires, v. wald, a história perde a vergonha porque sente que não há garantia 12,n2 34,julJset. 1989,p. Ver, ainda, de vida futma. As estratégias de. redundar e variar as versões da 6-10. SCHNVAJtZ,Roberto.A história são fundamentalmente ambíguas: elas mostram tanto um carroça, o bonde e opoepaulatino processo de secularização, quanto a descoberta de uma ta tnodemista. In:-. Que horas são? São Pauimortalidade potencial no homem moderno. É nessas dobras que a lo: Companhia das leHistória do Brasil ganha corpo. "A história, prolongando-se na dupla tras, 1987. p. 11-28. infinitude do passado e do futuro, pode assegurar imortalidade SQbre 10. Entre o Manifesto da a terra de maneira muito semelhante àquela em que a polis grega ou poesia pau brasil, publia república romana haviam garantido que a vida e os feitos humanos, cadoetntllllIÇo,eospoede História do Brana medida em que desvelassem algo de essencial e grande, recebiam tnaS sil, de outubro, tetnos, uma permanência estritamente humana e terrena neste mundo. A em junho de 1924, um texto de Elygrande vantagem deste conceito foi o estabelecimento, pela dúplice sintomático sio de Carvalho, A expeinfmitude do processo histórico, de um espaço-tempo em que a noção dição de Cabral e o desmesma de ftm é virtualmente inconcebível, ao passo que sua grande cobrimento do Brasil, publicado pela América desvantagem, em comparação com a teoria política da Antigüidade, Brasileira, onde se reparece ser o fato de a permanência ser conftada a um processo fluido, senha o livro de laytne Cortesão dotnesmo títuem oposição a uma estrutura estável. .. 1i lo. Algo semelhante se Dobra após dobra, o texto de História do Brasil vai construindo pode constatar nutRa ourevista vangwudista, uma abismalização da Linguagem (e, conseqüentemente, dos valo- atia cubana Revista de res) que não equivale a absenteísmo. É bem verdade que Oswald de Aval/ce. que reproduz conferência de José Andrade, como doublê de investigador/narrador histórico aparece urna M'ChacÓlly Calvosobre diante de nós liberado de preconceitos e vínculos com identidades o documento e a reconsherdadas (sociais, sexuais, nacionais). No entanto, não é menos certo trução histórica, Ctn seu mÍtnero 31, de fevereiro que a estratégia de montagem dos fragmentos não se confunde com de 1929. Nemsenlpteos essa objetividade de eunuco de que falava Droysen. 12 Os textos própriOStnodemistaspodiatn separar a biblioteca transcritos por Oswald conservam, de fato, momentos aleatórios e do atquivo, o pleonastno isolados de um processo contínuo, pautado por intercâmbios de pres- da elipse. tígio e poder muito precisos. Entretanto, esses textos, dobrados pelo
Histórias do Brasil 11. ARENDT, Hannah.
Entre o passado e o futuro. TrIlei. M. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, p. 109. 12. DROYSEN, Johann Gustav. Histórica: Lecciones sobre la Enciclapedia y metodologia de la Historia. Trad. E. Gatzón Valdés e Gutiéttez
Girardot. Barcelona: ALfa, 1983,p. 354.
13. Tzvetan Todorov associa o relativismo IBdical à obra de Montaigne, um dos mentores da An-
tropofagia com seu ensaio sobre os canibais. Cf. Le croissement eles cultures, Communicatiorrs, Paris, n. 43, 1986, p. 5-24. É o que Adorno já observara: "los partidarios de la tolemncia unit,ltista estarán así siempre inclinados a volverse intolerantes con l0do grupo que no se amolde a ellos". Cf. Mínima moralia. Trad.J.Mielkd. Madrid: Taurus, 1987, p. 102. 14. CAMPOS, Haroldo de. Para além do princípio da saudade. Folhetim, 412, São Paulo, 9 dez. 1984, p. 6-8. Em tradução de N. Perlongher foi incluído em: VVAA Diseminario. La desconstrucción. Otro de&cubrimento de América.
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mútuo jogo de saber e pensar, não são os fatos eles próprios mas uma versão deles, uma reflexão sobre as possibilidades e impossibilidades da representação, desenvolvida de acordo com a estratégia da apropriação. A lateralidade do procedimento nos mostra até que ponto podemos conceber a literatura de Oswald de Andrade como uma literatura que elabora a fratura por meio da própria fratura. É uma literatura da falta que se constrói mediante ausências reais ou imaginárias. Sintomático observador que um livro que se "abre" com a História do Brasil se Uencerre" com uma impossível declaração de bagagem: a de ter contrabandeado "uma saudade feliz/de Paris". Embora o princípio de não relação entre o que se vê e o que se diz produza saudade, os textos de pau brasil rompem com a imediatez da memória (a saudade infeliz, a transposição mecânica, a repetição) e colocam, em seu lugar, uma confiança fundacional, feliz, na diferença, na mescla, no corte e na montagem. Na •'história pátria" do aluno de poesia Oswald de Andrade, Uas barquinhas ficam/jogando prenda coa raça misturada/no litoral azul de meu Brasil". Poder-se-ia detectar nesta ideologia da mescla um princípio de tolerância e relativismo radicais que, nesse extremismo, nos revela um viés contraditório: o de acolher as diferenças como equivalências, com a ressalva de preferir uma a todas as outras: a própria tolerância. A mescla não deve, portanto, ser entendida como uniformização, o que seria um traço alarmante de totalitarismo, mas de realização do geral na conciliação das diferenças. 13 Haroldo de Campos reserva para esse processo de restauração edênica o termo apokatástasis. Em épo~as de crise, ele argumenta, todo homem é filósofo ou tradutor porque lida com a pluralidade para construir um sentido. Já nas eras de reconciliação, quando todos os homens pensam e traduzem por si próprios, a apokatástasis permite ler a verdade nas entrelinhas das escrituras. Nesse sentido, teríamos que ver, na História do Brasil, uma profanação da unicidade ilusória dos símbolos que nos eleva a uma compreensão da história como upluralidade sufocada e (d)a historiografia como instância de ruptura e possibilidade de tradução transgressora.,,14 Um dos poetas admirados por Oswald, Mutilo Mendes, praticou, nos anos 20, freqüentes faiscas de definição que tentaram libertar o plural pela via de uma tradução travessa. Baste o exemplo de um poema mínimo, "Froide", que só diz "O bebesinho olhou pra bunda da ama seca" . 15 Podemos ler esse t~xto como uma versão elíptica e anti-retórica daquilo que, em Gilberto Freyre, se transformaria em complacência patriarcal com uma versão do passado. A seu modo, Murilo, desautomatizando uma percepção já institucionalizada, alarga e transforma o conceito de subjetividade, tramando seu texto com discursos dissímeis, onde alternam o letrado e o iletrado, o vernáculo
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e o estrangeiro, o arcaico e o contemporâneo. Em mais de um ponto, portanto, as Histórias' do Brasil de Oswald de Andrade (1924) e Murilo Mendes (1932) convergem. Ambas dividem a ambivalência de atração e recusa do mundo satirizado. 16 Ambas ilustram a secularização de práticas que não abdicam, no entanto, de aspirar à etemização. Estes movimentos encontrados nos falam de relações tensas entre a obra e a duração e talvez fosse o caso de relembrar a observação de Adorno: a questão da duração toma-se aguda só quando a própria duração é problemática e as obras de arte, sentindo sua fragilidade, se aferram a ela com toda força. "Hoje as obras de arte negativas parodiam sem exceção o trágico. Mais que trágica, toda 'arte é triste, mesmo aquela que se julga alegre e harmônica. ,,17 Quando Murilo Mendes publica sua História do Brasil. alguns leitores consuram esse retomo do mesmo como mera escória vanguardista. Na resenha da revista base. o crítico julga: "eu tenho a impressão de que esse livro saiu fora da época. hoje não se acha mais graça nessa negligência otimista de tratar coisas sérias, que foi adorável um instante só, ou (sic) instante de 'pau brasil'. houve um gasto inútil de faculdades poéticas no livro. dá-nos a impressão de que escrevendo 'história do brasil' murilo mendes expôs-se a um grande ridículo-quis fazer um livro engraçado, satirizante e não fez. ,,18 No movimento entre saber e poder sustentado pelas vanguardas, o poema piada, manifestação antiartística que flexiona a rigidiz da representação, configurou-se como momento antitético da ilusão histórica, confirmando o axioma adomiano: a arte é magia liberada da mentira se ser verdade. As Histórias do Brasil (e, particularmente, a de Murilo Mendes muito mais do que a de Oswald de Andrade) interiorizaram a transitoriedade como princípio corrosão, solidário com o efêmero das formas, chegando a conceber a literatura como autoconsciência da temporalidade. Assim fazendo, um e outro abismaram.:.se no objeto. Lamartine Babo arremataria o lance em sua História do Brasil (1934): "Quem foi que inventou o Brasil?" Que ficção é essa que encontrou na memória, um árduo trabalho de heuresis, a repetição do sempre igual? A apokatástasis é um retomo do mesmo tempo, perdido nos fatos ou na ficção. É uma constelação: dobras em obra. A idéia de constelação se traduzia, para Adorno, na forma de uma enciclopédia que expusesse de forma descontínua e assistemática aquilo que a unidade da experiência organiza como constelação de sentidos. Prefigurando o que mais tarde exporia em "Las versiones homéricas", Borges escreveu em 1926 que existem duas maneiras de traduzir: Una practica la literalidad; la otra.. la perífrasis. La primera corresponde a las mentalidades románticas, la segunda a las
Montevidéu, 1987.
XYZ,
15. MENDES, Murilo. Originais Murilo Mendes. Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo (OVA 177-182, pastas 43-44).
16. Cesare Segre, Affonso Romano de Sant'Anna, boa parte da critica do modernismo têm destacado as retomadas da "Canção do exílio". Não se ttata de caso isolado. Confronte-se os "meus oito anos" do aluno de poesia OswalddeAndtade com os "Teus dezoito anos de exílio", que Murilo Mendes publicou no O Estado de Minas. em que o texto se descontextualim em função da perda da ingenuidade: "Minha terra temmulheresIde curvas harmoniosas/de cabeleiras pesadas/de olhos redondos, escurosJmulheres apaixonantes/que as vozes cantam no ar./Nenhuma dessas mulheres/me comove como tu/porque à mulher de agora/a de outrora ajuntei/Não permita Deus que morra/sem pro teu corpo voltar". Embora nenhuma das paródias integre as respectivas Histórias do Brasil. ambas conlpartilham seu espírito ineverente. 17. ADORNO, Theodor W. Teoría estética. Bar-
celona: Orbis, 1983. p. 46. 18. e. a. m. - história do brasil in base, a.I, nO I, (19321) p. 21.
Histórias do Brasil- 85
clásicas. Quiero razonar esta afinnación para disminuirle su aire de paradoja. A las mentalidades clásicas les interesará siempre la obra de arte y nunca el artista. Creerán en la perfección absoluta y la buscarán. Desdefiarán los localismos, las rarezas, las contingencias.( ... ) Inversamente los románticos no solicitan jamás la obra de arte, solicitan el hombre( ... ). Esa reverencia deI yo, de la irremplazable diferenciación humana que es cualquier yo, justifica la literalidad en las traducciones. Además lo lejano, lo forastero, es siempre belleza. Novalis ha enunciado con claridad ese sentimiento romántico( ... ). Gustación de la lejanía, viaje casero por el tiempo y por el espacio, vestuario de destinos ajenos nos son prometidos por las translaciones literarias de obras antiguas: promesa que suele quedarse en el prólogo. El anunciado propósito de veracidad hace deI traductor un falsario pues éste para mantener la extrafiez de lo que traduce se ve obligado a espesar el color local, a encrudecer las crudezes, a empalagar con las dulzuras y a enfatizarlo todo hasta la mentira.
19. BORGES, Jorge Luis - Las dos manetas de t1'3ducir. La Prellsa. Buenos Aires, 1 ago 1926.
20. MENDES, Murilo. Formação de discoteca XII. Letras e Artes. Supl. de A Ma,úlÕ, Rio de Janeiro, 20 OUI. 1946.
Oswald de Andrade combina, de fato, ambas as estratégias: potencializa a literalidade que é sempre lateralidade para obter outro discurso e desautomatiza a veracidade por meio da máxima aderência. Oswald ensaia uma classicidade contemporânea fingindo fidelidade romântica. Borges e ele reencontram-se, então, num esforço semelhante de perífrase: "en cuanto a las repetidas versiones de libros famosos que han fatigado y siguen fatigando las prensas, sospecho que su finalidad verdadera es jugar a las variantes y nada más. A veces el traductor aprovecha los descuidos o los idiotismos deI texto para verle comparaciones. Este juego podría harcerse dentro de una misma literatura iA qué pasar de un idioma a outro?" 19 Todo texto redistribui a história: ele é o campo dessa circulação. Quando em 1956 Murilo Mendes recolhe o conjunto de seu Poemas, exclui a História do Brasil porque, destoando do conjunto, desequilibraria o livro. Expurga, assim, um aspecto da obra de Oswald de Andrade: a lógica (romântica) da superação, do desenvolvimento e da inovação. Age, portanto, em conseqüência com o que observara dez anos antes; que o moderno não se opõe ao clássico: "a reprodução infindável de modelos, mesmo ilustres, conduz, sem dúvida, a um esgotamento do interesse artístico que compromete a própria vitalidade das obras de arte, incapazes depois de períodos de repetição de produzirem a chama necessária à circulação da vida espiritual" .20 Murilo trai Oswald para ser-lhe fiel. Continua, como o poeta pau brasil, um tradu dor mas desconfiará, crescentemente, da verdade como construção inter-
86 - Rev. Bras. de Lil. Comparada, n
l
1 - 03/91
subjetiva. Se antes do presente desajustamento entre o que se vê e o que se diz, entre o que se lê e o que se pensa, houve alguma possibilidade de comunicação-homogênea, isomorfa-ela só pode ter ocorrido com Deus; vale dizer que as coisas particulares são teofanias, que camuflam, por trás delas, a divindade (o real), que não sendo substância, é, além do mais, incompreensível para si mesmo e para todo observador. Esse Deus é Nada e Ninguém. A esse processo, anunciado por Escoto Erigena, Borges preferiu chamá-lo "magnificação até o nada" .21 É por essa via que Murilo Mendes e atrás dele os concretistas intuirão uma saída para a modernidade: não mais conforme a lógica evolutiva de um novo que caduca e é substituído por outro novo perecível, num movimento constante que preza a atividade ao passo que a anula, mas de acordo com uma estética da etemização, que afirma a exautão das formas. Schopenhauer, nos relembra Borges, escreveu que a história é um sonho interminável, fator de perplexidade para os homens. Nesse sono há formas que se repetem e talvez só haja formas que se repitam. Elas contestam a literatura como missão e conformam a história do Brasil como campo de transmissão, onde a intermitência, a interferência, a irreverência contraem e distendem a ordem plural dos discursos, apontando para uma concepção retórica da verdade por meio da qual o texto é história e a história é texto. O leitor entrometido ajusta-se assim à defmição de Dilthey, citada por Peter Bürger: quem pesquisa a história e quem faz a história são um mesmo sujeito. A História do Brasil mostra-senos, a rigor, como um livro impossível porque as linguagens que o tramam debatem-se entre uma nominação falsamente caligráfica, que se afasta do já dito porque o discurso não mais representa, e uma nominação perversa, que exaspera aquilo que ainda não possui significado.
21. BORGES, Jorge Luis. De alguien a nadie. SIlT; Buenos Aires, n. ISS, mar. 1950.
POSTMODERNITY AND TRANSNATIONAL CAPITALISM IN LATIN AMERICA George Yudice
HETEROGENEITY AND POSTMODERNISM AVANT LA LETTRE?
1. Cf. BRUNNER, Jose Joaquin. Notas sobre la modemidad y 10 postmodemoenlacuituralatinoarnericana. David y Golia!. 17, 52, Sept. 1987; RICHARD, Nelly. Postmodemism and Periphery. Third Text, 2 Winter 1987/88; WISNIK, Jose Miguel. The Interpretation of Postmodemism in the Aesthetics of Brazilian Cultural Productions, conference paper delivered at The Deabte on Postmo-
demism in Latin America: Brazil, MexiCo and Peru. UniveJSity of Texas, Austin, April 29-30, 1988; ES-
There is a curious-and thoroughly understandable-argmnent that Latin America sets the precedent of postmodemity long before the notion appears in the Euro-North American context. 1 This argmnent is analogous to others that attempt to endow heterogeneous formations with the cachet of mainstream postmodem rhetoric. Thus, La raison baroque, according to Christine Buci-Glucksmann, anticipates a postmodemreluctance to integrate numerous visual spaces into a coherent representation. 2 This idea, in fact, has long had currency in what critics call the Latin American neobaroque. 3 Minority writers and intellectuals in the United States have also made similar claims for Black and Latino cultures. 4 As regards Latin America, the argument is as follows: the heterogeneous character of Latin American social and cultmal formations made it possible for discontinuous, alternative, and hybrid forms to emerge that challenged the hegemony of the grand Ticit of modernity. Even history ftagments into a series of discontinuous formations that undennine the synchronicity of the space of the nation:5 indigenous tribal cultures mix
88 - Rev. Brm;. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 with traditional peasantry, the descendants of slaves, the hnnpen of the shanties, and a cosmopolitan elite that would be at home in Paris or New York. Before we evaluate this contention of Latin America's postmodernity avant La Lettre, we should explore the question of heterogeneity. The heterogeneity of Latin American cultural fonnations is not the result of some postmodern simulational sleight of hand; rather, it is produced by the uneven implementation of modernization, leading, on the one hand, to contestatory projects for political, economic, and cultural decolonization, and on the other, to strategies for survival such as informal economies, the legal and illegal activities that elude government recording and control. Hernando de Soto, basing himself on the situation in Peru, argues that it is a top-heavy state-inclined to patronage and other forms of inefficiency and corruption - that causes informality.6 Samuel Doria Medina, however, attributes the phenomenon to a complex of condictionsunequal distribution of income, tertiarization of the economy, hyperinflation-which are in great measure the result of a state's economic vulnerability within a world economy controlled by nation of the "center...
COBAR, Ticio. PosmodemismoJprecapitalisrno. Casa de las Americas (... ). 2. BUCI-GLUCKSMANN, Christine, La raison baroque: de Baudelaire it Benjamin. Paris:
Editions Galilee, 1984, and La Folie du voir: de l'esthetique baroque. Paris: Editions Galilee, 1986. 3. See, for example', SARDUY, Severo. EI barroco yel neobarroco, In: America Latina en su literatura. Ed. Cesar Ferruindez
Moreno. Mexico: Siglo XXI, 1972, Barraco. Buenos Aires: Sudamericana, 1974, and La simu/acion. Caracas: Monte Avila,I982.
4. GATES, Henry Louis The signifying monkey. A theory of Jr.
The fundamental cause for the formation of an informal African-American Literary Criticism. New economy is the deformation of the economic structure once York: Oxford University economic activity has been directed towards extractive in- Press, 1988; Guillermo Gomez-Peiia, Docudustry for export. This creates a sector of the economy that mented/Undocumented, in fact is related to the State, where both are dependent on In: Multi-cultural liteeds. Rick Simonson the center. Consequently, the rest of the economy, which is &racy.Scott Walker. Saint marginal to the government, develops independently. In Paul, MN: Graywolf 1988; CORNEL. other words, having assigned to the country the production Press, West. PostmodeTllism and of raw materials in order to satisfy the requirements of the black America. Zeta central economies, it becomes unnecessary to develop all Magazille, 1988. of society. Since this pattern or structure of accumulation is S. Cf. CORNEJO-POmarginal to society and the rest of the economy, it does not LAR. Antonio. Indigenisl require internal demand or e~litable income distribution to and heterogeneous litera.tures. Their dual socioculgenerate widespread growth. tural status. Trans. Susan Casal- Sanchez. Latill Perspectives. Informality, moreover, has grown to enormous proportions Americall 16,2, Spring 1989, p. 12since the mid-seventies due not only to a weak productive sector and 28. large concentration of unequally distributed income, which capital SOTO, Hernando, flight makes unavailable, but also to extreme vulnerability to the 6.V,eDE other path: the invisiglobal economic crisis of 1981-82, the external debt crisis, and the ble revolution in the Third increasing importance of coca production. 8 Narcotraffic, the largest World. London: Tauris. 1989. sector of the informal economy, in its current transnational cartel form (another recent development that owes something to C.I.A. 7. MEDINA, Samuel Daria. La econonlia informal
Postmodernity and Trasnational Capitalism... en Bolivia. La Paz: 1986. I quote from the English
translation: Naomi Robbins, Bolivia's Infonnal Economy, M.A. Diss, CUNY, 1990, p. 28. 8. Ibid, p. 48-72.
9. Ibid., p. 83-85.
10. Ibid., p. 29.
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dealings in the region) is a grotesque (and fitting) parody of capitalist corporate culture. The narratives constructed to account for informality and narcotraffic might seen hardly consistent with the grand recit of modernity. And yet they are, in an obverse (if not perverse) relation that deconstructs modernity's collusion with capitalism. This parodic deconstruction is not, of course, restricted to so-called "third world" countries: junk bonds and savings and loans fiascos in the U.S. have had very much the same affect. "Irrationality'" is born of the guiding (market) "rationality" of modernity. Recognition of this "irrationality" is important in devising strategies for overcoming the economic plight of these countries. In contrast to de Soto, who advocates transforming the pathology of "informality" into its own solution by liberating the entrepreneurial spirit of its practitioners from the shackles of state regulation, Doria Medina analyzes its root causes and cautions against entrenching a state of affairs founded on (internal and international) inequality. The institutionalization of informality does nothing to counter the vast accumulation by elites, who elude a more equitable distribution of wealth by resorting to contraband and speculation while the underand informally - employed barely survive. Contraband is particularly pernicious because it induces loss of economic protection, an exaggerated degree of tertiary activities, a loss of income for the National Treasury, and the occupation of active commercial actors in operations (e.g., speculation) that do not generate significant value added. 9 This state of affairs relegates "informals" to the recycling of commodities normally discarded in the "formal" sphere. A "strategy for survival" is thus transformed into a permanent "strategy of life." 10 Having lost control of the economy, many Latin American countries oscillate between hyperinflation and recession, further strengthening the informal economy and producing a highly stressful way of life for the under and middle classes. II
11. Ibid., p. 37.
It is important to re-emphasize the role of public expectation in the inflationary process, and the importance of its effect on the informal economy. As the public loses confidence in the economic authorities responsible for inflation, their lack of confidence fans inflationary expectations, converting the latter into an engine that drives inflation up even further. Under these circumstances, financial transactions accelerate at a dizzying pace, but they do not involve the formal sector because of the concomitant accelerated depreciation of domestic currency. In short, the national currency no longer serves as a store of value, but is replaced
90 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 by a strong currency such as, in the case of Bolivia, the V.S. dollar. 12 Hyperinflation is, thus, not only an economic phenomenon; it also cuts deeply into the individual and collective psyche, producing uncertainty, skeptici~1n, criminality, and psychological discorders. Whether economic or social, "national currency" loses its value; under such circunstances there can be no self-determination. At best, narcotraffic replaces prior national currencies. It is precisely in the attempt to modernize by "developing" extractive industries for export, under the aegis of "central e-conomies," that modernity takes such ghoulish forms in countries like Bolivia. The grand redt of modernity, of course, attributes this ghoulishness to other factors, such as the "backwardness" of peripheral societies, the corruption of their governments, the immaturity of their elites, and so on. Its "rational" self-construal blinds it to its own role as source of pathology. The critique of modernityas-development-and-progress put forth by Latin American social scientists, theologians, writers and artists, and grass roots organizations should be considered an important ingredient of postmodernity, understood as the set of challenges to modernity's self-understanding. These challenges stem from the different ways in which local fonnations engage the colonizing tentacles of transnational capitalism,13 which should not be confused with one mode production. It is, rather, a series of conditions under which various modes of production and symbolization hold in differing localities. My argument as regards Latin America is not that infonnal economies or narcotraffic are postmodern phenomena but, rather, that they are alternative responses/propositions to the grand recit of postmodernity as it has been constructed by Lyotard, Jameson, and their predecessors. These conditions require alternative narratives with different configurations of features constitutive of modernity and different trajectories and denouements. Functional state apparatuses, viable political structures, effective democrative civil societies must be conceived in relation to the specific circumstances of given Latin American countries and not patterned after the reigning paradigm of western modernity. For example, to understand why these desiderata are curtailed in narcotrafficking countries, we must look at the intersection of several modes of production, various cultures, different administrative apparatuses, the struggle for survival and for hegemony on the part of diverse social strata (peasants, workers, narcotraffickers, military, national bourgeoisie, middle classes, national and international organized crime networks, V.S. military-industrial complex, etc.). Whatever the possibilities for
12. Ibid., p. 40; emphasis added.
13. Hugo Achugar has wrillen an excellent study of Uruguayan IIIodemisilia precisely by taking into account the "aesthetico-ideological responses and propositions" by different classes and class sectors to late nineteenth and early twentieth century modernization. Achugar explains that his usage of "response/proPosition" bears a .. distant relation to the notion of 'semantic gesture' put forth by the Prague School.... It attempts to capture the intemction of Iitemry product and society, how the latter condictions signic structure. Thus, a book of poems, a novel or a painting [is) considered in its historical concreteness, both ideologically and as the doublemovenlent ofresponse to a given historical situation and proposition of a (utopian) future. All of this, of course, is realized
Postmodemity and Trasnational Capitalism ... or conveyed aesthetically." ACHUGAR, Hugo, Poesia y sociedad (Uruguay 1980-1911) Montevideo: Area, 1985. p. 22, note 2.
14. Cf. also PAZ, Octavio. EI ronmnticismo y la poesia contemponinea, Vuelta. 11,127 (June 1987. In, the same issue of Vuelta. Paz introduces a special section cntitled Postmodemidad? which includes essays by Jean Clair and Cornclius CaSloriadis. IS. PAZ, Octavio. 17,e labyrillth of solitude. Mexico: Fondo de Cullum Economica, 1959, p. 152.
16. PAZ, Octavio. EI ceaso de las vanguardias, In: Los hijos de/limo. Bar~'CÂ lona: Seix Bmral, 1974, p.
201.
17. HEIDEGGER, Martin. The age of the world picture, In: 17,e questioll cOllcemillg tee/urology alld other essays. trans. William Lovitt Ncw York: Garland Publishing, 1977, p. ÂŁ35-154. 18. HEIDEGGER, Martin. . .. Poetically man dwells .... In; Poelry: lallguage, thought, Ilans. Albert Hofstadtcr. New York: Haper and Row, 1975, p. 222. 19. Sec HABERMAS, lurgen. 171ephilosoplrical discourse of modernity. Cambridge: MIT, 1987.
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democratization they must be studied as particular responses/propositions to this set of conditions that comprises the heterogeneous formation. Octavio Paz is, perhaps, the first artist/intellectual to claim that finally Latin America had become contemporaneous with the postmodem west-even before the term had been coined. As early as The labyrinth of solitude (1950), he argues that the contradictory logic of modernity-which he labels a tradicion de rltptltra-came to a grinding haltl~ when the leading nations of imperialist capitalism found themselves dec entered and as "marginal" as the periphery: ... we have lived on the periphery of history. Today the center, the nucleus of world society has come apart and we have all become peripheral beings, even the Europeans and the North Americans. We are all on the margin because there is no longer any center. 15 Third World revolts and ethnic and national rebellions in industrialized societies are the insurrection of particularisms opressed by another ~articularism that wears the mask of universality: western capitalism. 6 It should be made clear, however, that Paz homogenizes all those "particularisms" in a generalized marginality, whose aesthetic he claims to be rooted in the immediacy of a timeless present. Paz's sense of heterogeneity, however, casts these particularisms only as symptoms of a more unfathomable otherness, which like Heidegger's notion of Being, has nothing to do with specific others. For Heidegger, it is to be unconcealed, rather, in the "invisible shadow" or "space withdrawn from representation. ,,17 Taking his cue from Heidegger, who identifies the poetic as the dwelling place of Being, 18 Paz reconciles ,the aporia<.; of modernity-particularism vs. universalism, experience vs. history, existence vs. -representation-in the "transhi5.10rical virtuality "of poetry. Latin America, sa~agely torn by the contradictions of capitalism, provides for Paz's thought and poetcis a paradigmatic source for a secular "fundamentalist" reconciliation. And Paz is its high priest. As such, it is open to Habermas's critique of neoconservative responses to rationality.19 It is, essentially, an aesthetic moralism, not unlike religious fundamentalism, which seeks to counteract the excesses and "moral decadence" of historical life. I think a new star is rising-it is not yet on the horizon but it is announced in many indirect ways; it is the poeticis of the now. Soon men will have to erect a Morals, a Politicis,
92 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 an Erotics and a Poetics of the present. The road to the present passes through the body but it should not be confused with the mechanical and promiscuous hedonism of modem western societies. The present is the fruit issued forth by the fusion of life and death.20 Paz's apocalyptic, messianic proposition not only purges the political dimension from the practices of the new social movements (women, gays and lesbians, ecology, ethnic and racial minorities) by assimilating their projects to a transhistorical aesthetic; it also aims to transcend the conditions set by modernity in one fell swoop, as if those conditions were nothing but the expression of a single logic. Furthermore, as Nelly Richard observes about "postmodernism in the periphery, "the sublation of center and margin that is celebrated in the aesthetic practices of certain elites, Paz among them, actually abolishes the value and significance, the difference, of the practices of subaltern and colonized peoples. 21 ...just as it appears that for once the Latin American periphery might have achieved the distinction of being postmodernist avant La Lettre, no sooner does it attain a synchronicity of forms with the international cultural discourses, than that very same postmodernism abolishes any privilege which such a position might offer. Postmodernism dismantles the distinction between centre and periphery, and in so doing nullifies its significance. There are many instances in postmodernist discourse aimed at convincing one of the obsolence of the opposition centre/periphery, and of the inappropriateness of continuing to see ourselves as the victims of colonisation. 22
20. PAZ, Octavio. El TO-
maT/lismoy Iopoesloconlempordnea. p. 27.
21. Elsewhere Ihaveoffered a critique of the adoption by elites of a rhetoric ofmarginality. Cf. Marginality and the ethics of survival. In: Universal Abandon? The politics of postmodernism. ed. Andrew Ross. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1988.
22. RICHARD, Nelly, p. 10.
Ticio Escobar, moreover, cautions us to distinguish between the surface effects of a "postmodem"style-fragmentation, recycling, pastiche, etc.-and the significance of conditioning circumstances. 23 Consequently, a theory ofpostmodern culture cannot rely on the formal techniques and properties of particular works. That is why the myriad primers that attempt to register the features of postmodern phenomena, though they provide easily identifiable markers of style, are so unsatisfying. Linda Hutcheon, for example, under the pretext of identifying postmodernism with a "denaturalizing"politics of representation, lumps together Salman Rushdie, Angela Carter and Manuel Puig as practitioners of a subversive "postmodern parody. ,,24 It is not, of course, as if this kind of
23. ESCOBAR, p. IS.
24. HUTCHEON, Linda. The politics of PoSlmO-
Pmtmodemity and Trasnational Capitalism. .. -
dernism. New York: ROUlledge. 1989.p. 3-8. Seealso A Poetics of Postmadernism: histoty. theory. fiction. New York: Routledge. 1988.
2S.IdonotagreewithFredric Jameson's characterimtion of postmodem culture as those local tactics and practices of "fttst world" elites that. he contends. come to embody symbolically the global logic ofthe system. According to Jameson, thecultural production ofa particular class fraction (call it "new petty bourgeoisie." "professional-managerial" "baby boon" or "yuppy") of"frrst world" elites "articulate[s] the world in the most useful way functionally. or in ways that can be functionally reappropriated. " Jameson seems to be making a category error here. Transnational capital may or may not have a global logic but it does not translate tout court into the cultural practices of a gtoup the chosen people of the transcendent Being (whether God or Capital). If. on the other hand, diverse social formations. and the gtoups that comprise them. manage - by responsefproposition - the fonns that the conditions of postmodemity take in their localities, then there are as many different cultures of postmodemity as there are social formations and particular struggles for hegemony within them. Cf. JAMESON. Fredric.
Marxism and postmodernism. New Left Review. 176. July-August 1989. p. 41.
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parody had not existed previously; doesn't Cervantes's intertextuality have a similar effect? It is easy enough to identify stylistic markers; it is more difficult to pay close attention to how conjectural circumstances condition how those markers are to be interpreted. Hutcheon shows indifference or ignorance in this latter respect. Rather than speak of a postmodernism, then, which runs the risk of identifying the style of one group as emblematic of a condition (Lyotard) or a "cultural dominant" (Jameson),2S it is preferable to theorize postmodernity as series of conditions variously holding in different social formations that elicit diverse responses/propositions to the multiple ways in which modernization has been attempted in them. It is not a matter, then, of a different order of things following or replacing modernity, as it has been suggested from Weber to Habermas. If postmodernity has any specificity, it is in the rethinking of how modernity has been represented, how altemati ve sciences, morals and aesthetics, as well as diferent sociocultural formations, have all contributed to constitute modem life. How we (re)think modernity and postmodemity has consequences for how we construe the ethico-political go.als of theory. Paz's poetics of reconciling opposites in the transhistory of the present leads to an antimodern irrationality with little room for accommodating the democratic demands of diverse social movements.' Rethinking democracy outside of the terms set by the grand recit of modernity is an enterprise which many Latin American social movements see as necessary. Up to now the formal apparatuses of representati ve democracy have failed miserably. This is not to say that they have succeeded in Europe and the U.S.; their "dysfunctionality" in the Latin American context only makes more patent what is wrong with th~m in the "democratic west" where their pathologies are partly screened by "viable" consumer economies. According to Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, new ways of constructing democracy have been made possible by the new social movements, whose practices have "weakened" the rationality that undergirds modernity:
The discourse ofradical democracy is no longer the discourse of the universal; the epistemological niche from which "universal" classes and subjects spoke has been erradicated and replaced by a poliphony of voices, each of which constructs its own irreducible discursive identity. The conclusion is decisive: there can be no radical, plural democracy without renouncing the discourse of the universal and the implied premise that it provides a privileged access to
94 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 the "truth," attainable only by a limited number of subâ&#x20AC;˘ 26 Jects. Laclau and Mouffe's diagnostic also conceives of politics as a creative articulation process. With the pluralization and legitimation of manifold social projects, it is increasingly difficult to establish common meanings across the entire social terrain. How to strike a balance "between a logic of complete identity and another of pure difference" is the goal of "radical democracy. " It consists of the recognition of the multiplicity of social logics and of the necessity to articulate them. This articulation, however, must constantly be recreated and renegotiated, for there is no final point where a definitive balance will be reached. 27 According to Bernardo Subercaseaux, this creative articulation is the means by which "one's own," always provisional identity is achieved. 28 He seesthis a process of appropriation quite different from the mimetism decried by ningltneistas who berate their cultures for being a pale reflection of metropolitan society. The flavor of these self-negating breast-beatings, so typical of elite Latin American intellectuals, is captured in El arte de la pa la bra, Enrique Lihn's self-deconstructive pastiche of poststructuralist erasures of the subject: we are nothing: imitations, copies, phantoms; repeaters of what we understand badly, that is, hardly at all; deaf organ grinders; the animated fossils of a prehistory that we have lived neither here nor, consequently, anywhere, for we are aboriginal foreigners, transplanted from birth in our respective countries of origin?9 For Subercaseaux, as for Richard, Escobar, and Wisnik, the formation of a national identity is not a matter of authenticity versus mimetism but rater of articulation: The model of appropriation contrasts with a dual vision [i.e., native vs alien, G.Y.] of Latin American culture. By definition; a theory of appropriation rejects the existence of an uncontaminated, endogenous cultural core. It also rejects the myth of cultural pluralism and any essentialism whatsoever, for Latin America identity is not something already constituted and fixed but something always in the process of becoming. Consequently, it cannot be understood by
26. LACLAU, Ernesto and MOUFFE, Chantal. Hegemony and socialist strategy. Towards a radical democratic politics. London: Verso. 1985. p. 191-92. See also Ernesto Laclau, The politics and limits of Modernity. Trans. George Yudice, in Universal Abandon?
n,e
Politics of Postlllodernism. ed. Andrew Ross. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988.
27. Ibid., p. 188. Lac1au and MoulTe have been criticized for their endorsement of an "infmif' deconstruction, such as that suggested in this quote. Recognition of ongoing struggles for hegemony need not, however, resort to such a relativist position. 28. SUBERCASEAUX, Bernardo. La apropriaciOn cultural en e1 pensamiento latinoamericano, Mundo. I, 3, Summer 1987.
29. LINCH, Enrique, El arte de la palabra. Barcelona: Pornaire, 1980. p. 82. I translated into Englishandpublishedanexcelpl of this novel in Revie\l: 29, May/August 198I,p.55-61. WISNIK, op. cir.â&#x20AC;˘ also alludes to the self-erasure of Latin Atjlerican postmodemists who "consume impol1ed stereotypes," especially current stereotypes concerning simulation. cr. also RICHARD, p. 7.
Postmodenuty and Trasnational Capitalism ... -
95
recourse to pre conceptual or precategorical approaches .... The theory of appropriation offers a model of an ecumenical culture, always open and never endogamous. 30 30. SUBERCASEAUX, op. cit., p. 34-35.
31. SCHWARZ, Roberto. Nacional por substracciOn. Plllltode I'ista. 9,28, November 1986, p. 22. This essay was published in English translation in New Left Rel'iell: ( .. ).
Roberto Schwarz has also rejected the Manichean dichotomy between imitation and original "because it does not permit detecting the alien within the proper, the mimetic component within the original, and also the original component within the imitation. ,,31 Schwarz rethinks this aporia in terms of articulation, with the proviso that subaltern groups should have the apportunity to "refashion [prevalent forms] in accordance with their own interests, which ... is a way of defining democracy. " This statement is very important for my own argument since, as I noted above, the debates on postmodernity are often about the possibilities for establishing a democratic culture. In what follows, I give a precis of what Euro-North American theorists understand by postmodernity, not with the intention of applying their terms to Latin American phenomena. On the contrary, it seems to me that such theories need to be deconstructed and reconstructed in relation to Latin American contexts.
REDEMPTION THROUGH CULTURE?
32. MUNOZ, Silverio, EI milo de la salvacion por la
cultura.
One criterion which holds for advocates of modernity (Habermas) and postmodernity (Jameson) alike is the emancipatory potential of cultural works. In Latin America, few are the artists who are not judged in terms of the social effectivity of their work. The 60s and 70s were rife with recriminations shot back and forth between writers who advocated art in the service of social justice and those who held that formal innovations were in and of themselves revolutionary. The debates around the effectivity of Jose Maria Arguedas's work, in fact, hinged on this criterion. One influential study, El mito de la salvacioll por La cuLtura. critiques the idea that the pathologies wrought by a savage capitalism can be healed by recourse to the moninstrumental cultural practices of indigenous Andean peoples. 32 How to tap this source of personal and collective integration in the face of imminent cultural destruction by modernization was the aporia thematized in Arguedas's fiction and anthropological research. In his last novel, El zorro de arriba y el zorro de abajo Arguedas's attempts to work out this aporia reaches its most poignant test. In it he portrays both the ravages wrought by capitalism in a Peruvian factory town as well as the attempts to overcome them by
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recourse to a rapidly vanishing highland indigenous culture but whose values continue to be disseminated '.'transculturally" by mestizos settled in the coastal region. 33 Arguedas alternates this fictional text with diary entries in which he criticizes the professionalization of writers and vents his despair at ever recuperating the kind of unalienated life he experienced as a child among the Andean Indians. The very existence of a Peruvian national culture as well as his own life are in the balance. Culture seems to be the only hope, modern politics and leftist revolution having failed. Ultimately, however, culture does not rise to the task and Arguedas commits suicide, the epilogue to the novel serving as his suicide note. Arguedas's suicide, his second and successful attempt, may have been the result of a particularly dark moment in his life, a life in which, on the contrary, he held the highest hopes for a cultural working through of the contradictions of modernity in Peru. Given .his circumstances-economy, politics, and a very reduced public sphere controlled by oligarchic elites -, such possibilities remained symbolic. Angel Rama explains that the social redentption to which he aspired was effected by proxy in his literature: .. .literature was for him a reduced model oftransculturation which made it possible to portray it and test it out. If it was possible in literature it should also be possible in the culture at large. However, not in charge of a government or a revolution, that is, without power, Arguedas was not free to take the bestroute to that larger transculturation. Neverthelles, he did what he could with all his resources: portray transculturation by means of literary narrative, make it 'e â&#x20AC;˘â&#x20AC;˘ 11y. 34 come to Ihe artlstlca Such a notion of culture, in the Latin American context, shares with modern bourgeois aesthetics the will to (re)construct hegemony. The greater reliance on indigenous and other popular (as opposed to mass mediated) cultures is, perhaps, a notable distinction between the two traditions. The greatest difference, however, is the ever-present lament over the difficulty of establishing an unalienated modern culture in Latin America. There have been many different projects for cultural hegemony in the twenty-odd Latin American nations, but they all have on feature in common: its yet-unattained status. In the sixties, the writers of the so-called "Boom" thought they could achieve not only national cultures but, more importantly, a global continental culture on a par with that of Europe or the United States. However, rather than taking indigenous and popular traditions as its
33. Angel Rama elabora¡ tes on the phenomenon of .. transculturation". In: Transculturaci6n narrativaenAmiricaLatina. Mexico: SigloXXI.1982.
34. Ibid.. p. 202-203.
Pcmmodemity and Trasnational Capitalism .. -
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base, "Boom" writers sought to forge a new aesthetic language and, consequently, a new hegemonic consciousness. As in Arguedas's case, however, culture was a proxy for revolution or political power. According to Carlos Fuentes:
35. FUENTES, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. Mexico: JoaquinMortiz, 1969, p. 98.
36 Cf. FRANCO, Jean. Nanator, author, supers-
tar: Latin American narrative in the age ofmasscullute. RevistIJ lberoamericana, 47, p. 114-115, 1981.
.. .if we Hispano-Americans are capable of creating our own model of progress [as compared to western technocratic models], then our language is the only vehicle that can give form, propose goals, establish priorities, elaborate critiques of a given way of life: of saying everything that cannot be said in any other way. I believe that in Spanish America there are novels being written and to be written which, when such a consciousness is attained, will provide the necessary instruments to drink the water and the fruits of our true identity.35
Fuentes is, of course, on the right track in seeking alternative models of progress but by adopting an autotelic aesthetic he is ultimately endorsing the option of elites in their bid for hegemony. The autotelic here is a symbolic expression of the self-determination that such writers sought vis-a-vis the international cultural market. Notwithstanding their protestations to the contrary, Fuentes and his colleagues (Cortlizar, Vargas Llosa, etc.) ironically espoused technological development in the realm of the aesthetic-not only in terms of narrative technique but also as regards the growth of an international and promotion industry -, falling in step, then, with the global reach of capitalist rationality into all spheres of life. It seems that the aesthetic fulfills the same function in this context as it had in its inception in England an Germany: it serves as a a proxy for power enabling a particular group to seek consensus on cultural terrain in order to maintain hegemony. Not only did professionalized, superstar novelists like Fuentes sideline "vocational" writers like Arguedas, they also sought to integrate with the growing consumer culture among elites (the beautiful people of "La onda") that made popular and indigenous cultures irrelevant unless they too integrated or "transculturated" into consumer society. 36 Today, with poor prospects for military-revolutionary triumph, with the popular appeal of revolutionary heroism partly displaced . toward narcotraffickers, and with the transformation of politics into struggles for interpretive power, the cultural sphere has opened up to all kinds of challenges. Its function as a "proxy for power" -it seems preferable to speak of a mediation of power relations-is openly recognized by groups throughout the political spectrum. At stake is an idea that the cultural or the aesthetic can provide a terrain for
98 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n~ 1 - 03/91 establishing consensus; everyone recognizes that consensus work.., in the interest of the hegemony of some groups. The premise that the aesthetic realm is intrinsically free and disinterested has become difficult to accept. Is there still, then, an emancipatory potential in the aesthetic or cultural realm? In a different context, although directly addressing postmodern challenges to aesthetic disinterest, Terry Eagleton afirms that "there are meanings and values embedded in the tradition goal of achieving equal rights for self-determination. 37 The critical 37. EAGLETON, Terry, 17le ideology of the aesconsensus is, however, that the aesthetic lost its emancipatory poten- thetic. Oxford: Basil tial when the historical (i.e., European) avant-gardes were extin- Blackwell, 1990. p. 415. guished, on the one hand, by the double whammy of Nazism and Stalinism, and on the other, by the cooptation of consumer capitalism, which transformed "epater Ie bourgeois" into a marketing strategy. The second and subsequent avatars of the avant-garde, variously named neoavant-garde and transavant-garde, have only confirmed the exhaustion of the dri ve to innovate and shock humanity back from instrumental rationality into aestheticized life practices. With this exhaustion, or "twilight of the avant-gardes," we enter an era of 38. Cf. Los hijos de/limo skepticism, which Paz equates with postmodernity.38 and El romalltismo y la What many call postmodernity, Habermas argues, is really a poesia cOlltemporallea. political and cultural impasse awaiting resolution in the transformation of the emancipatory projetc of modernity such that a democratizing communicative rationality rather than instrumental reason becomes its driving force. Following Weber and Durkheim, Habermas sees European modernity emerging out of two interrelated diremptions: on the one hand, the separation of "system" (economy and state apparatus) and "lifeworld" (the concept of "Lebenswelt, " taken from Husserl, refers to culture that serve as the medium of intersubjective relations), and, on the other, the emergence of modernity through the rationalization of the lifeworld into three 39. HABERMAS, Hirgen. autonomous value spheres: the cognitive, the moral and the aes- 17,e theory of comllllicatithetic. 39 These diremptions lead to the splitting off of modern from I'eactioll. Vol. 2 Lifeworld system: a critique of traditional society as rationalization provides rules of validation in alld functionalist reason. Boseach sphere, thus displacing the traditional autority of myth, religion ton: Beacon Press, 1987. or the absolute right of monarchy. The reproduction of society Cf. The uncoupling of system and lifeworld. p. depends more on human actions than on the dictates of traditional 153-97. The classic acauthority. From its very beginning, then, modernity is at odds with count of the rationalization of Western culture is tradition as a nonsecular fonn of belief and transcendence. Max Weber, The ProtesModernity, however, is driven by an inherent contradiction tallt Ethic alld the Spirit of (New York: resulting from the increased autonomy and reflexivity of a rational- Capitalism Scribner's, 1958). It ized society. Automatic behavioral systems driven by instrumental should be pointed out that grounds this ratioreason override processes of mutual understanding that operate ac- Weber nalization solely in the cording to communicative rationality. The economy and the state West. He concedes that other cultures evince dif-
Postmodemity and Trasnational Capitalism... ferent modes ofrationalization. but they do notproduce the kind of rational moral conduct (conditioned by the Protestant ethic) which leads to the development of capitalism (p. 25-26). Cf. also SCHLUCHTER, Wolfgang. 17le rise of westem rationalism. Marx Weber's developmental histol)'. Berkeley: University of California Press, 1981. p.19.
40. EAGLETON, p. 16.
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apparatus thus come to colonize the lifeworld. At his point the aesthetic sphere emerges as the principal source of resistances to colonization (although practically ignored by the social sciences) by projecting nonalienated modes of cognition. But according to Peter Biirger, as the bourgeoisie expands its domain even resistances to instrumental reason are increasingly institutionalized, cutting off the aesthetic from other spheres of social life. Nineteenth century Parnassianism, Symbolism, Pre-Raphaelism and Art for Art's Sake exemplify the specialization of the aesthetic. Modernity generates its own antimodernity but subjets it to the same rules of specialization, thus constituting its internal contradiction. Eagleton further elucidates this contradiction noting that the putati ve unalienated and disinterested cognition provided by the aesthetic is, in fact, a proxy for power, a "kind of prosthesis to reason, extending a reified Enlightenment rationality into vital regions which are otherwise beyond its reach .â&#x20AC;˘ ,40 An ever increasing colonization of the lifeworld resulted in a Europe disenchanted with its own elite culture, driving its artists and intellectuals to seek ever new regions of experience to tap. The era that saw the rise of nihilism, the avant-gardes and Spengler's Twilight ofthe West, also saw a new way of appropriating the cultural products of nonwestern societies. Primitivism is not just a matter of collecting exotic objets from the outer reaches of the Empire, it is a source of "still unalienated" cultural capital that wil enable aesthetics, as "prosthesis to reason, .. to open up heretofore untapped regions of the psyche and facilitate their colonization in the process. This era also saw Latin American literature, as the major expression of (elite) cultural life, "catch up to" or get "up to date with" metroplitan culture. In effect, (elite) aesthetics in Latin America finally went beyond a mere costltmbrism0, tapping local indigenous cultural forms in search of its own unalienated cultural capital. Examples are Andean and Mesoamerican indigenismo (Icaza, Alegria, Asturias, and the Nicaraguan Vangltardia), Caribbean negrismo (Pales Matos and Guillen), Brazilian Modernismo (Tarsila do Amaral, Mario and Oswald de Andrade). All of the above are expressions of the avant-garde will to abolish the institutionalized separation between autonomous art and bourgeois everyday life, seeking to establish a new pratice of everyday life patterned after art. The avant-gardistes proposed the sublation of art-sublation in the Hegelian sense of the term: art was not to be simply destroyed, but transferred to the praxis of life where it would be preserved, albeit in changed form. The avant-
100 - Rev. BrmI. de Ut. Comparada, n! 1 - 03/91 gardistes thus adopted an essential element of Aestheticism [that] had made the -distance from the praxis of life the conterit of works. 1be praxis of life to which Aestheticism refers and which it negates is the means-ends rationality of the bourgeois everyday. Now, it is not the aim of the avantgardistes to integrate art into this praxis. On the contrary, they assent to the aestheticists路 rejection of the word and its means-ends rationality. What distinguished them from the latter is the attempt to organize a new life praxis from a basis in art. 41
41. BORGER. Peter. Theoryoftheavant-ganJe. Minneapolis: University of Minnesota. 1984. p. 49.
It may be argued that the difference between metropolitan European and Latin American/peripheral avant-gardes revolves around how the aesthetic practice which serves as model for a new everyday practice is construed. In Latin America, many of the avantgardes sought to reactualize indigenous traditions, thus projecting new imaginaries with strong ethical contents. If we rethink peripheral avant-gardes as the endeavor to create new life praxes by rearticulat42. I have attempted such ing local traditions,42 as in testimonial literature, it may prove too a rethinking in: Repensanhasty to have declared the death of the avant-garde. Evidently, avant- do a VIIIlgUII1da desde a pcforthcoming in the garde would mean something else if thus construed. It would not, for riferia. working papers series example, be the sole domain of elites but would require, as in tes- (Ptipeis avulsos) of the Centro Intenlisciplinar de timonial literature, the collaboration of elites and subalterns rather Estudos Contempordthan the self-serving representation, incorporation or cooptation of neos. Rio de Janeiro: UFRJ.I990. the latter by the former. From the perspective of elite metropolitan culture, and its enclaves in peripheral societies, the avant-gardes petered out: Today we witness the twilight of the aesthetics of rupture; the art and literature of our tum of the century have gradually lost their powers of negation. For a long time now their negations have been ritualistic repetitions. their rebellions formulas, their transgressions ceremonies .... 43
43. PAZ, EI romanticimoy /a poes/a contemporanea.
p.26.
But this is because they did not really change the framework of their aesthetic rationality. For thinkers like Paz, autonomous aesthetics continues to set the tenor of cultural practice; any collaboration with the subaltern is considered populist demagoguery, and any experimentation involving elite, popular and mass culture a commodification. Consequently the entire problem of the avant-garde is left behind as the world enters a new episteme, according to paz: Critics, somewhat belatedly. have noticed that for the past quarter century we have been entered a new historical pe-
Postmodemity and Trasnational Capitalism... -
44. Ibid.
45. LYOTARD, JeanFran~is. La postmodernidad (explicada a los niiios) Ban:elona: Gedisa, 1987, back cover.
46. Ibid., P. 31.
47. JAMESON, Fredric. Postmodernism, or the logic of Late Capitalism. New Left Review, 146. July-August 1984. p. 79.
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riod and another fonn of art. Talk of the avant-garde has become popular as a new label has emerged for our time: the "postmodern era," a term just as dubious and contradictory as the idea of modernity. What comes after the modem cannot but be ultramodern: a modernity even more modem than yesterday路s.44 Paz, it seems to me, has got it wrong. His account is a willful misrecognition that the postmodern does not necessarily seek to innovate, as does the modern, but rather to rearticulate alternative traditions in order to disalienate contemporary life. Even a mainstream account, like Lyotard's, situates postmodernity "not after nor in opposition to the modern which includes it, however much it may remain concealed within it. .. 45 Before considering in what ways postmodernity can be construed as continuous with modernity, I should like to review briefly Lyotard's checklist of postmodem features, which Jameson extends to the entire field of culture. What defines postmodernity for Lyotard is the loss of credibility in the grand recits that legitimize knowledge in the name of any mode of unification, whether christianity, revolution, the Hegelian Absolute S&irit, Marxism, or even the idea that "the people reign over history. .. There is no longer faith in global or totalizing explanations. Jameson, in tum, sees postmodernity as a "cultural dominant" disseminated globally by the third or "late"stage of capitalism. Its cultural landscape is no longer the mechanical reproduction of the nineteenth and early twentieth centuries but rather the semiotic reproduction (a mode of symbolization of articulation of signs and not a mode of reproduction proper) that becomes dominant after World War 11.47 Jameson's keenest insight is his explanation of why there has been a loss of faith in totalizing explanations. He derives his account from those works infused by the aesthetic of simulation, "whose power Of authenticity is documented by [their] success (. .. ) in evoking a whole new postmodem space in emergence around us. " This evocation is powerful, according to Jameson, because it makes palpable what we can no longer understand without the prosthesis of simulation: ...our faulty representations of some immense communicational and computer network are themselves but a distorted figuration of something even deeper, namely the whole world system of present..cJay multinational capitalism. The technology of contemporary society is therefore mesmerizing and fascinating, not so much in its own right, but because it seems to offer some privileged representational
102 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 sho rthand for grasping a networ k of power and control even more difficult for our minds and imaginations to graspnamely the whole new decentred global network of the third stage of capital itself. 48
Jameson's argument relies on an allegolical reading of the works he refers to, inasmuch as he treats them as simulacra of an unrepresentable, sublime referent. Such works no longer refer to the problem of power, "the physical incommensurability of the human organism with Nature, but also [to] the limits of figuration and the incapacity of the human mind to give representation to such enormous forces. ,,49 Consequently, for Jameson, the postmodern sublime can only be adequately theorized "in tenns of that enonnous and threatening, yet on~ dimly percevaible, other reality of economic and social institutions. 0 Contrary to theorists of the avant-garde, Jameson does not propose how these works resist the colonization of the lifeworld. For Jameson, our everyday life is totally colonized, so much so that it is impossible to achieve any direct cognition of the world. Hence the sublime experience of failing to represent the reality to which the simulacra and the fragments might allude. 51 Rather than resistance, Jameson, following Kevin Lynch in The image of the city, advocates an "aesthetics of cognitive mapping" so as to compensate for that unrepresentability that impedes the subject from recognizing its "Imaginary relationship to his or her Real conditions of existence. ,,52 One of these conditions is the obsolescence of a "semiautonomous" cultural or aesthetic sphere with a corresponding critical distance. But it isn't that culture has disappeared; it has, rather, exploded and expanded throughout the social realm, to the point at which evything in our social life-from economic value and state power to practices and to the very structure of the psyche itself-can be said to have become "cultural" in some original and yet . d sense. 53 unt heonze All of this entails that the "Left" must redefine its strategies for offense and resistance. The writing on the wall suggests that such time-honored notions as negativity, position, subversion, critical distance, and so on have been made irrelevant in the new postmodern landscape. The short-hand language of 'cooptation' C.. ) offers a most inadequate theoretical basis for understanding a situation in
48. Ibid., p. 79-80; emphasis added.
49. Ibid., p. 77.
SO. Ibid., p. 88.
51. Among the simulacra and fragments of the postmodem, Jameson lists the following: 1) the rise of aesthetic populism, tolerant of mass culture and kitsch; 2) the destruction of the expression of Being (represented by Van Gogh's "Peasant Shoes"), replaced by simulations (as in Warhol's "Diamond Dust Shoes"); 3) the waning of affect, with its corresponding reference to human depth (e.g., Freud's drives), and the emergence of jouissallce. the euphoric experience of the death of the subject (Lacan); 4) the substitution of parody (transgression) by pastiche (confOlmity); 5) the replacement of History by historicism, the mise ell spectacle of all past styles; 6) the mode retro minus any feeling of nostalgia (e.g., V,e Big Chill); 7) the loss of a radical past; 8, social narcissism and schizophrenia resulting from deoedipalization (Lasch,; 9) the transfomtation of
Postrnodenuty and Trasnational Capitalism ... work and subject into textualit), constituted by differences; 10) hysterical or camp sublinle, no longer resulting from the incapacity to figure or represent incommensurability but from the terror of simulated existence; 11) the apothoosis of the machinisrn of the third. or cybernetic, industrial revolution; 12) the abolition of critical distance; 13) the loss of coordinates in urban space. 52. Ibid., p. 90. Jameson is quoting Althusser here. 53. Ibid., p. 87.
54. Ibid. 55. Cf. Third World Literature in the era of multinational capitalism, Social Text, 15, Fall 1986, n. 69, p. 79-80. See also the eloquent critique by AHMAD, Aijaz, Jameson's rhetoric of otherness and the national allegory. Social Texr. 17, Fall 1987, p. 3-25.
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which we all, in one way or another, dimly feel that not only punctual and local countercultural forms of cultural resistance and guerrilla warfare, but also even overtly political interventions like those of the Clash, are all somehow secretly disarmed by a system of which they themselves might well be considered a part, since they can achieve no distance from it. 54 I have quoted Jameson at length not only because his essays provide the most detailed descriptions of the kinds of works that can be considered to constitute mainstream postmodernism but also to serve as a backdrop against which we can gauge other, nonmainstream contemporary expressions. On the basis of the latter, it seems to me that Jameson's conclusions are unacceptable. He has argued that every "third world" text is necessarily a national allegory which is easily discerned. 55 How does this statement reflect on cultural texts from peripheral societies? Are they less interesting because their subtexts are not as unfathomable as those of "postmodern" texts? Is it true that the allegorized referent is more complex in "first world" contexts? If we accept Jameson's premise that late capitalism is the transcendental referent that infuses postmodern textuality and eludes cognition, and if peripheral societies are also part of the global network of transnational capital, why then are their texts not as complex? Or does he mean to imply that "third world"readers are more astute in cognitive mapping? That is hardly the case since Jameson has already argued that it is the cultural landscape of "first world" societies that makes the referent elusive. We can only infer, then, that Jameson looks either nostalgically or condescendingly at those writers and readers who go on about their interpretations as if the "Real" of late capitalism were a simple matter of national conflicts figured according to long outdated cognitive maps from a postmodern perspective. These objections to Jameson's diagnostic can be extended to almost all the theorists of modernity and postmodernity who pri vilege a Euro-North American model of cultural evolution: at some point bourgeois society attains an autonomous aesthetic sphere harboring unalienated experience which is eventually reified through institutionalized specialization; the avant-gardes recuperate the critical potential of the aesthetic but either capitulate under fascist and authoritarian regimes or are commodified in consumer societies; finall y, rather than the collapse of the aesthetic, postmodernity is the implosion of the social and the political such that the aesthetic permeates all experience. The lifeword has become simulation.
104 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 This evolutionary model relegates nonwestern societies to a perennial lag, even in those cases, as in Latin American ningllneismo, in which subjets see themselves as copies. But they are copiesdissimulations and not simulations-of referents that have ceased to exist; much like the supernovas whose light we continue to see millions of years after they collapsed. Lihn, whose parody of the death of the subject I referred to above, sardonically casts Latin America as the mirror image of a black hole, mainstream theories of postmodernity leave little room for an alternative. If we dispense with this evolutionary model, however, and seek other premises, it is possible to construe a positive account of Latin American cultural practices that does not lapse into knee jerk affirmations of authenticity of despairing laments over an ersatz ontology. A new generation of culttural critics has put forth such concepts as "transculturation, .. 56 "cultural rearticulation, .. 57 and .. cultural reconversion, ,,58 to account for the ways in which the diverse groups that constitute Latin America negotiate their cultural capital.
THE REARTICULATION OF TRADITION In contrast to Paz, who understood modernity in relation to the "tradici6n de rllptllra y rllptura de la tradici6n." the new Latin American cultural critics emphasize how groups recycle their traditions in national and international markets. Theirs is no longer a nostalgic aspiration for a return to unalienated modes of life. By focusing on consumption and other means of cultural mediation, they are in a better position-vis-a-vis nationalist ideologues-to gauge how and to that extent the diverse groups of Latin America's cultural heterogeneity interact with one another and what the prospects are for subaltern groups to gain a greater participation in the distribution of goods. Increased restructuring of economy and state administration by neoconservatives (facilitated by international capital's imposition of austerity programs) has certainly made it more difficult to achieve an egalitarian distribution of wealth. Neverthel~ restructuring has created new possibilities for interaction and maneuver, as traditional cultures are faced with "segmented and differentiated participation in the global market (... ) according to local codes of reception... 59 . The result of restructuring and the responses/propositions in relation to it is something similar to what certain representatives of postmodernism claim: the decentering and deconstruction of
56. Cf. KAMA, 7ranscuJ-
turaciOl1 narrativa en America Latina. 57. BRUNNER, Jose Joaquin. Notos sobre Ia madetnidad y 10 postmoderno en Ia cultura latinoamericana.
58. GARCIA CANCUNI Nestor. La reconversiOn cuhuraJ: estmtegias para
enttar y sa1ir de 1a modernidad (forthcoming).
59. BRUNNER, Notos sabre Ia modernidad y ID postmoderno en Ia cultum latinoamericana. p. 33.
Postmodemity and Trasnatiooal Capitalism ... -
60. Ibid., p. 34.
61. BAUDRILLARD, Jean. Fatal strategies. Trans. Philip Beitclunan. New York: Semiotext(e)JPluto, 1990.
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western culture as it is depicted in primers; of its rationality, key institutions and cognitive habits and styles, which we are led to believe are imposed uniformly. [Cultural heterogeneity resembles] the implosion of consumed, produced and reproduced meanings and the concomitant destructuring of collective representations, the problems in and desire for identify, a confusion of temporal demarcations, paralysis of the creative imagination, the loss of utopias, the atomization of local memory, the obsolescence of traditions. 60 It resembles these ··ftrst world" cultural phenomena but only superficially. Not only, as explained above, are the causes different, the ways in which different localities respond to the conditions imposed by transnational capitalism are also different: e.g., the hyperinflationary situation in Latin American countries is not the same as the hyperinflationary circulation of signs- the ·obscene obesity of information" -which Baudrillard sees as the culture of to the United States. 61 Hyperinflation in Latin America, on the contrary, is not the result of consumerism but of external debt, speculation, narcotraffic and, most importantly for the point being made, the struggle for consumption that informal economies represent. Jameson is, therefore, wrong to attribute ··postmodern cognitive mapping" only to "first world" cultural production. It is just that in Latin America the mappings are different; they correlate to different sets of conditions imposed by transnational capitalism. According to Garcia Canclini, comsumption, understood as an •• appropriation of products," should not be reduced to consumerism, passive reception, useless waste and depoliticization or to habits targeted by market research. It is, rather, the terrain of struggle between cla,Sses and other group formations over the distribution of goods, and as such it also serves as the medium in which needs amt other cultural categories such as identity are constituted: Consumption is a particularly apt space of cultural mediation in which hegemony can be challenged:
We know that struggle by means of cultural mediations offers neither immediate nor spectacular results. But it is the only guarantee that we are not passing from the simulacrum of hegemony to the simulacrum of democracy-a way of avoiding the resurgence of a defeated in our ways of thinking and interacting. The political uncertainties of the
106 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 cultural struggle seemtBreferable to a revolutionary epic that repudiates culture. Garcia Canclini 's research on the rearticulation within transnational capital of popular or folk traditions as a means to expand possibilities of consumption in its narrow and wider senses, demonstrates that modernization does not require the elimination of economic and cultural forces that do not directly serve the growth of capitalism so long as these forces "cohere into a significant sector, which satisfies its needs or those of a balanced reproduction of the system. 63 Consequently, modernity does not have to be theorized in the traditional avant-gardist terms of a "tradicion de ruptura." Rather than a still unfinished project, as Habermas understands it, modernity in Latin Ameica is a series of necessarily unfinished projects. In the case of Brazil, for example, Renato Ortiz finds no break, the ruptura never occurred as it did in European countries because the idea that dominated our imaginary was always connected to the need to construct a modem Brazilian nation. 64
62. GARCiA CANCLINI. Nestor. CultlU'e and power: the state of Ieseach, Media, culture and society. 10, 1988, P. 495.
63. Ibid., p. 485.
64. ORTIZ. Renato. Arnodema tradi~o brasileira. CuiUtra brasileira e indUstria cultural Sio Paulo: BrasiUense, 1988, p.
In Latin America, in effect, the kind of institutionalization that guaranteed the autonomy of the three value spheres did not take place 209. in any rigorous fashion. Knowlegde, politics, and aesthetics above all, continually cross-fertilize each other. Thus, Brazilian avant-gardes-in contrast to the European avant-gardes which, according to Peter Biirger, sought to reintegrate art and the "praxis of life" by dismantling institutionalization-were not so much a break with the (indigenous, Afro-Brazilian and Luso-colonial) past as a rearticulation of it is their attempts to establish a national culture. Mario de Andrade, one of the leaders of Modernismo in the 1920s, confessed that this movement "anticipated and prepared the way for the creation pf a new state of national being," alluding to Getlilio Vargas's Estado Novo, which centralized the economy and all state apparatuses under 65 ANDRADE. MBrlode. one directorate. 65 Movimento ModemisParadoxically, modernity in Latin America is more a question o ta.ln:-. Aspectosda Liteof establishing new relationships with tradition than of surpassing it. ralura Brasileira. Sio Among the many ways in which this can be done, cultural critics have Paulo: n. d. emphasized the role of pastiche, that appropriative form of stylization which neither rejects nor celebrates the past but, in the words of 66. SANTIAGO, SilviaSilviano Santiago, "assumes it. .. 66 In a very insightful essay, San- no. peIJIJIUlCncia do distiago not only explains how the Brazilian avant-garde can be CIU'SO da tradi~o no moIn: BORNrethought in relation to tradition, he even suggests that the avant- demismo. HElM, Gerdet atiL Cultu-
Postmodernity and Trasoational Capitalism ... ra Brasileira: TradiraojConlradirtio. Rio de Janeiro: Jmge ZaharJFunarte, 1987. p. 136.
67. Ibid., p. 124.
68. DERRIDA, Iacques. Of Grammatology. Intro. and trans. Gayatty Chaktavorty Spivak Baltimore: Johns Hopkins, 1976.
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garde may itself be rearticulated for present cultural circumstances, although it will be necessary to de-emphasize the transgressive poetics of ruptura that does not hold in many Latin American cases. Santiago illustrates his premise with the Modernistas' interest in recuperating Brazil's baroque colonial heritage. The most interesting case... of the relationship of Modernismo to tradition, which also permits us to disengage Modemismo from any neoconservative appropriations, is the trip taken by Mario and Oswald de Andrade and Blaise Cendrars to Minas Gerais in 1924. Those poets were totally steeped in futurist principles, they had an absolute belief in the civilization of machines and progress. But suddenly they decided to travel in search of colonial Brasil. There they encountered our national history and-more important to the point we're making-the primitivism of Minas's eighteenth century baroque. 67 Santiago goes on to explain that this rearticulation and recuperation of tradition is achieved by means of suplementation, the process by which the excluded is reincorporated into the status quo. Santiago, however, uses Derrida's notion-as laid out in O/Grammatology-somewhat against the grain. Derrida invokes the tenn according to the rhetoric of marginality such that whatever is excluded is a threat to the status 2suo. Metaphors of violence and danger abound in his exposition of it. It is because modernity continued to privilege tradition-as it did Nature -, that innovation could be construed as supplement. The radical avant-gardes exposed modernity's ideological strategies of "naturalization" and inverted the paradigm, transfonning innovation-ruptura-into a continually self-supplemen~g process. By doing this, however, they obviated any role for tradition. Subsequently, poststructuralists fetishized the inversion as ecriture (Derrida),le semiotique (Kristeva), andjouissance (Barthes); they attempted to exorcise the straw man of modernity-and its demon, Cartesian subjectivity- and mine the foundational lack left in its place. By doing so, however, they lapsed into a negative theology that revered the signifier hovering over the abyss of absence. Many Latin American writers and critics-especially Paz, Sarduy, Rodriguez Monegal, Haroldo and Augusto de Campos-were seduced into thinking they could more easily occupy this privileged place, since Latin American culture had always been dermed as a fonn of lack (by elite intellectuals). This is the point of Lihn's parody of ninguneismo quoted above. But this rhetoric of marginality can
108 - Rev. Hm. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 also be quite hubristic; Latin America intellectuals declare themselves superior because from their marginal place they cannibalize everything, suck all values into the black hole. In an essay in which he puts his own literary movement-concretismo-at the pinnacle of this •• anthropophagic rationality," Haroldo de Campos proclams that writers of a supposedly peripheral literature suddenly appropriated the entirety of the code, claming it as their own patrimony, like a hollow prize awaiting a new historical subject. They thus restored a more universal and radical function to poetics. The Brazilian [concrete poetry ~ove ment).was its condition ofpossibility.69 A rethinking of the avant-garde, however, makes it possible to rearticulate tradition as a supplement that does not subordinate the other elements of the articulation. According to Santiago: Pastiche does not reject the past in a gesture of mockery, contempt or irony. Pastiche accepts the past as it is and the work of art is nothing but a supplement. (. .. ) The supplement is something which you add to something already complete. I would not say that pastiche is reverence towards the past, but I would say that it assumes [endossa) the past, contrary to parody which always ridicules it. 70 Santiago, in fact, envisions cultural articulations that can include avant-garde practices that can take their place next to elements from other traditions. Universalizing modes of democratization have not been the most successful in Latin America. This is due not only to their encounter with economic underdevelopment or authoritarian and charismatic forms of state power. It is also due to in great part to the tendency to understand ,democratization in terms of modernization, that is, the eradication of traditions whose "enchanted" or "auratic" modes of life may prove inimical to coexistence with others or to the projects of elites and their allies. The problem is, of course, that modernization has severely handicapped many groups who hold to these traditions. And the problems have only gotten worse with the tum to the right under the aegis of neoconservatism. Facile proclamations of Latin America's cannibalizing subersi veness at best mask the problem. Marginality is not willy nilly transformed into a share of the common wealth. Habbermas is certainly correct when he contends that neoconservative and •• anarchistic" postmoderns are not at odds but, rather, serve the same purpose. To celebrate "parasitism" (whose
69. CAMPOS, Haroldo de. Da razao antropofagica: a Europa sob osigno da dev~iio. CoIOquio Letras. 62, June 1981, p. 19.
70. Ibid., p. 136.
Postmodemity and Trasnational Capitalism... -
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Latin American correlate is the problem of informal economies) or the hyperreal (which in Latin America is wrought by the hyperinflationary effects of the external debt and narcotraffic) is like cheerleading on the sidelines as neoconservatives sell out the citizenry. The rearticulation of the traditions of Latin America's cultural heterogeneity, on the other hand, provides one of the most significant ways for furthering democratization. Liberation theology and the Christian Base Communities, with their emphasis on concientizacion achieved through rewriting the gospels in light of everyday experiences, have paved the way for other social movements to seek recognition and enfrachisement. In the past, the representation of the interests of the array of groups that make up this cultural heterogeneity was either absent from the public sphere or projected by elites who sought to maintain their own hegemony. Pastiche, as Santiago defines it, is the literary counterpart of those rearticulatory practices that seek to assume alternative traditions within modernity. These involve the struggles for interpretive power on the part of peasants, women, ethnic, racial, and religious groups. For interpretive power enables them to justify their needs and on that basis demand satisfaction. The criteria, forms, and terms of these rearticulatory practices are both old and new. Old because they draw from their traditions~ new because they no longer operate solely within the framework of class or nation. Jameson could not be more wrong with respect to the significance of Latin American cultural practices. They are not "national allegories." They are not allegories at all. They are, on the contrary, practices for or against democratization, for or agaist the recognition, representation, and enfrachisement of all as citizens.
MACHADO DE ASSIS: A CONSCIENCIA DO TEMPO "..
Dirce Côrtes Riedel
D~ONTINUIDADEDAN~~A
o
tempo da vida torna-se tempo humano na medida em que é experimentado na narrativa e se faz literatura. Confira- sea falado jaglUlÇO aposentado Riobaldo, de Guimarães Rosa: "Narraréqueévivermesmo", que nos conduz a Goethe, para quem a vida como tal não fonna um todo: a natureza pode produzir seres vivos, mas eles são indiferentes; a arte pode só produzir seres mortos, mas eles são insignificantes. Se considerarmos o tempo da narrati va em Machado, custa crer que a fragmentação da seqüência, a estrutura episódica, a atitude antidiscursiva tenham sido atribuídas por intelectuais da época-incluindo Sílvio Romero e Raul Pompéia-à gagueira e à epilepsia do autor. Numa visão irônica, o próprio Machado compara o seu estilo anti-oratório ao andar dos ébrios que" guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem ... " Um das determinantes da descontinuidade do texto machadiano é a enunciação do narrador, que vai sendo enunciada e se faz enunciado, passando de ato a fato comentado pela própria enunciação, no que se afasta do realismo e do naturalismo da época. Esse "descompasso entre a realidade e o texto" -transformação da "linguagem da realidade em realidade da linguagem" -insere Machado na tradição de Luciano, Varão, Sêneca, Erasmo, Sterne, inserindo-o também na modernidade deste nosso século XX. Considere-se a convergência de Thomas Mann, Proust, Sartre, Huxley e Machado
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de Assis. Reafinne-se a aproximação de Sterne, confessada por Machado, nas digressões, em que o corte transversal no tempo da narrativa detennina a seleção em profundidade do material a narrar. E assinale-se a filiação da ficção machadiana ao seu jornalismo que, nas crônicas e folhetins, já aponta para a modernidade, com a "ruptura da ordem filosófico-artístico-social" . A RECONSTITUIÇÃO DO TEMPO PELA MEMÓRIA As relações entre o narrador machadiano e o seu passado não são, como as de Proust, na maior parte estabelecidas pela memória afetiva das sensações. Freqüentemente é a memória voluntária, a da inteligência, que guia um narrador, bem certo da sua busca, embora nem sempre do seu achado. Nessa revisão das sensações, o narrador exercita o seu gosto pela análise: Sempre me sucedeu apreciar a maneira por que os caracteres se exprimem e se compõem, e muitas vezes não me desgosta o arranjo dos próprios fatos. Gosto de ver e antever, e também de concluir. (Memorial de Aires). Esse concluir supõe em Machado a correção do trágico pelo grotesco, comum na tradição dos seguidores da sátira menipéia. É atitude de narrador que confessa escrever, "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia", "uma obra de filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem constrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado". Brás Cubas é um defunto autor que, prestes a deixar o mundo, sente "um prazer satânico em mofar dele" . As reflexões ditadas pela consciência que do tempo têm os personagens machadianos são paradoxais: vão da descontinuidade, do fluir, da irreversibilidade, da corrosão ante a qual o homem é impotente, do aspecto cíclico até a desigualdade entre o tempo exterior e o tempo humano. Brás Cubas faz a distinção entre cronologia romanesca e cronologia histórica quando deixa de se referir a fatos de sua vida que poderiam parecer importantes para o leitor: "Teria de escrever um diário de viagem e não umas memórias, como estas são, nas quais só entra a substância da vida". (p.95). Se não desenvolve essa reflexão sobre a cronologia, é que o narrador machadiano é avesso a teorias e métodos, de cuja tranqüilidade, foge, aceitando-a só na agonia, para "morrer tranqüilamente, metodicamente ... "
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A extensão e a tensão de cada cena da narrativa é detenninada pela quantidade e intensidade das sensações e emoções evocadas. Porque a lembrança do enterro do pai é convencional, protocolar, a narrativa de Brás Cubas chega à linguagem telegráfica, simples notação para um capítulo que não vale a pena escrever, pois o tempo emocional não o registrou: Soluços, lágrimas, casa annada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão; eça, tocheiros ... E prossegue o registro que assim tennina: Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.
o defunto autor pede desculpas à Virgília pela diferença de linguagem que exprime dois momentos diferentes do tempo interior e que justificava a sua volubilidade de narrar: Tu que me lês, se ainda fores viva quando estas páginas vierem à luz, tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que empreguei quanto te vi? Crê que era tão sincera então como agora (... ) Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos? (... ) Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não, é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vennes. Cruzam-se planos temporais como no Doutor Fausto, de Thomas Mann, em que os "liames que a consciência tece" detennina vários planos: o tempo da fala do diabo, propondo o pacto e preparando a antecipação do Inferno para o compositor Adrian; o tempo do relato dessa fala por Adrian; o tempo da transposição desse relato pelo narrador, transportando-o do papel de Adrian para o seu manuscrito, letra por letra-capítulo que o narrador diz que só teve que copiar... mas se trata de uma transcrição interpretativa, acompanhada de reflexões-uma ocupação tão "intensa e absorvente" como a
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fonnulação de idéias pessoais. Esse é o tempo da escrita do romance, o tempo no qual avança o narrador em relação ao outro tempo, no qual decorrem os fatos narrados. É um entrelaçamento de épocas destinadas a se unirem com o período em que o leitor um dia talvez se apresente para tomar conhecimento do que o narrador comunica. A partir de Santo Agostinho, observa-se que o tempo não tem ser, porque o futuro não é ainda, o passado não é mais e o presente não é sempre, isto é, não dura. Justifica-se assim a indagação do jagunço Riobaldo de Grande Sertão: Veredas: "quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade?" Esse significado que se põe na vida é a cruel indagação de D. Casmurro: saber "se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos", esclarecendo ao leitor: "se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como o fruto dentro da casca". Se para Santo Agostinho o tempo não é medido pelos movimentos dos corpos celestes, só podemos medir o tempo que passa, pois o passado e o futuro não são, e o presente está sempre em trânsito. Trata-se portanto de uma sensação espacial e por isso Agostinho volta-se para si mesmo: "É em ti, meus espírito, que eu meço os tempos". "A impressão que as coisas, passando, fazem de ti, pennanece depois da sua passagem, e é ela (a impressão) que eu meço quando está presente, e não essas coisas que passam a produzi-la". Em D. Casmurro, a administração interina do pai de Capitu-O Pádua-foi o centro do seu calendário subjetivo. O narrador, comentando esse "fenômeno interessante" , descronologiza o enredo, organizando uma temporalidade espacial particular: Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a hégira donde ele contava para diante e para trás. Mas como Machado é um romancista do perecível, os seus personagens, pessimistas e violadores de sistemas e doutrinas autoritários, reforçam o aspecto externo destruidor do tempo que "caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas". O tempo é o rato "roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto". (Esaú e Jacó). "Matamos o tempo; o tempo nos enterra". (Memórias póstumas de Brás Cubas). "Um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome" (Memorial de Aires). O tempo é o "ministro da morte". Nessa visão destruidora se fundem traços de Pascal, de Shopenhauer,
114 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n~ 1 - 03/91 de Heráclito, de Luciano de Samosata, em cujos epigramas se lê: "Tudo é mortal para os mortais: tudo passa junto a nós; se não somos nós que passamos ao lado das coisas" . O que caracteriza a experiência dos personagens de Machado de Assis é a fragmentação da sua identidade que não encontra um eu unificador na experiência moderna da vida urbana, explica Kátia Muricy. Nessa retomada da problemática romântica da unidade perdida, o personagem machadiano sai perdendo, mas a narrativa é resgatada pelo tom irônico-pejorativo ou lírico-irônico, em que a mutabilidade do tempo exterior pode sugerir a do tempo interior, como no capítulo CXV de Memórias póstumas de Brás Cubas. Virgília parte para a Europa com o marido e seu amante não derrama lágrimas nem se desespera. E mais, almoça regiamente. "Ai dor! era preciso enterrar magnificamente os seus amores. Eles lá iam mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-m~ ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficavame para os não ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde?" . Um tempo poderosamente irreversível diante do qual o homem é impotente. Na visão reflexiva e conciliadora do Conselheiro Aires, o tempo é um dragão, "juntamente vivo e defunto, e tanto valia matá-lo como nutri-lo" . Um tempo ao qual Deus dá "Habeas- Corpus" (p.76) para tornar as coisas tão frágeis que "entre luz e fusco tudo há de ser breve como esse instante" (Memórias póstumas de Brás Cubas). A irreversibilidade do tempo à maneira do Eclesiastes, é um dos tons amargos do desalento machadiano. Amargura que Machado tempera com o grotesco dos cinqüenta anos de Brás Cubas que se sente remoçar quando dança uma valsa embriagando-se "das luzes, das flores, dos cristais, dos olhos bonitos e do borborinho surdo e ligeiro das conversas particulares". Mas, meia hora depois, ao retirar-se do baile, que é que vai achar no fundo do carro?-Os seus cinqüenta anos. E pareceu-lhe "ouvir de um morcego encarapitado no tejadilho:-Sr. Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas-enfim, nos outros" (Memórias póstumas de Brás Cubas). . Ao observar, no romance laiá Garcia, que "o tempo esse químico invisível, dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais" , Machado retoma Pascal, para quem cada instante é singular e único: "C .. ) não há homem mais diferente de um outro do que de si mesmo nos diversos tempos" (Pensus). Retoma Pascal para quem não nos reencontramos, não nos reconhecemos: "No instante em que o homem atinge o instante, o instante passa, porque ele é o instante" .
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As reflexões sobre a eternidade são do Conselheiro Aires, um espectador complacente, já mais enternecido ante a miséria humana. E mesmo assim são reflexões irônicas e tragicômicas. Quando Aires sabe que Fidélia tivera, num sonho, a aparição do pai e do sogro, inimigos em vida, agora de mãos dadas, observa: que "a reconciliàção eterna, entre dois adversários eleitorais, devia ser exatamente um castigo infinito. Não conh~ço igual na Divina Comédia. Deus, quando quer ser Dante, é maior que Dante" . O poder da arte é ·capaz de realizar o tempo medido pela distância interior humana: "C ... ) o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo, também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro" CEsaú e Jacó). E "o que nos faz senhores da terra é esse poder de restaurar o passado para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos" (Memórias póstumas de Brás Cubas). TEMPO HISTÓRICO Quanto ao tempo histórico, John Gledson esclarece ser compreensível que os críticos tenham subestimado a importância datransformação histórica na obra de Machado, pois ele próprio mostra como pode ela ser ignorada, com efeito apenas marginal na sanidade, bem explorada com objetivos cegamente egoístas .. Confira-se o passado irrecuperável de Brás Cubas, de D. Casmurro, do Conselheiro Aires, historiadores nada confiáveis ou bastante confiáveis. Neles a memória pública passa pela versão da memória particular: de um cético Brás Cubas, cuja vida soma negativas a negativas; de um Casmurro desalentado, parcial e obsessivo; de um Conselheiro "ator aposentado", que tem a paixão de reviver o passado, .simulando possuir olhos que perderam a natural agudeza, mas tendo paradoxalmente hábitos que o levam a conter-se, preocupado com a meticulosa notação do tempo cronológico e o gosto da reflexão e da análise. E ainda de Rubião, herdeiro do Humanitismo de Quincas Borba, que inverte a lógica das categorias bem/mal, virtude/vício C" Ao vencedor, as batatas!"), entroncando em Rabelais, Cervantes, Swift, Voltaire, linha da sátira menipéia, e dissolvendo a tradicional integridade história para reconstruí-la no ritmo do delírio da loucura. Os textos machadianos, pensando a história ficcionalmente, justificam o humorismo do seu autor: "Viva pois a história, a volúvel história que dá para rudo", a "loureira", "com caprichos de dama elegante". É que, com Machado de Assis, temos um tempo histórico revisionado pelas contOTSÕes do tragicômico, pelo impulso da imaginação. Confira-se a Crônica de 15-09-1876, a propósito da retifica-
116 - Rev.Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 ção da história da independência brasileira: .. A lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência naci~nal, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima( ... ). Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico" . O passado, dimensão fundamental do tempo, pode aparecer de diversas maneiras, dependendo das significações que o presente lhe empresta a partir de interpretações múltiplas e diversificadas. E é através da imaginação literária que o ficcionista Machado de Assis pensa a transitoriedade do tempo.
AS ESCRITURAS DA MORTE Maria Luiza Ramos
Quer seja considerada na sua acepção primeira, como marco da existência de mn ser, ou na extensão de sentido que a faz significar a travessia de todas as coisas de mn tempo presente a um tempo passado, a morte é necessariamente a razão de ser de todo ato de memória. &ta representa a continuidade por mna certa neutralização dos efeitos daquela e é, pois, por ~ via, que pretendo dirigir a minha reflexão. Retomo duas palavras que ainda agora empreguei: marco, em "marco do fim da existência" e travessia, em "a travessia de todas as coisas de um tempo presente a mn tempo passado". É curioso observar que ambas denotam não o fim, mas o limite, a passagem, a repartição. E esse sentido de parte está contido no termo grego móros, -Oll, bem como em todos os outros da mesma raiz que teria originado o latim mors, -tis. A palavra significa ainda fado, destino, de tal forma que a morte pode ser vista não só como um fato inexorável, mas também como parte, parcela de uma vida que não se pode, portanto, confundir com uma determinada existência em particular, que não se restringe aos limites do nascimento e da morte, mas projeta-se no antes e no depois, no intangível, no absoluto. Assim, se o que morre desaparece, de uma forma ou de outra permanece, como parte de um processo que tanto pode dar-se na natureza, quanto no seio de uma certa cultura, onde transita do ético ao estético e ao metafísico. De qualquer perspectiva, portanto, através da qual a morte seja considerada, o homem encontra sempre uma maneira de apropriar-se dela, dominando-a por meio de ritos, denegando-a, fantasmatizando-a, de modo a livrar-se da angústia que o desconhecido provoca, do medo do caos em que todas as referências
118 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 se perdem. Apesar de se poder caracterizar no culto da morte o reflexo da visão de mundo de uma determinada sociedade, Jean-Pierre Vernant observa, na "Introdução" a La mort. les morts dans les saciétés anciennes, livro organizado juntamente com G. Gnoli, que a ideologia funerária não aparece apenas como eco, em que se reduplicaria a sociedade dos vivos. Ela defme todo o trabalho que aciona o imaginário social para elaborar uma aculturação da morte, para assimilá-la civiIizando-a, para assegurar, no plano institucional, sua "gestão", segundo uma estratégia adaptada às exigências da vida coletiva. Quase que se poderia falar de uma "política" da morte, que todo grupo social, para se afirmar nas suas características específicas, para perdurar nas suas estruturas e suas orientações, deve instaurar e conduzir continuamente conforme regras que lhe são próprias. 1 Tanto nessa obra, quanto em outra mais recente, em que esse mesmo texto é publicado, entre outros, com o título de "Índia, Mesopotâmia e Grécia: três ideologias da morte ,,2, Vemant estuda comparativamente os rituais funerários dessas culturas, de modo a captar na exteriorização do culto a transcendência da sua motivação. Apesar de a "bela morte" ser originariamente uma característica dos cantos épicos da Grécia arcaica, que encontraram eco na oratória da cité democrática é a bela morte, com ou sem aspas, e as formas de sua inscrição na memória coletiva, que me disponho a considerar neste texto, estendendo a minha abordagem a uma cultura em tudo distinta das demais estudadas por Vemant, ou seja, a de uma sociedade indígena brasileira, tal como nos é apresentada no romance Maíra, de Darcy Ribeiro. 3 Maíra é uma obra de ficção, de modo que a morte de Anacã, o chefe da tribo Mairum, é uma morte literdria pois a cultura indígena não nos é familiar e só através da literatura temos conhecimento dela. Mas, de qualquer modo, a "bela morte" dos gregos é também literária. Aliás, é duplamente literária, ou literária por excelência, uma vez que, além de a conhecermos através da literatura, a narrativa é a sua razão de ser. Veja-se como Nicole Loraux a ela se refere: Se se acrescenta que, como façanha suprema, a morte do guerreiro atrai irresistivelmente o canto do poeta, a prosa do orador, então é .evidente que a bela morte já é em si mesma discurso: um atapos retórico, o lugar privilegiado do enraizamento de uma ideologia, do mundo de Aquiles ao da cité democrática. 4
1. GNOLI, G. e VERNANT, J.-P. - sous la direction de - La morto les morls danS les sociélés anciennes. London, Paris: Cambridge University Press, Editions de la Maison des Sciences de I'Homme. 1982,p. 7. 2. VERNANT,Iean-Pierre. L 'individUo la mono ['amour - soi-même el l'autre en Grece anciellne. Paris: Gallimard, 1989.
3. RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
4. LORAUX, Nico1e. Mourir devant Troie.
As Escrituras da Morte tomberpor Athenes: de la gloire du héros à I'idée de la cité. In: GNOLI e VERNANT. Op. cit., p. 32.
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Como em tudo que se narra nos cantos homéricos, a ~'bela morte" se caracteriza por um certo número de clichês: a beleza, a juventude, a virilidade, a honra, a bravura e o paradoxo de uma invencibilidade que se afirma justamente no ato de ser o guerreiro vencido, de sucumbir diante de um valoroso adversário. E são essas mortes exemplares o que aqui nos interessa, ou seja, a morte doS guerreiros mais valorosos, os votados ao destino de he rói que, como se sabe, constitui uma categoria intermediária entre a massa indistinta dos mortais-os anônimos-e os habitantes do Olimpo. Os deuses tinham a sua existência enraizada no discurso, no mythos que identificava a cada um por uma determinada narrativa e sobretudo no nome que, freqüentemente, expressava metonimicamente os traços mais característicos de sua história. A principal condição, portanto, para compartilhar de uma existência divina era tornar-se discurso, perpetuar-se de boca em boca através de gerações, viver na voz e pela voz, confundindo-se com o sopro, com a sacralidade do logos anterior à escritura. Segundo a tradição arcaica, a "bela morte" engloba o belo morto, cujo corpo se dá em espetáculo. O conceito não se restringe ao ritual dos cuidados com o cadáver, lavado, untado com óleos perfumados e adornado de valiosas vestes e adereços. Essa beleza é antes a do momento mesmo da morte, a do corpo estendido no 'campo de batalha, semidesnudo, ensangüentado e sujo, mas radioso, motivo de admiração e de desejo, cristalizando na morte a flor da idade, a perene juventude própria dos deuses, cujo universo o herói passa a . compartilhar. Vernant observa que o combate se dá menos entre um guerreiro e outro, do que entre um guerreiro e um monstro, pois este é imprescindível em qualquer luta digna de quem ambiciona poderes sobrenaturais. E o adversário não é, nesse caso, o inimigo com que se combate de igual para igual, mas a destinação do homem para a velhice e a decrepitude, estas sim, manifestações da morte considerada de uma perspectiva realista, enquanto simbolicamente representada pelas Górgonas, através de figurações femininas, odiendas e destrutivas.
5. VERNANT,Jean-Pier-
re. Mor! grecque mott à deux faces. In: Op. cit., p.
84.
A "bela morte" da epopéia não é, portanto, apenas ética e literária, mas estética em sentido amplo, uma vez qlle no cadáver estendido no campo de batalha, diz o poeta: "tudo é beleza. ,,5 O caráter perverso da relação com o "belo morto" torna-se mais claro na medida em que, paralelamente a esse sublime espetáculo, a tradição fala da repugnância que provoca a morte de um ancião, cujo cadáver é visto como ignóbil e abjeto:
120 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n~ 1 - 03/91 Porque, em verdade, é uma coisa feia que um homem mais velho, caído na primeira fileira, reste diante dos jovens, cabeça branca e barba cinza, tendo exalado o seu valente ardor na poeira, tendo nas mãos o sexo ensangüentadohorror para os olhos, vergonha de se contempl ar. 6
o horror pelo cadáver desnudo do ancião,
com o sexo nas mãos-atitude bastante falsa, se se considera o contexto da batalhaé uma maneira de se afirmar, pelo contraste, a atração exercida pelo corpo viril do belo morto, dado em espetáculo como lugar da admiração e do desejo. E o testemunho de que o verdadeiro inimigo a vencer não é o guerreiro adversário, mas a morte que se acompanha de uma velhice ignóbil, é dado paralelamente por Sarpedão e Aquiles-imagens especulares situadas no centro da batalha. Ambos os guerreiros deixam escapar, como num lapso, o verdadeiro motivo do ideal heróico. O primeiro, no contexto da própria llíada, nesta exortação: Se escapar a esta guerra, declara, nos permitisse viver eternamente ao abrigo da velhice e da morte, não seria eu certamente que combateria na primeira fileira, nem te mandaria para a batalha onde o homem conquista a glória c. .. ) Mas, já que nenhum mortal pode escapar à morte, vamos lá, que concedamos a glória a um outro, ou que ele a conceda . 7 anos.
6. VERNANT,Jean-Pierre. La belle mort et le C3davre outragé. In: Op. cit.,
p.65.
7. Idem, idem,p. 52.
Do mesmo modo, na Odisséia, quando Ulisses visita o Hades e dentre outras almas que lá encontra, saúda a de Aquiles chamando-o "o mais feliz" dos seres, esta responde com uma amarga revelação: Não venha me cantar o elogio da morte para me consolar; eu gostaria mais de vi ver como o último dos servos a serviço de um qualquer do que reinar como senhor sobre a massa inumerável dos mortos. 8 O morrer para não morrer é um paradoxo. Mas, como observa Joyce McDougall em Théâtres dUje,9 é justamente o culto do impossível que caracteriza as estruturas narcísicas, para as quais o envelhecimento e a morte constituem uma terrível ameaça. A "bela morte" nos parece constituir, assim, um momento dramático do que a autora chama "teatro do impossível" que, extrapolanao os limites do imaginário individual, define o comportamento de toda uma cultura.
8. Idem, Mort grecque mort à deux faces. Op. cit., p. 86. 9. Cf. McDOUGALL, Joyce. I1léâtresduje. Paris: Gallimard. 1982, p. 41.
As &crituras da Morte -
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o prêmio da "bela morte" não reside, portanto, na dimensão metafísica de uma outra existência, em um paraíso qualquer. Ele se conquista na própria sociedade de que faz parte o herói, mas com a condição, a nosso ver, de sua exclusão nessa sociedade como significado e a sua inserção nela sob a categoria de significante. Da Grécia à Mesopotâmia e à índia, as profundas diferenças que se verificam nos rituais funerários dessas culturas presidem, mais do que espelham, à diferença ideológica que existe entre elas. Na Grécia, passado o momento de contemplação estética, o cadáver do "belo morto" era cremado, preservando-se, assim, da deterioração ignóbil. Mas, como vimos, o que de fato se salvava era o nome do herói, a sua existência sob a forma de narrativa. Já os mesopotâmios preocupavam-se com a integridade dos despojos, sobretudo em se tratando dos reis, pois consideramos aqui as mortes exemplares. Cuidava-se para que, depois de inumado o cadáver, enterrado de pé, ricamente vestido, como em vida, a sua forma humana perdurasse pelo menos no esqueleto, protegido em uma morada subterrânea. E nesse novo espaço preservavam-se igualmente os bens materiais, de tal forma que as tumbas abrigassem ainda os pertences reais, os tesouros que perpetuariam a existência do morto na memória coletiva. Confundiam-se o poder e a riqueza, de modo que, ao se conquistar uma cidade, violavam-se primeiramente as tumbas magnificentes, nào apenas pelo valor material que abrigavam, mas pelo significado simbólico da conquista do poder pelo aniquilamento das bases de sua tradição. Da Grécia à Mesopotâmia observa-se, portanto, uma mudança na forma de inscrição do morto na memória coletiva. A diferença reside na modalidade de escritura, que passa da semiótica literária à semiótica dos objetos, os quais assumem, pois, a função de significante. Mas, tornando à raiz da palavra, onde melhor se encontre, talvez, o conceito de morte como parte, parcela, como vimos de início, é no contexto da civilização indu. E o morrer não é na índia apenas um fado, mas sim uma aspiração coletiva. o profundo desapego, tanto pelos bens materiais quanto pelo renome ou qualquer forma de prestígio social, se mostra pelo não lugar a que faz jus o morto. Depois de cremado o cadáver, suas cinzas se dispersam no vento e nas águas, reintegrando-se no
122 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 todo, que é a razão de ser do insignificante fragmento representado pela existência terrena. ~ desapego faz também com que a morte considerada exemplar, ao contrário do que sucede com o herói ou com o rei, seja a daquele que em vida renuncia aos bens e à glória, purificando-se de tal forma na prática cotidiana, que seu cadáver não necessita de cremação. Ele já se consumiu no fogo de sua ascese e é enterrado na mesma posiíão em que passou a maior parte de sua vida: sentado para meditação. 1 O túmulo que se erige nesse lugar não privilegia nenhum território particular, nenhum passado individual, nenhuma história,mas, pelo contrário, assinala uma anti-história, pois,
10. Idem, Trois idéologies de la morto In: Op. cil.,p.110.
aquele que se aliena do processo social já assume, em vida, a função de significante de uma outra dimensão existencial. De qualquer forma, perpetuando o louvor dos feitos heróicos, o esplendor dos valiosos pertences ou, pelo contrário, a renúncia exemplar aos laços terrenos, o ritual funerário expressa em cada uma dessas culturas uma feição particular de seu grande Outro. Trata-se de três grandes civilizações, para cuja história a morte fornece uma particular forma de escritura. Já no contexto selvagem da tribo Mairum, em que a narrativa do ritual funerário do chefe Anacã se estende por cerca de um terço do romance de Darcy Ribeiro, o cadáver, não sendo nem sepultado nem cremado, empresta à morte uma escritura singular. Primeiramente, a morte é predeterminada como momento de saturação de uma existência plena. O chefe decide que vai deitar-se para dormir e não mais acordar, pois já viveu bastante e é preciso que se afaste para que a vida de seu povo se renove. Não há qu~lquer referência à aspiração de uma nova forma de vida, melhor ou pior do que aquela já experimentada. Não há sepultamento nem cremação, nada que faça desaparecer o cadáver por motivos éticos ou metafísicos. Pelo contrário. O cadáver é colocado em cova aberta, recoberto com uma leve camada de terra e regado todos os dias, como uma semente de que se alastra não o ramo, mas o cheiro: Apodrece e fede com uma catinga doce, penetrante, terrível. Sua presença já se sente conforme sopre o vento, desde as dunas do lparanã até o oco da mata. Não é um fedor de carniça de bicho morto ou de defunto desenterrado. É um cheiro agudo como ponta de flecha, leve como penugem, cortante como lasca de taquara. E sempre eternamente presente no nariz de cada um. Até no meio da mata, caçando,
11. RIBEIRO, Darcy. Op. cit.,p.43.
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fugindo dele, ele cheira; levado na pele, nos cabelos, sabese lá onde. 11 O longo tempo da decomposição é preenchido por uma série de ritos de iniciação entre os membros da tribo, pois o motivo dessa morte não está ligado a qualquer aspiração de ordem pessoal, mas se declara como o propósito de que a vida da aldeia se renove. A poética descrição do escritor não invalida, entretanto, o fato de que se trata de uma catinga, o que representa, por certo, uma forma de tortura imposta à comunidade. Mas trata-se justamente de um rito de passagem e a tortura é a condição desses ritos, como se pode ver no próprio romance de Darcy Ribeiro, que narra a crueldade de muitas dessas cerimônias iniciatórias, verificadas durante o tempo que dura a pOdridão de Anacã. A esse respeito, lembre-se o que registra Pierre Clastres, ao estudar a função da tortura nas sociedades primitivas:
12. CLASTRES, Pierre. A sociedade c01ltra o estado. Tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
Na medida em que a iniciação é, inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, esta se exprime-se é que podemos dizê-lo-no silêncio oposto ao sofrimento. Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada com a faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciatório, a sociedade imprime a sua marca no corpo dos jovens. 12 O Autor considera, por certo, as formas de tortura inscritas no corpo, mas sobre o corpo, ou seja, na pele. Assim, o número dos sulcos, a profundidade das escaras provocadas pela dilaceração dos tecidos, ou a extensão das deformações causadas pela inchação das pernas ou pelo alongamento dos beiços, tudo isto são significantes que atestam, de um lado, a coragem do indivíduo, por outro, a sua categoria no seio da sociedade. Os rituais funerários de Anacã constituem, entretanto, um rito de passagem todo especial, pelo fato de não se ater a uma determinada faixa etária, mas a toda a comunidade. Já vimos que a perpetuação do morto na Mesopotâmia se dava pela preservação de um determinado espaço, ocupado tanto pelo cadáver ou rei quanto pelos seus pertences, a ele defmitivamente anexados. Privilegiava-se um território, e era desse lugar que o poder continuava a se exercer sobre o povo.
124 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 Entre os Mairuns, entretanto, é o próprio povo que constitui o lugar da pennanência de seu chefe: As rajadas de vento não lavam o ar, apenas revolvem a catinga e a devolvem concentrada. Nunca Anacã, o tuxaua, esteve tão presente e dominador. 13
13. Idem, idem, p. 55.
Nesse culto pagão, o cadáver, antes de ser excluído do território, lhe é imposto. Confundindo-se com o ar que as pessoas respiram, essa podridão que as impregna, que penetra em seus corpos tornando-se um com eles, é, pois, o que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. O que não respeita os limites, os lugares, as regras. O entredois, o ambíguo, o misto. 14 Eu gostaria de me deter nessa observação de Kristeva, em Pouvoirs de ['horreur, para analisar os componentes de sua possível casualidade. O cadáver desempenharia, sim, o papel de ambíguo por excelência, não apenas no contexto do simbólico judaico, segundo o qual o corpo morto, desprovido de alma, é um homem e, ao mesmo tempo, não o é, mas também, e sobretudo, por causa da sua modalidade de existir, em que se podem observar dois aspectos: - o cadáver exala, o que equivale dizer que ele desrespeita as fronteiras do dentro/fora, dado à sua existência ao mesmo tempo sólida e gasosa; - construindo um ser gasoso, ele é inalado, ou seja, desrespeita também os limites do domínio corporal de outros indivíduos, à medida que, pelo próprio ato da respiração, ele é absorvido, passando a fazer parte de seus corpos. Isto traduz um ato canibalesco, o que, considerado de um outro ângulo, representaria também um ato incestuoso-esse um-só-corpo da relação mãe/filho. O fato é que um cadáver não se expõe senão na medida em que se impõe, sendo impossível expor-se um cadáver sem que ele invada o lugar do outro. Assim, do mesmo modo que o herói grego passa a viver numa dimensão literária; que o rei mesopotâmio permanece nas dimensões de sua riqueza e o místico indu se dispersa numa dimensão espiritual, o chefe indígena se inscreve nas entranhas de seu povo. Verifica-se desse modo uma inversão de valores, na medida em que a função paterna cede lugar à função materna, ao estágio dual em que o corpo assume um papel predominante. Não a pele, como vimos no caso das torturas inerentes aos ritos iniciatórios, em que o corpo é o espaço em que a lei se escreve, mas o próprio corpo, em que a catinga de Anacã se inscreve.
14. Kristeva, Julia. PouI'oir de ['!torreur. Paris: Seuil, 1980, p. 12.
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De uma dimensão simbólica em que, ao nível do grande Outro, realizam-se os ritos através dos quais se perpetua a memória coleti va, regride-se, pois a uma relação imaginária mais arcaica, própria do pequeno outro, sem a mediação de significante. E há ainda outro aspecto que deve ser aqui considerado. O simbólico judaico, estudado por Kristeva, atribui ao cadáver uma categoria de "poluição fundamental" , pela qual deve ele ser excluído do território. Creio, porém, que isto se daria não só pela sua alegada condição de não-corpo, pois desprovido de alma, mas pelo fato mesmo de que ele é um mais-corpo, ao mesmo tempo sólido e gasoso. Essa dimensão torna-se evidente na descrição da decomposição do cadáver de Anacã, que apresenta por vezes o aspecto de um vapor: 15. RIBEIRO, Darcy. Op. cit.,p.55.
16. Idem, idem, p. 117.
17. Cf. DERRIDA, Jacques. Gramata/agia. São Paulo: Perspectiva, 1975. p.21.
Ao meio dia parece visível, realça a miragem da mata . 'da no ceu. . 15 InVertl O chuvisco da noite assenta a poeira do pátio e lava os ares para que impere, mais forte, a catinga de Anacã. Ela continua aí presente impregnando tudo: finíssima, dulcíssima. Agora parece também azul. 16 A passagem do estado sólido ao estado gasoso pressupõe o abandono de uma forma determinada em favor de uma existência aérea, mais ou menos invisível, o que leva conotações metafísicas. Não é sem razão que a mesma palavra grega-pneuma-designa ao mesmo tempo o ar e o espírito, assinalando, assim, a sua ambigüidade: o que se vê e o que se não vê, ou, para usar o termo em sua acepção popular, o fantasma. Dentre outras violações, portanto, o cadáver ignora também as fronteiras do profano e do sagrado, apresentando ao mesmo tempo um modo material e ~m modo espiritual de existência. Criticando o logocentrismo em favor de outras formas de escritura, Derrida reconhece a validade de atividades sociais, como dentre outras o artesanato, no registro do processo cultural. Fala ainda de uma "escritura natural", relativa à voz e ao sopro, à inspiração, cuja natureza "não é gramatológica, mas pneumatológica. É hierática." 17 Sua formação, entretanto, ou sua imaginação, não foi bastante para pensar o que talvez se possa chamar de pneumatog rafia, tal como a encontramos entre os índios Mairuns. Esse registro da morte, ao
126 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 mesmo tempo simbólico e material, cultural e natural, concernente tanto à função paterna quanto à função materna, apresenta-se, pois, como uma forma sui generis de inscrição na memória coletiva. Se a "bela morte" dos gregos se dá na dimensão da semiótica literária, e a morte grandiosa dos mesopotâmios através da semiótica dos objetos, vemos que vão convergir para a semiótica química tanto a sagrada morte do asceta hindu, consumido pelo seu próprio fogo interior, quanto a morte bela do chefe indígena, tornando alimento de seu povo. Ambas traduzem a forma mais natural e primitiva de comunicação. E ambas se caracterizam pelo desapego e pelo amor.
CAMINHOS DO IMAGINÁRIO NO BRASIL: MARIA PADILHA E TODA A SUA QUADRILHA Marlyse Meyer Para Laura de Mello e Souza e Peter Fry Para Carlo Ginsburg
, Este texto desenvolve wn artigo de janeiro de 1988, que foi objeto de wna c0municação na École Pratique deS Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, maio de 1988. Trata-se de uma versão condensada de um trabalho que em breve deveráserpubticado na Íntegra.
As
vezes me. pergunto se nossa produção científica gloriosa, florão da sociedade dominante, não tem, para quem quer ter acesso a ela, alguns daqueles traços que Gramsci atribui ao folclore: o aspecto fragmentário, diferentemente estratificado do saber. Excesso e compartimentação não permitem mais, é claro, aquele conhecimento global, privilégio do século XVIII. Mas, ainda que limitando a curiosidade a uma área-a cultura brasileira, por exemplo-aquele que imagino poder alcançar um saber completo deve certamente adotar atitude análoga à que Gramsci sugere para abordar o saber folclórico: Confrontar áreas diversas, fazer a história das influências sofridas por cada área, não comparar entidades heterogêneas, saber ler as diferentes estratificações em áreas diversas.
128 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1- 03/91 Lembrar que o próprio povo não é uma coletividade homegênea de cultura, mas apresenta estratificações culturais numerosas e variadamente combinadas. 1 Como dar conta da quantidade e dos limites estanques das especializações? Sonho com uma forma de conhecimento que pudesse adquirir e combinar adequadamente todas as informações, o que permitiria abordar sob todas as faces a entidade Brasil: algo análogo àquele rearranjo de tudo que constitui a música popular brasileira, como diz Regis Duprat no belo texto de encarte do disco A Bela época da música brasileira. Mas ao professor, além da árida atualização de gabinete, a instituição oferece momentos e circunstâncias que permitem aumentar o universo do saber próprio, numa troca fértil com saberes outros, eliminando as compartimentações, permitindo o livre jogo de associações e abrindo-se para novas perespectivas. Penso, por exemplo, na situação, a priori insuportável, o tribunal de Inquisição que é o cerimonial de defesa de tese. Mas que permite ao involuntário promotor ouvir falar de (e aprender), desde a poesia de Mário de Andrade até a revista A Scena Muda; da telenovela às doenças simbólicas na Umbanda; do circo teatro às cortesãs na literatura; sem esquecer das Feiticeiras no Brasil Colonial, que suscitaram este texto. Outra circunstância benéfica, que faz esquecer a penosa tarefa que é a correção de provas, na medida em que estas são trabalhos diversificados, de diversificados alunos do curso de Pós-Graduação, • geográfica e cultural, quer pela sua formação, quer pela sua origem quer pelo" objeto de estudo". O que obriga a corrigir (?), a julgar (?), mas leva principalmente ao auto-enriquecimento. Pórque permitem transitar dos diamantes das Gerais aos cordões de Pássaros de Belém do Pará, do Triunfo Eucarístico às festas de arraial rememoradas por uma avó portuguesa, dos emigrantes alemães do Rio Grande do Sul, ao muito particular culto afro-brasileiro do Maranhão, o tambor de mina. E, no tambor de mina, me foi mostrado pela pesquisadora Nundicarmo Ferreti um novo meandro desses obscuros caminhos do imaginário no Brasil, onde reencontrei velhos conhecidos: o mundo de Carlos Magno. Melhor dizendo, de seu fidagal inimigo, o Almirante Balão e sua estirpe. Ensinou-me ela que lá existe um terreiro da Turquia, um terreiro do Egito, onde circulam Encantados da família Almirante, seu filho Ferrabraz, sua filha Floripes. E mais, ao contrário do que venho observando no conjunto de folguedos populares
I. GRAMSCI, Antonio. Letteratura e vira llazio/lale. Torino: Einaudi, 1950. p. I.
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2. Nítida origem Malê. Cf. REIS, João José. Rebelião escrava /10 Brasil: a história do levante dos Malês, 1935. São Paulo: Btasiliense, 1987. p. 129.
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brasileiros de esquemas cristãos e mouros, onde há vitória sistemática do "cristão" , ou seja, do poder dominante, na casa de "seu Turquia" , a linha dos "turcos" é forte, soberana. Mantém seu poder, sempre, porém, dentro de características de violência de "pagão". O povo tuco briga, e bebe, e se vangloria: "Meu pai é mouro, eu sou mouro, IViva a família de mouro!" Mas isto não impede misturas de famílias e trocas culturais, via São Luiz, Rei de França; o Rei da Turquia pode ser Jaguarema e o Encantado Tabajara traz seu "rosário da Turquia. 2 Ao passo que Joana d' Are é Douro, pode ser Santa Bárbara, é turca e francesa, cristã e feiticeira. É também Iansã. É muita coisa para a pobre lógica do intelectual, que não é a do poeta... Aquele que em Pasárgada é amigo do rei, "onde Joana a Louca, de Espanha, rainha e falsa demente vem a ser contraparente da nora que nunca tive". (Cf. Manuel Bandeira, Vou-me embora pra
Pasárgada.). Quando me descrevem essa complicada rede de relações familiares, onde cada um sabe e narra a sua história, torna a me invadir aquele espanto que acompanha cada novo encontro com Carlos Magno e sua gente. Espanto diante da capacidade afabuladora dessa população praticamente analfabeta e que talvez, por isso mesmo, tenha conservado da oralidade ancestral o dom de construir mitologias das mais complexas, redes múltiplas de relações de paren~las e poderes. Para dar forma a esse espanto, formei um pseudo-conceito, o de perplexidade cultural. Uma perplexidade, inútil dizer, que é a do pesquisador, mas que está ausente da percepção e práticas dos agentes e receptores dessa cultura. É um mundo absolutamente lógico e familiar, tanto para os Encantados e quem os recebem, melhor dizendo, revi vem, quanto para uma dona Conceição que conheci em Poços de Caldas, na flor dos seus oitenta anos. Ela era mestre do Temo de Congo de S. Benedito, por herança do pai, antigo escravo; desfilava com seus trajes brancos de mãe de santo, lado a lado com Carlos Magno, belo homem, torneiro numa montadora de automóveis de São Paulo e cumpridor de promessa em Poços, que marchava à frente de sua "tropa" na congada, e à frente da procissão, com seu manto de veludo azul celeste, coroa e cetro imperial. Dona Conceição, unindo o tradicional ao moderno, também foi fundadora da primeira escola de samba da cidade. E exercia essas funções todas, "por ordem de meu Pai Xangô, São Benedito e Nosso Snr. Jesus Cristo." Outro elemento que vem alimentando minha perplexidade é a questão do que se apresenta como ressonâncias, reminiscências européias. Dado recorrente da cultura brasileira, coloca evidentemente, não só a questão das "influências", termo abandonado na atual Literatura Comparada, e, que de qualquer maneira, tem conotação "sui generis" nestes países de origem colonial, sempre referidos a
130 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 uma metrópole, como coloca, neste contexto colonial, a questão da cópia e do modelo. Irritante problema, abordado com sua costumeira lucidez crítica por Roberto Schwarz, no artigo "Nacional por subtração.,,3 Questão inclusive, no entanto constitutiva da cultura e da literatura dos países deste lado do Equador, que têm, como diz Antonio Candido, um "vínculo placentário com a Europa" . Observar essas ressonâncias européias, tentando compreender os novos sentidos, é o que vem norteando as pesquisas das quais este texto dá alguns exemplos. E o que alimenta' minha perplexidade é encontrá-las não só na cultura oficial, dita culta, como nas suas manifestações ditas populares. Examinei-as, noutro estudo, através da persistência do tema de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Nesse caso, essas marcas européias são explicitas, sem outro mistério que o da sua permanência secular. No caso do que pretendo tratar aqui, essas marcas antes são imaginadas pela pesquisadora, que tenta construir passagens, reencontrar os elos perdidos, que levam de um nome a um nome. De Dona Maria de Padilha amante de um rei de Castela, a Maria Padilha, pomba gira de Umbanda. Este é o relato de uma trajetória: a de meus encontros com esse nome. De uma perplexidade que levou a passagens, que só a minha narrativa constrói. Perplexidade somada ao extraordinário interesse suscitado pela tese de doutoramento de Laura de Mello e Souza sobre feitiçaria do Brasil colonial,4 cuja banca integrei. Motivo do espanto: aparecia, associado a práticas feiticeiras portuguesas e coloniais, um nome, Maria Padilha, que tanto meu companheiro de banca, o antropólogo Peter Fry como eu, conhecíamos: designava, para nós, uma Pomba Gira,de Umbanda. Laura de Mello e Souza, a partir de suas pesquisas nos arqui vos da Torre do Tombo em Lisboa, nos processos da Inquisição, pode reconstituir a vida, as práticas, os itinerários de algumas feiticeiras portuguesas, degredadas para o Brasil no século XVIII. As andanças de Antonia Maria, por exemplo . ... Na Lisboa setecentista... Domingas Maria usava do sortilégio da peneira, rezando ( ... ) Por São Pedro e por São Paulo, por Jesus crucificado, por Barrabás, Satanás e Caifás, e por quantos eles são, por Dona Maria Padilha e toda a sua quadrilha, me digas, peneira, se as ditas duas pessoas estão presas ... Da mesma,
3. SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In.: Que horas 5iio? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 29-48.
4. A tese foi publicada com o título de O diabo e a terra de SflIlta Cruz.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CII1lÚ1lIla; do Imaginário no Brasil...
5. MELLO E SOUZA, Laura de. o diabo e a terra de Sallta Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil c0lonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.p. 160ep. 198, nota 14.
6. Ibidem. p. 158, p. 200.
7. Ibidem. p. 200-201.
8. Ibidem. p. 251-253.
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Para não ser morta pelo marido, fazendo fervedouro com pedaços de pano, coração de pombo, alecrim (. .. ): Por Barrabás, Satanás e Caifás e Maria Padilha com toda a sua quadrilha. 5 Na Colônia vai-se encontrar a invocação a Maria Padilha pela boca da feiticeira Antonia Maria. Quem era Antonia Maria? Casada com Vasco Janeiro, "natural de Beja, Antonia Maria saíra penitenciada pelo Santo Ofício de Lisboa em 1713. Acusada de feitiçaria, degredaram-na para Angola pelo tempo de três anos. Sabe Deus como, Antonia veio ter no Brasil, e foi morar em Pernambuco" , "por volta de 1715, juntamente com outra feiticeira, Joana de Andrade" com a qual tudo aprendera, ainda em Beja. "Arranjou uma casa na rua das Trincheiras com o quintal contíguo à casa do pedreiro João Pimentel, de 43 anos." Este era casado, "mas a proximidade da feiticeira, a comunicação das casas, a "fragilidade humana' impeliram-no a ter trato ilícito com ela, "desprendendo com a dita da sua pobreza a que tinha e ganhava'." Donde brigas com a mulher, briga desta com a feiticeira, a qual, diz o protesto, acabou jogando feitiço sobre as mulheres e escravas, do amante, do qual só "ficaram livres dos feitiços com purgas de ervas e raízes preparadas por um negro curandeiro.,,6 Houve também disputa entre as duas feiticeiras por "ciúmes mútuos em torno do prestígio profissional (. .. ) Segundo Joana, a amiga fora mais longe, aperfeiçoando-se na colônia com uma refinada feiticeira chamada Páscoa Maria~ o mundo colonial acentuava as vocações demoníacas. " 7 A feitiçaria de Antonia Maria, diz ainda Laura de Mello e Souza, incluía tanto aspectos da tradição mágica medieval, quanto a corrente demonológica erudita, mais moderna. "Na sua casa de Pernambuco, Antonia Maria tinha um boneco que lhe falava. Possivelmente um familiar", da época em que "os homens dominavam a vontade dos demônios, valendo-se dos serviços que estes lhes podiam prestar. " Mas ela também reconheceu ter feito pacto com o demônio, "dando-lhe seu sangue num papelzinho": os "pactos, apesar de serem espécies de contratos semifeudais, corresponderiam à nova realidade: sob a égide do satanismo e da eclosão de uma corrente demonológica erudita, os homens que antes sujeitavam demônios tornaram-se seus servidores.,,8 Antonia Maria era um verdadeiro repositório de orações ... Dentre o grande arsenal de orações que utilizava, a feiticeira do Recife possuía algumas demonizadas: por volta de 1718... desmancha feitiço que ela mesmo teria lançado contra o pedreiro Domingos de Almeida Lobato. Começa
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invocando: Satanás, Barrabás, Caifás, Diabo coxo, sua mulher. Noutra oração: "Com Barrabás, Satanás, com Lúcifer e sua mulher". E há as invocações demoníacas em que parece ser substituída a "mulher de Lúcifer" por Maria Padilha e toda a sua quadrilha. " Antonia Maria media a boca na tigela, batia no chão com três varas de marmeleiro, invocava Barrabás, Satanás, Caifás, Maria Padilha com toda a sua quadrilha, Maria da Calha com toda a sua canalha, "cavalo marinho que com pressa os traga pelo caminho". Jogava num fervedouro pedra d' ara, buço de lobo, alfazema, sangue de leão, barbasco. 9
9. Ibidem. p. 198.
Para prender o amante cortava um queijo de cabra em três porções e, colocando-os à janela entre nove e dez da noite, dizia: "Este queijinho queremos partir a primeira talhada para Barrabás, a segunda para Satanás, a terceira para Caifás, que todos três se queiram ajuntar presto e asinha e isto que pedimos nos queiram outorgar, que fulano nos vá buscar e I~ue pela porta venha a entrar e sem nós não possa estar.
10. Ibidem. p. 234-235.
Suspendendo a operação feiticeira, em se falando em queijos, lembro estas orações transcritas por Mário de Andrade: Ii Oração da Cabra Preta (Pagelança, Pará): Minha Santa Catarina, vou debaixo daquele enforcado, tirar um pedaço de corda pra prender a Cabra Preta, tirar tres litros de leite, fazer tres queijos, dividir em quatro pedaços, um pedaço pra Satanaz, um pedaço pra Caifaz, um pedaço pra Ferrabraz, um pedaço pra "sua infancia". Se reza às sextas-feiras-às vinte-e-quatro horas. "(sua infância é a designação da pessoa desejada)" E esta ainda: Oração da Cabra Preta (Catimbós, Rio Grande do Norte): Minha Santa Marta Elisa, assim como andaste, no caminho encontraste uma Cabra Preta, nela mamasse e nela pojasse, do leite dela que tirasse, fizesse tres queijos, um para Caim, um para Ferrabraz e outro para Satanáz. Quero com o poder
11. Não atualizo a ortografia das citações de Mário de Andrade, que vêm, a seguir. ANDRADE, Mário de. Música de feitiçaria IW Brasil. São Paulo: Martins, 1963. p. 122-123.
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que tendes ... Fosses em Jômé, encontrasse uma vara com a ponta bem fina, quero que com ela toque no coração de (Fulano ou fulana), (... ) abrande o coração dele, que êle queira quer não, já, já, já, si êle não conseguir o que eu quero, não o deixe dormir sossegado, nem comer, nem beber, enquanto não fizer o que eu quero. (Para se resar ao meio-dia ou à meia-noite.) Mas voltando ao século XVIII, à interrompida invocação da feiticeira Antonia Maria:
12. MELLO E SOUZA, Laura de. O diabo e a terra de Santa Cruz. op. dI. p. 235.
13. IbidenL p. 235.
Sentada no portal de sua casa, dizia: .. Neste portal me venho assentar, e não vejo fulano nem tenho quem o vá buscar, vá Barrabás, vá Satanás, vá Lucifer, vá sua mulher, vá Maria Padilha com toda a sua quadrilha, e todos se queiram juntar e em casa de fulano entrar, e o não deixem comer, dormir nem repousar sem que pela minha porta adentro venha entrar, e tudo quanto eu lhe pedir me queira fazer e outorgar, e se isto me fizerem uma mesa prometo de lhe dar... E Antonia voltava a lançar pedaços de queijos aos três diabos esfomeados. 12 Mas talvez Antonia Maria não precisasse só recorrer aos seus saberes profissionais para enfeitiçar e amarrar os homens que queria, pois "parece que era mulher graciosa, de pe~uena estatura, alva de rosto, e este, largo, olhos pretos e formosos." 3 A esta altura, recrudesceu meu interesse pelo encontro com Maria Padilha: já não só pela sua presença em invocações demoníacas, mas também porque a própria figura de uma de suas invocadoras, a Antonia Maria, feiticeira consumada e mulher sedutora, evocava a Pomba Gira de Umbanda. Na verdade, pouco sabia sobre esta. Tinha a informação de quem já ouviu falar em Umbanda e congêneres: a Pomba-Gira é uma mulher bonita, gosta de homem, tem algo da prostituta e da feiticeira e há uma delas chamada Maria Padilha. Eu conhecia também uma moça, a Beth de Oxum, que, diziam, recebia a Padilha. Mais, não sabia, e teria ficado por isso mesmo, não fosse aquele feliz acaso que movimenta as pesquisas e haveria de me levar a um novo e imprevisível encontro com Maria Padilha. Sempre às voltas com Carlos Magno e seus Pares, eu procurava os romances ligados ao tema no Romancero General o colección de romances castellanos (anteriores ai siglo XVIII), organizado por A. Duran. (Romance é aquela poesia narrativa, em versos de 7 sílabas, cantados, dos mais diferentes assuntos, muito populares na Península
134 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 Ibérica e se difundiram nas Américas com a colonização.) Eis senão quando, ao folhear os dois grandes volumes saltou-me aos olhos um nome, repetido por várias páginas em muitos romances: Dona Maria de Padilla. Emoção! Resolvi então atirar-me à procura da misteriosa personagem. Narro neste texto meus encontros com ela: pinguelinhas lançadas a quem se dispuser ir mais longe para reencontrar os seus caminhos. Na poesia, que, das memórias e das Crônicas fez o romanceiro; no imaginário, que, tocando nas funduras da alma a transportou a ela e a suas quadrilhas demoníacas, de Montalvan a Beja, de Beja a Angola, de Angola a Recife, para, nos dias de hoje, baixar em Pirituba (bairro de São Paulo) e em outros terreiros espalhados pelo Brasil afora. Dona Maria de Padilha figura nos Romances relativos à História de Espanha, ciclo de D. Pedro I, de Castela, dito o Cruel. São 14 romances seguidos, mais dois no Suplemento: um sobre Blanca de BQrbón, anônimo; outro, romance burlesco do grande poeta Quevedo. Chamado o Cruel pelas muitas mortes que ordenou, D. Pedro I mata seu irmão bastardo D. Fardique, Maestre de Santiago (romance n!! 966). Mais outros irmãos, a madrastra, outros grandes senhores, dois Reis de Granada, mouros, de quem fora antes aliado (976, 977). Muitas mortes por influência de "una mala mujer", a "hermosa" e vingativa Dona Maria de Padilla, cujos irmãos aproveitam, com seus conselhos de astúcia e felonia ao Rei, para "engrandescer-se" (974, 975). A eles poderia se aplicar o termo que encontro em outro romance, que trata de traições contra o Rei D. Alfonso, pai de D. Pedro: Traidor sois Payo Rodriguez I ... Porque siendo .. . Vassalo dei Rey Alfonso IHiciestele alevosia; .. . Entrastes con gran quadrilha I con el Rey de Portugal. (964) Por amor a Dona Maria, o Rei abandona dias após o casamento, sua jovem esposa, Dona Blanca de Borbón. Esta se lamenta e chora. (Os romances são em geral em primeira pessoa). São quatro romances "ai mismo assunto": 967,968,969 e 1900. Llora Dona Blanca el rigor con que la trata su esposo el Rey Don Pedro, atribuyendo-lo a hechizos que le dió la Padilla. O tema da feitiçaria volta em Resltmen de la historia de Don Pedro (980). O Rei tem visões e recebe um aviso do céu para que não mate a sua esposa (970) mas, liA rltego de la Padilla hace el Rey Don Pedro matar a Slt esposa Dona Blanca" (romance 971 e "más dos aI mismo assunto", 972, 973). O rei morre à traição em Montiel pelas mãos do bastardo D. Enrique, que vai se apoderar do trono e foi ajudado por um grande guerreiro enviado pelo Rei de França, o
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célebre Bertrand Du GuescHn,Beltrán CacHn. (978) Morte esta,-diz em notas Duran, comentando o romance de Quevedo que também a ela se refere-, muito chorada pelo povo, que, ao contrário dos Grandes Senhores ambkiosos e revoltosos muito amou seu rei (1640). O mesmo sentimento de luta percorre o belo romance 979, atribuído a Gôngora: .. Lamentan los Reales castellanos la muerte de
su Rey don Pedro, y los traidores partidarios dei bastardo Don Enrique la celebran". Transcrevo alguns trechos desses romances:
Romance 980:
EI Cruel Pedro llamado Caso-se con Dona Blanca Fuese para Montalván Que alli es banaganado Con Dona Maria de Padilla Que lo tiene enhechizado Fue enhechizado esta suette La Reina aI Rey habia dado Una cinta mucho rica De oro Muy bien labrado Con perlas pedras preciosas Ceniala el rey Don Pedro con placer, de muy buen grado Porque se la dió la Reina Que dei era muy amado Dona Maria de Padilla La cinta hubiera en su mano Dió la en poder de un judio Que era magico e sabio Puso el ella tales cosas Que aI rey mucho han espantado Culebra le ha semejado.
Enganaram o Rei, dizendo-lhe que fora a rainha que queria matá-lo: Mucho la desama el Rey Luego della se ha apartado.
136 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 Romance 971 :
A ruego de la Padilla hace el Rey matar a su esposa: Non contente el rey don Pedro de tener aprisionada a Dona Blanca en Sidonia, Sin razón ni justa causa A peticion de Padilla Bella tigre de la Hircania Empero el Rey permite A pesar de Castilla Muera su mujer propria Por dar gusto a Padilla.
Ocorre a pergunta: qual a relação desses romances com a História? Diz Duran que "romances históricos importam muito para o estudo da história particular, literária, política. "Muitos deles teriam servido como comprovante das Crônicas, ao passo que outros emprestaram seu assunto às Crônicas, que foram o modelo do poeta. De um modo geral, diz ainda Duran, "os romances conservaram os feitos, as tradições, as crenças das massas populares ... transmitem, mais do que as Crônicas oficiais, o caráter moral e social do povo. ,,14 Consultado, o colega Fernando Novais confirmou a existência da amante de D. Pedro. Recorri a uma História da Espanha, para completar a informação. Poucos reis, afirma o historiador Ballesteros, foram objeto de tão apaixonadas controvérsias. Ainda seduz a figura daquele rei alto, branco e louro, de fala ciciante, caçador, homem de guerra, de pouco dormir e leviano nos costumes. Uns o reputam um acabado modelo de crueldades, outros o pintam como soberano de bons propósitos, cujo governo foi conturbado pela ambição dos bastardos, autor das Cortes de Valladolid (1351), do Ordenamiento de menestrales. A lenda o descreve simpático e democrata; a história, pelo único cronista que detalha seu reinado (o chanceler Ayala), o apresenta como um tirano sangüinário. É absurdo julgar Don Pedro fora de sua época, quando reis seus contemporâneos... não foram modelo de temperança. Entre esses reis, inclui-se D. Pedro I de Portugal, (o de Inês de Castro), de idiossincrasia muito semelhante à de D. Pedro de Castilla, que ajudou o rei português a prender os assassinos de Inês. É lembrar Os Lusíadas no Canto III e XXXVI:
14. DURAN, Don Agustino (Org). Romancero General o colección de romallces castettallos (anteriores ai siglo XVIII). Madrid: Atlas, 1945. vol. I,p. XXVI.
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... OS fugidos homicidasl Do outro Pedro cruissimo os alcança/ Que ambos imigos das humanas vidasl O concerto fizeram duro e injusto.
Em suas notas Duran pende para uma visão positiva do rei. E o mesmo se pode dizer do grande estudioso Menéndez Pidal: "Es bien chocante que todos los romances sean hostiles a Don Pedro. ,,15 15. PIDAL, RarnÓll MeNotam-se as duas vertentes nos romances. A moralizadora, néndez. La epopeya castellana a través de la ponto de vista do cronista oficial, que ressalta a crueldade do Rey e lileralllra espaiíola. Ma- a atribui a influência de uma "mala mujer", que tem partes com a drid: Espasa-Calpe, 1974. feitiçaria, e, tal Salomé, recebe num prato a cabeça de D. Fardique, p.129. morto a seu mando, e conversa com ele, exprimindo seu espírito vindicativo, como se fosse vivo. É a linha mais próxima de uma visão popular, positiva, do rei e de sua amante. Resulta dessa dupla vertente uma dupla e oposta visão de mulher. De um lado, a esposa legítima, cujo nome, predestinado, se presta a muitos jogos metafóricos dos~tas; tem aquela "virgindade e castidade que povoam o Paraíso". 1 Seu corpo, intocado, "el Rey 16. DELUMEAU, Jean. no me ha conocido, con las virgines me voy", aproxima-a da única La peur en Decidem. Pamulher que, na época, se pode venerar sem medo, Virgem Maria. Mas ris: Fayard, 1973. p. 407. o rei, figura odiada pela história oficial, prefere a "mala mujer", a oposição radical a Dona Blanca. Note-se que o pai de D.Pedro fizera o mesmo e foram seus bastardos a origem de todas as confusões do reino do Cruel. E, no entanto, o romancero, a memória poética, só evoca Doõa Maria de Padilla. O concubinato não seria um crime, mas a beleza sim? perigosa e enfeitiçadora? daí a vê-la como feiticeira ... Ao contrário da casta Doõa Blanca, a Padilla., Maria embora, parece, para quase todos os poetas do RomanceIO, encarnar a mulher tal como foi vista e temida no início dos tempos modernos. Visão esta, aliás, que tem raízes imemoriais: "a mulher é predestinada ao Mal, tanto pelos textos bíblicos, como pela mitologia pagã, no Cristianismo deita raiz na Bíblia, nos autores pagãos e nos Pais da Igreja". 17 O sexo feminino é, por excelência, símbolo de desordem C... ) a mulher 17. BAROJA, Julio Caro. Les sorcib-es et Ieur mon- é desmedida que a leva às diabólicas práticas da feitiçaria,,:8 E é de. Paris: Gldlirnard, associada a essa desmedida; a essa desordem, à luxúria, ao Reino das 1972. p. 89. Trevas, à morte, que essa "flecha de Satanaz", essa "sentinela do 18. DAVIS, Natalie Z. Les Inferno" , essa mulher, enfim, vai formar, diz Delumeau, com Satan, culturesdupeuple:rituels, savoirs et résistances au com os judeus e os muçulmanos, uma das grandes figuras do incoer16c sii:cle. Paris: Aubier cível medo que se abateu no Ocidente por volta do século XVI C"là Montaigne, 1979. p. 210commence une époque de terreurs croissantes... "), 19 e se estenderá 211. até o século XVIlI. 19. MICHELET, Jules. La Esta misoginia tem mna formulação exacerbada no célebre sociere. Paris: Gamier, Malleus Maleficiarum (circa 1486), um celebérrirno manual de caça 1972. p. 158. às bruxas, obra dos dominicanos inquisidores alemães Krarner e
138 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 Sprenger, e teve trinta e quatro edições entre 1486 e 1669. Neste sentido parece-me interessante destacar um texto citado por Delumeau, obra de um franciscano espanhol, Alvaro Pelayo, escrita em 1330, publicada em 1474 e reeditada em 1517 e 1560. Não só por já . - se reencontrar no MaIi eus, 20 apresentar mUltos argumentos que vao como por ser precisamente de origem espanhola. Um texto para o qual "certas indicações deixam entrever um auditório relativamente elevado, pelo menos no mundo dos clérigos encarregados de dirigir as consciências: destila um anti-feminismo virulento. É talvez o documento maior da hostilidade clerical em relação à mulher,,?1 Desse De planctus ecclesiae cito um trecho do catálogo dos "cento e dois vícios e delitos da mulher": Ela atrai os homens com iscas mentirosas a fim de melhor atirá-los no abismo da sensualidade. Não há imundície à qual não a leve a sua luxúria ... Fundamentalmente cortesã, para melhor enganar, ela se disfarça, se pinta: ama freqüentar as danças que acendem o desejo. Ela transforma o bem em mal, a natureza no seu contrário, especialmente no domínio sexual. As mulheres enfeitiçam, usam encantamentos e malefícios .. ?2
20. GOULET, Jean. Un portrait des socieres au XyelIIe siecle. In: ALLARD, Guy-H. et alii. Aspects de la margi-
nalité au Moyen Age. Québec: l'Aurore, 1975.
p.210-211.
21. DELUMEAU, 1973. p.414-416.
22. Este "Iisongeiro" retrato vai perdurar: em
A demonização da "hermosa Dona Maria de Padilla", que 1621, ainda, "o bachelor Robert Burton escreve: "tiene enhechizado" "el Cruel Pedro llamado" parece se inserir da mulher, de sua inatunesse contexto. Nada impede imaginar que os "diretores de consciên- ral, insaciável luxúria (Iust), que país, que alcia" tivessem, pelo trabalho possante de cristianização pelo medo, deia não se queixa dela?" levado à elaboração da lenda, que inspirou poetas ... e feiticeiras. E à mOMAS, Keith. Reliand the decline of construção da oposição entre a pura, como seu nome indica, alva e gion magic. Penguin, 1978. p. infeliz Dona Blanca, e a "hechizera e mala mujer" que a desgraçou. 679. Tal retrato tanto se aplica à "mala mujer", à "manceba falsa", à "hermosa Dona Maria de Padilla" , como se aplicaria à setecentista Antonia Maria de Beja e do Recife; irá assentar como luva, como veremos, à Pomba-Gira. Mas, voltando ao Romancero: aquele cinto de pedrarias metamorfoseado em serpente para matar um Rei também pode se inserir numa relação histórica costumeira. Apesar dos numerosos processos contra as mulheres acusadas de magia-desde Don Ramiro, 943, os mágicos são condenados à fogueira-, na segunda metade da Idade Média ... as feiticeiras continuam a frequentar o castelo senhorial, o palácio episcopal, o Alcazar real. 23 Afirma Keith Thomas:
23.BAROJA,JulioCaro. l.essorciereset /eur monde. Paris: Gallimard,
1972. p. 100.
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Muitos casos de julgamentos de feitiçaria tinham a ver com intrigas políticas~ em que as pessoas acusadas teriam praticado feitiçaria para matar seus ri vais políticos ou conseguir favores dos poderosos. 24 24. mOMAS, Keith. Religion aI/Li rlle decline of magic. p. 527-528.
Mas voltemos a Maria Padilha, à procura dos elos perdidos de uma possível trajetória, que, da corte de um rei de Castela a teria levado aos terreiros brasileiros. No caso da migração além mar de Carlos Magno e seus Pares, a imaginação do pesquisador pode tentar reconstituir o caminhar da memória possível: a das narrativas populares, a dos Autos de Floripes e congêneres, ou seja, brinquedos de cristãos e mouros, já praticados na terra de origem, e que a catequização, provável fabrlcadora das "danças dramáticas", reatualizou na colônia. Ocorreria numa primeira etapa, uma vez assinalada sua existência na História e no Romancero, saber de suas andanças peninsulares. Antes talvez, correndo o risco do anacronismo, pelo pulo temporal, parece-me importante mencionar uma marca francesa da popularidade das duas figuras, a de D. Pedro I de Castela e a da mais forte e conhecida de suas amantes, por apontar para um indício possível. Sabe-s~ o quanto a Espanha foi um lugar privilegiado na construção do pitoresco associado ao romantismo francês. E entre tantas inspirações espanholas, já Vitor Hugo, numa lista que deixou por volta de 1829 de "drames quefai à faire", projeta um L'enfance
de Pierre le Cruel. 2S 25. UBERSFELD, Afine. Le roi et le buffon: érude surlerlléârredeHugo. Paris: Corti, 1974. p. 33.
Mas é principalmente com Prosper Mérimée que essas figuras adquirem destaque. Aconselhado pela condessa de Montijo (mãe da futura Imperatriz Eugenia), sua amiga desde o tempo em que viàjava pela Espanha, e lhe contara muitas lendas e histórias espanholas, Mérimée começa, em 1843, a escrever uma Histoirede don Pedre ler, publicada pela Revue des Deux Mondes a partir de dezembro de 1847. A preocupação em destrinchar verdade e lenda na vida do rei é também objeto de muitas de suas cartas. Mas vamos principalmente encontrar D. "Pedre" e dona Maria de Padilha na sua muito célebre e popularizada novela, Carmen. A lembrança do rei está associada à rua de Sevilha onde se situa a casa em que don José e Carmen terão o primeiro encontro: "a rua do Candilejo, onde há uma cabeça do rei dom Pedro o justiceiro". E, numa longa nota, o próprio Mérimée refere a tradição popular e a versão que encontrou, diz ele, nos Anais de Sevilha de Zuiiiga que explicam a origem dessa estátua: "o rei dom Pedro que nós nomeamos o Cruel, e que a rainha Isabel a Católica só chamava o Justiceiro, amava passear à noite pelas ruas de Sevilha, buscando aventuras, tal qual o califa HaroUn-al-Raschid", etc. etc.
140 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 (ver p. 377 nota e edição Parturier). Mas é particulannente interessante a referência a Maria Padilha, pois nos remete ao tema da feitiçaria. Transcrevo o trecho da novela e a nota de Mérimée. Don José . vai procurar Cannen, decidido a matá-la. Encontra-a no quarto: "ela desfizera a bainha do vestido para retirar-lhe o chumbo. Estava agora diante de \Una mesa, olhando dentro de um alguidar cheio d'água o chumbo que fizera derreter e havia jogado dentro da água. Estava tão entretida com sua magia que nem percebeu que eu regressara. Ora ela pegava num pedaço de chumbo, revirando-o de todos os lados, ora cantava algumas daquelas canções mágicas onde evocavam Maria Padilha, a amante de don Pedro, que foi, dizem, a Bari Crallisa, ou a grande rainha dos ciganos." Reza a nota de Mérimée: "Acusaram Maria Padilha de haver enfeitiçado o rei don Pedro. Uma tradição popular conta que ela presenteara a rainha Branca de Bourbon com um cinto de ouro que apareceu aos olhos fascinados do rei como uma serpente viva. Daí a repugnância que ele sempre demonstrou pela infeliz princesa~26 :z6. MERIMÉE, Prosper. Reencontramos aqui ecos do que lemos no Romancero. Mas o Ronuurs et I!(JIlVelJes. Papróprio Mérimée, na sua Historia de don Pedro contesta essa origem ris: Maurice Parturier, 1967. p. 400. cigana da Padilha, apoiado nas informações colhidas na sua leitura de base, a obra do inglês George Borrow, The Zincali, Londres, 1841. Neste livro-diz Parturier, o especialista responsável pela edição de Mérimée que utilizo-, encontra-se a transcrição da canção mágica de Cannen. O mesmo Parturier cita em nota a opinião de Angus Fraser, que pesquisou os "gypsies" e escreveu sobre "Mérimée and the Gypsies", segundo o qual "a Maria Padilha citada nessa canção cigana é sem dúvida Maria Pacheco, viúva de Juan de Padilha." É óbvio que prefiro ficar com a versão de Mérimée... Ele escreve na sua Histoire ... : "O enfeitiçamento de don Pêdre pela Padilla constitui tradição popular na Andaluzia, onde um e outro deixaram fortes lembranças. Acrescenta-se que Maria de Padilla fora \Una rainha dos gitanos, a sua bari crallisa, por conseguinte, hábil na preparação de filtros. Infelizmente os gitanos só apareceram na Europa um século mais tarde. O autor da Primeira vida do Papa Inocencio VI narra gravemente que Branca, tendo presenteado seu esposo com um cinto de couro, Maria de Padilla, ajudado por um judeu, notável feiticeiro, transformou esse cinto em serpente, um dia em que o rei o estava usando. Pode-se facilmente imaginar a surpresa do príncipe e de toda a corte, quando o cinto começou a se agitar e a sibilar, no que foi fácil à Padilla convencer seu amante de que Branca era uma bruxa que queria fazê-lo perecer por artes de feitiçaria. 27 Reencontramos aqui 27. BALUZE. História dos papas de AvigllOn. L a versão do Romancero. E encontramos também uma pista possível p. 224. AYALA, p. 95. nas pegadas das metamorfoses de doÕ8 Maria de Padilla. A mesma
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que· segue Mérimée, o contador de histórias de paixão e morte, opondo-se ao Mérimée historiador que sabe das datas. O contista incorpora sem dúvida a versão da Maria Padilla rainha dos gitanos pela analogia entre a visão popular da amante do rei dada a bruxarias e do tradicional acoplamento cigano/feiticeira, e, por extensão, filha do diabo. A Cannen que canta para Paria Padilla tem uma "beauté étrange et sauvage, une figure qui étonnait d'abord, mais qu'on ne pouvait oublier. Ses yeux surtout avaient une expression à la foi voluptueuse et farouche que je n'ai trouvé depuis à aucun regard humain." (p. 360). Inmnano olhar, "oeil de bohémien, oeil de loup" , "une bohémienne, une sorciere, une servante du diable, une fille du diable" , assim se caracteriza aquela que haverá de levar o nobre Don José à perdição. Este indício cigano já demandaria uma pesquisa em território espanhol. E representa uma pista a ser incluída no itinerário de quem quisesse se atirar em toda a extensão da aventura, para acompanhar as metamorfoses de Maria Padilla. Haveria que poder procurar os elos entre a História e a construção da representação simbólica que associou a Padilla aos rituais mágicos ciganos e a transformou na Bari Crallisa. Pesquisa evidentemente complementar de outra interrogação: como o imaginário da feitiçaria (que já está embutido dentro da tradição poética do Romancero) acabou assimilando a "hermosa dona Maria, manos blancas e ojos negros" a mn dos grandes diabos das invocações demoníacas, tal como a encontramos, por exemplo, nos conjuros das feitiçarias portuguesas, citados por Laura de Mello e Souza? Havia evidentemente que procurar esses conjuros primeiramente na Espanha. E articular essa busca com a pergunta que Mérimée obriga a formular: qual seria a parte da mediação gitana, na assimilação e difusão do que acabou se tornando mito para uns, esconjuro para outros? Seria um nunca acabar de pesquisas, que, evidentemente, nem podia sonhar em pretender afrontar. Pois vai aqui um enxerto de última hora ... Nova retomada do texto. Porque Dona Padilha, a Pomba Gira, justo no dia de seu aniversário (2-11-90) deu-me um presente, por intermédio da colega e amiga, Mestra em assuntos da Inquisição, Anita Novinsky. Na seqüência de uma conversa ciganil, emprestou-me mn livro, melhor dizendo, o livro. Porque nele encontrei outras verdades muito extraordinárias que nem intentava procurar. De Maria Helena Sánchez Ortega, La Inquisición y los gitanos (Madrid: 1988.). Nele eu haveria de reencontrar, largamente citado, na edição espanhola de 1979, aquele que já fora o üvro base para Mérimée, The zincali, de George Borrow, don Jorgito el inglés, como era conhecido na Espanha. Não reencontraria referências explícitas àquela realeza "bohémienne", a
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Bari Crallisa associada à Padilla, evocada em Carmen, a partir do autor inglês, mas sim outro conjuro em língua gitana, ligado a um feitiço com a pedra de ímã, o amuleto bar lach~ também transcrito por Borrow: Y que se 10 diõelo a lar bar lachi (... ) Y'laver se lo deõelo a Padilla romi (... ) (p. 262) (romi = esposa) A associação cigana-Padilla-que Ortega também aproxima da amante real (à p. 186)-, poderia, pergunto eu, ter sido uma elaboração regional, já que "no tempo em que doõa Maria de Padilla andava sobre aterra", ela circulava precisamente pela Andalucia fuera el hogar gitano por excelência. "(Ortega, p. 49). E o acoplamento cigana-feiticeira associado à lenda que corria em torno da real amante, feiticeira porque sedutora, parece que se encaixava bem no que Ortega chama "o clichê da gitana andaluza", clichê esse que "Borrow contribuiu para construir e divulgar na Europa". Cp. 300). O interessante é perceber, graças à citação de Borrow, o quanto a caracterização da personagem Carmen está próxima desse que Ortega considera mn clichê: "(a gitana de Sevilla) (... ) es de mediana estatura, (. .. ) cada movimiento suyo denota agilidad (... ). No hay en Sevilla ojos femeninos que puedan sostener su mirada, tan aguda y penetrante aI mismo tiempo que cautelosa y taimada es la expresión de sus orbes negros, la boca hermosa y casi delicada y no hay reina en el trono más soberbio que exista entre Madrid y Moscú que no envidie las dos hileras de blanquísimos dientes que la adOrna0. " Mas, principalmente, o que encontrei no riquíssimo livro de Ortega foi a versão espanhola, matricial, sem dúvida, do conjuro infernal de Maria Padilla, aquele que me havia atraído para estes emedados caminhos. Nestas orações aparece trinca infernal: por la muger de Satanás por la muger de Barrabás por la muger de Berzebú. E, finalmente, quem encontramos, incluída dentro do mesmo universo demonial? Por Barrabás, por Satanás y Lúcifer por doõa Maria de Padilla y toda su cuadrilla.
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Pois vamos encontrar de modo geral os mesmos esconjuros, e, de modo particular, o esconjuro de Maria Padilla, no mesmo contexto de magia amatória, na boca das feiticeiras gitanas condenadas pela Inquisição, cujos processos Ortega examina. Na boca da "gitana celestina", de grande reputação, Adriana, por exemplo: .. Asi como esto yerbe, yerbe el corazón de Blas, en el nombre de Satanás y de Barrabás y deI diablo Cojuelo (. .. ) y de Dona Maria de Padilla y toda su cuadrilla (... )" (p. 311). Na verdade, diz a pesquisadora Maria Helena Ortega, o "fundo hechiceril" é comum a toda a Espanha, o que denota, diz ela, uma real "limitação imaginativa". Caracteriza-o a mistura, a influência da religião oficial nos conjmos: é grande entre os séculos XVI e XVIII a "contaminação entre esse mundo religioso oficial em que a feiticeira é imersa no seu cotidiano e o mundo mágico" . (p. 124-129). E como o amor é sempre a grande preocupação, parece que as feiticeiras não sentem necessidade de renovar práticas seculares; de mais a mais, "o repertório é comum por causa da transmissão oral e da mobilidade de suas protagonistas entre as diferentes áreas do país. Por isso mesmo não sofrem grandes transformações, entre os séculos XVI e XVIII". Cp. 123). Será também o motivo pelo qual os mesmos conjuros penetraram e circularam em Portugal. A este propósito é interessante registrar uma observação do pesquisador Robert Rowland que me foi gentilmente comunicada por Laura de Mello e Souza. Há; diz ele, no Tribunal de Toledo, transcrições de duas sentenças envolvendo broxas que usavam o conjmo de Maria Padilha. Estas transcrições devem se basear num documento avulso existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e denominado processo, apesar de não sê-lo, com o número 17.860. As broxas seriam portuguesas e não se compreende o que parecem ser ligações misteriosas entre o registro de Toledo e o possível processo lisboeta. E com isto, volto ao rumo primeiro, no momento em que pretendia chegar a Portugal. Para isto, eu pensava, a partir de magros indícios, possíveis evidências, cacos que afloram num vasto e subterrâneo território- os escmos-tentar contribuir para aquele sonhado, utópico, amplo, tranScontinental romance de detetive a que acima me referi. E começaria abordando o veio da tradição poética. Sabe-se que a primeira grande compilação impressa de "romances viejos" foi empreendida pelo impressor Martin Nucio, de .. Amberes", aproximadamente em 1547, uma empresa comercial para divertir as guarnições espanholas de Flandres. (Rodriguez-Moiíino, 1967). O impressor viajou pela Espanha, recolhendo velhos cadernos de "pliegos sueltos" e recitações de iletrados, como explica na sua introdução. Foram cento e cinquenta e cinco peças, e, entre elas, um romance
144 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 do ciclo de D. Pedro o Cruel: Romance de Don Fadrique, maestro de Santiago y de como lo mando matar el rey Don Pedro su hermano. Em 1550, Manin Nucio publica uma nova edição, sempre com um prólogo explicativo: Cancionero de romances en que estan re-
compilados la mayor parte de los romances castellanos, que hasta agora se han compuesto. Nuovamente corregido, emendado, yafladido en muchas partes. En Anvers, en casa de Martin Nucio, a la enseiía de las dos Cigueflas, M.D.L. V. Nessa edição, são eliminados alguns poucos romances e acrescentados trinta novos. Entre estes, o romance De la muerte de la Reyna Blanca, que sai impresso na sequência da morte de Don Fadrique. Trata-se de anônimo do n!! 973 de Duran que começa: Dofia Maria de Padillal n' os me mostraya triste vos. Um belo romance, com três vozes narrativas: a do rey que tranqüiliza Dofia Maria e obedece a seu pedido, dirigindo-se a um escudeiro para que vá matar a Rainha; voz dos escudeiros, o primeiro, que recusa a missão, o segundo que a executa; voz e lamentação da jovem Rainha: Hoy cumplo deciseis afiosl En los cu ales muero yo El Rey no me ha conocidol Con las virgenes me voy. Note-se que são dois romances que se situam no que se pode considerar a vertente negati va a Dona Maria. É lembrar que o primeiro romance, acima transcrito, é o que evoca o tema de Salomé (a cabeça cortada de D. Fadrique apresentada num prato a Dofia Maria de Padilla, que com ela dialoga); e o segundo opõe o desejo sangüinário da Padilha (lhe é prometido um pendão de sangue pelo Rey) à doçura da virgem Dona Blanca que até perdoa o carrasco: "Dofia Maria de Padillaf esto te perdono yo ... Ora, entre as três reimpressões dessa edição de Martin Nucio de Anvers, de 1550, uma delas foi feita em Lisboa, em 1581: Cancionero de romances. En que estan recopiladas a (sic) mayor parte de los romances castellanos... Impreso en licencia dei Supremo Consejo. En Lisboa, en casa de Manuel de Lyra, M.D.L.>C.>C.>C.I. Esta edição, diz o autor do substancioso estudo sobre o Cancionerc de Anvers, Antonio Rodriguez-Mofiigo, de quem tiro estas informações, corresponde ao de 1550, com a única variante de suprimir os dois últimos romances: Llanto haze el rey David e Con ravia esta el rey David. Intervenção da Inquisição. Prova da intervenção da Santa Madre até na poesia, e, sem dúvida, na inspiração dos poetas.
Caminha; do Imaginário no Brasil...
28. BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feitiçaria. saludadores e nigromantes no século XVI. v. 1. Lisboa: Projeto Universidade AbertafEsusp.1987.p.94. 29. Ibidem. p. 94.
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Temos portanto a prova da existência em Portugal de dois romances do ciclo de D. Pedro em 1581, dois poemas que não são particularmente favoráveis a Dona Maria de Padilha. Ignoro como circularam na tradição oral ou no cordel português. Só pude consultar o Cancioneiro Geral de Teófilo Braga, e, salvo erro, não encontrei a menor ocorrência do ciclo, nem esses dois. Na mesma ocasião examinei praticamente todas as coletâneas dos romances ou xácaras recolhidos no Brasil, aquelas de que tenho conhecimento, também, salvo erro, nada encontrei de Maria Padilha que deixasse uma marca da transmissão de uma memória poética de sua história. Quanto à vertente de uma transmissão pela memória da feitiçaria que, no Brasil, permite subir tão longe em Portugal (lembro as orações de catimbós recolhidas por Mário de Andrade), procurei uma menção no belo li vro do historiador português Francisco Bethencourt (1987). Nele encontrei três referências a uma Maria Rodrigues Padilha: uma vez, como recorrendo a uma famosa feiticeira, Brites Marques, para recuperar um amante28 ; outra vez, ela leva ··quatro andorinhas numa panela nova muito cerrada" a uma freira, que, parece-me, é ela própria feiticeira29 ; e, finalmente, seu nome figura, sem atribuições, no quadro que faz o autor da rede das feiticeiras de Évora. (Lembrete: nas livrarias especializadas encontra-se, e, pelo número de edições, era muito procurado, O livro das bruxas, ou, Â Feiticeira de Évora). O que me pareceu mais interessante foi constatar que nas invocações demoníacas transcritas pelo autor não encontrei menção a Maria Padilha. Encontram-se sistematicamente o apelo aos três demônios, o terceiro podendo variar, sendo a fórmula mais corrente a que Laura de Mello e Souza cita, no caso das feiticeiras no Brasil: "eu tescoonjuro com Satanás e com Barrabás e com Cayfás e com Lúcifer e sua molher. (p. 39), freqüentemente invocada na seqüência é "a may de Sam Pedro que hé a mior diabo que no inferno está". (p. 39,71). Esta é freqüentemente chamada pelo nome, Marta. (Veja-se a oração da cabra preta brasileira: há Marta e há Ferrabrd1.). Ocorre perguntar: será que naquela época, o século XVI -os processos são em geral da década de 50-ainda não estaria cristalizada a associação Maria Padilhaf feiticeira demoníaca!! As invocações demoníacas das feiticeiras citadas por Laura, a de Lisboa, Domingas Maria, a de Beja/Angola/Recife já são do princípio do século 18. Haveria que pesquisar esse caminhar do endemoniamento de Maria Padilha em Portugal, já em marcha nos romances que lá circulam no século XVI (Lembro que as datas históricas são entre 1350 e 1369). As orações de Antonia Maria parecem situá-la no topo da hierarquia demonial. Ela se segue à tríade consagrada que já vem
146 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, o! 1 - 03/91 desde o século XVI. Maria Padilha e toda sua quadrilha parece ocupar estruturalmente a posição atribuída à mulher de Lúcifer em outras invocações daquela época. Grande diaba, portanto. E agora, o salto. Na família da Pomba Gira Só se mete quem puder Ela e Maria Padilha São mulher de Lucifer. Retoma-se o leit-motif deste texto: quando, como, onde, por que? Não saberia responder. Como se verá, o que se observa é o que parece ser a longa memória -a "longue durée" -daqueles traços constitutivos da dama espanhola, tais como a memória poética os delineou. Da "hermosa e hechizera Dona Maria de Padilha" à Pomba Gira específica que recebe um nome idêntico ao seu, parece ter havido mais do que coincidências, são fortes as semelhanças, comuns, os atributos. Tentando não me dispersar, sempre focalizando meu interesse em Maria Padilha, mas obrigada a saber um pouco de Umbanda I Quimbanda, de Exu, li alguns poucos livros: teses universitárias de "brancos", literatura umbandista oficial, e, fmalmente, notas esparsas para um trabalho futuro de uma colega e aluna, Raimunda Batista, da Univ. de Londrina, a qual também contribuiu para aumentar minha biblioteca umbandista, e cuja preciosa colaboração agradeço. Também conversei muito com algumas pessoas que recebem ou consultam Pomba Gira. Fui assistir à festa de aniversário de Maria Padilha de minha amiga Beth de Oxum, o ritual "oficial" e a festa "festiva" que se lhe segue. Procuro, a partir dessas diferentes fontes de informação, esboçar, apenas, a figura complexa, fugidia, contraditória, múltipla dessa fascinante e fascinadora entidade. Começo, interrogando alguns dos livros da vasta produção dos intelectuais da umbanda. Aqueles que procuram organizar racionalmente um saber, a partir de suas leituras e conhecimentos, aliados às suas práticas, uma vez que são em geral ligados a um centro de culto. Representam uma entrada num cada vez maior mercado editorial: é só observar a grande quantidade de títulos e de renovadas edições nas cada vez mais abundantes e concoiridas lojas que negociam todos os artigos de umbanda. Pode-se pensar que muito cliente seja até analfabeto, mas não esquecer o poder que dá a p<>&'Se do próprio objeto livro, do livro de magia, principalmente. 3O Lembrando o nigromante do Orlando Furioso. que cavalga seu hipógrifo:
30. Ver FABRE. Daniel I.e livre et .lU magie. In: CHARTIER, Roger. (ed.) Pratiques de la lecture.
Caminhos do hnaginário no Brasil... Paris: Rivages, 1985. p. 182-206.
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De la sinistra sol lo scudo avea, tutto coperto di sela venniglia: ne la man destra un livro, onde facea nascer, leggendo, l'alta maraviglia. (Canto IV, 17). Mas lembro também a advertência da própria Maria Padilha dos Sete Cruzeiros, num "capítulo psicografado":
31. MOLlNA, N. A. Saravá Maria Padillla. Rio de Janeiro: Editora Espiritua-
lista, sfd p. 28.
32. MOLlNA, N. A loco cit.
33. CASCUOO, Luis da Câmara. Made ill Africa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 105-112.
Dizer que os livros contam tudo, não é possível, pois a vibração temível está nos nomes das pessoas. Se a força do Filho que lê é grande, então sim, consegue atrair trabalho em minha falange, com Maria Mulambo e Rainha das Sete Sepulturas Rasas, etc .. Como vê, depende do trabalho. 32 E esta conclusão: Mais vale ter um livro na mão do que nada, na hora do aperto. 32 São os próprios teóricos umbandistas que pennitem lançar uma ponte entre a Pomba Gira e as feiticeiras européias: liga-as a sua comum filiação demoníaca. No mais das vezes, precedendo receituários e preceitos, nos livros consagrados a essa entidade-na sua dúplice vertente, a feminina Pomba Gira, a masculina Exu-vêm elaboradas redes de correspondências e organogramas, o que integra a relação demoníaca do Povo de Exu no universo da tradição européia, Bíblica, cristã e cabalística. No topo da hierarquia, o Maioral (o Diabo, Satanás, Capeta, Demônio, etc.) preside à legião dos anjos decaídos, Lúcifer, Belzebuth, Aschataroth, e Omulu e Hael (Exu da Meia Noite), Proculo (Exu Tata Caveira), Exu Marabô, Tranca-Rua, Tiriri, etc. etc. etc. Legiões, linhas, falanges, nomes se entrecruzam, se equivalem, diferem às vezes de um livro a outro, mas sempre regidos pelo Demônio supremo. Um Demônio bem europeu, a acreditarmos em Câmara Cascudo, sancionado por Edison Carneiro: há "ausência do Diabo africano" , afinna e demonstra o grande fole 10rista brasileiro. 33 Pareceu-me razoável para tentar desbastar o que, para o leigo, se apresenta como um cipoal de correspondências, ir acompanhando de perto um livro que tenta estabelecer um corpo teórico mais desenvolvido sobre a Pomba Gira e acentua sua articulação demoníaca e sua relação com o velho sabbat europeu. Refiro-me à Pomba Gira (Mirongueira). Mironga. "segredo ou mistério, cobrindo aspectos da umbanda que escapam à compreensão racional, é o novo sentido de
148 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 milonga, no Rio de Janeiro ... Milonga, linguajar dos escravos, do quimbundo, que quer dizer conversa inútil, palavreado, embromação.,,34 Autor do livro em questão: o Tata e Professor José Ribeiro, nome respeitado entre o Povo do Santo, baiano, filho de Mãe Kilu, do antigo candomblé do Engenho Velho, lá feito no Santo aos quinze anos, estudou em Coimbra, esteve na África, ensina sudanês, é compositor, cantor, radialista, autor de muitos livros sobre umbanda e candomblé, Zé de Kilu é filho de lansã e Pai de Santo no terreiro de lansã Egun-Nitá, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Parece-me razoável acompanhar este livro por ser, creio eu, representativo do gênero; não só por sua tentativa de articulação com matrizes européias, como por uma certa desordem, amálgamas, acumulação de citações, contradição na apresentação dos dados, bastante comum a esta literatura umbandista. Isto parece refletir o que é, na verdade, a dificuldade em enquadrar em moldes rígidos uma religião dinâmica, em constante mudança, onde cada terreiro tem efetiva autonomia no ritual. Tanto esta, quanto a literatura acadêmica propriamente dita, propõem-se uma meta científica, nem sempre compatível com o objeto, fugaz porque dinâmico, rebelde à fixidez da apreensão sistemática. É o que torna aliás tão difícil e insatisfatório para o leigo interessado o acesso meramente livresco a um culto vivo, em contínua invenção e reelaboração como é a Umbanda. Onde há tantos não ditos, e tantos ditos... conforme a cara do freguês. A apresentação define o alvo do livro: "inserir as mais diferentes modalidades da Magia, todas dirigidas e calcadas no orixá Pomba Gira, em outros termos, ASMODEUS". (p. 12). Proponho-me destacar os capítulos mais diretamente ligados a esse "orixá", introduzindo alguns comentários. A Pomba Gira só entra em cena no capítulo IX: Pacto com o demônio. Invocando a autoridade do Malleus Maleficiarltm (e ligada à associação erudita dos sete demônios e dos sete pecados capitais, ver Bethencourt, 1987, p. 151-152), onde o autor descreve a hierarquia dos Demônios. Na primeira hierarquia, no topo, vem "Belzebuth, Príncepe dos Serafms Maléficos e o mais próximo de Lúcifer e Leviatã". Logo abaixo, Asmodeus (Pomba Gira), "subordinado à ordem dos Serafins Maléficos. É o demônio da luxúria e dos desejos sexuais. Seu adversário: São João Batista". (p. 39). No jogo das associações, lembro o Romance de Don Fardique, onde se encontra o tema de Salomé, recebendo num prato a cabeça de São João Batista: ( ... )
La cabeza le han cortado
34. Ibidem. p.
182-184.
Caminhos do Imaginário nO Bnmil...
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A Dofia Maria de Padilla En un plato la han enviado ( ... ) E Dona Maria conversa com a cabeça, como "se vivo fuera". Pode-se lembrar também que o dia de S. João, 24 de junho está associado à bruxaria... Capítulo X: O Sabbat. Talvez convenha, a propósito do sabbat, citar Laura de Mello e Souza, antes de dar a palavra a Ribeiro. "Não ocorre, na feitiçaria colonial, menção aos famosos sabbats, tão comuns na Europa. Em Lisboa, entretanto, três escravos-um deles brasileiro, e os outros dois com passagens pelo Brasil-aftrmaram ter estado em reunião que, de certa forma, pode ser considerada como sabática. Se tantas práticas de raizes européias persistiram no Brasil 35. MELW E SOUZA, colonial (... ) por que não sabbat?". 35 Mas pode-se perguntar também 1987. p. 258. se não se tivessem denominado com a etiqueta mais reconhecível de sabbat, rituais antes ligados às práticas mágicas africanas? De qualquer forma, o autor de Pomba Gira Mirongueira, na sua forma amalgamada, utilizou foteseruditas diversas, escalonadas mais ou menos cronologicamettte. E opõe um "antigamente" a um hoje: "hoje, o ritual ftcou mais simples, e o que se busca é o controle direto com Satanaz". (Este hoje deve se referir a certas fortes "giras de Exu ,. , praticadas em muitos terreiros). Capítulo XII O Satanismo e XIII: A Missa Negra. Reconheci nestes dois capítulos uma transcrição literal, sem indicação de fonte, de dois textos com o mesmo título encontrados no livro de João do Rio, As Religiões do Rio. A mistura do referencial cultural das magias também me faz lembrar uma observaão do mesmo João do Rio: "(... ) o que não sabem os que sustentam os feiticeiros (o babalorixá), é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de S. Cipriano". É o caso aliás da oração acima, que se encontra na 36. TAVARES, Possidõ- segunda parte do Antigo e verdadeiro Livro de S. Cipriano. 36 Diga-se nio. Oallligoe verdadeiro também, e é o ponto comum a todos os livros umbandistas e outros livro de São Cipriano. do gênero, todo o receituário, quer de magia negra, quer de feitiçaria (com mn Oráculo de SOsegredos úteis). Rio de Ja- erótica, parece integralamente ligado à feitiçaria européia, de que neiro: Eco. s/d. p. 94. Mello e Souza e Bethencourt dão fartos exemplos. Este encontro com João do Rio leva-me a uma digressão. Ele, com efeito, distinguiu no Rio de Janeiro, dois grandes grupos de 37. RIO. João do. (BA- crenças africanas: a dos nagô e a dos alufds. 37 Este último era o dos RRETO. Paulo). As reli- negros islamizados. Estes, principais atores da revolta escrava da . giões do Rio. Rio de Janeiro: Ganúer. 1905. p. Bahia de 1835, conhecida pelo nome que os designava genericamen2. te, os Malês, se tinham espalhado por todo o território brasileiro, provindo de diferentes etnias. 38 E fico me interrogando sobre um 38. BASTlDE, Roger. As religiões africanas no possível diálogo cultural que, nem Ribeiro, nem outros teóricos umBrasil, V. I. São Paulo: bandistas parecem ter entabulado. Aquele que remeteria a essa antiga Pioneira/Psup, 1971. I, p. 203-218; REIS, João José.
150 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 presença religiosa afro-brasileira: a malê e sua cultura diferenciada, muito apoiada no Alcorão. É interessante, a respeito, lembrar o testemunho do conde de Gobineau, embaixador francês no Rio em 1869: A maioria desses Minas (. .. ) são cristãos externamente e muçulmanos de fato (...) Pude constatar que devem guardar bem fielmente e transmitir com grande zelo as opiniões trazidas da África, pois que estudam o árabe de modo bastante completo, para compreender o Alcorão ( ...). Este livro se vende no Rio nos livreiros franceses, que mandam vir exemplares da Europa (... ). Os escravos, evidentemente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores sacrifícios para possuir esse volume. Contraem dívidas para esse fim e levam algumas vezes um ano para pagar o comerciante. O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais ou menos uma centena de exemplares. 39 O excelente historiador da revolta malê, J.J. Reis, desenvolve muito essa questão da formação corâmica, e sua ligação com a magia, que é o que me interessa aqui, e apela para o possível diálogo. "Não deixa de impressionar como a experiência da leitura e da escritura interessava a escravos e libertos, que sempre arranjavam tempo para se dedicar a elas (... ) Os malês da Bahia se reuniam para orar, aprender a ler e escrever o árabe, decorar versos do Alcorão (... )" Seus mestres eram "pessoas bem instruídas no idioma do Alcorão, pessoas que deixaram a marca da sua caligrafia perfeita e gramática limpa" , como decorre do material confiscado pela polícia. Entre este, pranchetas de madeira, onde se escreviam orações e passagens do Alcorão com uma tinta de poderes mágicos, que podia "apagar" as palavras.40 Eram amplos esses poderes mágicos dos malês, sendo muito populares os seus amuletos, confeccionados pelos letrados. Eram pedaços de papel cuidadosamente dobrados, segundo um ritual igualmente mágico, onde estavam escritos orações e trechos do Alcorão e desenhos islâmicos. Estas dobraduras, e mais outros ingredientes eram costurados dentro de uma bolsa de couro, chamados tiras ou tiás pelos nagôs, ou seja os patuás, ou bolsas de mandinga, esta "especialidade colonial", no dizer de Laura de Mello e Souza. 41 Esses amuletos eram na Bahia" objeto de uso obrigatório de muçulmanos e não muçulmanos, indistintamente, devido à reputação de possuírem forte poder protetor e funcionou como um incrível veículo de propaganda islâmica na Bahia". 42 "A magia dos textos e desenhos islâmicos servia a uma variedade de fins protetores. Além da proteção contra os agentes do mal, os amuletos ajudavam seus donos a controlar os astrais incertos dos mundos dos espíritos. Com a introdução do Islã,
Rebelião escram TW Brasil: a história do levante dos Malês, 1835. 28 • ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
39. BASTIDE, p. 205.
40. REIS, 1987. p. 127128.
41. MELO E SOUZA. 1987. p. 210.
42. REIS, 1987. p. 118119.
Caminh<B do Imaginário no Bnm1...
43. RIO, 1905. p. 7.
44. BASTIDE, 1971. p. 215-216.
45. REIS, 1987. p. 136.
46. BASTIDE, 1971. p. 209.
47. REIS, 1987.p. 124.
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certos desses espíritos, os iskoki em haussá, e alijano em iorubá, separaram-se em forças do bem e forças do mal, passando a se confundirem com os djinn muçulmanos. "Os alufás", diz João do Rio, "usam do aligenum, espírito diabólico, chamado para o bem e o mal" .43 Mas os poderes malês eram reputados mais amplos do que simples contra feitiços. Tanto no Rio, como na Bahia, os Malês eram considerados mestres da magia negra, dizem todos os estudiosos. Artur Ramos, estudando a macumba no Rio de Janeiro, dentre as "linhas de espíritos" destaca a linha de Mussurumim: "como a magia dos Malês era considerada particularmente eficiente, singularmente perigosa, esta linha compõe-se de espíritos perversos que descem à terra para praticar atos de vingança. Evocam-se, traçando no solo círculos de pól vora em que se põe fogo e no centro dos quais, cigarros, bebidas, etc. ,,44 Não faltam, pois, creio eu, os elementos do diálogo cultural, e pode-se imaginar contatos reciprocamente fecundantes entre feiticeiros tradicionais, brancos ou negros, e os poderes mágicos malês. Se estas trocas são do domínio do verossímil, imaginar porém que, delas tivessem podido brotar elementos constitutivos da "charada cultural" que é a Pomba Gira, poderia parecer incompatível com o estatuto subalterno da mulher no mundo islâmico, muito embora a própria ambivalência da entidade responda à ambigüidade da visão do feminino entre os muçulmanos. As mulheres, entre eles, são vistas como "estando em um estado constante de impureza ritual". 45 É-lhes vedada qualquer participação nos rituais: "o Alcorão proclama a preeminência dos homens sobre ela, porque Alá fez uns superiores aos outros". E na Bahia, "as mulheres estavam submetidas a um código de honra bastante rígido" , enquanto aos homens, era permitida a poligamia. 46 Mas, por outro lado, sempre foi muito forte o apelo da sexualidade no Islã. É lembrar Maomé, sempre muito ativo com suas nove mulheres ... No Islã, a mulher é objeto e instrumento de delí~ias tais, que, para o muçulmano cumpridor de seus deveres é-lhe prometido um Paraíso cheio de belas mulheres celestiais, as voluptuosas ouris. E, precisamente por ser reconhecida a força telúrica da volúpia, lógica e contraditoriamente, o Islã é machista, segregador e castrador das mulheres, pelo perigo que representam: atrativa e impura fonte de prazer. Ficam as perguntas: quantos ingredientes terão entrado no variado" cocktail" , próprio dessa "reinvenção das coisas, típica das culturas escravas do novo mundo .. 47 que compõe a Pomba Gira? Tal como a Pomba Gira, que se reveste ao mesmo tempo da aura erótica da ouri e dos baixos poderes demoníacos. Sua carga satânica tanto pode remeter às torturas da culpabilidade bíblicas
152 :. Rev. Bras. de Lit. Comparada, n~ 1 - 03/91 (lembrar-se de Lilith), e cristã, quanto à ambigüidade de um Islã fortemente erotizado. Mas, tanto na África Negra quanto no Brasil, "o islã negro foi obrigado a fazer concessões a seu setor feminino".48 "Manuel Querino descreve um "sará", missa malê (consta quefazer sala significava as orações cotidianas feitas em casa) onde a "dona de casa se dirigia às pessoas presentes, cruzando os braços (... ) proferindo a saudação motumbá". 49 (Note-se que é uma fórmula ainda vigente em muita roça de candomblé) .•• As mulheres (... ) participavam, comiam e dançavam dentro de um islã mais alegre" .50 Alegrias que permitem associar às da Pomba Gira, ao ler-se a descrição de uma festa dos Mortos presenciada por Mello Moraes, "evidentemente rito funerário malê" , diz Artur Ramos, 51 já sincretizado com iorubá, acrescenta Bastide. 52 Realizada em Penedo, Alagoas, esta festa, que durava vários dias, iniciava-se no dia consagrado às preces no Islã, uma sexta-feira, com orações, à meia noite, e pela noite adentro, as oferendas de sacrifícios de animais. Seguia-se um vasto festim, aberto também a todos os da vizinhança; que acorriam. "De turbante e pano da Costa, de saias rendadas e leves chinelinhas, as mulheres negras prodigalizavam comidas à moda de seu país,53 sendo as principais refeições dos dois dias últimos presididas pelo sumo-sacerdote e seus sequazes, vestidos com suas vestes brancas (... )" (Deve-se notar que outro símbolo da presença islâmica na comunidade africana era o uso de uma roupa toda branca, espécie de camisolão comprido, chamada abadá na Bahia).54 "Depois", prosseguindo na descrição de Mello Morais, "perdendo-se das vistas curiosas, matronas da África, de face lanhada e gestos magníficos, lá seguiam às ocultas, cobrindo com o pano de Angola cuias bordadas contendo comidas. " E acauteladas no andar, receosas nos movimentos, voltando-se com o olhar, entornavam aqui e ali, por cima da terra e por baixo das pedras, o funerário alimento para o banquete das almas (... ) Em seguida dava-se o sinal para as danças. Não obstante ao povo inteiro serem facultativas as danças dos seus usos, os dançadores d'Africa isolavam-se perfazendo um grupo distinto ( ... ) em leve rodopio, spatenado, em algazarra confusa, os africanos e africanas dançando e cantando, batendo palmas (. .. ). Veio a noite, acenderam-se archotes de resina,
48. REIS, 1987. p. 130.
49. BASTIDE, 1971. 213.
p.
50. FEIS, 1987. p. 130.
51.
RAMOS, Artur. As culturas negras no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. p. 345.
52. BASTIDE. 1971. 212.
p.
53.
MORAIS FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaiaf'Edusp, 1971. p.
209-211.
54. REIS. 1987. p. 124.
Caminhos do Imaginário no Brasil...
153
OS dançados e os clamores aviventam-se mais e mais, ao passo que uma das baiadeiras negras, libertando-se da roda, dançando sempre, chegava-sé para os assistentes profanos que circulavam os bailados. Graciosa e vistosamente trajada, recobria-Ihe a mão suspensa uma chuva de fitas de todas as cores, pendentes do cabo de uma varinha de prata (... ) em cuja extremidade tinha moedas de ouro, de encontro às voltas de miçangas e búzios que a adornavam (... ) Com esta, tocavam um espectador, que convidavam para dançar. Se este recusava, dava em troca dinheiro, e a este ofereciam as baiadeiras da Morte ramos de flores entrelaçados de fitas 55. MORAIS FILHO, 1977. p. 211.
56. CLEBERT. Jean-Paul. Lestzigalles. Paris: Tchou. 1976. p.46.
57. "Diz o decreto de 27 de Agosto de 1685: Fica conlutado aos ciganos o degredo da Africa para o Maranhão". MORAES FILHO, Mello. Os cigaIIOS 110 Brasil e callCionei-
ro dos cigallos. Belo Horizonte: ItatiaiaJEdusp, 1981. p. 26.
58. Encontra-se no tradicional Livro das Bruxas. ou A feiticeira de Evora referências de cigano acoplado a negro em terras do
( ... )
55
Continuando a digressão, eu me permitiria outra observação quanto ao tratamento dado pelos teóricos umbandistas à Pomba Gira Cigana. Cuja inclusão no panteón da "mironga" se explica evidentemente pela secular associação cigana-feiticeira, e os autores umbandistas sempre remontam às mais sábias incursões sobre as longínquas origens dos ciganos. Não se encontram, no entanto, referências aos ciganos em Portugal, onde teriam entrado desde o século XV, vindos provavelmente da Andaluzia, terra da Bari Crallisa. E não teria sido interessante registrar a sua antiga presença no Brasil, documentada em autores de fácil acesso e saber comprovado, como Câmara Cascudo? Com efeito, apesar "do horror que parecem ter tido do mar" ,56 foram obrigados a atravessá-lo: já desde 1574 um alvará de D. Sebastião comuta a pena de galés do cigano Johan de Torres em degredo no Brasil, podendo trazer mulher e filhos. E a partir de então não faltam referências a eles nas Denunciações inquisitoriais' da Bahia ou de Pernambuco. Mello Moraes no seu Os ciganos no Brasil cita várias ordenações do Reino dos séculos 17 e 18, referentes a ciganos. 57 Os dois maiores centros de concentração cigana foram Bahia e Rio de Janeiro, onde viveram permanentemente, fizeram grandes fortunas como revendedores de escravos, além de exercerem todas as costumeiras profissões; acabaram se misturando com a população local. A rua da Constituição, no Rio, j á se chamou rua dos Ciganos, e lá veneravam a Senhora Sta Ana, chamada Cigana Velha. Vale notar que a mais antiga paróquia de Sevilla, na Triana, bairro cigano, era também dedicada a Sta Ana. (Ortega). Como acontece com toda população pobre e marginal, relegados geralmente nos mesmos bairros, viviam perto dos negros, vizinhos aos depósitos do Valongo, e na Cidade Nova. Pode-se, portanto, facilmente imaginar havidos contatos e trocas mágicas. 58 Tanto mais que havia ciganos, como lembra Ortega, que haviam "conservado el nucleo primitivo de sus creencias unidas a la religión positiva, Islamismo o
154 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 Cristianismo, que han adoptado en los distintos paises en que se han asentado. ,,59 Lembrar também, a partir dos processos analisados por ela, que, entre seus muitos amuletos, as ciganas também recorriam aos papeizinhos com escritos e desenhos mágicos, análogos às bolsas de mandinga. E tal como os negros, os ciganos participavam com suas danças, instrumentos e trajes característicos das grandes festas oficiais da colônia. Um testemunho das festas de 1810 no Rio, o viajante Eschwege permite imaginar o quanto elas deviam espicaçar as imaginações eróticas: "todos só tinham olhos para as jovens ciganas; (... ) executavam os mais lindos bailados que jamais vira". Outros se referem às "baiadeiras c. .. ) morenas sedutoras como as profetisas gentias." (quem haveriam de ser estas?).60 O capítulo XIV trata de Klepoth, (Exu pomba gira). EXU POMBA GIRA, denominada na Lei da Kabalah KLEPOTH, é uma entidade da Magia Negra que representa a maldade em figura de mulher (... ), a encarnação do Mal (... ) o Bode de Sabbat." (... ) "Pomba Gira encarrega-se da vingança, pactuando com as mulheres feiticeiras contra as suas inimigas. Todos os trabalhos inerentes a casos de amor, nos quais a mulher se sente prejudicada, ou então pretende realizar qualquer união, são entregues à Pomba Gira, e os seus resultados são surpreendentes, pelo fato de possuir essa entidade um grande poder." C.. ) "O dia que lheJertence governar é sexta-feira, principalmente à noite." (Não saimos dos topos tradicionais, encruzilhada, sexta-feira, Mas sexta-feira também é o dia sagrado de orações para os Malés. Poderia se ver uma carnavalização do dia sagrado reforçando o dia consagrado às feitiçarias?) Ao mesmo tempo que aponta para o princípio do Mal absoluto, o Demônio, aponta para seu aspecto de mensageiro, para sua característica de executora de trabalhos que podem beneficiar ou prejudicar o "filho da fé" que lhe pede algo. Isto é imediatamente ilustrado por um exemplo de "trabalho" que transcrevo, não sem antes, com Cascudo, lembrar a origem oriental-malé-desse dualismo. "Ausência do diabo africano", diz Mestre Cascudo: "O dualismo doBem-e-do-Mal foi uma dádiva oriental" e "o Diabo, mna,invenção católica, portuguesa. O nosso Diabo é uma permanência, força inflexível, terebrante, teimosa, em serviço do Mal. (. .. ) Essa atitude não existe entre os santos pretos. (. .. ) Elegbá, Exu (... ) é um embaixador dos pedidos humanos para um orixá poderoso e capaz da realização suplicada. Os pedidos é que podem ser bons ou maus, sem a participação do intermediário." Exu não tem a maldade congênita, meduetc. 62
Bmsil: um anel mágico que se encontraria pelas "bancas da Passagem". O anel tem a ver com busca de tesouros, assuntos mágicos em que se especializavam os ciganos, diz Ortega, p. 322-349.
59. ORTEGA. Maria Helena Sanchez. La inquisi-
ciólI Y los gitallos. Madrid: Taurus, 1988. p. 259.
60.
MORAIS FILHO,
1981. p. 30-31.
61.
RIBEIRO. José.
Pomba Gira (MirrJ/lgueira). Rio de Janeiro: Edi-
tom Espiritualista, s/do p. 75.
62. BETHENCOURT. 1987. p. 109-111.
Caminhos do Imaginário no Brasil...
63. CASCUDO, 1965, p. 107-109.
64. RIBEIRO, sfd op. dI. p.76.
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lar... Sua susceptibilidade, caráter irascível, turbulento, inquieto, vingativo, são invariavelmente reações, réplicas, represálias. Satanás não guarda a casa de ninguém. Exu, repleto e tran~uilo, é guardião incomparável. O nosso Satanás é incorruptível... ,,6 E nosso Exu Pomba Gira, ao contrário de Satanás incorruptível, "trabalha a favor e em benefício das mulheres e depende unicamente da classe do trabalho que a mulher quer que ela lhe faça (... ) ,,64 Ela também ajuda os homens: Todo homem que quiser conseguir alguma coisa de Exu Pomba Gira vá em uma sexta-feira, próximo de meia-noite, em uma encruzilhada (se for uma mulher que quer ser beneficiada, deve ir acompanhada de um homem, segundo a lei da polaridade e do sexo), levando a oferta correspondente ao trabalho, pedir licença, e em seguida cantar o ponto: Areia Arreia Rainha da gira Vem trabalhar Exu Pomba Gira. E, quando mais ou menos sentir sua prescença, cantar a seguinte saudação: Salve tatá Pomba Gira Salve Exu Mulher Ela é na encruzilhada A que faz tudo o que quer. Em seguida, entregai a oferta e fazei o pedido; terminando, direis: "Assim como na encruzilhada tu és aquela que fazes tudo o que queres, assim também me façam o que quero. " E vamos reencontrar, na conclusão do ritual, ecos daquela poética oração de Antonia Maria:
65. Ibidem. p. 76.
E, tenninando, dizei: "assim como os astros giram, as estrelas brilham, o Sol e a Lua iluriúnam, assim estou eu confiante de me fazeres o que eu quero; e que logo que isto obtenha, eu vos trarei uma boa oferta. " Dizei o que se vai 65 · dar em agradeClmento. A partir de Ribeiro e do conjunto de textos se referindo a ela, Exu é uma figura mítica complexa, contraditória, ambi valente, cuja caracterização é difícil resumir em poucas linhas. É composto por
156 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 . traçOS africanos da origem-intennediário entre os homens e os deuses,sexualidade forte, fálica, caráter de "trickster", isto é, malícia, esperteza, desordem -, conceitos espirituais e tradições européias e bíblicas: associação ao Reino das Trevas, demonologia cristã cabalística, cuja hierarquia militar reproduz. Esta, que incorpora os Serafms decaídos, vai ao Diabo Chefe, o Maioral, Lúcifer, numa gradação descendente até os exuzinhos mais desqualificados. Mas esse Reino das Trevas e do Mal, associado à Quimbanda, não é homogêneo; os níveis superiores são considerados mais puros que os inferiores. Aos primeiros correspondem os Exus batizados, que, dentro da Quimbanda e com as forças mágicas desta trabalham para o Bem, e os exus-pagãos, os "opressores" que não podem evoluir, sem luz, marginais de espiritualidade, que só trabalham para o Mal: "A nomeação, o batismo, aparece como uma atividade simbólica que ordena o uni verso das entidades sobrenaturais. O Mal é domesticado quando recebe um nome, isto é, quando lhe é dado um lugar e uma função bem detenninados. ,,66 Esta ambivalência do Exu remete à do feiticeiro europeu tradicional: "quem pode o mal, pode o bem" .67 E, como o demônio europeu ("Le jeu effrayant du diable et de la mort", de Delumeau, à página 325), os Exus estão associados à morte. Uma das falanges de Exu se intitula "O Povo do cemitério" e está subordinada a Omulu, "dono e senhor dos cemitérios". Este orixá africano, ligado à doença, na Umbanda não figura na Linha da Luz. Os especialistas vêm notando a preferência dos consulentes pelas entidades mais marginalizadas das suas hierarquias: pretos-velhos da Linha de Luz, exus do domínio das Trevas. O Exu é muito procurado nas demandas (consultas e execução dos pedidos, nos despachos), e um de seus representantes mais populares, o Zé Pelintra, a quem são consagrados vários pontos, remete ao estereótipo do malandro, e, mais fundo ainda, a duas figuras paradigmáticas da cultura popular brasileira, Pedro Malazarte e o João Grilo nordestino. Fico tentada em aproximar o Exu malicioso malandro e virador de um persOnagem europeu, que também é uma figura de inversão carnavalesca, de maliciosa subversão da norma, pobre, humilhado, boçal e esperto, obsceno, sensual, escatológico, sempre ajudando os namorados perseguidos com suas tramóias que têm muito de mágico: penso nos "zanni" (criados) da Commedia dell'arte, mais especialmente no Arlequim. Figura da desordem e perturbação do espetáculo, cujo longínquo antepassado seria o Hellequin, que encabeçava a "cavalgada selvagem", diabólico encontro com a morte, o qual já tive oportunidade de associar a uma figura carnavalesca (no sentido bakhtiniano), uma "máscara" brasileira, o Mateus. 68
66. MONTERO, Paula. Da doença à desordem: li magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 149. 67. LE ROY LADURIE, Emmanuel. La sorciere de Jasmin. Paris: Seuil,1983. p.32e257.
68. MEYER, Marlyse. O carnaval nos folguedos
Caminhos do Imaginário no Brasil... populares
brasileiros.
In:- Camillhos do imagilIário 110 Brasil. São Paulo: Estação Liberdade (no
prelo).
69. MOLlNA, s.d. p. 1415.
70. Ibidem. p. 17.
71. ORTEGA, 1978. p. 302-306.
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Se me demorei em tentar apreender um pouco do Exu, é que é, como já se disse, a outra metade da Pomba Gira. Uma metade um pouco melhor, porém ... "Pomba Gira ou Pombo Giro (... ) é mais uma força vibratória, força que está fazendo parte do lado oposto, pois é Exu Mulher, sendo desta forma pólo negativo, visto ser mulher, o contrário do homem que é positivo (... )". Mas de qualquer forma há complementaridade, o par é necessário para que o trabalho seja completo: "como mulher de Sete Exus, cada Exu chefe de sete falanges desce acompanhado de sua mulher que desfruta de poderosas forças" .69 Isto posto, cada medium, além de sua entidade própria, possui obrigatoriamente seu Exu, se for homem, sua Pomba Gira, sendo mulher, que funcionam como mensageiros entre o Fiel e seu Orixá. 7o Onde fica o Mal absoluto, nesse caso? De qualquer forma, a Pomba Gira, portanto, corresponde ao mesmo mundo de apresentações do Exu. Tem a sua força, o seu poder. Como ele, "ela trabalha para0 bem, ela trabalha para ornai". (Ponto de Pomba Gira). Como ele, o caráter subversivo que oferece em relação às nonnas da moral vigente não impede,-antes explica-, a crescente preferência que por ela têm os consulentes aflitos. Mas, como é mulher, sua associação ao Mal, sua demonização passa pela imemorial marca infamante da feminilidade: a luxúria, encarnada noutro antigo estereótipo, a prostituta. Uma "mulher da vida" , com .. sete maridos", bem marcada, me parece, pelo tempo em que se constituiu a Umbanda em espaço urbano: vários dos seus pontos cantados que ouvi remetem a um espaço escuso da cidade, que já foi sinônimo de devassidão e "mulher perdida": a Pomba Gira é de cabaré. A associação fei ticeira -prostituta -demônio, personificada no estereótipo da Celestina, a grande rufiã, alcoviteira na velhice, criada no teatro espanhol por Fernando de Rojas, era muito comum já em Portugal, diz Laura de Mello e Souza, à p. 228. E vimos a: .. Cigana Celestina". 71 : Vestida de vermelho, elegante,coberta de jóias, soltando estrepitosas gargalhadas, lasciva, provocante, assim explode, quando baixa, a Pomba Gira. Note-se-como é o caso dos Exus-a estreita relação da Pomba Gira com o domínio dos mortos. Ela faz parte do "Povo do Cemitério" e tem vários nomes correlatos: Pomba Gira da Calunga, das Sete encruzilhadas, da Meia Noite, das Sete Sepulturas, a Rosa Caveira que obedece diretamente a Omulu, Senhor dos Cemitérios, Rainha do Cruzeiro. E agora, mais particularmente o nome, o nome alvo deste texto e de tantas digressões: a dona Padilha das Sete Encruzilhadas, a Maria Padilha das Almas ... Eis informações de Raimunda Batista que me concedeu depoimento oral:
158 - Rev. Bras. de Lil. Comparada, n~ I - 03/91 Muito conhecida, mesmo, célebre, conhecida por todos na Umbanda e na Quimbanda. Seus trabalhos são considerados os melhores. "Ela é a Rainha das Pomba Gira. A mais forte. Nos livros e nos pontos cantados confirma-se seu elevado posto na hierarquia demoníaca. Ela é mulher de Lúcifer. E dentro do Povo do Cemitério, é também a que tem mais poderes. Ela é Rainha do Cruzeiro e das Encruzilhadas. E por ser das Almas também, seu dia é também segunda-feira, dia de grande força além da sexta-feira. Aí é vela branca, toalha branca, flor até. "Ela", a Padilha, resolve problemas conjugais e atende pedidos dentro de sete, quatorze, ou vinte e um dias. E a promessa que lhe foi feita deverá ser logo paga, sob pena de desfazer o que realizou. É amiga de Ogum que trabalha nos cemitérios e nas encruzilhadas. Tem coisas de Iansã. Trabalha melhor no Espaço, mas também o faz na Terra. Para cada três trabalhos na Terra, efetua nove no Espaço. Recomenda que se tratem bem os Compadres (os Exus), que são necessários em alguns trabalhos. Não gosta de chegar só. Vem, antes, dela, e com ela suas companheiras, pode ser Maria Molambo e a Cigana. E costuma-se oferecer banquetes para todas elas. Ela não gosta de mulheres feias. Seus médiuns são sempre atraentes. Note-se que, entre os ingredientes mágicos ofertos à Padilha e constitutivos de seu ebó (alimento ritual), figura uma pomba preta. 72 O que leva a imaginar a ponte lançada para a alta antiguidade, evocando uma figura arquetípica da sedução: Afrodite. Cultuada entre os Gregos, de suposta origem asiática, três mitos diversos explicando seu nascimento, uma das possíveis mães de Eros. Como muitos deuses, ele oferecia uma dupla face, a radiosa, simbolizada pela imagem de seu nascimento da espuma do mar. A sombria, obscura, tenebrosa, associada aos reinos inferiores, relacionada com o caos e a morte. Encarnava a força primária, irreprimível, selvagem, do desejo e do prazer sexual, inteiramente dissociado da reprodução. E, precisamente, era uma pomba que lhe era oferecida. Ora, esta também apresenta face contraditória: símbolo do puro amor, é todavia, um pássaro a~ourento, associado também à morte. Seria o "suspiro das Almas". 3 Afrodite representa portanto um complexo amor-Iuxúria-sexualidade-beleza-morte-inferno-almas, cujas componentes, desdobradas, encontramos nas diferentes Pomba Gira, e particularmente concentradas em algumas representações de sua Rainha, a Dona Padilha.
72. RIBEIRO, S.d. p. -l-6 e MOLlNA. s.d. p. 18.
73. CHEVALlER, 1969, p. 55 e p. 758.
Caminhos do Imaginário no BrasiL..
74. MOLINA, b. p. 43.
75. Ibidem.
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Essa preeminência de Maria Padilha, a única Pomba Gira a ter um nome próprio de registro ci vil, a alta posição que ocupa, sua força, sua beleza seus poderes na Calunga, entre o Povo do Cemitério, estão confirnlados nos livros, (umbandistas e acadêmicos universitários), pelas pessoas com quem Raimunda e eu conversamos e pelo que pude presenciar. Marcando a diferença, um fecundo autor, Molina, escreveu um Savará Pomba Gira e outro volume, Saravá Maria Padilha. Esta tem, diz ele, poderes de Rainha, mulher de Lúcifer, "é a mãe de Pomba Gira, comanda uma falange de Exus que trabalham embaixo de suas ordens ... tem muita luz e força".74 Assim se refere ele à "origem carnal" da Maria Padilha, (sem citar nenhuma fonte, diga-se): Nas pesquisas e estudos em que me aprofundei no decorrer dos anos, cheguei à conclusão, ou melhor dizendo, obtive confirmação de uma delas, que, há muitos anos atrás, em uma das suas passagens por este planeta, ter sido ela irmã carnal de uma certa pessoa de grande nobreza no Mundo Antigo (... ) Maria Padilha é uma entidade de certa forma autoritária, pois fôra em outras eras figuras (sic) de grande vulto, que são citados hoje na História Geral, a História . 1 75 Umversa. Um pai de Santo de terreiro umbandista de São Paulo, entrevistado por Liana Trindade, confirma a representação que separa dona Padilha das outras Pombas Gira:
76. TRINDADE, 1982. p. 29-36.
Pomba Gira era prostituta de muito baixo nível, sem cultura. Ela não pertence à classe de Maria Padilha, que era professora, tinha conhecimentos, pessoa elegante. Ela vai transmitir para outra Pomba Gira fazer aquele serviço que pediram para ela, ela mesmo não precisa fazer. Como um encarregado da firma, (o entrevistado, 25 anos, branco, é chefe de seção), não precisa por a mão no serviço, tem quem faça por ele. É como também o Exu-Chefe, o Supremo, que comanda sete Exus abaixo dele, ele manda esses exus fazer o trabalho prá ele. 76 Uma reação comum marcou todos aqueles a quem fui atirando à queima roupa a pergunta: "Quem é Maria Padilha?". Reação de hesitação, voz abaixada, resistência, às vezes. Resistência normal, me disse uma amiga que a recebe, e não dá para explicar, "prá saber um pouco a gente precisa ser iniciada, não basta livro, nem só assistir". Depois, porque de um modo geral esses iniciados ficam sem
160 - Rcv. Bras. de Li!. Comparada, ng 1 - 03/91 jeito de falar nela, porque "toda~ as Pomba Gira são desbocadas, grossas, não é para gente fina que nem você". Mas parecia que em se tratando da Padilha, a resistência era maior ainda. Como me disse uma colega e amiga, socióloga negra do Maranhão que me ouvira, em público, falar de Padilha: a colega, ao final, disse-me, em particular: "preciso te dizer, porque você é de confiança; na minha terra, a única Pomba Gira que a gente precisa tomar uns cuidados quando ela anuncia sua visita é a Maria Padilha, porque é a mais forte das Pombas Gira. " O que foi confirmado por outra amiga que recebe uma Pomba Gira, mas não a Padilha, porque para esta é preciso "desenvolver muito mais. " A colega Raquel Trindade, filha do grande Solano Trindade, e que sabe das coisas do Povo do Santo, me confirmou, também me chamando de lado e baixando a voz: "A Maria Padilha, dizem que foi grande dama, da nobreza, mesmo; diz que era espanhola, com aquele jeito, sabe" . E Raquel, bela mulher, mãe de Santo e dançarina, figura com o corpo a postura altaneira da Padilha. "Ela é muito forte, é linda!" E acrescenta um dado que confinna a posição diferenciada da Padilha, até na cor: "Toda Pomba Gira é negra, mesmo que seu médium não seja, e nem queira ser. A única branca, branca mesmo é a Maria Padilha." Isto é negado veementemente pelo Senhor Plínio, meu eletricista, Pai de Santo de um terreiro em Lauzane Paulista, igualmente espantado, aliás, com minha pergunta e aproveita a oportunidade para me levar para a Umbanda, "coisa bonita que a gente não sabe como começa, mas acabar não acaba nunca, sempre se desenvolve". Ele diz, quanto à cor de Padilha: "Não senhora, Ela não é branca não, ela é da África. Lá, na África, ela foi princesa. Agora, quando ela baixa, ela loura, ela é esguia, ela é linda de morrer... ". Já a Bete, que atende aos numerosos clientes da casa de ervas Vavá77 com o saber que lhe confere' 'ser feita no Santo há vinte anos" , demonstra um conhecimento sereno da Padilha, que diverge um pouco dos outros depoimentos. Começa me apontando a estátua de cerâmica avenllelhada, tamanho natural, que está na soleira da porta, do outro lado de Zé Pelintra. No meio, como é Abril, mês de Ogum, um grande São Jorge a cavalo. A estátua representa uma mulher quase nua, com uma coroa de paetês vermelhos, coberta de colares e muitos cintos de metal dourado, rosas vermelhas e muitas taças coloridas a seus pés. "Ela é a Maria Padilha. Só, que de verdade, ela não é para ter essas jóias todas, ela não gosta de enfeites, é o pessoal que passa e vem e vai colocando nela. Só a coroa que está certo. Ela só gosta é do ferro dela. Esse aí. Vejo que é um garfo redondo, fêmea. O de Exu é quadrado. Ela é a primeira das Pomba-Gira, a Rainha. É mentira esses que dizem que tem a ver com o mal. Pede-se pouco pra ela. Ela
e
77, Em setembro de 1989 eu haveria de levar Carlo Ginzburg nessa loja. Encontrou-se com essa feitiçaria "in act",
Caminhos do Imaginário no Brasil...
78. FERREIRA, Finnino. 300polllos (cantados e riscados de Exus e Pomba Gira). Rio de Ianeiro: Eco, 1976. p. 28.
79. Ver MEYER, Marlyse. O carllaval 'lOS folguedos populares brasileiros. op. cito
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não atende. Quando atende, já sabe para quem é. É para quem tem merecimento, depende do merecimento da pessoa." Mesmo assim, tem que pedir prá ela prá outra Pomba Gira, em nome de Iemanjá. Assim ela atende. Agora, o assentamento dela é de bruxaria mesmo. Tem o ferro, tem tudo: pomba preta, sapo seco, aranha, outras coisas assim. Tem obi, orobô, mel, dendê. Assentamento é do lado de fora, pra proteger a casa, que nem o de Exu. Mas só se assenta Exu depois de sete anos de obrigação feita. Agora, se a cabeça for mesmo de Exu, se for mulher, tem que ser sempre a Padilha. Se for homem é o Exu Marabô; este depois de sete anos de obrigação feita. Agora, se a cabeça for mesmo de Exu, é o que tem cuidado com a alma da gente. É exu-chefe. O fundamento dele é cuidar do espírito da gente". (O Exu Marabô, no Organograma do Alto Comando do Reino dos Exus, está diretamente ligado a Lúcifer, acima de Omulu, o que confirma, na hierar~uia demoníaca, a posição de Maria Padilha, mulher de Lúcifer.)7 Minha amiga Beth de Oxum -a Maria Padilha que eu conhecia há mais tempo-a primeira que interrogara, bela e forte e sedutora mulher, mulata, também demonstrara a mesma hesitação: "não sei o enredo dela direito, só sei dela quando ela me visita, quando ela vai embora eu fico tão cansada que não me lembro mais; sei que era dama nobre, espanhola ou portuguesa, não sei. Eu ganho cada vestido lindo para ela no dia do aniversário dela. É dia 2 de Novembro". Quando no fim do ano, pedi a Beth para ir à festa de aniversário-já fora algumas vezes no terreiro quando a sobrinhada dela foi fazendo o santo-ela, tão hospitaleira, não me queria. Explicou: "é que ela é muito desbocada, diz e faz coisa que não deve, é forte demais". Venceu minha teimosia e pude, em 88, assistir ao ritual. Maria Molambo e a Cigana já estavam dançando, esperando a Padilha. Esta entrou, linda de vermelho, fez o padé de Exu e começou a loucura da dança e interpelações aos presentes, bebendo Cinzano, fumando seus cigarros longos. Estonteante visão. Esta comemoração de aniversário, o ritual organizado, na desmedida que lhe é próprio, e a festa informal que se lhe segue como em todos os rituais religiosos que observei, remete à noção de carnavalização senso-Iato. 79 Nela se observam diferentes patamares de carnavalização, compreendida como inversão do discurso dominante. Já, por exemplo, a data do aniversário, 2 de Novembro, dia dos Mortos, se tem a ver com a relação de Maria Padilha à Falange do Cemitério, também pode ser vista como escárnio em relação ao calendário cristão. A própria figura da Pomba-Gira, mais espetacularmente no dia de sua festa, mas até quando baixa dentro do ritual "oficial" da gira, é o carnaval de seu "cavalo" (na Umbanda também chamado "burro", ou seja, o médium que recebe a entidade), homem ou mulher, a quem
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assegura uma total liberação libidinal e social. Em sendo mulher, permite-lhe concentrar, na afirmação de sua sexualidade sem recalque, na soltura dos gestos e das palavras, toda a energia cotidianamente investida na formidável quantidade de trabalho exigida para a sobrevivência sua e dos seus. Em sendo homem a Pomba-Gira, ele pode, sem a auto-censura que o cotidiano o obriga a assumir, principalmente se ocupa funções religiosas no terreiro, dar total expansão à sua feminilidade reprimida. Só há que obedecer a umas poucas regras de comemoração religiosa: a imprescindível abertura de todo ritual, a oferenda ao que abre, o padé de Exu, no caso, carne crua com dendê; e obedecer à ordem de entrada das entidades. Primeiro o que seria o "séquito" de Maria Padilha: Maria Molambo e a Cigana precedem a "aniversariante. Estas normas bastam para que se oficialize e se legitime a expansão dionisíaca. Esta vai estourar sem freios na festa que sempre se segue ao fim do ritual! Essa, ao contrário do que pude observar geralmente, é aberta aos de fora da casa: muitos que lá vão, não o fazem só pela sua obrigação à entidade, mas vêm atraídos pelo pagode, pelos comes, pela cerveja. Pela liberdade enfim, que é a marca da festa da Pomba-Gira. É, principalmente, o desbunde carnavalesco dos homossexuais, o desrecalque sem peias, observado por tranqüilos casais, que, sentados à volta do barracão apreciam, sem susto moral, a festa louca. A festa de Maria Padilha como que sela a institucionalização da figura da desordem que representam exu e pomba-gira no Panteon invertido da Umbanda e nas representações e devoções de seus fiéis. ConsubstanciaI a essa desordem, a feitiçaria, melhor dizendo, a mironga. Sua executora mór, a Pomba-Gira mirongueira. Não se poderia ver nessa entidade como que a metamorfose, o avatar atualizado, moderno, dentro da sociedade brasileira de hoje (e com uma clientela que, como ontem, não se recruta só entre as camadas mais desprovidas da população), daquelas feiticeiras dos tempos coloniais, tão concretamente ressuscitadas pelas pesquisas de Laura de Mello e Souza? As quais ainda tinham muito a ver com aquelas suas irmãs seiscentistas de que Francisco Bethencourt esboçou o tipo e descreveu os atos, muito familiares para nossas feiticeiras caboclas? "Feitiços de bem querença e de mal querença associados ao amor" .80 Elas continuam por estes Brasis afora, controladas pelo ritual que garante sua eficácia e poder, "fazendo mandraca na gamela de pau de tamburi para virar a ca~a dos homens" , no dizer do pintor José Antônio da Silva, o "Silva." 1 As Antonia Maria e suas companheiras de degredo e suas mestras e discípulas da Colônia como que deixaram o Espaço (em
80. BETHENCOURT, 1987. p. 16, p. 75-103.
81. SILVA, José Antonio
da. Maria Clara. São Paulo: Duas Cidades, p. 29.
Caminhos do Imaginário no Brasil...
82. BAROJA, 1972. p. 118.
83. MONTERO, 1985. p. 247.
84. MONTERO, 1985. p. 199.
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que Inferno vai a feiticeira?), para reencamarem nas Pomba Gira, na Maria Padilha e suas companheiras demonizadas, Maria Padilha e toda sua quadrilha. Nossa atual e atuante feiticeira não é, porém, aquela figura horrenda e velha, com que a tradição a viu. Nem é tão pouco do tipo da Celestina, aquela figura literária que virou arquétipo de bruxa ligada ao erotismo, alcoviteira intringante e perigosa, solteirona e antiga meretriz. 82 Antes se faria pelo modelo de Antonio Maria: ambígua, trabalha para o mal, trabalha para o bem, sabe desmanchar feitiços, feiticeira e contra feiticeira, que não hesita em fazer as amarrações do amor em seu próprio proveito, bonita que é (novo ardil do Diabo?), "mulher graciosa, de pequena estatura, alva de rosto, e este, largo, olhos pretos e formosos", como já vimos. "Maria Padilha, me deixe tão atrativa quanto você", pedem as consulentes de hoje. E tanto quanto o marginalizado Exu, a Pomba Gira vem sendo cada vez mais querida e procurada.
o que eu gosto mesmo é da Pomba Gira, porque ela é alegre, brinca muito com a gente, sabe. Sempre vou lá, ela tá brincando, ela tem mania de levantar a saia. Eu também gosto de Preto Velho, mas acho assim, muito sério, não é muito brincalhão. Por isso eu sempre converso é com a Pomba Gira. 83 Interrogando-se sobre os possíveis motivos da grande procura dos fiéis pela Pomba Gira, Paula Montero"Veria a "projeção espiritual de suas dificuldades" (do consulente) "do que vivem e sofrem no seu dia-a-dia de trabalhadores ou desempregados" .84 Eu mesma, acima, referi-me à médium, transferindo para uma sexualidade sem recalque a energia investida para a sobrevivência cotidiana. Mas além disso, além do apelo aos dotes de feiticeira da Pomba Gira para resolver as agruras da vida e do coração, não se poderia simplesmente ver também o apelo e a atração pela perturbadora figura de sedução que também encarna? Ela é "Pomba Gira cigana que todo o povo seduz", "Moça faceira, Pomba Gira que ela é", "Atrativa Maria Padilha, Linda mulher, Rainha do Candomblé" . Atração pela liberdade do amor fora das normas que ela representa? Figura mítica do mundo invertido, a Pomba Gira não só atende e pode permitir exprimir os amores fora da divisão costumeira dos sexos, como ainda deve seduzir tanto homens como mulheres pela sua atuação amorosa fora da domesticidade das normas. "Mulher de sete maridos". O "balanço" da norma. O "balanço" da encruza. "O dêmo existe?" Atração pela radical subversão, pelas forças obscuras e reprimidas do desejo. Feiticeira. Prostituta. O interdito. O dito tão lindamente por Guimarães Rosa:
164 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n! 1 - 03/91 "coração cresce de todo lado ... , coração mistura amores". "Tudo cabe: a flor do amor tem muitos nomes". Riobaldo e seus amores: Diadorim, "neblina" e Otacilia, "mimo de alecrim, a firme presença" . E aquelas moças: Rosa 'uarda, Miosotis, Prostitutrizes. "Aquela linda moça, meretriz, vestida de vermelho, por lindo nome Nhorinhá, "filha de Ana Duduza, falada de ser filha de ciganos ... e que também gostou de mim e eu dela gostei" ... "Nhorinhá sem mesquinhice, para todos formosa, de saia côr de limão" ... "Nhorinhá prostituta, pimenta branca, boca cheirosa ..... " Nhorinhá, puta e bela, ... que casou com muitos e sempre nasceu em flôr ... " "Nhorinhá, namorã, que recebia todos, era bonita, era a que era clara... E os homens, porfiados, gostavam de gozar com essa melhora de inocência. Então, se ela não tinha valia, como é que era de tantos homens?" ... "E as mulheresdamas do Verde-Alecrim?" Envotamento de Guimarães Rosa ... Pomba Gira dos confins das Gerais ... a beleza da fala talvez faça desculpar a longa citação? Amor de militriz. Conversas amigas, porfiadas, com a Pomba Gira. Valorização da feminilidade no que tem de primordial, de força viva. Como que se quebra, nessa instância libertadora da relação entidade/consulente o milenar e arraigado preconceito, o medo de mulher, que os teólogos oficiais da Umbanda ainda teimam em teorizar. Homem, valor positivo, oposto ao pólo complementar, mas negativo da mulher. Pomba Gira = luxúria = mal absoluto = Asmodeus = Demônio Mor, mais alto que Lúcifer: o DIABO.
Ocorre concluir, o que é difícil. Suspender, melhor dizendo, a viagem à procura da Mãe da Pomba Gira. Perdi-me um pouco, muito, nesse mundo, para mim, insuspeitado, de feitiços, magias, trabalhos. Uma vertigem nascida de uma ignorância dos livros e de um mergulho nada livresco no real. Porque, à medida em que fui tentando saber dessas mirongas, ficou claro que elas estão aí, no nosso cotidiano, rede invisível que apanha um número muitíssimo maior do que se imagina e não se reduz às classes mais desfavorecidas. No humilde barracão de Beth de Oxum-Maria Padilha, era gente "fina" e de posses, que viera cumprimentar a Pomba Gira e presenteá-la, para agradecer favores. E ainda tem vez o binômio política-feitiçaria. Sabe-se que não são poucos os políticos que recorrem aos Exus. E contaram-me, recentemente, de um alto funcionário de possante empreiteira- esta ponta de lança do capitalismo brasileiro-fazendo o ritual completo para o Exu da esquerda, contra um concorrente. Capitalismo moderno? Enfim, Mário de Andrade, que "fechou o corpo" no catimbó de dona Plastina em Nata185 reconheceria os seus, ele que levou o herói de nossa gente à macumba de tia Ciata em
85. ANDRADE. Mário de. O lurislaaprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1983. p. 2S0-2S4.
Caminhos do bnaginário no Brasil...
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pessoa. Veja-se o forte Ce não por acaso número sete), capitulo de
Macunaíma:
86. ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: Martins, 1955. p. 73-
(o herói) resolveu ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exú diabo... A macumba se reza lá no Mangue no zungú da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaima chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatória. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes... marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregadospúblicos, muitos empregados-públicos, todas essas gentes ... advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatuno portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza ... 86
74.
87. Não creio ter registrado nem em Mello e Souza
nernern Bethencourt o n0me de Fenabraz na lista dos demônios figurando em esconjuros. Será mais urna das modalidades da apropriação brasileira do tema de Carlos Magno e dos Doze Pares de França: Ferrabraz era filho do Almirante Balão, aquele que batalhou contra Oliveiros e rendeu-se, convertendose à fé católica. Apesar da conversão, talvez por ser perjura, ficou no imaginá-
rio brasileiro como sinônimode capeta, de malvado.
Um insuspeitado e abissal mundo mágico nos cerca, e no qual a Pomba Gira ocupa lugar eminente. E, acima de todas, Maria Padilha. Ponte lançada pela mironga entre o século XX e o século XIV? E volta-se às colocações do inicio: espanto e perplexidade. E o não resolvido problema diante desse fenômeno de memória longa, de longa duração, o dos elos perdidos. Como reavê-los? o caminho subterrâneo já se cavocara além mar. Feiticeiros e poetas tomaram conta de Dona Maria de Padilha. Ou é Maria Padilha e sua quadrilha os que tomaram conta dela e de todas as Antonia Maria? E, com elas, atravessaram os mares. Não terá sido difícil encontrar guarida nas terras onde a Santa Cruz não afugentava o Diabo. Onde Satanás, Barrabás e Caifás devem ter se sentido como em casa, na companhia de Ferrabraz, que este sim, parece criação da casa. 87 Pois como diz Laura de Mello e Souza, "se Deus era cultuado d'aquém e d'além mar, Sa~s também o·era ... " E, já por aqui, "calundus e catimboseiros. ,,88 Por que metamorfoses foi passando a hermosa Maria de Padilha, de senhora de um Rei a senhora dos cemitérios? Qual a passagem da Maria de carne e osso e formosura à chefe da diabólica quadrilha? e por onde terá andado por aqui, já transformada pelas feiticeiras aqui degredadas, até incorporar a Falange dos Exus? Daqueles que "trabalham sob as ordens do Omulu, dono e Senhor dos Cemitérios, e, acima dele, "O Maioral, o Diabo"? E onde, e quando, e qual o curto-circuito, o longo circuito que leva a enfeitiçadora e enfeitiçada amante de um Rei, Pedro, o Cruel chamado, desde Montalván em Castela a Pernambuco, Brasil, e por quais andanças chegou até os quintais do Rio e de São Paulo, de Porto Alegre e São Luis do
166 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n~ 1 - 03/91 Maranhão, brava, exigente, dominadora, sedutora, forte e faceira, no dia que é o seu, o dia dos Mortos? Travessias. Invisíveis estradas que varam fronteiras do tempo, do espaço e da alma, lá nos "crespos do homem", onde circulam Satanás e sua coorte-o diabo existe e não existe? -, destilando medo e fascínio, medo e fascínio do mal, medo e fascínio do amor. "Do demo? Não gloso. " Ficam as perguntas.
88. MELLO E SOUZA, 1987. p. 190.
COLABORADORES DESTE NÚMERO Dirce Côrtes Riedel, professora emérita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e titular de Literatura Brasileira da mesma Universidade. Autora de O tempo no romance machadiano, Metáfora-o espelho de Machado de Assis, Meias-verdades no romance e outros ensaios. Eneida Maria de Souza, professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais. Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), gestão 1988-1990. Autora de A pedra mágica do discurso e outros ensaios. E.M. de Melo e Castro, poeta e crítico literário português. Coordenador do Curso de Design de Moda do IADE, Lisboa. Autor deAutologia, O fogo frio do texto, Transparências, Poética dos meios e arte high tech, Pessoa, metade de nada, entre outros. Ettore Finazzi-Agrõ, professor de Literatura Brasileira da Universidade de Roma-"La Sapienza". Autor de O Alibi infinito, O projecto e a prática na poesia de Fernando Pessoa, Apocalypsis H. G., una lettura intertestuale della Paiião Segundo G.H. e della Dissipatio H. G., entre outros ensaios. George Yúdice, professor do Hunter College de Nova York. Editor da revista Social Text, autor de Vicente Huidobro e outros ensaios. Luiz Costa Lima, professor de Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor de O controle do imaginário, O fingidor e o censor, A aguarrás do tempo, entre outros. Maria Luiza Ramos, professora titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, aposentada. Autora de
Fenomenologia da obra literária e Os avessos da linguagem, entre outros ensaios.
Marlyse Meyer, professora titular de Cultura Brasileira da Unicamp, aposentada. Autora de Caminhos do imaginário no Brasil (no prelo), Âutores de cordel e outros ensaios. . Raúl Antelo. professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de Literatura em revista, Na ilha de Marapatá, João do Rio, o dândi e a especulação, entre outros ensaios. Ricardo Piglia, ficcionista e ensaísta argentino. Autor de Prisión perpetua, Nombrefalso, Crítica y ficción, Respiración artificial, entre outros ensaios. Silviano Santiago, escritor e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de Uma literatura nos trópicos, Vale quanto pesa, Nas malhas da letra, Em liberdade, Stella Manhattan e outros. Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), gestão 1990-1992.. Tania Franco Carvalhal, professora titular de Teoria e Crítica Literárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Afitora de A evidência mascarada, Literatura Comparada, Um crítico à sombra da estante, entre outros. Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), gestão 1986-1988. Membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Literatura Comparada (ICLA), gestão 1988-1991. Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), gestão 1990-1991.
AOS COLABORADORES 1. A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita trabalhos inéditos sob a fonna de artigos e comentários de livros, de interesse voltado para os estudos de Literatura Comparada. 2. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão submetidos à aprovação dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestões de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão comunicadas previamente aos autores. 3. Os artigos devem ser apresentados em três vias, texto datilografado em espaço duplo, com margem, além de dados sobre o autor (cargo, áreas de pesquisa, últimas publicações, etc.). 4. O original não deve exceder 30 páginas datilografadas; os comentários de livros, em torno de 8 páginas. 5. As notas de pé de página e referencias bibliográficas devem ser restritas ao mínimo indispensável. 6. As notas de pé de página devem ser apresentadas observando-se a seguinte nonna: Para livros: a) autor; b) titulo da obra (sublinhado); c) número da edição, se não for a primeira; d) local da publicação; e) nome da editora; f) data da publicação; g) número da página. 80SI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979. p. 31. Para artigos: a) autor; b) título do artigo; c) título do periódico (sublinhado); d) local de publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano. ROUANET, Sergio Paulo. Do pás-moderno ao neo-moderno. Revista Tempo Brasileiro, RiodeJaneiro,n.1,p. 86-97,jan./mar., 1986. 7. As ilustrações (gráficos, gravuras, fotografias, esquemas) são designados como FIGURAS, numeradas no texto, de forma abreviada, entre parênteses ou não, confonne a redação. Exemplo: FIG. 1, (FIG. 2) As ilustrações devem trazer um título ou legenda, abaixo da mesma, datilografado na mesma largura desta. 8. Os autores terão direito a 3 exemplares da revista. Os originais não aprovados não serão devolxi,dos.