Edição Nº 10 - São Paulo, 2007

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ISSN 0103-6963

Brumilda T. Reichmann,

Délia Cambeiro, João Manuel Santos Cunha, Leila Danziger,

Leila de Aguiar Costa,

Lilia Loman, Luciene Azevedo, Márcio Serelle, Maria José Palo,

Maurício de Bragança,

Sandra Nitrini, Tania Alice Feix, Vera Bastazin

Literatura Comparada

Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo,

REVISTA BRASILEIRA DE

Biagio D’Angelo,

REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

2007

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abralic associação brasileira de literatura comparada


REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

S達o Paulo 2007


Diretoria

Presidente Vice-presidente

A B R A L I C 2007/08

Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Mackenzie)

1º Secretária

Maria Célia Leonel (Unesp)

2º Secretária

Andrea Saad Hossne (USP)

1º Tesoureira

Vera Bastazin (PUC-SP)

2º Tesoureira

Orna Levin (Unicamp)

Conselho

Eduardo Coutinho (UFRJ)

REVISTA BRASILEIRA DE

Gilda Neves Bittencourt (UFGS) José Luís Jobim (UERJ/UFF) Lívia Reis (UFF) Ívia Iracema Duarte Alves (UFBA) Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto (USP) Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC) Rita Terezinha Schmidt (UFGS)

Suplentes

Literatura Comparada

Márcia Abreu (UNICAMP) Zênia de Faria (UFG)

Conselho editorial

Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.

ABRALIC CNPJ 04.901.271/0001-79 Universidade de São Paulo (USP) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Avenida Prof. Luciano Gualberto, 403 Butantã – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3091-4312 E-mail: mschmidt@usp.br

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.

São Paulo

n.10

p.1-311

2007


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2007 Associação Brasileira de Literatura Comparada

Sumário

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editora

Comissão editorial

Apresentação Vera Bastazin

Vera Bastazin

Sandra Margarida Nitrini Helena Bonito Couto Pereira Andrea Saad Hossne

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Artigos O avesso do avesso do avesso. Linhas retas e oblíquas da paródia na telenovela brasileira Biagio D’Angelo

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Silence becomes you (2005): a linguagem hibrida do filme contemporâneo Brumilda T. Reichmann

31

Paisagens imaginárias: fragmentos de cultura, palavra e imagem Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo

53

Caminhos de eros sob a óptica da cristalização. Uma mirada sobre as figuras literárias de Heloisa, Mariana Alcoforado e Adèle Hugo Délia Cambeiro

75

Da palavra-imagem à imagem-palavra: análise do incipit fílmico de LavourArcaica João Manuel Santos Cunha

95

Imagens e espaços da melancolia: W.G. Sebald e Anselm Kiefer Leila Danziger

127

Ver e sentir: Stendhal e as artes visuais Leila de Aguiar Costa

147

Vera Bastazin Orna Levin

Preparação/Revisão

Nelson Luís Barbosa

Revisão do inglês

Lilia Loman

Diagramação

Estela Mleetchol

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991v.1, n.10, 2007 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.10, 2007

Apresentação

Entre o céu e as caldeiras: espectros desconstrutivos em “Agda”, de Hilda Hilst Lilia Loman

169

A literatura da leveza Luciene Azevedo

179

Narrativa, técnica e tecnologia: “Contos da meia-noite” Márcio Serelle

197

Ilustração: o duplo estatuto da relação palavra e imagem Maria José Palo

215

Imagem e escritura – Manuel Puig e o campo literário hispano-americano Maurício de Bragança

235

Do fular ao tapete (Uma leitura de Avalovara, de Osman Lins) Sandra Nitrini

259

A inscrição do feminino/masculino na literatura e na arte contemporâneas Tania Alice Feix

273

Palavra, imagem e construção poética Vera Bastazin

285

Pareceristas

305

Normas da revista

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A Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) oferece, mais uma vez, aos pesquisadores associados e demais interessados, um conjunto de ensaios sobre “Literatura e imagem” rigorosamente selecionados ao longo de 2007. Ter em mãos a 10ª Revista de Literatura Comparada significa mais uma conquista para a comissão diretora da atual gestão. Escolher e propor uma temática diante de tantas possibilidades de eixos de pesquisa, assim como receber e selecionar os ensaios foi tarefa que envolveu organização, critérios rigorosamente definidos e, sem dúvida, colaboração de pareceristas competentes e disponíveis para a realização de tão árdua atividade. Vencemos o percurso. Agora, apresentamos os resultados e dividimos com todos os estudiosos e amantes da literatura a oportunidade de conhecer e refletir sobre questões discutidas por nossos pares, conforme interesse e recortes de diferentes teorias, críticas, enfoques historiográficos; enfim, de uma diversidade de poéticas que motivam e alimentam nossas reflexões acerca do fenômeno literário. Importante ressaltar ainda que os ensaístas presentes neste número são expressivos também em relação às diferentes instituições educacionais às quais estão vinculados. Do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro, de São Paulo a Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, as grandes universidades estão representadas por pesquisadores, que marcam sua presença, colaborando com textos de qualidade e relevância na crítica literária. Passamos, então, a apresentar alguns indicativos sobre os textos aqui reunidos, na perspectiva de situar e esti-


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mular a leitura de todos aqueles que hoje têm em mãos este exemplar. Em “O avesso do avesso do avesso. Linhas retas e oblíquas da paródia na telenovela brasileira”, Biagio D’Angelo estabelece um diálogo entre a tela como tecido televisivo e cinematográfico, e o texto poético – na música e na literatura – para discutir convergências entre cultura de massa e reflexões literárias. O conceito de paródia é um dos fundamentos teóricos do ensaio, que se movimenta do gênero televisivo aos folhetins clássicos, passando pelo romance, pelo cinema e pelas novelas televisivas. Em “Silence becomes you (2005): a linguagem hibrida do filme contemporâneo”, Brunilda T. Reichmann detémse na narrativa cinematográfica de Stephanie Sinclaire e seus artifícios de cor, imagem e não-linearidade para estabelecer relações entre a realidade e a ficção. O objetivo do ensaio é apontar o realismo maravilhoso como forma de ampliação das leituras poéticas que colocam em destaque o filme de Sinclaire, poemas de Christina Rossetti e John Donne e a canção medieval Rose. Em “Paisagens imaginárias: fragmentos de cultura, palavra e imagem”, Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo reflete sobre a construção da paisagem a partir da palavra literária na relação arte e ciência e da pintura de Guignard. Fragmentos estéticos e literários são responsáveis, conforme mostra a autora, pela paisagem em nosso imaginário cultural. Em “Caminhos de eros sob a ótica da cristalização. Uma mirada sobre as figuras literárias de Heloisa, Mariana Alcoforado e Adèle Hugo”, Délia Cambeiro apresenta uma reflexão sobre a incompletude amorosa a partir do conceito de cristalização, proposto por Stendhal. O comportamento de três mulheres, de diferentes períodos histórico-literários, coloca um eixo centralizador que permite a observação das vivências afetivas que revelam a incompletude amorosa e seus possíveis significados: como conhecimento transformador ou como perda de referencialidade do real. Em “Da palavra-imagem à imagem-palavra: análise do incipit fílmico de LavourArcaica”, João Manuel Santos

Apresentação

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Cunha propõe um trabalho comparatista entre o romance de Raduan Nassar e a versão fílmica de Luiz Fernando Carvalho. O trabalho, como facilitador de contatos entre as duas diferentes formas de criação de linguagem, rompe limites e aproxima a narrativa literária e fílmica, denunciando a confluência de poéticas como um exercício de produção e ampliação de sentidos. Em “Imagens e espaços da melancolia: W.G. Sebald e Anselm Kiefer”, Leila Danziger elege a questão da melancolia como eixo de reflexão sobre obras literárias e obras do universo das artes visuais. A partir de Dürer e sua gravura Melencolia I, produzida no Renascimento, a autora observa marcas de representação semântica que se ampliam e fortalecem em outros momentos da história da arte e da literatura no período entre o século XVI e a modernidade. Em “Ver e sentir: Stendhal e as artes visuais”, Leila de Aguiar Costa propõe acompanhar Stendhal em suas observações sobre as belas artes italianas e francesas para chegar à escritura do poeta marcada, predominantemente, pela visão e emoção. Em “Entre o céu e as caldeiras: espectros desconstrutivos em ‘Agda’, de Hilda Hilst”, Lilia Loman aborda dois contos selecionados de Hilda Hilst para problematizar a personagem literária como uma categoria em trânsito entre a verdade e o sonho, a forma e a ofuscação. Análise dos textos evidencia o movimento espectral e ambivalente que caracteriza a poética de Hilst. Em “Narrativa, técnica e tecnologia: ‘Contos da meianoite’”, Márcio Serelle investiga as estratégias enunciadoras do programa “Contos da meia-noite” (TV Cultura), examinando as categorias autorais atuantes na transposição da literatura para a tela, bem como o diálogo entre os modos de representação épico e dramático. O ensaio propõe, ainda, o estudo dos aspectos temporais da série, identificando suas relações com a concisão do gênero literário conto e os possíveis efeitos na recepção televisiva. O estatuto dado ao narrador, entidade ficcional que, no programa, é moldada simultaneamente pelas raízes orais do conto e pela experiência midiática também faz parte dos objetivos do autor.


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Em “A literatura da leveza”, Luciene Azevedo discute a função da literatura contemporânea em relação à hegemonia da imagem. Na tentativa de criação de novos parâmetros para a refuncionalização da literatura, a autora utiliza como ponto de referência reflexiva as propostas de Ítalo Calvino, dando destaque para a função da leveza. Num mundo midiático, diz o texto, talvez seja a linguagem da leveza a melhor interface para a captação da imagem da realidade contemporânea. Em “Ilustração: o duplo estatuto da relação palavra e imagem”, Maria José Palo trabalha a ilustração do livro, construindo argumentos que evidenciam as relações entre a palavra e a imagem de forma a questionar a distinção entre elas como único elemento diferenciador. O propósito do ensaio é, portanto, diferenciar o tratamento do duplo estatuto do binômio na composição do objeto literário. Em “Imagem e escritura – Manuel Puig e o campo literário hispano-americano”, de Maurício de Bragança, a relação literatura e imagem é problematizada a partir dos escritos de Manuel Puig. Considerando a imagem iconográfica e o repertório hollywoodiano, o autor elege materiais da indústria cultural e eleva-os ao status de literário, criando novas relações e colocando em desequilíbrio valores já canonizados por grandes ícones da literatura argentina como é o caso de Jorge Luis Borges. Em “Do fular ao tapete” (Uma leitura de Avalovara, de Osman Lins)”, Sandra Nitrini estuda a obra de Osman Lins da perspectiva de uma escritura que se revela pelo paralelismo estabelecido entre personagens e quadros. O recurso, próprio da literatura, consiste na utilização de figuras de linguagem como comparação e metáfora que se constroem lado a lado a outros recursos próprios da pintura. Esse desvelamento de procedimentos, conforme mostra o ensaio, é um dos evidenciadores do lugar ímpar do escritor na literatura brasileira. Em “A inscrição do feminino/masculino na literatura e na arte contemporâneas”, Tania Alice Feix investiga produções literárias, teatrais e plásticas, buscando observar a

Apresentação

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inscrição do masculino/feminino na arte. O ensaio mostra que o fato de as mulheres também tomarem para si a criação literária fez emergir novos eixos de representação, invertendo esquemas tradicionais da expressão do corpo feminino pelo homem e do processo de criação masculino/ feminino. Em “Palavra, imagem construção poética”, Vera Bastazin mostra que literatura e cinema constituem linguagens não predominantemente marcadas por informações, mas por formas imagéticas de dizer. Assim como o filme se faz com imagens em movimento, a literatura transveste a palavra da potencialidade imagética – qualidade fundamental da poética. Transitar por especificidades de linguagens permite descobrir elementos comuns aos dois códigos, num processo de conscientização de que literatura e cinema se nutrem, reciprocamente, de técnicas e procedimentos que os enriquecem como linguagens e qualidade estética. Vera Bastazin


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O avesso do avesso do avesso. Linhas retas e oblíquas da paródia na telenovela brasileira Biagio D’Angelo*

RESUMO:

As telenovelas brasileiras, transmitidas durante o bloco horário das 19h00, exploram, com freqüência, o terreno fértil da paródia, outorgando vitalidade a um gênero televisivo que, a partir do folhetim clássico, desenvolve os mesmos clichês. Teóricos da cultura e da literatura, como Bakhtin, Baudrillard e Block de Behar, entre outros, demonstram as convergências existentes entre cultura de massa e reflexão literária.

PALAVRAS-CHAVE:

Telenovela, paródia, literatura.

ABSTRACT:

Brazilian soap operas broadcasted at 7 p.m. frequently explore the fertile e territory o f parody, giving vitality to a TV genre which, since the classic feuilleton, has developed repeated clichés. Theorists of culture and literature, such as Bakhtin, Baudrillard and Block de Behar, among others, show the existing convergences between mass media culture and literary thought. KEYWORDS:

Brazilian soap opera, parody, literature.

E foste um difícil começo afasto o que não conheço e quem vem de outro sonho feliz de cidade aprende depressa a chamar-te de realidade porque és o avesso do avesso do avesso do avesso (Caetano Veloso, Sampa) * Professor doutor de Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Aprende depressa a chamar-te de realidade”, canta Caetano Veloso na sua homenagem poético-musical à cidade de São Paulo. A realidade contemporânea apresenta uma riqueza inter-semiótica extraordinária, multiplicada, como afirma a crítica uruguaia Lisa Block de Behar (1990),


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por uma “congestão comunicativa”, em que a realidade tem que ser decifrada em uma floresta sígnica que oscila entre o visual e o verbal, entre o elitista e o popular. Essa oscilação constitui a hibridez, condição da contemporaneidade, segundo a célebre definição de García Canclini, que não deixa indiferente o leitor ou o espectador de hoje; ao contrário, trata-se de um hibridismo que absorve, critica e até polemiza com as formas do presente, enfatizando uma dialética que se interroga, mais uma vez, sobre a reprodutibilidade da realidade e da intervenção da imaginação. Essa “pluralidade de códigos e médios” se compendia em uma “zona de intervalo” que o observador atravessa: “Divisiones, visiones diferentes, visiones reales y otras visiones, son atisbos que entrevé cada observador aspirando a conjeturar entre cantos o cántaros quebrados una unidad - previa, primera, global- de la que quedan restos, textos que se salvan por repetición y silencio” (ibidem, p.12).

No caso do discurso semiótico de códigos de meios comunicativos como a literatura e o cinema, seria superficial restringir-se a uma simples constatação de hierarquia de “doações”: quem doa mais a quem... Ambos os signos se doam em um proveitoso e recíproco intercâmbio. A literatura não se dispersa na televisão ou no cinema; ao contrário, ela empurra a observação da realidade até novos conhecimentos, que se articulam em renovados modelos de instrução e erudição. A televisão contribui para o processo ativo da linguagem literária, superando a rigidez de uma escrita que trasborda os limites das páginas e da tela. Falando de “tela”, não temos nome mais apropriado que isso, que reúne o significado de “tecido” (do textum latino, e daqui o texto) e o painel de projeção de filmes. De Milan Kúndera – escritor que, entre levezas do ser e testamentos traídos, não caberia no discurso previsto e anunciado na mensagem do título – foi publicado recentemente El telón (2005), um conjunto de ensaios sobre literatura que dedica amplo espaço a autores como Fielding,

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Proust, Gombrowicz. Em algumas páginas, onde o escritor boêmio continua a sua investigação sobre a figura central de Cervantes no mundo ficcional do romance moderno, Kúndera (2005, p.114) modela uma síntese do verdadeiro descobrimento da literatura: “Un telón mágico, tejido de leyendas, colgaba ante el mundo. Cervantes envió de viaje a Don Quijote y rasgó el telón. El mundo se abrió ante el caballero andante en toda la desnudez cómica de su prosa”. Cervantes, acolhendo a tradição dos contos e da fabulação, ferramenta que governa o discurso narrativo e a sua empatia no público de ouvintes (como era na Idade Média e, em particular, nos tempos quase míticos de As mil e uma noites) e leitores (como é a partir da era cervantina), reinventa o romance como sistema de histórias interpoladas que suscitam a curiosidade e o interesse pelo seguimento do núcleo central da fábula. O exemplo do relato de Luscinda e Cardenio, que começa no capítulo XXIV da primeira parte, segue e se intercala com os relatos de dom Fernando, Dorotea e a princesa de Micomicona, até o capítulo XXXVI, várias vezes interrompido e enriquecido de artifícios literários, típicos de narrações como o Burro de ouro, de Apuléio, o Decameron, ou Lazarillo de Tormes. A estrutura narrativa cervantina leva à perfeição o sistema que regra também os mecanismos típicos do folhetim televisivo. Em particular, se consideramos as suas variantes paródicas, o folhetim televisivo parece recobrar nova vida, transformando situações bem familiares ao telespectador, e às vezes repetidas até o enjôo, sob o eixo da ironia e da polêmica sagaz. Bakhtin (1998), em Questões de literatura e de estética, apresenta o romance como uma constante atualização de uma forma artística no seu presente histórico, uma forma que, por sua natureza, deveria ser julgada como incompleta, em um fluxo irrefreável, um anel de Moebius narrativo, evitando o perigo de estabilização da mesma forma. A comparação entre o romance e a novela revela-se muito estimulante. Bakhtin ajuda na leitura de certas mudanças estruturais dos fenômenos culturais realizadas, qua-


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se sempre naturalmente, embora o seu eixo paródico se constitua sempre como ato voluntário de deformação e “totalizador” por excelência, apesar da sua marginalidade canônica. A paródia contribui para o devir de formas como o romance e a novela, determinando, também, o “drama” que está atrás das coulisses da criação artístico-verbal, e, finalmente, absorve o grotesco e o burlesco como variantes literárias do espírito popular folclórico. Da mesma maneira que o romance, a novela cômica (que possui uma nova significação do cômico como híbrido, no sentido de um gesto renovador e contagioso, e nunca como riso grosseiro e trivial) procede “fragilizando” o status “normal” da novela. Contudo, a fragilidade adquirida por efeito da comicidade transforma a novela em uma contranovela, ou antinovela, porque a desordem irônica e a fragmentação dessacralizada escondem o verdadeiro rosto da novela que, no seu mecanismo mais clássico e de maior recepção, resulta ser, por sua vez, sofrimento, caos, angústia, violência, morte. Bakhtin (1998, p.453) vê no gesto paródico do romance um sinal de modernização do discurso literário: O romance é o único gênero em evolução, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente, e mais rapidamente, a evolução da própria realidade. Somente o que evolui pode comprender a evolução. O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele. O romance antecipou muito, e ainda anticipa a futura evolução de toda a literatura. Desse modo, tornando-se o senhor, ele contribui para a renovação de todos os outros gêneros, ele os contaminou e os contamina por meio da sua evolução e pelo seu próprio inacabamento. Ele os atrai imperiosamente à sua órbita, justamente porque essa órbita coincide com a orientação fundamental do desenvolvimento de toda a literatura.

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A novela televisiva comporta-se, em seus mecanismos, da mesma maneira que a idéia do processo narrativo propalado por Bakhtin. Jean Baudrillard (1997, p.146) focaliza a sua atenção nessa direção: “Desde o momento em que estamos diante da tela, não percebemos mais o texto como texto, mas como imagem”. O texto oral e o texto visual estão entrelaçados e produzem um novo “texto” que se introduz como forma complexa no imaginário e na expectativa do telespectador. Víktor Shklovski (1979, p.139), que se interessou pela análise dos mecanismos e dos procedimentos técnico-formais do romance, em particular do Don Quixote cervantino, resume em uma frase a conseqüência da linguagem narrativa e do estudo da composição textual da obra: “O efeito consiste no fato que as personagens se intercambiam a máscara, o que faz sentir como novo o velho material”. As novelas - da Rede Globo propostas ao público da assim chamada novela das sete - exibem um espaço singular de representação paródica e experimentação, em certas ocasiões, realmente audaz. Essas “linhas oblíquas”, como poderíamos definir as franjas do material novo, se apresentam dentro de um mecanismo velho, estereotipado, repetitivo - já que o público da telenovela psicologicamente sempre gosta de remake –, não se isolam nunca de maneira completa: o oblíquo mistura-se às linhas retas, ordinárias, linhas de uma “normalidade”, e começa já a perder sua rigidez e seu esquematismo. A presença conjunta de ambas as linhas depende de uma gradual proposta ao público: o destinatário da mensagem é quem decide sobre o sucesso de uma novela, assim como decide sobre um livro ou uma música, embora os campos semióticos possuam diferentes gradações de chegada e de ressonância no público e na crítica. Essa hibridez, que justamente encontra a sua ponta de diamante na anomalia do discurso novelesco e na irregularidade das situações, tocou o seu apogeu na novela As filhas da mãe (de 2002), de Sílvio de Abreu. O mesmo título, na verdade, era mais amplo e ironizava sobre a expressão grave e coloquial de “filho-da-


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mãe”, reunia lembranças épicas e textos primigênios paródicos: “A incrível batalha das filhas da mãe nos jardins do Éden”. A novela não podia ter o sucesso que se merecia: 125 capítulos (o que é relativamente breve por uma novela dessa última década, que, a diferença das novelas antigas, compreendem pelo menos 150 capítulos), uma abertura belíssima, muito sofisticada, e alguns dos atores mais requeridos e apreciados pelo público, como Tony Ramos e Fernanda Montenegro. Mas justamente os protagonistas foram rechaçados talvez porque a caracterização deles não entrava no esquema habitual de sofridos e heróis de outra franja horária. Contudo, essa novela exibia algumas das páginas televisivas mais antológicas da Globo, como a revelação de Ramón/Ramona (Cláudia Raia) nas vestes de um transexual e as proezas sexuais do mafioso Manolo Gutiérrez (Tony Ramos) e de sua mulher Aurora (Cláudia Ohana), que se oferecia a ele parodiando, por sua vez, a personagem mais famosa de Sônia Braga, aquela Gabriela, de que Aurora cantava a música sedutora na voz de Gal Costa que a novela de Walter George Durst imortalizou (“Eu nasci assim/ Eu cresci assim/ Eu sou mesmo assim/ Vou ser sempre assim”). Dessa maneira, a paródia se introduzia no hipotexto da novela, inspirada no romance de Jorge Amado. A comédia assustou pela sua agressividade, como sempre faz a paródia. Lulu de Luxemburgo, a personagem de Fernanda Montenegro, recebe um Oscar pela carreira de modista, ao contrário da perda do Oscar na vida real da atriz brasileira (pelo filme Central do Brasil, de Walter Salles); o “anjo mau” da novela, interpretado por Thiago Lacerda, falava com a telecâmera antes de cometer suas maldades; um rap, composto para resumir as cenas da novela, foi rejeitado por causa da sua excentricidade; a censura brasileira tentou boicotar as cenas de diálogo sobre sexo de Ramón/ Ramona, indicadas como fora do horário; a linguagem e a edição da novela eram tão descomunais que o público, muitas vezes despreparado para sofisticadas referências culturais, não percebeu a elegância e a originalidade da novela.

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Com efeito, a parodia “intelectualiza” a novela, reformula cenas, diálogos, personagens; precisa-se, portanto, de um fruidor inteligente, acostumado a tais mudanças repentinas, brilhantes, que saiba reconhecer o hipotexto daqueles heróis ou novelas antigas que fizeram a história da teledramaturgia brasileira e, às vezes, internacionais. Se, por um lado, pela parodia não é necessária a assimilação popular, por outro, uma paródia reconhecida demonstra a capacidade intelectiva de um povo. Mesmo assim, o preconceito ganhou plano e a novela acabou contentando esse público inexperiente, que ficou abalado entre a história típica do gênero sitcom norte-americano e as referências folhetinescas disseminadas na tevê. Sílvio de Abreu, que deu à televisão brasileira alguns dos folhetins mais cômicos e divertidos, como Guerra dos sexos (1984), Cambalacho (1986) e Sassaricando (1988), multiplicou as citações televisivas com filmes e mitos norte-americanos, e atrizes cujo figurino e maquilagem foram inspirados nas divas de Hollywood. Sílvio de Abreu é o parodista por excelência das novelas da Globo. Muito próximo a ele, Miguel Falabella renova a função paródica da novela com seu estilo de comédia romântica e chanchada. A Lua me disse (2005), por exemplo, é um verdadeiro pastelão, com um núcleo estereotipado de bons e malvados, e vários outros núcleos em que aparece muito evidente uma discreta e feliz homenagem ao estilo de cinematografia de Pedro Almodovar. Os vestidos das três irmãs já adultas (que têm nomes de fábula, como em Cinderela – Ademilde, Adail e Adalgisa – e de que re-apresentam os módulos narrativos) lembram as cores das atrizes nos filmes do cineasta espanhol, sobretudo em Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988). Além disso, a irreverência de personagens como as duas “negrinhas” que se acham brancas e, por isso, mudam os seus nomes próprios de Juracema e Anastásia em Whitney e Latoya (com evidentes referências às cantoras Whitney Houston e LaToya Jackson) revela como a teledramaturgia pode tratar um tema delicado, como o rechaço da própria raça, com ironia e realismo. Tam-


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bém a croata que não fala quase nada de português, muito apaixonada por um brasileiro (que, por enquanto, não fala nada de croata), que se perde na praia carioca, até chegar ao Domingão do Faustão, é uma personagem memorável, original, e que faz a paródia do mito do Brasil para os estrangeiros. Por fim, a personagem de Débora Bloch que, como boa perua parasita, começa a trabalhar como vendedora de produtos na televisão, é um golpe de gênio cômico e burlesco de Falabella, que consegue uma autocrítica da televisão “sem humilhar a inteligência do público”, como escreveu Bia Abramo (2005) na Folha de S.Paulo: Há também uma espécie de identidade de procedimentos, ou seja, a manipulação consciente das convenções do gênero, que ora são respeitadas e aparecem em sua forma mais eficiente; ora são anarquizadas. O espectador, ao mesmo tempo em que pode usufruir do prazer do previsível, é também surpreendido e até afrontado. Claro que tudo no âmbito modesto do entretenimento televisivo, mas, ainda assim, bem mais do que se espera das novelas atuais, conferindo à obra um ar quase “autoral”.

Nesse fragmento da jornalista e crítica televisiva, lêemse algumas considerações que justificam nossa abordagem porque apresenta uma confluência possível entre texto literário e texto fílmico, no seu sentido mais amplo. Em Falabella, assim como nos roteiros de Sílvio de Abreu, os textos são paródias, ou seja, “manipulação consciente das convenções do gênero”, em que o leitor é realmente desafiado a reconhecer marcas do passado e empurrado para novas conexões mentais e imaginárias: os velhos tabus da menina que quer ser jogadora de futebol, sem perder a sua feminilidade; a paixão gay de Samovar por um “varão” levemente ambíguo; a índia submissa e maltratada, que se revela uma bruxa, quebrando assim o mito do bom selvagem, fazem refletir sobre as mudanças culturais atuais, os novos paradigmas da sociedade, e como o discurso das novas mídias audiovisuais poderão, quiçá, ser um aliado na educação e na formação dos públicos contemporâneos.

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É também verdade que a novela de Falabella desconcerta porque a paródia toca, também, em pontos cruciais da vida da sociedade atual, e nem sempre seria aconselhada a um público jovem, embora os jovens de hoje sejam, em muitos casos, nossos mestres... Miguel Falabella ridiculariza o uso malsão da chat-line, que conduz a personagem de Arlete Salles na novela (Ademilde, cujo nickname no chatline é genialmente “Azeitona Madura”) a se encontrar, em um blind date, entre outros, com o Cachorrão Polaco, um divertido masoquista cinqüentão, revelando assim as deformações que provêm da solidão do sujeito contemporâneo. Falabella sabe brincar com a ficção televisiva e parodia a cena mais clássica e repetida da televisão brasileira, sem medo de que a paródia perca o valor de comicidade e “desrespeito”, e, sobretudo, sem cair no mau gosto do kitsch: trata-se da cena da noiva abandonada no altar, que tinha sido imortalizada por Janete Clair em Selva de pedra. Duas observações a esse propósito: a cena é triplamente paródica: primeiro, também a personagem de Sônia Braga, em Chega mais (autoria de Carlos Eduardo Novaes, 1980), era abandonada no altar por seu namorado que finge um seqüestro; segundo e terceiro, a paródia se confunde aqui com questões sociais, com uma delicada piscada ao público mais experto: Neide, que é uma personagem secundária, está se casando para salvar as aparências de um casal homossexual; mas em uma declarada homenagem a Zapatero, Falabella, que como ator tinha também participado do segundo remake de Selva de pedra (1986), permite que o casal saia alegremente da igreja e que a pobre Neide rasgue o seu vestido de noiva, com violência e desespero, permitindo, assim, que o telespectador lembre com saudades os velhos tempos, talvez não apenas Dina Sfat e Christiane Torloni... Mas o que pede agora o telespectador? Como interage com as imagens paródicas? A paródia permite modificar o sentido do telespectador, não mais apenas um passivo observador que recebe uma mensagem, sem nenhuma reação, senão um protagonista que emerge entre as paredes do cotidiano (o verdadeiro desafio da novela) e da fantasia


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(o sonho misturado à realidade). Baudrillard (1997, p.146) observa, porém, que, diferentemente de tempos passados, existe uma ambigüidade que “concorre, na atualidade, para a abolição desse corte: a imersão do espectador torna-se convival, interativa. Apogeu ou fim do espectador?”. Essa pergunta vai nos acompanhar na segunda parte da nossa reflexão. Em uma cultura que vive da sua visualidade, a paródia entra na força retórica que possui a imagem. Às vezes, até o texto escrito está subordinado à imagem. Um bom exemplo que resume as técnicas modernas de comunicação na telenovela é a simpática abertura da novela Uga Uga (Carlos Lombardi, 2000). Nela se mostrava uma história em quadrinhos muito animada, na qual se misturavam imagens da selva amazônica e do Rio de Janeiro (lugares do enredo da novela), enquanto os créditos da novela eram apresentados dentro dos balões característicos dos diálogos dos comics. O recurso utilizado parodiava as aberturas românticas, idealizadas, de certas novelas, e sublinhava a verve cômica do texto novelesco. As imagens paródicas precisam, portanto, de um autêntico espectador-consumidor, que, como qualquer outro signo imagético, tem “seus próprios códigos de interação com o espectador, diversos daqueles que a palavra escrita estabelece com o seu leitor” (Pellegrini et al., 2003, p.16). A paródia tem, indubitavelmente, um efeito extraordinariamente “pedagógico”, sobretudo se consideramos o seu uso na telenovela: em um discurso semiótico, formado pela repetição de triângulos, circunstâncias, maldades, finais felizes, ao telespectador se pede uma maior maturidade; ele percebe e “vive” a técnica paródica da novela com uma inteligência que outros produtos semióticos não lhe oferecem: o espectador vive, assim, um apogeu, que bem pode ser o fim da etimologia de seu termo (espectador – observador); é, na realidade, a reformulação da sua essência ontológica (espectador – aquele que espera alguma coisa nova, alguma “releitura”, como testemunha “visual” de um acontecimento).

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Novelas como Que rei sou eu?, Kubanacan, Roque Santeiro, Da cor do pecado, Saramandaia, ou minissérie como O quinto dos infernos, demonstram a validez da força paródica e uma certa vertente nova que desestabiliza um gênero literário ou uma interpretação histórica para reconstruir, na diversão, uma mensagem política. Em outras palavras, a novela televisiva, no seu componente paródico, formula um discurso alegórico que reescreve a situação da nação e de suas atrapalhadas personagens principais. A novela paródica se constitui como resposta a uma cultura de massa adquirida, de sucesso, em que “vale tudo”: valem o conjunto das suas variantes, suas significações virtuais e públicas, suas prolongações narrativas e fílmicas. Na novela A lua me disse, por exemplo, o problema da corrupção do governo Lula e o “mensalão” entraram nos diálogos, quase a refletir parodicamente as conversas habituais do povo brasileiro. Falabella não hesitou em colocar na boca de picaretas e sirigaitas do Beco da Baiúca certas apreciações que, no fundo, são dele e do intelectual televisivo que ele representa. Ao mesmo tempo, contudo, a paródia televisiva, verdadeiro lugar-comum das manifestações estéticas dos últimos tempos, permite observar que a “uniformidade pedagógica”, que mencionávamos antes, é apenas uma faceta de um discurso mais complexo, que corrobora as leis mercadológicas contemporâneas. A “pedagogia” da paródia é substituída, portanto, por outras ferramentas, cujo aspecto negativo é posto em evidência por Hardt & Negri (2003, p.342) que definem esses “novos mecanismos” do espetáculo como “redes híbridas de participação” do sujeito, “manipuladas do alto”: De fato, a cola que segura os diversos corpos e funções da constituição híbrida é o que Guy Debord chama de espetáculo, um aparato integrado e difuso de imagens e idéias que produz e regula o discurso e a opinião públicos. [...] O espetáculo destrói qualquer forma coletiva de sociedade – individualizando atores sociais em seus automóveis pessoais


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e diante de suas telas separadas de vídeo – e ao mesmo tempo impõe uma nova sociedade de massa, uma nova uniformidade de ação e pensamento. (ibidem, p.342-43)

A visão catastrófica de Hardt & Negri sublinha, justamente, a política “diabólica” impulsionada pelas mídias. A manipulação, argumentada também por Fredric Jameson a propósito do cinema contemporâneo, alcançaria níveis conspiratórios, que lembram a assustadora atualidade do Big Brother orwelliano. Porém, seria cair no extremo oposto admitir que a paródia seja uma estratégia de corroboração do capitalismo moderno. Há um lado positivo do discurso paródico que não pode ser silenciado. Se é verdade que a linguagem sofisticada e a polissemia, geradas pela sociedade do espetáculo, podem escravizar o público com estratagemas mais sutis e perigosos, é inegável que o processo de parodização pode ser considerado um elemento indispensável e “condicionante da formação de circuitos de produção e circulação” (ibidem, p.339). Ao não ser que a novela tenha se tornado argumento de mitologia contemporânea, não se perceberiam as cenas, as personagens, os diálogos como representações coletivas de sistemas semióticos e culturais. Se a novela Saramandaia (1976) tentou renovar o gênero, inserindo na tela pequena o discurso dos anos 1970 do “realismo mágico”, então, outra novela, como Que rei sou eu?, pode ser considerada a alegoria da nação em tempo de guerra, os mesmos tempos de agora e de sempre. Em Saramandaia, Dias Gomes rejeitou a idéia de estar parodiando o romance fantástico do boom latino-americano. O realismo fantástico de Dias Gomes não tem nada de sofisticação cultural, nem de afastamento da linha popular, pedida pela teledramaturgia. Com efeito, a música da bela e original abertura da novela, “Pavão mysteriozo”, representa uma adaptação do Romance do pavão misterioso, de João Melquíades Ferreira da Silva, um dos mais célebres exemplos de literatura de cordel nordestina. A televisão se misturava assim com os elementos dos cordéis, isto é, a imagem se apropriava de elementos

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da oralidade, dando início a um extraordinário processo de diálogo interdisciplinar. A literatura de cordel é mediação. Por sua linguagem, que não é alta nem baixa, mas a mistura das duas. Mistura de linguagens e religiosidades. [...] Estamos diante de outra literatura que se move entre a vulgarização do que vem de cima e sua função de escape de uma repressão que explode em sensacionalismo e escárnio. Que em lugar de inovar estereotipa, mas na qual essa mesma estereotipia da linguagem ou dos argumentos não vem só das imposições carreadas pela comercialização e adaptação do gosto a alguns formatos, mas também do dispositivo da repetição e dos modos do narrar popular. (Barbero, 2003, p.158)

Os elementos da novela de Dias Gomes mexiam com a política daquele tempo, mas não por isso deixavam de ser poéticos e originais: dona Redonda, que explode de tanto comer; o rei Pedro I e Tiradentes que se encontram com o professor Aristóbulo em suas vagabundagens de sonâmbulo por anos infinitos; o seu Cazuza que, ao se emocionar, poderia cuspir o seu coração; e, finalmente, o protagonista, João Gibão (Juca de Oliveira) que escondia, como corcunda, um par de asas que queriam simbolizar a liberdade em tempo de ditadura militar. Na novela Que rei sou eu? (1989), o reino de Avilan era obviamente uma paródia do Brasil dos anos 1990: um país que “mostrava a sua cara”, como dizia Cazuza, da corrupção, mediante recursos como a moeda que muda de nome, a instabilidade financeira, a miséria sempre mais evidente, o complexo de uma consciência latino-americana em busca de um espaço de identidade real. Uma história de capa-e-espada, que renovou o gênero folhetinesco, porque conseguiu demonstrar que o telespectador de novelas não é privado de bom sentido e de gosto; antes, ele foi capaz de avaliar a originalidade da proposta de Cassiano Gabus Mendes e ler, nas entrelinhas, que o entusiasmo é apenas uma pausa para tomar o fôlego, mas que a vida apresenta situações mais controvertidas. O bruxo Ravengar, a rainha Valentine que gargalhava monstruosamente, a doce prin-


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cesa Juliette, paródica figura feminina dos folhetins de Dumas, povoavam um roteiro que se desenvolvia três anos antes da Revolução Francesa. Todos, porém, conhecemos como acabou a história. Muito próxima a Que rei sou eu?, Carlos Lombardi escreveu, em 2004, Kubanacan, uma verdadeira homenagem ao autor das melhores novelas das sete, Cassiano Gabus Mendes. A novela parodiava a ditadura de algumas nações latino-americanas (e centro-americanas, em particular) mediante a recriação de um país imaginário, que muito de perto lembrava Cuba, onde todas as personagens (Carlos Camacho, a vedete Perla Perón, a ditadora Mercedes na interpretação de Betty Lago, o desmemoriado Adriano Allende) são significativamente indicativos de uma alegoria política dos governos do continente. Roque Santeiro (1985), um dos êxitos da televisão brasileira, contou com a re-proposição do mesmo argumento de Dias Gomes, numa novela que foi “censurada”, limitada pelos assuntos tratados no ano de 1975. Paródia dos mitos brasileiros, das crenças e lendas da mescla de raças no país, Roque Santeiro pode ser indubitavelmente considerado o Macunaíma das novelas. Só um grande conhecedor dos costumes brasileiros como Dias Gomes poderia ter a coragem de escrever para o grande público uma novela que renovou o espírito e o pensamento do brasileiro médio: na novela se discutiam problemas de religião, de misticismo coletivo, de política; enfim, do que é um povo. Roque Santeiro foi uma excelente representação coral, polifônica do Brasil popular sem nunca decair em um populismo sem saída. A novela parodiou a idéia mesma de “mito” (segundo a função catalisadora moderna da palavra: um mito é o que sintetiza os ideais de um grupo social) e, ao mesmo tempo, “impôs” uma relativização da verdade sem happy ending ou outras banalizações, dando à novela uma atmosfera literária dificilmente alcançada depois. A TV Globo desempenhou um papel decisivo na popularização da telenovela, realizando a “transformação do gênero

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folhetinesco, melodramático e estrangeiro numa novela ligada à realidade brasileira”. Dias Gomes identifica nesse abrasileiramento da telenovela a conquista de uma tipicidade televisual nacional. (Melo, 1988, p.49)

A idéia de revisão de mitos e clichês do povo brasileiro chegou novamente com a novela do estreante João Emanuel Carneiro, Da cor do pecado (2004), que além de um enredo folhetinesco pouco original, mas do gosto do grande público, colocou junto com a paródia da religião nordestina a reescrita da situation comedy norte-americana. Vários elementos presentes na novela parodiam não apenas os lugares-comuns da vida dos brasileiros, mas alegorizam a televisão como meio expressivo de repetições populares. Em outras palavras: assim como a literatura de cordel permite que se tornem leitores os que não sabem ler, a cultura popular ganha, na pequena tela, terreno e veracidade; além disso, ela se constitui como ferramenta geradora de uma nova forma de cultura “aberta”, isto é, uma cultura que não se limita à produção intelectual elitista, mas propõe o surgimento de uma reflexão híbrida, contribuindo, assim, para o desenvolvimento das massas e procurando uma reunificação das culturas baixas e altas, por meio de uma participação “educada” do público. Na bem-sucedida novela de João Emanuel Carneiro, a família Sardinha parodia o estilo dos desenhos, como Mandrake, já que os filhos, apaixonados jogadores de luta livre, aumentam a força musculosa graças a uma prodigiosa sopa da mãe, Mamuska (uma variação dos espinafres de Popeye); um pai-de-santo, interpretado com fina ironia por Francisco Cuoco, fala com a galinha-d’angola; a generosa viúva Tancinha e o aprendiz pai-de-santo Helinho assistem, estremecidos e em primeira pessoa, à transmigração da alma de Feitosa, o marido de Tancinha, cujo espírito está “preso” em um lenço e pode “evaporar” de um momento para o outro. Talvez tenha razão Alberto Moreiras (2001) em identificar na insistência de uma “produção neotradicional da diferença” o verdadeiro risco do latino-americanismo atual.


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Se seguirmos as contribuições de Moreiras, a própria telenovela, no momento de desmistificação paródica, tocaria o ápice da homologação cultural. O efeito de dois gumes da paródia televisiva é a ameaça de uma globalização cultural cínica e superficial. O resíduo não-moderno latino-americano, tal como evocado no discurso jornalístico, cinematográfico, e mesmo acadêmico, é hoje freqüentemente não mais que um pretexto já constituído para uma invenção epistêmica através da qual a pós-modernidade metropolitana narra-se para si mesma pelo desvio de uma heterogeneidade presumida, que, por sua vez, nada mais é do que a contraparte da total estandardização universal, a matéria da qual esta se alimenta a fim de produzir a si própria. (Moreiras, 2001, p.61)

É fundamental, portanto, nessa altura, uma educação para uma mudança da expressão estética que rejeitasse o discurso do sublime separado da experiência cotidiana; essa educação deveria lograr a sensibilizar uma mentalidade crítica e irônica que pudesse distinguir ou defender a percepção do “gosto” da acusação de “mau gosto”. A paródia, portanto, não relativiza nem “reduz” a intenção do autor originário, mas permite “deduzir” que, junto à linguagem “básica”, uma série de conjeturas e releituras que recriam a obra de origem começa a se estratificar. Essa base intertextual da parodia televisiva transpõe o leitor/espectador, com vivacidade e inteligência, a aceitar o processo de aculturação que Bakhtin identificou na Idade Média, na qual, por primeira vez depois de Aristófanes, o espaço popular reclamava o retorno ao discurso da cultura erudita. Na sociedade do espetáculo, a educação à paródia não deve, porém, esquecer que o distanciamento irônico não é mais binário: se na Idade Média era possível confrontar a rejeição popular à cultura oficial dominante, hoje essa subversão é utilizada para o que Jameson (1996, p.292) chama de “consumismo onipresente da atualidade”, onde, no momento de desvendamento da máscara da ideologia,

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o poder continua a insistir na máscara: “Os meios de comunicação oferecem programas gratuitos em cujo conteúdo e composição o consumidor não tem absolutamente nenhuma escolha, mas cuja seleção é depois rebatizada de ‘livre escolha’” (ibidem, p.293). A ausência de “livre escolha” e a natureza conformista da paródia são, por sua vez, parodiadas, possibilitando, assim, desvendar processos ocultos, postos em evidência por uma reinterpretação anticonformista dos efeitos atuais do multiculturalismo. Em outras palavras, o multiculturalismo é uma forma repudiada invertida e auto-referencial de racismo, um “racismo com distanciamento” – “respeita” a identidade do Outro, concebendo o Outro como uma comunidade “autêntica” e autocontida em relação à qual ele, o multiculturalista, mantém uma distância possibilitada por sua posição universal privilegiada. [...] O respeito do multiculturalista pela especificidade do Outro é a forma mesma como afirma sua própria superioridade. (Zizek, 2005, p.32-3)

É a esse tipo de educação à leitura da(s) forma(s) paródica(s) que o leitor e o espectador devem ser encorajados, para mergulhar nas práticas significantes de uma cultura entendida hoje como um processo unitário e, ao mesmo tempo, múltiplo, variado, diversificado. Mais que uma educação ao cinismo, como aponta Slavoj Zizek, talvez fosse necessário um retorno ao ceticismo de Montaigne, isto é, não um pessimismo cortante e destruidor, mas a constatação de que cada realidade humana não é definível unilateralmente e que é “salutar” a prática da observação realista de todos os fatores em jogo. Assim, o grande público, que valoriza, com freqüência, só o aspecto repetitivo e estereotipado dos folhetins televisivos, pode perceber, por exemplo, que Sol e Tião (heróis da novela América, de 2005) não são bons atores e que não é suficiente disfarçar-se de estátua da liberdade, ou idealizar a figura de um peão que pouco ou nada tem a ver com a realidade, para elevar o ibope do poder cultural. Dessa


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maneira, assistir aos divertidos “Solfredora” e “Maygera” de Casseta e Planeta, programa paródico e “rabelaisiano”, nem sempre de alto nível, permite que o grande público possa até tornar-se crítico televisivo, com força e dignidade. O público brasileiro é inteligente, e não ficou escravizado.

Silence becomes you: a linguagem hibrida do filme contemporâneo Brunilda T. Reichmann*

Referências ABRAMO, Bia. Falabella e Talma operam milagre às sete. Folha de S.Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/indices/ inde15052005.htm> Acesso em 15 maio 2005.

RESUMO: Este trabalho apresenta uma análise da interpenetração dos poemas “The goblin market”, de Christina Rossetti, e “Go and catch a falling star”, de John Donne, com o filme Silence becomes you (2005), de Stephanie Sinclaire. A fusão dos poemas com a diegese (intermidialidade ou narrativa híbrida), caracterizada pela saturação de cor e de luz das imagens, pelo roteiro não-linear e descomprometido com a realidade, cria uma narrativa fílmica maravilhosa semelhante ao poema de Rossetti.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética – A teoria do romance.São Paulo: UNESP, 1998. BARBERO, Jesus Martin. Dos meios às mediações. 2.ed. Trad. Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. BAUDRILLARD, Jean. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1997.

PALAVRAS -CHAVE :

BLOCK DE BEHAR, Lisa. Dos medios entre dos medios. Sobre la representación y sus dualidades. México; Buenos Aires: Siglo XXI, 1990.

ABSTRACT:

This paper presents an analysis of the interpenetration of the poems “The goblin market”, by Christina Rossetti, and “Go and catch a falling star”, by John Donne, with the film Silence becomes you (2005), by Stephanie Sinclaire. The fusion of the poems with the diegesis (intermediality or hybrid narrative), which is marked by images saturated with light and color, by means of a non-linear script with no commitment to reality, creates a wondrous filmic narrative similar to Rossetti’s poem.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2003. JAMESON, Fredric. O pós-modernismo e o mercato. In: ZIZEK, Slavoj. (Org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 279-96. KUNDERA, Milan. El telón. Barcelona: Tusquets, 2005.

KEYWORDS:

MELO, José Marques de. As telenovelas da Globo. São Paulo: Summus, 1988. MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença. Belo Horizonte: UFMG, 2001. PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac, 2003. SHKLOVSKI, Víktor. Teoria della prosa. Torino: Einaudi, 1979. ZIZEK, Slavoj. Multiculturalismo, ou a lógica capital do capitalismo multinacional. In: (Org.) Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo: Hacker, 2005, p.11-45.

Realismo maravilhoso, intermidialidade,

imagem.

* Professora aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora titular do mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (Uniandrade).

Wondrous realism, intermediality, image.

Este trabalho apresenta algumas noções de realismo maravilhoso, mágico e fantástico como introdução à análise do filme Silence becomes you (2005), de Stephanie Sinclaire. O objetivo principal, no entanto, é trabalhar a relação de intermidialidade com os poemas fantásticos ou maravilhosos “Goblin market”, de Christina Rossetti, “Go and catch a falling star”, de John Donne, e com a canção medieval Rose. Os poemas e a canção fundem-se na produção do filme de forma e com visibilidade diferentes, e o produto final também carrega em si marcas explícitas do


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realismo maravilhoso. Como nos contos de fadas, as protagonistas vivem em um “castelo” isolado de tudo e de todos, têm uma vida de princesa, pois não precisam trabalhar para sobreviver; o rapaz escolhido para ser o pai do herdeiro é um “príncipe” de outras terras. Além disso, o filme inclui um refrão alquímico e trata de acontecimentos que nem sempre têm relação com o mundo real. Esse refrão alquímico nos remete à magia da transformação de metais inferiores em ouro. Nos primeiros minutos da projeção, escutamos uma voice-over que diz ao espectador: “Write the story in your blood, and you will turn your bones from lead into gold”.1 O refrão implica o abandono das velhas oficinas de mágicos, para transformar o ser humano num alquimista de si mesmo e transformar seus próprios ossos em ouro ao experimentar a vida com paixão. O pai (já falecido), autor do refrão, aparece inúmeras vezes no filme, repetindo a frase para suas filhas ainda meninas, ao ensinar-lhes música, pintura, e ao tentar desenvolverlhes o poder da mente. Segundo o pai, a paixão deverá marcar todas as atitudes das meninas, do simples tocar da flauta até atear fogo em objetos apenas com o poder da mente. Essa realidade mágica faz parte do cotidiano das irmãs Violet (Alicia Silverstone) e Grace (Sienna Guillory), que só têm contato com o pai e da mãe (no passado) e não têm contato com outras pessoas (no presente). Irlemar Chiampi (1980), em O realismo maravilhoso, propõe distinções entre as diferentes manifestações de realismo que ultrapassam as fronteiras do cotidiano. Segundo ela, esse realismo pode ser maravilhoso, mágico e fantástico. No início do estudo, Chiampi (1980, p.19) alerta o leitor para o uso indiscriminado da expressão “realismo mágico”, da crítica latino-americana, pois a expressão “veio a ser um achado crítico interpretativo e cobria, de um golpe, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (‘mágica’) da realidade”. Escritores latino-americanos depois dos anos 1940, segundo Chiampi, rompem com o dis-

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“Escreva a história no seu sangue, e seus ossos se transformação de chumbo em ouro.”

“Nunca me ocorreu nada, nem pude fazer nada que fosse mais assombroso que a realidade.”

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“O realismo mágico é um dos procedimentos usados pelos escritores hispano-americanos com a intenção de apreender e plasmar os componentes essenciais das terras e dos povos de seu continente.”

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curso realista ao utilizar: “a desintegração da lógica linear de consecução e de conseqüência do relato...; a caracterização polissêmica dos personagens e a atenuação diferencial do herói; um maior dinamismo nas relações entre o narrador e o narratário...” (ibidem, p.21). O realismo mágico registra um novo modo de ver a realidade pelo narrador. Seria esse modo de ver “mágico”, como quer Chiampi, ou seria a realidade “mágica”, como quer Gabriel Garcia Márquez, que diz (cf. Ferrer, 1990, p.88): “Nunca se me ha ocurrido nada ni he podido hacer nada que sea más asombroso que la realidade”?2 A magia do cotidiano resgatada por escritores latino-americanos é assim descrita por Ferrer (1990, p.89): “El realismo mágico es uno de los procedimentos empleados por los escritores hispanoamericamos en su intento de aprehender y plasmar los componentes esenciales de las tierras y de los pueblos de su continente”.3 Chiampi descarta a expressão “realismo mágico” e opta pela expressão “realismo maravilhoso”, porque, segundo ela, a magia mesmo nos textos latino-americanos vem em segundo plano e o termo “maravilhoso” já é consagrado pela Poética e pelos estudos críticos em geral. Em Silence becomes you, além da ênfase no elemento mágico, o espectador observa as personagens que transitam no mundo dos vivos, mas as aparições do pai e da mãe, já mortos, podem levar o espectador a indagar se eles realmente voltam à vida ou se as aparições são resultado da lembrança poderosa dos pais na memória das duas irmãs (entre 23 e 27 anos) que, em vez de recordar, revivem momentos do passado como se acontecessem no presente. Só existe um momento em que essa segunda explicação não se aplica. Voltaremos a ele mais tarde. As aparições não se resumem aos mortos; tampouco incluem as protagonistas como crianças dentro do presente da narrativa. Tzvetan Todorov (2004), em Introdução à literatura fantástica, dez anos antes de Chiampi, trabalha também a noção de realismo maravilhoso, mas coloca sua ênfase no fantástico, como uma abordagem estrutural de um gênero literário. Para ele, a presença do sobrenatural é uma con-


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dição essencial para a existência do fantástico. O sobrenatural de Todorov pode ser definido como aquilo que transgride as leis que organizam o mundo real, que trata da existência de ocorrências inexplicáveis ou de fatos que não poderiam ter acontecido, como a volta de um morto à vida. Narrar ocorrências impossíveis que transgridem as leis da natureza e transtornam a estabilidade do leitor é uma característica da narrativa fantástica, segundo Todorov. Para ele, o fantástico acaba por criar uma hesitação no leitor ante acontecimentos não explicáveis pela razão. Essa hesitação pode ser apreendida como um reflexo ou elemento especular da personagem, que também hesita diante dos acontecimentos que escapam à esfera natural. Segundo Todorov (2004, p.38-9), para a existência do fantástico é necessário que três condições sejam preenchidas. Primeiro é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem... Enfim é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”.

Retornando a Chiampi (1980, p.48), o maravilhoso, segundo ela, é também “o ‘extraordinário’, o ‘insólito’, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano” e não estabelece uma contradição com o natural. Continuando, ela escreve: Maravilhoso é o que contém a maravilha, do latim mirabilia, ou seja “coisas admiráveis” (belas ou execráveis, boas ou horríveis), contrapostas as naturalia. [...] Em sua segunda acepção, o maravilhoso difere radicalmente do humano: é tudo que é produzido pela intervenção dos seres sobrenaturais. [...] Pertencem a outra esfera (não humana, não natural) e não têm explicação racional. (ibidem)

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Silence becomes you como narrativa (com sua atmosfera de conto de fadas, as aparições de mortos, a magia como uma apologia ao poder do homem) e pela fusão dos elementos intermidiáticos maravilhosos (o poema de Rossetti com seu mercado de duendes que seduzem, por meio de seus pregões, incautas donzelas a experimentar seus frutos, e com o poema de Donne – nem tão relacionado ao maravilhoso como o primeiro – com a (im)possibilidade de se pegar uma estrela cadente ou engravidar uma raiz de mandrágora, tão impossível quanto encontrar uma mulher honesta), pode ser considerado maravilhoso dentro das duas concepções colocadas por Chiampi. Além dessas características, o filme segue algumas das funções específicas da narrativa maravilhosa, segundo o estudo do estruturalista Vladimir Propp, que antes de Chiampi e Todorov, em A morfologia do conto maravilhoso (1928), propõe 31 funções específicas da narrativa maravilhosa. Ao analisar cerca de trinta contos, Propp chega à conclusão de que as funções dos contos maravilhosos estão relacionadas às ações das personagens, e elas são: afastamento, proibição, transgressão, interrogatório; informação, ardil/fraude, cumplicidade; malfeitoria/dano/traição/vilania, mediação/momento conectivo, decisão do herói, partida do herói, designação da prova, enfrentamento da prova, recebimento de ajuda (adjuvante), deslocamento espaçotemporal, combate, estigma, vitória, reparação da falta, regresso do herói, perseguição, salvamento, chegada incógnita, pretensões infundadas/falso herói, designação de tarefa difícil, solução/realização da tarefa, revelação do herói (com nova aparência), desmascaramento do falso herói, transfiguração, castigo e recompensa. (in Jornalismo e Linguagem, s. d.) Ao assistir ao filme Silence becomes you, torna-se claro que Sinclair subverte várias características da narrativa maravilhosa, até porque o momento presente não é o ideal para a consumação de histórias de amor nem para narrativas lineares com final fechado e feliz. As subversões serão discutidas à medida que analisarmos os elementos das di-


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ferentes mídias que produzem um terceiro tipo de texto, o texto híbrido. Pode-se antecipar, no entanto, que o filme segue o esquema tradicional da narrativa, com alguma diferença, pois, antes da vinda de Luke (Joe Anderson), as irmãs parecem ter uma relação harmoniosa, apesar de não seguirem o padrão de vida da maioria das pessoas. Elas estabelecem um plano e, ao consumá-lo, dão início à complicação, pois Violet começa a quebrar as regras estabelecidas, segue o primeiro clímax (consumação do relacionamento sexual de Violet e Luke) e as muitas dificuldades no relacionamento entre os dois. A resolução e o desfecho parecem próximos quando Violet abandona a irmã e vai embora com Luke. Retoma-se a complicação, no entanto, quando Violet dirige de volta à mansão, enquanto o companheiro dorme. O clímax e a resolução dessa vez serão desastrosos, e um seguirá ao outro em movimento acelerado. Depois da tragédia, outro tipo de harmonia é restaurado. Uma análise mais detalhada dos elementos específicos do maravilhoso apoiar-se-á nas noções do fantástico de Todorov e do maravilhoso de Chiampi e nas funções das personagens do conto maravilhoso sugeridas por Propp. Pretendemos demonstrar como a presença e a subversão desses elementos ocorrem no filme Silence becomes you. Essa análise, no entanto, é subordinada à leitura dos elementos intermidiáticos ou híbridos no filme. Até porque esses elementos possuem separadamente sua própria marca maravilhosa ou fantástica, mas o interesse concentrase no resultado ou no produto final. Recorremos então às noções de Claus Clüver e de Júlio Plaza sobre intermidialidade e hibridização. Clüver (2001, p.340), em “Estudos interartes: introdução crítica”, reflete sobre as diversas relações entre mídias, linguagens ou textos. Segundo ele, a relação intersemiótica ou intermidial se realiza quando um texto “recorre a dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis”; a multimidial se concretiza quando há “combinações de tex-

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tos separáveis e separadamente coerentes, compostos em mídias diferentes”; e a mixed-media, como o termo em inglês sugere, mistura de mídias, compreendendo “signos complexos em mídias diferentes que não alcançariam coerência ou auto-suficiência fora daquele contexto”. Em Tradução intersemiótica, Plaza (2003, p.65) diz que “A combinação de dois ou mais canais a partir de uma matriz de invenção, ou a montagem de vários meios pode fazer surgir um outro, que é a soma qualitativa daqueles que o constituem. Neste caso, a hibridização produz um dado inusitado que é a criação de um meio novo antes inexistente”. Esta hibridização (ibidem, p.206-7) pode ser resultado da interpenetração (intermídias), da justaposição (multimídia) ou da tradução (tradução intersemiótica). A fusão do filme com os poemas de Donne e de Rossetti caracteriza a intermidialidade, a formação de um texto híbrido onde mais de uma mídia se interpenetram na criação de uma terceira ou do produto final. A fusão das mídias não se dá, no entanto, com a mesma visibilidade, resultado do grau de interpenetração das diferentes mídias ou linguagens na hibridização. A idéia de que o grau de visibilidade das mídias na matriz de invenção vai do grau zero (fusão realizada na mente do leitor implícito) até uma visibilidade absoluta (fusão visível aos olhos do leitor), leva-nos a crer que uma das mídias na intermidialidade pode fundir-se e estar presente no produto final com visibilidade zero (elemento “visivelmente” ausente no produto final), como marca d’água (elemento com visibilidade mínima), como plano de fundo (elemento com visibilidade média), como primeiro plano (elemento com visibilidade igual entre as mídias que se integram). Pode-se contestar, no entanto, que sem visibilidade de pelo menos duas mídias diferentes não haveria intermidialidade. Pode-se também contra-argumentar que o hibridismo acontece mesmo em situação de desequilíbrio ou assimetria, fazendo uma analogia com a estética do efeito. João C. de C. Rocha (1999, p.10) diz que “Partindo do pressuposto da existência de uma assimetria inicial em ambos (leitor e texto), a estética do efeito almeja compreender


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o ato de leitura como uma forma de negociação daquela assimetria”. Da mesma forma, dá-se a negociação entre a assimetria da visibilidade entre as mídias na intermidialidade. Essa noção de assimetria pode ser relacionada a diferentes graus de visibilidade das mídias no produto final. Na visibilidade grau zero, o leitor precisa ser um narratário, um leitor informado, implícito, educado, pois a fusão das mídias não é visível e vamos depender do conhecimento do leitor para que ela se realize. Tomemos como exemplo o poema “O mercado do duende” no filme Silence becomes you. Não há nenhuma referência explícita ao poema dentro do filme, portanto apenas aqueles que já leram o texto de Rossetti percebem que as duas irmãs do filme são inspiradas nas irmãs do poema narrativo. Podemos também nos apoiar em informação externa à produção final, como nesse caso, pois a produtora do filme relata, em entrevista, que o poema “O mercado do duende” esteve presente em sua mente durante a produção do filme. Como visibilidade marca d’água, temos a atmosfera mágica dos contos de fada no mesmo filme Silence becomes you, de Stephanie Sinclaire. O conto de fadas é mencionado no início do filme, mas mantém-se subjacente durante toda produção. Como visibilidade plano de fundo, um bom exemplo seria a fusão do texto O coração das trevas (1902), de Conrad, e o filme Apocalypse now (1979), de Francis Coppola; outro exemplo seria o romance Mrs. Dalloway (1922), de Virginia Woof, e o filme As horas (2002), do diretor Stephen Daldry. Como visibilidade primeiro plano, podemos citar a dança dionisíaca no romance Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, e no filme homônimo (1999), de Luiz Fernando Carvalho. A dança, além de ser elemento intermidial no texto, carrega em si a intensidade da libertação do verbo do pai. A essa tentativa de classificar as diferentes visibilidades, podemos acrescentar que entre o grau zero e o primeiro plano podem ocorrer outras variações além daquelas que denominamos como marca d’água e plano de fundo, variações

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Todas as imagens incluídas neste trabalho foram captadas da internet.

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que surgem à medida que deparamos com outras produções intermidiais. O elemento mais rico em Silence becomes you é, sem sombra de dúvida, a direção de arte – figurinos e cenários, especialmente os figurinos das irmãs Violet e Grace e a decoração interna da mansão. O figurino é baseado nas vestimentas de fadas medievais e caracteriza-se por cores fortes, vibrantes, variadas e saturadas. O interior da mansão é repleto de cortinas, mantas e cobertas também com cores vibrantes. As paredes seguem o mesmo padrão de cores e móveis antigos preenchem os espaços. Ao personagem masculino, pessoa de outra esfera da realidade, é negado um figurino especial. Luke veste-se como um rapaz comum do início do século XXI. Em um determinado cômodo da mansão, há um sofá antigo contra uma parede de azul intenso, onde as irmãs são “fotografadas”. Usando câmara fixa, os “quadros” se repetem em determinados momentos do filme – repetição com diferença – e vão de um colorido não-saturado a um colorido intenso e saturado, com exceção do último que vai do preto-e-branco ao colorido saturado. Esses fotogramas revelam o estado de espírito das duas irmãs no decorrer do filme, formando um dos fios condutores na narrativa. Em outras palavras, os sete “quadros” das irmãs no sofá marcam a mudança do relacionamento entre as duas irmãs, o primeiro antes da vinda de Luke e outros seis depois de sua vinda para a mansão. No “quadro” da Figura 1,4 segundo da série, as irmãs estão desoladas, pois Luke inadvertidamente entrara no quarto dos pais, um local “sagrado” e conservado fechado. As duas sofrem muito com a atitude de Luke, e Violet, à esquerda, deitada, deixa-se abater totalmente. No primeiro “quadro”, Grace e Violet parecem ter uma existência marcada pelo desânimo, depressão, pois a única distração que têm na vida é a pintura, já que não saem de casa nem têm relacionamento com nenhuma outra pessoa. Após arquitetarem o plano (fora de cena) de tra-


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Figura 1 – Segundo “quadro” dos vários que revelam o estado de espírito das personagens e marcam o desenvolvimento da narrativa fílmica.

zerem um homem para a mansão, o estado de espírito das irmãs se altera. Um dos possíveis significados do segundo “quadro” já foi mencionado. No terceiro, as irmãs estão juntas com o olhar perdido, como se olhassem ao mesmo tempo para o futuro e para o passado. Luke, em outro aposento, junta suas coisas e as coloca na mochila para ir embora. Se Luke tivesse realmente ido embora nessa ocasião, o destino dos três seria totalmente diferente. No quarto “quadro”, Violet está só e deploravelmente decepcionada, pois na segunda tentativa Luke abandona a mansão, após ter tido um envolvimento amoroso com ela. Grace adentra o “quadro” e tenta conversar com a irmã. No quinto, depois do retorno de Luke, ao ver que ele acabará por convencer Violet a partir por causa do crescente envolvimento amoroso entre eles, Grace retalha seu braço esquerdo e tem um ataque histérico no seu quarto. Na cama com Luke, Violet pressente que alguma coisa está acontecendo com Grace, sai da cama e vai ao encontro da irmã. As duas, nesse “quadro”, estão sentadas juntas no sofá, Violet com a cabeça deitada no ombro de Grace, com expressão de culpa e contrição. As maquinações de Grace não impedirão, no entanto, que Violet a abandone; e no

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“Engravide uma raiz de mandrágora.”

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sexto “quadro”, Grace está só, deitada, encolhida no sofá. No sétimo e último “quadro”, depois da morte de Luke e da perda da gravidez de Violet, que vai de preto-e-branco a cores saturadas, as duas irmãs se olham profundamente, e Violet abandona Grace. A partida de Violet da mansão é certa, mas Grace não está em desespero, pois sabe que não está sozinha, está grávida. Parece que Grace dará início a um ciclo semelhante ao criado pelo pai: manterá seu filho(a) na mansão, ensinar-lhe-á as artes da alquimia, desenvolverá seu poder mental e suscitará um envolvimento apaixonado com as artes, especialmente a pintura e a música. A narrativa fílmica de Silence becomes you é essencialmente rizomática e muitas vezes o espectador é levado a perguntar-se, sem obter resposta, do porquê de tantas vertentes narrativas. Pode-se dizer que a narrativa é inconclusiva, os planos vagos, as motivações nem sempre claras, os caminhos tomados, questionáveis. O filme tem início com voice-over que recita a primeira linha do poema “Go and catch a falling star”, de John Donne, e acrescenta outras que não fazem parte do poema. Sabemos que a voz poética nesse poema afirma que não existe uma mulher honesta, e se essa existir, o “eu poético”, ao saber de sua existência e tentar encontrá-la, já teria dado tempo para ela tornar-se desonesta. No filme, a desonestidade aparece primeiramente ligada ao personagem masculino, e depois à mais velha das duas irmãs. No início, existe, entre elas, um forte laço de amor e dependência, pois elas vivem isoladas de tudo e de todos. Antes da vinda de Luke, elas já haviam arquitetado um plano que nunca é mencionado explicitamente, mas que pode ser entendido como trazer um rapaz à mansão, com quem possam se relacionar fisicamente, apenas fisicamente, para engravidar. Interessante notar aí a imagem do poema de Donne no segundo verso: “Get with child a mandrake root”.5 A raiz da mandrágora assemelha-se aos membros inferiores femininos, como na Figura 2:


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Figura 2 – Raiz de mandrágora.

Com a gravidez, o “reprodutor” seria então descartado e as irmãs continuariam suas vidas dedicadas uma à outra. Fica claro durante as conversas entre as irmãs que o homem escolhido deveria cair na armadilha feita por elas. Violet, que sai em busca do rapaz, quebra esse compromisso ao interessar-se por ele como pessoa e ao sentir que está se deixando apaixonar. Parece, no entanto, que Luke é o rapaz perfeito para o plano, já que ele responde para Violet: “Wrong guy. I don’t do love”.6 quando ela diz, ao evitar contatos mais íntimos, que espera que ele se apaixone por ela. Ao afastar-se (primeira das funções das personagens de Propp) de casa e dar início à epopéia, Violet ignora que esse será também o início do grande conflito, pois existe uma proibição (envolver-se sentimentalmente com o estranho) e uma transgressão (Violet se apaixona por Luke) e o plano das irmãs parece estar fadado ao fracasso. Luke, o anti-herói, que fora trazido bêbado para a mansão, percorre os aposentos na manhã seguinte na tentativa de entender onde se meteu e se apossa do dinheiro que as irmãs “plantaram” em uma das gavetas para o garoto de programa. Mais uma vez esse rapaz parece ser uma grande fraude que cai no ardil armado pelas irmãs. Em relação ao poema de Donne, há uma inversão de valores: aqui é o homem que irá desempenhar o papel de desonesto até que, vítima de uma cumplicidade involuntária com Violet, esse papel passa a ser desempenhado por Grace,

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“Cara errado. Não faço amor.”

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na tentativa de afastar a irmã do rapaz. Algumas transgressões já ocorreram: o herói é na verdade um anti-herói; o anti-herói é na verdade um vilão; Grace assume o papel de antagonista; o vilão assume o papel de herói ao apaixonar-se por Violet e tentar afastá-la da influência poderosa e malévola de Grace. É no início da diegese que o uso do poema de Donne torna-se responsável por um dos momentos mais patéticos do filme, quando Luke “realmente” pega uma estrela entre os dedos e Violet a engole, num movimento brusco como o de uma criança ao abocanhar uma guloseima. Se é possível pegar uma estrela cadente, então o filme parece estar querendo dizer que é possível encontrar uma mulher honesta. O amor que Violet sente por Luke lhe possibilitará uma entrega total, quando sentir que está sendo correspondida. A cena não deixa, no entanto, de ser de extremo mau gosto. De onde surgiram essas duas irmãs tão peculiares? Do poema “O mercado do duende”, de Christina Rossetti, segundo Stephanie Sinclaire. O poema, em sua segunda edição de 1862, teve a ilustração da capa realizada pelo irmão de Christina, o pintor Dante Gabriel Rossetti (Figuras 3, 4 e 5).

Figura 3 – Ilustração de D. G. Rossetti para a segunda edição de Goblin Market and Other Poems, publicada em Londres pela Macmillan, em 1862.


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O poema tem uma conotação altamente sensual e sexual, pois é ao lamber o corpo da irmã que Lizzie se refaz como pessoa. As ilustrações a bico de pena, realizadas por Laurence Housman (Figuras 6 e 7) para a edição de 1862 da Macmillan, mostram as faces animalescas dos duendes.

Figura 4 – (Detalhe) Ilustração de D. G. Rossetti para a segunda edição de Goblin Market and Other Poems, publicada em Londres pela Macmillan, em 1862.

Figura 5 – (Detalhe) Ilustração de D. G. Rossetti para a segunda edição de Goblin Market and Other Poems, publicada em Londres pela Macmillan, em 1862.

Nesse poema, selecionado por Harold Bloom para fazer parte do livro Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades: outono (Rossetti, 2003, v.3), duas irmãs, Lizzie e Laura, vivem também isoladas, dedicam-se aos trabalhos caseiros e saem para outros afazeres, possivelmente a lavagem de roupa no arroio. Tarde após tarde as irmãs escutam os pregões dos duendes a oferecer os mais saborosos frutos, e Lizzie, tomada pelo desejo, acaba cedendo à sedução dos duendes em troca de um cacho de seu cabelo dourado. Depois disso, Lizzie nunca mais vê os duendes nem ouve seus pregões, e, enfraquecida pelo desejo de provar novamente os frutos, fica prostrada na cama. Ao perceber que Lizzie irá falecer, Laura, que por não ter provado dos frutos dos duendes ainda os vê e ouve seus pregões, tenta salvar a irmã e vai ao encontro deles para propor a compra de frutos. Eles se negam a vendêlos, a não ser que ela os experimente diante deles. Laura se recusa a prová-los, e os duendes, enraivecidos, atiram suas frutas na moça e as amassam contra seu rosto e corpo. Laura permanece firme até que, coberta pelas frutas despedaçadas e pelo suco que lhe escorre pelo rosto e corpo, corre para casa a fim de que sua irmã possa, ainda uma vez, experimentá-los. Dessa maneira, Laura salva Lizzie.

Figura 6 – Ilustração de Laurence Housman para a segunda edição 2. de Goblin Market and Other Poems, publicada em Londres pela Macmillan, em 1862.

Figura 7 – Ilustração de Laurence Housman para a segunda edição de Goblin Market and Other Poems, publicada em Londres pela Macmillan, em 1862.

Ao sugerir que não faz amor, Luke implicitamente está dizendo que faz apenas “sexo”, pois ele vive do dinheiro que lhe é pago por mulheres, assemelhando-se assim aos duendes com caras de animais do poema de Rossetti. Seu envolvimento físico com o sexo oposto não inclui sentimento, é animalesco. Ao apaixonar-se involuntariamente por Violet, Luke torna-se um rapaz diferente, e a vilania passa então para as mãos de Grace, transgredindo novamente as funções que lhe tinham sido atribuídas e destruindo o amor irrestrito entre as irmãs. Grace, a mais poderosa e a preferida do pai por seus poderes mágicos e intensidade artística, assume o papel


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da vilã ou da bruxa e inicia o processo de destruição do envolvimento amoroso de Violet e Luke. Consciente que ele é sensível ao seu poder mental e empenhada em mostrar que “ele não vale nada”, Grace planeja seduzi-lo e o faz, em princípio, invadindo o sonho do rapaz. Perturbado com a imagem e a sedução onírica de Grace, Luke tornase uma presa fácil e, na ausência de Violet, não resiste à sedução da irmã da amada. Ao ser implicitamente perdoado por Violet, Luke a convence a ir embora daquela casa, o que fazem imediatamente. Grace direciona seu poder mental para fazer que Violet volte para casa e consegue seu objetivo. Novamente em casa, apenas por uma noite, como exige Luke, tentando provar que sua confiança no amado e na irmã não fora abalada, Violet ausenta-se novamente para ir ao mercado, enquanto Grace termina a pintura de Luke como São Sebastião. É a primeira vez que Luke tem acesso ao ateliê de pintura das irmãs. O quadro de Luke como São Sebastião está quase completo. Impressionante a capacidade de observação e criação de Grace, pois os detalhes da pintura encontram correspondência total com o rosto e o corpo de Luke. Grace amarra as mãos do rapaz nas costas, reconstituindo o quadro do martírio do santo, que é julgado por ter bom coração e condenado a ser morto a flechadas. Em um momento de grande tensão, quando Grace tenta usar o arco e flecha para atingir Luke, ele derruba, depois de ter desamarrado as mãos, uma vela entre muitos elementos inflamáveis e morre entre as chamas, sob o olhar de poder e triunfo de Grace e desesperado de Violet que espia atrás do vidro da porta trancada. Como São Sebastião, que não morre depois de ter sido atingido por inúmeras flechas e jogado ao rio, Luke tampouco morre por flecha, morre no elemento de Grace, o fogo. O sofrimento violento da perda faz que Violet aborte o filho e parta definitivamente da casa. Grace passa seus dias à espera da volta da irmã, enquanto seu ventre cresce com o filho de Luke, resultado da sedução com o objetivo de desmascará-lo. Um resumo da diegese como esse pode le-

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var o leitor a crer que a narrativa é linear e simples, mas, como já mencionamos, a narrativa é complexa, fragmentada, inconclusiva e rizomática. Dentro daquele espaço de contos de fadas, as irmãs, sob a influência paterna, constroem um mundo à parte e testam seus dotes artísticos e alquímicos até a exaustão. Grace, a mais apaixonada e poderosa, tem a preferência paterna desde a infância. Ela está relacionada ao elemento fogo, enquanto Violet está relacionada à água. Quando Violet entrega-se a Luke, sua entrega é imageticamente relacionada com seu aprofundar-se nas águas para entregar-se a Netuno. Logo que Luke chega à mansão, Grace canta sobre a sereia e há um desdobramento imagético de Violet. Ela está ao mesmo tempo deitada no sofá e dançando com uma blusa brilhante como se fosse a cauda da sereia invertida. Imagens de desdobramento se sucedem entre as irmãs e o pai, as irmãs e a mãe, as irmãs e elas quando meninas, e atingem uma visibilidade total quando, ao olhar-se nos múltiplos espelhos à sua frente, Grace visualiza seu próprio rosto, sua mãe e seu pai, o que de certa forma retrata a complexidade de sua personalidade (Figura 8). A personalidade de Violet é menos complexa e sua paixão parece adormecida até encontrar Luke.

Figura 8 – Imagens refletidas e especulares de Grace, seu pai e sua mãe (centro).


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As imagens refletidas incluem o pai, a mãe e a própria Grace, mas é o pai que sempre teve uma ascensão poderosa sobre o desenvolvimento da filha mais velha. Encantado com Grace, canta-lhe os primeiros versos da canção medieval Rose: “Rose, Rose, Rose, when will I see thee wed?”,7 quando ela era ainda criança, e a imagem, ao desdobrar-se em imagem do presente, extrapola a esfera da memória e tornar-se realidade em tempo presente. Ao ser preterida por Luke, a aversão de Grace ao rapaz assume proporções que escapam ao seu próprio controle. Violet, criticada intensamente pelo pai por faltar-lhe paixão para as artes e não ter o poder mental como o de Grace, torna-se semelhante à mãe, que não concordava com o isolamento das filhas. Violet é liberta pelo amor de Luke, que a acompanha no carro, mesmo depois de morto, quando ela deixa a casa definitivamente. Quando a câmera subjetiva capta a imagem do carro se afastando da casa sob o ângulo de Grace, ela não vê Luke, ao contrário de Violet. Dentro das propostas de Propp, além das já mencionadas, outras se realizam e algumas são transgredidas. Ao ser o anti-herói da narrativa, Luke parte e abandona Violet, sem saber que ela está grávida. A partida do herói nesse caso não é para agir contra o inimigo apenas, mas para tentar evitar que seu envolvimento com Violet se intensifique, já que essa não quer, em princípio, acompanhá-lo. O Luke que parte, no entanto, não é aquele que tinha sido trazido à casa. Ele já não consegue vender seu “amor”. Em vista disso, o herói retorna ao seu lugar de origem, ou à mansão onde ele encontrara o amor. Esse retorno é recebido com alegria imensa por Violet, e com desdém supremo por Grace, que então prova que Luke não é confiável. O herói não passa, portanto, de um rapaz sem escrúpulos e movido ainda por desejos sexuais incontroláveis. Então ele parte novamente, dessa vez com Violet, mas é ardilosamente reconduzido, pela mulher que ama, de volta à mansão e lá é destruído por Grace. Sua transfiguração vai além de uma nova aparência, ele morre queimado. A mal-feitora é punida, pois passa o resto de seus dias a esperar por

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“Rose, Rose, Rose, quando a verei casada?”

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Violet, mas é também recompensada, pois espera um filho (plano inicial das duas irmãs) de Luke, fruto da sedução para provar que ele era um mau caráter. Violet é recompensada ao libertar-se do poder da irmã e ir embora; mas como punição, perde o filho, resultado de um genuíno relacionamento amoroso com Luke. O poder de Grace ultrapassa as fronteiras de sua mansão e a relação que tem com sua irmã é marcada por sensações características de gêmeas univitelinas. Várias vezes, durante o filme, Violet sofre as conseqüências dos poderes de Grace. A primeira indicação que as irmãs estão unidas por laços que vão além do sangue acontece quanto Grace, enfurecida por Violet ter saído para passear de carro com Luke, queima o bilhete que Violet deixara e, com ele, a ponta do dedo. Violet, no carro, distante da casa, sente a dor do dedo queimado da irmã. Grace penetra, como já mencionamos, também pelo poder mental, os sonhos de Luke. Ela tem um objetivo bem definido ao desejar fazer parte do mundo onírico do rapaz. Ela quer acender em Luke o desejo de possuí-la. O objetivo é realmente alcançado na primeira vez que tem oportunidade de ficar a sós com Luke. No momento em que Grace e Luke estão transando, Violet, na cidade, tem uma terrível sensação no peito e se pergunta o que estaria acontecendo. Quando finalmente Violet concorda, em um ímpeto, abandonar a mansão paterna, Grace pega uma foto da irmã e começa a queimar uma das bordas. Violet começa a passar mal no carro até que Grace, assustada com o que poderia acontecer com a irmã, apaga o fogo e Violet é poupada. É nessa mesma ocasião que Grace vai repetidamente à janela e com a força do seu pensamento traz Violet de volta à mansão. O objetivo principal de Grace é manter Violet junto de si, e para tanto terá que destruir Luke. Em um momento semelhante ao anterior, quando Violet vai ao mercado, Grace mexe no motor do carro, para que Violet se demore mais. Dá-se então o confronto final, quando, com arco e flecha na mão, Grace ameaça Luke. Por inabilidade do desse, uma vela é derrubada e o poder


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de Grace faz o resto acontecer. Ela alastra e intensifica o fogo que de uma pequena labareda envolve o corpo de Luke e ele padece. Se acreditarmos que Grace tem poderes além dos normais, estaremos adentrando o reino do fantástico, mágico ou maravilhoso. Se optarmos por ver todos esses acontecimentos como coincidências, parecemos estar exagerando em nossa credulidade. Da mesma forma em relação às aparições do pai. Somos lançados a uma grande hesitação sempre que ele aparece. Podemos interpretar sua presença como projeção das mentes de Grace e Violet; no entanto, se alguma delas se recorda de um momento compartilhado com ele na infância, é como mulher vivendo naquele momento da diegese que, especialmente no caso de Grace, a recordação parece transformar-se num reviver. Portanto, tanto as aparições do pai como as da mãe (menos freqüentes) e das meninas podem ser vistas como a revisitação de um momento no passado. As de Grace adulta e do pai, não. Mas até aí tudo, Grace pode reviver como mulher uma experiência da infância; mas como explicaremos a presença da menina Violet, ao ir em busca de Luke para levá-lo ao quarto de Violet mulher? Assustado com a aparição, Luke diz: “You are just a child. Who looks after you?”,8 ao que a menina responde: “I look after myself”,9 e o conduz pela mão. De desdobramentos Silence becomes you está repleto. Há até troca de olhares das mesmas personagens em desdobramento. A câmera sugere várias vezes essa manifestação por meio da quebra de imagens: enquanto uma imagem nítida se move ou pára, outra imagem, fora de foco, pára ou avança, construindo assim uma seqüência de imagens duplas e fragmentadas. Em “O mercado do duende”, a magia negra (frutos que matam) dos duendes é quebrada pelo amor de Laura por Lizzie e o poema permanece como uma lição, tem um teor didático. Em Silence becomes you, os poderes a mágicos de Grace estão a serviço do mal e provocam dor, morte e sofrimento. Grace não pertence a um mundo encantado como o mundo dos duendes, ela é uma de nós, mas

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“Uma suspensão voluntária da descrença”, expressão usada por Coleridge, poeta romântico inglês.

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foi rigidamente educada por um mago, seu pai. Se é necessária uma “willing suspension of disbelief”10 ao ler o poema de Rossetti, a mesma atitude é necessária para assistir ao filme de Sinclaire. Sem uma suspensão voluntária da descrença será difícil apreender todas as sugestões de uma realidade que ultrapassa as fronteiras da experiência cotidiana. A hesitação perdura, com certeza, mas o encantamento criado pelas personagens, pelo interior da mansão com suas cores vibrantes e saturadas ao contrastar com a paisagem branca e cinza da neve fora, nos remete a um mundo maravilhoso onde tudo (permanência de energias passadas, desdobramentos, presença de mortos, o poder destruidor de forças do mal) é possível e nada acontece por acaso. Cabe ao leitor ou espectador suspender sua descrença ou não e apreciar uma produção como Silence becomes you com olhos de quem olhando, escuta; ouvindo, vê; e assim fica enlevado em sua perplexidade.

Referências CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. 8

“Você é apenas uma criança. Quem toma conta de você?”

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“Eu tomo conta de mim mesma.”

CLÜVER, Claus. Estudos interartes: introdução crítica. Trad. de Yung Jung Im e Claus Clüver. In: BUESCU, Helena Carvalhão et al. (Org.) Floresta encantada: novos caminhos da literatura comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001. p.333-62. DONNE, John. Go and catch a falling star. In: CRAZ, Albert G. English Literature II: 1600-1780. New Dimensions in Literature Series. Wichita: McCormick-Mathers Publ. Co., 1967. p.19. FERRER, José Luis Sánchez. El realismo mágico en la novela hispanoamericana. Madrid: Grupo Anaya, S.A., 1990. JORNALISMO E LINGUAGEM: COMMUNITY PORTAL. s. d. Disponível em: <http://jorwiki.usp.br/gdnot06/index.php>. Acesso em 7 abril 2007. MIRANDA, Juvenal Manoel. Análise das funções das personagens no conto “O pequeno polegar”, de Charles Perrault. Disponível em: <http://juvenalmm.vilabol.uol.com.br/ DOC2.htm>. Acesso em 7 abril 2007.


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MOTTA, Luiz Gonzaga. Notícias do fantástico. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

Paisagens imaginárias: fragmentos de cultura, palavra e imagem

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. ROSSETTI, Christina. O mercado do duende. In: BLOOM, Harold. Contos e poemas para crianças extremamente inteligente de todas as idades. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. v.3, p.125-49.

Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo*

SINCLAIRE, Stephanie. Silence becomes you. Sequence Film and Motionfx em associação com International Film Colletive. 2005. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

RESUMO: O artigo discute a relação palavra, imagem e imaginário na construção estética da paisagem, por meio do diálogo entre textos literários e a pintura de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) que, ao restaurar os elos entre memória e natureza, apresenta fragmentos e ruínas de paisagem e literatura. PALAVRAS - CHAVE :

Paisagem, memória, literatura, pintura,

Guignard. ABSTRACT: This article discusses the relation between word, the imaginary, and image in the aesthetic construction of landscapes, through a dialogue between literary texts and the painting of Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) who, whilst restoring the links between memory and nature, presents fragments and ruins of landscape and literature. KEYWORDS: Landscape; memory; literature; painting; Guignard.

Paisagens, país feito de pensamento da paisagem, na criativa distância espacitempo à margem de gravuras, documentos, quando as coisas existem com violência mais do que existimos: nos povoam e nos olham, nos fixam. Contemplados, submissos, delas somos pasto, somos a paisagem da paisagem. (Drummond de Andrade, 1983, p.451)

* Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O país feito de “pensamento da paisagem” na alegoria drummondiana ou as palmeiras, juritis, bananeiras e araçás que estão na letra de Marginalia II, de Torquato Neto,


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musicada por Gilberto Gil no auge do Tropicalismo, constituem ruínas de procedimentos estéticos que marcaram a formação social brasileira, expressas especialmente na paisagem que a literatura desenhou e a pintura de Guignard torna lírica, evanescente e profunda. Este artigo pretende refletir sobre a construção da paisagem considerando, de um lado, a palavra mágica e criadora do “novo mundo” e a palavra literária que alia arte e ciência na elaboração romântica de natureza; de outro, a pintura, de Alberto da Veiga Guignard, em diálogo com as ruínas, ou fragmentos, de tais procedimentos estético-literários que desenharam a paisagem em nosso imaginário cultural. Num país de analfabetos, é interessante observar a força da literatura na criação de rios, montanhas e sertões que se tornam marcas visíveis de identidade cultural a expressar, simultaneamente, as fantasias utópicas de um projeto imperialista perfeito e as imagens fraturadas, e ambivalências, não resolvidas de resistência e singularidade. Para ler o que a paisagem representa na prática cultural é necessário compreendê-la como um lugar de apropriação visual e um foco de formação de identidade, o que supera a concepção estética de gêneros fixos (sublime, pitoresco, pastoral) da literatura, pintura ou fotografia, considerados objeto de interpretação visual, meramente contemplativa. Compreendida como uma cena natural, mediada pela cultura, a paisagem revela-se um meio de troca no qual confluem uma formação histórica particular, e seus valores, em relação à tradição ocidental, e suas inter-relações (Mitchel, 1994). Nesse aspecto, pensa-se a paisagem como um meio, um recurso semelhante à linguagem ou à tinta, de quadros verbais e pictóricos que, embebidos na tradição de significação e comunicação cultural, contribuíram para a criação de identidades, legitimando seus temas através da historicização e naturalização (Mitchel, 1994). Um meio que, na cultura brasileira, realiza a ambígua referência para identidade nacional e imperialismo. Assim, compartilha-

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mos como memória coletiva as imagens de frondosas palmeiras, árvores-símbolo de nacionalidade, plantadas na paisagem e no imaginário brasileiro. No centro da natureza, inserido numa parte do espaço, um grupo social o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. Por isso, não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial porque todas as partes do espaço que o homem ocupa correspondem a tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, pelo menos no que nela havia de mais estável (Halbwachs, 2006). Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito, e retomar tais impressões torna-se mais difícil se elas não estiverem conservadas no ambiente natural que nos circunda. A dramatização visual da natureza constitui, portanto, uma forma de controle imaginativo, capaz de fortalecer a ação colonizadora, criar laços de co-nacionalidade e de proporcionar um senso de estabilidade, e de história, no cotidiano dos brasileiros. Ruínas e fragmentos dessa construção estética são retomados pela memória, ativada pela palavra ou pela imagem.

Imagem e palavra: a construção do “Novo Mundo” A iconografia legada pelos primeiros viajantes, assim como seus relatos compõem um estoque de imagens que guardam a paisagem em nossa memória coletiva. Isso porque não foram somente os limites de mares e terras, as fronteiras alargadas à época das grandes viagens marítimas e das descobertas: esgarçaram-se também os limites entre realidade e imaginário para sustentar as ações e contaminar o olhar dos desbravadores para a paisagem. Dentre os recursos tecnológicos trazidos pelos navios europeus estava a capacidade de controlar as relações entre visível e invisível, entre realidade e ficção (Ginzburg,


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2001). Esse recurso pulveriza-se no cotidiano dos primeiros conquistadores e as raízes de suas afirmações e desejos fincam-se muito longe: nas tradições populares, em fragmentos de textos lidos e repetidos na defasagem entre o que diziam e como foram difundidos, imagens das lembranças clássicas da Idade de Ouro, da teoria da excelência do estado natural, dos motivos edênicos, todos motivadores, enfim, da ação colonial. A visão simbólica da natureza fora bem constituída pelos padres da Igreja, desde os primeiros séculos cristãos até o Renascimento, projetando-se, ainda, no século XVII. A partir da linguagem alegórica, animais, plantas e minerais adquiriram uma multiplicidade de interpretações e as muitas espécies que fascinavam as imaginações vinham mais da convenção literária (rouxinol, corujas, andorinhas e serpentes) do que da fantasia popular (Holanda, 1996) O cenário americano parecia incorporar o milagre à natureza e fundamentar a expressão “Novo Mundo”: novo, porque ausente da geografia de Ptolomeu e por permitir ao mundo conhecido renovar-se ali, regenerar-se “vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera, alheio à variedade e aos rigores da estação” (Holanda, 1996, p.210) como se estivesse num paraíso terreal. Como bem analisou Octavio Paz (1992, p.127), o discurso elaborado à época da descoberta da América definira o homem da nova terra como um ser de pouca realidade, porque sem passado, nasceu feito um projeto do futuro, incrustado na natureza: Na Europa a realidade precedeu ao nome. América, pelo contrário, começou por ser uma idéia. Vitória do nominalismo: o nome engendrou a realidade. O continente americano ainda não havia sido inteiramente descoberto e já fora batizado. O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo. Terra de eleição do futuro: antes de ser, a América já sabia como iria ser.

Na disputa de culturas diferentes para o controle da realidade, mares e rios, florestas e campinas povoaram-se

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de cardumes, bandos e rebanhos divinos ou infernais; penhascos tomados por gigantes, monstros humanos e canibais desenharam-se ao lado do caráter dócil, inocente e prestativo do selvagem associado à velha teoria da bondade natural ou do éden antes do pecado. Todas ficções plausíveis, verossímeis e socializadas, tanto na produção como na recepção, no processo da ação colonizadora, como argumenta o relato de Jean de Léry (1972, p.120), solicitando a cumplicidade do leitor. Não quero omitir a narração que ouvi de um deles [índios] de um episódio de pesca. Disse-me ele que, estando certa vez com outros em uma de suas canoas de pau, por tempo calmo em alto mar, surgiu um grande peixe que segurou a embarcação com as garras procurando virá-la ou meter-se dentro dela. Vendo isso, continuou o selvagem, decepeilhe a mão com uma foice e a mão caiu dentro do barco; e vimos que ela tinha cinco dedos como a de um homem. E o monstro, excitado pela dor pôs a cabeça fora d’água e a cabeça, que era de forma humana, soltou um pequeno gemido. Resolva o leitor sobre se se tratava de um tritão, de uma sereia ou de um bugio marinho, atendendo a opinião de certos autores que admitem existirem no mar todas as espécies terrestres.

Foram os olhos contaminados de pensamento da paisagem, utópica, paradisíaca do escrivão Pero Vaz de Caminha (1977, p.177) os primeiros a registrar as imagens da terra brasileira recém-descoberta, batizando-a de “graciosa”, e potencialmente rica, pois, ora “dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”. A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantástica do Renascimento é, no entanto, mínima, se comparada à dos letrados renascentistas europeus, e desproporcional, quando comparada às atividades de seus navegadores. Com o intuito utilitário de alertar os viajantes sobre os perigos, especialmente com os nativos – e seus rituais de canibalismo –, bem como lhes informar acerca das atividades extrativistas, de sujeição do gentio, das for-


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mas de coerção do colonizador, a cartografia desenha as peculiaridades do homem e das terras brasileiros. Pela cartografia, mais do que por poemas e relatos, os habitantes do Novo Mundo entraram no Renascimento português, embora por imagens ambíguas e distorcidas. Isso porque, sem consultar a correspondência dos jesuítas, residentes no Brasil, os artistas preferiam recorrer aos desenhos e pinturas produzidos na Alemanha, baseados em estereótipos de cenas, especialmente as de canibalismo, típicas do imaginário e da iconografia européia renascentista. Um descompasso se estabelece entre a forma dos personagens índios nos quadros – projetados em indumentárias indígenas – mas com significados estranhos às narrativas de viagem e relatos sobre o Brasil (Raminelli, 1996). A força, a crueldade e intimidação seriam pouco eficazes, em longo prazo, considerando a vastidão do território e a quantidade de habitantes nativos, em número muito maior que o de colonizadores. Afinal, as sociedades em confronto – conquistadores e nativos – lutavam a partir de suas respectivas e diversas percepções do real. Por isso, não contentes com a expropriação e o assassinato em massa os portugueses, necessitaram reivindicar, para si, o monopólio do sagrado e da definição da realidade. As crenças e a religião dos indígenas, expressas pela idolatria, constituem um saber que serve para pensar o corpo, o tempo, o espaço, as formas de poder, as relações domésticas e a sociabilidade (Gruzinski, 2003). No conteúdo dessa prática prevalecem a ambivalência dos deuses, a permeabilidade dos seres e das coisas, as transformações sutis e as múltiplas combinações, em oposição às dicotomias de sentido cristãs que resumem o “essencial do sobrenatural”: Ao apostar na interiorização dessas associações e desses esquemas repetitivos, a pedagogia jesuítica do imaginário opera, assim, nos mais diversos registros. Ela ultrapassa os limites da palavra e da imagem pintada, para instalar no efetivo, no subjetivo, a experiência indígena do além cristão. Explora as emoções como o medo e a angústia e integra-os à problemática do pecado e da danação, dissipa-as

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por meio de técnicas rituais como a confissão, a penitência, conduzindo à plena assimilação da temática cristã da salvação e da redenção. (ibidem, p.288)

O pragmatismo do colonizador português, por meio da cristianização posta em prática pelos padres da Companhia de Jesus, realiza, então, um aparente paradoxo: o senso prático executa a colonização do imaginário para redefinir o tempo, o espaço, a memória aos colonizados que irão sobreviver entre a opressão das ações brutais da dominação e o fascínio da nova apresentação da realidade baseada em imagens, encenações, apresentações, preenchimento dos espaços com capelas, conventos, igrejas; também com o novo ritmo do calendário marcado por festas, missas, feriados religiosos. Tudo sob o rígido controle da prática testamentária e da confissão, aliados à sedução do teatro, que explicava os dogmas por meio de seu espaço e sua materialidade. Uma série de confluências interessantes acontece nesse processo de domínio do imaginário. Uma cultura como a portuguesa, acostumada aos espetáculos como os das flagelações nas procissões da Semana Santa ou às visões e milagres embutidos como prova do poder divino, no cotidiano, há de defender a eficácia maior dos exemplos sobre as palavras; das imagens que os olhos vêem sobre aquilo que os ouvidos ouvem. Por isso, torna fundamental realizar, por meio dos sentidos, a conversão do gentio, musicando as missas e os oratórios e a espalhar aromas do incenso e do almíscar nas celebrações religiosas, que não somente produzem relíquias como reproduzem personagens, a ponto de os índios terem dificuldade para perceber que tudo se trata de uma apresentação. Assim, tanto o milagre como o sobrenatural estavam incrustados no cotidiano dessas duas culturas, por isso o extraordinário constituía-lhes uma forma de percepção do real. No caso português, a imaginação está inerente ao seu agudo senso prático e permitiu-lhe uma peculiar adaptação, tanto para colonizar, como para a criação local de riquezas.


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Na cultura brasileira, porém, incorporamos o milagre no cotidiano e a exceção tornou-se a regra, especialmente porque pela palavra literária, utilizando a paisagem, os escritores românticos criaram o país. Percebemos na interpretação dos valores, na sociedade brasileira, o registro por meio da memória coletiva de uma rede de códigos culturais, para a percepção da paisagem. A criação do “Novo Mundo” é exemplo marcante de que sentidos e valores são codificados no momento da contemplação de uma cena natural. Presos das concepções ainda medievais de paraíso e da relação mágica entre as semelhanças e os signos, formadora do saber das similitudes (Foucault, 1990, p.62), os homens reconheceram, com seus próprios olhos, as paisagens estampadas em sua memória, pelos sonhos descritos em tantos livros, por detalhes imaginativos intensamente reiterados, capazes de engendrar uma fantasia coletiva.

A construção romântica de paisagem A busca pelo conhecimento das terras brasileiras motiva, no século XIX, dezenas de expedições geográficas, botânicas, zoológicas, etnográficas, empreendidas por cientistas de diferentes nações. Em meio às pesquisas, havia o interesse comercial em obter novos bens e valores para enriquecer a economia e a vida da Europa. A expectativa em torno das imagens documentais, em relação aos viajantes, deve-se à perspectiva da história natural, especialmente depois de Lineu e seu Systema Naturae, obra de 1750, que organizou, sistematizou, descreveu e reduziu a diversidade, riqueza e dinamismo de plantas, e animais, na simplicidade aparente de um “visível descrito” (Foucault, 1990). Logo, observar é ver sistematicamente pouca coisa: ver aquilo que na representação pode ser analisado, reconhecido por todos e, assim, receber um nome que cada qual poderá entender: Desenvolvidas elas próprias, esvaziadas de todas as semelhanças. Depuradas até mesmo de suas cores, as represen-

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tações visuais vão enfim oferecer à história natural o que constitui seu objeto próprio: aquilo mesmo que ela fará passar para essa língua bem-feita que ela pretende construir. (Foucault, 1990, p.152)

Ao limitar e filtrar o visível, a estrutura ou a descrição baseada em série de valores (forma, quantidade, distribuição no espaço, grandeza relativa), permite-se transcrever a natureza em linguagem, com o acompanhamento de ilustrações perfeitas do ponto de vista botânico, mas artisticamente medíocres. Artistas contratados para essas funções rompem algumas vezes com a perspectiva encomendada para os desenhos, como foi o caso de João Maurício Rugendas. Quando em 1825 o pintor chega a Paris, procura a então famosa Casa Engelmann para publicar sua obra, resultante das anotações e desenhos de viagem pelo Brasil. Diferente da visão de documento para a botânica, tanto o editor quanto o seu amigo barão de Humboldt pensaram em consonância com a perspectiva romântica e civilizadora que deveria mostrar as imagens brasileiras de forma sedutora e construtiva. Isso implica considerar o pressuposto da animação e da organicidade que se integra a um sistema de representação, condicionado pelo relacionamento ativo do sujeito ao objeto. Os objetos são como núcleos de dinâmicas correlações, ordenadas por afinidades e por contrastes de imaginação (Nunes, 1993). É o nexo de simpatia que liga o artista às coisas, num mundo “feito de correspondências afetivas entre elementos heterogêneos, de harmonias realizadas entre termos antitéticos [...] esse mundo mágico rege-se pelo princípio de analogia” (ibidem, p.67). Rugendas aproxima-se dos preceitos da poética do pitoresco na apresentação da paisagem que traduz a relação de integração do homem com a natureza e a sociedade. Longe da sensação de medo, pavor e melancolia do indivíduo que não se sente acolhido pela natureza física, apresenta-se o total encantamento, a sensação de acolhimento que atenua a tensão entre o mundo natural dos trópicos e o homem europeu.


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Essa poética, numa via de mão dupla, permite que, indiretamente, a paisagem dos trópicos, tão difamada pelo pensamento do século XVIII, fosse integrada a uma proposta estética que se aproxima da própria natureza européia. Na mesma medida, tal poetização ou estetização permite a visão da natureza como fonte de estímulos à qual correspondem sensações que o artista interpreta, esclarece e comunica. Isso porque “a poética do pitoresco medeia a passagem da sensação ao sentimento: é exatamente nesse processo do físico ao moral que o artista educador é guia dos seus contemporâneos” (Argan, 1992, p.18). Daí acompanharmos a construção romântica do sertão com “auras impregnantes de perfumes agrestes” e o homem a comungar “a seiva dessa natureza possante” (Alencar, 1958, p.1019). Ou, ainda a paisagem urbana que integra a exuberância da natureza à sensibilidade do artista, “passeador solitário”, que registra em seu álbum de desenhos as “magníficas perspectivas que oferecem a cada passo as quebradas da serrania” (Alencar, 1959, p.703). O apaziguamento da tensão, produzida pela grandiosidade e pelo mistério da natureza tropical, realiza-se pelo abrandamento do sol a pino para a meia-luz pitoresca que harmoniza os contrastes, produzindo afinidades com a tradição ocidental: seduz o olhar do viajante que contempla a paisagem e cria elos de identificação afetiva para o homem brasileiro. A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras. Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples comparsa. (Alencar, 1958b, p.32)

Uma paisagem que congela o tempo, anula a tragédia do passado de destruição, e estabiliza, harmoniza o presente, na descrição exuberante da terra já desfigurada pela

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exploração predatória e grosseira da colonização. Na verdade, é o homem sem mais existência social, o indígena, projetado numa imagem estática de natureza, onde tudo é permanente, imutável, fixo. As matas são eternas, o ar sempre embalsamado, tudo reunido sob a harmonia grave. Grave, porém melancólica. Mas o escritor romântico ilumina, ainda que indiretamente, para o leitor a dificuldade para a construção de um conjunto, formado por sentidos díspares com os quais pretende elaborar a história, a noção de brasilidade para costurar uma identidade. A exemplo, a cena de uma festa em que se misturam, como num circo, a nobreza da terra, o povo e os heróis para assistirem a um torneio entre cavalheiros, no romance As minas de prata, de Alencar: Pelas janelas pendiam vistosas colchas da Índia com franjas e lavores de preço; uma infinidade de bandeirolas, flâmulas e galhardetes esvoaçava [...] A claridade do sol batendo de chapa sobre a imensa alcatifa de sedas e veludos, fazia cintilar as facetas das pedrarias, o polimento das armas e o lustro dos arneses, cujos reflexos brilhantes esguichavam como espadanas de uma cascata de outro. (Alencar, 1960, p.482)

Veludos, sedas, pedrarias e brasões, no entanto, sob a claridade do sol, produzem efeito contraditório, como alerta o narrador: “Ao primeiro lanço d’olhar, o painel se mostrava confuso e enredado, como os mosaicos chineses e os arabescos mouros” (ibidem, p.482). Confuso e enredado surge, portanto, o cenário marcado pela variedade de estilos e adereços distantes entre si e ante o espaço a que se destinam. Era preciso observar de perto e, só assim, cada objeto poderia tornar-se distinto, uma vez que a cena arrumada, em seu conjunto, confunde o olhar. A ação apresenta-se tão deslocada quanto os objetos aprendidos no seu todo: num terreno de colégio jesuíta, dá-se a encenação de jogos medievais entre cavalheiros de nobreza duvidosa porque seus brasões nobres têm, como única referência concreta, outros textos de fic-


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ção depositados como lembranças de coisas lidas e ouvidas, também na memória do leitor. É imprescindível criar para os brasileiros laços que os tornem naturais na própria terra, sem o melancólico desenraizamento, nem as frouxas amarras de uma tradição alheia, pela rigidez e pelo vigor da narrativa. Ao romantismo literário interessa o futuro: as imagens que lança como âncoras para o cotidiano dos homens, superando a distância geográfica, o silêncio do analfabetismo, para legitimar a fantasia (do paraíso, do bom homem cuja generosidade e alegria só podem figurar numa terra abençoada). Assim, sob a marcha do hino nacional, terra e homem, tudo se anuncia reunido, sob a bandeira do Cruzeiro projetada pela ficção romântica. As fissuras e os retalhos de que é feita essa bandeira, destoantes e confusos entre si, se tornarão evidentes no olhar do historiador artista ou no pincel sensível de Guignard.

O historiador artista e o pintor: fragmentos de paisagem O impacto com o cenário brasileiro e seus limites pouco definidos, cujas formas avançam para o decorativo e para o caprichoso, levou Alberto da Veiga Guignard (18961962) a questionar: onde e como estaria o sentido de brasilidade? O pintor percebe que nada tem a ver com o nacionalismo emblemático, mas pode ser apreendido nas tênues fronteiras entre o objetivo e o subjetivo, a convenção e sua prática, a regra e a encenação. Empreende, então, uma busca do Brasil por suas paisagens e cenas (cariocas, brasileiras), um dos primeiros a pintá-las quando o assunto nacional constituía polêmica. Para Guignard, interpretar o país e sua cultura significa apreendê-lo a partir de seu passado mítico, em planos visuais distintos das concepções racionalizantes, numa outra possibilidade de elaboração do moderno, além do emblemático sabor pau-brasil. Por tudo isso, a crítica considerou a sua obra “irregular”, embora necessariamente

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irregular, pois “passado o fulgor dos primeiros anos, nos devolve à nossa condição de pré-modernos e provincianos” (Salzstein, 1992, p.16). A busca do país realiza-se, na sua pintura, por um viés interno, diferente da idéia de uma racionalidade construtiva cuja tarefa, anunciada pelos modernistas, seria a formulação de uma nova cultura brasileira para melhor adequar o caos e a desarmonia tropical. Segundo os críticos, na execução dessa “busca” as irregularidades afloram no conjunto de suas obras e devem-se às variações que atropelam o equilíbrio entre a elaboração temática e a configuração formal, tais como a presença de exageros pitorescos com tendência ao caprichoso e decorativo, além da relativa freqüência de traços acadêmicos, na excessiva preocupação com o desenho. Talvez essas irregularidades indiquem, no entanto, a originalidade do olhar de Guignard para a cultura brasileira, capaz de problematizar a própria modernidade e, nesse conflito, integrar a arte produzida no Brasil à tradição européia. A conciliação entre esses dois mundos torna complexo o exame de sua obra, pois “uma espacialidade moderna emerge dela naturalmente, em estado bruto, talhada no atrito com as condições objetivas de um ambiente cultural como o brasileiro” (Naves, 1992, p.17). Parcimonioso em sua pincelada, evitando deliberadamente o impacto, suas telas transmitem uma impressão de leveza e perenidade, apesar de o pintor considerar fundamentais a técnica e o desenho. A preponderância da linha sobre a massa, a importância do desenho como elemento formativo da pintura de Guignard são percebidas até por leigos. Ao adentrar, cada vez mais, o imaginário cultural brasileiro, sua obra cresce em humanidade e nacionalismo, num sentimento de intimidade e cumplicidade com a paisagem e as cenas brasileiras, o que rendeu à sua pintura o qualificativo “nacionalismo lírico”: Dono de uma técnica apuradíssima nos anos de estudo da Europa, ele é, todavia, a própria negação do virtuosismo. Há na sua pintura uma espécie de ingenuidade que não


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vem da deficiência de técnica, mas do sentimento com que contempla a paisagem nativa, sobretudo a das velhas cidades de fisionomia colonial. Ele nos transporta evidentemente ao âmago do Brasil, e sua pintura tem uma nota enormemente enternecedora e íntima, cujo segredo é perceptível a qualquer coração brasileiro. (Navarra, 1945, p.17)

Análogo à série de convenções que pretendem explicar os hábitos e valores que compõem parcelas do sentido de brasilidade, encontramos na cultura brasileira o registro por meio da memória coletiva de uma rede de códigos culturais para a percepção da paisagem: compartilha-se uma tradição de paisagem construída por um vasto conjunto de lembranças, mitos e lendas que, além de acompanhar extensos períodos da história social, também molda instituições e ideais. Tais códigos culturais foram difundidos por diversos personagens de obras românticas, e naturalistas, além de viajantes europeus do século XIX. Seus olhares expressaram o projeto de ligar a arte ao conhecimento científico sobre a terra, o homem e o país. Nas primeiras décadas do século XX, o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) criou um personagem singular, e pouco conhecido, o historiador artista Gonzaga de Sá. Nos seus longos passeios pela cidade, retira da paisagem as camadas de estereótipos para reatar os laços de memória coletiva, pelo olhar, que religa natureza e história, passado e presente, lembrança e futuro. Consta que os historiadores devem chegar ao passado por meio de textos e documentos arquivados, empoeirados pelo passar dos anos a dormir em gavetas, caixas e pastas. No entanto, o arquivo de Gonzaga de Sá é o dos pés: é preciso tocar e vivenciar uma rua, um prédio, a paisagem, uma ruína. Para ele, casas, paredes, ilhas e palmeiras persistem ao longo dos séculos porque guardam a essência da vida conjunta do grupo que nelas viveu e essa se funde com as coisas. A conhecida autodefinição de Gonzaga de Sá resume sua perspectiva integradora de cultura, que rompe por meio das narrativas em torno da natureza ou

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da paisagem urbana que contempla – com a seqüência dos séculos em períodos e esquematização. A personagem é feita de fragmentos de cultura, reunidos e contraditórios entre si: “Eu sou o Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, seus negros, seus mulatos, seus cafuzos e seus ‘galegos’ também”. E o seu olhar configura ao presente um todo repleto de sentidos adquiridos pela rememoração. Vida e morte, passado e presente iluminam-se, reciprocamente, na delicada linha de consciência, desenhada com a memória, tornando-se planos equivalentes. As mangueiras centenárias, as águas do canal não constituem como nas canções românticas, imagens de um passado irremediavelmente perdido. A essa percepção integram-se os laços da memória que revelam os fragmentos de história, nas ruínas da paisagem. Essa abordagem não se coaduna com a antiga noção de invariabilidade absoluta da natureza, e a primeira brecha na imagem petrificada dos elementos naturais foi aberta por Kant, quando, em 1755, na obra História da natureza – e teoria do céu, considerou a Terra bem como todo o sistema solar como algo que se foi formando no transcurso do tempo. Com isso, desfaz-se, aos poucos, o rígido sistema de uma natureza orgânica invariavelmente fixa e percebe-se que o movimento da matéria não é apenas como a simples mudança de lugar: é calor e luz, tensão elétrica e magnética, associações e dissociações químicas, vida e, finalmente, consciência. Nas primeiras décadas do século XX, o olhar da arte para a paisagem, ampliado pelos inventos ópticos, desestabiliza as certezas deterministas, advertindo que não podemos, apenas, dominar a natureza como alguém situado fora dela: estamos, sim, no meio dela, sujeitos à influência recíproca. Daí que, ao sentido de dominar acrescenta-se a necessidade de regular as atividades produtivas sobre o mundo natural. Nesse contexto, podemos compreender a escavação feita em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá abaixo de nosso nível de visão convencional, com a finalidade de recu-


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perar os veios do mito, convenção e memória existentes sob a superfície, como a revelar o que expressam e o que provocam, na consciência de quem as contempla, “as palmeiras pensativas”, as montanhas ou o mar. Os sinais da terra não são apenas superficiais e exteriores: ligam a memória individual à sociedade e devem ser vistos somo totalidade e permitem, nas palavras de Walter Benjamin, a revelação da aura da realidade, isto é, a junção de elementos espaciais e temporais, numa aparição única de uma coisa distante. Fazer, assim, as coisas se aproximarem de nós, pelo fio da memória e sem o auxílio da técnica para reprodução. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho. (Benjamin, 1987, p.41)

Gradativa e intensamente, tanto os aspectos que definem o personagem quanto a sua concepção de história e cultura movimentam-se do individual ao social, do particular ao geral, buscando no conjunto os extremos, a disparidade contraditória para transitar entre diferenças; os seus passeios e observações traduzem a sensibilidade para olhar a paisagem, investindo-a do poder de também emitir linguagem contar história. Olhei o canal, segui com o olhar as mangueiras centenárias do Galeão, demorei-o sobre as paredes enegrecidas do ilhote; e, quando pousei os olhos nas águas mansas do canal, como que vi as canoas de Estácio de Sá com os seus frecheiros e mosqueteiros deslizarem, levando o conquistador para morte... (Lima Barreto, 1956, p.61)

No romance Triste fim de Policarpo Quaresma, o artista Ricardo Coração dos Outros dialoga com o personagem Gonzaga de Sá, pela afinidade em “colher”, com o olhar, pedaços de história humana nos fragmentos da cidade. Do olhar do músico brota a síntese e a alma da cidade e sua gente – “bela, grande e original” – em fragmentos que se

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costuram, delicada, mas não perfeitamente, a partir das marcas humanas incrustadas na paisagem. No caso de Guignard, o espaço se instaura nos seres, retirando quase toda a sua solidez, no dizer de Frederico Morais (2000, p.266), “como se a sua pintura e seu desenho fizessem o próprio veículo de imaginação da paisagem”. Enquanto o pintor enche os espaços com detalhes, o espectador penetra no interior de um tempo que, por apegar-se à reminiscência, deixa de ser homogêneo e vazio e, por isso, a plenitude dessa paisagem realiza-se em nós porque, a partir dela, recordamos. Assim, a temática brasileira apura-se em suas telas nas trincheiras da memória e alcança a forma de uma experiência íntegra, essencial de visão: as superfícies pintadas apresentam uma contigüidade tão sutil, uma projeção de lugares à distância tal a projeção da memória. Converte tudo, montanhas e homens, terras e nuvens em matéria em suspensão como a desconfiar, tanto da certeza de marcos e registros quanto da própria solidez dos objetos. Isso permite a coexistência entre a aparência amena da realidade e o bizarro; a festa e o trágico; a nostalgia e o futuro, a configuração, enfim, do conteúdo da nossa modernidade – uma complexa e (dolorosa) continuidade. Ao adentrar cada vez mais no território brasileiro, sua obra cresce em humanidade e nacionalismo, na mesma proporção em que, também, paisagens e tipos humanos tornam-se mais irreais, aéreos, feéricos, pois fatos e objetos se superpõem fora de qualquer lógica espaciotemporal. Em Paisagem imaginária (1961) (Figura 1), realiza-se um ordenamento espacial horizontal; aos poucos o espaço é preenchido por pequeninos detalhes – balões, trens, igrejas –, respeitando a perspectiva aérea: tons quentes no primeiro plano, frios no último, e entre eles toda uma gradação. Tudo se configura a partir de uma luz interna que parece comandar o movimento das figuras. Assim, a paisagem não se ilumina de fora para dentro, com limites precisos e exuberantes; ao contrário, dilui-se a magnitude das montanhas perdendo-se ao infinito, sob a superfície de bruma e nostalgia.


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O olhar crítico e desconfiado de Guignard quanto ao poder de dar forma ao mundo interseciona-se com a desconfiança do narrador ante seu texto, do escritor que suspeita da eficiência da linguagem para a expressão de um mundo fragmentado. Assim como para o personagem historiador artista de Lima Barreto, os limites entre o real e o poético, a objetividade e a subjetividade não são muito precisos, por conseqüência a noção de brasilidade – no texto e na tela – nada tem a ver com as expressões do nacionalismo naturalizado na paisagem. Firma-se o vínculo que sustenta o olhar para a paisagem – a memória – que traz à tona o legado ambíguo da natureza, isto é, o de engendrar uma linguagem silenciosa, mítica, que resgata tradições sob a aparente tranqüilidade da vista amena; a memória também permite revelar as ficções guardadas nos estereótipos culturais, entre elas as imagens de exuberância e pitoresco conferidas à natureza. A esse tempo, passava, olhando tudo com aquele olhar que os guias uniformizaram, um bando de ingleses, carregando ramos de arbustos – vis folhas que um jequitibá não contempla! Tive ímpetos de exclamar: doidos! Pensam que levam o tumulto luxuriante da mata nessa folhagem de jardim! Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas, o clima, o eito, para que possam sentir nas baixas células do organismo a beleza da senhora – desordenada e delirante natureza do trópico de Capricórnio!... E vão-se, que isto é meu! (Lima Barreto, 1956, p.42)

Fonte da Ilustração Paisagem imaginária Óleo s/tela, 61 x 46 cm, 1961 Museu de Arte de Pampulha, BH

Se, por um lado, a reflexão do narrador revela o conteúdo da estereotipia cultural; por outro, supera a visão maniqueísta para o estrangeiro, numa clara afirmação de que a cultura brasileira está imersa no movimento do mundo e suas influências, especialmente o intercâmbio de valores e idéias por meio da arte, importante para o conhecimento e autoconhecimento. O pintor e o historiador artista realizam a imagem “do país feito de pensamento da paisagem”, pois, segundo Rodrigo Naves (1997), avessa à definição, a pintura de


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Guignard levanta ainda uma interrogação sobre seu tempo e a época que retrata, numa contraposição entre o típico (palmeirinhas, igrejas e balões) e o lugar-nenhum, com lembrança de construções imaginárias, de brumas antigas. Entre o orientalismo de Gustave Moreau e a fantasia de Odilon Redon, Guignard traça sua geografia da proximidade. Estar aqui é estar em toda parte. Não existem distâncias – muito menos acidentes geográficos ou caminhos – nesse mundo nublado. (ibidem, p.138)

A superfície vacilante e a topografia ambígua da Paisagem imaginária, de Guignard, confundem distância e proximidade e guardam o valor da ruína como monumento e evocação: resgata os fragmentos da paisagem nos vestígios vivos e ativos da memória cultural e, ao mesmo tempo, dissolve-os, diluindo suas inscrições espaciotemporais. Esse paradoxo remete, no entanto, ao cerne da construção do pensamento da paisagem: suas ruínas indicam a presença ainda forte, e próxima, do olhar do colonizador e das marcas da estetização do espaço, na mesma medida em que parece querer dela se distanciar, levando o espectador para lugar e tempo vago, e nebuloso, da cultura ocidental. Ao permitir a ambígua relação entre identificação e estranhamento, proximidade e distância, a pintura de Guignard dialoga com a literatura e revela-nos as ruínas e fragmentos, de paisagem, que evidenciam o domínio do imaginário e o processo de estetização como marcas significativas de nossa formação cultural.

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RESUMO:

Ao nosso século chegaram, entre muitas outras, três mulheres particularmente marcadas pelo desejo: Heloisa (11011142), cuja história de amor com o famoso intelectual da Idade Média Pedro Abelardo ultrapassou o século XII; Mariana Alcoforado (1640-1723), freira portuguesa reclusa em um convento de Beja, apaixonada pelo conde Noel de Chamilly; a filha do escritor francês Victor Hugo, Adèle Hugo (1830-1915), que se lançou em desesperada viagem à cidade de Halifax, no Canadá, e à ilha de Barbados, em obsessiva busca do oficial Albert Pinson. Objetivamos refletir, neste breve estudo, a partir do conceito de cristalização, criado por Stendhal, na obra Do amor, se a incompletude amorosa, observada em suas vivências afetivas, configurou um conhecimento transformador ou se estabeleceu a perda do referencial da realidade. PALAVRAS-CHAVE:

* Professora adjunta de Literatura e Língua Italianas do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IL-UERJ). Doutora em Literatura Comparada (UFRJ), tradutora.

Cristalização, amor, incompletude.

ABSTRACT : Among many others, three women particularly marked by desire has come to this century: Heloisa (1101-1142), whose love story with the famous intellectual of the Middle Ages, Pedro Abelardo, surpassed the 12th century; Mariana Alcoforado (1640-1723), the Portuguese nun secluded in a convent in Beja, who was in love with Earl Noel de Chamilly; and the daughter of the French writer, Victor Hugo, Adéle Hugo (18301915), who went desperately to Halifax, in Canada, and to Barbados in a frenetic search for the officer Albert Pinson. With basis on the concept of crystallization created by Stendhal, in his masterpiece Do amor, this brief work aims at reflecting on whether the incompleteness of love, observed in his love experiences, has shaped a transforming body of knowledge or has established the loss of reference to reality. KEYWORDS:

Crystallizatio, love, incompleteness.


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Pressupostos de leitura Ao nosso século chegaram, entre muitas outras, três mulheres particularmente marcadas pelo desejo: Heloisa (1101-1142), cuja história de amor com o famoso intelectual da Idade Média, Pedro Abelardo ultrapassou o século XII; Mariana Alcoforado (1640-1723), freira portuguesa reclusa em um convento de Beja, apaixonada pelo conde Noel de Chamilly; a filha do escritor francês Victor Hugo, Adèle Hugo (1830-1915), que se lançou em desesperada viagem à cidade de Halifax, no Canadá e à ilha de Barbados, em obsessiva busca do oficial Albert Pinson. Objetivamos refletir, neste estudo, a partir do conceito de cristalização, criado por Stendhal, na obra Do amor, se a incompletude amorosa, observada em suas vivências afetivas, configurou um conhecimento transformador ou se estabeleceu a perda do referencial da realidade. Para discutirem-se os apaixonados comportamentos dessas mulheres – separadas pela diferença cronológica, porém unidas pela identidade atemporal de busca do prazer –, utilizamos as cartas de Heloisa e de Abelardo, aceitas por alguns não como verdadeiras, mas provável retomada do famoso caso de amor; as Cartas portuguesas, polemicamente atribuídas à religiosa; e o filme Adèle H. cujo diretor François Truffaut, em 1975, baseou-se em escritos pessoais das tortuosas vivências da protagonista, posteriormente romanceadas e adaptadas para o cinema. O material de estudo sobre Mariana e Heloisa – para François Villon, na Ballade des dames du temps jadis, “la très sage Heloïs” – tornou-se alvo de controvertida investigação, quanto a se tratarem, ou não, de um artifício imaginativo. Para este trabalho, no entanto, valorizou-se a mensagem humana encerrada nos textos das correspondências amorosas, sem nos afetar o juízo da autenticidade. Dessa forma, sejam tais documentos produto de intensa paixão vivida historicamente ou fruto de ficção em primeira pessoa, o essencial a ser discutido é a força do sentimento que os provocou. Adotamos então o mesmo

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critério para a correspondência de Heloisa e Abelardo do século XII, e de Mariana Alcoforado. Citamos Paul Zumthor, que classifica a história de Heloisa e Abelardo, por sua ambigüidade, de “tragédia (no sentido medieval do termo: ação com um final infeliz), mas também comédia, com uma conclusão regeneradora...” (in Abelardo, 1989, p.1). Adotamos sua opinião, ao sublinharmos sua advertência: A maioria dos medievalistas está hoje de acordo em ver na Correspondência, não o resultado puro e simples de uma colagem de cartas originais, mas um dossiê organizado: não certamente falso, mas uma “obra”, na medida em que essa palavra implica intenção e estruturação. Se o lugar de origem, no espaço e no tempo, desta “obra” continua sujeito a discussão, pelo menos não resta dúvida de que o monastério do Paracleto, perto de Provins, no Champagne, foi o primeiro a possuí-la. [...] Pouco importa: narração fictícia ou confissão autobiográfica, o texto traz seu próprio sentido, engendrado nesse lugar utópico em que ressoam os ecos de um mundo (o dos séculos XII e XIII) contra o qual ele se constrói, assimilando-o. Abelardo e Heloísa (designo assim de ora em diante os “personagens” revestidos desses nomes) alinham-se na longa série de religiosos e religiosas que o laço epistolar e alguma ternura uniram através do espaço, desde São Jerônimo e Eustóquia, Fortunato e Santa Radegunda. (ibidem, p.3-6)

Sem dúvida, Paul Zumthor captou, magnificamente, em sua análise, um movimento perene de cristalização dominante nas cartas de Heloisa, ao estabelecer que a apaixonada jovem experimentara dois inegáveis ritos de passagem: o primeiro, ao conscientizar-se da impossibilidade de concretiza seus desejos; o segundo, ao ter de levar a existência em um processo de autoconhecimento, recolhida no claustro. Encontramos talvez um final similar no caso de Mariana Alcoforado, da mesma forma resignada a levar até o fim sua condição de religiosa. A história de Adèle Hugo engloba personagens e fatos comprovados histórica e textualmente, porém sem sus-


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citar polêmica ou refutação. Sua vivência, escrita por ela mesma, em resmas de papel, em vários momentos de seu exílio de ordem geográfica, espiritual, psicológica e sentimental, eternizou-se no Journal d’Adèle Hugo, publicado por Frances V. Guille, em 1969. Como já comentamos anteriormente, esse documento serviu de base para o roteiro do filme. Eternizadas como figuras literárias, cujas representações delinearam rostos culturais marcados pela diferença, mas com traços comportamentais de nítidas semelhanças, essas três mulheres, ou personagens na visão de P. Zumthor, serão observadas preferencialmente sob a mirada de um tratado moderno de amor escrito por Stendhal. A seguir, tentaremos sintetizar os elementos essenciais de sua obra Do amor, antes de refletirmos sobre as figuras das mulheres propostas para apresentação e análise de suas turbulentas vivências amorosas.

A cristalização ou o ramo de Salsburg O tema da cristalização, escolhido para nortear este ensaio, advém do livro Do amor, de Stendhal (1993), sua obra preferida, embora tenha sido grande infortúnio de livraria. Conforme o renomado comparatista Pierre Brunel (1992, p.468-9), no De l´amour, dentre tantas qualidades (traduzimos) “o escritor conseguiu tornar seu livro atraente por sua fidelidade ao idealismo cortês, ao amor sem manchas” (Stendhal, 1993, p.468). Para Brunel, tal concepção encontrará viva ilustração na obra romanesca stendhaliana, por refletir o pensamento profundo de que o amante prefere sonhar com a amada, em vez de receber de uma mulher vulgar tudo que ela pode dar. Tanto de nossa leitura pessoal como da abalizada opinião crítica de Brunel, depreendemos que esse ensaio sobre a psicologia da paixão é fruto de uma alma envolvida e preocupada em estudar o amor, além de nele investigar também suas experiências amorosas, durante longa estada na Itália. Compartilhamos as palavras do comparatista

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francês, já que entendemos estar a originalidade de sua escrita, entre outros fatores, em comentários sobre o amor cortês e as cortes de amor dos séculos XII-XIII. Para Stendhal (1993), o Do amor seria uma espécie de descrição exata e científica de uma espécie de moléstia rara na França de seu tempo, seria um estudo circunstancial de todas as fases de uma doença da alma chamada amor. Na segunda parte do livro, em criativo papel de geógrafo e de historiador amoroso, ele “aplica à vida sentimental a teoria dos climas” (Brunel, 1982, p.469). Na primeira, Stendhal (1993, p.3) faz uma classificação do amor, confessando “admitir oito ou dez matizes” da emoção afetiva, porém enumera apenas quatro: “amor-paixão, amor-gosto, amor físico e amor-vaidade”. O primeiro ligase à literatura portuguesa, já que ao comentá-lo exemplifica-o com o amor “da religiosa portuguesa” (ibidem, p.3), aludindo ao caso de Mariana Alcoforado, ao de Heloisa e Abelardo. Nessa “fisiologia do amor” (ibidem, p.LVII), a cristalização, além de metáfora utilizada para tentar apreender o trabalho interior de envolvimento amoroso, é um dos “sete estágios por que passa a alma” (ibidem, p.5), durante o ciclo de instauração do sentimento. O interessante e cristalino fenômeno, de origem química, é presenciado pelo escritor, durante uma viagem a Hallein, perto de Salzburg. Explica-nos que os trabalhadores das minas de sal da cidade jogam no fundo do terreno galhos de árvores já ressecados pela ação do inverno. As águas da chuva e da neve, saturadas de sal, umedecem os ramos e, alguns meses depois, com a evaporação do líquido, secam e ficam todos cobertos de brilhantes cristalizações. Como observa o romancista, nesse estágio já não é mais possível reconhecer os primitivos galhos que, transformados pela ação da natureza, são oferecidos como “ramos de diamantes aos viajantes que se preparam para descer na mina” (ibidem, p.275). Essa maravilhosa oferenda de cristal aproxima poeticamente o processo químico do amoroso, identificando-o com um sutil movimento “do espírito que extrai de tudo o que se


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apresenta a descoberta de que o objeto amado tem novas perfeições” (ibidem, p.6). Semelhante ao crescendo musical, a cristalização amorosa avança lentamente, “dá a audácia de amar [...], porém, a partir do momento em que [se] ama, não [se] vê nenhum objeto tal como é” (ibidem, p.22). Stendhal enfatiza tal experiência ao representá-la como certa “figura de imaginação que torna irreconhecível um objeto, o mais das vezes bastante vulgar, e faz dele um ser à parte” (ibidem, p.338), em especial, diferente de todos os outros. Sugere-nos, ainda, uma experiência sinestésica, ao imaginar que “a cristalização deve ter a cor dos prazeres” (ibidem, p.21) de quem ama, por isso, talvez, afirme que a alma se perturba demais pelas emoções e pela felicidade de amar, para estar atenta à enganadora e progressiva “divinização de um objeto” (ibidem, p.19). Após instalar-se sob efeitos “cristalizadores”, a felicidade e o amor podem sofrer controvérsias, levando o amante à dúvida sobre as coisas mais simples. A insegurança e o medo de que o estado paradisíaco acabe provoca a segunda cristalização, “muito mais forte porque acompanhada de temor” (ibidem, p.14). Para ele, tal estado de alma e de espírito é estimulado por um “delírio nervoso que faz nascer prazeres [...] sensíveis e raros” (ibidem, p.4), durante esse estágio da relação amorosa. O criador de Madame Bovary, com a teoria da cristalização, faz uma imaginativa prospecção psicológica na alma do amante, associando, de forma disseminada por todo o texto, o amor com a busca da felicidade e também da beleza. Quanto a essa categoria, o livro se aproxima do Banquete, de Platão, referência e orientação constantes nos estudos sobre o amor e o erotismo. O sentido estético do amor stendhaliano sugere um diálogo entre a idéia de cristalização e a de beleza, também discutida por em Platão. Acima de tudo esteta e apaixonado, Stendhal (1993, p.3) confessa o desejo de “ter uma idéia clara da paixão, cujos desenvolvimentos têm todos um caráter de beleza”. Em breve alusão ao filósofo grego, lembramos que o questionamento filosófico do amor não pára apenas no

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sentido de, por força de sua dupla origem, ele tentar suprir a falta e o desejo, a carência de beleza, herdados da mãe Pênia; nem no de aparentar força e opulência, efusão capaz de chegar à posse do bem e do belo, a exemplo do pai Poros, cuja etimologia “quer dizer ‘que abre uma passagem’” (Droz, s.d., p.45); muito menos se prende somente à sensação do primitivo corte, o castigo infligido aos primeiros homens, para que fossem punidos por sua audácia em tentar quebrar a hierarquia, em lutar com os deuses. O amor, em Platão e em Stendhal, não será unicamente um nostálgico reencontro, apenas um “fecho sobre a unidade reencontrada, será parto criativo” (Droz, s.d., p.43). O caminho da beleza, que percorremos esteticamente a partir da leitura do ensaio de Stendhal e trilhamos com auxílio das teorias de Platão, remete-nos a comentários sobre a obra do filósofo grego: O amor é muito mais que a tensão de dois seres um para o outro; não envolve apenas dois termos cuja fusão seria a finalidade ideal e o desfecho conseguido, ele engendra um terceiro: um “rebento”, um pensamento, uma obra. O amor é “parto da beleza”, segundo a alma e o corpo”, é fecundo, procriador ou mais geralmente criador. Longe de encerrar dois seres numa unidade hipotética, a de um passado perdido, convida à superação, abre para o inédito e assegura pela geração a passagem da mortalidade à imortalidade. (Droz, s.d., p.43)

Releitura das cartas de Heloisa e Abelardo Antes de irmos em busca dessas famosas cartas medievais, convém lembrar o que provocou a correspondência entre os dois enamorados. Convidado por Fulbert, cônego de Paris e tio de Heloisa, Abelardo vai morar em sua residência, com o objetivo de orientar intelectualmente a jovem parisiense. É pela voz masculina do cativante professor que conhecemos sua admiração, com a ingenuidade do anfitrião Fulbert, em relação à sobrinha, sendo capaz de confiar “uma tenra


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ovelha a um lobo esfaimado, [...] um mesmo teto nos uniu, depois um mesmo coração, trocávamos mais beijos do que proposições sábias” (Abelardo, 1989, p.41-2). Declara que essa paixão voluptuosa, encharcada de sal cristalizador, tomou por inteiro eles dois; negligenciava a filosofia, além disso, dar seus cursos provocava-lhe um tédio violento; também diz consagrar suas “noites ao amor, seus dias ao estudo: escrevia “pelo amor, não pela filosofia” (ibidem). O que todos já sabiam, Fulbert soube por último e os separou, mas, pouco tempo depois, Heloisa percebe estar grávida. Abelardo raptou-a, levou-a para a casa da irmã, na Bretanha, até o nascimento de Astrolabe. A fuga transtornou ainda mais o velho cônego, envergonhado perante Paris. Para o filósofo, a única forma de tudo ser reparado era o casamento, porém a ser mantido em segredo. Ainda sob o fluxo de uma cristalização ascendente, Heloisa não aprovou a idéia: tal união colocá-lo-ia tanto em perigo – pois sabia que o tio não perdoaria – como em desonra, já que todos seriam roubados do convívio intelectual de “um luminar tão grande” como Abelardo (ibidem, p.44-5). Ela pensava que, entre a filosofia e um casamento, havia grande e intransponível obstáculo, por isso preferia o título de amante ao de esposa, ligando-se a ele por ternura, não pelo casamento. Apesar de sua crescente transformação química, em processo de brilhante cristalização, desejosa da presença constante do outro, Heloisa ponderava e admitia que a figura do intelectual talvez ficasse prejudicada, no que tocava sua posição de clérigo, em especial junto aos alunos. Abelardo insiste e os dois se casam secretamente em Paris, porém logo se separam, a fim de dissimularem o que se passava. Fulbert e seus mais próximos violaram a promessa, propagaram a novidade, talvez com a intenção de desmoralizar o teólogo. Para tentar mascarar a difícil situação criada pelas afirmações do tio e as negativas da sobrinha, Abelardo enviou Heloisa para a Abadia de Argenteuil, onde ela crescera e recebera instrução. Tomado pelo ódio, o preceptor

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de Heloisa reúne um grupo de sicários, que suborna um servidor de Abelardo. Introduzidos no quarto onde dormia, atacam e castram o filósofo. Diante da irreversível situação, Abelardo nega qualquer esperança de continuarem vida juntos, decisão que suscitaria uma série de revoltadas palavras quanto aos inesperados rumos de seus destinos. As cartas testemunham, antes de tudo, uma personalidade fora de sua época, por defender idéias bastante avançadas e conflituosas para o mundo medieval. Vibrando em outra realidade, envolta no movimento descentralizador exposto por Stendhal, Heloísa repudiava o casamento pelo perigo e pela desonra em que Abelardo cairia. Talvez também tivesse seu corpo julgado pela sociedade como diabolizado, sem dignidade para a moral vigente, ao decidir pela solução do amor livre. Georges Duby (1995, p.58) delineia muito bem essa figura de mulher fora do seu tempo: “Desde Jean de Meung, a Heloisa de nossos sonhos é a campeã do amor livre que rejeitou o casamento, [...] é a rebelde que enfrenta o próprio Deus; é a heroína muito precoce de uma liberação feminina”. Obstinavase na alegação de que o casamento acabaria com o prestígio do mestre e do pensador, “não querendo fazer coisa que viesse a competir com a filosofia” (Abelardo, 1989, p.102). Além disso, tentando dissuadi-lo, acrescenta à carta ser perigoso voltar a Paris, preferia ser chamada de amante a esposa, pois seu desejo, ou, para nossa leitura, sua labiríntica cristalização, era conservá-lo “só pelo encanto e não devido à força do laço nupcial” (ibidem, p.105). Com esse verdadeiro convite à beleza, sugere ser muito mais prazeroso os encontros após breves separações. Também indaga: que relação pode haver entre escrivaninhas e berços, livros ou tabuinhas de escrever e uma roca, estiletes e fusos? Por fim, quem poderia, aplicando-se às meditações sagradas ou filosóficas, suportar o vagido das crianças, as cantarolas das amas que as embalam e a multidão barulhenta da família [...]? Quem poderia também tolerar aquelas contínuas e desprezíveis sujeiras das crianças? [...] nem aqueles que se


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dedicam às riquezas ou se envolvem com as coisas profanas têm tempo para os deveres sagrados ou filosóficos. (ibidem, [p.105)

Do convento do Paraclet, para onde se transferira, escrevia e respondia uma série de cartas. Em uma delas, Heloisa diz ter sido o acaso que lhe fez passar entre as mãos uma carta de Abelardo a um amigo. Hoje sabemos ser a tal carta um texto confessional, bastante introspectivo, denominado “História das minhas calamidades”, carta em que podemos encontrar vários pontos elucidativos sobre os dois, ao contar sua vida desde jovem até a separação de Heloisa. A chegada dessa carta de Abelardo ao convento do Paraclet provocou um infinito prazer e consolação, pois afirma: “já que havia perdido a presença corporal daquele que a havia escrito, ao menos as palavras reanimariam um pouco para mim a sua imagem” (ibidem, p.89). Em seguida, confessa, em amargura: “essa carta, quase a cada linha, encheu-me de fel e de absinto...” (ibidem, p.89). Em outro trecho, o descontentamento amoroso dialoga com os votos de erótica clandestinidade e de terna submissão, quando repete: O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto, o de amiga sempre me pareceu mais doce. Teria apreciado, permite-me dizê-lo, o de concubina ou de mulher de vida fácil, tanto me parecia que, em me humilhando ainda mais, aumentaria meus títulos a teu reconhecimento e menos prejudicaria a glória do teu gênio. (ibidem, p.95)

Continua em delirante desconforto afogado em sal: por um efeito inacreditável, meu amor tornou-se tal delírio que se arrebatou, sem esperança de jamais recuperar o único objeto do seu desejo, no dia em que, para te obedecer tomei o hábito e aceitei mudar de coração. Provei-te assim que reinas como único senhor tanto sobre minha alma como sobre meu corpo. (ibidem, p.95)

A decisão de Heloisa em abdicar dos valores tradicionais do casamento, tão caros à Igreja, leva-nos a incluí-la

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entre as que, no século XX, em constantes movimentos reivindicatórios, questionaram a verdadeira condição feminina. Para a Idade Média, em relação ao amor, os hábitos se mostravam em duas imagens aparentemente contraditórias: a de um mundo feudal de viris conquistadores, em que as mulheres são presas dos homens; e a do amor cortês, do gentil trovador curvado diante de sua dama idealizada, nunca tocada. Apesar dos mitos transformadores do amor cortês, a dicotomia existente entre mundo guerreiro e exaltação da mulher, porém, coabitou, muito bem, na literatura, e a documentação existente sobre o amor medieval é de teor literário e iconográfico: Tristão e Isolda são um belo exemplo de amantes ficcionalmente envoltos pelo cristal do amor. Abelardo e Heloisa talvez tenham sido os únicos casos a deixar testemunho histórico dessa documentação, além de se tornarem figuras emblemáticas. Pelo fato de conhecerem uma paixão secreta ainda fora do casamento, Abelardo foi agredido e Heloisa enviada para o claustro, seguindo desejos do teólogo e filósofo. Cheia de dor pelo amante, de alma inconformada, considera a situação e exclama: Eu não tenho a esperar recompensa divina, pois que não foi o amor de Deus que me guiou. Acompanhei-te no claustro, que digo? Eu te precedi. Meu coração me abandonou, ele vive contigo. Sem ti, ele não pode mais estar em parte alguma. Mas que me resta esperar, agora que te perdi? De que adianta prosseguir essa jornada terrestre em que eras meu único apoio? De que adianta, uma vez que tua presença me foi roubada, ela que somente podia me devolver a mim mesma? (ibidem, p.113-14)

De forma mais agressiva, insurge-se contra as disposições do destino, mais uma vez se revolta, desafia a figura divina e assinala a diferença da expiação dos dois: Devo eu, com efeito, confessar-te toda a debilidade do meu miserável coração? Não consigo suscitar em mim um arrependimento capaz de aplacar Deus. Não cesso, ao contrário, de acusar sua crueldade a teu respeito. Eu o ofendo


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com movimentos de revolta contra sua vontade, em vez de pedir, pela penitência, sua misericórdia. [...] Ele te era mais propício, [...] não hesita em infligir um sofrimento se a cura dele depende. Ao contrário, eu ardo todas as chamas que atiçam em mim os ardores da carne, as de uma juventude ainda muito sensível ao prazer, e a experiência das mais deliciosas volúpias. (ibidem, p.118-20)

valores tão caros à Idade Média. Essa e tantas outras tópicas circulantes no imaginário da cultura medieval revivem, atualizam-se constantemente por representarem valores eternos da humanidade.

Restou da famosa união uma atmosfera de tortuosa infelicidade, provável fator de agigantamento da discutida e célebre relação amorosa, que, sem chegar ao destino desejado, permaneceu viva na memória de homens e mulheres. Mas a tópica dos amores infelizes sempre repertoriaram obras, como, no século XIV, a quarta jornada do Decameron, na qual Giovanni Boccaccio eternizou contos sobre amores que terminam em uma situação de dor. Denis de Rougemont (1972, p.121) refletiu sobre o amor no imaginário ocidental. Em sua importante obra, nos afirma: “Heloísa e Abelardo primeiro vivem, depois tornam público, em poemas corteses e em cartas, o primeiro grande romance do amor-paixão de nossa história”. Adverte-nos para um irremediável processo de turbulentas cristalizações, ao concluir que:

Verticalizando, porém, a discussão, tanto no caso de Mariana como no de Adèle, o nascimento e a instauração do amor na vida das duas mulheres se dá sob os auspícios de um Eros anárquico, comentado por Erixímaco, no Banquete, considerado destruidor da ordem. Essa forma de sentimento confirma-se em Stendhal (1993, p.231), ao declarar que “a cristalização ordena as coisas de modo diferente” daquele arbitrado pela sociedade. De fato, a raiz anárquica da emotividade estudada pelo romancista sugere um movimento destruidor de convenções e de preconceitos, sendo contrário ao ethos organizador. Para Mariana e Adèle, o amor se apresentou como sentimento caótico, de razão e lógica distintas dos conceitos estabelecidos. Portanto, um primeiro elo identificador das amantes seria o exacerbado nascedouro da paixão amorosa, aliado à desenfreada emotividade. O sentimento por elas experimentado configurou atitudes audaciosas. A condição de freira não impediu que Mariana se aproximasse de Chamilly, nem que Adèle Hugo viajasse pelo mundo, à procura do homem amado, o oficial inglês Pinson, impedido por Victor Hugo de com ela relacionar-se. No filme de F.Truffaut, Adèle problematiza, consideravelmente, sua descendência famosa e tenta manter em segredo seu nome e sua origem. De índole sugestionável, e envolvida pelo mundo dos espíritos, tinha constantes pesadelos com a irmã Léopoldine, tragicamente morta em acidente de barco com o marido, além de experimentar fenômenos do tipo das mesas falantes, tão em voga à época. Durante todo o tempo em que se manteve “lúcida” para o mundo das convenções, ela escreve suas experiên-

[...] O amor feliz não faz história. Só há romance de amor mortal, ou seja, o amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que exalta o lirismo ocidental não é o prazer dos sentidos, nem a paz fecunda do casal. É menos o amor realizado do que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. (ibidem, p.15-16)

Nem o tema nem as figuras de Abelardo e Heloisa, denominados por Zumthor “esse casal sideral, em torno de quem gravita um universo eternamente outro” (in Abelardo, 1989, p.10), se perderam no emaranhado de tantas experiências amorosas do Ocidente. Nos seus rastros, homens e mulheres tentam lutar, siderar contra o esquecimento total de si. Por isso, o tema aqui proposto para reflexão permanece atual, em iluminada concepção de mundo, na tentativa de preencher o vazio da falência de

Um amor de perdição em Portugal


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cias que, mais tarde, seriam um verdadeiro diário confessional, onde investiga a realidade já vivenciada e a que objetivava alcançar. Estabelece, ainda, considerações extasiadas sobre as relações humanas, especialmente sobre a influência do amor em seu espírito, em sua atormentada vida. Para se convencer ou se libertar da opressiva imagem paterna, Adèle se revolta, repete várias vezes ser “filha de pai desconhecido”. Mas a palavra desconhecido, ambiguamente, toma o sentido de “não-conhecido” e/ou “não-existente”, aludindo, pois, à vontade de anular o antigo domínio do pai. No entanto, F.Truffaut constrói a oculta figura de Victor Hugo entre castradora – por impedir o romance e o casamento – e liberadora, ao mantê-la no exterior, com vultosas somas e, ao final, deu-lhe a tão desejada permissão de casamento. No filme, o diretor francês sugere a ambigüidade da figura do pai – personagem oculta, mas tão presente – na forma com que lê as cartas enviadas à filha: voz em off, carregada de doçura, serenidade e sofrimento por toda aquela situação. Mesmo cercada de densa atmosfera sentimental difícil de ser transposta, Adèle não volta para a França; investiu em seus alucinados desejos. As ligações familiares, marcadas pelo trágico, ameaçavam interferir em seus objetivos de liberdade sentimental. Nem o exílio do pai nem a ameaça de morte da mãe ou a comovente sugestão de voltar para casa demovem a irredutível amante que, de forma obstinada, segue então para Barbados, possuída pela cristalizadora idéia de vitória do amor. A crise se instala no momento da negativa do oficial Albert Pinson em reatar o romance, apesar da carta de autorização de casamento, enviada por Victor Hugo. Inúmeras vezes, em momentos de desespero, parecia recuperar seu amor-próprio e sua individualidade, acusava o amante de tê-la seduzido, de levá-la àquele estado sem volta. Sua persuasiva atitude não demoveu o oficial da orgulhosa decisão de ruptura definitiva. A partir daí, a importância de seu mundo de mulher rejeitada ultrapassou

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o de filha contrariada. Persegue o amante, obsessivamente, pela ilha de Barbados, perambula sem norte, fragmentada, sem rumo, em densa geografia alienadora. Perde, assim, pouco a pouco, a consciência da realidade, voltando para a França, em companhia de Madame Baa, uma mulher que lhe dera abrigo. Se para a freira de Beja imaginássemos um místico amor de salvação, não poderia haver outra escolha a não ser a de preservar-se das tentações, na continuidade da vida religiosa. Em seguida à desilusão, o convento tornouse um espaço natural de defesa contra as artes de Amor. Durante o processo de cristalização, entretanto, os severos preceitos das regras monásticas e/ou sociais que, em tese, tiravam-lhe o livre trânsito pelo mundo não lhe impediram de ver nem de se apaixonar por Chamilly, muito menos de fazê-lo subir “ao quarto com todo o ardor e impetuosidade” (Alcoforado, 1974, p.29): o que nos lembra Heloisa e Abelardo. A cela do convento, verdadeiro local de refúgio, além de autêntico laboratório destilador da cristalização – à maneira de Stendhal –, é enfatizada por Mariana, depois da perda irreversível: “Saio o menos que me é possível do meu quarto, onde vieste tantas vezes” (ibidem, p.35). Já Heloisa se revolta, em alguns momentos, investindo palavras amargas contra Deus. Escritas durante o processo alquímico que vai do enamoramento à desilusão, as cinco cartas – de autoria de Mariana ou não – expressam paixão fulminante e fatal, manifestam descompromisso similar ao de Heloisa e de Adèle Hugo, com as convenções. Na terceira carta, Mariana ataca as rigorosas instituições: “perdi a minha reputação, expus-me ao furor dos meus parentes, à severidade das leis deste país contra as religiosas e à tua ingratidão, que me parece a maior de todas as desgraças” (Alcoforado, 1974, p.45). Um impetuoso sentimento levou-a, também, a um grau de alienação, semelhante ao de Adèle, como se lê nessa passagem: “Tenho um prazer fatal em ter arriscado a minha vida e a minha honra...” (ibidem, p.47). Em angustioso diálogo, exaltada pelos sentimentos, asso-


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ciando Eros a Thanatos, pergunta: “Se te amasse tanto como mil vezes te tenho dito, não teria já morrido há muito tempo? Ordena-me que morra de amor por ti! Conjuro-te a que me dês este socorro...” (ibidem, p.46). Se a sobrinha de Fulbert repudiava ir para o claustro definitivamente, para juntar-se ao amado, a filha de Hugo abandonou a casa à procura do amado, e a freira portuguesa, secretamente, queria deixar tudo e ir-se com ele, como declara em certo momento: “Ter-te-ia acompanhado e, de certo, que havia de te servir de melhor mente!” (ibidem, p.33). Tal qual Adèle, seu amor-próprio foi velado pela força de crescente cristalização, preferindo dar-se cegamente à paixão por Chamilly a compreender os motivos para esquecê-lo. Em momento de revolta, talvez de possível quebra da cristalização, pergunta-lhe: “Bem sabias que não ficarias para sempre em Portugal. Por que é que me escolheste [...] para me tornar tão infeliz? [...] Ai de mim! Por que usas de tamanho rigor com um coração que é teu?” (ibidem, p.33). Assim, a mistura de sentimento reprimido combinado à lembrança do objeto divinizado provoca, em Mariana, densa mistura de dor e felicidade, e aponta, em vários instantes, o esfacelamento da razão: Bem vejo que te amo como uma louca [...] e não poderia viver sem esse prazer que descubro e de que gozo amandote no meio de mil dores. [...] Que faria eu, pobre de mim!, sem tanto ódio e tanto amor como os que enchem o meu coração? (ibidem, p.65)

Em meio ao desconcerto do mundo interior, porém, consegue reaver sua individualidade e critica racionalmente o oficial francês. Ao trabalhar na alma desiludida a perda do mágico sal encantatório e cristalizador, quebra a venerada figura de Chamilly; percebe ter vislumbrado “uma grande paixão, onde havia demasiada simplicidade” (ibidem, p.95); compreende ter vivido durante muito tempo “num abandono e numa idolatria” (ibidem, p.97), que, naquele instante, era motivo de horror. Reconhece sentir,

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também, “a baixeza dos crimes” (ibidem, p.98) forçada a cometer. Em seguida, concretiza a perda da cristalização na seguinte pergunta: “Quando é que o meu coração deixará de ser despedaçado? Quando é que me verei livre desta cruel inquietação?” (ibidem, p.97). Ao questionar e rever o anárquico sentimento de que fora possuída, a religiosa avalia que o arrebatamento por que passou foi fruto da juventude e da credulidade, explicando que, desde a infância, esteve encerrada num convento onde “só tinha visto pessoas desagradáveis, nunca ouvira as lisonjas que [Chamilly] sem cessar [lhe] dirigia” (ibidem, p.99). Afirma ter regressado desse encantamento, deseja não mais voltar a cair nas mesmas fraquezas; finalmente promete a si mesma chegar a “um estado mais sereno” (ibidem, p.100). As últimas palavras da quinta e última carta eliminam, ao inverso das palavras de Heloisa e de Adèle, qualquer esperança de uma segunda cristalização: “É preciso que o deixe e que não volte a pensar em si. Tenho alguma obrigação de lhe dar contas dos meus atos?” (ibidem, p.99).

A mirada final no cristalizado sal do amor Neste trabalho, considerou-se a atmosfera de paixão em que se desenrolaram as vidas amorosas de Heloisa, inesquecível por desventuras sofridas com seu afastamento de Pedro Abelardo; Mariana Alcoforado, investigada em seus delírios de imaginação, nas Cartas portuguesas; Adèle Hugo, recriada pela imaginação do diretor François Truffaut, em múltiplas andanças em busca de um oficial que fugia de seu alcance. No filme, Adèle surge em cena já lutando para sustentar a divinização de seu objeto amoroso; demonstra passar por uma segunda cristalização, talvez desencadeada pelo medo de perder o homem amado, o que a fez segui-lo, na esperança de não perdê-lo; com isso, endeusava-o cada vez mais. Esses processos desagregaram sua personalidade sustentada em parâmetros fora do real; além disso, seu com-


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portamento desarticulou qualquer possibilidade interior de conseguir refazer o mundo sem a presença do amante. Heloisa contribuiu para demonstrar que uma tormentosa experiência passional pode se transformar em sal da alma. Ela não se deixou arrastar em negativa corrente destruidora, como fez Adèle Hugo, que demonstra completa alienação quanto ao mundo inóspito em que transitava. Por isso, acabou em irreversível processo psicótico que, por ironia, apesar de agredi-la física e psicologicamente, permitiu-lhe a permanente fuga da realidade conservando sua obsessiva fantasia acenada como felicidade. Apesar de musicista, a beleza da arte não foi capaz de conduzila de imediato à sublimação salvadora. Somente após voltar para a França, já instalada em uma casa de repouso, utilizaria a música e a jardinagem na convivência de outros doentes. Como se vê, para ela, a impossibilidade da completude amorosa configurou a perda do referencial organizador de sua própria realidade. Quanto à freira portuguesa, o amor delineou estágios crescentes e decrescentes da cristalização amorosa que, na fase exacerbada, apresentou marcas similares às de Adèle Hugo. De início, a paixão aumentava na mesma medida em que a cristalização divinizava a figura do amado. A partir da dúvida e da decepção de ser definitivamente abandonada por Chamilly, a freira desenvolveu um porto salvador e um mecanismo de autoproteção que, por meio da análise dos fatos, desmistificariam o objeto cristalizado, derretendo o sal embelezador. Diferente de Adèle que, de início, não se escudou na arte, a ancoragem de Mariana na realidade foi o suporte religioso. Ainda que seja a religião uma via constituída de rígidos critérios para quem a segue, pode tornar-se acolhedora e compensatória, nos momentos de desequilíbrio. De fato, a união impossível com Chamilly foi substituída por místicos mecanismos sublimatórios no espaço do sagrado, diminuindo a culpa e a dor. Embora a decisão de esquecê-lo não fosse a do seu desejo nem a do verdadeiro prazer, essa forma de lidar com a explosiva e salgada sensualidade ancorou Mariana Alco-

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forado no chão. Ainda que decepcionante resultado de perda do objeto, ela materializou no amor místico uma forma de conhecimento transformador. Podemos descrever no mesmo teor o caso de Heloisa. A partir das cartas e do filme, percebe-se que, na existência de Mariana Alcoforado e na de Adèle Hugo, o fenômeno de cristalização levou-as por diversos caminhos de Eros. Para Adèle, mostrou-se trágico amor de perdição, alienando-a da realidade e cortando-lhe possíveis retomadas de um estado amoroso prazeroso. A beleza perdeu-se com a obsessiva recusa em “descristalizar” o amor/amado impossível. Já em Mariana, também em Heloisa, o instinto de preservação foi mais intenso, salvando-as e libertando-as do estigma do amor trágico e avassalador, que mata e/ou aliena, ao canalizá-lo para a esfera do sagrado, ainda que Heloisa repudiasse, ao início, essa solução escolhida por Abelardo. Em realidade, ao revermos o filme, deduzimos que Adèle Hugo foi cegada pelo brilho da cristalização, trilhando um caminho sem volta, agredindo-se espiritual e psicologicamente, talvez a fim de esquecer o mundo ideal de seu amor sem esperanças. Heloisa e Mariana, após contundente desilusão, seguiram o caminho do conhecimento transformador de sua existência, modificando e dirigindo o foco de uma possível cristalização mística do amado, para iluminar sua realidade e proteger-se, assim, de novas agressões do mundo.

Referências ALCOFORADO, Mariana. (Sóror) Cartas portuguesas. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974. ABELARDO, Pedro. Correspondência de Abelardo e Heloísa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. . A história das minhas calamidades. Trad. Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo: Nova Cultural, 2005. DROZ, Geneviève. Os mitos platônicos. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, s. d.


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DUBY, G. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

Da palavra-imagem à imagem-palavra: análise do incipit fílmico de LavourArcaica*

GUILLE, Frances V. Le journal d’Adèle Hugo. Paris: Minard, 1969. ROUGEMONT, Denis de. L’amour et l’Occident. Paris: Plon, 1972.

João Manuel dos Santos Cunha**

STENDHAL. Do amor. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

RESUMO: Centrando a reflexão no exame do seu incipit, este ensaio analisa a tradução fílmica (LavourArcaica, 2001) de Luiz Fernando Carvalho para o romance de Raduan Nassar (Lavoura arcaica, 1975). Ao ler as duas obras na confluência de suas específicas poéticas, a investigação busca entender o filme como um lugar de encontro, de continuidade e de mudança, no qual se pode verificar a persistência da lavra do escritor na colheita do cineasta. PALAVRAS-CHAVE:

Literatura e cinema, Lavoura arcaica, La-

vourArcaica. ABSTRACT: Focusing on its incipit, the present essay analyses the

* Este texto é resultado parcial de investigação que desenvolvo sobre as relações entre palavra e imagem, no âmbito do projeto de pesquisa denominado “Tradução fílmica para textos literários: uma prática de transcriação”, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Estudos de intertextualidade: códigos estéticos e culturais; sistemas literários”, da Faculdade de Letras da UFPel. ** Doutor em Letras – Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Faculdade de Letras – Departamento de Letras.

feature film To the Left of the Father (LavourArcaica, Brazil, 2001), a filmic translation by the director Luiz Fernando Carvalho of Raduan Nassar’s eponymous novel (Lavoura arcaica, 1975). Reading both works at the confluence of these two specific poetics, this investigation attempts to understand the film as a place of encounter and continuity, albeit an autonomous aesthetic product, in which the persistence of the sowing work of the literary narrator can be found in the harvesting effort of the filmmaker. KEYWORDS: Literature and film, Lavoura arcaica, LavourArcaica.

“Valorizo livros que transmitam a vibração da vida, só que a vida nesses livros, por melhores que esses livros sejam, será sempre a vida percebida pelo olhar do outro.” (Nassar, 1996, p.37) “O cinema, como qualquer obra de arte, quer mesmo é discutir a vida. O que me interessa é [...] tocar na vida! [...] a lente é um olho, e este olho é um olho do narrador, portanto, o olhar é um olhar de fora, um olhar de quem reflete.” (Carvalho, 2002, p.40; 55)


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A prática comparatista, no atual contexto dos estudos literários, procura pensar a literatura sem considerar os limites impostos por fronteiras de línguas, linguagens, estéticas e códigos culturais; ou pela divisão entre as artes e outras formas de conhecimento. Assim, pode-se entender o comparatismo, de acordo com Tânia Franco Carvalhal (2005, p.169), como “promotor de encontros e como facilitador de contatos, de forma regular e sistemática, relacionando dados, articulando elementos, explorando intervalos, com o objetivo de ultrapassar margens e limites”. Operando nesse espaço investigativo, o alcance deste estudo é o de, justamente, aproximar o texto literário de Raduan Nassar, Lavoura arcaica (1975), do filme de Luiz Fernando Carvalho, LavourArcaica (2001). Como veremos, ler as duas obras na confluência de suas poéticas – literária e fílmica – pode ser exercício rentável para a produção de sentido num intervalo que, ao mesmo tempo que as une, naturalmente as distancia. A transcriação fílmica de Carvalho para o texto de Nassar é fato estético que, por si só, estabelece encontro conseqüente para a reflexão sobre a natureza das relações entre códigos estéticos autônomos, no caso, entre sistemas de signos fundados sobre entidades aparentemente tão distanciadas como a palavra literária e a imagem fílmica. Ao traduzir por meio de uma outra linguagem estética, não-lingüística, a escrita verbal de Nassar, o cineasta cria texto novo, lugar, simultaneamente, de continuidade e de mudança, em que se pode verificar a persistência da lavra de um na colheita do outro. Lugar de encontro, sem dúvida, no qual se poderão identificar os caminhos trilhados pelo autor literário para a construção de sua tragédia familiar, quando, no entrecruzamento dos sulcos desenhados pelo autor fílmico para dar sentido visual ao discurso verbal, poderemos entender melhor e sob um outro olhar a intenção do narrador literário. É exatamente nessa direção que a análise sistemática das traduções fílmicas para textos literários cresce em interesse e produtividade no âmbito dos estudos comparados.

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É pacífica a idéia, na teoria fílmica contemporânea, de que o texto fílmico tem autonomia de código narrativo textual, principalmente após as reflexões desenvolvidas a partir dos anos 1960 por Christian Metz (1980, p.338 – grifo meu): “O cinema não é uma língua, sem dúvida nenhuma, mas pode ser considerado como uma linguagem, na medida em que ordena elemento significativos no seio de combinações reguladas, diferentes daquelas praticadas pelos idiomas e que tampouco decalcam a realidade. Assim, sendo uma linguagem, permite uma escrita, isto é, o texto fílmico”. Essa reflexão repercute entre a crítica cinematográfica e literária, gerando aplicação importante no meio dos estudos comparados que se ocupam das relações entre palavra e imagem, por pesquisadores como André Gaudreault (1988), Jeanne-Marie Clerc (1985, 1993), Francis Vanoye (1989) ou Michel Serceau (1999). No Brasil, é com Haroldo de Campos (1969) e Julio Plaza (1987) que tal idéia vai avançar com conseqüências incontornáveis no âmbito dos estudos semiológicos acadêmicos.

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A leitura transcriadora exercitada pelo cineasta deve ser entendida como produção reflexiva, participante, portanto, em mesmo nível de importância crítica, da fortuna do texto literário. De nosso lado, receptores comprometidos que estamos com ambos os textos, cabe-nos articular leitura comparada dos dois objetos estéticos, visando à investigação sobre o alcance da recepção do romance pelo seu especial leitor, o cineasta Luiz Fernando Carvalho. Tecnicamente, a produção de texto fílmico – articulado não por meio de uma língua, é certo, mas, definitivamente, pelo exercício de uma linguagem (Metz, 1980, p.338)1 – é antecedida pela criação de instrumento verbal que se conhece como “roteiro escrito”, que pode ser “original” ou “adaptado” (de outro texto preexistente, literário ou não). Quando são praticados os procedimentos de filmagem, é esse texto escrito que regula todo e qualquer ato de produção de imagens, e que, terminada a captação de planos fotocinematográficos, vai orientar a montagem do material filmado. No caso de LavourArcaica, embora na ficha técnica do filme apareça a informação: “direção, roteiro e montagem: Luiz Fernando Carvalho”, o diretor tem insistido em dizer que (Carvalho, 2002): Eu me oferendei, me joguei de corpo e alma nos braços daquele texto. Nunca tive certeza de coisa alguma, não trabalhei com roteiro ou storyboards. (ibidem, p.30) Os atores tinham um livro. O livro. [...] o texto final de cada personagem foi recriado por cada ator. (ibidem, p.90) Não houve roteiro. O que houve foi um trabalho de improvisação em cima do próprio livro. (ibidem, p.44) Havia [durante as filmagens] um guia, sempre um guia mínimo para a produção, a direção de arte e o figurino. Mas nunca um roteiro adaptado, uma fala adaptada. (ibidem, p.44)

Verifica-se, de imediato, uma opção inédita e importante do diretor para o entendimento do seu processo de trabalho, a qual, certamente, veio a colaborar para a imensa


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qualidade alcançada pela sua tradução imagética para as palavras literárias do romance de Nassar. Como leitura de uma obra literária, a tradução fílmica pode ser considerada objeto de indagação teórico-crítica da perspectiva da teoria da transtextualidade definida por Gérard Genette (1982). Nessa direção, consideramos que um filme adaptado de um texto literário poderia se constituir como resultado de um tipo de hipertextualidade, ou seja: o filme (hipertexto) remeteria, explicitamente, ao texto anterior, seu hipotexto. Análises comparadas, sistematizadas a partir do modelo postulado por Genette, podem apontar para o caráter de inter-relação que se constrói entre narrativas literárias e fílmicas. Para Sylvie Rollet (1996, p.13), o exame de adaptações fílmicas sob essas condições pode constituir-se como estratégia rentável e absolutamente pertinente, ainda que derivada dos métodos comparativos aplicados aos textos oficialmente hipertextuais. É o que também entende Yannick Mouren (1993, p.113-22), em seu estudo sobre o filme como hipertexto, quando aplica os princípios da teoria narratológica proposta por Genette em Palimpsestes para dar conta do que se passa quando um texto de ficção verbal se torna um texto de ficção imagético. No quadro dessa articulação teórica, seqüências iniciais de um filme – mesmo enquanto são passadas as informações sobre a “ficha técnica”, sob a forma de “apresentação dos créditos” – apresentam já as primeiras informações diegéticas. A abertura de filmes, assim, pode ser lida nos mesmos termos de um incipit literário, ou ao que Genette (1982, p.150) denomina paratexto: “[...] toda espécie de texto pré ou pós-liminar, constituindo-se como um discurso produzido à propósito do texto que segue ou que precede o texto propriamente dito”. Uma possível chave para a compreensão da natureza da abordagem efetivada por Carvalho pode ser percebida já no incipit, o paratexto fílmico, na abertura do filme, quando se tem a informação, por palavras, do título do filme. O livro de Raduan Nassar chama-se Lavoura arcaica. O filme de Luiz Fernando, também. Só que, na graficação

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do título, na tela em negro, informa-se que é de outra “lavoura arcaica” que se trata: a que é presentificada em quadro, em letras brancas, é, agora, LavourArcaica. Ou seja, as duas obras têm o mesmo título, formado pelas duas mesmas palavras. No entanto, o título fílmico constrói uma outra forma e um outro sentido para as palavras, pela sutil fusão de duas letras minúsculas em uma maiúscula, ou seja, o último “a” de lavoura com o primeiro “a” de arcaica: a+a=A. Quer dizer, dois “as” sobrepostos transformamse em outra coisa, em “A”, que passa a ser um outro signo imagético, conformado pela sua qualidade gráfica e visual. O que decorre, na verdade, desse artifício não é a simples união de dois signos em um único sinal, mas a transformação de dois símbolos em um outro, o que possibilita produção de sentido diverso. A crase que se opera aí, paradoxalmente, ao anular a existência de dois signos para o surgimento de um outro, ao mesmo tempo que institui um novo signo, afirma, nele, a subsistência dos dois outros. A lavoura arcaica de Raduan Nassar não é o filme de Luiz Fernando Carvalho. A lavoura arcaica de Luiz Fernando Carvalho não é o livro de Raduan Nassar. Existe um espaço, entretanto, na sua intersecção formal, em que ambos participam do mesmo lugar estético, e em que se equivalem: esse é o espaço da transcriação efetuada pelo cineasta. Tal fato aponta, com certeza, para a lúcida posição do diretor em face da complexa operação estética que pratica. Ao insistir em que “não há uma vírgula que esteja ali [no filme] que não seja do Raduan, não há um artigo que não seja dele; não há nada no filme que não seja do texto” (Carvalho, 2002, p.44), o cineasta está reafirmando seu intento, como tradutor, numa outra linguagem estética, de transcriação do texto literário de Raduan Nassar. Ou seja, com a convicção, alegadamente, de que transcriar é traduzir o texto primeiro – o hipotexto literário –, ainda que estruturado por meio de um outro código estético e mesmo que ele se constitua como objeto estético de outra natureza, em sua especificidade formal. Nessa operação, o que é traduzido não é o signo em sua materia-


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lidade, mas o sentido que nele pode ser construído pelo especial leitor-cineasta. Note-se que nesse momento ainda não se está fazendo cinema propriamente dito, na acepção teórica do termo. O que se inventa aí, nesse espaço negro de letras brancas, é um jogo de signos alfabéticos, no limite conceitual de significante e significado lingüístico. Isso, entretanto, implica visualização e produção de sentido, no intervalo entre o que se vê e a significação que se produz com o que se lê. Luiz Fernando Carvalho parece querer apontar, já no prólogo de seu filme, por meio de um paratexto (que inclui, claro, o jogo de letras praticado com o título), o qual pode ser lido como incipit – que concentraria tudo o que se verá, enquanto tradução intersemiótica, daí para frente, no desenvolvimento da narrativa fílmica –, para uma circunstância fundamental de seu lavourar: tal engenho está embasado na compreensão de que um objeto estético, no caso uma obra literária, não pode ser adaptado, transposto em sua integralidade para outro meio. O que é factível, para ele, é a tradução do sentido do objeto primeiro, resultado da interpretação do texto pelo seu tradutor. Nesse exercício, literatura e cinema compartilham de um mesmo espaço, em intersecção, o da fabulação poética. Livro – irredutível a “adaptações” – e filme – objeto estético novo –, no entanto, permanecem obras de arte diferenciadas em sua especificidade narrativa. É nesse lugar, certamente, no entrecruzamento de códigos, que se dá a possibilidade de criação de obra nova, com a marca autoral do emissor da mensagem estética. O quanto esse texto novo, gerado na prática intertextual criadora, iluminará seu hipotexto, como leitura conseqüente, é o que se buscará averiguar neste ensaio. Palavra e imagem, desde sempre sentidas e pensadas como coisas diferentes, guardam entre elas, na verdade, relações quase misteriosas que justificariam a própria história de seu desenvolvimento: elas se atraem, se combatem, se ignoram, sonham em se aniquilarem. No meio acadêmico, o que se observa é serem as relações entre palavra

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“[...] certa história cultural da relação entre cinema e literatura, feita de dares de costas e de separatismo, tem sua origem nessa segregação da imagem e da palavra”. Sobre a questão das difíceis e complexas relações históricas entre palavra e imagem, ver Ramirez. (1999)

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literária e imagem fílmica geralmente pensadas de modo a distanciar as duas entidades; no entanto, justamente, “[...] une certaine histoire culturelle de la relation entre cinéma et littérature, faite de dos tournés et de chacun chez soi, a son origine dans cette segrégation de l’image et de la parole”2 (Ramirez, 1999, p.160). Reconheçamos: é desconfortável, por parâmetros científicos, ainda hoje, pensar juntas a palavra e a imagem – uma palavra-imagem ou uma imagempalavra. Entretanto, essa tem sido uma ocupação cara a artistas e estetas, cujas reflexões se dão, na maior parte das vezes, no âmbito da própria criação artística. Traduzir palavras em imagens, e vice-versa, foi ocupação sempre instigante e muitas vezes penosa para quem se dedicasse a refletir e a criar a partir dessa aproximação. Luiz Fernando Carvalho (2002, p.34), falando sobre sua experiência, toca naturalmente no ponto crucial do problema: Recuso completamente a idéia de adaptação. Sempre agi como se estivesse em diálogo com aquilo. [...] primeiro li o Lavoura, e visualizei o filme pronto: eu tinha visto um filme, não tinha lido um livro [...] aquelas palavras respondiam à minha necessidade de elevar a palavra a novas possibilidades [...] Palavra e imagem. Palavras enquanto imagens.

Numa outra clave, ao tratar da questão, do ponto de vista de como se dá a produção e a recepção de fabulação verbal, Roland Barthes (1992, p.85) conclui, na mesma direção de Carvalho: “toda descrição é uma visão”. Ou seja, o escritor, por meio de um rito inicial, transforma o real em objeto imaginado (posto em imagens), para logo após desimaginá-lo, traduzindo-o em palavras. O texto verbal que daí resulta, segundo ele, será decodificado mediante um mesmo processo de leitura: as palavras, decodizadas pelo leitor, traduzem-se em imagens pelas quais o receptor faz falar o texto, constituindo sentido para o que lê-vê. Considerando que “interpretar um texto não é somente dar-lhe um sentido, mas é estimar de que plural é feito” (ibidem, p.39), o semiólogo francês nos convida a relembrar a tradição de abordagem crítica que toma como


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ponto de partida a relação inextricável entre palavra e imagem, localizando sua prática na aceitação da dupla natureza dos signos verbais e imagéticos – sejam eles pictóricos, fílmicos ou fotográficos. Nesse contexto, não se deve esquecer que Carvalho é leitor de Barthes, tendo roteirizado para o cinema seu Fragmentos de um discurso amoroso (A espera, curta-metragem de 1993). Para Luiz Fernando Carvalho (2002, p.103), compromissado com a imagem mas atento à palavra, “a questão da visualidade tem a ver com a necessidade de se criar uma fabulação do real, que é para si próprio, como uma fome do olhar”, seja por meio da palavra literária ou da imagem fílmica, já que ambas são a mesma coisa: ou seja, “palavras enquanto imagens” (ibidem, p.49), ou imagens como palavras, em sua invenção fílmica para o texto de Raduan Nassar. O que o cineasta encontrou no livro foi “um romance em que os personagens são fruto de vários tempos, um universo mítico denso e poético” (Carvalho apud Conti, 2001, p.E1). Sem descartar a complexidade de elaborar em tempo fílmico as difíceis articulações temporais do texto literário, Carvalho consegue, na sua tradução, encontrar a sua própria poética, construída a cores, na oposição entre espaços fechados e abertos, entre sombra e luz, por enquadramentos que revelam a força do imaginário (conjunto das imagens) do cineasta, resultado de sua fome de olhar o mundo e a vida pelas lentes de uma câmera cinematográfica (Laub, 2001). Nessa elaboração, o tempo é esculpido no próprio quadro fílmico, muitas vezes sem uso de cortes espaciotemporais, quando ele lança mão de subcódigos do cinema, como o som e a própria palavra articulada como voz narrativa (e não apenas dialogal). Em Lavoura arcaica, Carvalho encontra possibilidade de colheita farta para sua fome essencial: o texto de Nassar, ainda que estruturado verbalmente pela expressão de um vigoroso fluxo de consciência, é lido por ele como uma sucessão de imagens fílmicas. A numeração de capítulos, no texto literário, ainda que não intitulados, parece remeter ao formato da arma-

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ção romanesca tradicional, com a intenção, justamente, de problematizar essa estrutura sedimentada por práticas centenárias. As duas partes em que o texto se divide (“A partida”; “O retorno”) não se constituem, no seu interior, por capítulos numerados separadamente: são trinta dispostos em ordem numérica, formalizando-se como unidade narrativa da totalidade do romance. Como bem notou Leyla Perrone-Moisés (1996, p.62), “a numeração contínua dos capítulos indica a sucessão ininterrupta do tempo e a impossibilidade de um perfeito recomeço”. Assim, o fluxo de consciência, colocado no andamento pelo jorro verbal do personagem-narrador, logo nas primeiras linhas da narrativa, vaza de um capítulo para outro, do princípio ao fim do texto, anulando a possibilidade de organização do discurso em segmentos formais no tempo e no espaço. Mesmo quando, em alguns capítulos (9, 13, 15, 22, 25 e 30), o narrador abre lugar para outras vozes se articularem, como a do pai, no “sermão do faminto”, ou do avô e de Pedro, é pela palavra de André, no presente fabulado, que essas falas são contaminadas. Essa qualidade de continuum narrativo corresponderia, certamente, à necessidade de o autor presentificar em signos verbais, por meio da representação da portentosa e violenta emissão da palavra falada, um passado represado por longo tempo na memória e na própria carne de André. O que se lê, então, em Lavoura arcaica, são as imagens doloridas dessa memória, amalgamadas no discurso ininterrupto do narrador, pelo qual os tempos e os espaços se intercalam, se entrecruzam, equivalendo-se e anulando-se mutuamente. Incontrolável por quaisquer limites formais que não os da própria linguagem, esse discurso coloca em cena uma história que não se narra pelos caminhos da construção metalingüística, entretanto. Todos os temas são tratados de forma entrelaçada no texto – o tempo, o trabalho, o amor, a paixão, o desejo, a cólera, a terra, a família, as interdições culturais e religiosas, a ética –, e constituem-se, sobretudo, em questões de linguagem. Nesse sentido, o texto Lavoura arcaica é a fala do narrador; o livro todo sendo uma celebração da


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linguagem como lugar do entendimento, da construção de sentido, do conhecimento daquilo que é, ao fim, o seu objetivo, a “leitura da vida” (Nassar, 1996, p.37); ainda que essa fala construa o espaço da danação existencial, indique o caminho do final caótico e trágico, e referende a irreversível impossibilidade de recomeço perfeito. Sabemos que memória pode ser entendida como a possibilidade de reviver ou restabelecer experiências passadas que podem revivescer quando acionadas por experiências sensórias no presente (auditivas, visuais, gustativas, táteis e olfativas). A memória recuperada por Andrénarrador é qualitativamente visual: é do que o seu olhar viu que se constitui o texto que narra. É do que ele viu no tempo vivido e do que ele vê no tempo da narrativa que se tece a revivescência dessa lavoura existencial. Luis Fernando Carvalho (2002, p.103) parece ter entendido nessa direção as questões postas por Raduan Nassar: “a memória não é mais uma reminiscência, que também implicaria um sentido de distância, mas uma atualização, um filme”. É com esse fluxo contínuo de palavras-imagens que o cineasta viu ao ler o livro que ele monta o filme: um jorro de imagens-palavras que não podem ser articuladas em planos, seqüências, cenas separadas em unidades espaciotemporais. Tudo se dá a ver como se o fluxo de consciência – a vertiginosa atualização da memória visual – do personagem literário tivesse sido traduzido, pelo tradutor cinematográfico, em fluxo de imagens fílmicas. Ou seja, na montagem dessas imagens não há solução de continuidade de uma seqüência para outra. Talvez não haja nem mesmo seqüências ordenadas tecnicamente, o filme sendo um continuum imagético-sonoro a ser articulado em cenas significativas pelo leitor dessas imagens, o espectador, a quem cabe, no limite, produzir sentido para esse discurso compactado numa “linguagem sem parágrafos”, como na escrita de Raduan Nassar. Traduzir em imagens fílmicas, ainda que narrativas, um relato verbal rarefeito, de escassas referências realistas, pela voz de um personagem-narrador que desorganiza

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a causalidade temporal e espacial, que vai do passado para o presente e vice-versa, num turbilhão de fatos e símbolos, poderia ser um problema insolúvel para um cineasta não comprometido com a palavra. Como interpretar por imagens técnicas, fotogramas em movimento, utilizando os procedimentos fílmicos disponíveis, nos limites de um código estético que se funda na qualidade de presentificação da imagem cinefotográfica – diferentemente daquela do código literário, possibilidade estética em que a palavra conduz à abstração –, um texto que, na sua maior parte, narra um mundo que se (des)constrói no próprio jorro verbal do narrador literário? Com que instrumentos processuais recriar em visualidade – por enquadramentos de sombra e luz – um discurso verbal que se faz entre o alegórico e o cifrado, um texto, enfim, que se funda na palavra escrita, sem lançar mão de recursos técnicos já esvaziados pelo uso constante dos códigos fílmicos, institucionalizados pela indústria do cinema, nesses mais de cem anos de produção de filmes? Como sabemos, o diretor descartou a possibilidade de criar em instrumento técnico – o roteiro escrito – a indicação do que deveria ser filmado. Preferiu usar o próprio discurso literário, diretamente, sem texto intermediário, como fonte do discurso fílmico – desde a filmagem até a montagem. Assim, segundo o próprio cineasta, “não há, nunca houve, roteiro adaptado, uma fala adaptada” (Carvalho, 2002, p.90). A lavoura fílmica de Luiz Fernando dá-se numa terra em transe: não é só André – o possesso, o desgarrado, o epiléptico, o endemoniado – que entra em transe. Toda a família vive a situação-limite, passando da luz (harmonia, conhecimento, ancestralidade segura) para as trevas da ruptura e da escuridão inconsciente. Com eles, a própria narrativa gira em círculos críticos, entortando-se, explodindo em excessivos e alternados jorros de luz intensa e profundos negrumes, em que a iluminação do quadro referencia uma gama impressionante de outros mestres da imagem pictórica. Carvalho vai buscar neles as referências


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para as suas imagens poderosas, numa intertextualidade criadora com os que experimentaram definitivos efeitos de claro-escuro, como Goya, Ticiano, Caravaggio ou Velásquez. Ou em cineastas que, nessa mesma procura, produziram efeitos visuais fundantes de uma linguagem e que marcaram, indelevelmente, o imaginário fílmico do homem contemporâneo, como Dziga Vertov, Serguei Eisenstein, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Andrei Tarkovski, Glauber Rocha e, principalmente, parece-me bastante evidente, no extraordinário pesquisador da imagem fílmica, o cineasta russo Aleksandr Sokúrov (de Mãe e filho; Pai e filho; Arca russa; Moloch). É nessas linhagens fílmicas e pictóricas que Carvalho se inscreve, levando consigo a palavra-imagem de Nassar. O exame que faço da tradução fílmica operada por Luiz Fernando Carvalho para o livro de Raduan Nassar, considerando o que foi articulado até aqui, aponta para o fato de que LavourArcaica não só corresponde ao texto literário, como o ilumina, ampliando, pela leitura crítica que o cineasta elabora, o sentido de Lavoura arcaica. Dessa forma, passa a constituir-se como parcela importante e incontornável da fortuna crítica do romance. No andamento de minha investigação, percebi que, para dar conta do que me propus, precisaria não só ler o livro de forma sistemática e crítica, como, além de ter assistido ao filme diversas vezes, teria que ter disponível para a minha reflexão não apenas as imagens em movimento na tela, mas outro instrumento que me permitisse a análise dessas imagens. Necessitaria de um guia verbal, de uma descrição do que acontecia no écran, na sucessão de imagens em movimento. Para realizar a leitura crítica do filme, no sentido mesmo para o qual a palavra krísis, etimologicamente, aponta – separar, discernir, distinguir –, deveria poder colocar o objeto em crise para, em sua desconstrução, melhor entendê-lo. Minha apropriação do filme, entretanto, não se poderia dar de forma metalingüística, por impossível. É fato conhecido que a análise crítica de um filme de ficção por meio de palavras – o que se conhece por “crítica

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cinematográfica” – é, em princípio, problemática, e, por definição, objeto de suspeita, dada a impossibilidade de aproximação metalingüística. Nesse sentido, a tarefa do crítico de cinema é árdua: “[...] é difícil produzir um discurso verbal (já que pratico a crítica com palavras e não com imagens) que me dê a sensação de apreender a totalidade da obra fílmica” (Bernardet, 1985, p.39). O problema crucial que permeia o exercício dessa atividade é, definitivamente, o de que, por não produzir metatexto – ao contrário da crítica literária –, o analista precisa criar, usando linguagem verbal, a representação de uma realidade para poder fazer o exame de outra realidade, da qual acaba se distanciando: a obra fílmica visual, o filme que se dá a ver em sombra e luz no écran, e só no écran. Se refletirmos nessa direção, a prática eficaz da crítica de filmes estará sempre condicionada à capacidade de o analista se aproximar verbalmente, em maior ou menor grau, do objeto estético o qual avalia. Condição ideal para a abordagem reflexiva do cinema, no entanto, só será possível no âmbito metalingüístico, ou seja, quando o próprio leitor fílmico pensar a linguagem estética, o texto fílmico em foco, exercitando-se nessa mesma linguagem: fazendo ele mesmo um outro texto fílmico, um metatexto. Circunstância que coloca problema insolúvel, essa é uma questão que corre paralela à própria evolução do cinema, mas que, a partir dos anos 1950, com a nova crítica francesa, com o avanço dos estudos semiológicos e sob a égide acadêmica, ganha foro específico de discussão no âmbito da crítica de arte (Cunha, 1996, p.251-65). Dada essa impossibilidade metodológica, lancei mão de estratégia usual na área dos estudos fílmicos: a construção de material escrito que me permitisse o cotejo entre os dois textos. O que não resolve o impasse, mas o escamoteia e viabiliza instrumental para o embasamento da reflexão. Arremedo de um roteiro escrito, tecnicamente decupado, foi o instrumento de que me vali para aproximar a obra fílmica da literária, com a finalidade de conectá-las. Na verdade, uma descrição por palavras do que vi de imagens


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na tela de luz. Um verdadeiro roteiro às avessas, ainda que já contaminado pela minha própria interpretação das imagens em movimento, foi o que me possibilitou a comparação de dois textos tão diferenciados em sua conformação estética. Um tanto constrangido, é verdade, já que o próprio cineasta, ao traduzir do verbal para o não-verbal, descartou a decupagem escrita da leitura que fez para o texto de Raduan Nassar. Atuei, nessa empreitada, digamos assim, desconfortavelmente, nos limites de uma impossibilidade. Assim, reconheço que, ao optar por esse simulacro de análise de imagens fílmicas, pelo qual o que acabo fazendo, na verdade, é a descrição de fotogramas provisoriamente parados, coloco-me na posição de analista de fotografias – fotogramas extáticos, já que não é factível “parar a máquina do cinema, viver nela” (Bellour, 1997, p.79). Para a finalidade deste ensaio, vou comentar apenas um dos segmentos dessa decupagem, sem perder, no entanto, a necessária visão da totalidade das narrativas literária e fílmica, às quais recorrerei, no conjunto, para iluminar os passos dessa investigação. Esse fragmento fílmico, que considero como incipit, corresponderia à seqüência inicial do filme, algo assim como um prólogo da narrativa que se vai ver, ou, como o que Genette (1982, p.11) denominou, analisando as relações transtextuais, como já remarquei, de paratexto. O que se constrói em imagens, aí, entre a apresentação escrita dos nomes dos produtores do filme e as informações sobre o título da obra e da autoria (literária e fílmica) da história que se vai narrar funciona, na verdade, como um comentário daquilo que o autor fílmico pensa sobre a operação que pratica: o ato de tradução intersemiótica do livro ao filme, a transcriação de poética verbal em poética visual. Demonstrei, parágrafos atrás, a importância do jogo verbo-visual que o cineasta inventa com o nome das duas obras (Lavoura arcaica/LavourArcaica) para a compreensão do que se vai ver na continuidade do filme. O que está narrado entre as primeiras informações do incipit e a construção gráfica que fecha esse prólogo, no entanto, é po-

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Sobre a questão, ainda não completamente resolvida, do narrador fílmico ante o estatuto do narrador literário, devo recuperar dois posicionamentos teóricos importantes: de acordo com Genette (1982, p.102, tradução minha), “há na narração, ou ainda, atrás ou na frente dela, alguém que narra: é o narrador. Além do narrador, há alguém que escreve e que é responsável por tudo; isto é, o autor; e isso me parece, já dizia Platão, suficiente”. Para Laffay (1964, p.8l, tradução minha), “o narrador fílmico é aquela presença virtual escondida atrás de todos os filmes: le grand imagier”. André Gaudreault (1988, p.11), ampliando as propostas de Genette e Laffay, propõe a seguinte comparação para o estatuto dos dois narradores: Récit scriptural: auteur (écrivain), auteur implicite, abstrait, narrateur scriptural; récit filmique: auteur (cinéaste), le grand imagier, narrateur filmique, articulateur du plan à plan, montateur. Como se vê, nessa articulação, são apagadas as diferenças de códigos para que permaneçam definidas as figuras do narrador literário (narrateur scriptural) e narrador fílmico (narrateur filmique, le grand imagier).

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derosa síntese estética da obra assinada pelo narrador fílmico Luiz Fernando Carvalho, le grand imagier.3 Exige análise acurada, portanto, esse prólogo, e é nele que vou me deter na seqüência. A transcrição da decupagem do segmento fílmico, a qual montei a partir da decodificação das imagens do filme analisadas em vídeo, vai em anexo, no final deste trabalho. Essa decupagem é artifício necessário, reafirmo, à estratégia analítica que desenvolvo para a aproximação dos dois textos. Na continuidade, separadamente, a partir da análise da desmontagem do texto imagético pela palavra escrita, montei a minha leitura da intersecção lítero-fílmica levada a termo por Luiz Fernando Carvalho, como segue. O texto de imagens técnicas, a lavoura arcaica de Luis Fernando Carvalho, começa com esse prólogo, tal como está descrito na decupagem da abertura fílmica. A de Raduan Nassar (1975, p.8-6), capítulo l, assim: Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual; tanto maior uma certa liberdade, o quarto é um mundo, quarto catedral, onde nas intermitências da angústia descobre-se o rosto para colher de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca o desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto de uma velha pensão interiorana quando meu irmão chegou para me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida e os meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da minha fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer deram a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuavase entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, macio e manso, não me


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perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; meus olhos viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro escuro no porão da memória [...]

Essas 31 linhas textuais de um total de 67 que constituem o longo parágrafo até o ponto final do capítulo, primeiro movimento do jorro verbal do narrador, são traduzidas em signos visuais por meio dos cinco planos iniciais do filme. Entre P1 e P3 não se pode dizer que exista, propriamente, montagem de segmentos cortados no tempo e no espaço, já que o que se vê é a ação contínua dos movimentos de André, enquadrado em sucessivos planos fechados, até o silêncio que se segue ao clímax do ato de masturbação. O que essas imagens traduzem é, basicamente, a tessitura narrativa dos signos verbais: “a nudez dentro do quarto”; “descobre-se o rosto”; “quarto catedral”; “áspero caule”; “palma da mão”; “rosa branca do desespero”; “objetos do corpo”; “deitado no assoalho”; “pensão interiorana”; “mão dinâmica”; “pele molhada”; “úmida fronte”; “peito ainda quente”; “cabeça entorpecida”. Com esses signos, o cineasta cria a presentificação poética de suas imagens no écran de seu lavourar estético. Ao primeiro contato com o texto literário, somos tomados por um estranhamento que resulta da forma como o narrador escolhe suas palavras: de que se trata? A palma da mão é palma da mão mesmo? E que rosa branca é essa? Áspero caule? Torna-se difícil compor em figuração a completude desses signos. É preciso reler; e complementar o quadro imaginário com a leitura de palavras que só aparecerão no texto algumas linhas adiante – “enxugava a mão; escondi na calça meu sexo roxo”. Pela abstração propiciada pela palavra escrita, elaboramos em nosso imaginário a figuração que produz o entendimento: trata-se de dolorosa, angustiosa e ritualística atividade físico-sexual a que se descreve simbolicamente por essas palavras. Para o tradutor fílmico, menos que um problema de interpretação, trata-se de uma decisão estética: como repre-

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sentar o sentido disso por meio de imagens presentificadoras como são as que estruturam fotograficamente o código fílmico? “Palma da mão; áspero caule; rosa branca”? Com que imagens? Certamente não com tradução literal para o significado dos signos poéticos verbais. Carvalho encontra solução também poética para o sentido do texto literário: os símbolos com que traduz o verbal não são descritivos, na acepção que o termo possui de “fazer relato circunstanciado”, mas, paradoxalmente, não-descritivos, apostando no diálogo emocional que naturalmente se estabelece entre as imagens fílmicas e o imaginário do espectador: “Eu queria trabalhar com aquilo que o Paul Valéry falou: como apreender emoções sem o tédio da comunicação?” (Carvalho, 2002, p.49). O cinema, com seus códigos e subcódigos, ainda que presentificadores (eis o caule, eis a rosa branca, eis a palma da mão), pode traduzir o sentido de signos verbais sem se utilizar de imagens imediatas e facilitadoras, restritoras, na verdade, de sentido. Assim, o cineasta, por recortes criteriosos no enquadramento do corpo de André, pela escolha de angulação do olho-câmera, pela iluminação em tortuoso claro-escuro e, é claro, pela forma como esculpe em seu ator, o André fílmico, as formas da possessão, transcria, em perfeita sintonia com o discurso de Nassar, o sentido das palavras em imagens, sem a perda de sua essencialidade poética. Há um outro aspecto a considerar, ainda, na prática transcriadora de Carvalho: ele entendeu que era preciso valer-se do subcódigo fílmico da faixa-som para intensificar o clima de angústia mecânica e de urgente necessidade daquilo que no “quarto-catedral” se ritualizava. Dessa forma, quando entra em quadro o torso tensionado e o rosto contorcido, entra também na faixa-som o ruído de locomotiva que vai aumentando de volume e ritmo, na medida em que, nas imagens, tornam-se mais acelerados os movimentos corporais de André. A invenção sonora introduz no discurso fílmico signos que ampliam o sentido do literário: o trem; o trem dentro do quarto inviolável,


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dentro do cérebro de André. O trem que o trouxe, desgarrado da família, depois da partida. O trem que antecipa a chegada do irmão e que, pela transição, sem quebra de continuidade na faixa-som, une o ruído da locomotiva ao das batidas na porta do quarto da pensão. Por meio desse recurso, o cineasta torna visível o invisível: não seria essa a verdadeira função da linguagem fílmica? E de todas as linguagens simbólicas, estéticas ou não? Assim, quando, seqüências adiante, presentifica-se em imagens de Pedro e André o incontornável retorno, e os visualizamos sentados num banco de trem, podemos completar o quadro da inexorável verdade: “estamos indo sempre para casa” (Nassar, 1975, p.32), numa constatação de que os personagens da trágica lavoura humana estão presos no círculo temporal e infinito do eterno retorno. Tudo, finalmente, se situa na secreta e impiedosa atividade do tempo, nos obscuros recantos do imaginário humano. Voltando à decupagem: em P4, intercalado entre dois planos (P3 e P5), fixam-se as imagens do transe de André deitado no assoalho. O que se vê é, em contra-plongée acentuado, como se do ponto de vista de André, uma lâmpada pendida do teto, balançando lentamente. Na banda-sonora, o silêncio de depois do clímax sonoro do apito e rodas da locomotiva que substituem o grito sem som da boca negra de André. No fundo, som baixo, o lento ruído de patas de cavalo, remetendo para um som ambiental que coloca a realidade da rua dentro do “quarto inviolável”. No plano seguinte (P5), André, em sobressalto, ergue-se sob o forte ruído das batidas na porta do quarto, agora ressoando no espaço ritual do “quarto-mundo-catedral” violado. “Os olhos no teto”: é essa a primeira informação do texto verbal. O narrador fílmico desloca-a para a cena que acabei de comentar, lavourando em amplitude as marcas do discurso literário. Com isso, no incipit do que vai se constituir como a narrativa de André, sendo ele o propiciador mesmo de tudo o que é narrado no desenvolvimento da história, possibilitada pela sua memória presentificadora

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dos fatos que viu/viveu, estabelece-se o ponto de vista pelo qual os fatos serão enfocados: o olhar de André. Em Lavoura arcaica, lê-se, em diversos momentos do capítulo 1, da página 6 à página 13, a função desses olhos e a qualidade desse olhar: [...] meus olhos pouco apreenderam [...]; apertei meus olhos [...]; meus olhos viram a maçaneta que girava; [...] nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo; [...] nossos olhos parados; [...] os olhos são a candeia do corpo; [...] meus olhos eram dois caroços repulsivos; [...] só estava certo de ter os olhos exasperados; [...] meus olhos baixos, como dois bagaços. (Nassar, 1975, p.6-13)

e assim por diante, até o final do romance, é pelos olhos de André que se faz a narrativa; quer dizer, com os olhos da memória e os olhos do articulador dessa memória. Luiz Fernando Carvalho quer que também seja esse o foco narrativo pelo qual se põe em fotogramas a força das letras ficcionais de Nassar: o olhar de André. Mesmo quando ele está em cena, é o seu olhar que revela o que é mostrado, revelando o seu estado emocional. Algo assim como um olhar-narrador que projeta no vácuo os fatos que não cabem em sua consciência, por meio de reflexos em luz e sombra da memória, enquanto é narrado pelo olhar-câmara reflexivo, olhar de fora, que organiza os fatos que registra em imagens técnicas, projetando-os no écran. Ainda do incipit é preciso resgatar algumas imagens que comprovam o extraordinário esforço criativo de Carvalho. No P6, André abre a porta para Pedro. Recriando o mínimo de ação literária por formas em movimento de profundo negro e tons terrosos, em meio a uma penumbra empoeirada, o cineasta, por enquadramento distanciado, recorta, contra parcas listras de luz enviesada, os vultos silhuetados dos irmãos: “era meu irmão mais velho que estava na porta; era um espaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse pó” (Nassar, 1975, p.7). Isso está no livro, assim, em palavras de simbolismo poético e paradoxal realismo. Está no filme, também: em cores,


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sombras, espaços de nada e de túrgido vermelho terroso; manchas de luz e escuridão que separam e unem os dois irmãos no quadro do doloroso encontro no umbral da porta do quarto-catedral. É nesse espaço-tempo suspenso pelo indefinido (pó; porta de entrar-porta de sair; passagem; espaço que separa-espaço que une; negro-ausência de luz; branco-luz-saturação; terroso – que é terra mas não é terra etc.), que os irmãos articulam as primeiras palavras faladas no livro e no filme. É de André a primeira fala: “Eu não te esperava”; de Pedro, a última, a que fecha o capítulo: “Abotoe a camisa, André”. O final do capítulo l, instalando na página de papel o espaço em branco de elipse espaciotemporal, antes do início do capítulo 2, na página seguinte, não tem correspondente fílmico com as mesmas características de corte no discurso narrativo. O que se dá a ver é a presentificação, por imagens intercaladas em oito planos curtos, montados com unidade seqüencial, daquilo que o narrador literário, André, diz no capítulo 2 do livro. A transição fílmica, anulando o efeito do corte espaciotemporal, se dá pela faixa-som em que acordes de um piano vazam do P6 para o P7 e continuam nos planos posteriores. De P7 a P14, são usados procedimentos técnicos canônicos em cinema, como a voz off e o flash-back, mas de forma eficaz, criativa e autoral. É como se o cineasta inventasse ali, para aquela ocasião, esses recursos já tão desgastados pelo uso contínuo e, muitas vezes, simplificador de seu alcance e potencialidade simbólica. O tratamento que diretores vêm dando, ao longo da tumultuada mas profícua relação entre literatura e cinema, especialmente no caso das traduções fílmicas para textos literários, ao problema da voz narrativa verbal, em off, tem se constituído em tema importante para a crítica e para os estudos semiológicos. Alguns cineastas têm encontrado soluções criativas para a questão; a maioria, entretanto, acaba por avalizar o trivial recurso de ilustrar com imagens o que se diz em linguagem verbal, fora do quadro. Um exemplo de criação conseqüente, nesse contexto, é o de François Truffaut, no filme Jules e Jim (Jules et

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Jim, França, 1962), traduzido do romance de mesmo título de Henri-Pierre Roché (1953). Sobre sua opção, ele diz: “mantive ao longo do filme um comentário em off todas as vezes que o texto me pareceu impossível de ser transformado em diálogos ou belo demais para ser suprimido” (Truffaut & Roché, 2006, p.172). O que se pode comprovar nas imagens de seu filme é o acerto da escolha. O texto de Roché, dito em off, é preservado em sua natureza verbal e poética, enquanto as imagens de Truffaut levam adiante, em beleza e compreensão, a idéia do autor literário. O texto breve de Nassar é reminiscência de André sobre sua infância na fazenda (p.7 e 8). No filme, em corte do P6 para o P7, a câmara abre em luz intensa sobre Andrémenino, correndo em bosque, enquanto, na faixa-som, a voz do narrador fílmico (o próprio Luiz Fernando Carvalho), diz, fora do quadro, as palavras de André-narradorliterário. Ao optar por uma outra voz oral narrativa, externa à diegese cinematográfica, Carvalho, ao mesmo tempo que preserva o discurso autoral de Nassar, apropria-se dele para constituir o seu discurso narrativo. Isso só é possível porque a voz off – as palavras, o texto verbal falado –, tocando a imagem a partir do hors-champ, a altera e a reconstrói, modificando a enunciação. Esse narrador externo vai, a partir daí, guiar, paralelamente à voz de André, no campo imagético, o desenvolvimento do que se conta. As imagens na tela, em nenhum momento, ilustram a fala narradora: são duas instâncias poéticas, geradas por fontes diferentes, que se encontram num único espaço estético: o do filme LavourArcaica. Retrabalhando as diferenças, talvez irredutíveis, entre palavra e imagem, Carvalho concentra, nesse artifício, aquilo que Raymond Bellour (1997, p.66 – grifo meu), referindo-se à possibilidade de reciprocidade estética de palavra e imagem, chama de “aproximação produtiva de todas as relações possíveis entre elas” Na passagem do P14 para o P15, o autor aprofunda ainda mais a concepção de tradução intercódigos, ao lidar, de forma brilhante, com a árdua mas profícua idéia de


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memória como superposição de tempos. Enquanto no P14 ainda são dadas a ver as imagens de André-menino, o narrador off (a voz do próprio Luiz Fernando) diz as quatro primeiras linhas do texto que abre o capítulo 3 do livro: “E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai [...]”. Logo após, corte profundo no tempo e no espaço, de volta ao quarto-catedral, close no torso de André que abotoa a camisa (“Abotoe a camisa, André”; P6, p.8): em off, a voz do narrador (agora, o André fílmico, o ator Selton Mello) conclui a frase – “[..] é que eles revelavam um corpo tenebroso”. Na elipse técnica, constrói-se a ponte – conexão temporal, unindo memória e lembrança: co-presença, em ambos os planos, de discursos do passado e do presente, presentificados pela imagem fotocinematográfica que, por natureza, quer significar a presença física do “eis aí”, o qual, atualizado pela voz off, externa ao campo, acaba remarcando o “eis lá”. Análise detida desses planos evidencia a compreensão de que “a memória é conduto de narrativa” (Deleuze, 1990, p.66). Ou seja, o elemento narrativo (a imagem narrativa) aparece é na imagem-lembrança. O flash-back poderia sugerir aí uma complementaridade dos tempos, ultrapassando a dimensão temporal, ou, como lembra Carcassone (apud Deleuze, 1990, p.66), o passado sendo não “apenas o antes do presente, [mas] também a peça que lhe está faltando, o inconsciente, e muitas vezes, a elipse”. Para concluir essa aproximação inicial ao incipit de LavourArcaica, visto em suas relações com o texto literário, recupero cena literária, a qual Carvalho deslocou do capítulo 3 para o seu prólogo de imagens, na qual se pode verificar como a tradução criativa amplia as marcas literárias da permanente co-presença de luz e sombra, clareza e obscuridade, compreensão e danação, passado e presente. No capítulo 3, André está pondo o quarto em ordem, enquanto não começam a beber o vinho rosado; o irmão, a um canto: “[...] as venezianas, [...] por que as venezianas estão fechadas?” (Nassar, 1975, p.12). André abre a janela e deixa entrar “[...] um sol fibroso e alaranjado que

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tingiu amplamente o poço de penumbra do meu quarto [...]” (ibidem, p.12). Nos seis planos fílmicos que se seguem – P19 a P26 –, Carvalho inventa imagens que iluminam o sentido do texto verbal, interpretando o que se descreve literariamente na cena do quarto, a partir da fala de Pedro sobre as venezianas fechadas. No P20, ao fechar a porta do armário onde guarda peças de roupa, André se vê refletido no espelho da porta, quando ouve a pergunta de Pedro. Essa imagem – reflexo especular de André – cria fato que não corresponde a descrições ou narrações do texto literário. O que se aproveita aqui é a possibilidade ideal de reflexão comparativa sobre a natureza da imagem fílmica e da palavra escrita: o quadro em sombra e luz da tela do cinema coincidindo com a imagem do espelho – o quadro de luz que reflete a imagem de Pedro – como uma intersecção metalingüística para a ressonância de idéias elaboradas na escrita de Nassar. Esse fato – imagem de André no espelho – não é dado no literário: o que se registra em imagens aí é a idéia de um homem que não se reconhece na imagem embaçada do espelho e que na própria superfície enevoada tenta se nominar, desenhando-se verbalmente (mas não conseguindo escrever todas as letras do próprio nome – o que fica graficado no espelho é apenas “AN”) sobre um espaço físico em que ele não se identifica nem pela imagem nem pela palavra: imagem indefinida, difusa; palavra vazia de sentido, não produtora de significado. Essa seria a tradução do autor fílmico para o que o autor literário expressa com palavras: “[...] eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos [...]” (Nassar, 1975, p.12); “[...] os olhos baixos, dois bagaços [...]” (ibidem, p.13). Invenções tradutoras, como se vê, que redesenham com força poética as marcas do literário. O prólogo fecha, após André abrir as venezianas do escuro quarto inviolável, com a notável composição em branco intenso de luz solar na qual Luiz Fernando Carvalho apresenta seu projeto estético para a tradução intersemiótica do livro de Raduan Nassar, simbolizada em Lavour


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DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Arcaica – título do filme e presentificação de sua proposta de ler, no encontro dos dois códigos narrativos, a lavoura de Raduan Nassar pela messe de sua lavoura fílmica. Como se viu, por meio desta leitura comparada do incipit cinematográfico de Luiz Fernando Carvalho com segmentos da narrativa de Raduan Nassar – as duas lavouras que são a única e a mesma no entrecruzamento dos dois textos –, ao transitar do texto alheio para o seu próprio, o cineasta explora intervalos, ultrapassando margens e limites, na tradução fílmica iluminadora que propõe para o romance. Esse é um exercício de tradução criativa, sem dúvida, com marca autoral: transcriação. Livro e filme podem ser lidos, então, em conjunto, como textos complementares, numa intersecção em que um ilumina o outro; ainda que, em sua essência formal, constituam-se como objetos artísticos autônomos, intransferíveis que são em suas especificidades estéticas.

. A conversa (entrevista). Cadernos de Literatura brasileira, São Paulo, n.2, set. 1996.

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Anexo

semifechada, olhos abertos, fixos; movimentos faciais lentos, respiração entrecortada. CORTE.

DECUPAGEM DA SEQÜÊNCIA 1 (Incipit, Prólogo de

P2 – PP de mão que entra em quadro pela direita, dedos crispando-se sobre o peito de André, em close. Dorso continua movimento de respiração acelerada, agora enquadrado de ponto de vista oposto ao do enquadramento anterior; som da locomotiva cresce na faixa sonora, sincronizado com os movimentos executados pela outra mão de André e pelos espasmos de seu dorso; câmara fecha, em flou, no peito arfante de André. CORTE.

P4 – Plano fixo fechado, em contra-plongée, de lâmpada pendida de forro em madeira, balançando lentamente; forro reflete, como que em arabescos de luz e sombra levemente movimentados, sombras de cortina rendada não visível no quadro. Na faixa sonora, som de patas de cavalo, levemente, calmo, como que a aumentar o silêncio que invadiu o quarto após o clímax sonoro e visual do plano anterior. CORTE. P5 – Close, enquadramento como em P3. Na faixa som, batidas quase inaudíveis em superfície de madeira. André vira o rosto para o lado, lentamente, depois, fixa-se na direção do barulho; som de maçaneta sendo movimentada. CORTE. P6 – PC, plongée. André, deitado, nu, em assoalho de madeira, enquadrado pelo retângulo da porta aberta do quarto, centralizado no quadro, em viés, levanta-se, em gestos rápidos, de costas, ao mesmo tempo em que recolhe as calças armafanhadas do chão, ao lado da qual estava deitado, veste-a apressado (na faixa som as batidas se intensificam, volume de som alto); apanha também do chão a camisa e sai de quadro, que fixa cabeceira de uma cama e espaldar de cadeira até que André entra em quadro, vestindo a camisa, joga um pano sobre a cama, atravessa a soleira da porta do quarto e dirige-se para a porta de entrada da outra peça, à direita, abrindo-a. No lado de fora, vêse Pedro, recortado em negro contra a luz do corredor, que se movimenta em direção a André, pára na frente de André, que está de costas para a câmera, olha-o por instantes, e, em silêncio, encosta seu rosto no dele, abraçando-o.

P3 – Close em rosto crispado de André, boca aberta, como se agonicamente emitisse grito em ríctus, coincidindo com aumento de volume do apito da locomotiva, que, a partir daí, vai diminuindo até desaparecer da faixa sonora, enquanto a câmara fixa parte do rosto de André, em close, desfocado, imagens distorcidas, lábios tremendo, boca

André: “Eu não te esperava. Não te esperava”. Pedro: “Nós te amamos muito”. Parados, um em frente do outro, porta aberta, olhos nos olhos. Pedro abraça André novamente, enquanto diz, voz embargada: Pedro: “Nós te amamos muito”.

LavourArcaica) Quadro em fundo preto, letras brancas, em linhas separadas: “Vídeo Filmes/ Luiz Fernando Carvalho/ apresentam”. CORTE. Pl – Close, flou, desfocado, contraste claro-escuro intenso, em tons pastéis, de tecidos amarfanhados ocupando todo o quadro. Travelling p/d até enquadrar rosto de André e, logo em seguida, torso, deitado de costas, que, por movimentos bruscos, contorce-se, virando a cabeça. Entra na faixa-som barulho de locomotiva tipo “mariafumaça”, baixo, vai crescendo, na medida em que os movimentos de André vão ficando mais acelerados. Identifica-se o braço direito em movimento rápido a partir de um ponto não visível no quadro; logo em seguida, o outro braço também se movimenta e se apóia numa cadeira ao lado do corpo, que treme todo, contraindo-se em movimentos cada vez mais rápidos, coincidindo com o aumento de volume do que agora se identifica claramente como o som de locomotiva em movimento, acrescido de apito característico. CORTE.


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Afastando-se de André, movimentando-se lentamente, Pedro baixa a cabeça, olhando para o lado. Pedro: “Abotoe a camisa, André”. Desvia de André, que permanece imóvel, cabeça baixa, virado para o corredor, e entra na peça, parando em PP, baixando a cabeça, enxuga, com lenço, lágrimas nos olhos, enquanto André vira-se para ele; entra música, violino, na faixa sonora, vazando para o plano seguinte. CORTE. P7 – PC, dia, exterior. Luz solar intensa. Travelling lateral p/d acompanha menino correndo em bosque com vegetação rala, enquadrado da cintura para baixo, descalço, entre folhas secas que espalha para os lados em sua movimentação, enquanto na faixa-som ouve-se, em off: “André!, André!”. CORTE. P8– Close, enquadramento da parte inferior das pernas de André-menino, movimentanto os pés no chão, alto de folhas secas, como se quisesse enterrá-los na terra, levantando e baixando os joelhos lentamente, deitado na vegetação do bosque. Em off, na faixa-som, voz infantil: “André!”. CORTE. P9 – Close, em plongée. Região pubiana e de parte das pernas de André, sob ponto de vista da cabeça para os pés; sombras móveis das folhagens criam arabescos em luz e sombra em seu corpo. Voz off (narrador): “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família”. Mãos de André alisam as pernas, lentamente. Narrador: “Amainava a febre dos meus pés na terra úmida”, enquanto o menino se cobre de folhas secas. “Cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra...” CORTE. P10 – Plano fechado, contra-plongée. André, deitado corpo coberto de folhas secas. Voz off: “...eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho”; outra voz, infantil, ao longe: “André!”

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O corpo de André completamente coberto de folhas secas, apenas o rosto de fora, olhos fechados, acomoda-se no leito de folhas, em PP, folhas verdes agitadas pelo vento. Voz off: “Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas, liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” CORTE. P11 – Close, em plongée. Camisa branca largada em meio a vegetação. Mão do menino entra em quadro, pegando a camisa. Voz infantil, em off, mais audível agora: “André!”. Em travelling para cima, contra-plongée, abrindo em PC, câmara enquadra árvores velhas, de troncos nodosos, recortadas contra claridade do céu. Voz em off: “De que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera?”. P12 – Close. Rosto de André-menino, entre as folhas, deitado, olhando para cima. CORTE. P13– PC, contra-plongée. Recortadas contra céu de luz intensa, copas frondosas de árvores agitadas pelo vento. Voz off: “Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo”. CORTE. P14 – Close no rosto do menino, deitado, olhos semiabertos, entre folhagem seca. Voz off (narrador): “Eu me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E se eles eram bons, é porque o corpo tinha luz. E se os olhos não eram limpos [...]”. CORTE. P15 – Close. Torso de André adulto que abotoa a camisa. André: “... é que eles revelavam um corpo tenebroso”. Câmera sobe, enquadrando rosto de André em close, cabeça baixa. CORTE. P16 – PC, irmão em PP, de costas, recortado contra luz de lampião, vira o rosto para a direita; sons ambientais, passos. CORTE.


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P17 – PC, André em PP, de costas, abaixa-se e arruma cama. CORTE.

permanece por segundos, com música na faixa-som aumentando de volume. CORTE em fade in longo.

P18 – PC fechado no irmão que se desloca em direção a André. CORTE.

P27 – Quadro luminoso em branco, imagens difusas, contornos abstratos em movimento; por sobreimpressão, começam a aparecer em negro, sobre o fundo luminoso, letras pretas que formalizam: “LavourArcaica”.

P19 – PC, André continua arrumando coisas pelo quarto, câmara em movimento corrige para ele em PC fechado, quando ele abre guarda-roupa (sons ambientais), onde joga toalha e outras peças de roupa. CORTE. P20 – Close. Ao fechar a porta do armário, André, em PP, se vê refletido no espelho da porta do móvel, em flou, como num contracampo dele com sua própria imagem. Câmara em travelling p/f fecha em enquadramento de rosto de André encostando na imagem de seu rosto refletido de frente no espelho, que fica embaçado pela respiração ofegante dele. Entra música na trilha sonora, piano, lento. CORTE. P21– PC, irmão movimenta-se na peça e olha na direção de André, que está hors-champ. CORTE. P22 – Close, André refletindo-se no espelho, rosto sombrio, passa os dedos na superfície em que se reflete, começando a escrever no vapor condensado no espelho as letras iniciais de seu nome, em maiúsculas. Não conclui: “AN” é só o que fica escrito no espelho. CORTE. P23 – Close. Rosto do irmão, olhando na direção de André. Pedro: “As venezianas...”. CORTE. P24 – Close, rosto de André refletido no espelho. CORTE. P25 – Close, irmão, como no 21. CORTE. Pedro: “... as venezianas estão fechadas!”. CORTE. P26 – Close, rosto de André, refletido no espelho, semblante carregado; abaixa a cabeça, volta-se, enquanto a câmera abre em PA de André e acompanha-o em direção da janela, abrindo-as, sempre refletido no espelho, deixando entrar uma claridade intensa que apaga todas as imagens em quadro, restando o campo luminoso que assim

Enquanto desaparece do quadro o título do filme, lentamente, vão sendo visíveis as palavras, dispostas em duas linhas: “da obra de” “Raduan Nassar”. E na seqüência, pelo mesmo artifício técnico: “um filme de” “Luiz Fernando Carvalho”. Legíveis por alguns segundos, também desaparecem lentamente, restando campo com formas abstratas em branco, até o corte, em fade in. Todo esse plano é acompanhado por trilha sonora musical, com vozes infantis não identificáveis no fundo, numa intersecção de sons musicais instrumentais e sons vocais humanos, mas sem que se possa entender as palavras articuladas. CORTE. No quadro em negro, por fade out, entram em flou, recortadas por enquadramento fechado, as dobras de panos como única informação visual permitida pelo close. Dessa geografia de formas, ainda não plenamente legíveis, nosso olhar é levado pela mobilidade do olho narrativo a dar conta de outra visualidade: o corpo de André; o dorso desnudo, primeiro; logo, o rosto crispado.


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Imagens e espaços da melancolia: W. G. Sebald e Anselm Kiefer Leila Danziger*

Desde o Renascimento, a gravura Melencolia I, de Dürer, tornou-se a representação mais célebre da melancolia, afecção insubordinada à separação entre a matéria e o espírito. Na obra, reconhecemos o melancólico em sua imobilidade: ao seu redor, objetos do conhecimento parecem inúteis e inertes. Neste trabalho, veremos obras que reatualizam as sensações físicas e espaciais que aparecem na gravura do início do século XVI. Na literatura de W. G. Sebald, mas também nas pinturas e instalações de Anselm Kiefer, encontramos uma espacialidade adensada por acúmulos de materiais e objetos, que nos falam do corpo em sua relação arrastada e morosa, decididamente melancólica, com as coisas do mundo. Alguns aspectos das relações entre melancolia e memória são também abordados, favorecidos pela aproximação da obra de Kiefer com o contos “Funes, o memorioso”, de J. L. Borges.

RESUMO:

PALAVRAS-CHAVE:

* Professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Melancolia, memória, artes visuais.

ABSTRACT: Since the Renaissance, the engraving Melencolia I, by Dürer, has become the most famous representation of melancholy, an affliction unsubordinated to the separation between matter and spirit. In the image, we recognise the melancholic in its motionlessness; around him, familiar objects seem inutile and inert. In this essay, we shall see works that update spacial sensations that appear on the engraving of the beginning of the 16th century. In the literature of W.G. Sebald, but also in the paintings and installations of Anselm Kiefer, we encounter a space thickened by the accumulation of materials and objects that tell us about the body and their slow, morose and unquestionably melancholic relationship with the objects of the world. Some features of the relations between melancholy and memory are also approached, favored by the proximity of the works of Kiefer with the tale Funes, the memorious, by J. L. Borges. KEYWORDS:

Contemporary art, melancholy, memory.


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Sabemos que a lentidão é um atributo do melancólico. A representação do peso e da imobilidade está presente em incontáveis obras da literatura e das artes visuais que procuram dar forma à melancolia, essa afecção insubordinada à separação entre a matéria e o espírito, que vem fascinando filósofos, médicos, poetas e artistas desde a Antigüidade até os nossos dias. Os Anéis de Saturno, de W. G. Sebald (2002a), inicia-se, justamente, pela descrição da sensação de imobilidade. Preso a um leito de hospital, o narrador se arrasta em direção à janela e tenta desesperadamente assegurar-se de que o mundo lá fora ainda existe. Ele descreve sua ação associando-a à lembrança de Gregor, o homem metamorfoseado em inseto de Kafka, e a narrativa será um lento e doloroso deslizamento entre suas lembranças – na verdade um emaranhado de imagens e referências literárias – e a paisagem externa, sempre marcada pela devastação. Os espaços percorridos pelo narrador são sobrecarregados de signos, imagens, objetos e espectros que se reúnem em intrincadas configurações que logo se dissipam. Tudo e todos carregam segredos jamais decifrados. Algo semelhante ao que percebemos na gravura que dá forma a mais célebre representação da melancolia, realizada por Dürer, em 1516. Nessa obra, o anjo imóvel e de rosto sombrio parece não suportar o próprio peso. A cabeça inclinada apoiada sobre o punho é a postura clássica do melancólico e, ao seu redor, os objetos do conhecimento, que deveriam medir o tempo e o espaço, jazem obscurecidos pela falta de sentido, inúteis e inertes. O espaço da gravura é constituído pelo acúmulo, pela descontinuidade entre os objetos, que dificilmente estabelecem nexos entre si, levando-nos a constituir uma lista para nomeá-los: o anjo, o compasso, o livro, o quadrado mágico, a ampulheta, o cão, o querubim, o morcego, a escada, o poliedro, a esfera, entre vários outros elementos. Há uma desordem que é fruto de um embate silencioso que envolve todas as coisas. No lado esquerdo, os objetos sugerem instabilidade e perigo: o mar em suas mudanças incessantes, a esfera instável, a sombra

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de um crânio na face do poliedro, a escada, que oferece o risco de queda no abismo. No lado direito, predomina o aspecto sólido e estável, em que prevalece a maciça figura da mulher alada (alegoria da astronomia), diante da forma arquitetônica que sugere uma torre. Para Peter-Klaus Schuster (2005, p.93), Dürer retoma nessa composição, minuciosamente construída, a antítese Virtus-Fortuna, recorrente no repertório alegórico humanista. Para o historiador alemão, um dos maiores estudiosos da gravura na atualidade, Melencolia I é uma exortação à virtude, endereçada ao melancólico para que seu espírito superior se forme e se eleve, apesar de todas as resistências. A dignidade do homem no humanismo consiste em ser criador de si mesmo e, “pelo uso virtuoso de seus dons intelectuais, pela prática das artes e das ciências guiada na medida justa, só assim se faz verdadeiramente justo à imagem de Deus” (Schuster, 2005, p.94) A interpretação de Schuster concilia a leitura de Aby Warburg às realizadas por seus discípulos Panofsky e Saxl. Segundo Warburg, a gravura de Dürer mostra a personificação da melancolia ao sair vitoriosa na luta com as sombras potentes que a habitam: a loucura, a aflição, a preguiça e o luto. O anjo conseguiria superar todos os males que o afligem, explorando as disposições particulares do temperamento saturnino para as ciências e as artes. A ligação entre a melancolia e a filosofia, a poesia e as artes já aparece em Aristóteles (1998, p.81), que perguntava: “Por que razão todos os que foram homens de exceção [...] são manifestamente melancólicos?” Para o filósofo e também para Marsilio Ficino, fundador da Academia Platônica, em Florença, o temperamento melancólico é a condição de todo grande espírito. Retornando a Warburg, ele defende que Melencolia I é uma obra reconfortante, pois mostra justamente a vitória do temperamento melancólico sobre o seu lado sombrio e a superação da aflição que o ameaça em permanência. Ao longo de uma minuciosa análise iconográfica, Panofsky e Saxl vêem, por sua vez, a personificação da


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melancolia resignada, vencida em sua aspiração ao conhecimento, pois percebe os limites de seu espírito em relação ao Divino e, assim, recai no abatimento e no desespero. Independente das eventuais falhas nas interpretações iconográficas, apontadas por Schuster, a leitura de Saxl e Panofsky mantém-se atual ao ver na obra os limites da razão humana. A recepção da gravura pela a arte e pela literatura contemporâneas desconhece o debate humanista – a oposição entre a virtude e a fortuna – e percebe-a como um signo da fragmentação e da consciência da incompletude, tão próprias à modernidade.

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Ao olhar o ambiente de trabalho da personagem Janine Dakyns, uma obsessiva estudiosa da obra de Flaubert, o narrador de Os Anéis de Saturno descreve-o tendo como modelo o espaço de ruminações do anjo da melancolia: Na escrivaninha, ponto original de partida e de reunião daquela singular multiplicação de papéis, no curso do tempo surgira uma verdadeira paisagem de papel com vales e montanhas, que, como uma geleira quando atinge o mar, se quebrava nas beiradas formando no chão, em torno, novas camadas que se moviam no centro da sala. Anos atrás, as crescentes camadas de papéis tinham obrigado Janine a esquivar-se de sua escrivaninha para outras mesas. [...] O último local de trabalho de Janine foi uma poltrona empurrada mais ou menos para o centro do escritório, na qual, passando pela sua porta sempre aberta, a gente a via sentada ou inclinada para diante rabiscando em um papel preso num suporte sobre os joelhos, ou recostada para trás, perdida em pensamentos. [...] Quando lhe disse que ali no meio de sua papelada ela parecia o anjo da melancolia de Dürer entre os instrumentos da destruição, ela respondeu que a aparente desordem de suas coisas na verdade representava algo parecido com uma ordem perfeita ou a caminho da perfeição. (Sebald, 2002a, p.18-9)

Figura 1 – Albrecht Dürer, Melencolia I, 1514 (24 x 18,9 cm) gravura em metal (buril).

É interessante notar que todos os personagens de Sebald parecem enredados por um fio obscuro de sentido que os reúne na quase imobilidade. Por mais que Janine Dakyns avançasse na coleta de dados que contribuiriam para a análise minuciosa e exaustiva de Flaubert, mais ela parece presa à sua proliferação de papéis, algo semelhante à areia que conquistava todas as coisas na obra do escritor francês. “Em um grão de areia na bainha de um vestido de inverno de Emma Bovary, disse Janine, Flaubert vira o Saara inteiro, e cada poeirinha para ele pesava tanto quanto os montes Atlas” (ibidem, p.18). Essa atenção ao detalhe é também própria a Sebald, cujo olhar atém-se ao minúsculo e ao aparentemente insignificante. Ao contemplar o


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rio Blith, perto da costa entre Southwold e Walberswick, pelo qual navios carregados dirigiam-se ao mar, Sebald descreve o movimento das águas inscrito em outros tempos. No presente, o fluxo foi estancado e o que o narrador percebe é, ainda uma vez, a imagem da imobilidade. “Hoje praticamente não há mais tráfego nesse rio, em grande parte atulhado de areia” (ibidem, p.147). Sabemos que a areia é uma potente metáfora do esquecimento e essa ameaça – ou melhor, sua inexorabilidade – infiltra-se na melancolia de Sebald.

Vanitas A areia é um dos elementos da Vanitas, natureza-morta em que objetos carregados de valores simbólicos advertem contra a precariedade da vida humana e os perigos de deixar-se seduzir pelas riquezas terrestres. Os objetos recorrentes nessas pinturas são ampulhetas, livros, flores, espelhos, velas e crânios, estabelecendo contrastes entre o mundo do espírito, incorruptível, e o mundo da matéria, submetido ao tempo e à degradação. Destituída da função moralizante que detinha sob o barroco, o tema da Vanitas é constante ao longo do livro de Sebald, notável na descrição de tantos e tantos brilhos do passado que se tornaram opacos na atualidade. A Vanitas está explicitamente presente numa das fotografias que integram suas obras. (Sebald, 1992, p.21). Apresentadas sem legendas ou qualquer explicação, a origem da maioria dessas fotos é incerta. Reproduzidas em preto-e-branco, sem nuanças de tonalidades ou grandes recursos de impressão (mesmo na edição alemã), as fotos assemelham-se a algo como a imagem da imagem ou à lembrança esmaecida de uma imagem mental. Sua função, obviamente, não é ilustrar a narrativa, mas constituíla com um outro sistema de signos. Como os personagens, as fotos são espectros e vivem na dúvida entre o fato e a ficção, mas decididamente acentuam o efeito de real que

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emana de seus livros. Agendas, cartas, cadernos de registros e manuscritos diversos convivem com reproduções amadoras de paisagens, lápides de cemitérios, fachadas de edifícios e retratos de pessoas. As fotos parecem pertencer irremediavelmente ao passado, lavadas pelo tempo, recobertas de areia, mas afirmam a permanência de valores que, contra tudo, resistem ao desaparecimento. O interesse do narrador de Os Anéis de Saturno por um certo Thomas Browne orienta enumerações de objetos e materiais em que o contraste entre a vida e a morte são explícitos. Espírito formado pelo barroco, filho de um comerciante de seda – e o brilho da seda propicia uma das belas passagens do livro –, Browne é um médico inglês que supostamente teria assistido à cena de dissecação que deu origem à célebre tela de Rembrandt, A lição de anatomia do Dr. Tulp (1632). Insatisfeito com os limites da ciência de sua época, ele eleva sua perplexidade diante da finitude e precariedade da vida humana até as estrelas. “O próprio tempo envelhece. Pirâmides, arcos de triunfo e obeliscos são pilares de gelo que derrete. Nem mesmo aqueles que encontraram um lugar sob as estrelas do céu conseguiram manter a glória para sempre” (ibidem, p.33). Uma Vanitas paradoxal, em que o brilho da vida prolonga-se para além da morte, é construída quando o narrador de Os Anéis de Saturno observa a pesca do arenque, ou melhor, quando vagueia pelo labirinto de informações coletadas entre as mais diversas fontes. A descrição minuciosa da coloração do peixe evoca a fulgurância breve de todo ser vivo: “o tom ouro alaranjado”, “o brilho metálico branco puro”, “um verde escuro de inigualável beleza”. O curioso é que a morte do arenque intensifica sua luminosidade. Fora da água, seu corpo morto reluz intensamente durante alguns dias e o abandona apenas quando apodrece. A perplexidade discreta diante da fugacidade da vida e da beleza é um sentimento que perpassa todo o livro. Mas esse sentimento de beleza – de uma beleza ensombrecida – compartilha com Adorno (1992, p.19) a exigência da reflexão:


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Não há mais nada de inofensivo. As pequenas alegrias, as manifestações da vida que parecem excluídas da responsabilidade do pensamento não possuem só um aspecto de teimosa tolice, de um impiedoso não querer ver, mas se colocam de imediato a serviço do que lhes é mais contrário. Até a árvore que floresce é mentirosa no momento em que se percebe seu florescer sem a sombra de um sobressalto [...]

Resistência Escritor da memória, em Os Anéis de Saturno e também em Os imigrantes, há uma atenção rigorosa à materialidade das coisas. Sebald nos faz ver a dissolução implacável e contínua; a gênese às avessas de nosso mundo moderno. Em suas obras, ouvimos a fricção da matéria, vemos depósitos de sedimentos, percebemos camadas de resíduos que se organizam lentamente. Ao descrever o processo de trabalho do pintor Max Aurach, cujo ateliê é situado numa fábrica desativada de Manchester, Sebald nos faz lembrar Frenhofer, o pintor de Le chef d’oeuvre inconnu, em que Balzac antevê o caráter aporético da arte moderna e contemporânea. Ao contrário de Frenhofer, que, confrontado ao extremo em que chegara sua pintura, se imola com sua obra, Aurach tem plena consciência do fracasso de sua tarefa, que deve começar e recomeçar a cada dia: Como aplica grandes quantidades de tinta e as raspa de novo da tela no curso de seu trabalho, o chão está coberto por uma massa de vários centímetros de altura já endurecida, com uma crosta misturada com pó de carvão e achatada nas beiras, parecendo um rio de lava, que Aurach diz ser o verdadeiro resultado de seus permanentes esforços e a mais evidente prova de seu fracasso. (Sebald, 2002b, p.160)

O pintor Aurach não é apenas um desterrado, como todos os personagens de Sebald – e como o próprio autor, que trocou a Alemanha pela Inglaterra nos anos 1960 –, mas alguém que se deixou paralisar no exílio, enviado pelos pais que permaneceram na Alemanha e foram assassinados pelo nazismo. A representação do corpo melancóli-

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co adquire forma magistral quando Aurach descreve uma crise de hérnia de disco. Totalmente curvado sobre si mesmo, imobilizado ao longo de horas, o pintor diz que sua vida “fora reduzida a um único ponto minúsculo de extrema dor” e que o “terrível estado de paralisia total pela dor, correspondia, da maneira mais exata que se pudesse imaginar, a essa condição interior que com os anos se tornara a minha” (ibidem, p.171-2). Não seria surpresa encontrarmos, por entre as imagens que integram as longas narrativas de Sebald, as pinturas de Caspar David Friedrich, pintor do romantismo alemão, que elevou a pintura de paisagem, nas primeiras décadas do século XIX, a uma qualidade até então inédita. Em acordo com a filosofia de Schelling, para quem “a natureza é o espírito visível e o espírito a natureza invisível”, as pinturas de Friedrich nos oferecem a experiência de uma natureza sustentada unicamente pela subjetividade do artista. Suas paisagens nos mostram caminhantes solitários, absortos na contemplação da natureza e, mesmo reunidos em pares, mantém-se isolados e incomunicáveis. Em Os Anéis de Saturno, apesar dos diálogos sugeridos, o narrador parece infenso a encontros. Aplica-se aqui o que Susan Sontag (1986, p.93) observa em relação a Benjamin: “as profundas transações entre o melancólico e o mundo se dão com coisas (e não com pessoas)”. Uma das mais potentes pinturas de Friedrich é Mar de gelo (1821), conhecida também como A esperança naufragada, em que extensos fragmentos de gelo constroem um espaço hostil e incerto em torno de uma pirâmide ameaçadora. Não me parece difícil imaginar as intrincadas tramas da memória de Sebald conduzindo-nos a esse espaço que expulsa o observador da cena e constrói uma imagem do sublime. Uma vez contaminados pelo processo de associações despertado pela leitura de Sebald, vale lembrar que Gadamer evoca a lembrança da tela de Friedrich – um naufrágio nas geleiras do mar Báltico – ao iniciar sua interpretação do seguinte poema de Paul Celan: “Com mastros cantados, apontados para a terra,/ seguem os destro-


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ços celestes./ Nessa canção de madeira/ cravas os dentes com força./ Tu és a flâmula/ sólida de canto”. Em sua leitura, Gadamer (2005, p.83) sugere que apesar da ruína de toda esperança, do “naufrágio que acontece no céu”, o canto continua a ser cantado. [...] em uma completa inversão da realidade que desmoronou, após o naufrágio do céu e de todas as suas promessas, o poeta chamou a si mesmo de flâmula. Ele está atracado ao mastro da canção, quer dizer tornou-se inseparável dele. Assim como a flâmula do navio que afunda é a última a submergir, da mesma forma o poeta é o último a anunciar e a prometer a vida com seu canto, o último a abandonar a esperança.

Embora trabalhem a língua alemã de formas tão opostas – as longas descrições de Sebald em tudo contrastam com o condensamento extremo da poesia de Celan –, o sentido de resistência do poeta pode ser percebido também na literatura de Sebald. Como observou Márcio SeligmannSilva (2005, p.119), “Sebald tenta restabelecer a arte de narrar em uma época pós-narração. Sua escrita nasce, portanto, de uma impossibilidade, mas também de uma necessidade de resistir”. O tema da resistência dá forma, entre outros, ao poema Stehen, de Celan, que continuou a escrever poesia na língua alemã pós-Auschwitz, atravessada por tantas sombras e emudecimentos: “Resistir, à sombra/ da ferida aberta no ar./ Resisistir-por-ninguém-e-por-nada./ Irreconhecido,/ para ti/ somente./ Com tudo o que aí tem lugar, mesmo sem/ linguagem” (Gadamer, 2005, p.82).

Chumbo A escritura da memória em Sebald parte da atenção às vidas desprezadas, anônimas, deixadas à margem da história, já o pintor Anselm Kiefer faz do mito o cerne de sua reelaboração da história e da memória. Nascidos no final da Segunda Grande Guerra, os dois artistas crescem numa Alemanha devastada econômica e, sobretudo, moralmente, mas não se negam ao embate com suas heranças pessoais.

Figura 2 – Ansel Kiefer, Melancholia, 1989, chumbo e vidro, 470 x 370 x 215 (poliedro 62 x 70 x 70), Neues Museum Weimar.

Em 1969, Kiefer deixou-se fotografar com o braço direito erguido, na temível saudação hitlerista, diante de uma série de monumentos em diferentes capitais européias. Nesse gesto, assumia – de forma crítica – seu passado nacional. Intitulada Ocupações, essa série de fotos deu início a uma extensa obra em que o artista investiga sua identidade como artista e também como alemão. Para ele, a identidade nunca é uma aquisição estável e una, sim, indefinidamente adiada, compósita e precária. Kiefer se reconhece como pintor num sistema em que tanto a arte quanto o continente europeu encontram-se desvitalizados. A revitalização na qual se empenha retira força e tensão de seu embate com a história da arte e da cultura. Assim, para o artista, a tela – ou mesmo todo e qualquer outro suporte – é a membrana de uma relação entre o pequeno tempo humano e individual e o grande tempo universal. Desde o final da década de 1980, o chumbo é o material predominante nas imensas pinturas, instalações e esculturas do artista. Sabemos, desde os tempos em que astronomia e astrologia se confundiam que Saturno é o planeta associado à melancolia, enquanto o chumbo é seu ele-


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mento principal. No final da década de 1980, Kiefer realizou uma série de pinturas e livros de chumbo que fazem uma clara alusão à obra do artista de Nuremberg. Na escultura Melancholia, de 1989 – nada mais que um imenso avião de chumbo sobre o qual pousa um poliedro de vidro –, Kiefer confere nova forma ao paradoxo contido na gravura de 1516. Nem Fortuna e tampouco Virtude. A alegoria que encarnava os embates do humanismo, num momento inaugural da história da cultura do Ocidente, adquire um contorno especialmente sombrio. A imobilidade do personagem de Dürer – que tem asas, mas não voa – transforma-se em um avião fossilizado: a modernidade, com toda a sua potência de construção e destruição, é vista aqui como ruína. O nome de um melancólico célebre paira sobre a alegoria de Kiefer, o de Walter Benjamin, potente “tradutor” da obra de Dürer: “O único prazer que o melancólico se permite, um prazer intenso, é a alegoria”. (Sontag, 1986, p.96)

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A obra possui em inglês o título The High Priestess, numa referência a carta do Tarot que simboliza a distinção entre Gnosis e Ciência (Zweite, 1989, p.67).

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pectiva praticada no norte da Europa está em vigor a experiência de um espaço côncavo, em que se manifesta ainda uma herança do gótico. Esse espaço subjetivo, simultaneamente abrigo e ameaça, orienta Terra de dois rios (Zweistromland), imensa escultura de chumbo, realizada por Kiefer entre 1985 e 1989. A escultura é um todo orgânico que parece indistintamente pertencer ao mundo da cultura e da natureza. Cerca de duzentos livros de chumbo dispostos em duas estantes com três prateleiras de quatro metros de altura e oito de comprimento envolvem o espectador. Sobre elas, duas pequenas placas de chumbo – Tigris e Euphat – remetem ao título da obra: a Mesopotâmia.1 Em cada volume, dois fios de arame parecem destinados a auxiliar o manuseio, mas essa aparente funcionalidade contrasta com as dimensões e o peso evidente de cada livro. Folheá-los seria uma experiência penosa, exigindo o corpo em sua integridade, uma tarefa decididamente melancólica.

Biblioteca Melencolia I, de Dürer, pertence à mesma série de gravuras à qual faz parte São Jerônimo em seu gabinete. O local de trabalho do santo é representado como um nicho, incluindo em certa medida o espectador no espaço representado. O ponto de vista oblíquo, a partir do qual a obra se organiza, é grandemente responsável pelo sentimento de intimidade que a gravura proporciona: surpreendemos o santo em seu local de retiro e estudo. Nessa imagem, ao inverso daquela em que é representado o anjo da melancolia, tudo está em seus lugares e a ordem reina. Em A perspectiva como forma simbólica, Panofsky escolhe essa gravura de Dürer para demonstrar as diferenças entre a construção da perspectiva na Itália e no norte da Europa, comparando-a a uma pintura com o mesmo tema, feita por Antonello da Messina. Enquanto os italianos desconsideram a vista oblíqua, reivindicando, sobretudo, a objetividade, a vista descentrada é privilegiada pelos artistas alemães. Na pers-

Figura 3 – Ansel Kiefer, Terra de dois rios (Zweistromland/ The High Priestess) 200 livros de chumbo (aprox.) sobre estantes de aço, vidro e arame. Fotografia do trabalho em processo no ateliê do artista, 1985.


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Terra de dois rios, uma das mais importantes obras de Kiefer, integra o acervo do Museu Astrup Fearley, em Oslo. À margem dos museus europeus mais visitados, a obra de Kiefer provoca impacto ainda maior. Diante dela, impossível não lembrar da Biblioteca, descrita por Borges (1995, p.92) como a “imagem labiríntica do universo”. “Iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”. Essas qualificações aplicam-se à escultura de Kiefer, com exceção do adjetivo “incorruptível”, pois a obra parece submeter-se de bom grado à ação do tempo, ceder ao trabalho da gravidade e envelhecer. Ao contrário da ampulheta – injusta metáfora temporal, em que o tempo desliza uniforme e suavemente –, em Terra de dois rios, o tempo age com a força da inércia, acumula-se e mostra-se literalmente um fardo; é certo que dentro de anos ou décadas, o trabalho tenha adquirido novas feições. Se a melancolia em Sebald era experimentada pelo caminhar labiríntico por entre paisagens devastadas, lembranças e um saber enciclopédico, a experiência da melancolia em Kiefer se dá, sobretudo, pelo impacto maciço do material que nos envolve. O peso da obra é percebido com o olhar corpóreo que é próprio da arte moderna. A obra de Kiefer (1990, p.120) solicita integralmente todos os nossos sentidos e o artista declara: “Meus quadros são totalmente compreensíveis pelos sentidos. [...] Mas somente a experiência dos sentidos é algo muito desbotado. Procuro a integridade”. Na biblioteca de chumbo – metal entre os mais impenetráveis usado desde tempos remotos na construção de ataúdes e refratário à radiação –, os volumes não mostram seu conteúdo. Os livros, que podem pesar até uma tonelada e foram trabalhados ao longo de quatro anos, são inacessíveis. A exposição parcial de seu conteúdo é possível por meio de um outro livro, aparentemente apenas mais um estudo sobre o artista, mas que, no entanto, constituise em uma obra em si mesma, fruto de uma parceria entre o artista e o historiador da arte Armin Zweite (1989). Na

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publicação, não há distinção entre criação e comentário. O artista escolheu 28, entre os cerca de duzentos volumes, e selecionou algumas páginas de cada volume para a análise de Zweite. Colocado próximo à escultura no local de exposição, o livro revela parcialmente o lado oculto da biblioteca que se destina a ser apreendida como forma, e esconde mais do que revela. E o que as páginas dos livros escondem? Um amálgama heterogêneo de metal oxidado, resíduos orgânicos e fotografias – vistas do ateliê do artista, paisagens desoladas, nuvens, mares, ruínas, usinas abandonadas, metrópoles (São Paulo, Chicago); um repertório de imagens e materiais, que com exceção das grandes cidades, poderia estar nas páginas de Sebald. A verdade é que mesmo as metrópoles vistas por Kiefer integram-se à poética de Sebald, em que predominam pequenas cidades e balneários esquecidos. Como o avião de chumbo, antes mencionado, as grandes cidades são vistas como ruínas pelo artista. Sebald e Kiefer possuem em comum a visão da modernidade sob o signo da perda e da dissolução. Não há brilho nas obras de Kiefer, e sim a opacidade do chumbo, das cinzas e da areia, materiais utilizados em muitas de suas paisagens. Se as reproduções fotográficas nas obras de Sebald entregam-se plenamente a seu destino de imagem, o estatuto da fotografia como imagem é problematizado em Kiefer. Manipuladas e adensadas por operações diversas, as fotografias são mais um material, entre tantos outros, mas se recusam a ser tão-somente imagens. Desvinculada de qualquer naturalismo, com freqüência, as fotos são feitas sob iluminação propositalmente equivocada ou ampliadas de modo a provocar distorções e enfatizar estranhezas. A relação estabelecida entre os diversos materiais e as fotos é de resistência recíproca. Argila, chumbo, oxidações do metal, longos cabelos negros, arames e estilhaços de vidro estranham-se, travam conflitos nunca pacificados. A fotografia, em Kiefer, possui algo dos primeiros tempos dessa invenção e talvez nelas possamos ouvir, como Barthes, “o barulho do tempo”, “o ruído vivo da madeira”. Para o francês, “o órgão do Fotógrafo não é o


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olho [...], mas o dedo: o que está ligado ao disparador da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando a máquina ainda a tem)” (Barthes, 1984, p.30). A imagem nas obras de Kiefer insiste em manter um certo “caráter manual”, uma relação efetiva com a experiência das coisas. Suas obras são também resistência, uma tentativa corajosa de qualificar a experiência contemporânea.

Funes Diante de Terra de dois rios, a associação com a Biblioteca de Babel é patente, mas um outro célebre conto de Borges é igualmente importante no esclarecimento da relação entre Kiefer, a memória e a história. Em “Funes, o memorioso”, o protagonista sofre um acidente que o priva dos movimentos e, no mesmo golpe, adquire uma memória infalível. “Mais recordações tenho eu sozinho que as tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”, declara Funes, e afirma ainda que a imobilidade é um preço irrisório diante de sua nova e indescritível capacidade de perceber e lembrar (Borges, 1995, p.104). O destino do personagem Irineu Funes representa uma crítica à história semelhante à de Nietzsche (1988) em suas Segunda Consideração Intempestiva. Se a cultura histórica é uma virtude do século XIX, para Nietzsche, essa é uma virtude hipertrofiada que se transforma facilmente em seu inverso: um vício, um mal. Todo conhecimento deve engendrar a atividade, caso contrário torna-se nocivo, paralisante. A história não deve tornar-se um fardo para o presente. Ela pertence ao ser ativo e potente – aos heróis ou aos artistas – que embora não sejam de fato livres em suas ações, são soberanos (Nietzsche, 1988, p.26). Submetidos ao peso de uma história autoritária, seríamos condenados a uma insônia permanente. Ora, é justamente o fardo de uma eterna vigília, de uma memória sem falhas que se abate sobre o jovem Funes, imobiliza-o e o leva à morte. Sua capacidade mnemônica é incompatível com a vida e o pensamento. Funes não era capaz de pensar,

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pois “pensar é esquecer diferenças, generalizar, abstrair”. Ou, para usar os termos de Nietzsche, Irineu não era dotado de força plástica – a capacidade de determinar em que nível o passado deve ser esquecido, pois tanto o ponto de vista histórico quanto o a-histórico são necessários para a saúde de um ser vivo, indivíduo, povo ou civilização. Um organismo saudável é capaz de curar e cicatrizar as feridas, substituir as perdas, reconstruir as formas fragmentadas. Na obra de Kiefer, a ação do tempo acumulada em oxidações e sedimentos, incrustado no metal, sobreposto em folhas e folhas de chumbo, constitui-se uma advertência aos excessos da memória, e, ao mesmo tempo, por sua presença física contundente, pode ser sentida também como uma resistência ao caráter volátil e efêmero de nosso universo informacional. Como Nietzsche, Kiefer apóia-se no mito, inserindo com desenvoltura em suas obras referências a Alexandre, o Grande, Gilgamesh, lendas nórdicas e também à cabala judaica, misturam-se de forma surpreendente. Entre outras coisas, a história alemã fornece ao artista a tensão moral necessária para que sua obra se produza, ao mesmo tempo que ao realizar-se ela confere à história uma singular inteligibilidade. Para Nietzsche, a voracidade histórica da modernidade é uma óbvia compensação à perda do mito. O homem moderno, cindido entre ser íntimo e ser exterior, transforma-se numa “enciclopédia ambulante”, carregando o excesso de culturas que lhe são estranhas, hábitos, filosofias e religiões que instruem mas também retiram força vital (Bilsdungskraft). Para o filósofo, os alemães seriam aqueles que mais sofrem com essa fraqueza, a contradição entre forma e conteúdo. A forma, simples convenção, é rejeitada, pois os alemães orgulham-se de possuir o sentido do conteúdo – a interioridade. No entanto, embora a interioridade alemã detenha rara intensidade, permanece enfraquecida, pois não se traduz em ações (ibidem, p.109) Não é a toa que na Alemanha, Melencolia I tenha se tornado – especialmente durante o romantismo – o retrato por excelência da sensibilidade alemã.


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É claro que a crítica de Nietzsche à hipertrofia da consciência histórica não pode ser aplicada aos nossos dias. Ninguém afirmaria hoje que temos história demais. A dificuldade da conjuntura atual é pensar a memória e a amnésia juntas, em vez de simplesmente opô-las. Portanto, nossa febre não é uma febre de consumir a história, no sentido nietzscheano, que pode ser curada por um esquecimento produtivo. É antes uma febre mnemônica que é causada pelo vírus da amnésia e que por vezes ameaça consumir a própria memória. (Huyssen, 1997, p.17)

Para Huyssen, o enorme interesse pelas memórias – individuais, geracionais, coletivas – seria uma forma legítima de reação contra a aceleração de avanços técnicos irreversíveis que transformam profundamente nossas formas de viver o tempo. O congelamento da memória em mercadoria, advertência de Adorno, não retira a legitimidade de uma cultura da memória vista como “um sinal potencialmente saudável de contestação”. O boom da memória, para usar uma expressão que lhe é cara, pode ser compreendido como a necessidade de viver em estruturas de temporalidade de maior duração, a “formação reativa de corpos mortais que querem manter sua temporalidade contra um mundo de mídia que esparge sementes de uma claustrofobia sem tempo e engendra fantasmas e simulações” (ibidem, p.20). A literatura de Sebald e a produção plástica de Kiefer, entre tantas outras que tentam dar forma à memória a partir da segunda metade do século XX, especialmente marcado por tantas catástrofes, inscrevem-se nesse desejo de resistência e de construção de uma experiência do tempo que não se desfaça tão logo se realize, como marcas na areia. Por fim, uma possível superação da melancolia seria encontrada na passagem à ética. Identificada por Freud, em texto de 1917, como a impossibilidade permanente de realizar o trabalho de luto e investir a libido em outro objeto de afeto, a melancolia adquire contorno particular no final do século passado. A depressão, uma das formas da

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melancolia, tornou-se tão comum quanto a histeria, doença do final do século XIX. Mas se a histeria foi uma revolta do corpo feminino contra tantas opressões, “a depressão, ao contrário, cem anos depois, parece ser a marca de um fracasso do paradigma da revolta, num mundo desprovido de ideais e dominado por uma poderosa tecnologia farmacológica” (Roudinesco, 1998, p.507). Em Modalidades do despertar traumático: Freud, Lacan e a ética da memória, Cathy Caruth (2000, p.112) expõe longamente o difícil processo interior de sobreviver ao trauma, desvelando no choque da visão traumática, “uma relação que pode ser definida como ética com o real”.O imperativo ético de sobreviver, de acordar para o real, de desfazer a imobilidade melancólica adquire bela expressão no textomanifesto do coletivo de artistas argentinos Situationes. Em Politizar la tristeza, eles sugerem a transformação da melancolia numa delicada, porém potente estratégia de ação.

Referências ADORNO, Theodor W. Minima moralia. Trad. Luis Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992. ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX.1. Trad. do grego, apresentação e notas Jackie Pigeaud; trad. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda, 1998. BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Julio Castagnon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Carlos Nejar. Rio de Janeiro: Globo, 1995. CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; NESTROWSKI, Arthur. (Org.) Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000.p.111-36. COLETIVO SITUACIONES. Politizar la tristeza. Kassel: Documenta 12 Magazines. Disponível em <http://editors.documenta.de/ admin/login.php> Acesso em 27 abril 2007. GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem es tu? Comentário sobre o ciclo de poemas Hausto-cristal, de Paul Celan. Trad. e apresentação de Raquel Abi-Sâmara. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005.


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HUYSSEN, Andréas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

Ver e sentir: Stendhal e as artes visuais

KIEFER, Anselm. Pintar como feito histórico. Trad. Leo Edpstein. Gávea, Puc-Rio, n.8, p.112-24, 1990.

Leila de Aguiar Costa*

LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002. NIETZSCHE, Friedrich. Seconde Considération Intempestive. De l’utilité et de l’inconvénient des études historiques pour la vie (1874). Paris: Flammarion, 1988.

RESUMO: As artes visuais, sobretudo a pintura, perpassam toda a produção stendhaliana: romances, textos autobiográficos, narrativas de viagem, correspondência e crônicas jornalísticas são norteados, mesmo que lateralmente, pela acepção que tem Stendhal da representação das sensações por outros modos artísticos que não o literário. Para ele, então, a pintura, assim como a escultura e a arquitetura, deve falar essencialmente ao páthos do espectador. O objetivo deste artigo é, pois, o de acompanhar Stendhal – ou Henri Beyle – em suas observações sobre as belas artes italianas e francesas, e vê-lo assim conformar um edifício escritural marcado pela visão e pela emoção.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. SCHUSTER, Peter-Klaus. Les enfants de Saturne. In: CLAIR, Jean. (Org.) Mélancolie, génie et folie en Occident. Paris: Réunion des Musées Nationaux ; Galimmard, 2005. p.90-105. SEBALD, Winfried Georg. Os Anéis de Saturno. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Record, 2002a. . Os imigrantes. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Record, 2002b. . Die Auswanderten. Vier Lange Erzählungen. Frankfurt: Fischer Verlag, 2002c.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, belas artes, emoção, subjetividade,

Stendha.

SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Trad. Ana Maria Capovila e Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 1986.

ABSTRACT:

Visual arts, especially painting, mark the entire stendhalian textual production: novels, autobiographical writings, travel narratives, letters and journalistic chronicles are organized, somewhat latterally, by Stendhal‘s perspective on representations of sensations through non-literary means. According to him, painting, as well as sculpture and architecture, must speak essentially to the pathos of the spectator. Consequently, this article aims at the examination of Stendhal’s—or Henri Beyle’s—remarks on Italian and French fine arts, so as to see him configuring a scriptural building characterized by insight and emotion.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005. ZWEITE, Armin. Anselm Kiefer: The High Priestess. New York: Harry Abrams; London: Anthony d´Offay Gallery, 1989.

KEYWORDS: Literature, fine arts, emotion, subjectivity, Stendhal

“Que olho pode se ver a si mesmo?” * Doutora em Ciências da Linguagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.

Itália. Itália paraíso terrestre, terra originária, terra materna, síntese ideal da existência: ali, amor e arte são uma


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só coisa a trabalhar na constituição do sujeito stendhaliano. Stendhal, o Italiano. A italianidade é, pois, marca congênita da individualidade daquele que, civilmente, é conhecido como Henri Beyle. Mas de um Beyle que recusa toda sua pertença à França, terra paterna, para se assumir plenamente como um Gagnon – Guadagni ou Guadaniamo, italianos originários de um “país ainda mais belo que a Provença”, de um “país onde as laranjeiras crescem em plena terra” (Stendhal, 1973a, p.92-3). País de “delícias” que afasta Stendhal da “terrível repugnância” que sente por Grenoble, onde tudo “é vulgar e insípido”, onde tudo é “inimigo do menor movimento generoso” (ibidem, p.108). De um lado, então os Beyle, sobretudo Chérubin, o pai, “estrangeiro a todas as belas idéias literárias e filosóficas”, preocupado unicamente com o “dinheiro” e responsável por tornar a infância do filho “uma seqüência de penas, de dores amargas e de tristezas” (ibidem, p.108). De outro lado, os Gagnon, mãe, avô e tio, sobre os quais Stendhal edifica uma família ideal, de ascendência quase romanesca, que lhe garante uma filiação ao literário e ao artístico. França e Itália. Está assim definida a espacialidade na qual deambulará inicialmente Beyle, em seguida Brulard e, por fim, Stendhal. Um mundo dividido em dois universos diametralmente diversos: mundo setentrional, “petrificado” e “negro”; mundo meridional, que se confunde com sensações de “felicidade”, de “encanto”, de “bonomia” e, sobretudo, de “natural”. Não surpreende, pois, que sua autografia, ou autoretrato escritural,1 intitulada Vie de Henry Brulard, seja perpassada pelas belas artes, de extração essencialmente italiana, que formam, conformam e norteiam temperamento e talentos do ser que constrói para si um eu à medida que (se) escreve e que anota suas sensações ao final de um dia de deambulações por Roma. É paradigmática a abertura da Vie de Henry Brulard, espécie de moldura – no sentido metafórico e visual – de tudo o que se seguirá. A passagem é bastante longa, mas sua transcrição aqui, quase na íntegra, impõe-se de modo incontornável:

Ver e sentir: Stendhal e as artes visuais

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Seguindo as observações de Michel Beaujour (1980), parece-me mais apropriado qualificar a Vie de Henry Brulard como auto-retrato, uma vez que a escrita do eu que ali se constrói opera mais no registro do discontinuum que do continuum, da alogicidade, sem preocupação com o seqüencial. O objetivo de Stendhal é registrar os efeitos do mundo e das coisas sobre o sujeito, a partir da “lembrança de uma imagem”, que é lembrança indireta, tênue. É como ele mesmo diz em Rome, Naples et Florence (Stendhal, 1973a, p.3): “Este esboço é uma obra natural. Todas as noites eu escrevia sobre o que mais havia de afetado”. Ou em Souvenirs d´égotisme (Stendhal, 1983, p.56): “Quase não tenho lembranças distintas destes tempos tempestuosos e passionais”, “Minhas idéias são tão vagas sobre esta época [...]”.

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Je me trouvais ce matin, 16 octobre 1832, à San Pietro in Montorio, sur le mont Janicule, à Rome, il faisait un soleil magnifique. Un léger vent de sirocco à peine sensible faisait flotter quelques petits nuages blancs au-dessus du mont Albano, une chaleur délicieuse régnait dans l´air, j´étais heureux de vivre. Je distinguais parfaitement Frascati et Castel Gondolfo qui sont à quatre lieues d´ici, la villa Aldobrandini où est cette sublime fresque de Judith du Dominiquin. Je vois parfaitement le mur blanc qui marque les réparations faites en dernier lieu par le prince François Borghese [...] Bien plus loin, j´aperçois la roche de Palestrine et la maison blanche de Castel San Pietro qui fut autrefois sa forteresse. Au-dessous du mur contre lequel je m´appuie sont les grands orangers du verger des capucins, puis le Tibre et le prieuré de Malte, un peu après sur la droite le tombeau de Cécilia Metelle, Saint-Paul et la pyramide de Cestius. En face de moi j´aperçois Sainte-Marie-Majeure et les longues lignes du Palais de Monte Cavallo. Toute la Rome ancienne et moderne, depuis l´ancienne voie Appienne avec les ruines de ses tombeaux et de ses aqueducs jusqu´au magnifique jardin de Pincio bâti par les Français, se déploie à la vue [...] Quelle vue magnifique ! c´est donc ici que la Transfiguration de Raphaël a été admirée pendant deux siècles et demi. Quelle différence avec la triste galerie de marbre gris où elle est enterrée aujourd´hui au fond du Vatican ! Ainsi pendant deux cent cinquante ans ce chef-d´oeuvre a été ici, deux cent cinquante ans !... Ah ! Dans trois mois j´aurais cinquante ans, est-il bien possible ! 1783, 93, 1803, je suis tout le compte sur mes doigts... et 1833 cinquante. Est-il bien possible ! cinquante! Je vois avoir la cinquantaine. [...] Cette découverte imprévue ne m´irrita point, je venais de songer à Annibal et aux Romains. De plus grands que moi sont bien morts !... Après tout, me dis-je, je n´ai pas mal occupé ma vie, occupé ! Ah ! c´est-à-dire que le hasard ne m´a pas donné trop de malheurs, car en vérité ai-je dirigé le moins du monde ma vie ? [...] Je me suis assis sur les marches de San Pietro et là j´ai rêvé une heure ou deux à cette idée. Je vais avoir cinquante ans, il serait bien temps de me connaître. Qu´ai-je été, que suis-je, en vérité je serais bien embarrassé de le dire.


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[...]... Et là, comme je ne savais que dire, je me suis mis sans y songer à admirer de nouveau l´aspect sublime des ruines de Rome et de sa grandeur moderne; le Colisée vis-à-vis de moi et sous mes pieds le palais Farnèse avec sa belle galerie de Charles Maderne ouverte en arceaux, le palais Corsini sous mes pieds. [...] Enfin je ne suis descendu du Janicule que lorsque la légère brume du soir est venue m´avertir que bientôt je serais saisi par le froid subit et fort désagréable et malsain qui en ce pays suit immédiatement le coucher du soleil.2 (Stendhal, 1973, p.27-30)

2

“Eu me encontrava esta manhã, 16 de novembro de 1832, em San Pietro in Montorio, no monte Janiculo em Roma, fazia um sol magnífico. Um leve vento de sirocco quase imperceptível fazia flutuar algumas pequenas nuvens brancas acima do Monte Albano, um calor delicioso reinava no ar, eu estava feliz por viver. Eu distinguia perfeitamente Frascati e Castel Gandolfo que ficam a quatro léguas daqui, a villa Aldobrandini onde está aquele sublime afresco de Judith, do Dominicano. Vejo perfeitamente a parede branca que marca a últimas restaurações feitas pelo príncipe Francesco Borghese [...] Bem mais longe, percebo a rocha de Palestrina e a casa branca de Castel San Pietro que foi outrora sua fortaleza. Abaixo da parede contra a qual me apóio ficam as grandes laranjeiras do pomar dos capucinos, em seguida o Tibre e o priorado de Malta, um pouco depois à direita do túmulo de Cecilia Metella, San Paolo e a pirâmide de Cestius. À minha frente apercebo Santa Maria Maggiore e as longas linhas do Palácio de Monte Cavallo. Toda a Roma antiga e moderna, da antiga via Ápia com as ruínas de suas tumbas e seus aquedutos até o magnífico jardim de Pincio construído pelos franceses, abre-se à vista [...]. Que vista magnífica! foi então aqui que se admirou durante dois séculos e meio a Transfiguração de Rafael. Que diferença com a triste galeria de mármore cinza onde ela está hoje enterrada, no fundo do Vaticano! Assim, durante duzentos e cinqüenta anos, aqui esteve esta obra-prima, duzentos e cinqüenta anos!... Ah! Dentro de três meses eu terei cinqüenta anos, será isso possível? 1783, 93, 1803, sigo toda a conta na ponta dos dedos... e 1833 cinqüenta. Será isso possível!? Cinqüenta! Farei cinqüenta. [...] Esta descoberta imprevista não me irritou, eu acabava de pensar em Aníbal e nos Romanos. Homens mais importantes que eu estão completamente mortos!... No final das contas, disse a mim mesmo, ocupei bem minha vida, ocupei! Ah! Isto quer dizer que o acaso não me deu grandes infelicidades, pois, na verdade, será que acaso sequer conduzi minha vida? [...] Sentei-me nos degraus de San Pietro e lá, durante uma hora ou duas, sonhei com a seguinte idéia: vou fazer cinqüenta anos, talvez tenha chegado a hora de me conhecer. O que fui, o que sou; na verdade, terei embaraços em dizê-lo. [...] E então, como não sabia o que dizer, pus-me novamente, sem perceber, a admirar o aspecto sublime das ruínas de Roma e sua grandeza moderna; o Coliseu face a mim e sob meus pés o palácio Farnese com sua bela galeria de Charles Maderne, aberta em arcos, com o palácio Corsini sob meus pés. [...] Somente desci do Janiculo quando a leve bruma da noite veio me avisar que logo eu seria tomado pelo súbito, bastante desagradável e malsão frio que, neste país, segue-se imediatamente ao pôr-do-sol”.

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Stendhal põe-se assim no mirante – mirante que o permite contemplar rastros de uma civilização presente que guarda traços de uma mais antiga; mirante que o faz escrutar sua interioridade para, enfim, se conhecer. O sujeito que então se dedicará à escrita de si é a mão que, à noite, no palácio Conti, Piazza Minerva, escreve a lembrança dessa manhã radiosa no Monte Janiculo; é também o olho que, ao descobrir Roma envolta na luminosidade solar, inventará sua própria paisagem. Donde a interrogação que perpassa toda a Vie de Henry Brulard: “Que olho pode se ver a si mesmo?”, interrogação que locará a escritura no registro do visual e, se se preferir, da figuração, da imagerie. A imagem que se abre ao olhar inscreve o Eu no tempo e no espaço, tempo e espaço incorporados pelo sujeito. Estar pela manhã no Monte Janiculo, desfrutar um “sol magnífico”, respirar o “leve vento de sirocco”, deixálo roçar as faces do mesmo modo que ele faz “flutuar algumas pequenas nuvens brancas”, sentir-se envolver pelo “calor delicioso”: eis a felicidade. Que pode mesmo se tornar amor, uma vez que, para Stendhal, a Itália confundese com o “amor”, é “como o amor”, como ele diz em determinado momento de Rome, Naples et Florence. Escrever sobre essa “vista magnífica”, ecos daquele “país de delícias”, é apagar, pelo ato mesmo da escritura de uma lembrança, a distinção entre esse Eu, que observa e admira, e o momento e o lugar, cercados pela profusão luminosa. E pela felicidade que é resultado dessa tríade ver-viver-escrever. “Eu estava feliz por viver” não é senão o registro de um sujeito que vê, para depois viver e, depois ainda, escrever. Não por acaso, então, as quatro primeiras frases da passagem se declinam no imperfeito – “eu estava...”, “fazia um sol magnífico...”, “um leve vento de sirocco fazia flutuar...”, “eu estava feliz...”, “eu distinguia...” –, imperfeito da mão que escreve a lembrança de uma visão recente, para em seguida mergulhar no presente, presente verbal – “eu vejo...”, “eu percebo”, “apóio-me...” – e presente da escritura que torna o passado um presente efetivo, atualizado pela descrição, aqui, de obras arquitetônicas. A imagem


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presta-se, pois, como fonte de inspiração e, ao mesmo tempo, como meio mesmo de expressão – no sentido primeiro do termo, isto é, trazer algo à exterioridade e, igualmente, no seu sentido segundo, de ato de escritura. Esse olho stendhaliano que vê é olho em deslocamento, que em suas errâncias acaba por com-pôr o espaço à medida que desfilam diante dele Frascati e Castel Gandolfo, a vila Aldobrandini, o “muro branco”, a “rocha de Palestrina”, a “casa branca de Castel San Pietro”, as “grandes laranjeiras” e o “pomar dos capucinos”, o Tibre, o “túmulo de Cecília”, a igreja de São Paulo, a “pirâmide de Cestius”, Santa Maria Maggiore, Palácio Monte Cavallo... toda Roma, enfim. Olho errante a ver o mundo, mundo que lhe reenvia seu reflexo e que acaba por se tornar como que reflexo de um Eu cuja imagem é a imagem percebida e captada pelo olhar. Olho e mundo refletidos tornam-se uma só paisagem. Aquele “lugar único no mundo”, aquela “vista magnífica” – de Roma; de si mesmo? –, e as pedras dos “degraus de San Pietro”, dão conta da medida humana do tempo – “Ah! em três meses farei 50 anos, será possível? [...] Será possível?! cinqüenta!”; impulsionam ao autoconhecimento, ao “quem fui”, ao “quem sou”; à busca de uma resposta para a interrogação balizar “Que olho pode se ver a si mesmo?”. Aquele olho não poderia ser outro senão um olho scriptor, que se (re)presentará escrituralmente a partir de seu próprio olhar. Olho scriptor que recupera sensações experimentadas, reavivando-as pelo movimento mesmo da retroação: depuis trois ans m´est venue, sur l´esplanade de San Pietro in Montorio (Janicule), l´idée lumineuse que j´allais avoir cinquante ans et qu´il était temps de songer au départ et auparavant de se donner le plaisir de regarder un instant en arrière.3 (Stendhal, 1973, p.115)

Reavivar, reviver após ter pensado “na partida”. O futuro é, pois, um passado. Um passado que, curiosamente, é a origem da história que pertence ao Eu que somente se põe a existir pelo movimento da escrita e pela consti-

4

Quadro que aqui não se reproduz uma vez que o que interessa é o convite à leitura da visão de Brulard e não propriamente o objeto de sua visão... a Transfiguração aí está, mesmo em toda a sua ausência.

3

“Há três anos, na esplanada de San Pietro in Montorio (Janiculo), veio-me a idéia luminosa que eu faria cinqüenta anos e que era tempo de pensar na partida e de se permitir, antes disso, o prazer de olhar um instante para trás.”

5 Em Souvenirs d’égotisme, a presença da Vênus de Urbino, de Ticiano, possuiria a mesma função: Beyle, ao narrar seu fiasco sexual por ocasião de uma visita ao prostíbulo, convoca a figura feminina nua e deitada em seu ato total de entrega ao olhar, do espectador e do aspirante ao amor. E a Vênus de Ticiano, que se torna a prostituta Alexandrina, não é outra senão a representação de um outro corpo ausente e desejado, aquele de Matilde Dembowski, por quem Stendhal se apaixona em 1818; essa paixão, inicialmente retribuída, mas infeliz ao final em razão de calúnias contra Stendhal, servirá de motus ao De l’amour, publicado em 1822. Observe-se, ainda, que Matilde é descrita por Stendhal como uma beleza lombarda, cujos traços se assemelham à nobreza terna das figuras femininas de Leonardo da Vinci.

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tuição de um texto. Eis porque é somente a sete capítulos do final da Vie de Henry Brulard que o sujeito da escritura exclama: “Vou nascer, como diz Tristram Shandy” (Stendhal, 1973, p.358). Caso algum olho não tenha lido o que viu Stendhal: a Transfigurazione de Rafael... que atuaria como uma espécie de figura de substituição. O quadro de Rafael, enterrado no fundo do Vaticano – no preciso momento em que o olho de Brulard percorre a vista de Roma –, é a um tempo toda Roma e o próprio sujeito stendhaliano, que se apropria do passado, hoje locado sob o “mármore cinza”, para torná-lo memória a ser revivida – memória da cultura artística e rememoração do sentimento em face da obra de arte. Sem contar que a Transfiguração narra, justamente, dois episódios: na parte superior, o momento em que Jesus se metamorfoseia diante de Moisés e de Elias, “seu rosto brilhando como o sol e suas roupas tornando-se radiantes como a luz”, como quer o Antigo Testamento; na parte inferior, o momento em que um pai clama pela intervenção de Jesus a fim de salvar seu filho, possuído pelo diabo. Filho trans-figurado e filho des-figurado, o que parece se apresentar ao olho de Brulard é a possibilidade de se figurar nesse quadro, invisível e legível,4 que é como um rito de passagem ou um percurso iniciático de descoberta da verdadeira face do sujeito. A pintura presta-se então aqui a provocar a memória e o ato mesmo da escrita, que traço após traço da mão que escreve reconstitui tempos e lugares e situações experimentadas.5

“A vida em mim se esgotara” Se escrever sua vida passa em grande medida pelo reavivar de sensações experimentadas junto a edifícios e ruínas arquitetônicas, e a quadros pictóricos; se o Eu que se escreve se com-põe graças a certos lugares, construindo assim para si uma espacialidade própria inspirada de uma espacialidade histórica, não surpreende que em Stendhal


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admirar uma bela obra de arte signifique o esvaziamento da própria vida. Ver uma bela obra de arte e, então,... ver sua vida se esvair. É o que sente ele quando, em 22 de janeiro de 1817, em Florença, percebe-se subitamente à beira de um desfalecimento, ao contemplar, na igreja de Santa Croce, na capela Niccolini, os afrescos de Volterrano:

7

“[...] Quanto às quatro Sibilas, sobre elas não posso falar nada que seja mais forte. É grandioso, é vivo, parece a natureza em relevo; uma delas tem aquela graça que, ao lado do grandioso, torna-se imediatamente apaixonado.”

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Là, assis sur le marchepied d´un prie-Dieu, la tête renversée et appuyée sur le pupitre, pour pouvoir regarder au plafond, les Sybilles du Volterrano m´ont donné peut-être le plus vif plaisir que la peinture m´ait jamais fait. J´étais déjà dans une sorte d´extase, par l´idée d´être à Florence [...] Absorbé dans la contemplation de la beauté sublime, je la voyais de près, je la touchais pour ainsi dire. J’étais arrivé à ce point d’émotion où se rencontrent les sensations célestes données par les Beaux Arts et les sentiments passionnés. En sortant de Santa Croce, j’avais un battement de cœur [...]; la vie était épuisée chez moi, je marchais avec la crainte de tomber./ 6 (Stendhal, 1973a, p.480)

“Eu caminhava temendo cair”... síndrome de Stendhal! Que a própria psicologia incorporou a seu leque de males psicossomáticos... Síndrome de Stendhal que acomete, pois, àqueles se expõem excessivamente à contemplação de obras de arte. E se uma obra de arte não faz desfalecer, ao menos deve levar seu espectador às lágrimas, à emoção duradoura. Eis o que, justamente, alguns anos antes, em 27 de setembro de 1811, também em Florença, se dá com Stendhal (1981-1982, p.782-3) ao contemplar o quadro Limbes, do mesmo Volterrano: “Senti-me comovido até às lágrimas [...] Meu Deus, quanta beleza! Minha emoção durou duas horas”. Uma obra de arte deve, igualmente, ser capaz de provocar não apenas o encantamento, mas, igualmente, o súbito enamoramento. E são uma vez mais os afrescos de Volterrano, naquele mesmo dia de setembro de 1811, que enlevam Stendhal, como ele mesmo descreve em seu Journal: “[...] Quant au quatre Sibylles, je n´en puis rien dire d´assez fort. C´est grandiose, c´est vivant, ça paraît la nature en relief ; l´une [...] a cette grâce qui, jointe

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“Ali, sentado no estrado de um genuflexório, a cabeça recostada e apoiada sobre o aparador, para poder melhor ver o teto, as Sibilas de Volterrano deram-me quiçá o mais vivo prazer que a pintura me proporcionou. Eu estava em uma espécie de êxtase pelo fato de estar em Florença [...] Absorto na contemplação da beleza sublime, eu a via de perto, quase a tocava para assim dizer. Eu chegara àquele ponto de emoção em que se encontram as sensações celestes dadas pelas Belas Artes e pelos sentimentos passionais. Saindo de Santa Croce, sofria de palpitações [...]; a vida em mim se esgotara, eu caminhava temendo cair.”

Observe-se que Stendhal é, aqui, quase que um homem do século XVII, sobretudo se pensarmos que Roger de Piles (1989, p.15), em seu Cours de peinture par príncipes, afirmava que o coloris é a parte da pintura que “mais participa do efeito sobre o espectador”. Roger de Piles (1989, p.176) discorre, ainda, sobre o claroescuro, e em suas observações reconhecemos uma vez mais a perspectiva de Stendhal: “Pela palavra de claro-escuro se entende a arte de distribuir de modo conveniente as luzes e as sombras que devem se encontrar em um quadro, tanto visando ao repouso e à satisfação dos olhos quanto ao efeito de todo o conjunto”.

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Rossini é outro compositor de predileção de Stendhal (1980, p.58), que destaca a sua ópera Bianca e Faliero. Ali, a música, em razão de seu devaneio, predispõe ao amor: “uma ária triste e melancólica, se ela não é muito dramática, se não obriga a imaginação a pensar na ação, levando puramente ao devaneio do amor, é deliciosa para as almas ternas e infelizes: por exemplo, o timbre prolongado do clarinete, no começo do quarteto de Bianca e Faliero, e a narração da Camporesi, na metade do quarteto”.

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au grandiose, me rend sur-le-champ amoureux (Stendhal, 1973a, p.480, n.2).7 Se os afrescos de Volterrano tanto impressionam Stendhal tal se daria, quiçá, pelo fato de esse gênero de pintura conter em si o espaço da peça em que se encontram. Como nota com propriedade Richard N. Coe (1965, p.42), em seu artigo “Quelques réflexions sur Stendhal paysagiste”, os afrescos têm a propriedade de criar uma “ilusão de distância” em relação ao olho do espectador; suas “cores apagadas” contribuem, por conseguinte, àquele “efeito de sensações veladas que sempre fez vibrar” a sensibilidade stendhaliana. Eis porque Stendhal é grande admirador do coloris,8 do claro-escuro, do que ele chama “dégradation” [dégradé]. Admirador, por conseguinte, de Correggio, tantas vezes evocado em suas obras de cunho autobiográfico, assim como naquelas de fatura romanesca – a título de exemplo, basta lembrar que, em carta endereçada a Balzac, que compusera um Étude sur la Chartreuse de Parme, Stendhal diria que “muitas passagens referentes à duquesa de Sanseverina são copiadas de Correggio”; ainda na Chartreuse de Parme, o protagonista, Fabrice del Dongo apresenta uma “fisionomia à la Correggio”, belo, grave, pálido. Correggio, pois. Ao pintor renascentista, Stendhal reserva todo um capítulo, o sexto, de seu texto intitulado Écoles italiennes de peinture. Oferecer “prazer ao olho”: eis a marca distintiva da pintura de Correggio, toda repousada na nuança, “nuança de uma bela noite de verão”, nuança obtida pela luminosidade de “estrelas cintilantes” que se mistura “ao escuro azul dos céus” (Stendhal, 1932, p.7-8). Tudo está no coloris e nas cores, nessas “cores que dão a idéia de algo celeste e feliz” (ibidem, p.8) e, ao mesmo tempo, de terno e de melancólico; tudo é resultado de um jogo com a luz e com as sombras. A pintura de Correggio, assim como uma brilhante noite de verão, é “espetáculo que faz sonhar, que faz suspirar” (ibidem, p.7-8). Ela é “quase como música” – e sabe-se o apreço de Stendhal pela música vocal, sobretudo aquela de Cimarosa e de Mozart:9


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Corrège a rapproché la peinture de la musique. Un beau chant10 donne un plaisir physique à l´oreille, et pendant que la partie physique de nous-mêmes est doucement touchée par ce plaisir actuel, notre imagination se livre avec volupté aux imagens qui lui sont indiqués par le chant. (ibidem, p.8)

Correggio e seu claro-escuro, Correggio e o dégradé das tonalidades: a espécie de “cristal” que parece cobrir seus quadros, espécie de fino véu, é responsável pela emoção que o olho stendhaliano experimenta ao espetáculo da pintura. Também em Ghirlandaio Stendhal reconhece a “justa dégradation de luz e de cores” que faz que os espectadores pensem, “surpresos”, que há ali uma “profundidade”. É o que o amante da Itália qualifica de “perspectiva aérea”: Quel est l´homme qui, passant sur le Pont Royal, ne voit pas les maisons voisines de la statue de Henri IV, sur le Pont Neuf, beaucoup plus colorées, marquées par des ombres et des clairs bien plus forts que la ligne du Quai de Grève qui va se perdre dans un lointain vaporeux ? A la campagne, à mesure que les chaînes de montagnes s´éloignent, ne prennent-elles pas une teinte de bleu violet plus marquées ? Cet abaissement de toutes les teintes par la distance est amusant à voir dans les groupes de promeneurs aux Tuileries, surtout par le brouillard d´automne. Ghirlandaio s´est fait un nom immortel dans l´histoire de l´art pour avoir aperçu cet effet [...]11 (Stendhal, 1868, p.106-7) 10 Philippe Berthier (1995, p.140), em La Chartreuse de Parme de Stendhal, observa que “o canto aparece como a inevitável modulação lírica do sentimento verdadeiro; aquecido a certa temperatura, ele não pode deixar de naturalmente empregar todos os seus recursos emotivos para se tornar melodia: quando alcança o máximo da agitação vibratória, a palavra ‘decola’ por assim dizer e ascende ao horizonte infinito de uma significação transcendental pela inflexão musical”. O canto seria, então, “palavra soberana, inefável” (ibidem, p.142), capaz de unir, em meio aos ruídos da civilização, os protagonistas da Chartreuse de Parme: Fabrice e Clélia encontram-se pela primeira vez em um recital, em que se cantam árias de Cimarosa e Pergolese; com os olhos plenos de lágrimas, sem se olharem, entregam-se à paixão amorosa. 11

“Qual o homem que, passando pelo Pont Royal não vê as casas vizinhas à estátua de Henri IV, no Pont Neuf, muito mais coloridas, mais marcadas pelas sombras e pelos claros bem mais fortes que a linha do Quai de Grève que vai se perder em um longínquo vaporoso? No campo, à medida que as cadeias de montanhas se afastam, não assumem elas uma tonalidade de azul violeta mais marcada? É divertido ver aquela diminuição de todas as tonalidades pela distância nos grupos de caminhantes nas Tuileries, sobretudo por ocasião da bruma de outono. Ghirlandaio tornou-se um nome imortal na história da arte por ter percebido este efeito [...].” (tradução livre)

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12

Correggio igualmente prima por tal efeito: “Sua arte foi a de pintar como no longínquo até mesmo as figuras do primeiro plano” (Stendhal, 1868, p.107). Stendhal o descobre também em Poussin: “Poussin, com suas paisagens, mergulha a alma no devaneio; ela pensa se encontrar nestes longínquos tão nobres e ali encontra aquela felicidade que nos foge na realidade” (ibidem, p.106). 13

Stendhal faz aqui referência à execução do Cenacolo, trabalho pictórico de envergadura. Vejase minha leitura da perspectiva stendhaliana de tal empreitada neste artigo. 14

“Ele tinha aquele colorido melancólico e terno, abundante em sombras, sem ostentação nas cores brilhantes, triunfante no claro-escuro. De modo que, se ele não tivesse existido, seria preciso inventá-lo para tratar tal assunto.”

15

Segundo Stendhal (1868, p.131), a pintura de Leonardo é marcada por três momentos, ou três “estilos”. O primeiro mostra-se “seco e mesquinho, embora apresente graça”; ele corresponde ao Menino no berço. O segundo, representado pela Virgem dos rochedos, é carregado de “sombras extremamente fortes” (ibidem).

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Aquele “cristal” que cobre os quadros de Correggio corresponde, em Ghirlandaio, à “magia dos longínquos”12 que não faz senão comover “as imaginações ternas”, convidando-as a dar a última pincelada. Eis porque “magia dos longínquos”, esse inefável, aproxima uma vez mais a pintura da música. Entre o Ghirlandaio inventor da “perspectiva aérea” e o Correggio mestre do dégradé – que supera mesmo Rafael –, Leonardo da Vinci, cujo “gênio o consagrava a inventar o belo moderno” (ibidem, p.131): “Il avait ce coloris mélancolique et tendre, abondant en ombres, sans éclat dans les couleurs brillantes, triomphant dans le clair-obscur, qui, s´il n´avait pas existé, aurait dû être inventé pour un tel sujet”13 (ibidem, p.140).14 A terceira fase de seu estilo,15 “mais tranqüilo e de uma harmonia quase terna” (ibidem, p.132), confere “graça” à expressão fisionômica justamente por empregar os “meios-tons”, aquele célebre sfumato obtido pela economia das luzes e pela prodigalidade das sombras – e Stendhal destaca como paradigma dessa fase a Herodíade da tribuna de Florença. Aliás, todas as Herodíades leonardianas servirão a Stendhal de paradigma da beleza feminina em geral e da “beleza lombarda” em particular. É o caso, por exemplo, da figura romanesca da duquesa de Sanseverina, na qual Stendhal reconhece não apenas os traços de Correggio, mas igualmente de Leonardo: “La duchesse avait un peu trop la beauté connue de l´idéal, et sa tête vraiment lombarde rappelait le sourire voluptueux et la tendre mélancolie des belles Hérodiades de Léonard de Vinci”16 (Stendhal, 1949, p.253). Não surpreende, ainda, que ele atribua a Matilde Dembowski os traços quase celestes das figuras femininas de Leonardo:

16

“A duquesa tinha talvez em excesso aquela beleza conhecida como ideal, e sua cabeça lombarda recordava deveras o sorriso voluptuoso e a terna melancolia das belas Herodíades de Leonardo da Vinci”. (tradução livre) Leia-se,

Mais comment exprimer le ravissement mêlé de respect que m´inspirent l´expression angélique et la finesse si calme de ces traits qui rappellent la noblesse tendre de Léonard de Vinci ? Cette tête qui aurait tant de bonté, de justice et d´élévation, si elle pensait à vous, semble rêver à un bonheur absent. La couleur des cheveux, la coupe du front, l´encadrement des yeux, en


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font le type de la beauté lombarde. Ce portrait, qui a le grand mérite de ne rappeler nullement les têtes grecques, me donne ce sentiment si rare dans les beaux-artes : ne rien concevoir audelà. Quelque chose de pur, de religieux, d´antivulgaire, respire dans ces traits [...]17 (Stendhal, 1973a, p.316)

Ler a pintura: o Cenacolo como cena romanesca Ao leitor de Histoire de la peinture en Italie que deseja ali reconhecer “descrições exatas” de pinturas célebres, Stendhal endereça um convite: Feche o livro, você não fará senão se aborrecer! Pois o que interessa a Stendhal é se afastar da “verdade histórica” da representação pictórica de acontecimentos passados para deles apreender unicamente os elementos que falam às emoções. Eis porque a leitura que oferece do Cenacolo de Leonardo da Vinci é mais do que o morceau de bravoure que caracteriza toda écfrase: a descrição que ele faz do afresco pintado no refeitório do convento dominicano Santa Maria delle Grazie passa essencialmente pela percepção emotiva que o espectador stendhaliano tem das figuras de Jesus e de seus discípulos. Pouco importa se Leonardo não respeita a verdade – se fosse fiel à “verdade das circunstâncias judaicas que acompanharam” a “última ceia de Jesus”, ele deveria ter representado Jesus e seus apóstolos “deitados sobre camas, e não sentados a uma mesa” (Stendhal, 1868, p.1545). E se Leonardo tivesse seguido essa “verdade histórica”, os espectadores de seu afresco não “pensariam em ser comovidos” por ele (ibidem, p.155). A descrição stendhaliana do Cenacolo é, pois, essencialmente ligada à impressão de um Stendhal espectador e não de um Stendhal historiador da pintura. Ela torna-se como que uma cena literária, em que Jesus e os doze apóstolos aparentam-se a heróis romanescos envoltos em intrigas, perfídias e... traições. O protagonista da cena é, bem evidentemente, Jesus, que profere “com enternecimento” a frase “Na verdade, eu vos digo, um de vós me trairá”. A Jesus, Stendhal empresta a nobreza de caráter de suas personagens romanescas de

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ainda, a descrição da marquesa del Dongo, mãe de Fabrice. Segundo Robert, jovem oficial francês convidado ao palácio dos Del Dongo, “ela estava então no apogeu da beleza; você a conheceu com aqueles olhos tão belos e duma doçura angelical e com os lindos cabelos dum louro escuro que desenhavam tão bem o oval desse rosto encantador. Eu tinha no meu quarto uma Herodíade de Leonardo da Vinci que parecia seu retrato” (Stendhal, 1949, p.6). (tradução livre)

extração italiana: ele nada tem de “um homem vulgar” que perderia seu tempo “em um enternecimento perigoso”; se assim fosse, “teria apunhalado Judas ou, ao menos, partido em retirada, cercado por seus discípulos fiéis” (ibidem, 1868, p.137). O Jesus de Leonardo visto pelos olhos de Henri Beyle e descrito por Stendhal é de uma “celeste pureza”, de “sensibilidade profunda” e de temperamento que o aproximam de algumas personagens das Chroniques italiennes e da Chartreuse de Parme em razão de seu desprendimento, de sua bondade, de sua dignidade e de sua devoção filial:

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“Mas como expressar o arrebatamento confundido com o respeito que me inspiram a expressão angelical e a elegância tão calma destes traços que lembram a nobreza terna de Leonardo da Vinci? Esta cabeça que teria tanta bondade, tanta justiça e tanta elevação se pensasse em nós, parece sonhar com uma felicidade ausente. A cor dos cabelos, o corte da testa, o enquadramento dos olhos transformam-na no tipo da beleza lombarda. Este retrato, que tem o grande mérito de não se assemelhar em absoluto às cabeças gregas, proporciona-me aquele sentimento tão raro nas belas artes: nada conceber além. Algo de puro, de religioso, de anticomum, respira nesses traços.” (tradução livre)

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“Dilacerado pela execrável indignidade de uma ação tão sombria, e vendo os homens tão maus, ele toma desgosto pela vida, e julga mais doce se entregar à celeste melancolia que preenche sua alma do que a salvar uma vida infeliz que seria para sempre vivida entre semelhantes ingratos.”

Déchiré par l´exécrable indignité d´une action aussi noire, et voyant les hommes si méchants, il se dégoûte de vivre, et trouve plus de douceur à se livrer à la céleste mélancolie qui remplit son âme qu‘à sauver une vie malheureuse qu´il faudrait toujours passer avec de pareils ingrats.18 (Stendhal, 1868, p.137)

Personagem essencialmente passional, que acredita na amizade e que prefere a morte à falência do amor: Jésus voit son système d´amor universel renversé. « Je me suis trompé, se dit-il, j´ai jugé des hommes d´après mon coeur ». Son attendrissement est tel, qu´en disant aux disciples ces tristes paroles : L´un de vous va me trahir, il n´ose regarder aucun d´eux.19 (ibidem, p.137-8)

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“Jesus vê seu sistema de amor universal aniquilado. ‘Enganei-me, diz a si mesmo, julguei os homens segundo meu coração’. Seu enternecimento é tal que, ao dizer aos discípulos aquelas tristes palavras ‘Um de vós me trairá’, não ousa olhar para nenhum deles.”

Stendhal (1868, p.138) passa, em seguida, a descrever o “movimento de indignação” que “se pinta em todos os rostos”e volta seu olhar para a figura do “cruel Judas”. É de notar que a descrição stendhaliana, para além de parecer conferir um real movimento à cena, trata-a como um romancista às voltas com uma personagem pérfida, movida por um vil motivo – “uma soma de dinheiro” –, e capaz de trair a confiança não só de um, mas de vários amigos: Saint-Jean, accablé de ce qu´il vient d´entendre, prête quelque attention à saint Pierre, qui lui explique vivement les soupçons qu´il a conçus sur un des apôtres assis à la droite du spectateur. Judas, à demi tourné en arrière, cherche à voir saint Pierre et à découvrir de qui il parte avec tant de feu, et cependant il assure


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Um Jesus enternecido – e que enternece – e melancólico. Retratado, não por acaso, por uma “alma delicada e terna” (ibidem, p.162), cujo estilo não poderia ser outro senão um “estilo melancólico e solene”, “pleno de um profundo conhecimento da tristeza” (ibidem, p.171).

sa physionomie, et se prépare à nier ferme tous les soupçons. Mais il est déjà découvert. Saint Jacques le Mineur passant le bras gauche par-dessus l´épaule de saint André, avertit saint Pierre que le traître est à ses côtés. Saint André regarde Judas avec horreur. Saint Barthélemy, qui est au bout de la table [...] s´est levé pour mieux voir le traître.20 (ibidem, p.38)

“Peço uma alma à pintura”

O tom patético21 empreendido por Stendhal à cena ganha em modulação poética quando a descrição se volta uma vez mais para a figura do “sublime mestre”: La douleur si noble qui l´opprime serre le coeur. L´âme est ramenée à la contemplation d´un des grands malheurs de l´humanité, la trahison dans l´amitié.22 On sent qu´on a besoin d´air pour respirer; aussi le peintre a-t-il représenté ouvertes la porte et les deux croisées qui sont au fond de l´appartement. L´oeil aperçoit une campagne lointaine et paisible, et cette vue soulage [...] La lumière du soir, dont les rayons mourants tombent sur le paysage, lui donne une teinte de triste conforme à la situation du spectateur.23 (ibidem, p.139)

20 “São João, arrasado por aquilo que acaba de ouvir, presta atenção em São Pedro, que lhe explica vivamente as suspeitas que concebeu sobre um dos apóstolos sentado à direita do espectador. // Judas, com o corpo metade voltado para trás, tenta enxergar São Pedro e descobrir o que ele fala com tanto fogo, ao mesmo tempo em que mantém sua fisionomia impassível e em que se prepara para negar firmemente todas as suspeitas. Mas ele já foi descoberto. São Tiago Menor, passando o braço esquerdo sobre os ombros de Santo André, avisa São Pedro que o traidor está a seu lado. Santo André olha Judas com horror. São Bartolomeu, que está na extremidade da mesa, [...] levantou-se para melhor ver o traidor.” 21 E o termo é a ser tomado em seu sentido primeiro, isto é, que diz respeito às paixões. 22 Importa relevar que a descrição de Stendhal nada tem de uma sensibilidade religiosa: tudo aqui é trabalhado em razão de um único motivo, precisamente essa “traição na amizade”. 23 “A dor tão nobre que o oprime aperta seu coração. A alma é levada à contemplação de uma das grandes infelicidades da humanidade, a traição na amizade. Sentimos que necessitamos de ar para respirar; eis porque o pintor representou as portas abertas e as duas janelas que estão ao fundo do aposento. O olho percebe um campo longínquo e tranqüilo, e esta vista alivia [...] A luz da noite, cujos raios que se extinguem caem sobre a paisagem, a esta conferem uma tonalidade triste conforme a situação do espectador.”

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Vale notar que Henri Beyle exerceu a função de inspetor do Mobiliário da Coroa: sua tarefa era aquela de fazer o inventário das obras de arte que chegavam de todos os cantos da Europa para o museu Napoleão.

Mas não é tão – somente para a arte italiana que Stendhal volta seus olhos: a partir de 1824, o romancista, autobiógrafo e “historiador da arte” exercita-se na crítica jornalística de arte, publicando em jornais ingleses e franceses suas impressões sobre as exposições parisienses de arte organizadas em 1822, 1824 e 1827 no Louvre.24 Se Stendhal, em seus romances autobiográficos e em suas histórias sobre a pintura, pedia às artes visuais, italianas como vimos, que interpelassem diretamente seu espectador, provocando junto a ele uma gama variada de emoções, suas crônicas sobre a pintura francesa de início do século XIX não são muito diferentes: as observações ali registradas são norteadas pelo efeito que as obras expostas nos salões causam junto ao público que a eles acorre. Importa, contudo, relevar que esse prazer é essencialmente contemporâneo, pois que os salões stendhalianos revelamse uma defesa bastante eloqüente do romantismo nas artes – e esses salões valem mais pelos comentários gerais a respeito do estado das artes do que propriamente pelos julgamentos a respeito de obras em particular, de artistas para nós hoje pouco conhecidos. O que equivale a dizer que Stendhal se impõe como o advogado de tudo o que é novo e moderno nas artes. Não por acaso, é possível dizer que ecoam em suas páginas jornalísticas a definição que ele mesmo cunhara para os termos de romanticismo e de classicismo em seu Racine e Shakespeare: Le romanticisme est l´art de présenter aux peuples les oeuvres littéraires qui, dans l´état actuel de leurs habitudes et de leurs croyances, sont susceptibles de leur donner le plus de plaisir possible.


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Le classicisme, au contraire, leur présente la littérature qui donnait le plus grand plaisir à leurs arrière-grands-pères.25 (Stendhal, 1994, p.36)

Basta, por exemplo, substituir os termos “obras literárias” e “literatura” por “pintura” e “escultura” que se terá de modo bastante preciso o que Stendhal entende por arte visual romântica e arte visual clássica. Considerar o seu tempo: eis o que confere à pintura e à escultura sua modernidade. E os tempos modernos, esse século XIX que se inicia, têm sede de energia, de natural e de liberdade; querem se libertar das amarras dos antigos e, por conseguinte, de tudo o que é afetado e falso – o Stendhal crítico de arte aproxima-se aqui, uma vez mais, do Stendhal romancista, daquele que opõe mundo meridional, imerso nas verdadeiras paixões, a mundo setentrional, derrotado pelo tédio e pelo vazio dos sentimentos. Às obras expostas no Louvre, Stendhal (2002, p.85 e 81) pede “verdade dos sentimentos do coração” e, mais do que isso, “uma alma à pintura”. É imprescindível, para tanto, que a pintura se afaste de certa teatralidade que imprime aos movimentos passionais representados ares bastante caricatos; é como se, no gênero do retrato, por exemplo, as figuras ali representadas parecessem encenar algo, com o “desejo de causar efeito” (ibidem, p.98). Donde a censura nas crônicas de arte stendhalianas à imitação em pintura de gestos e modos do ator Talma, célebre por sua interpretação cênica adaptada da arte antiga: Veut-on savoir ce qu´on trouve sans cesse au Salon de cette année [1824] au lieu de l´expression ? L´IMITATION DE TALMA. Qu´est-ce, par exemple, ce Serment des trois Suisses, jurant la liberté de leur patrie, par M.Steube ? [...] Que trouvé-je dans les figures des trois héros suisses ? Mon coeur est-il touché par quelque chose de vrai et de pris réellement dans la nature ? Hélas ! non; je ne vois que la copie d´une imitation. Ces trois héros, qui se dessinent noblement, ne sont que trois copies de Talma pris dans des rôles différents [...] ces gens-ci, faisant à demeure les gestes fugitifs de Talma, n´ont

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l´air que d´histrions. Je n´y vois nulle simplicité, nulle naïveté.26 (ibidem, p.82)

25

“O romanticismo é a arte de apresentar aos povos as obras literárias que, no estado atual de seus costumes e de suas crenças, são passíveis de lhes proporcionar o maior prazer possível. O classicismo, ao contrário, apresenta-lhes a literatura que proporcionava o maior prazer possível a seus bisavós.” Na crítica ao Salão de 1824, Stendhal (2002, p.140) praticamente repete os termos empregados em Racine et Shakespeare: “Le romantique dans tous les arts, c´est ce qui représente les hommes d´aujourd´hui, et non ceux de ces temps héroïques si loin de nous, et qui probablement n´ont jamais existé [...] Le classique, au contraire, ce sont les hommes entièrement nus qui remplissent le tableau des Sabines” [O romântico, em todas as artes, é o que representa os homens de hoje e não aquele dos tempos heróicos tão longe de nós e que provavelmente jamais existiram [...] O clássico, ao contrário, são os homens inteiramente nus que povoam o quadro das Sabines]. Veja-se, a respeito do quadro Sabines, de David, e da falta de adequação da pintura oitocentista à modernidade, a nota 28.

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Os “tesouros da pintura” (ibidem, p.83) não poderiam ser, então, senão a simplicidade e a ingenuidade, capazes de representar de modo “justo os movimentos da alma” (ibidem, p.101). A busca deve ser, por conseguinte, da representação do natural – motivos, aliás, recorrentes à produção romanesca stendhaliana. Mas há um grande problema a reger a produção artística, sobretudo a pictórica e a escultórica: a distância que os artistas mantêm em relação ao natural, e, conseqüentemente, a inadequação dos assuntos representados à modernidade. A célebre frase “Estamos às vésperas de uma revolução nas belas artes”, enunciada em artigo sobre o Salão de 1824, diz respeito precisamente ao que de novo se exige das artes: afastar-se dos modelos e maneiras clássicas (antigas) de se compor quadros e pintar enfim como um moderno. 26

“Desejam saber o que se encontra sem cessar no Salão deste ano [1824] no lugar da expressão? A IMITAÇÃO DE TALMA. ? // O que significa, por exemplo, esse Serment des trois Suisses, que se comprometem a libertar sua pátria, do senhor Steube? // O que encontrei nas figuras dos três heróis suíços? Meu coração se comoveu com algo de verdadeiro e de realmente emprestado da natureza? Infelizmente, não! Não vejo senão a cópia de uma imitação. Estes três heróis, que se mostram nobremente, são unicamente três cópias de Talma em papéis diferentes [...] estas pessoas, que fazem gestos fugidios de Talma, somente têm ares de histriões. Não se reconhece ali simplicidade alguma, ingenuidade alguma”. Lê-se, ainda, a respeito dessa imitação pictórica dos gestos de Talma e, conseqüentemente, da ausência de natural na pintura: “En voyant ces sortes de tableaux inspirés par Talma, il semble au spectateur que le peintre n´a pas mis devant ses yeux des hommes réellement occupés de l´action qui fait le sujet de son tableau, mais qu´il peint des comédiens s´acquitant assez bien de la représentation de ce même fait” (Stendhal, 2002, p.151) [“Ao ver estas espécies de quadros inspirados de Talma, o espectador pensa que o pintor não pôs diante dos olhos homens realmente ocupados com a ação que é o assunto de seu quadro, mas que ele pintou atores representando bastante bem este mesmo fato”]; “Je disais dans un dernier article que la plupart des peintres ne possédant que l´habilité de la main, et n´ayant du reste aucune sensibilité, au lieu d´observer dans la vie réelle, sur les places publiques et dans les salons, les gestes qui peignent les passions, transportent sans façon dans leurs tableaux les admirables poses de Talma” (ibidem, p.84) [“Eu dizia em um último artigo que a maioria dos pintores, pelo fato de serem apenas hábeis com a mão, e, porque não têm no final das contas talento algum, em vez de observarem na vida real, nas praças públicas e nos salões os gestos que pintam as paixões, transportam de qualquer jeito para seus quadros as admiráveis poses de Talma”].


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Les grands tableaux composés de trente figures nues, copiées d´après les statues antiques, et les lourdes tragédies en cinq actes et en vers, sont des ouvrages fort respectables sans doute, mais, quoi qu´on en dise, ils commencent à ennuyer, et, si le tableau des Sabines27 paraissait aujourd´hui, on trouverait que ses personnages sont sans passions, et que par tous pays il est absurde de marcher au combat sans vêtements. – Mais tel est pourtant l´usage dans les bas-reliefs antiques ! s´écrient les classiques de la peinture [...] Et que me fait le bas-relief antique ? Les Grecs aiment le nu; nous, nous ne le voyons jamais, et je dirai bien plus, il nous répugne. (ibidem, p.66)

27

Stendhal se refere ao quadro de David, composto entre 1795 e 1799, ano de sua exposição no Louvre. David, aliás, é freqüentemente citado por Stendhal em sua crítica de arte, ora para proceder a seu encômio ora para vituperá-lo – embora o que se censure seja acima de tudo os seguidores de David, que integram o que ele chama de “Escola de David”. Em suas observações sobre o Salão de 1824, por exemplo, Stendhal não encontra rivais para David, afirmando que seria preciso remontar ao século XVII, “século dos Carrache”, “para encontrar um rival a este homem ilustre” (Stendhal, 2002, p.57), que foi um “grande pintor, notável pela força de caráter que lhe deu coragem para desprezar o gênero [vaporoso] dos Lagrénée e dos Vanloo” (ibidem, p.95). Por sua vez, David e sobretudo a “Escola de David” no século XIX empreendem à pintura, em razão de sua atenção demasiada ao desenho, um tom seco e frio, desprovido de paixão. Ora, Stendhal não pode senão discordar desse modo de perceber e de realizar a pintura, pois que para ele pintura é paixão, e, para se alcançar a verdadeira e perfeita pintura, é preciso ter experimentado as paixões – “todos os grandes artistas foram homens passionais”, “para ter condições de pintar as paixões, é preciso tê-las visto, ter sentido suas chamas devorantes” (ibidem, p.79). David e seus alunos, pelo contrário, com seu “desenho correto, sábio, imitado do antigo”, próximo assim da “ciência exata, de mesma natureza que a aritmética, a geometria, a trigonometria etc.” (ibidem, p.79), não entenderam o que era ter verdadeiramente “gênio” em pintura: “A Escola de David não pode pintar senão os corpos: ela é decididamente inábil para pintar as almas” (ibidem, p.80). Eis porque a personagem Rômulo, do quadro Sabines, “[qui] devrait nous présenter l´idéal de l´homme passionné par le pouvoir, se battant pour tout ce qu´il avait de plus cher [...] sous le rapport de l´âme, est au-dessous de la réalité la plus vulgaire; Romulus n´a d´idéal que dans la forme de ses beaux muscles correctement imites de l´antique” (ibidem, p.81) [“[que] deveria nos apresentar o ideal do homem apaixonado pelo poder, lutando por aquilo que lhe é caro [...] no que diz respeito à alma, está abaixo da realidade mais comum: Rômulo não tem ideal senão na forma de seus belos músculos corretamente imitados do antigo”]. A respeito da falta de acomodação aos tempos presentes e, mesmo, da falta de verossimilhança pictórica, leia-se a seguinte passagem – e observe-se a fina jocosidade stendhaliana: “une toile immense, signée Abel de Pujol, présente Germanicus rendant les derniers devoirs aux ossements des Romains qui périrent avec Varus. Voilà l´école française telle qu´elle était il y a deux ans. Un soldat romain, caché dans les bois, rapporte à Germanicus l´aigle de sa

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Natureza, efeitos – a um tempo expressivos e impressivos28 –, representação dos movimentos passionais e acomodação aos tempos presentes: eis a pedra-de-toque do belo ideal moderno para Stendhal. Ideal longe de ser conquistado por artistas de um século que prima pela ausência de “nobre audácia” e de energia nas artes, carência que não permite à pintura sequer se aproximar do “fogo que se encontra em uma ópera de Rossini” (ibidem, p.125). Eis um século, “século desenhador”, que proíbe “todo gesto passional” (ibidem, p.94 e p.153). Século de pintores e poetas dominados pelo “demônio do temor que parece soprar sobre eles um frio gélido assim que tomam do carvão ou da pluma” (ibidem, p.53). Artistas presos às regras e unicamente zelosos do julgamento do público e dos críticos.29 Importa, aliás, assinalar a defesa bastante contundente em Stendhal da liberdade nas artes, desvinculadas de prêmios, de juizes, de padrinhos e, sobretudo, do ganho pecuniário. O verdadeiro artista, aquele a quem atribui o epíteto de “gênio”, possui “fogo na alma, franqueza no espírito e espera, em segredo, fazer fortuna” (ibidem, p.65): Le jeune peintre est comme le soldat, la gloire fait toute son ambition. Il sait bien qu´il ne rencontrera pas la richesse en maniant le pinceau [...] Voulez-vous être riche ? dirai-je au légion. On ne devinerait jamais le costume qu´a choisi ce soldat qui cache sa vie depuis si longtemps dans les forêts si froides de Westphalie. Il est entièrement nu” (ibidem, p.63) [“uma tela imensa, assinada por Abel de Pujol, apresenta Germanicus rendant les derniers devoirs aux ossements des Romains qui périrent avec Varus. Eis o que era a escola francesa há dois anos. Um soldado romano, escondido no bosque, entrega a Germanicus a águia de sua legião. Jamais se adivinhará a roupa que escolheu este soldado, que esconde sua vida há tanto tempo nas frias florestas da Westfália. Ele está inteiramente nu”]. Diga-se, de passagem, que Stendhal se ataca de modo recorrente ao nu em pintura – o nu deve ser deixado à escultura, pois que o “nu é a única linguagem da escultura, sem o qual não existiria, na verdade, arte estatuária” (ibidem, p.145). Contudo, a prática do nu em escultura a afastaria do gosto moderno, pois que ela está longe de seus costumes, e sem o nu “nada pode a escultura” (ibidem, p.154). 28

“Nas artes, é preciso comover profundamente, e deixar uma lembrança” (tradução livre) (Stendhal, 2002, p.124n).

29

“Eles têm um medo exagerado da crítica e perdem toda energia só de pensarem nas observações picantes do público”. (tradução livre)


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jeune peintre, quittez bien vite la palette et le pinceau, étudiez la chimie, apprenez à deviner les besoins physiques des hommes de notre époque, voyez quel genre de drap ils préfèrent pour leurs habits, de quelles vaisselles ils aiment à se servir, faites-vous manufacturier [...] Voulez-vous garder votre pinceau ? libre à vous, mais alors n´ayez d´autres illusions que celles de la gloire, ne songez ni aux honneurs, ni aux richesses.30 (ibidem, p.162)

Ao belo ideal moderno apregoado por Stendhal devem ainda concorrer aquele coloris e aquele claro-escuro que tanto aprecia nos italianos renascentistas31 – e é precisamente a “ausência total de claro-escuro” (ibidem, p.138) que caracteriza a Escola francesa de início do século XIX, século tímido que “matou o coloris” (ibidem, p.141). Se os salões stendhalianos defendem a pintura das nuanças das paixões, não surpreende que eles profiram a defesa de procedimentos pictóricos capazes de conferir à representação passional delicadezas e profundas emoções. E para Stendhal o coloris e o claro-escuro são elementos imprescindíveis para a pintura dos hábitos da alma. Toda a crítica de arte stendhaliana está assim balizada pela questão da expressão em pintura, ou, se se preferir, por uma retórica pictórica dos afetos. Em substância, tudo o que Stendhal (2002, p.80) pede à pintura – e tudo o que entende por beleza e perfeição em pintura – é, de certo modo, bem pouco: que ela seja aquela da alma e não aquela dos corpos; que seduza ou que seja seduzida pela energia; que exprima de “maneira viva [...] uma paixão do coração humano ou algum movimento da alma”. Que ela seja, por isso mesmo, não ciência, mas simplesmente... pintura.

Referências BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’encre. Paris: Seuil, 1980. BERTHIER, Philippe. La Chartreuse de Parme de Stendhal. Paris: Gallimard, 1995.

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COE, Richard N. Quelques réflexions sur Stendhal paysagiste. In: Première journée du Stendhal club. Lausanne: Grand-Chêne, 1965. p.40-8. PILES, Roger. Cours de peinture par príncipes. Paris: Gallimard, 1989. STENDHAL. Histoire de la peinture en Italie. Paris: Michel Lévy Frères, 1868. 30 “O jovem pintor é como o soldado: sua ambição está toda na glória. Ele bem sabe que não encontrará riqueza no manuseio do pincel [...] Você deseja ser rico? Perguntarei ao jovem pintor, abandone rapidamente a palheta e o pincel, estude química, aprenda a adivinhar as necessidades físicas dos homens de nossa época, veja que tipo de tecido eles preferem para suas roupas, quais louças apreciam utilizar, torne-me fabricante [...] Deseja você manter seu pincel? Como quiser, mas então não tenha outras ilusões senão aquelas da glória; não pense nem em honras nem em riquezas.” (tradução livre)

31

Assinale-se, aliás, a recomendação que Stendhal faz a todo jovem artista oitocentista: passar algum tempo na Itália e, mais precisamente, em Veneza, onde se tem o “sentimento da cor” (Stendhal, 2002, p.92). Em sentido inverso, uma permanência prolongada em Paris não tem outro efeito senão “enfraquecer a maneira de sentir” (ibidem, p.128).

. Ecoles italiennes de peinture. Paris: Le Divan, 1932. . Chartreuse de Parme. Paris: Garnier, 1949. . Rome, Naples et Florence. In: Gallimard, 1973a.

. Voyages en Italie. Paris:

. Vie de Henry Brulard. Paris: Gallimard, 1973b. . Journal. In :

. Oeuvres intimes. Paris: Gallimard, 1981-

1982. . De l’amour. Paris : Gallimard, 1980. . Souvenirs d’égotisme. Paris: Gallimard, 1983. . Racine et Shakespeare. Paris: Kimé, 1994. . Salons. Paris: Gallimard, 2002.


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Entre o céu e as caldeiras: espectros desconstrutivos em “Agda” de Hilda Hilst Lilia Loman*

RESUMO: Com base no conceito de Jacques Derrida de espectro como uma “não-presença” recorrente ao mesmo tempo visível e invisível, este artigo oferece uma problematização da personagem como imagem em um constante trânsito entre “verdade” e “sonho”, “forma” e “ofuscação”. Refletindo – ou refratando talvez – o movimento espectral, os dois contos de Hilda Hilst escolhidos como objetos de análise sugerem, por serem homônimos, duplicidade desde o título. De fato, em um trânsito dual entre teoria e obra, a reflexão aqui proposta parte não só da ambivalência inerente à poética de Hilst, mas também de “espectros” evocados pela própria autora: o fantasma de Hamlet, por exemplo, emerge de um dos contos para integrar o diálogo especular entre “Agda” e “Agda”. Entre “o céu e as caldeiras”, Agda transita pelas fissuras do texto e desconstrói-se, desdobrando-se no mesmo e em alteridade, espalhando em “ilusões de ótica” que transcendem a morte e o fim da narrativa. PALAVRAS-CHAVE:

Hilda Hilst, personagem, desconstrução, escritura/imagem, conto.

ABSTRACT:

* Doutora pela University of Nottingham.

With basis on Jacques Derrida’s (1994) concept of spectre as a recurrent “non-presence” that is simultaneously visible and invisible, this article offers a problematisation of fictional characters, presenting them as an image in constant transit between “truth” and “dream”, “shape” and “vagueness” (HILST, 2002, p.119-20). Reflecting—or, perhaps, refracting—the spectral movement, Hilda Hilst’s homonymous short stories, herein chosen as object of study, suggest duplicity from their titles. Effectively, in a dual transit between theory and work, the reflection here proposed stems not only from the ambivalence that is inherent to Hilst’s poetics, but also from “spectres” that are evoked by the author herself: Hamlet’s ghost, for example, emerges from one of the stories to integrate the dialogue of mir-


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Entre o céu e as caldeiras: espectros desconstrutivos em “Agda”...

rors established by “Agda” and “Agda”. Between heaven and hell, Agda shuttles through the cracks of the text and deconstructs itself, unfolding in sameness and otherness, scattering “optical illusions” that transcend death and the end of the narrative. KEYWORDS:

Hilda Hilst, fictional characters, deconstruction writing/image, short story.

Introdução 2

É sim, o amor do mundo inteiro se lavando no meu canto, depois vão tentar secar a fonte, vão dizer: Agda pergunta tudo o que os outros perguntaram, finge ter a cabeça coroada e é apenas o espectro de sempre, vamos então repetir: who are you, that usurp’st this time of night? Quando vier a noite não estarei discursando assim saxissonante...(Hilst, 2002, p.26 – grifo meu)1

Eclíptica, a Aldeia Sol e Lua, é um espaço saturado por dualidades por onde “santas e rameiras” transitam “entre os céus e as caldeiras”. Seus habitantes, conhecedores da verdade que vem dos sonhos, têm no “sangue a alma de outras raças e o verso de outra gente que conheceu o coração das gentes”. Aos que duvidarem de suas falas e rimas imprevistas, eles desafiam uma visita (A, p.119). Igualmente eclípticos, os contos homônimos “Agda” de Hilda Hilst desafiam o leitor a duvidar de toda verdade aparente, e inserir-se nas fissuras do diálogo entre a realidade e seu efeito. A presente reflexão insere-se nesse espaço eclíptico para propor uma problematização da personagem como a imagem do visível e do invisível.

Todas as chamadas citações veladas são em inglês, com exceção da frase litúrgica “vere dignum et justum est, aequum et salutáre” em latim na página 30.

1

Todas as citações referentes aos contos serão, a partir daqui, demarcadas com a letra A seguida do número da página.

Espectros de Agda: imagens de uma ausência Resultado da herança de versos e testemunhos imemoriais, o escrito de falas e rimas imprevistas confunde-se, de fato, com o próprio conceito de intertextualidade (Barthes, 1981, p.31-47). A impossibilidade de se precisar limites, origens e identidades é, sem dúvida, uma característica

3

Hamlet, Ato I, Cena I, p. 46.

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imanente aos contos. Entretanto, nem mesmo tal impossibilidade é absoluta. De fato, em “Agda”, o “verso de outra gente” emerge do tecido intertextual como mais um fator de estranhamento. Esgueirando-se entre vozes anônimas, citações de Hamlet, Medea e Electra trazem, por exemplo, Shakespeare e Eurípides repetidamente à superfície. Embora sejam todas grafadas em inglês, tais citações veladas não se singularizam simplesmente em razão do idioma.2 Ao contrário, diante da ebulição de gêneros característica da poética de Hilst, a mudança súbita de idioma passa quase despercebida. Entretanto, o constante velar e revelar de identidades torna “Agda” uma cena de possessão: no trecho citado, por exemplo, sujeitos conflitantes alternam-se e atropelam-se em um coro dissonante que simultaneamente evoca e encobre o clamor shakespeariano. A exortação de Horácio é literalmente incorporada ao texto, em um jogo de semelhanças e diferenças que, se, por um lado, dissipa quaisquer origens, por outro, resiste ao anonimato. Vale notar que o paralelo estabelecido com Hamlet certamente não é acidental. Hilst faz, de fato, do diálogo intertextual um artifício poético. Além de entremear identidade e anonimato, a autora cria, ao incorporar vozes alheias, um jogo especular entre o mesmo (“Agda”) e o outro (“Agda”), que mantém a imprevisibilidade de falas, rimas, reflexos da verdade e do sonho. À semelhança das citações veladas pela densidade poética, a noção de espectro remete a uma imagem de dubiedade, um simulacro do quase-visível, do quase-vivo/morto, que deixa transparecer traços de uma identidade que, no entanto, jamais são revelados por completo. A fala de Horácio, apropriada pelo coro de vozes anônimas em “Agda”, ocorre no Ato I de Hamlet, cuja cena inaugural é entrecortada pela entrada [Enter the Ghost] e pela saída do fantasma [Exit the Ghost]. Nela, Horácio, antes descrente da existência do fantasma, implora a esse que fale e revele a sua identidade. O fantasma, porém, abandona a cena sem nada dizer, deixando em suspensão um discurso jamais realizado.3


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Em um vai-e-vem de presenças e ausências, as entradas e saídas do fantasma remete-nos novamente a um espaço intersticial, eclíptico. Com efeito, na teoria de Derrida, o rumor ou movimento espectral está diretamente relacionado com a idéia de intervalo. O espectro é um revenant, uma visão recorrente do invisível, cuja não-existência prevê paradoxalmente sua inscrição em outro lugar, ou seja, sua “corporificação” (Derrida, 1994, p.100; Derrida & Stiegler, 2002, p.113-34). Nesse contexto, o intervalo entre o “desaparecimento” do fantasma [Exist the ghost] e sua nova “aparição” [Enter the ghost] em Hamlet torna-se fundamental, pois denota um processo pelo qual ausências e presenças opõem-se enquanto carregam traços de contaminação mútua. A desaparição do fantasma marca, assim, um esvaziamento de sua presença cujo impacto se dá precisamente pelo seu silêncio e pela sua ausência. O silêncio e a sublimação de todas as formas tornam-se polissêmicos na medida em que a iminência do não-dito e do não-visto preludia significados que vão além de qualquer realidade antecipada. Entra Agda. Sai Agda. Como uma presença que inevitavelmente se desfaz, a ausência permeia ambos os contos homônimos de Hilst. No primeiro conto, a ausência toma forma de espera como prolongamento da não-presença do outro: “ele virá sim, ainda que seja quarta-feira de treva” (A, p.21); “Entardece. Ainda que seja quarta-feira de trevas ele virá [...] Ou ainda é manhã? Ainda é manhã sim, o sol está batendo só deste lado” (A, p.25). Nota-se aqui que a inutilidade e a justificativa da espera baseiam-se na contradição essencial entre a atemporalidade e o esvair inevitável da existência. Por toda a narrativa, há um descompasso entre o ritmo incontrolável do envelhecimento e a síncope amorosa, a suspensão, a espera. Por vezes, o hiato é deixado pela mãe que não veio, mas que “manda saudades” (A, p.20), pela própria Agda fechada dez, doze, treze dias dentro de casa (A, p.108-9), ou pelo gozo apoteótico de ser outra por meio da materni-

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Faço referência aqui à inexauribilidade da experiência da aura estética proposto por Walter Benjamin (Benjamin, 1968, ) e ao conceito de “efeito de realidade” de Roland Barthes (1994, p.479-84).

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Com o intuito de evitar a repetição da expressão “o primeiro conto”, o termo “Agda-primeira” será usado em referência ao primeiro texto de Qádos/Kadosh, dando, assim, preferência à expressão criada pela própria autora.

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dade do divino (A, p.110). O diálogo com o interlocutor ausente adquire uma esfera performativa, tornando-se um ato de conjuração. A “vertigem”, o “sortilégio”, e o “ímpeto’ de Agda-primeira traduzem-se na escritura de Hilst como um turbilhonamento poético cuja materialidade desnorteia o leitor antes mesmo da codificação de sentidos. Parágrafos imensos sincopados por uma pontuação ora inexistente ora frenética incorporam desde as primeiras palavras o “branco sereno labareda do fim” de sua morte (A, p.29). Com efeito, o deslumbramento trazido pela dificuldade de leitura, atrelado ao rumor de “falas e rimas imprevistas”, faz do próprio texto um ente espectral que “se vê forma de longe e ofuscação de perto”, “serafim na aparência e blasfêmia nas vísceras “ (A, p.120 e 119). Conseqüentemente, movidos pela ambivalência da escritura, assumimos o papel de Horácio diante do fantasma do velho Hamlet: somos movidos pela urgência de descobrir significados, identidades, de fazer o texto falar. Agda, em seus diversos desdobramentos, nos retorna o olhar, mas mantém-se velada pelas fissuras entre realidade e efeito: re-presentação.4 Tal fluidez quase ininterrupta da escritura, notada visualmente na organização dos parágrafos de Agda-primeira,5 reflete-se na diluição gradativa dos elementos caracterizadores das personagens. A ausência do outro prevê necessariamente a sua presença, o seu retorno, mesmo que esse jamais ocorra. Em outras palavras, a ausência espectraliza o outro, pois insere-o após um intervalo que constitui um rastro que se desfaz; uma herança, o testamento furtivo daquele que se deslocou. Entretanto, o afastamento não aumenta a diferença, ao contrário. Na medida em que o outro passa a existir, a ser corporificado por meio do nosso discurso, um processo de aproximação crescente passa a ocorrer. Afinal, o diálogo entre Horácio e o fantasma do velho Hamlet não constitui por excelência um diálogo. O papel do fantasma como interlocutor é virtual e só ocorre como possibilidade, ou seja, como antecipação. A ausência do outro não é, porém, necessariamente física ou precisa. Em Hilst, a própria escritura cria interva-


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los nos quais as personagens desaparecem e (re)aparecem, trocando, por vezes, nomes, corpos, imagens e identidades: Kalau: [...] eu disse Agda Agda e a cara era escura, era a minha própria cara, eu Kalau enlouquecido, uma coisa sagrada que eu tomava nos braços, uma coisa-eu. (A, p.103) Orto: Uma vez em abril ela me disse: Oto, vamos brincar assim, tu és meu corpo e eu sou teu corpo [...] vozeirão: eu sou Orto, e quero comer o corpo da minha amada... que se chama Agda... Agda-lacraia. Depois ria e cantarolava. (A, p.104-5)

Lembrando a divisão em cenas e atos de Hamlet, o conto de Agda-lacraia traz a possibilidade de um paralelo com as desaparições e reaparições do fantasma do velho rei. Comportando-se como um espectro, Agda é apenas quase visível durante toda a narrativa. Não há, por exemplo, nenhuma interação direta com nenhum personagem, com exceção talvez do igualmente espectral “Potente Implacável Senhor”. Agda só existe como discurso: seja o dela próprio ou o dos outros. Ela configura-se, portanto, como o esvaziamento de uma presença, um espectro: a imagem projetada em uma tela ilusória na qual, na realidade, não há nada a ser visto (Derrida, 1994, p.101). Particularmente em Agda-primeira, a desconstrução da personagem como “visibilidade do invisível” expressase por meio do caleidoscópio de vozes que Hilst mescla ao texto. A coexistência de sujeitos dos verbos “vão”, “vamos” e “estarei” no trecho anteriormente citado é apenas um dos diversos casos encontrados. A inexistência de diálogos claros dissipa também os limites entre os interlocutores, criando um jogo constante de presenças e ausências entre personagens que transitam entre o visível/invisível, a escritura/imagem. Surgem, assim, imagens compostas de personagens permutáveis como “mãepaifilha”, “Agda-mãefilha”, “pai-amante-filho” (A, p.18 e 25). É importante notar que tal caráter espectral (des-)caracteriza não só “cada Agda”, mas todos os seus desdobramentos mais sutis em outros elementos textuais. Os reflexos

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e distorções gerados pelo diálogo especular entre “Agda” e “Agda” causam um deslocamento de efeito e realidade, “assombrando” personagens, vozes narrativas, tempo e o espaço. A casa confunde-se com o corpo e torna-se um espaço reversível, pois “é como gente e traiçoeira, que se encolhe ou se estende, se adensa ou se adelgaça dependendo da alma de quem nela habita” (A, p.118): “casacaminho-morada” existindo no dentro de Agda e como extensão desta (A, p.116). O impulso de fusão com o espaço aponta para um aspecto fundamental da desconstrução da personagem como espectro: sendo ilocável e apenas quase identificável, ela é resistente a caracterizações. Acima de tudo, ela ocupa todas as frestas do texto, assumindo formas diferentes sem, entretanto, perder os traços ofuscados e ofuscantes que a tornam (quase) reconhecíveis.

A ausência do eu: o temor e o desejo de se tornar outra Finalmente, ausências e espectros tornam a reflexão sobre a morte inevitável, senão indispensável. Em ambos os contos, a própria escritura encena a morte da personagem desde o início. De fato, a morte afundada ou pelo fogo existe metonimicamente por todos os elementos textuais. No primeiro conto, por exemplo, até mesmo o ritmo da liqüefação gradativa do texto, gerado pela respiração – ofegante – de uma leitura em voz alta sugere a asfixia pela terra do “sagrado poço”: Agora sim, vou me conhecendo com esse lodo na cara, mastigando a mim mesma, cera esbraseada consumindo meu corpo, consumindo-me e conhecendo-me sem nojo, goela escancarada, lívida alquimista, vai Agda, mais para o fundo, sem que tu saibas que teu corpo é crivo, minúsculos orifícios mil e um separando o que vale, degustando e deixando escorrer o outro para o poço... (A,p.30)

A “morte-enterrada” de Agda-primeira equivale ao inverso da prosopopéia, trazendo-a de volta ao mundo


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inanimad:6 “menina-planta, menina-pedra, menina-terra” (A, p.27). Aqui, a ausência do outro confunde-se com a ausência de si mesmo, abrindo um espaço psicótico de alteridade, marcado pelo desejo ou pelo temor da própria morte. A temática do envelhecimento em Agda-primeira traz, em princípio, a impressão de um antagonismo em relação à atitude de Agda-lacraia diante da finitude. Porém, a morte cavada com as próprias mãos de Agda contrapõe-se à rendição ao esgotamento do corpo físico e da própria narrativa, desdobrando-se em novas mortes, labaredas do fim, imagens de si e do outro: Agda-primeira, Agda-lacraia, Agda-daninha, Agda-doninha etc. Existe, por toda narrativa, uma tensão criada entre o “corpo-limite”, o “corpo de sombra” que envergonha e se desmancha, “raiz avançando no debaixo da terra” e a “inteira vida” que não acompanha o corpo funeral (A, p.18-9). A morte – literalmente –pelas próprias mãos é, assim, um exorcismo: [...] tua mão é que faz morrer agora [...] ESSE BRANCO SERENO LABAREDA DO FIM. Labareda. Vontade de ver tudo de novo, ver, tocar pela primeira vez. [...] esse que essa GRANDE COISA TURVA não vai tocar porque eu estarei ali à sua frente, imensa, e vou dizer e digo: despacha-te coisa imunda, morte, vassoura negra de asas... (A, p.25-26)

Da mesma forma, Agda-lacraia passa de Iphigénie a Ériphile ao abandonar a submissão total ao “Potente Implacável Senhor”, a quem prometera “morrer morte infamante”: “Por que é preciso morrer morte maldita?” (A, p.114). Nesse momento, como Ériphile que arrancou a adaga das mãos do sacerdote e cometeu o próprio sacrifício, Agda assume o controle de seu destino e se impõe sobre o “senhorzinho”: “Melhor não morrer e ficar fiando o destino das gentes,” diz e ordena seu “gozo-contente”, a “paternidade do divino” (A, p.114). Agda é, de fato, consumida pelas chamas ateada pelo povo da aldeia – ou, ao menos, esta é uma das verdades que vêm do sonho. Escapa, porém, de “morte maldita” e desloca-se, sempre desejando “ser outra”. Em outras palavras: ser Agda.

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O adjetivo “inanimado”, em itálico, tem aqui o sentido restrito de “não-humano”, “sem alma”, não se referindo, assim, ao mundo vegetal.

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Considerações finais Qual a verdade que vem do sonho? Perguntem a Ana: testemunha imemorial, que “pode atestar a verdade das falas” imprevistas, rimas incidentais ou não, que foi de Agda desde sempre criada. Ana percorre os dois textos como presença absoluta que atesta relatos e verdades sobre as duas Agdas (e as duas anteriores). Poderosa, ela é capaz até de interromper a sublimação de Agda-primeira, a conversa infinita com os mortos, os ausentes: [...] Agda-mãe-filha, nada mais –e o meu corpo, nada mais é eu, nunca fui nada porque se o fosse, hoje não seria este corpo-nada. Entardece. Ainda que seja quarta-feira de trevas ele virá, sombra verde vazia cinza sobre o quadrado do pátio. Ou ainda é amanhã? Ainda é amanhã sim, o sol está batendo só deste lado, Ana é preciso pôr os pássaros ao sol... (A, p.24-5)

Nem Ana, entretanto, resiste ao diálogo especular entre o visível e o invisível e transcende a temporalidade sendo também eterna, a palavra que se refaz, sempre absoluta. Às margens do fim/início, nem a morte na terra ou pelo fogo, nem tão pouco a última palavra de cada conto, determina a cessação do diálogo. Como o espectro shakespeariano que entra e sai de cena, Agda inscreve-se como uma quase-presença além dos limites aparentes da personagem e do final da narrativa; finge ter a cabeça coroada e é apenas o espectro de sempre, repetindo-se perpetuamente no igual e no dessemelhante “entre o céu e as caldeiras” (A, p.119).

Referências BARTHES, Roland. Theory of the Text. In: . Untying the Text: A Post-Structuralist Reader. Boston; London; Henley: Routledge; Kegan Paul, 1981. p.31-47. . L’effet de réel. In: v.2, p.479-84.

. Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1994.


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BENJAMIN, Walter. Illuminations. Ed. H. Arendt. Trad. H. Zohn. London: Fontana, 1968.

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DERRIDA, Jacques. Specters of Marx: The State of the Debt, the Work of Mourning & the New International. Ed. B. Magnus and S. Cullenberg. Trad. P. Kamuf. New York:London: Routledge, 1994.

Luciene Azevedo*

DERRIDA, Jacques; STIEGLER, Bernard. Spectographies. In. Echographies of Television: Filmed Interviews. Cambridge: Polity, 2002. p.113-34. HILST, Hilda. Kadosh. Ed. Trad. São Paulo: Globo, 2002.

RESUMO:

O ensaio identifica na narrativa contemporânea a problematização da função da literatura em um mundo dominado pela imagem. A questão para os autores que surgem na cena contemporânea nos anos 1990 seria o investimento na própria capacidade de a literatura continuar produzindo representações enfrentando o desafio de constituir-se como uma resistência impertinente à avassaladora disseminação das imagens midiáticas, o que implicaria novas estratégias formais e temáticas. Partindo das reflexões efetuadas por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio, o ensaio sugere que a literatura contemporânea, em vez da normalização inevitável, contraria veredictos de degeneração e experimenta as imagens de nossa própria época.

PALAVRAS-CHAVE:

literatura contemporânea, valor, imagem.

ABSTRACT:

This essay argues that the problematisation of the function of literature in a world dominated by image lies in the contemporary narrative. The question posed to the authors who appear in the contemporary scene in the nineties would be an investment in the actual capacity of literature to continue producing representations as it faces the challenge to constitute a body of resistance against the overwhelming dissemination of the mediatic images. This essay suggests that, instead of an inevitable normalization, contemporary literature, opposes degeneration verdicts and experiments with images of our own time.

KEYWORDS:

* Professora adjunta da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Contemporary literature, value, image.

Se há um consenso sobre a literatura produzida hoje esse diz respeito à pluralidade de nomes e características que se apresentam na cena contemporânea. Mas essa pluralidade não é uma marca suficientemente eloqüente para


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falar do presente literário, não apenas por sua obviedade, mas também por conta de seu caráter generalizante. É preciso encarar a tarefa de procurar os indícios do que singulariza a prosa de ficção feita nos últimos anos. Essa tarefa, porém, não é nada fácil. Quem se dispõe a um confronto direto com seu presente, em qualquer área do conhecimento, se vê desafiado pela tarefa de captar as perguntas que estão no ar e apostar em respostas incertas. Arriscarse nessa incerteza significa aceitar a efemeridade como perspectiva crítica: não apenas abrir-se ao caráter provisório da própria análise, mas também respeitar a possível transitoriedade do objeto de estudo. Os tempos atuais parecem dar sinais de um certo cansaço em conviver com um imaginário apocalíptico do final dos tempos. Ainda que persistam certa nostalgia do irrecuperável e uma dicção raivosa que acusa a degradação do mundo, já se pode perceber, ainda que de modo não-hegemônico, brechas para um outro ponto de observação. Talvez a marca dessa diferença esteja na aceitação do desafio de ultrapassar a simulação do fim e refletir sobre o que vem depois, agora. Se “não podemos pensar no fim puro e simples do que quer que seja, pois fim é limite e é necessário estar dos dois lados do limite para o conceber” (Lyotard, 1990, p.17-8), talvez as perspectivas do “outro lado” deixem para trás a terra arrasada e queiram investir na reformulação das regras do jogo. As seis propostas para o próximo milênio de Ítalo Calvino (1990, p.19)1 dialogam com a crise dos valores que garantiam à literatura um papel. Cada uma das propostas, leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade, não pretende excluir seu contrário, nem se estabilizar por meio de uma óptica dualista, mas trocar de papéis com seus duplos a fim de buscar um ajuste ao novo cenário contemporâneo. Mais do que fórmulas de procedimentos formais, as propostas se configuram como outros valores capazes de integrar a literatura ao seu espírito do tempo. Por trás da tentativa de pensar por novos parâmetros, se põe em pauta a refuncionalização da literatura, num mundo dominado pela imagem.

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As propostas foram escritas a fim de serem proferidas na Universidade de Harvard, durante o período letivo de 1985-1986. A sexta conferência não chegou a ser redigida.

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Talvez a qualidade mais emblemática dessa nova função seja a leveza. Na troca de papéis, o peso do mundo deixaria de ser o tema principal e daria lugar à perspectiva da leveza. Esse jogo funciona pela tática do desvio, negando-se ao enfrentamento direto com o “peso do viver” (Calvino, 1990, p.19). Tal estratégia não apela ao escapismo ou ao devaneio, mas visa surpreender a “gravidade do mundo”, mediante um “salto ágil e imprevisto” (ibidem, p.24). Desse modo, o embate mais eficaz se daria por interfaces, por isso o melhor exemplo para ilustrá-lo foi encontrado no mito de Perseu e na sua vitória sobre a Medusa. A linguagem da leveza seria a interface apropriada para captar a imagem da realidade contemporânea. Não se trata de recusar a realidade, muito menos de simplificá-la, mas de experimentar “o mundo sob um outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle”(ibidem, p.19) a fim de “dar forma a uma (outra) imagem do mundo”(ibidem, p.135). O modo de atuação desviante se concretiza pelo investimento na dissolução, no despojamento, na abstração. A melancolia e o humor, eles próprios destituídos do peso da tristeza-ressentimento e do cômico-corrosão, seriam os andaimes que sustentariam a “equalização do real” (ibidem, p.25), ou seja, a depuração do peso do mundo, modulando-o pela leveza. Não é por acaso que essa é a primeira das propostas apresentadas, atuando em conjunto com os outros valores no “processo de escrever” (ibidem, p.22). A rapidez supõe um texto ágil que costure os fios da narrativa por meio de um movimento incessante. A velocidade seria a técnica capaz de captar ao menos os efeitos da alta rotatividade impressa pelo horizonte tecnológico. Em vez do congestionamento do tempo narrativo, a trama deve se concentrar na economia. Menos um tempo imóvel que uma temporalidade múltipla. Da duração dos acontecimentos, resta apenas a densidade como “força sugestiva” (ibidem, p.48). O texto não traz, como na brincadeira de ligar pontinhos para encontrar um desenho, as indicações da trajetória do traçado, cuja única configura-


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ção é a da velocidade: “um desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto” (ibidem, p.48). Para se conseguir o que parece tão paradoxal, torna-se imprescindível a rigidez arquitetural do projeto do texto da qual dependem a concentração e a densidade. A exatidão é exercício obrigatório para alcançar a precisão milimétrica que quer sugerir a leveza e a dispersão veloz do tempo pela rapidez, pois “para se alcançar a imprecisão desejada, é necessária a atenção extremamente precisa e meticulosa” (ibidem, p.75). Novamente, Calvino trabalha a complementaridade dos valores: o cálculo da construção detalhada persegue como perspectiva a abstração, a precisão depende de certa vaguedad. A tensão se revela pelo “gosto da composição geometrizante” (ibidem, p.83) que não chega a emperrar o ritmo narrativo, mas o faz flanar em torno dos acontecimentos. O poder da alta definição, previsto no valor exatidão, é correlato da proposta da visibilidade. A linguagem exata é aquela que potencializa sua “capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação” (ibidem, p.71). A imagem construída pela palavra torna possível “pensar por imagens” (ibidem, p.107) e, dessa forma, a literatura teria a chance de se contrapor às “imagens pré-fabricadas” e ao automatismo disseminados pelos media. A visibilidade instaurada pela literatura se diferencia da geração compulsiva das imagens pelo aparato midiático mediante a recuperação da imaginação da imagem, sendo essa uma das suas funções contemporâneas. A imagem fabricada pela literatura deve desrecalcar a dimensão “inapreensível da imaginação visiva” (ibidem, p.114) e provocar o estranhamento: “imaginação como repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja, mas que poderia ter sido” (ibidem, p.106). A quinta e última qualidade da literatura é a multiplicidade. Sua essencialidade advém do fato de que as totalidades não são mais possíveis, a não ser na forma multifacetada da enciclopédia, “como rede de conexões entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (ibidem, p.121). Nesse

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sentido, seremos outros Bouvard et Pécuchet ao insistirmos em abraçar uma razão já bastante debilitada. Mais uma vez, não se trata de relevar a “complexidade inextricável” do mundo, mas de jogar com a “incapacidade de concluir” (ibidem, p.125). A exatidão pode trabalhar para a simultaneidade: “em nossa época a literatura se vem impregnando dessa antiga ambição de representar a multiplicidade das relações, em ato e potencialidade” (ibidem, p.127). Desfazer o paradoxo entre a concentração e a acumulação é uma das possibilidades da literatura. O sentido do jogo parece estar em saber combinar as inúmeras janelas possíveis da rede do texto múltiplo: “essa idéia de infinitos universos contemporâneos em que todas as possibilidades se realizam em todas as combinações possíveis” (ibidem, p.134). As propostas de Calvino preconizam uma mudança na interpretação da literatura como prática transgressora em relação ao real. Essa alteração é um sintoma, ou acidente no sentido do trauma, diriam os apocalípticos, de que “entraram em cena formas leves e não dramáticas do pensamento cotidiano” (Gumbrecht, 1998, p.275) que exigem a reflexão sobre o papel do literário na contemporaneidade. A literatura modernista se impôs o compromisso com a negação crítica da realidade. “O pesadume, a inércia, a opacidade do mundo” (ibidem, p.16) não deixaram de existir e viver continua sendo perigoso, mas em contrapartida, ao “dever de representar nossa época” (ibidem, p.15), pressionado pela “coerção da dissonância”, talvez seja possível a “existência de uma positividade não afirmativa que não termina em adulação cínica do real” (Sloterdijk, 1992, p.98). As teses de Calvino (1990, p.20) representam a necessidade de refletir sobre a possibilidade da existência de valores que dêem conta de uma literatura para “mudar nossa imagem do mundo”. Nesse sentido, suas propostas são diametralmente opostas ao pressuposto da teoria crítica de Adorno: “a desumanidade da arte deve superar a desumanidade do mundo para o bem da condição humana” (apud Sloterdijk, 1992, p.43). Ao propor a leveza “como reação


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ao peso do viver”, Calvino (1990, p.39) sugere uma condição de existência para a literatura que se opõe ao pensamento adorniano e abre a perspectiva de se pensar no modo específico de atuação na literatura de valores que já fazem parte do nosso tempo, “sem que tivessem conduzido a quaisquer dificuldades dramáticas de adaptação” (Gumbrecht, 1998, p.278). Ainda assim, permanece latente a valorização da literatura como fundamento antropológico: “meu mal-estar advém da perda de forma que constato na vida, à qual procuro opor a única defesa que consigo imaginar: uma idéia de literatura” (Calvino, 1990, p.73). A literatura mantém o substrato da diferença se caracterizando como a “comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita” (ibidem, p.58). Repensar a atuação de outros valores para o literário é tarefa imposta pela “civilização da imagem” (ibidem, p.107). E se, em vez da receita da crítica e do engajamento, a literatura estiver se deslocando para um outro espaço? O domínio avassalador da imediaticidade visual impõe ao cotidiano um ritmo leve, rápido, preciso, visível e múltiplo, que torna dissoluta qualquer estratégia de choque. Se a homogeneização promovida pelos media age por uma espécie de contaminação atingindo a linguagem como uma peste e provocando mal-estar, segundo Calvino (1990, p.72), cabe à literatura “criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo lingüístico”. Além disso, a reação não pode ser meramente negativa, investindo na restauração do que já não é mais, limitando-se à “mímesis fatal” (Sloterdjk, 1992, p.43). É preciso ir além e aprender as táticas do inimigo, jogar com as suas estratégias, utilizar de modo irônico o imaginário dos meios de comunicação, manipular os simulacros. Chafurdar a profundidade literária na superficialidade imagética. É preciso aceitar a constatação de que o “advento da modernidade tecnológica [...] faz parte [...] da própria forma da obra [...] de sua ânsia de dar consistência à multiplicidade do escrevível” (ibi-

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dem, p.127) e renunciar à pretensão do incomunicável. Se a dimensão crítica da literatura aparece diluída, isso não indica frivolidade, mas a perspectiva de um olhar indireto que cansou do enfrentamento com a angústia e agora pode jogar até mesmo com esse descompromisso: “hoje, existem diversas formas de conhecer a fatalidade do mundo. Esse tipo de conhecimento do ponto de vista estético, não está sujeito a priori à coerção da dissonância” (Sloterdjk, 1992, p.41). Talvez a crítica distraída seja inerente ao tipo contemporâneo do leviano preocupado, ma non troppo. Se a arte não serve mais como “mediação da verdade” (ibidem, p. 43), o sujeito também não é mais formado para a ação. O engajamento político e a atitude contracultural perderam sua força à medida que seus alvos perderam consistência, pulverizando-se na multiplicidade das verdades culturais, morais e estéticas. Experimentou-se o luto de viver em um tempo em que não mais “exist[ia] claramente contra quem lutar, o inimigo” (Noll, 1989, p.27), as subjetividades se desalinharam e passaram a deambular erraticamente pelas narrativas. Para a entropia contribuía a presença cada vez maior do aparato midiático interferindo na subjetividade e um quê de melancólico, inerente ao desaparecimento da firmeza de um sentido, paira sobre a literatura dos anos 1980.

Novos valores para os anos 1990? No panorama da prosa literária brasileira contemporânea, afirmar a heterogeneidade (de nomes, estilos e formas) é quase uma obviedade. Mas os anos 1990 têm uma marca, que é ao menos temporal: são anos pós-ditadura. E, no entanto, essa problemática parece ter desaparecido das narrativas, não sobrando nem sequer resquício de uma “diástole da militarização” (Santiago, 1998, p.12). Ao peso das obras de denúncia, dos romances – reportagens, da literatura verdade, segue-se uma apropriação da leveza seja na forma dos micro-relatos que parecem se configurar como


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uma tendência de estilo seja nos temas da prosa dos anos 1990. Não é que os exemplos do cotidiano tenham desaparecido das histórias, mas aparecem dissimulados, contornados, quase coadjuvantes. O teor de criticidade é subliminar, quase não se concretiza na cena do texto. As agruras da era tecnológica pós-industrial, a espetacularização da vida e do mundo dominado pela lógica do consumo perdem o tom panfletário, insinuando enfado com a defesa das grandes causas. Para muitos, esse é o sintoma de uma crise, caracterizada pelas banalização e neutralização das expectativas, e não por uma reorientação delas. Se ninguém mais espera uma “peripécia revolucionária” (Baudrillard, 1994), pode se investir nos efeitos especiais a serem extraídos dessa ausência. A sensação de luto cumprido permite outros desdobramentos. A condição contemporânea se já não se adapta mais à fórmula da “apatia, depressão, ansiedade e perplexidade [...] diante de um mundo indecifrável” (Pelegrini, 1999, p.202), procura novos valores com os quais possa se expressar. É justamente uma crise das medidas de valor que permeia a discussão sobre a novíssima prosa brasileira. Encarando-se a possibilidade de as qualidades sugeridas por Calvino estarem atuando na narrativa contemporânea e sendo essas uma forma de apropriação da linguagem midiática, parte da crítica tende a avaliar a produção atual como anti-reflexiva, resultado de um conformismo generalizado, incapaz de provocar inquietudes. Um dos variados exemplos que poderiam ser apresentados diz respeito a apenas uma das polêmicas que movimentam a vida literária do século XXI nascida da resenha do livro de Nelson de Oliveira, O filho do crucificado, por Cristovão Tezza no “Mais!” da Folha de S.Paulo. A avaliação reconhece no texto alguns dos valores propostos por Calvino. A multiplicidade e a rapidez: “vai se apropriando de um modo instantâneo e voraz de todos os registros”; a leveza, caracterizada pelo humor: “qualquer tonalidade séria será imediatamente desmontada na vírgula seguinte”; a exatidão: “composição construída com habilidade”.

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No entanto, segundo Tezza (2001), o uso excessivo da fragmentação, originada no abuso dos valores comentados antes, torna instável qualquer ponto de referência, fragilizando e empobrecendo o texto por expô-lo a uma visibilidade demasiadamente mimética. Descartada a hipótese da transgressão, restaria apenas um “realismo absoluto”, “a suposta realidade objetiva, como uma câmera de tv avançando sozinha pelo espaço”. O livro de Nelson de Oliveira seria então a “expressão viva de uma crise” do literário que apenas reduplica um real degenerado, aceitando tacitamente a invasão das imagens pré-fabricadas. Na réplica à resenha, Nelson de Oliveira (2001a) justifica sua discordância, identificando o valor como a “palavra-chave da crise”. Defendendo uma idéia de literatura que “se recusa a dar qualquer sentido ao caos, limitandose a mimetizá-lo ao extremo” como adequada aos tempos atuais, Oliveira contesta a possibilidade nostálgica da restauração de alguma estabilidade, cuja expressão mais banal seria a reafirmação dos cânones. A concordância em torno da existência de uma crise já não é tão pacífica quando diz respeito aos valores com os quais se deve romper ou transigir. A instabilidade na caracterização dos personagens, na composição da trama, na exposição da forma narrativa está em “sintomática sintonia com as transformações no conceito de valor” (Sussekind, 2000). A crise só se torna impasse catastrófico se for avaliada de um ponto de vista que ficou para trás, aquele que se regozija com o “êxtase negativo do valor” (Baudrillard, 1994), quando talvez os novos valores apostem numa positividade sem culpa e sem rendição, apenas a reelaboração de outras formas de diálogo com a realidade: “prosa e poesia a serviço da ética e do intelecto? Nevermore” (Oliveira, 2001b). O que paira como uma sombra por trás da recusa dessa flexibilização de horizontes é uma espécie de demonização da lógica do espetáculo e da sua capacidade de transformar tudo em mercadoria. Assim, a conseqüência natural é que a arte seja contaminada pela normalização do mercado: “o produto comercialmente justo não é o que se ajus-


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ta às cores vivas, aos sons gritantes, ao jogo de luzes do espetacularizado?” (Costa Lima, 1999). A literatura estaria condenada ao conservadorismo ao sucumbir ao fetichismo da mercadoria, transformando o artista em empresário, o público em cliente e o discurso artístico em mera opinião (Saer, 2001). A não ser que qualquer tentativa de reflexão esteja de antemão condenada ao “pensamento do não-pensamento” (Debord, 1997, p.128), devemos contar com a possibilidade de avaliar o modo de atuação do espetáculo mediante uma leitura a contrapelo, já que parece incontestável que “a realidade surge no espetáculo e o espetáculo é real” (ibidem, p.15). Segundo Debord (1997, p.168), diante da ameaça da existência de uma “geração educada pelo espetáculo” nossa época não teria o que comemorar, seria uma “época sem festa” (ibidem, p.106), apocalíptica, em que “toda coisa terrestre caminha para corromper-se” (ibidem, p.95), restando-lhe apenas a nostalgia e a melancolia “inerente ao desaparecimento do sentido” (Baudrillard, 1994, p.234). E se, de repente, a geração do espetáculo descobrisse que viver com imagens é uma felicidade? Superando o perigo e a retórica da fascinação alienada, tentando entender e refazer as engrenagens desse jogo? A imagem, o espetáculo, não podem mais se circunscrever à ilha de Morel, agora dominam todo um continente. Premissas como essa podem servir como ponto de partida da reflexão sobre uma outra “realização” do mundo. Não há como negar que essa crise de valores relativa à produção literária contemporânea mantém profunda relação com o fato de que os autores que publicaram seus primeiros livros nos anos 1990 formam a primeira geração nascida sob o império do visual, a geração do espetáculo: “ninguém que tenha, como eu, passado tantas horas diante do veículo tão avassalador poderá afirmar não ter sido contaminado por ele de maneira irrevogável. Na trama de minhas histórias, quer isso me agrade ou não, há a sombra de muita hidra eletrônica”(grifo meu).2 Assim, a literatura pro-

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Nelson de Oliveira, depoimento lido na PUC-RS por ocasião do quinto encontro de oficinas literárias realizado em outubro de 2001 (disponível em: <http://www.bonde.com.br/ rascunho/>).

“É mesmo possível que tenha sido um ano maravilhoso, não sei... A Bossa Nova que se pegava no rádio, os filmes ganhando prêmios, a facilidade com que se partilhava um berro e aqueles divórcios devastando gerações... Os marcadores de Garrincha com a espinha quebrada. A simplicidade das capas dos livros e dos desejos das pessoas. É verdade: os militares já vinham com aquelas idéias, mas ainda não tinha feito o pior. Se você diz, é mesmo possível...Eu era muito pequeno e só consigo lembrar que as coisas, quando caíam, faziam um estrondo terrível nos meus ouvidos.”

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duzida sob a influência dessa formação, uma espécie de Bildung tecnologizada, quer agrade quer não, é um efeito desse outro Zeitgeist. Em meio às inúmeras searas abertas pela prosa da novíssima literatura brasileira, pode-se identificar um agenciamento das qualidades propostas por Calvino. Não é que elas tenham se transformado em um compêndio, um manual de consulta do tipo “faça você mesmo a nova literatura do milênio”. No entanto, alguns procedimentos, que aparecem de forma diferenciada na produção dos muitos autores da contemporaneidade, supõem a presença de valores cujo maior rendimento é a leveza. Mesmo nos representantes de certa “literatura do entrave”, como Marcelo Mirisola e André Sant’Anna, e da “cultura da degeneração”, vide Fernando Bonassi, cuja característica principal seria a persistência da negatividade, a leveza se compõe pelo arranjo do humor e do sexo, presenças garantidas nessa produção, e pela articulação fragmentária, veloz, às vezes da forma, outras do conteúdo. Sem chegar a provocar estranhamento e rejeitando experimentalismos, os textos não se acomodam a uma normalização: os gêneros são híbridos (contos, crônicas ou apenas cartas?, no caso da literatura de Mirisola) e a biografia e a ficção mantêm imbricado relacionamento. A herança mais recente da postura vitalista e contracultural vira pastiche e autores dos anos 1970 são transformados em personagens (é o caso de Ana G. e Caio F. em Acaju, de Marcelo Mirisola, por exemplo). No caso da experiência do trauma ditatorial, a lembrança desdramatizada do golpe de 1964 é característica de uma “amnésia sem dejà vu” (Oliveira, 2001, p.89), vide “1964” de Fernando Bonassi (2000, p.64).3 A diferença no tratamento do tema, tão pesado, advém do fato de que a vivência da época pelo ego scriptor é de segundo grau, um cotidiano experimentado apenas por meio do que ouviu dizer sobre ele. Uma outra vertente pode ser identificada ao exercício mais devotado da precisão, do plano arquitetural da escrita, jogando com a simultaneidade. No conto “Estão


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apenas ensaiando”, de Bernardo Carvalho, a multiplicidade dos planos toma como horizonte a espetacularização. Aí, a cena simulada, teatral da representação da morte, repete-se em eterno retorno pela insatisfação manifestada pelo diretor do espetáculo quanto à ausência de realismo na interpretação do ator. Enquanto esse insiste na inverossimilhança do texto e no distanciamento que, segundo ele, “esse tipo de representação exige” (Carvalho, 2000, p.594). O texto mimetiza as repetições, reescrevendo a cena, mas simultaneamente avança, implacável, pela presença de “um homem [que] entra na sala escura” e ainda que signifique “menos que um vulto sem rosto”, já atua no cenário da encenação. No fim da narrativa, essa presença faz coincidir a cena e o “mundo do lado de fora” pela notícia da morte da mulher do ator, justificando seu atraso ao encontro previamente marcado. O desfecho epifânico faz compreender a todos a perfeita adequação da representação que se encenava (“esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte”), momentos antes considerada fake. Ao espetáculo encenado se sobrepõe o espetáculo do real, indomável em seu acaso, apesar da aparente engenhosidade de suas artimanhas. É por isso que a verdadeira atuação (“tornou-se o próprio lavrador”) só é possível de ser explicada “involuntária e inconscientemente” por uma “trapaça do destino”. A concretude da vida real tem a consistência do inverossímil. A pretensa estabilidade do vivido é desarticulada pelo absurdo. A constatação exige uma outra performance da vivência do que é real. Por isso é sintomático que o conto termine com a estrondosa gargalhada do técnico e iluminador, “chegando ao fim da piada”. A tensão enunciativa é dúbia, diz respeito à súbita concatenação de todos os quadros e à suspensão da possibilidade de concluir por uma moral da história. O texto é construído com rigor, segundo todas as coordenadas de montagem para um espetáculo, mas o desvio para o anticlímax esvazia a loquacidade. O universo narrativo de Nelson de Oliveira representa um sintoma de que a noção da leveza pode estar se tor-

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Nelson de Oliveira, Às Moscas, Armas!, p.68. [http://catedi.cjb.net] E-book.

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Nelson de Oliveira, em entrevista on-line referindo a Borges, que dizia que se há uma vassoura no texto e não tem função, não deveria estar no texto (disponível em http://www.geocities.com/ soho/lofts/1418/noli.ht).

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nando dominante. Suas histórias revertem o jogo entre o lógico e o ilógico. Sem ser uma escrita alegórica ou fantástica (rótulos que o autor descarta), quase nada é plausível, explorando os limites do sentido. Muito desse paradoxal equilíbrio é sustentado por uma atmosfera de fluidez fabulatória à qual adere um humor descompromissado. A impossibilidade das sinopses se deve à maneira pouco convencional de acionar um imaginário em constante transitividade que se tensiona quase até o limite do absurdo. Anjos, hermafroditas e anões passeiam como personagens de um texto que dialoga com a linguagem das histórias em quadrinhos, da dinâmica dos jogos de RPG e das séries de ficção científica. As demarcações, já esmaecidas, entre os campos do real e da virtualidade imaginativa, cedem espaço à perplexidade do ininteligível que parece incomodar. A desmedida do real plausível, nunca muito evidente, de repente escapole para outra atmosfera: “lentamente aquela figura esparramada ia ganhando uma nova densidade, uma definição que havia pouco não possuía”.4 Talvez um pouco dessa organização desagregadora seja explicada pela desobrigação de os elementos se conectarem uns aos outros, estabelecendo sentido: “Gosto de textos em que há vassouras e espingardas cuja função é, certamente não ter nenhuma função”.5 Em O filho do crucificado, o apocalipse é o tema principal das narrativas. O imaginário do fim do mundo parece buscar justificativa diante de um mundo que não se acabou: “O sujeito insiste que o mundo vai acabar nesse fim de semana. Diz isso há meses. Mas é lógico que os fins de semana vêm, vão, e o mundo não acaba” (Oliveira, 2001, p.166). Já no primeiro texto, “Arremessa teu raio até a morte”, a evocação da fórmula infantil “abracadabra” é suficiente para sumir com o universo inteiro. Não se investe em nenhum tipo de psicologização dos personagens que aparecem caracterizados por tangas, máscaras e chinelos. O fato de que “ninguém saber ler. Só ver figuras” (ibidem, p.11) torna inconfiável a transparência do mundo: “Se um cego, num país de cegos, inventasse que tem


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um olho, que o céu é vermelho e o fogo verde quem no seu país poderia negar tal afirmação?” (ibidem, p.17). O texto bloqueia a seriedade pelo desvanecimento de seus nexos narrativos. À maneira de um hipertexto, os desdobramentos da situação são como janelas, links que movimentam a trama por meio de saltos. Os fatos do cotidiano estão nas narrativas: experiências com o ser humano perfeito (“O saxofone baixo”), o escrutínio da privacidade pela TV (“Quantos?”), os traumas de uma guerra (“As bruxas”), a sexualidade deserotizada (“Nada do que é humano me é alheio”), e a maneira de lidar com eles é que é a diferença. A estratégia para tratá-los é a antropofagização paródica dos clichês. Em “O saxofone baixo”, um casal é selecionado para fabricar o “germe da nova humanidade” (ibidem, p.46) e todo o “intercurso sexual” é registrado minuciosamente em um bloco de anotações, além de filmado. A irônica assepsia científica (?) cobre-se de leve humor “não sou bom com as palavras. Não sei traduzir de maneira fiel, os dramas interiores de cada um”(ibidem, p.42). Ou em outro momento, “Quantos?”: “estávamos perdidos em nossos próprios sentimentos. Cafona, isso, né?” (ibidem, p.57). Nessa narrativa, o ritmo alternado de perguntas e respostas sugere uma sessão psicanalítica (“será que tevê dá tesão? Nunca parei pra pensar sobre isso” [ibidem, p.54] pervertida pela superexposição de uma entrevista televisiva. O clima de seriedade se adensa quando o final dos tempos toma a forma da guerra. Em “As bruxas”, a instabilidade gramatical e sintática reflete a atonia com o bombardeio e a violência. Já em “Nada do que é humano me é alheio” é o inferno de Dante que se atualiza no cotidiano pós-utópico. Depois de contrariada a última esperança, “mas o dia primeiro de janeiro raiou, ignorando todos os prognósticos” (ibidem, p.87), todos se decidem por um suicídio coletivo, atirando-se da janela do décimo sétimo andar de um edifício. Apesar de a sinopse revelar uma atmosfera sombria, o que se lê é a caricatura do final do mundo. À medida que os andares ficam para trás, vai-se tomando conhecimento dos personagens. O primeiro a

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pular é um poeta, “Senhor Estúpida Vontade de Apagar a Luz” (ibidem, p.88), na fila estão Brunilda, professora universitária e prostituta, um travesti, um escritor e uma editora, entre outros. Enquanto Nicolau Nikolai, escritor russo, tenta vender uma história para Sônia Berenice, editora brasileira, o travesti se mostra interessado em táticas e jogos sexuais aprendidos vorazmente por Brunilda no livro comprado na banca de jornais. A preocupação hedonista com o prazer é compensada pela vocação do flagelo “com valente obstinação suporta todas as fadigas, ri se a necessidade, se o sofrimento te maltratarem” (ibidem, p.100). O filho do crucificado fala de um mundo para o qual um “grande mal” (ibidem, p.157) estava previsto. Como as premonições se revelaram falsas, pelo menos nas formas apocalípticas de uma “chuva de fogo, terremoto e maremoto” (ibidem, p.70), só nos resta conviver com a iminência e a dissolução dos fins que se repetem, quantos? Não se lamenta mais o desconcerto de um mundo que é produto da instabilidade das certezas, da ausência de referências seguras, da impossibilidade de identificar a diferença entre fingir e ser. A invalidez das utopias não deságua necessariamente no topos desgastado da apatia. Em vez da “normalização” inevitável (Saer, 2001), e contrariando veredictos de degeneração (“uma sociedade que se tornou incapaz de lidar com o tempo e com a história” [Jameson, 1985, p.27], a narrativa contemporânea aposta na capacidade de a literatura experimentar nossa própria época. Assumindo a sua contingência, a literatura configura-se como uma zona de resistência a contrapelo do ethos da globalização. O presente parece se ocupar de estratégias que procuram reinventar o antagonismo, às vezes correndo o risco da ambivalência entre a cooptação feliz e a resistência impertinente. Tal como a entendemos no contexto da literatura contemporânea, essa resistência tem como pano de fundo o imaginário pragmático, globalizado, e se caracteriza como fraca não apenas porque abdica do confronto direto, mas porque seu ponto de partida é o reconhecimento de que


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“é apenas marginalmente que os meios literários... servem às grandes sociedades modernas para a produção de suas sínteses políticas e culturais” (Sloterdjk, 2000, p.14). Sua força está na leveza quase débil com que reinventa formas de contestar uma satisfeita adaptação ao presente.

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SANTIAGO, S. Democratização no Brasil – 1979-1981. In: ANTELO, Raul etal. Declínio da arte / Ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1998. SLOTERDJK, P. Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico: ensaio estético. Trad. Heidrun Krieger Olinto. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

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TEZZA, Cristóvão. Caleidoscópio de vozes. Folha de S.Paulo, Mais!, 16.9.2001.


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Narrativa, técnica e tecnologia: “Contos da Meia-Noite” Márcio Serelle*

RESUMO: Este artigo pretende analisar o modelo narrativo da série “Contos da meia-noite” (TV Cultura), dirigida pelo videomaker Eder Santos, em que ficções da literatura brasileira são adaptadas para a televisão por meio de uma técnica articuladora da leitura dramatizada e da linguagem audiovisual. Para isso, o trabalho busca investigar as estratégias enunciadoras do programa, examinando as categorias autorais atuantes na transposição da literatura para a tela, bem como o diálogo entre os modos de representação épico e dramático. O texto propõe, ainda, o estudo dos aspectos temporais da série, identificando suas relações com a concisão do gênero literário conto e os possíveis efeitos na recepção televisiva. Por fim, o trabalho analisa o estatuto dado ao narrador, entidade ficcional que, no programa, é moldada, simultaneamente, pelas raízes orais do conto e pela experiência midiática. PALAVRAS - CHAVE :

Teledramaturgia, adaptação, literatura,

narrativa.

* Professor dos programas de pós-graduação em Letras e em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).

ABSTRACT: This article aims at analysing the narrative pattern of the TV series Contos da meia-noite (Midnight tales), directed by the videomaker Eder Santos, in which fictional works from Brazilian literature are adapted to television by a technique that articulates dramatised reading and audiovisual language. This work investigates series of enunciation strategies, examining the authorship categories that actuates on the transposition of literature to screen, and the dialogue between modes of representation (epic and dramatic). This text also proposes the study of the temporal aspects from the series, identifying their relations to the concision of the literary genre tale and the possible effects in television reception. In the end, this work analyses the statute given to the narrator, a fictional identity that is, on the program, modeled, simultaneously by the oral roots from the tale and the mediatic experience. KEYWORDS:

TV drama series, adaptation, literature, narrative.


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Narrativa, técnica e tecnologia: “Contos da Meia-Noite”

Televisão e literatura: mediações O estudo da concepção narrativa de”Contos da meianoite”, série de adaptações televisuais de ficções nacionais, dirigida por Eder Santos, obriga, inicialmente, a refletir sobre as relações entre televisão e literatura nos meios culturais brasileiros. Historicamente, essas relações têm sido vistas menos de forma simbiótica, de cooperação estética, que emulativa, de concorrência e substituição.1 Tal noção de embate encontra-se enraizada em parte de nossa intelectualidade, que compartilha da crença na superioridade incondicional das formas literárias, ignorando as possibilidades exploratórias mais radicais das formas audiovisuais em geral ou de diálogos proveitosos entre os dispositivos eletrônicos e a literatura. A afirmação da superioridade da literatura sobre, por exemplo, o cinema deriva, segundo Stam (2000, p.58), da cristalização de alguns preconceitos culturais, tais como: [...] seniority, the assumption that older arts are necessarily better arts; iconophobia, the culturally rooted prejudice (traceable to the Judaic-Muslim-Protestant prohibitions on “graven images” and to the Platonic and Neoplatonic depreciation of the world of phenomenal appearance) that visual arts are necessarily inferior to the verbal arts; and logophilia, the converse valorization, characteristic of the “religions of the book”, of the “sacred word” of holy texts.2

Assim, ancorada na idéia hoje bastante questionável de oposição entre “cultura erudita” e “cultura de massa”, essa atitude desdobra-se, muitas vezes, em preconceito contra a adaptação, notadamente a televisiva, de obras literárias. Essas tensões não se manifestam mais, necessariamente, a partir da cobrança de fidelidade e preservação da literariedade original, haja vista que, como observou Ismail Xavier (2003), há, na contemporaneidade, a consciência dos deslocamentos inevitáveis (tanto de linguagem como de perspectiva) a esse tipo de processo, em que o texto é tido como ponto de partida e não de chegada, respeitando-se,

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Convém lembrar a tese de Antonio Candido (2000, p.137) de que a ascensão de novos meios de comunicação no século XX inibiu a formação de um público leitor nacional, que, ainda incipiente, logo se viu atraído por veículos que possibilitavam, graças à imagem e ao som, o acesso mais fácil, “com menor exigência de concentração espiritual”, à quota de experiência e fantasia proporcionada pelo livro. Embora não cite especificamente a TV, e, sim, o cinema, não há como deixar de notar, nesse raciocínio, certa crítica à preferência do público pelos meios audiovisuais, em detrimento da literatura.

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“[...] senioridade, a assunção de que artes mais antigas são necessariamente artes melhores; iconofobia, o preconceito culturalmente enraizado (rastreável desde as proibições judaicomulçumano-prostestantes às “imagens esculpidas” e a depreciação platônica e neoplatônica do mundo da aparência fenomenal) de que artes visuais são necessariamente inferiores às artes verbais; e logofilia, a valorização contrária, característica das ‘religiões do livro’, da ‘palavra sagrada’, dos textos sagrados” (Tradução nossa).

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assim, as opções do adaptador. O grau de aproximação com o texto literário não basta, portanto, como critério de julgamento para a apreciação crítica de adaptações cinematográficas ou televisivas, já que essas devem ser recebidas como novas experiências estéticas, que possuem suas formas, seus sentidos. Essas ponderações, no entanto, não apagam por completo os resquícios de uma hierarquização de produtos culturais, em que os programas televisivos de adaptação aparecem como mediações vulgarizadoras (no sentido pejorativo do termo) de obras literárias, essas associadas, usualmente, a um público seleto e intelectualizado. O próprio uso recorrente do termo inglês digest (digestão ou simplificação), como no conhecido texto de Bazin (2000), para designar o processo de adaptação já indica uma valoração da obra audivisual como algo derivado e secundário, no sentido de inferior em relação ao texto-fonte literário. Guardadas as diferenças, que são muitas, o literato contemporâneo, que, avesso aos veículos midiáticos, despreza o “escoadouro” televisivo para massas, comporta-se como o escritor quinhentista da Res Publica Literatorum, que recusava as técnicas emergentes de impressão, alegando que a circulação e a apropriação descontrolada dos trabalhos por editores e leitores implicavam a banalização e deturpação dos significados. Em comum, os dois contextos possuem uma noção de clivagem cultural, reflexo de um posicionamento elitista, que pode ser percebida, em certa medida, como sintoma de uma clivagem também social. O contexto de interação acentuada entre as mídias tem proporcionado, recentemente, no campo da crítica literária, uma outra reação adversa, contrária à produção ficcional que se incorporou à indústria midiática. Para Leyla Perrone-Moisés (1998, p.203), os escritores contemporâneos, em vez de explorarem, em equivalência de linguagem, as possibilidades estéticas do cinema e da televisão, “apenas mimetizam o baixo teor desses meios, ou conformam-se à sua lógica mercadológica: já escrevendo tendo em mente a passagem direta para esses veículos de comu-


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nicação”. De acordo com esse argumento, a atual integração entre o verbal, o acústico e o visual, no âmbito do diálogo com a televisão, dá-se, por parte da literatura, de maneira servil e capitular, bem diferente do movimento dialogal e criativo presente entre os escritores do início do século XX, contexto de difusão do rádio e do cinema, em que Oswald de Andrade trabalhou, por exemplo, o recurso do camera eye, em Pau Brasil. Essa vontade restauradora de uma “alta literatura”, presente no texto de Perrone-Moisés, embora conservadora, aponta para uma importante reflexão acerca das traduções intersemióticas na contemporaneidade: a de que o texto literário, ainda matriz geradora de fábulas e tramas, já se encontra suficientemente informado (e transformado), em suas estratégias de expressão, pelas técnicas audiovisuais e por uma cultura presentificada, muitas vezes sem rastro e efêmera, que não inclui, necessariamente, a própria tradição literária. Torna-se redutor, contudo, perceber o fenômeno das adaptações e das operações multimídias apenas como estratégia sinérgica dos mercados, pois as interações inserem-se num processo cultural mais complexo e fluido, em que uma cultura audiovisual já se faz presente na gênese literária contemporânea, seja como substância ou configuração das tramas, como demonstra o estilo imagético de Rubem Fonseca – que curiosamente construiu um romance, O selvagem da ópera, a partir de técnicas de roteirização – seja na tentativa de superposição de imagens televisivas presentes no conto Zap, de Moacir Scliar, significativamente uma das narrativas adaptadas em “Contos da meia-noite”. Isso sem mencionar aqui criações originalmente híbridas, como o e-poema e o videopoema, nascidas nos ambientes midiáticos e que já possuem a tela como primeiro suporte. De todo modo, não é mais possível ignorar o trânsito, em diversos graus, das formas literárias na contemporaneidade, o que, se não encerra questões propriamente novas (os processos dinâmicos de tradução e transferência do literário para outros meios são seculares),

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instaura o debate no âmbito da crítica e dos participantes da cena cultural, que devem refletir sobre a inserção, as configurações e as vias de circulação da literatura na cultura das mídias.

Formas breves

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A série, produzida em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, estreou no dia 08 de dezembro de 2003.

4

Podem-se citar as teleficções da Rede Globo, que visivelmente privilegiaram, nas últimas décadas, autores nacionais, de escolas e qualidades diversas, como Ariano Suassuna, Basílio da Gama, João Ubaldo Ribeiro, Roberto Drummond, Guimarães Rosa, entre outros. Em estudo sobre a minissérie Anos dourados, Ismail Xavier (2003, p.144) identifica, nessa mesma emissora, o que ele chama de “preocupação com a identidade nacional”, que pode ser percebida na adaptação constante de clássicos da literatura brasileira, especialmente da obra de Jorge Amado, a partir de Gabriela, cravo e canela, em 1975.

Reconhecidos o cenário e as inquietações que ele apresenta, devemos examinar como o programa “Contos da meia-noite”, veiculado entre 2003 e 2006 pela TV Cultura, situa-se nesse contexto e em que medida sua proposta de teledramaturgia aponta novos caminhos para a adaptação da literatura, em trabalhos gerados especificamente para a televisão. Exibido, inicialmente, de segunda à sexta-feira3 sempre à meia-noite, o programa possui aproximadamente dez minutos de duração e apresenta, a cada dia, um conto da literatura brasileira, interpretado por um ator pertencente a um núcleo composto, em sua primeira temporada, por Marília Pêra, Maria Luiza Mendonça, Matheus Nachtergaele, Antônio Abujamra, Giulia Gam e Beth Goulart. À primeira vista, esse escopo sugere a intenção recorrente e programática de outras produções televisivas brasileiras que dialogam com a literatura: a de possibilitar o acesso do grande público a textos de autores nacionais, em especial aqueles pertencentes ao cânone ou que, de produção recente, já se encontram abalizados pela crítica jornalística ou acadêmica. Observa-se, nesse aspecto, a preocupação das emissoras, em geral, de trabalhar, em suas produções, com adaptações de textos quase que exclusivamente da literatura nacional, o que talvez indique, nesse caso específico, o papel pedagógico, assumido pela própria TV, de divulgação de um acervo literário brasileiro.4 De pendor didático, o minuto inicial de “Contos da meia-noite” funciona à guisa de um prefácio livresco, em que a apresentadora (Teresa Freire) introduz a fábula da narrativa, além de mencionar aspectos biográficos do autor,


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da recepção crítica e da historiografia literária. A tela (Figura 1), dividida em dois campos, é ocupada, à direita, pela apresentadora e, à esquerda, por uma foto ou ilustração em preto-e-branco do escritor, como aquelas que circulam nos paratextos (orelhas e notas introdutórias) das publicações. Percebe-se, aí, mais que o diálogo com as ordens de associação da cultura impressa, a necessidade de visualização do autor empírico, a partir da divulgação de sua imagem junto ao texto, hábito difundido a partir do século XV, quando se evidencia o processo de individualização do autor e a noção de propriedade intelectual de obras ficcionais.5 Curiosamente, observa-se que o modelo é transposto para o formato televisivo, em uma clara opção pela preservação da autoria, aspecto que pode contribuir tanto para a possível intenção pedagógica do programa como para afirmar, na introdução, a “fidelidade” ao texto original, a seu autor e horizontes de produção. No entanto, esse “contrato”, como veremos, revelar-se-á numa atitude bifronte, de preservação e transformação, em que a autoridade (palavra cujo radical faz referência a “autor”) do escritor se propaga, porém, transformada, pelo dispositivo televisivo.

Figura 1 – O “prefácio eletrônico” do conto “O bebê de tarlatana rosa”. À esquerda, foto do escritor pré-modernista João do Rio.

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6 5

Ver o breve artigo de Peter Burke (2001), “A propriedade das idéias”.

“[...] é um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo status” (Tradução nossa).

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A afirmação da autoria pode exercer ainda, nas nuanças da programação, uma função distintiva, que caracteriza o discurso literário, conferindo-lhe determinada posição diante dos outros discursos – muitos deles desprovidos de autoria – que são veiculados pela televisão. Como assinalou Foucault, o nome do autor, vinculado a um texto em geral, indica que esse discurso não é um discurso ordinário, flutuante e imediatamente consumível, mas, ao contrário, “it is a speech that must be received in a certain mode and that, in a given culture, must receive a certain status”6 (Foucault, 1979, p.147). Esse estatuto, no caso de “Contos da meia-noite”, não é, entretanto, preenchido por uma única identidade criadora, vinculada à gênese literária, pois há uma outra camada de autoria bastante significativa, que se constitui pela idealização estética do diretor Eder Santos, cuja “gramática visual” pode ser percebida na configuração da série. Aspectos dessa outra autoria são identificados, por exemplo, na recorrente sobreposição de frames, que são editados não de forma singela, mas de maneira simultânea (Figura 2), como se janelas diferentes tivessem sido abertas numa mesma tela. Esse recurso, presente em obras diversas do videomaker, como “Essa coisa nervosa” (1991) e “Janaúba” (1993), remete às possibilidades de tautocronia visual, explicitadas também no meio on-line e cada vez mais comuns na composição televisiva, mesmo em canais muito pouco ousados esteticamente, o que indica a assimilação do modelo de organização paradigmática pelos telespectadores em geral. A atuação dos narradores e personagens, que dialogam diretamente com a câmara, também é outro ponto reiterado na produção de Eder Santos, que, em geral, não exibe planos de atores contracenando entre si. Podem-se perceber ainda, como elementos indiciais de uma autoria videográfica, as interferências imagéticas e sonoras manifestas, por exemplo, em sombras, imagens excessivamente granuladas e na simultaneidade de falas e sons.


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Figura 2 – Frames sobrepostos na edição simultânea de “Balaio”, conto de Marçal Aquino, interpretado por Matheus Natchergaele.

“Contos da meia-noite”, malgrado o nome, não se restringe a narrativas fantásticas ou góticas, embora o tema da vinheta de abertura e vários dos contos apresentados como “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio e “O exmágico da taberna Minhota”, de Murilo Rubião, costeiem esses subgêneros. O título – possivelmente uma alusão ao livro de contos Histórias da meia-noite (1873), de Machado de Assis – parece evocar também, pela estrutura narrativa do programa, As mil e uma noites e seu esquema técnico, sustentado pela prática sedutora do narrador (sempre em atividade tarde da noite) e pela possibilidade de múltiplas histórias. Se a noção de horror não é pertinente a todas as narrativas, a de suspense (remete à origem etimológica da palavra, do latim suspensus, o que está pendente, na expectativa, na incerteza, duvidoso) não deve ser desconsiderada, pois é inerente ao gênero conto. Como assegura Ricardo Piglia 1990), o conto é sempre uma narrativa de duas histórias, uma epidérmica e outra secreta – colocada à parte, oculta –, que são trabalhadas e tencionadas no relato. “Há algo no final que estava na origem, e a arte de narrar consiste em postergá-lo, mantê-lo em segredo, até revelá-lo quando ninguém o espera” (Piglia, 1990, p.106). Para Barthes (1988), o suspense é uma característica de toda narração que, submetida sempre à

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observação do que se desenrola e ao deslindamento do que está escondido, não se revela de chofre, proporcionando um prazer metonímico, da parte em busca do todo. Na seleção de autores canônicos (Machado de Assis, Lima Barreto, Álvares de Azevedo) e contemporâneos (Moacir Scliar, João Antônio, Marçal Aquino), observa-se a preocupação em contemplar a variedade de escolas e regiões brasileiras e, principalmente, com a possibilidade de adequação do texto ficcional ao formato econômico do programa, que busca preservar a integridade da trama literária. A forma breve da adaptação permite um desenvolvimento diegético mais concentrado e próximo à concisão e rapidez do conto literário. Num cotejo das narrativas televisivas, pode-se dizer que a minissérie, composição serial de média duração, possui uma estrutura mais compacta que a da telenovela, o que faculta ao diretor um trabalho mais preciso e, talvez, mais autoral com a segmentação ternária do drama. Os episódios unitários de “Contos da meia-noite”, por sua vez, potencializam essa “precisão” narrativa, ao encerrarem, a cada exibição, uma história completa e autônoma, o que proporciona ao leitor, de maneira mais precisa, o sentimento de totalidade proveniente da noção de “obra”. Ainda assim, as narrativas independentes compõem, em perspectiva mais ampla, um tipo de serialização cujo liame não se dá pelo tema ou por uma construção teleológica, mas por um mesmo “modelo de produção”. Um dos aspectos desse modelo é a exibição da narrativa em bloco único, sem intervalos, o que, de imediato, pede uma determinada condição de recepção, menos difusa do que aquela normalmente propiciada pelos ambientes domésticos ou públicos em que a televisão está inserida. Como observa Arlindo Machado (2000), o break não possui uma função meramente comercial, mas exerce um importante “papel organizativo” que garante, por exemplo, um momento de pausa, de “respiração”, para assimilar a dispersão inerente à recepção televisiva, daí seu uso mesmo por emissoras estatais, que, a priori, não dependem de receita publicitária.


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Nesse caso, a opção por apresentar o programa sem interrupções implica justamente a ausência da respiração do telespectador, o que imprime determinado ritmo ao programa, pactário da velocidade narrativa do conto literário – que, diferentemente da prosa romanesca, não deve ser sorvido pelo leitor em doses ou capítulos, mas de maneira pungente. Como afirma Calvino (2000, p.48), o segredo do conto está em não perder tempo (como diz a fórmula dos contadores sicilianos), ou seja, está “na economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto”. O bloco televisivo único requisita do telespectador uma audiência concentrada e de qualidade, especialmente em um modelo de adaptação cujo contexto verbal emerge em primeiro plano, com maior força discursiva, sendo complementado pelo contexto visual. Para o telespectador que não possui o conhecimento prévio do conto adaptado, perder a linha do texto implica, muitas vezes, o comprometimento da própria diegese. Opera-se, assim, uma inversão no modo como a literatura geralmente é transposta para a televisão brasileira, em que o modelo verbal é desconstruído para aderir à narratividade visual, usualmente reduzida a uma estética realista de telenovela, que menos tem a ver com a concepção realista oitocentista do que com o hiper-realismo e suas práticas excessivamente estetizantes. Embora fundado no texto verbal e, conseqüentemente, no áudio – escutá-lo somente seria o equivalente a acompanhar um conto gravado em cassete ou CD –, o programa não deve ser visto como uma simples leitura dramatizada ou um sarau eletrônico, pois seus elementos visuais (figurinos, objetos, sombras, projeções), duplicações de imagem, cortes e movimentos de edição são também importantes articuladores dos elementos espaciotemporais da narrativa. No programa, os modos de representação oscilam entre o épico (quando o narrador se faz presente como uma

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instância visivelmente mediadora) e o dramático (quando a narrativa é apresentada sem intermediários ao telespectador, que visualiza a cena descortinada, como num palco) (Xavier, 2003). O modo dramático constitui-se, quase sempre, em “Contos da meia-noite”, pelos diálogos, em que um único ator representa diversas personagens principalmente por meio da modulação de voz e com a ajuda de diferentes tomadas, que atuam no lugar dos marcadores elocutórios, muitas vezes apagados do texto literário transposto para a tela. Alguns elementos descritos no conto – como o “gianaclis autêntico” da personagem de “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio – desaparecem do contexto verbal e se materializam como parte do figurino ou do cenário, esse ainda composto por projeções de objetos e cenas que simbolizam, de maneira quase sempre imediata, elementos nucleares do conto (um martelo de tribunal, em “Suje-se gordo”; um copo de cerveja, em “Balaio”). Nota-se que as imagens sobrepostas ao plano de representação do ator são, em sua maioria, ilustrativas, delineando e compondo, de maneira reiterada e imagética, os elementos imanentes do texto, o que novamente confirma a ênfase dada ao contexto verbal.

Narradores e experiência midiática A proposta ficcional de “Contos da meia-noite” insere, de maneira curiosa – e talvez provocativa –, um esboço do narrador vinculado a suas raízes orais, no ambiente televisivo, terreno de profusão informativa, em que, como assinala Lipovetsky (1989), a cultura narrativa foi substituída por uma cultura de movimento, de dilúvio de imagens, de sensação imediata. Diante disso, é importante retomar aqui, ainda que de maneira breve, a concepção benjaminiana da narrativa tradicional. Para Benjamin (1994), o narrador da experiência (representado, em dois grupos, pelos arquétipos do camponês sedentário e do marinheiro comerciante) facultava, em seu contato vivo com o interlocutor, o intercâmbio de vivências. Seu de-


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clínio deveu-se, portanto, segundo o autor, à experiência individualista do romance, forma essencialmente vinculada ao livro, e à ascensão da sociedade da informação e, conseqüentemente, de suas necessidades explicativas: Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. (Benjamin, 1994, p.203)

Em resposta à discussão iniciada por Benjamin, Adorno afirmaria que a descrença na narrativa é uma conseqüência da desintegração, no novecentos, da própria identidade da experiência, da noção de vida contínua, conhecida e dominada pela postura do narrador. Segundo Adorno (2003, p.56), “a narrativa que se apresentasse como se o narrador fosse capaz de dominar esse tipo de experiência seria recebida, justamente, com impaciência e ceticismo. Noções como a de ‘sentar-se e ler um bom livro’ são arcaicas”. Ora, o que “Contos da meia-noite” parece propor é justamente o diálogo com essa prática e ritmo de leitura em crise já na modernidade, e hoje completamente modificada pela recepção midiatizada. A narrativa oral, que em suas origens épicas estava ligada a um tempo de ócio e de calma, é apresentada, não sem um movimento irônico, no turbilhão televisivo. O narrador é levado à tela, de forma eletrônica, a partir, especialmente, de três aspectos, que o aproximam da tradição oral de contar histórias. Primeiramente, pela opção pelo conto que, diferentemente de outros gêneros literários, mantém em si, latente ou explicitamente, a figura do interlocutor, representada no narratário, correspondente textual do narrador. Jorge Luís Borges, que fazia apologia do conto e das formas breves, como lembra Piglia (1990, p.101), “considerava que o romance não é narrativa – porque é demasiado alheio às formas orais – ou seja – perdeu os rastros de um interlocutor presente, a

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possibilitar o subentendido e portanto a rapidez e a concisão dos relatos breves e dos contos orais”. Nesse sentido, podese dizer que a série, pela sua ênfase no contexto verbal – sem deixar de operar, como dissemos, a linguagem visual televisiva –, sublinha justamente essa raiz oralizante do conto, da leitura em voz alta. A presença do interlocutor é também delineada pela interpretação do ator, que solitário, em um anticenário, dirige, na maioria das tomadas, seu olhar à câmera, projetando-o, conseqüentemente, fora dela, em busca da cumplicidade do espectador/leitor. É o direcionamento desse olhar que, juntamente com as marcas fáticas do discurso, constrói a presença do outro, tão necessária à solidariedade das narrativas originais. Essa correspondência não é tratada por um processo de atualização tão explícito como aquele presente, por exemplo, na adaptação cinematográfica de Memórias póstumas de Brás Cubas, realizada por André Klotzel, em que o narrador, representado por Reginaldo Farias, evoca, diretamente, pelo nome, a presença do espectador. No entanto, podemos observar que, em “Contos da meia-noite”, há uma visível transferência do estatuto do narratário para a presença virtual do espectador, que assiste às histórias. Por último, o narrador da experiência transparece nas próprias histórias contadas, muitas vezes narradas de forma homodiegética, como em “Suje-se gordo”, de Machado de Assis, “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio, em que as personagens assumem para si o papel de narradores a partir de sua própria experiência ficcional – as três noites de um carnaval carioca na belle époque; os bastidores de casos de tribunal, respectivamente. De todo modo, seja o narrador participante ou não dos eventos, há, em geral, nos contos, a dimensão utilitária, inerente à verdadeira narrativa, de que fala Benjamin (1994, p.200): “Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”. É significativo, nesse as-


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pecto, que o primeiro conto veiculado pela série tenha sido justamente “Um apólogo” – narrativa dialogada entre seres inanimados que encerra uma lição moral, como nas fábulas –, de Machado de Assis, em que a conversação entre a linha e agulha, interpretadas por Marília Pêra, tece, em tom alegórico, a crítica a estamentos e relações sociais. O narrador tradicional do conto aparece na série, entretanto, como dissemos, transformado pela perspectiva ruidosa das mediações tecnológicas da informação, o que sintomatiza a hibridização corrente entre as formas literárias e audiovisuais, citadas no início deste artigo. Nesse sentido, podemos discutir, na adaptação, o hiato entre o tempo narrativo do conto literário – ágil – e o tempo televisivo, também ágil, mas, por vezes, frêmito, ao articular o ritmo da leitura dramatizada do conto com o movimento proporcionado pela edição. A leitura em voz alta, quando prática predominante entre os laicos, antes dos séculos XII e XIII, foi tanto uma forma de publicação do texto (de divulgar, tornar uma obra pública em uma cultura manuscrita) como um ritual de iniciação retórica para o jovens (Chartier, 1999). A passagem para a leitura silenciosa implicou novas relações com o texto e, conseqüentemente, nos contos literários, com o objeto narrado, numa interação que envolve mais privacidade, rapidez e qualidade de interpretação, uma vez que o leitor pode realizar pausas reflexivas ou mesmo retornar e reler determinados trechos. De certo modo, o leitor silencioso, em consonância e em resposta às estratégias e marcas textuais da narrativa, acaba por impor sua cadência particular à leitura. Em “Contos da meia-noite”, tem-se uma dupla “leitura” – a do ator, que já confere ritmo e tom à narrativa; e a da linguagem televisiva, que, por meio dos cortes e planos sobrepostos, é também determinante na configuração do tempo discursivo – que condiciona o compasso de leitura do telespectador. Chega-se, portanto, por meio dos dispositivos televisuais, a um contexto de “leitura coletiva” – se considerarmos a “audiência” dos telespectadores – ouvida

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e assistida, que, como observa Manguel (1994. p.147), é sempre hierarquicamente imperativo: Permitir que alguém pronuncie as palavras de uma página para nós é uma experiência muito menos pessoal do que segurar o livro e seguir o texto com nossos próprios olhos. Render-se à voz do leitor [...] retira nossa capacidade de estabelecer um certo ritmo para o livro, um tom, uma entonação que é exclusiva de cada um. O ouvido é condenado à língua de outra pessoa, e nesse ato estabelece-se uma hierarquia (às vezes tornada aparente pela posição privilegiada do leitor, numa cadeira separada ou num pódio) que coloca o ouvinte nas mãos do leitor. Até fisicamente, o ouvinte seguirá amiúde o exemplo do leitor.

Não há dúvidas de que, por vezes, “seguir” a leitura em “Contos da meia-noite” torna-se tarefa difícil, em face da rapidez desse “leitor privilegiado”, instalado na televisão, e das próprias circunstâncias de recepção dessa mídia. Percebe-se, contudo, que embora a velocidade da narrativa possa ser intencionada, dificultando propositadamente a discriminação e a percepção dos signos verbais, o ritmo do programa está também condicionado ao tempo de exibição da série. Como dissemos, há a opção por preservar, nos dez minutos de programa, a integridade dos contos que, por sua vez, variam em extensão, em números de página, em tempo discursivo. No entanto, apesar dessas disparidades, as ficções são veiculadas em um mesmo tempo televisivo (há apenas pequenas margens de ajustes temporais, como no “paratexto” eletrônico). Sem a possibilidade de elipse, alguns contos menores ou com tempo discursivo mais rápido (por exemplo, o já citado apólogo machadiano e “Bandeira branca”, de Luís Fernando Veríssimo) encaixam-se melhor na proposta, que também oscila, em qualidade, de acordo com a interação ator/texto, outra importante componente dessas adaptações. Diante dessas variáveis, observa-se que, na série, a manutenção do conto em sua forma verbal primitiva não implica uma tradução transparente, neutra para o meio


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televisivo, pois todo o processo acaba por estampar no texto um determinado tom, que carrega, em si, marcas de uma interpretação, de uma escolha, de uma forma possível de leitura, “eleita” entre tantas outras. O modelo de adaptação de “Contos da meia-noite” revela-se instigante justamente pela combinatória que propõe, ao operar, de modo mesclado, as linguagens televisiva e literária, indicando que, mesmo metamorfoseado, o narrador segue, na contemporaneidade, exercendo sua função, uma vez que, como afirma Silverstone (2002, p.80), as histórias: [...] São uma parte essencial da realidade social, uma chave para nossa humanidade, um vínculo com a experiência, e uma expressão dela. Não podemos compreender outra cultura se não compreendemos suas histórias. Não podemos compreender nossa própria cultura se não sabemos, como, por que e para quem nossos próprios contadores de histórias contam seu contos.

Assim, a série “Contos da meia-noite”, ao propor a interação entre as formas mediadoras da televisão e da literatura, apresenta-se como importante chave interpretativa de nosso meio cultural, pois faculta, ao telespectador, o contato tanto com um acervo ficcional da literatura brasileira como com os processos originais de enunciação, provenientes do texto literário. No entanto, na transposição da literatura para a tela, “o que” se conta e o “como” se conta aparecem, ao mesmo tempo, perpetuados e modificados, num movimento entre a tradição e a tradução, entre a permanência e atualização, entre o literário e a lógica midiática, compondo, enfim, uma forma híbrida, o que não deixa de ser também uma outra chave – talvez ainda mais importante – para a compreensão dos fluxos culturais na contemporaneidade.

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XAVIER, Ismail. Da moral religiosa ao senso-comum pós-freudiano: imagens da história nacional na teleficção brasileira. In: .O olhar e a cena. São Paulo: Cosac&Naif, 2003a. p.143-60.

Ilustração: o duplo estatuto da relação palavra e imagem

. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac; Instituto Itaú Cultural, 2003b. p.61-89.

Maria José Palo*

RESUMO: Centralizar o instigante papel da diferença no tratamento do duplo estatuto da relação palavra e imagem na ilustração do livro é o propósito deste estudo demonstrativo. A distorção dele derivada é observada tanto nas produções da arte visual quanto da ilustração. Representações de imagens da história da arte têm demonstrado essas pragmáticas distintas, porém descaracterizadas da dupla diferença por meio da interpretação. Um outro estatuto passa a reger a linguagem em caráter geral, no qual a imagem simbólica ou a imagem singularizada tem recebido novas acepções e usos transferíveis ao trabalho da ilustração na relação palavra e imagem: imagem como texto; imagem como signo; relação palavra-e-imagem e contexto; imagem escrita e plástica; imagem/imaginário, nos planos da expressão, da comunicação e da representação por semelhança. PALAVRAS-CHAVE:

Ilustração, relação palavra imagem, imagem símbolo, imagem signo, imagem /imaginário.

ABSTRACT: Centering the inciting role of the difference in treat-

* Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

ment of the dual statute of the word-image relation in the illustration of the book is the major objective of this demonstrative study. The distortion arising from this distinction is observed both in productions of visual art and illustration. Depicting images from art history has demonstrated this distinguished pragmatic, although deprived of the dual character by interpretation. Another statute will govern the language of general character, in which the symbolic image or singularized image has received new meanings and uses transferable to the illustration work in the word and image relation: image as text; image as sign; word-image and context relation; written and plastic image; image/imaginary, in the levels of expression, communication, and representation by similarity. KEYWORDS:

Illustration, word-image relation, symbolic image, sign image, image/imaginary.


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Estudos e pesquisas voltados para a relação da palavra e imagem, em sua maioria, têm evidenciado a presença da distinção, como um único fator diferenciador representativo do seu duplo estatuto. A despeito das leituras complexas e inventivas presentes nos trabalhos de ilustradores e leitores da relação palavra e imagem, fatores centralizados na produção cultural do livro também têm contribuído com a marginalização da verdadeira natureza dessa partilha de regras entre o verbal e o não-verbal. E, como resultado, tem nos revelado uma distorção reiterada de seu dúplice regrado, em primeiro plano, em razão da imposição de métodos e processos da verbalidade à visualidade, e, em segundo, em razão da hegemonia da palavra sobre a imagem. Mensura-se, nesse marcante dualismo, o quanto do logocentrismo verbal incide na interpretação da imagem, sem uma reflexão esclarecida sobre os equívocos atribuídos ao controvertido tema do duplo estatuto da relação palavra e imagem no texto ilustrador. Sabemos, entretanto, que desde a Antigüidade, tanto no trabalho do historiador de arte quanto no do ilustrador das artes medievais aplicadas às iluminuras, manuscritos, cópias de textos sagrados e místicos, sempre existiu um marcante interesse pela imagem que ilustra o verbal, em cujos diálogos a expressão, o sensorial, o afetivo fazem um paralelo com a arte pictórica. Na ilustração dos livros sagrados, uma pragmática de representação da fé e suas verdades tem imposto à palavra um mecanismo de subordinação da imagem a uma hierarquia de emblemas, que deveria sustentar-se como seu produto cultural tradicional. Tais emblemas religiosos – caligrafia, quadrinhos, seqüências de histórias religiosas, iluminuras, letras capitais, cartoons – influenciaram muito a manufatura de ilustrações, que, por sua vez, se estenderam à interdisciplinaridade das diversas áreas de linguagem. Por conseqüência, esse hibridismo provocou o enrijecimento da não-separação dos dois códigos, em duplo estatuto, pela ausência de fronteiras entre as áreas. Tornou-se difícil a separação da arte da não-arte. E mais complexo, ainda, como tratá-los sob hie-

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rarquias distintas, em razão da preservação de sua autonomia textual. Na experiência do dia-a-dia, textos verbais têm servido aos textos visuais para uso da memória cultural, como textos de permanência – são ilustrações que respondem aos textos verbais como suas traduções fiéis. Esse comportamento utilitário da imagem em relação com a palavra compromete tanto a leitura do texto verbal quanto a do texto visual, por estarem estreitamente interligados às suas relações funcionais discursivas. Essa observação, todavia, nos permite constatar a existência de uma semiose visual tradutora que é preservada na inter-relação palavra-imagem, considerando sua essência discursiva diferencial, conforme nos afirma Langer (apud Santaella & Nöth, 1998, p.44) em sua filosofia das formas simbólicas: “Em sentido estrito, a linguagem é, em sua essência discursiva. Ela possui unidades de significado permanentes que podem ser ligadas a outras unidades de significado ainda maiores. Isso porque contêm equivalências fixas que possibilitam definições e traduções”. Além disso, acrescenta Langer que suas conotações são de caráter geral, pois reclamam ações não-verbais como olhar, apontar, destacar, e vocalizações várias para que denotações específicas sejam atribuídas a suas expressões. Ela denomina essa semântica de “simbolismo apresentativo”, caracterizadora da diferença da sua essência da do simbolismo discursivo, isto é, da linguagem real. A partir dessa posição, deduz-se que imagens são usadas tanto para afirmações gerais quanto para se referirem às especificidades por meio de índices. Na freqüência do uso, as imagens atuam mais como um complexo afetivo, sensorial e motor, como representação de seu sentimento de representação. Pelo menos, percebe-se que, pelo princípio da equivalência do discurso, que sua interdependência verbal e não-verbal favorece o abrir de um espaço para que a imagem promova uma estimulação informativa espacial, em favor de certos processos de aprendizagem da relação com a palavra, em novo estatuto funcional.


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Esse mesmo espaço de diferenças discursivas que define as relações palavra e imagem motivou, sobremaneira, os teóricos da visualidade e da linguagem para defenderem suas interpretações sobre a autonomia da imagem em relação à linguagem, algumas das quais selecionamos, no sentido de ampliar nossa argumentação conceitual sobre o tema da ilustração. O suporte referencial tem por apoio a leitura de Imagem. Cognição, semiótica, mídia (Santaella & Nöth, 1998), na qual encontramos uma fundamentação teórica e referencial vária, atualizada e um instrumental metodológico suficiente para uma abordagem séria, coerente e crítica da imagem e seus modos de representação. Na recolha bibliográfica feita, restringimos nossa seleção a alguns teóricos e suas respectivas concepções, que julgamos suficientes para abrir a questão da metodologia da imagem em referência à sua distinção com a linguagem, na esfera da pragmática da ilustração ou do texto ilustrador. Goodman (1968; 1972), em sua teoria lingüística da imagem, faz distinções entre a imagem e a palavra sob o aspecto do código de ambas as formas de representação. Ele vê na “falta de diferenciação e total ausência de articulação dela derivada, a principal distinção entre a linguagem e a imagem”. Para ele, uma imagem para representar um objeto deve ser um símbolo e a ele se relacionar. E a linguagem é um sistema com critérios sintáticos, apenas. Barthes (1964, p.10) entende a imagem como conduzida pela mediação da linguagem: “Imagens [...] podem significar [...], mas isso nunca acontece de forma autônoma”... Benveniste (1969, p.130) afirma ser a linguagem um instrumento necessário à análise da imagem semiótica. Gibson (1971, p.31) concebe a imagem “como uma superfície de tal modo tratada que um arranjo ótico delimitado a um ponto de observação se torna disponível, contendo o mesmo tipo de informação que é encontrado nos arranjos óticos ambientais de um ambiente comum”. É a sua visão ecológica da imagem. Pela visão gestáltica, todavia, imagem é forma visual ou unidade de percepção independente da linguagem (Lindekens, 1971; 1976). As figuras são percebidas como

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formas, e a percepção é um processo construtivo da nova organização do campo visual. A percepção segue as leis da forma, segundo Metzger (1975). Por sua vez, Arnhein (1954, p.65) interpreta as formas como signos. Para ele, toda forma é a forma de um conteúdo. Inúmeros teóricos semioticistas seguem, embora diversamente, na direção da composição de uma gramática textual da semiótica da imagem, tal como Eco (1976) e Calabrese (1980): Eco defende que as imagens sejam articuladas por meio de um código, e que cada texto icônico seja um ato de produção de código. Para Sonesson (1989, p.295-300; 1993, p.143-5), a referência é o funcionamento dos elementos imagéticos como unidades portadoras de significados. Até aqui, tratamos da imagem na relação com o texto. Mas se questionarmos o que a imagem tem em comum com a palavra, precisamos penetrar na natureza dos signos, em particular da imagem, sob as leis da teoria da percepção apresentada pelo filósofo e lógico Charles S. Peirce (nos textos tardios entre 1902 e 1905). Estamos tomando o signo como mediação, no reino da fenomenologia, inclusiva à arquitetônica da semiótica americana, na qual podemos pensar todos os fenômenos que imaginamos, visto que toda representação produz um efeito que pode ser de qualquer tipo, se apreendido pela mente humana. Portanto, é a mente que denota esse objeto perceptível, com alguma identidade com uma coisa lembrada, que também poderá ser imaginada, sonhada, desejada, vivida e idealizada, nada tendo a ver com a noção de referente diretamente articulado a ele. A relação imagem-imaginário passa a constituir o representado e o objeto percebido se diferencia do signo, porém pode determiná-lo. Isso porque, somente a partir da semelhança com os atributos de uma coisa é que ele funciona como signo – um universo das sugestões, hipóteses e conjeturas ou das coisas vagas, indefinidas, mas apelativas do sensorial e do imaginativo. É sob essa caracterização degenerada do signo que o objeto entra em conexão física dual com ele, por meio de uma


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relação comparativa entre qualidades, então sob o estatuto de juízos ou inferências que nos mostram o que está sendo percebido. O objeto funcionará como um signo em caráter provável de existência e significação. Se o signo é um primeiro, o objeto é um segundo. Ele surge à mente que o apreende e o interpreta em nível de realidade e de existência, porque, semioticamente, é o objeto do signo. É real, irredutível um ao outro. Essa é a relação generalizada existente entre o signo e o objeto que possibilita quebrar qualquer dualidade definitiva no estatuto da relação palavra-e-imagem, ao abrir vias de acesso ao objeto de representação além do previsível, sem nenhuma mediação de outro signo. Ela é lida apenas como semelhanças, as quais são responsáveis pelas articulações entre signo e objeto. Se, todavia, mudar a natureza do signo, mudará também a natureza do objeto em três dimensões: será mais descritivo, mais fato ou mais necessário. A natureza híbrida da lógica da percepção roça tanto a fenomenologia quanto a lógica da semiótica ao mesmo tempo. O julgamento da imagem é, sobretudo, traduzido na forma, com os limites de nossos sentidos e sensores. A partir dessa amostra de referências semióticas que postulam diferenças além do tratamento do duplo estatuto das relações palavra e imagem, no texto e na imagem, podemos ampliar o estudo da ilustração e do texto ilustrador, selecionando outras posições teóricas que postulam o tratamento da imagem na relação com a palavra, em princípio, no contexto lingüístico. Nesse foco diferencial, acreditamos na possibilidade de tratar a especificidade da imagem em relação à palavra, sob o estatuto regulador de seus próprios esquemas lógicos. Citamos, a seguir, outras posições metodológicas de utilidade para este estudo de tratamento da imagem na relação com o referente, em três tipos de objetos representados: as abstratas ou não-representativas, com fracas marcas do tempo do referente (cores, manchas, tonalidades, brilhos, movimentos, ritmos etc.); as figurativas, com forte temporalidade do referente (réplicas de objetos visíveis no mundo externo); as simbólicas temporais e atem-

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porais (figurativas). Kalverkämper (1993, p.207), a partir da escala ternária, redundância, informatividade e complementaridade, apresenta-nos a diferença entre três casos: 1) a imagem inferior ao texto, complementa-o e redunda-o; 2) a imagem é superior ao texto e domina-o; 3) imagem e texto têm a mesma importância. A relação textoimagem entremeia a redundância e a informatividade. Barthes (1964, p.55) diferencia duas formas de referência recíproca entre texto e imagem, questionando se a imagem é uma duplicata das informações de um texto, ou se é o texto que acrescenta novas informações à imagem, sob dupla nomeação: 1. ancoragem: o texto dirige o leitor a escolher alguns significados da imagem, antecipadamente; 2. relais: o texto e a imagem são complementares. Para ele, palavras e imagens são fragmentos de um sintagma mais geral, e a mensagem se realiza em nível mais avançado. No primeiro caso, a estratégia vai do texto à imagem; no segundo, a atenção do observador é dirigida da imagem à palavra e da palavra à imagem. Kibédi-Varga (1989, p.39-42, apud Santaella, p.56-7), no artigo “Criteria for Describing Word-and-Image Relations” expõe sua classificação dos tipos de relações entre a palavra-e-imagem, que são relacionadas com a forma de expressão visual comum tanto à linguagem escrita quanto à imagem. Este é o seu diagrama: a) Coexistência – a palavra está inscrita na imagem, numa única moldura (PI); b) Interferência – a palavra e a escrita estão separadas espacialmente, mas na mesma página (P/I); c) Co-referência – palavra e imagem aparecem na mesma página, independente uma da outra (P-I). d) Auto-referencialidade – a palavra e a imagem são tratadas em sua imanência: cada uma em si sustenta sua própria referência, sem se reduzirem; ou a palavra designa-se ou a imagem (inclusão referente à Poesia Visual).


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O teórico das interartes, artes e literatura, nos oferece duas formas de interpretação na contigüidade da relação palavra-e-imagem, que ajudam a localizar o conceito de ilustração, não só em stricto sensu, mas também extensivo às pinturas com componentes históricos tratados semanticamente. A ilustração, para Kibédi-Varga, define-se quando a palavra precede a imagem; mas, quando a imagem precede a palavra, o termo usado é Ekphrase (ou poema visual). Fundamentado na classificação das relações palavrae-imagem, Kibédi-Varga (1989, p. 32) trabalha uma dialética de diferenças, na qual a realidade é desarticulada como um ponto de partida neutro da imagem. Esse ponto permanece no plano da expressão. Ela é mediada pela representação ou apresentação da materialidade da imagem próxima ou distante do verbal, como ele próprio nos adverte: “cada estudante das relações palavra-e-imagem deveria ter em mente que todas as comparações e analogias entre estas duas categorias de objetos são corrompidas desde o começo, visto que a percepção sensorial destas categorias não é igual em todas as partes” (ibidem). Sabendo que perceber é construir o tempo, em tempo fisiológico, biológico e lógico. A partir das três classificações de Kibédi-Varga, cremos que seja possível tecer algumas descrições de ilustração, seja na arte da palavra seja nas artes visuais, de forma a alcançar uma sugestiva pragmática de leitura das relações palavra-e-imagem, observando, de um lado, suas tendências e funções, seja para argumentar seja para narrar, entre distanciamentos e aproximações trocados em hierarquias espaciais e semânticas; de outro lado, a recepção da imagem em exploração, não trabalhando as relações de modo global, mas por fixações sucessivas, sem esquemas visuais de conjunto, esbarrando em regiões informativas crescentes e decrescentes, mudando suas manifestações como objetos de representação. Importante é acrescentar que, mesmo sob uma taxonomia dividida entre a arte e a poética, a complexidade do tema em questão é sempre reafirmada, ao expressar

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que, quanto mais unidas, palavra-e-imagem, mais complicada é a percepção e a sua leitura, sujeitas como estão às hierarquias dadas pelas leis históricas e culturais que comandam o funcionamento dos possíveis signos e seus modos de apresentação.

A ilustração: entre palavra-e-imagem A ilustração, como uma relação secundária, aponta para diferentes pragmáticas oferecidas ao observador e leitor; ou para a pragmática iconográfica da palavra (lemas e fórmulas) que sustenta a imagem, ou a pragmática da imagem poética, a ekphrase, que busca em si uma lei capaz de manter a invariância das qualidades entre a forma verbal que a recebe e a sua significação. Nesse caso, entre a produção e a recepção deve haver um vínculo intencional. São as modulações do significante visual que, em sua natureza não-verbal, produzem abstrações semânticas e funcionais, anunciando o projeto do texto ilustrador, que fica, então, disponível à percepção do usuário. Esse deve apreender o signo visual fora dos automatismos da percepção dualista, a partir de suas impressões de sentido, cujas diferenças específicas devem se manifestar como um signo de algo, além do próprio processo perceptivo. Entendemos que, a partir das relações artes e literatura, ao representar a transferência de um objeto de percepção habitual para um domínio de uma nova percepção, tem lugar o processo de singularização da imagem, ao fazêla deter-se pela via da percepção. Depreende-se desse fenômeno singular da percepção que não há reconhecimento da imagem: ela é um significante visual, efetivamente, guardando em si relações ocultas por semelhanças, com o real ou o imaginado, que necessitam ser pensadas fora do habitual conhecido. Semelhanças são mais relações que priorizam condutas de como pensar a imagem como formas, por hábitos novos, formas de práticas de leitura, procedimentos ou métodos novos. Na palavra, também vigem atributos imagéticos com funções comunicativas em favor da poeticidade, em sua natureza de imagem visível – é uma


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idéia do objeto do signo, na leitura semiótica, pelo modo de ver o objeto pela primeira vez e em primeira voz, na continuidade da percepção. As leis da percepção são habituais e tendem para a automatização; se dinamizadas pela ilustração ou ekphrase, que são, em essência, modos de interpretação, essas se prolongam perceptivamente, tornam-se estranhas e singulares, já que esse ato se estende da visão ao reconhecimento, da poesia à prosa, inversamente, do concreto ao abstrato. O máximo da duração do objeto percebido está em dependência da memória e da pragmática visual. Surgem, nesse intervalo, algumas questões que a ilustração, objeto desse tema, levanta pela via da pragmática das relações da palavra e da imagem: Quando um texto imagem ilustra um texto verbal? Existe uma dependência semântica entre imagem-e-palavra? O que muda na hierarquia dos processos percepção e representação nas relações palavra-e-imagem? E se existe essa hierarquia, qual parte da palavra ou da imagem é subordinada uma a outra? O que significa pensar a imagem sob um duplo estatuto? Acreditamos que as imagens de ilustrações referenciadas pela pintura podem sugerir algumas respostas a essas questões, servindo-nos como modos exemplares das duas esferas contíguas: a da arte visual e a da literatura – imagem e palavra. Selecionamos algumas premissas que poderão elucidar essas questões, tanto aquelas indicadas pela representação quanto aquelas indicadas pela expressão perceptiva na relação palavra-e-imagem presente no corpus de interpretação, a saber: A – Se a imagem é tratada mais pela visualidade da arte pictural, ela é, antes, a materialidade (forma, cor, espaço, superfície, profundidade, gesto, composição), transformada pelos atributos atemporais de possíveis objetos de signos existentes e interpretantes em ato de consciência perceptiva. A partir de um detalhe visual significativo dado pela memória, que se apresenta à nossa percepção, uma vez pensado, passa a ser reconhecido e nomeado, ao receber o estatuto da visualidade do referente e seu contexto em representação perpetuada numa pintura de parede.

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(Young Woman Writing, detail of a wall painting, from Pompeii. Late 1st century CE. Diameter 14 5/8 (37 cm) Museo Archeològico Nazionale, Naples).

(Sacred Landscape, detail of a wall painting, from Pompeii. 62-79 CE. Museo Archeológico Nazionale, Naples).

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B – Se a tradução do texto verbal é transferida para o código dos quadrinhos (comics), partes da narrativa em série são captadas pelo olhar e remetidas, por ocultamento, à história original (Histórias de Alice de Lewis Carroll, Dom Quixote de Cervantes e outras mais). Nossos olhos movem-se rapidamente de uma imagem à outra, perseguidos pelas legendas verbais em trabalho de semelhanças, metáforas e alegorias. Domínio das regras do bidimensional que se impõem como princípios da pragmática do texto ilus-

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trador, em trabalho de desenho ou bordado, texturas e superfícies, novas impressões táteis e ópticas sob o impulso da persuasão da função emotiva da imagem em apresentação (cf. Santaella & Nöth, 1998, p.19-20) aos cinco sentidos do observador. Apresentadas como propriedades do signo-pensamento, as sensações correspondem a um movimento corporal, qualidade material do signo. Se o discurso prosaico é econômico, fácil, familiar e concreto, o discurso poético é elaborado, difícil, estranho, metafórico e descontínuo, e, ao contrário, depende do contínuo para não permanecer desconhecido, e, desse modo revelarse; embora lido como verbal, permanece como mensagem espacial. As formas apresentadas nos textos (letras A & P) remetem ao verbal e transpõem a hierarquia dessa relação para ganharem, no espaço da disposição dada pelo artista, o estatuto de uma escultura tridimensional, colocando o símbolo verbal à margem da interpretação dualista e da perspectiva única. Ele sobrevive pelo pensamento perceptivo como forma pré-cognitiva em renomeação diferenciada daquela dada pelos indicadores que operam no símbolo verbal: formas derivadas ou originadas das letras A & P.

(The looking-glass Quadrille. Music cover. Chromo lithograph after Tenniel, c. 1872-5). (Embroidery techniques – Bayeux Tapestry – testemunhas de fatos, em bordados anglosaxões).

(Labour, 1978. Wool and needles, h24 x 37 x 16 cm. h 91/2 x w14 1/2 x 12 1/3 in. Collection of the artist Joan Brossa. Barcelona (SP), 1919).


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origem da “idéia” (palavra e conceito em verbete) e sua hierarquia como palavra na língua: palavra e imagem tornam-se relações sígnicas, mediações à espera de um sentido novo que emergirá da fonte da percepção.

(Chi Rho Iota page, Book of Mattthew, Book of Kells, probably made at Iona, Scotland. Late 8th or early 9th century. Tempera on vellum, 13 x 91/2” (33 x 25 cm). The board of Trinity College, Dublin, MS 58 A.!.60, fol. 34 v.).

C – Se a imagem é a própria forma da palavra, o texto ekphrasico aguarda o verbal em graus de tradução visual poética. Todavia, sua diferença é resolvida pela revelação do interpretante daquele que vê, pensa a imagem como meta-imagem, e recodifica a forma por semelhanças dadas (os verbetes). Conseqüente domínio da percepção sobre a cognição. Redução da tensão entre ação e reação. A palavra simbólica se transmuta em imagem desprendida do tempo. Do choque, advém a surpresa: arte como idéia. Palavra e imagem estão lado a lado, simultâneas, porém omitem os próprios conceitos em favor da noção de prática artística e inventiva, em ato de engenho na mente do observador. É uma pragmática metacrítica que leva o observador a manter um distanciamento da filosofia e da cultura ocidental, por meio de abstrações de linguagem, sob um estatuto inventivo. Nega a aparência da própria

(Joseph Kosuth, Toledo, OH (USA). Art as Idea as Idea (detail, 1967. Black and white photograph. H121.9 x w 121.9 cm. H48 x 48 in. Private collection on loan to the Solomon R. Guggenheim Museum, New York).

D – Se o artista apresenta uma interpretação visual de um texto narrativo, no caso do Apocalipse, a imagem precede a palavra e pode sugerir vários textos ou interpretações de textos. Como modos de interpretação, que são a ilustração e a ekphrase, o pintor ou o desenhista poderá inventar detalhes que o próprio texto verbal não mostra. A mente do intérprete poderá comparar a sua interpretação com outras interpretações visuais, assim como as Fábulas de La Fontaine, as histórias de Alice, as ilustrações de Dom Quixote, textos ilustradores que têm recebido inúmeras interpretações de diferentes semânticas, em contrapartida com os objetos lidos dos estudos comparativos: a interpretação verbal simbólica de um trabalho


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de arte visual. Na pragmática da ekphrase, a escolha dos atributos visuais dá suporte às interpretações pela hierarquia de prevalência da ambigüidade da imagem. Passa a ser uma experiência potencialmente visual e poética. Desse modo tratada, a narração discursiva é unidimensional e unidirecional, subordinada à persuasão das qualidades táteis dadas pela visualidade, no caso do mosaico – embroidery da Transfiguração de Cristo –, e, ao comentário do Apocalipse, embora, tenha o símbolo como objeto de expansão e definição ilustradas, na relação imagem pictórica e imagem mental: “Battle of the Bird and The Serpent”.

(Transfiguration of Christ, mosaic in the apse, Church of the Virgin, Monastery of Saint Catherine, Mount Sinal, Egypt. c. 548-65).

(Emeritus and Ende, sith the scribe Sênior. Page with Battle of the Bird and the Serpent, Vommentary on the Apocalypse by Beatus and Commentary on Daniel by Jerome, made for Abbot Doiminicus, probably at the Monastery of San Salvador at Tábara, Leon, Spain. Completed July 6, 975. Tempera on parchment, 15 ¾ x 10 ¼” (40 x 26 cm). Cathedral Library, Gerona, Spain, MS 7 [11], fol. 18 v.).

Nas diversas co-relações entre a palavra-e-imagem, a semântica da imagem mostra-se polissêmica, nos mais variados atos de comunicação para os quais uma imagem é utilizada como texto ilustrador do verbal. Uma imagem pode ilustrar um texto verbal, assim como a palavra pode lembrar a imagem metafórica ou alegoricamente, como todo: “Vista como uma totalidade, a alegoria nas divisas não consiste nem na imagem pictórica nem na sentença discursiva, mas no fato de estar entre ambas como um processador da representação. Assim, apesar da visualidade muito sensível da representação, a alegoria torna-se estritamente sintática, funcionado como articulação de imagens de uma “imagem”, ou seja, como um diagrama de alegorias (visual e discursiva, “corpo e alma”) da imagem mental ou conceito do artista” (Hansen, 2006, p.186). Há distinção entre alegorismo e simbolismo, fato que estabelece uma diferença: se na alegoria o fenômeno é transformado num conceito e o conceito numa imagem (o conceito é circunscrito e completo na imagem), no simbolismo o fenômeno é transformado numa idéia e a idéia numa imagem (a idéia na imagem permanece inacessível


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e inexprimível). Nesse caso, o que está em pauta no diagrama alegórico é a aplicação de um estatuto de regras na classificação do conceito na imagem, dando a medida de adequação sintática da relação metalingüística entre a imagem pictórica, o discurso e o conceito simples, imagem mental do artífice, já dele distanciada. Exemplo observado em: Painter in Her Studio, tomb relief. 2nd century CE. Villa Albani, Rome. Em plano geral, a leitura das relações palavra e imagem implica a presença de dois pólos, a produção e a recepção. Isso porque, imagem é sempre um estado negativo aguardando ou a imagem verbal ou a mental da recepção – encontrando-se sempre entre a redundância e a informação. O duplo estatuto da ilustração está na contigüidade dessa inter-relação; se o texto é sugerido pela imagem, a exemplo de quadros famosos que sugerem poemas ou textos verbais ou mesmo musicais, a ekphrase dará o regrado do estatuto da semelhança à interpretação. Importante será

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sempre lembrar que o contexto da imagem não precisa ser apenas verbal, sabendo que uma imagem pode ter a função de contextos de imagens. Se existe um signo já existe um determinado contexto. Por sua vez, um contexto verbal está na mediação ou está articulado a uma associação de idéias que levará o símbolo à sua referência por algum tipo de conexão que a mente de um leitor, de um poeta ou observador fará, entre o engenho e a invenção. Esse é o verdadeiro princípio associativo do estatuto de interpretação, distinta da hermenêutica, assim como a lógica o é da ideologia e a ação pragmática é da ação utilitária. Na interpretação está a sua regra ou lei – no coração da lei está a forma desejada pela imagem. Lembrando, afinal, que da palavra à imagem existe uma sincronia de formas, no espaço das relações palavra-e-imagem, que vão se traduzindo em combinatórias apontadas pelo símbolo em seu caráter geral de lei, de poder denotativo e conotativo, porém sempre aguardando seu caráter imaginário recriador, sua manifestação na leitura da unidade imagem/imaginário, na fonte interpretativa que é a percepção humana.

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Imagem e escritura – Manuel Puig e o campo literário hispano-americano Maurício de Bragança*

RESUMO: O artigo apresenta uma problematização das relações entre literatura e imagem pela experiência literária de Manuel Puig. A chegada do autor ao cenário literário argentino no final dos anos 1960 desequilibrou o já tenso campo literário no qual o canônico Jorge Luis Borges indicava o local a ser ocupado por cada sujeito literário. Apresentando uma literatura que partia da imagem iconográfica e do repertório cinematográfico hollywoodiano como referências primeiras do seu projeto de criação, Puig promoveu uma nova relação entre cinema e literatura pela elevação de materiais extraliterários provenientes da indústria cultural ao status de literatura. PALAVRAS-CHAVE:

Manuel Puig, imagem, indústria cultural.

ABSTRACT:

This article presents a problematisation of the relations between literature and image through the literary experience of Manuel Puig. The arrival of the author in the Argentinean literary scene at the end of the sixties changed the already tense literary field in which the canonical Jorge Luis Borges indicated the place where each literary subject would occupy. Presenting a literature that departed from the iconographic image and the cinematographic repertoire of Hollywood as primary references of his creative project, Puig promoted a new relationship between cinema and literature through the elevation of extraliterary materials, stemming from the cultural industry to the status of literature.

KEYWORDS:

* Professor de História da América do Departamento de História do IFCS/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Manuel Puig, image, cultural industry

A publicação de La traición de Rita Hayworth, de Manuel Puig, em 1968, passou por um árduo e tortuoso caminho. Escrito em Nova York entre 1962 e 1965, o romance só conseguiu ser publicado na Argentina três anos mais


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tarde, depois de ter enfrentado a censura do regime militar do general Onganía (1966-1970), que suspendeu a publicação do livro por contar com palavras consideradas de baixo calão, atestado pela denúncia de um linotipista que trabalhava na edição do livro. Se, por um lado, parte da crítica aclamou de forma entusiástica a chegada da narrativa de Puig ao cenário literário hispano-americano, confirmado em artigos como o de Ricardo Piglia (2004) (“Clase media: cuerpo y destino – una lectura de La traición de Rita Hayworth de Manuel Puig”, publicado em agosto de 1969 na Revista de Problemas del Tercer Mundo, ano 1, n.1); por outro, Puig parecia quebrar com o “horizonte de expectativas” trabalhado pela geração de críticos do boom.1 No final dos anos 1960, La traición de Rita Hayworth entrou para a lista dos dez melhores romances publicados na França no período 1968-1969, feita pelo jornal Le Monde. Dessa lista constavam nomes como García Márquez, Reinaldo Arenas, Guimarães Rosa, Vladimir Nabokov e Henry Miller, dentre outros. Ainda assim, o nome de Manuel Puig esteve ausente daquele que era um dos mais importantes veículos de reflexão literária argentina dos anos 1970, a revista Crisis, que abarcava autores argentinos contemporâneos das mais distintas tendências estéticas e políticas, como Borges, Bioy Casares, Ernesto Sábato, Cortázar, Ricardo Piglia etc.2 Segundo Cesar Aira (apud 1

Numa carta a Guillermo Cabrera Infante, datada de 6 de agosto de 1969, Manuel Puig festejava o sucesso que La traición alcançava em Paris enquanto lamentava o silêncio e o rápido esquecimento do romance por parte da crítica argentina, referindose a um argumento de Emir Rodríguez Monegal (apud Speranza, 2003, p.26) de que fora vítima de um “complot del subdesarrollo”.

2

Pablo Bardauil (1998, p.96) defende o argumento de que, na verdade, houve uma mudança no interior do próprio discurso da crítica argentina entre 1968 e 1973 (ano de lançamento do terceiro romance de Manuel Puig, The Buenos Aires Affair, e data que marca a volta do general Juan Domingo Perón à presidência da Argentina). “Una transformación que tendría lugar en el pasaje que se produce entre una defensa de la autonomía literaria que – bajo la incidencia del estructuralismo francés – cierta crítica sostiene en los años sesenta contra las concepciones burguesas de literatura y un cuestionamento de dicha autonomía en favor de la promoción de una literatura al servicio de la revolución que esa misma crítica llevará adelante en la década siguiente”. Ao repensar

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Cárcamo, 1990), Puig parecia provocar na Argentina “una tremenda desazón, un rechazo, una repugnancia”.3 A publicação de Boquitas pintadas (que traz como subtítulo a palavra folletín) em 1969, quase simultaneamente a La traición de Rita Hayworth, seguia provocando um certo mal-estar em parte da crítica. Finalista do prêmio de literatura “Primera Plana”, o romance não conseguiu unanimidade do corpo de jurados. Apesar da acalorada defesa de Severo Sarduy, os outros dois jurados, Mario Vargas Llosa e Juan Carlos Onetti, consideraram o segundo romance de Puig um simples folhetim sem nenhuma projeção social ou política. Em 1965, Puig já havia apresentado os originais de La traición ao prêmio “Biblioteca Breve” e o próprio editor patrocinante do prêmio, o poeta Carlos Barral, rechaçava o texto porque “no era una novela como debía ser, no la consideraba propiamente literatura” (Giordano, 2001, p.61). Jorge Luis Borges, numa entrevista à revista Crisis do ano de lançamento do segundo romance de Puig (número XII, p.34) diz: “Nunca he leído a Puig. Cuando oí que había escrito un libro titulado ‘Boquitas Pintadas’, yo dije, qué basura”4 (Bardauil, 1998, p.98). Em seu registro dos últimos “Diez años de literatura argentina”, em 1972, a crítica Angela

o papel que a arte e os intelectuais deveriam assumir no processo revolucionário que parecia estar em curso não só na Argentina, mas em quase toda América Latina, as revistas de crítica literária (como Los Libros e Crisis, estudadas por Bardauil) acabam por acusar a literatura de Puig de uma “superdimensão” do artifício, o que acabaria por colocar tal procedimento num primeiro plano de leitura, gerando uma autonomia do texto literário e indicando que a literatura tem relações mediatizadas com a sociedade. A nova orientação da crítica, sob os auspícios de um projeto de esquerda, vem contestar essa “autonomia” do texto literário acusando de fetiche burguês a questão do procedimento e decretando que as técnicas especificamente estéticas deveriam se articular de modo revolucionário no interior das relações de produção. Assim, a obra de Manuel Puig acabou por sofrer o desprezo da crítica argentina, aliada à perseguição política e ao patrulhamento ideológico dirigidos ao autor por suas posições abertamente antiperonistas. Sobre a discussão em torno da postura da crítica argentina à obra de Puig em Los Libros e Crisis, ver Bardauil (1998). 3

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“Um tremendo desgosto, um rechaço, uma repugnância.” (tradução livre)

“Nunca li Puig. Quando ouvi que tinha escrito um livro intitulado Boquinhas Pintadas, eu disse, que lixo.”


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Dallepiane não incluiu os dois romances já publicados de Puig e justificou sua exclusão: [...] en sus novelas lo que hay, y lo que él intentó mostrar allí, es una realidad “real”, si se me permite la redundancia y no mucho más... En esas novelas no hay más que una posibilidad de lectura y no hay ambigüedad de sentido... Los libros de Puig son sabrosos, emotivos, humorísticos, desiguales en su construcción novelesca. De ahí a que sean creaciones literarias hay mucha diferencia.5 (apud Giordano, 2001, p.61)

Essa era, de fato, uma opinião consolidada de parte da crítica à obra de Puig, especialmente após a publicação de seu terceiro romance, The Buenos Aires Affair (identificado no subtítulo como “novela policial”), em 1973. Isso pode ser atestado neste comentário de Carlos Páez de la Torre no suplemento literário de La Gaceta, de Tucumán, publicado em 25.5.1973 e em Crisis (V, p.26): Si por medio de una violenta, dolorosa operación mental, uno se puede sacar de la cabeza todos los golpes de manija que las revistas dan a Puig desde La traición de Rita Hayworth a esta parte, acaso se pueda mirar a Boquitas pintadas y The Buenos Aires Affair como lo que son: una especie de Corín Tellado con mayor erotismo, nada más.6 (apud Bardauil, 1998, p.98)7

Mario Vargas Llosa, num texto publicado no periódico Clarín em 2001 intitulado “Manuel Puig – disparen sobre el novelista”, em lembrança aos dez anos de morte do autor argentino, depois de reconhecer a importância da obra de Puig, “una de las más originales de los últimos años del siglo XX”, decreta que sua obra “es más ingeniosa y brillante que profunda, más artificial que innovadora, y demasiado dependiente de las modas y los mitos de su época como para alcanzar, alguna vez, la permanencia de las grandes obras literarias, como las de un Borges o un Faulkner”. E conclui, “los grandes libros, a diferencia de las grandes películas, no están hechos de imágenes sino de palabras”, caracterizando sua intransigência a respeito dos procedimentos estilísticos e discursivos adotados pela literatura de Manuel Puig.

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“[...] o que há em seus romances, e o que ele tentou mostrar ali, é uma realidade ‘real’, se me permitem a redundância e não muito mais... Nesses romances não há mais que uma possibilidade de leitura e não há ambigüidade de sentido... Os livros de Puig são saborosos, emotivos, humorísticos, desiguais na sua construção romanesca. Daí a que sejam criações literárias há muita diferença.”

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“Se por meio de uma violenta, dolorosa operação mental, se podem tirar da cabeça todas as vantagens que as revistas dão a Puig desde La traición de Rita Hayworth até agora, se pode ver Boquitas pintadas e The Buenos Aires Affair como o que são: uma espécie de Corín Tellado com maior erotismo, nada mais.”

de Tellado foi determinante para a sua produção literária e dedicou um capítulo de seu livro O à análise da obra da escritora, a quem chama de “la inocente pornógrafa” por efetuar, segundo suas considerações, uma ponte entre o romance sentimental e a pornografia. Em 2000, Corín Tellado vendeu à Televisa os direitos sobre 52 de seus romances. Em uma entrevista a Armando Almada Roche (1992, p.15), Puig comenta: “Dicen que mis libros son una especie de Corín Tellado. ¡Ojalá lo fuera! Corín Tellado es una gran novelista y puede enseñarle a escribir a muchos escritores”. 8

Esse comentário se encontrava na contracapa da quarta edição do romance publicado pela Sudamericana, Buenos Aires, 1970.

9 7

Abundam nas resenhas e críticas argentinas naquele momento as comparações de Manuel Puig à escritora espanhola Corín Tellado, numa clara tentativa de rebaixamento da obra de Puig, mediante argumentos impregnados de preconceito de gênero (literário e feminino). Corín Tellado é considerada “la reina de la novela rosa”. Publicou mais de quatro mil títulos e já vendeu mais de 400.000.000 de exemplares de seus romances, traduzidos a diversos idiomas (figurando aliás no livro Guiness de recordes da edição espanhola de 1994 como a escritora mais vendida em língua espanhola). O escritor cubano Guillermo Cabrera Infante declarou que a leitura

“Quando Manuel Puig estréia nas letras com La traición de Rita Hayworth, esse é saudado como o melhor e autêntico romance pop latino-americano, junto a uma crítica que pretende desqualificá-lo como um romance descartável, isolado dentro da produção argentina ‘séria’ da época. Vinte e tantos anos depois daquela irrupção, a obra de Puig em seu conjunto deve ser avaliada como a que exerceu maior influência no sistema literário nacional, depois de Borges e Cortázar. Os três primeiros romances (o citado, Boquitas pintadas e The Buenos Aires Affair) podem ser lidos como a novidade em que o autor aponta a estética, possivelmente pop, que haveria de desenvolver até Cae la noche tropical”.

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Cuando Manuel Puig se estrena en las letras con La traición de Rita Hayworth, ésta es saludada como la mejor y auténtica novela pop Latinoamérica,8 al par que alguna crítica pretende descalificarla como un novelón perecedero, aislado dentro de la producción argentina “seria” de la época. Veintitantos años después de aquella irrupción, la obra de Puig en su conjunto debe ser evaluada como la que ejerció mayor influencia en el sistema literario nacional, después de Borges y Cortázar. Las primeras tres novelas por su parte (la citada, Boquitas pintadas y The Buenos Aires Affair) pueden leerse como el fresco donde el autor delinea la estética, posiblemente pop, que habría de desarrollar hasta Cae la noche tropical.9 (Lorenzo-Alcalá, 1990, p.94)

Esse foi o tom que marcou a recepção crítica da primeira obra de Manuel Puig: uma crítica atordoada se dividia entre a recepção calorosa daquilo que parecia indicar uma profunda ruptura com os cânones argentinos por meio da incorporação de elementos extraliterários conjugada a diálogos paródicos mediante procedimentos absolutamente inovadores, e uma recepção fria e mesmo indignada com a baixa qualidade literária daquele texto que parecia exaltar formas menores de um pastiche popularesco. É importante pensarmos ainda que a chegada de Manuel Puig ao cenário literário latino-americano em 1968, ano seguinte ao da publicação de um dos maiores clássicos da literatura do boom, Cem anos de solidão, indicava que uma outra forma narrativa já estava em curso no continente. Classificar sua literatura nesse amplo painel que se convencionou chamar “o boom da literatura hispanoamericana” é um exercício extremamente complexo. Por um lado, não há dúvida de que a literatura de Puig está inserida na dinâmica de ampliação do público leitor substanciada pela eficiente política editorial estabelecida para a recepção dos escritores do boom. Os dois primeiros romances de Puig, La traición de Rita Hayworth e Boquitas pintadas, publicados em 1968 e 1969, respectivamente, alcançaram invejáveis cifras de venda (sobretudo no exterior), mesmo para os nomes já consagrados no mercado


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latino-americano dos anos 1960, tendo sido quase simultaneamente traduzidos ao francês, português, italiano e inglês. Por outro, sua literatura parecia ser inclassificável pela crítica naquele momento, que a recebia como uma renovação da literatura argentina e hispano-americana. Lida como alternativamente costumbrista por uns, vanguardista por outros, moderna, pós-moderna, kitsch, camp, pop, polifônica, paródica, desmitificadora, romântica ou naïve, sua literatura parecia deixar sempre um rastro que não se encaixava confortavelmente nos pressupostos crítico-teóricos dos anos 1960. A presença desse elemento novo marcava de forma quase intolerável a literatura de Manuel Puig, fazendo que a crítica argentina se mobilizasse em tentar encontrar filiações e parentescos possíveis no campo literário argentino. Logo, a análise de sua obra se faria por meio da ruptura com os cânones da literatura argentina, marcadamente em relação à presença incontestável do grande mestre Jorge Luis Borges. [...] la “insularidad” de Puig se recorta con absoluta nitidez. Tal vez el modo más económico y más espectacular de hacer aparecer su diversidad dentro del conjunto de los narradores argentinos que comenzaron a publicar sus novelas y sus relatos en los ‘60 y los ‘70 sea considerar la relación de Puig con Borges, es decir, la absoluta falta de relación entre sus literaturas.10 (Giordano, 2001, p.33)

Assim, Puig parecia apresentar uma inédita distância ao cânone borgeano, inaugurando uma linhagem que, com os anos, e com seu percurso literário, viria a se configurar na constituição de um “anticânone”. Para Giordano (2001), a chegada de Puig marca exatamente o rompimento com o estatuto borgeano: Puig causava o incômodo de parecer afirmar, por meio de sua literatura, não ter dívidas a pagar com Borges. Ainda que ambos os escritores esboçassem elementos que poderiam em um primeiro momento indicar ligeiras aproximações (ambos apresentavam uma aproximação ao cinema, tendo escrito, aliás, notas e críticas

10

“[...] a ‘insularidade’ de Puig se recorta com absoluta nitidez. Talvez o modo mais econômico e mais espetacular de fazer aparecer sua diversidade dentro do conjunto dos narradores argentinos que começaram a publicar seus romances e seus relatos nos anos 60 e 70 seja considerar a relação de Puig com Borges, isto é, a absoluta falta de relação entre suas literaturas.”

11

“Os exercícios de prosa narrativa que integram este livro foram executados de 1933 a 1934. Derivam, acredito, de minhas releituras de Steveson e de Chesterton e ainda dos primeiros filmes de von Sternberg e talvez de certa biografia de Evaristo Carriego. Abusam de alguns procedimentos: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas.”

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sobre a sétima arte; ambos haviam incorporado em suas narrativas elementos de paródia ao romance policial; ambos haviam inserido em seus textos literários notas de pé de páginas; ambos estão imersos em uma cultura metropolitana; ambos se afastam tanto de uma literatura costumbrista como de um realismo mágico), as buscas empreendidas pela literatura de Borges e Puig partiam de questões muito diferentes, que só faziam crescer a distância ao deparar com os possíveis pontos de contato. No próprio gesto de incorporação de um “menor” no marco “maior” da literatura, que está presente tanto em Puig – na presença do folhetim, da canção popular, do radioteatro, do cinema de melodrama de Hollywood – quanto em Borges – no paradigmático texto Historia universal de la infamia (1935) há a incorporação de elementos da imprensa sensacionalista e das histórias de aventura – projetam enormes distâncias mesmo nas aproximações. Aliás, cabe aqui deter-nos em uma significativa análise, apresentada por Graciela Speranza (2003), de um ponto que parece em princípio uma aproximação entre Borges e Puig, mas que, com uma cuidadosa leitura, apresenta um distanciamento que traduz a própria literatura de cada um: a admiração de Manuel Puig, assim como de Jorge Luis Borges, pelo cinema do austríaco Josef von Sternberg. O prólogo da primeira edição de Historia universal de la infamia, publicado em 1935, traz a dívida declarada de Borges (1989, v.I, p.289) ao cineasta, de quem era profundo admirador: Los ejercicios de prosa narrativa que integran este libro fueron ejecutados de 1933 a 1934. Derivan, creo, de mis relecturas de Steveson y de Chesterton y aun de los primeros films de von Sternberg y tal vez de cierta biografía de Evaristo Carriego. Abusan de algunos procedimientos: las enumeraciones dispares, la brusca solución de continuidad, la reducción de la vida entera de un hombre a dos o tres escenas.11

Manuel Puig (1993, p.149) escreveu, em 1969, um texto em homenagem a Sternberg para a revista espanhola


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Bazar, em que declarava: “¿Qué salvaría yo de un incendio si tuviera que elegir un filme de la historia del cine? Supongo que para los aficionados a Antonioni y Godard, sería una fatalidad mi elección”,12 referindo-se a Dishonored (intitulado Fatalidad em espanhol), terceiro filme da dobradinha von Sternberg/ Marlene Dietrich, filmado em 1931. Para o autor de La traición de Rita Hayworth, os filmes da fase sonora de Sternberg com Dietrich traziam alguns elementos que, de fato, faziam parte de seu universo de criação. Analisando a narrativa fantástica do quinto romance de Puig, Pubis Angelical, lançado em 1979, e sua heroína de ficção científica W218, Speranza (2003, p.193) conclui: Dos inovaciones audaces resumen el impacto de la alianza Sternerg-Dietrich en los relatos fantásticos de Puig.13 Por un lado, el ilusionismo explícito de Sternberg, que en su declarada intención de crear un mundo artificial – un heterocosmos de luces y sombras – provee una alternativa formal al ilusionismo realista de Hollywood; por otro, la figura andrógina de Dietrich que con su énfasis en la sexualidad como representación, libera a la mujer de las imposiciones fijas de los roles sexuales tradicionales.14

A criação de um universo por meio do artifício, fundamental para a desconstrução da ilusão de representação realista – que no cinema de Sternberg com Dietrich incorporava elementos do excesso –, conjugada à idéia de ambigüidade referente à performance de gênero executada por Marlene Dietrich, estaria a serviço de uma mise-enscène da fantasia e do desejo. Nessa chave se inscreve de maneira magistral a cena final de Marrocos, dirigido por von Sternberg em 1930, quando Dietrich, na narrativa uma cantora e dançarina de cabaré, segue seu amado pelas areias do deserto depois de tirar os sapatos de salto alto para avançar, descalça, atrás do grupo de legionários. Nessas imagens, põe-se em execução a idéia de um distanciamento promovido pelo artificialismo irônico próprio de uma estética camp. É esse “esteticismo extravagante” do camp presente na obra de Sternberg/Dietrich (Sontag, 1987, p.327) que perpassa a criação literária de Manuel

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“O que eu salvaria de um incêndio se tivesse que escolher um filme da história do cinema? Suponho que para os fãs de Antonioni e Godard, seria uma fatalidade minha escolha.”

13 Aqui, Speranza (2003) refere-se à narrativa fantástica no interior da narrativa central de Pubis Angelical, que tinha como heroína W218, uma espiã do serviço secreto cuja história começa na Europa Central da década de 1930, passa por Hollywood e chega ao futuro num relato que mistura ficção científica, elementos de parapsicologia e do folhetim.

14

“Duas audazes inovações resumem o impacto da aliança Sternberg-Dietrich nos relatos fantásticos de Puig. Por um lado, o ilusionismo explícito de Sternberg, que em sua declarada intenção de criar um mundo artificial – um heterocosmos de luzes e sombras – provê uma alternativa formal ao ilusionismo realista de Hollywood; por outro, a figura andrógina de Dietrich que com sua ênfase na sexualidade como representação, libera a mulher das imposições fixas dos papéis sexuais tradicionais.”

Aqui nos referimos às discussões de Susan Sontag (1987, p.28-9) sobre “estilo” e “estilização”, presentes no seu ensaio “Do estilo”, em que a autora define estilização como “aquilo que está presente numa obra de arte precisamente quando um artista faz a distinção perfeitamente prescindível entre matéria e maneira, tema e forma. Quando isso ocorre, quando estilo e tema são distintos, ou seja, contrapostos um ao outro, pode-se falar legitimamente de temas a serem tratados (ou maltratados) num certo estilo. Um mau tratamento criativo é a forma mais comum” (grifo nosso).

16 “a economia estilística do primeiro Sternberg do exagero barroco que caracteriza sua produção posterior.”

17

Convencionalmente, denomina-se muda a fase do cinema antes do advento do som, embora a projeção dos filmes nessa época não fosse exatamente silenciosa, já que o som estava presente no acompanhamento musical ao vivo que formava a trilha sonora do filme. 18 “onde profetizam os pormenores, lúcido e limitado.”

19 Sobre o funcionamento da narrativa analisado por Borges, e que inclui a contribuição do cinema de Josef von Sternberg, ver especialmente dois textos incluídos em Discusión (1932), intitulados La postulación de la realidad e El arte narrativo y la magia.

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Puig, fundamentada numa “estilização” marcada (e transformada) pelo exagero a ponto de promover uma contraposição entre estilo e forma.15 O distanciamento que Jorge Luis Borges estabelece de Manuel Puig nessa aproximação via Sternberg encontra-se exatamente nesse ponto. Para o canônico escritor argentino, também afeito às poéticas anti-realistas, há uma nítida distância entre “la economía estilística del primer Sternberg de la exageración barroca que caracteriza su producción posterior”16 (Speranza, 2003, p.197). Aqui Borges se refere a uma série de filmes dirigidos por Josef von Sternberg na sua fase muda17 em Hollywood entre 1927 e 1930, que inclui Underworld (1927), The dragnet (1928) e The docks of New York (1928), entre outros. A primeira fase de Sternberg está presente na Historia universal de la infamia por meio desse modelo de economia e de laconismo compositivo a serviço do exercício do ilusionismo promotor de uma realidade “puramente alucinatoria” (Borges, 1989, v.I, p.222), capaz, por exemplo, de mostrar um suicídio em apenas três imagens. A estilização promovida pelo exagero artificioso e o decorativismo visual presentes na estética camp dos filmes de Sternberg com Marlene Dietrich, a quem Borges chamava de “Musa inexorável do Bric-à-brac” (Cozarinsky, 2000, p.43), afasta tal repertório de imagens das narrativas de Borges. É no cinema que aparece uma idéia de “montagem” transposta como sintaxe verbal em Historia universal de la infamia e que garante a continuidade das figuras que cessam no texto literário. Esse jogo de sucessivos efeitos de continuidade e descontinuidade acaba operando a narração que se encontra nos primeiros ensaios de Borges, herança assumida da linguagem cinematográfica exercitada por Sternberg. Para Borges, interessa a construção narrativa baseada em um processo causal mágico “donde profetizan los pormenores, lúcido y limitado”,18 evitando toda e qualquer simulação psicológica (Borges, 1989, v.I, p.232),19 Ao estabelecer essa diferença entre esses dois momentos do cinema de Sternberg, Borges (1989, v.1, p.223) é categórico:


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El laconismo fotográfico, la organización exquisita, los procedimientos oblicuos y suficientes de La ley del hampa,20 han sido reemplazados aquí por la mera acumulación de comparsas, por los brochazos de excesivo color local. Sternberg, para significar Marruecos, no ha imaginado un medio menos brutal que la trabajosa falsificación de una ciudad mora en suburbios de Hollywood, con lujo de albornoces y piletas y altos muecines guturales que preceden el alba y camellos con sol. [...] Marruecos21 se deja ver con simpatía, pero no con el goce intelectual que produce La batida,22 la heroic.23

A análise de Borges sobre a obra de Sternberg já indica o caminho que Susan Sontag (1987, p.29) irá tomar para definir esses dois momentos da carreira do cineasta. Para a autora norte-americana, os seis filmes americanos com Marlene Dietrich da década de 1930 são construídos a partir de uma atitude irônica para com o tema do amor romântico atravessado pela femme fatale, que se torna interessante pela estilização transformadora da estética do exagero. Aliás, a imagem de Dietrich construída nos filmes de Sternberg acabou por cristalizar-se como parâmetro de leitura para toda a sua carreira, no que Dyer (1979, p.73) toma como exemplo de uma dimensão temporal da imagem da estrela propensa a continuidade, no caso Dietrich ligada a um “outro” feminino exótico e fascinante: “the ‘Eternal Feminine’ whose long career is further promise of eternity”.24 Assim, tomando-se a produção de Sternberg, cineasta que influenciou a obra literária de Borges (influência essa assumida não só no já citado prólogo de Historia universal de la infâmia, como também em inúmeras conversas sobre cinema travadas por toda a sua vida) assim como a de Manuel Puig – que numa entrevista a Jorgelina Corbatta (1991), declara: “In film I believe I have certain affinities with Dishonored by von Sternberg, made in 1932, with Marlene Dietrich. Whenever I see this movie, I think, ‘Wow, there’s a lot I share with it”25 – podemos perceber a distância dos dois projetos literários argentinos mesmo pelas aproximações.

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20 La ley del Hampa é o título em espanhol de Underworld.

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Morocco (1930) é um dos seis filmes da série Sternberg/ Dietrich produzidos em Hollywood nos anos 1930, a qual inclui também Dishonored (1931), Shangai Express (1932), Blonde venus (1932), The Scarlet Empress (1934) e The Devil is a Woman (1935).

22 La batida é o título em espanhol de The dragnet.

23 “O laconismo fotográfico, a organização surpreendente, os procedimentos oblíquos e suficientes de Underworld, foram substituídos aqui pela mera acumulação de comparsas, pelas pinceladas de excessiva cor local. Sternberg, para significar Marrocos, não imaginou um meio menos brutal que a trabalhosa falsificação de uma cidade moura nos subúrbios de Hollywood, com luxo de roupões árabes e banheiras e altos muezins guturais que precedem o amanhecer e camelos com sol. [...] Marrocos se vê com simpatia, mas não com o prazer intelectual que produz The dragnet.”

24

“O ‘Feminino Eterno’ cuja larga carreira é uma promessa ainda maior de eternidade.” 25

“Em cinema eu acredito que tenho certas afinidades com Dishonored de von Sternberg, realizado em 1932, com Marlene Dietrich. Sempre que vejo esse filme, eu penso: Uau, há muito que ver comigo”

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Percebemos que a análise de um texto literário agrega elementos extratextuais que orientam olhares e problematizam as relações entre a literatura e a sociedade, politizando sua leitura e construindo articulações e redes de filiações, garantindo uma tradição que anuncia a existência da obra para além de si mesma na perspectiva de um sistema articulado. Um sistema literário relaciona-se à história e à sociologia, presentificando no texto questionamentos sociais e culturais que transcendem uma análise literária stricto sensu, apontando o trabalho do crítico implicado tanto com o resultado – o texto – quanto com o fator individual – o autor – e os fatores sociais (Candido, 1976, p.34). Dessa forma, estabelecem-se relações entre o texto literário e a sociedade em geral, responsáveis por uma leitura mais abrangente do aspecto cultural em que a obra se insere. Entende-se agora porque, embora concentrando o trabalho na leitura do texto, e utilizando tudo mais como auxílio de interpretação, não penso que esta se limite a indicar a ordenação das partes, o ritmo da composição, as constantes do estilo, as imagens, fontes, influências. Consiste nisso e mais em analisar a visão que a obra exprime do homem, a posição em face dos temas, através dos quais se manifestam o espírito e a sociedade. (Candido, 1976, p.35)

Percebemos no momento da chegada de Puig ao cenário literário latino-americano uma rearticulação em torno do conceito de literário e literaturidade, na qual são colocadas em suspeita as idéias de autor, obra, o cânone e a própria definição de uma história literária. Sua obra vem confirmar essas tensões e questionar o lugar de enunciação do autor, enfatizando as zonas transfronteiriças pelas quais caminha a literatura naquele momento, num íntimo diálogo com os porosos limites das práticas intertextuais. Dessa forma, pensar a inscrição de Manuel Puig nesse diálogo literário hispano-americano é problematizar os locais de interstício cultural nos quais se estabelecem os campos de força e negociação entre história e teoria; produção, circu-


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lação e consumo cultural; sujeito e representação; gênero e performance; hegemonia, diferença e contra-hegemonia, conformando novas subjetividades e novos lugares de enunciação a partir da indicação daquilo que Giordano (2001) define como “micropolíticas de desterritorialização da Literatura”. Nesse sentido, filiamo-nos à idéia de Pierre Bourdieu (1998) quando define o campo literário a partir de embates caracterizados por localizações de forças atuantes naquilo que ele define como campo intelectual. Isso redimensiona o próprio conceito de corpus literário da perspectiva de atuação no conflito interior ao campo intelectual:

implicados com determinadas relações entre si e com o campo do poder. Contra certa idéia de autonomia do sujeito, Bourdieu pensa o campo literário como esse espaço formado por forças – sejam sociais, políticas, culturais, ideológicas, econômicas – que concentram a capacidade de atuação de um determinado sujeito social que dele participa. Isso não quer dizer que a obra literária não apresente uma dimensão propriamente singular do fenômeno estético, discussão essa que, talvez, tenha tomado uma importância desigual dentro das preocupações do sociólogo francês. Aqui, interessa-nos particularmente apropriarmo-nos da obra de Puig a partir do embate político que ela propõe, dentro do jogo inscrito na produção de uma cultura de massa, ao articular a imagem como um espaço legítimo (e histórico) desse enfrentamento político. O campo literário,

Antes, é preciso situar o corpus assim constituído no interior do campo ideológico de que faz parte, bem como estabelecer as relações entre a posição deste corpus neste campo e a posição no campo intelectual do grupo de agentes que o produziu. Em outros termos, é necessário determinar previamente as funções de que se reveste este corpus no sistema das relações de concorrência e de conflito entre grupos situados em posições diferentes no interior de um campo intelectual que, por sua vez, também ocupa uma dada posição no campo do poder. (ibidem, p.186).

Assim, a literatura, para Bourdieu, se apresenta como um campo de produção e negociação de bens simbólicos no qual os intelectuais ingressam a partir da tomada de posição política e ideológica que define seu local de fala e que explicita as condições sociais que possibilitam o surgimento desses grupos. A problemática chegada de Manuel Puig ao universo literário hispano-americano naquele momento, em que na literatura argentina já se delineava o estatuto que tomava Borges como modelo canônico, colocava em xeque as relações de poder que vinham sendo construídas no interior da própria nueva narrativa hispanoamericana. Assim, retomando a sociologia dos campos de Bourdieu, o campo literário se apresenta como um espaço social no qual se inserem diferentes grupos de escritores e literatos

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este universo aparentemente anárquico e de bom grado libertário [...] é o lugar de uma espécie de balé bem ordenado no qual os indivíduos e os grupos desenham suas figuras, sempre se opondo uns aos outros. Ora se defrontando, ora caminhando no mesmo passo, depois dando-se as costas, em separações muitas vezes retumbantes, e assim por diante, até hoje... (Bourdieu, 1996, p.133)

26 “Quem poderia escrever na França depois de Proust ou Flaubert? Ainda bem que aqui na América Hispânica nós estamos seguros a esse respeito. Nós não temos gigantes, grandes sombras às nossas costas.”

A já mencionada intolerância do Mestre da literatura argentina à obra do “escritor de folhetins” era respondida com uma postura de um (falso) desprezo: “Who could write in French after Proust or Flaubert? Fortunately, we in Hispanic America are safe in that respect; we don’t have giants, huge shadows on our backs”26 (Corbatta, 1991). Assim, simulando esse desconhecimento, Puig buscava o distanciamento daquele que referenciava o campo literário argentino, como que preservando-se da exigência totalizadora desse diálogo, a partir do qual a crítica definia o lugar que ocuparia todo e qualquer escritor na arena literária argentina pós-Borges. Muitos têm sido os esforços da crítica em localizar a literatura de Puig no jogo de forças formado pelo campo literário argentino, apontando os diálogos possíveis e as


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rupturas propostas. Enquanto Ricardo Piglia sugere que a literatura argentina do final do século XX deveria ser lida pela inscrição de três autores que assumem posições diametralmente opostas entre si – Manuel Puig, Juan José Saer e Rodolfo Walsh –, José Amícola (2000a; 2000b) acredita que tal chave de leitura se configura como uma extrema simplificação do panorama literário argentino contemporâneo, ainda que perceba algo que os une: uma “argentina necesidad” de relacionar o literário e o político, aspecto sobre o qual residem também suas diferenças. Se Walsh, segundo Amícola (2000b), assume um compromisso político “sartreano”, Puig e Saer se enfrentam no campo da técnica narrativa. Assim como para Giordano (2001), também para Amícola, dos três, é Puig quem vem questionar de modo mais radical a hegemonia do cânone formado por Borges (que, por sua vez, havia questionado a Lugones). Amícola, porém, prefere ver a figura de Jorge Luis Borges construída num campo de forças, segundo a acepção de Bourdieu (1998), no qual se colocam também as figuras de Roberto Arlt e Julio Cortázar: [...] la exclusiva consideración de lo que ha sucedido en la literatura Argentina del siglo XX [...] trata de probar que un campo literario está lejos de ser un lugar idílico de mutuas fidelidades y que, más bien, representa un “campo minado”, donde cada figura intenta trazar un sendero que lo proyecta hacia el futuro eligiendo en primera instancia los antepasados con los que quisiera un futuro panteón heroico NACIONAL.27 (Amícola, 2000b, p.165)

Manuel Puig apareceria como uma ruptura do cânone, desestruturando o equilíbrio da tensão formada pela triangulação Arlt-Borges-Cortázar. Dessa forma, haveria um norte de continuidade numa série que inclui Roberto Arlt-Julio Cortázar-Manuel Puig, em que uma gama de afinidades entre os elementos contrapostos se referencia a partir da presença central de Borges. Contudo, mais que pensá-los a partir de uma cadeia de influências literárias, a leitura de Amícola propõe como hipótese uma continui-

28 “Há sempre um ‘aquém’ ou um ‘além’ da literatura”. Essa localização da obra de Puig como algo que não se situa exatamente na literatura, mas desliza entre pontos que estão “más acá” ou “más allá” da literatura foi observada pela primeira vez por Ricardo Piglia (2004) num célebre artigo intitulado “Clase media: cuerpo y destino – una lectura de La traición de Rita Hayworth de Manuel Puig”, já citado neste artigo.

27

“[...] a exclusiva consideração do que sucedeu na literatura argentina do século XX [...] trata de provar que um campo literário está longe de ser um lugar idílico de fidelidades mútuas e que, melhor, representa um ‘campo minado’, onde cada figura tenta traçar um caminho que o projete em direção ao futuro escolhendo em primeira instância aos antepassados com quem quisesse formar um futuro panteão heróico NACIONAL.”

29 “Enquanto as experiências de Cabrera Infante nos remetem a Joyce e as de Sarduy a Lezama Lima, isto é, enquanto suas brincadeiras com o mau gosto não deixam de ser referidas à literatura, não parece possível identificar um ‘pai literário’ para a escritura de Puig, um laço de filiação que lhe permita sustentar-se com firmeza dentro da cultura letrada. Sem um ‘escritor farol’ que a ilumine, a de Puig continua sendo a menos literária das literaturas.”

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dade escriturária entre os três escritores argentinos mediante progressivas ampliações do “horizonte de expectativas” produzidas por suas obras. Para além da literatura argentina, Alberto Giordano (2001), dentre outros críticos, percebe aproximações entre as propostas narrativas de Manuel Puig, Guillermo Cabrera Infante e Severo Sarduy, no que diz respeito ao uso narrativo das “sobras” da cultura popular. Mas, ainda assim, ressalta que dos três, a obra de Puig é a que menos pertence ao universo estritamente literário. Ainda que a crítica perceba o diálogo entre o argentino e os cubanos, sua obra dificilmente deixa de ser analisada sob instrumentos paraliterários ou subliterários, vinculados à arte pop e a mecanismos da indústria cultural, tendo uma forte referência na imagem iconográfica. Dessa forma, a literatura de Puig aponta caminhos que nos indicam que “hay siempre un ‘más acá’ o un ‘más allá’ de la literatura”.28 Mientras que los experimentos de Cabrera Infante nos remiten a Joyce y los de Sarduy a Lezama Lima, es decir, mientras que sus juegos con el mal gusto no dejan de estar referidos a la Literatura, no parece posible identificar un “padre literario” para la escritura de Puig, un lazo de filiación que le permita sostenerse con firmeza dentro de la cultura letrada. Sin un “escritor faro” que la ilumine, la de Puig continúa siendo la menos literaria de las literaturas.29 (Giordano, 2001, p.38)

Em 1968, Emir Rodríguez Monegal (apud Shaw, 1999, p.327) denominava a obra de Manuel Puig, ao lado da de Néstor Sánchez, Severo Sarduy e Gustavo Sainz, como representante de “novísimos novelistas de indiscutible importancia”. O adjetivo novíssimo parecia indicar um caminho meio enviesado ao trilhado pela nueva narrativa hispanoamericana, já apresentando dessa um indício de distanciamento, o que, de uma determinada forma, não o incluiria no então conhecido grupo do boom. Angel Rama (1981) inclui Puig, assim como Antonio Skármeta e Sainz, entre aqueles que durante a década de 1960 iam construindo uma nova literatura, tendo sido incluído em seu


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balanço Novísimos narradores hispanoamericanos en Marcha (1964-1980), publicado pela Marcha Editores em 1981, como “uno de los primeros novísimos”, onde apresentava o primeiro capítulo de seu mais recente romance publicado, Maldición eterna a quien lea estas páginas, de 1980: Todo movimiento literario tiende a gozar de un periodo de máximo desarrollo en el que la creatividad alcanza su cúspide. Pero antes y después de aquel momento de plenitud, hay normalmente etapas en las que podemos situar a autores que representan la transición al movimiento nuevo y, por otro lado, a autores que representan la transición desde aquel movimiento hasta el próximo. Los que asocian el Boom principalmente con la década de los 60 ven en escritores como Sábato, Onetti, Rulfo y Carpentier a los precursores del movimiento. ¿Cuáles son los que marcan la transición al posboom? [...] Los más obvios son, desde luego, Puig y Sarduy.30 (Shaw, 1999, p.267)

A narrativa de Puig emerge num momento absolutamente crítico e revolucionário, tanto no âmbito nacional como no internacional: estamos tratando do emblemático universo em torno a 1968 – movimento estudantil, o golpe de estado de Onganía na Argentina, a presença influente do Instituto Di Tella nas artes em Buenos Aires,31 a experiência do boom latino-americano, a reivindicação do projeto de mudança pela revolução introduzido pela experiência cubana, os movimentos de guerrilha urbana em grande parte do território da América Latina, a cada vez maior popularização e vulgarização das discussões em torno da psicanálise e do marxismo na cultura popular, a força impulsiva dos movimentos de minoria, especialmente os ligados às questões gays e lésbicas que tanta influência tiveram na obra de Puig. Não se pode pensar a chegada de Manuel Puig dissociada da redefinição dos próprios estatutos da arte no bojo daquela década, que fez ruir muitas certezas de pureza do cânone moderno e, com elas, o selo de autenticidade configurada pela originalidade da obra. Isso proporcionou uma abertura a outros estilos que contestavam critérios

30 “Todo movimento literário tende a gozar um período de máximo desenvolvimento no qual a criatividade alcança sua máxima. Mas antes e depois daquele momento de plenitude, há normalmente etapas nas quais podemos situar a autores que representam a transição ao movimento novo e, de outro modo, a autores que representam a transição daquele movimento até o próximo. Os que associam o Boom principalmente com a década de 1960 vêem em escritores como Sábato, Onetti, Rulfo e Carpentier os precursores do movimento. Quais são os que marcam a transição ao pós-boom? [...] Os mais óbvios são, desde o início, Puig e Sarduy.”

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O Centro de Artes Visuales de Buenos Aires (Instituto Di Tella) foi criado em 1963 e dirigido por Jorge Romero Brest, que logo tratou de difundir as discussões sobre a pop arte norte-americana. O ambiente da arte argentina dos anos 1960, portanto, acabou por adotar (e transcender) a pop arte como uma linha geral.

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de autoria dentro dos limites da arte. O romance de estréia de Puig apresentava-se como um objeto estranho, um tanto inclassificável diante do barroquismo mágico da literatura do realismo maravilhoso. “La novela [La traición de Rita Hayworth] se debate en América entre una fidelidad voluntaria a la especificidad cultural, social y política de la experiencia continental y las urgencias formales de la modernización literaria” (Speranza, 2003, p.73). Impregnado de um modelo que buscava nos subprodutos da indústria cultural as matrizes de seu discurso literário, Puig parecia ir más allá de la literatura, configurando procedimentos estilísticos e articulando estratégias de discursos que muito o aproximavam dos questionamentos da pop art daquela década. Em seu texto, o autor argentino parecia querer colocar em xeque o próprio estatuto literário a partir da suspeita sobre a autoridade do escritor (e do narrador) e, conseqüentemente, rediscutir o próprio conceito de arte.

32 “[...] acredito que os anos 1960, como se costuma chamá-los, não são uma época, mas uma posição. A circulação dos estilos, o combate, a justaposição, as variantes, trocar de gênero e de tons, dirigir múltiplas colocações. A estratégia dos encontros e das palavras de ordem. Um exemplo que ilustra de forma clara esse espírito é Oscar Masotta. Outro podem ser os livros de Manuel Puig. Também Rodolfo Walsh. Safar-se dos lugares-comuns, misturar-se o jornalismo e a ficção, o radioteatro e o romance, os quadrinhos com Roberto Arlt, a política com a arte. Diante da uniformidade liberal da voz própria, a proliferação e a mudança.”

[...] creo que los 60, como se los suele llamar, no son una época sino una posición. La circulación de los estilos, el combate, la yuxtaposición, las variantes, cambiar de género y de tonos, manejar colocaciones múltiples. La estrategia de las citas y las consignas. Un ejemplo que dice clarísimo de ese espíritu es Oscar Masotta. Otro pueden ser los libros de Manuel Puig. También Rodolfo Walsh. Zafarse de los lugares fijos, mezclar el periodismo y la ficción, el radioteatro y la novela, la historieta con Roberto Arlt, la política con el arte. Frente a la uniformidad liberal de la voz propia, la proliferación y el cambio.32 (Piglia, 2000, p.103)

Nesse sentido, alguns procedimentos unem as técnicas utilizadas por Manuel Puig – para atingir seu estilo carregado de afastamento do autor ao mundo narrado – e os próprios procedimentos do movimento da pop art, em seu ápice no final da década de 1960, quando é lançado o primeiro romance de Puig, La traición de Rita Hayworth. Podemos atestar o uso de materiais já processados pela cultura de massas, como o desenho e a fotografia publi-


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citária, a história em quadrinhos, a fotonovela, o cinema; a planificação da imagem, que perde seu contorno de tridimensionalidade em razão de uma reprodução que intensifica o efeito de aplanamento da cópia; a utilização de técnicas de reprodução a serviço dos processos mecânicos de produção em massa, denunciando os efeitos do apagamento dos limites da autoria por meio dessas técnicas; a reelaboração estética do objeto corrente e trivial que ganha novo status sob o olhar celebratório do gosto popular e da cultura de massas, que passa a ameaçar os padrões convencionais da qualidade artística, e a partir dos quais Puig enuncia sua narrativa33 (Speranza, 2003). O romance La traición de Rita Hayworth apresenta uma origem textualmente vinculada a uma linguagem não-literária, já que tem como ponto de partida, dentro dos materiais pré-textuais que denunciam essa origem, três roteiros cinematográficos escritos por Manuel Puig quando ainda estudava cinema na Itália no final dos anos 1950.34

33 As estratégias dessa arte de vanguarda dos anos 1960 estiveram presentes em muitas outras experiências, como no cinema de Godard, por meio de uma espécie de contaminação entre um cinema de arte e um cinema comercial, misturando referências “à literatura mais erudita e a homenagem ao star do cinema clássico, a citação de Borges e o enredo de science-fiction, o melodrama folhetinesco de um noir romântico e a discussão filosófica em torno do existencialismo, rock and roll e MerleauPonty, Marx e coca-cola, Picasso e Humphrey Bogart” (Xavier, 1993, p.21). Isso evidenciava um gesto do artista pop na aproximação à sociedade do consumo e aos ícones da cultura de massa, programando uma crítica que se fundava na utilização dessas imagens banalizadas. Também o terceiro mundo evidenciava estar sintonizado com esses procedimentos, e esgarçava a crítica ao colonialismo cultural e expunha o subdesenvolvimento muitas vezes recorrendo ao pastiche e à paródia para lançar seu discurso, como foi recorrente, por exemplo, nas experiências brasileiras do tropicalismo e no chamado cinema marginal. Sobre as relações entre a paródia e o discurso pautado pelo subdesenvolvimento no cinema brasileiro, ver Vieira (1990). 34

Os três roteiros se intitulam Ball Cancelled, Summer Indoors e La tajada. Os dois primeiros foram escritos em inglês, ainda que o segundo tenha uma versão em espanhol chamada Verano entre paredes. O terceiro é o primeiro texto de Puig escrito em sua língua materna. É interessante pensar que houve um processo que levou o autor a escrever primeiro em inglês até chegar ao espanhol, passando entre esses por uma versão nos dois idiomas. Isso está muito próximo a um gesto intimamente ligado a sua obra que se pauta na tradução dos discursos dos países centrais.

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A crítica genética se preocupa em estudar os pré-textos que compõem uma obra. No seu entender, os pré-textos são os documentos e materiais iniciais que precedem o momento de redação da obra em si, mas apresentam uma relação de inclusão com o texto final. Ainda que não inseridos textualmente no romance, os materiais pré-textuais de La traición de Rita Hayworth têm uma forte relação tanto com a narrativa do romance quanto com as estratégias estéticas e literárias adotadas por Manuel Puig. Esses materiais foram compilados com o apoio da Universidad Nacional de La Plata, por um grupo formado por Graciela Goldchluk, Roxana Páez e Julia Romero, encabeçado por José Amícola. 36 Essas discussões em torno do embate entre a palavra e a imagem foram apresentadas numa palestra sobre cinema e literatura, conferida pelo pesquisador Robert Stam na abertura do VIII Encontro anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (Socine), promovido pela Universidade Católica de Pernambuco, na cidade do Recife, em novembro de 2004. Stam nos lembra ainda que, nos anos 1920, Virgina Woolf afirmava que não gostava da relação dos espectadores com o cinema porque eles “lambiam a tela”, enfatizando o caráter plenamente sensorial da experiência de espectatorialidade própria do cinema.

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O texto que viria a se constituir no quarto roteiro cinematográfico, todos eles inspirados na narrativa dos melodramas hollywoodianos dos anos 1930 e 1940, acabou por ganhar sua vida definitiva na forma do primeiro romance do autor. Isso responde, em parte, à fria recepção que La traición sofreu no final dos anos 1960 pela crítica argentina. Podemos pensar aqui um primeiro emblema dessa literatura de Puig, e que é particularmente trabalhado no seu romance de estréia de uma forma que ainda não havia sido vista na literatura argentina: a presença de um corpo iconográfico a configurar a narrativa literária. A partir da aparição da imagem cinematográfica no processo de criação literária de La traición, confirmada aliás nas pesquisas realizadas pela chamada crítica genética35 que trabalha com manuscritos literários, poderíamos apontar um forte preconceito na crítica argentina daquele momento embasado por uma iconofobia que previa uma sujeição da imagem às letras. Essa postura carregava, talvez, um preconceito que ainda ressoava o medo de uma certa elite intelectual do começo do século XX de que o cinema viria colocar em risco o domínio da literatura. O desprezo à imagem, a marcar uma clara e desejada distinção dos locais de fala entre cinema e literatura, é fortemente percebido na já citada declaração de Vargas Llosa de que “los grandes libros, a diferencia de las grandes películas, no están hechos de imágenes sino de palabras”. Nessa perspectiva, percebemos uma intransigente defesa de uma logofilia, na qual a palavra escrita é tomada como elemento sagrado, a partir da idéia de que a imagem degrada. O texto escrito pertenceria a um universo sagrado, enquanto a imagem seria, por princípio, profana.36 É claro que esse argumento tenta dissimular também um forte preconceito de classe associado ao universo de espectadores de cinema, especialmente na América Latina que, desde seus primórdios, mobilizou as classes socialmente menos abastadas. Contrário a essa postura de um binarismo verbal/visual que opõe a escrita à imagem, La traición chega pro-


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americanos), mas designar a imagem iconográfica (articulada principalmente pelos discursos veiculados pelo cinema de melodrama hollywoodiano) como o principal vetor de onde emana o estatuto de literariedade do texto. Assim como na pop art, os críticos se mantiveram divididos e confusos sobre como acompanhar o surgimento daquele novo discurso. Houve quem percebesse nesse aniquilamento do autor um gesto de crítica, fazendo que os subprodutos da indústria cultural assumissem a discursividade da narrativa. Schmucler (2004, p.320), em 1969, aponta exatamente esse caráter de denúncia no gesto puiguiano presente em Boquitas pintadas:

clamando a legitimação da imagem iconográfica como um local de fala também pertencente ao contexto literário. A expansão dos limites da literatura se dava pela incorporação de códigos não-consagrados, o que denotava uma forte percepção do campo literário como um campo de disputa de poder, conforme já colocamos ao aproximarmo-nos das discussões sobre campo literário a partir da abordagem da política dos campos propostas por Pierre Bourdieu. Aqui se encontra uma das primeiras chaves de compreensão a respeito do rechaço sofrido pela literatura de Manuel Puig por parte da crítica argentina. Na verdade, o anúncio da chegada de uma literatura que vinha pôr em xeque os limites do próprio estatuto literário conforme o era tradicionalmente concebido era algo que mexia com a forma como os cânones literários argentinos eram historicamente constituídos. O que está em jogo no embate promovido por Manuel Puig com sua chegada ao campo literário argentino é o próprio lugar de fala de onde emana o discurso de poder. Este encuentro de su propia voz, de “su propia tonalidad” [...] lleva, por ende, a un afianzamiento de una línea literaria que debe luchar contra la presión canonizante de otra figura fundacional en el campo literario que determina cuál es la tradición que el escritor argentino debe seguir para instalarse en la literatura universal. Puig es aquí, sin embargo, el alumno desobediente que se encuentra a sí mismo sólo en la transgresión.37 (Amícola, 1996, p.15)

A profanação do texto literário promovida por Manuel Puig ao anunciar como vozes articuladoras do seu discurso literário os dejetos da indústria cultural e os subprodutos descartáveis da cultura de massa ameaça a preservação da literatura como o espaço do sagrado para uma elite intelectual. A ousadia chegava ao ponto de não apenas destituir a cultura letrada como articuladora dos mitos e da tradição literária (esforço que há décadas já vinha sendo empreendido por uma série de escritores latino-

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los personajes no tienen nada propio para decir: son atravesados por el lenguaje de la sociedad constituida. La ideología de lo cotidiano, canonizada en el habla de los medios masivos de difusión (revistas, radio, cine) constituye el pensamiento de sus palabras. Se habla como debe hablarse: sin riesgos.38

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“Esse encontro da sua própria voz, da ‘sua própria tonalidade’ [...] leva, por conseguinte, a uma afirmação de uma linha literária que deve lutar contra a pressão canonizante de outra figura fundacional no campo literário que determina qual é a tradição que o escritor argentino deve seguir para instalar-se na literatura universal. Puig é aqui, entretanto, o aluno desobediente que se encontra a si mesmo sozinho na transgressão”.

38 “os personagens não têm nada próprio para dizer: são atravessados pela linguagem da sociedade constituída. A ideologia do cotidiano, canonizada na fala dos meios massivos de difusão (revistas, rádio, cinema) constitui o pensamento de suas palavras. Fala-se como se deve falar: sem riscos.”

Esses procedimentos encontrados no texto de Puig postulavam colocar no centro das discussões em torno de arte e literatura a própria ambigüidade do gesto: a questão crucial, no bojo do movimento, reivindicava a superação de dualidades como modernidade versus cultura de massa, ou vanguarda versus indústria cultural. A experiência literária proposta por Manuel Puig coloca em xeque, enfim, os códigos dos cânones literários mediante a incorporação de elementos extraliterários ao texto, por meio da elaboração de um discurso cuja matriz está nas referências ao mundo descartável da sociedade de consumo e da cultura de massas, por meio dos emblemas programados pelas imagens cinematográficas, por meio do confronto entre o discurso hegemônico presente nos produtos da indústria cultural que problematizam, no contato com o cotidiano das personagens dos romances, as tensões provocadas pelo colonialismo cultural latino-americano, desdobramento da dualidade centro/periferia, tão fundamental na elaboração do pensamento deste continente.


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Do fular ao tapete (Uma leitura de Avalovara, de Osman Lins) Sandra Nitrini*

RESUMO: Em Avalovara, Osman Lins rompe as fronteiras entre literatura e pintura: assimila a linguagem da pintura e torna-a estilo em sua “escritura pictural”. PALAVRAS-CHAVE:

Literatura e pintura, escritura pictural, gê-

nero, estilo. ABSTRACT: In Avalovara, Osman Lins breaks open the frontiers between literature and painting: he assimilates the language of painting and transforms it into style in his “pictorial writing”. KEYWORDS:

Litterature and painting, pictorial writing, genre,

style.

* Professora da Universidade de São Paulo (USP).

Um preâmbulo necessário: o fular e o tapete são dois motivos de Avalovara, instigante romance de Osman Lins, publicado em 1973. O fular aparece de modo discreto e escondido. O tapete atravessa literalmente o texto de Avalovara. Ambos relacionados à primeira e à terceira mulheres, parceiras fundamentais, junto com a segunda, na obstinada trajetória de Abel em sua busca incessante do amor, da compreensão do mundo e do ato de escrever, que se confundem com a procura da Cidade Ideal e do Paraíso. Ambos também emblemáticos da força visual da poética deliberadamente ornamentística, professada em Guerra sem testemunhas e cultivada com originalidade por Osman Lins, a partir de Nove, Novena, quando encontra seu modo peculiar de narrar e explora procedimentos da pintura e da arte da estamparia. É impossível ler Avalovara sem que se estabeleça uma relação imediata com essas artes visuais. Tal relação não se


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restringe à intersemioticidade explícita, por meio de paralelismos estabelecidos entre personagens e quadros, como ocorre com a Madonna de Bellini e Roos, a européia, primeira mulher do personagem-escritor. Recurso esse usual na literatura, por meio das figuras de linguagem (comparação e metáfora). Osman Lins enxerta no discurso recursos e procedimentos da pintura. Nisso reside um dos grandes achados que lhe garantem um lugar ímpar em nossa literatura. O autor pernambucano de Vitória de Santo Antão não rompe apenas as fronteiras entre os gêneros literários, mas também, num certo sentido, entre a literatura e a pintura, ao absorver procedimentos dessa arte visual, evidentemente, nos limites da natureza da linguagem literária. Poderíamos dizer que ele realiza a “escritura pictural”, nos termos de Daniel Bergez (2004). Diferentemente da ekfrasis, que é a descrição de uma obra de arte, a escritura pictural, além de designar implicitamente seu referente, como sendo de natureza pictórica, interioriza a linguagem da pintura, tornando-a também estilo. Seus primeiros romances e contos, O visitante, O fiel a pedra e Os gestos já sinalizam para mesclas de gêneros literários e para o forte apelo visual, no registro da arte mimética. Marinheiro de primeira viagem, livro que ficcionaliza seu retiro cultural por seis meses em Paris, em 1961, corresponde a uma espécie de rito de passagem na poética osmaniana. Para transpor literariamente sua imersão na arte contemplada nas catedrais, nos museus e nas exposições, o narrador direciona para o cotidiano um olhar por ela mediatizado, como já demonstrei em trabalhos anteriores. Isso vai se refletir nas descrições de personagens e espaços, sempre marcadas por analogias com quadros específicos ou por referências diretas a pintores, configurando-se, nesse livro de viagem, uma poética identificada com uma relação epidérmica com a pintura, rito de passagem fundamental para Osman Lins chegar à linguagem literária de Nove, Novena e Avalovara, tão marcada por traços pictóricos. A absorção da linguagem da pintura pela escritura vinga e impõe-se como forma convincente, porque se re-

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As relações desse romance com a pintura têm sido objeto de estudos de Ermelinda Ferreira (2005), divulgados em seu livro Cabeças compostas e em alguns artigos. Também Regina Dalcastagnè (2000) e Ana Luiza Andrade (1987), no que diz respeito a Avalovara, dedicaram-se a esse tema. Assinalo também que o próprio Osman Lins, em muitas entrevistas sobre Avalovara, referiu-se à artes visuais dentre suas fontes.

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gistra numa linguagem literária antiilusionista. Osman Lins logra “inventar” ou transpor de modo criativo recursos e procedimentos que, coerentemente, amalgamados e entrelaçados, dão espessura à dimensão pictórica de sua linguagem antiilusionista: a fragmentação das estruturas narrativas, o narrador geômetra (construtor), o aperspectivismo, a personagem-verbo, o ornamento plástico, a descrição cromática, a linguagem alegórica e a dimensão insólita, recursos e procedimentos fundamentais, dos quais se vale Osman Lins em Nove, Novena e em Avalovara. De modo que o conjunto de sua obra me conduz à seguinte formulação teórica: a poética que se assume como literatura é aquela que mais se torna pictórica internamente. Essa afirmativa pode não ter alcance teórico geral, mas aposto na sua pertinência para descrever, compreender e interpretar a ficção do autor pernambucano. A relação da literatura de Osman Lins com a linguagem pictórica movimenta-se em mão dupla: influxos de fora que o levam a fazer transposições literárias e citações explícitas (neste último caso, apenas em Avalovara) e demandas internas de sua poética que, por sua própria natureza simbólica, fala por imagens concretas.1 Na excursão ao Vale do Loire, Abel criva seu olhar em Roos, num encontro relâmpago: Nas espáduas um casaco azul-marinho que realça a alvura do seu colo e o amarelo-canário do suéter. A saia cinza atenua esse contraste de cores. Favorecida ainda pelos ondulantes verdes das elevações e o azul desmaiado do céu na linha do horizonte, sustém Roos um ramalhete à altura do queixo, como se aspirasse a seu perfume, conquanto só a rosa, fresca e vermelha tenha algum para mim; serão também olorosas as papoulas e os gerânios? As flores refratam suas púrpuras no rosto de Roos, que me parece invulgarmente vivido em sua meditação. Receio perturbar, aproximando-me, a feliz conjunção de cores, linhas e volumes. Sobressai, no centro da paisagem ensolarada, a figura solitária de Anneliese Roos, como, nos museus, certas obras de preço, colocadas, longe das demais,


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de modo a serem contempladas em sua integridade, sem dividir com outra, com nenhuma, o espanto do observador. Sei, no entanto, que ela em breve será abordada, sairá do lugar ou moverá o braço. (Lins, 1973, p.43-4)

Descrita como se fosse o motivo de um quadro, essa cena funda-se na experiência de um instante que reúne elementos numa confluência harmoniosa e que lhe proporciona a sensação do mágico e do transcendente. Essa confluência de valores vivenciada pela personagem demanda e justifica a particularidade da escritura pictural desse momento da obra. Por meio do introjetado estilo pictural, a literatura assegura a perenidade desse instante, num quadro composto por palavras de um narrador cuja experiência contempla a fugacidade do tempo. Em Avalovara, quando se desfaz a confluência de valores, que abalará a sensação de eternidade do mágico e transcendente, o tema da fugacidade do tempo será abordado por Abel e Roos, mediante a declamação em francês de versos do lírico grego Anacreonte. Movimento semelhante já ocorrera em Marinheiro de primeira viagem. No fragmento “A moça”, a experiência vivenciada pelo viajante no trem, enquanto contemplava a moça sentada, numa situação que também reunia elementos numa confluência harmoniosa, como se fosse um quadro pré-renascentista, ele esquece o tempo, tomado pela ilusão de eternidade que só uma obra de arte pode oferecer. Quando a ilusão do quadro se desfaz, irrompe a vida, o encanto desaparece e impõe-se o tempo de modo especial, quando se senta, no lugar da moça, uma senhora de negro. O fluir abrupto de quarenta anos concretiza-se textualmente na passagem de um parágrafo para outro. Tal coincidência poderá revelar, se for confirmada em outros trechos, um traço da poética de Osman Lins, no que se refere à linguagem literária: a sensação do belo transcendente e da eternidade só se pode formalizar numa pintura literária, isso é, numa linguagem literária congelada, como se fosse um quadro; enquanto a tematização da fugacidade da vida é mais propícia para os trechos narrativos, de prosa poética ou poesia.

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O quadro de Avalovara não divide espaço com referências pictóricas reais, mas traz ressonâncias das Madonnas pré-renascentistas. Tanto é assim, que Roos será também relacionada por Abel à Madonna de Bellini, duas vezes: Consigo fazê-la entender que, pelas reproduções, ela parece o modelo de uma Madonna com Bambino, de Giovanni Bellini, existente em Milão e relacionada, dizem, com o Retábulo de Pesaro? Penso, Roos, se Bellini recebeu, como uma espécie de antecipação, a graça de vê-la? (ibidem, p.149)

Essa analogia surge nas indagações de Abel, quando no trem, a caminho de Lausanne, Roos lhe solicita que não desça nessa cidade, naquele movimento de ir-e-vir, que lhe é próprio. Roos aceita a proposta de unir-se a Abel em Milão, caso esse desista de descer em Lausanne. Nesse momento, irrompe a referida analogia. Dentre tantos desencontros, em Milão ambos vivem momentos harmoniosos, embora não se realize o que Abel tanto deseja. A referência ao quadro de Bellini evoca um mundo harmô-

Giovanni Bellini. Pinacoteca di Brera, Milão.


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nico e luminoso, de enlace entre o terrestre e o divino, uma das facetas, dentre outras, do que Abel tanto persegue. Mas como Roos é a primeira mulher importante que surge na longa trajetória que conduz Abel àquela extremamente carnal e feita de palavras, os elos com a Madonna de Bellini, com todas as evocações significativas, só podem ser analógicos por aquilo que prometem como um futuro distante. Outra referência a esse mesmo quadro de Bellini é verificável, quando os dois se encontram em Paris e ela lhe declara abertamente que não o ama: “Através de que meandros, de que jogos de espelhos colocado no tempo a viu Bellini?”(ibidem, p.188). Atente-se para a subversão de óptica com que Abel estabelece a relação entre Roos e a pintura de Bellini, nas duas manifestações analógicas: Roos é que serviu de modelo para a Madonna. Em ambos os trechos, é reiterada a questão do tempo: as pontas juntam-se por algo inexplicável, como a graça de vê-la por antecipação, ou de algo explicável, mas ainda a ser deslindado. Em Marinheiro de primeira viagem, um dos procedimentos para ficcionalizar sua experiência na Europa foi justamente o de valer-se do olhar mediatizado pela arte, de tal modo que a analogia entre as personagens e os espaços com quadros não deixa dúvidas de que sua fonte é a pintura. Em Avalovara, em que a experiência real é ficcionalizada com requinte, opera-se o deslocamento da fonte nesse jogo analógico com a pintura. O quadro remete à personagem e não vice-versa. E isso só é possível num registro literário antimimético, com estilo pictural. Nessas ocorrências e em outras que ainda serão examinadas, as referências à pintura submetem-se ao comando de significações da busca de Abel e entram na tessitura do texto como intertextos. Num romance marcado por estilo pictural, a pintura assume também a função de intertexto, ao lado de, por exemplo, Werther, de Goethe, Mobi-Dick, de Melville, e muitas outras referências literárias, eruditas ou não, além de outros registros artísticos.

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Na mesma linha, de óptica inversa, no sentido de que o quadro não é o ponto de partida para a analogia com Roos, mas o contrário, encontramos a referência a Rembrandt, no trecho que focaliza Abel perambulando por Amsterdã, à procura de Roos: Imagino: ela atravessa o mundo com o encargo de não deixar que a noite prevaleça. Na luz com que Rembrandt assina os quadros ou no reflexo das chamas sobre uma peça de metal, sobre uma garrafa, sobre um rosto, inclino-me a ver, é irresistível ressonâncias de Roos. (ibidem, p. 92)

Sendo a primeira mulher participante do processo de sua busca, Roos é a luz que faz face às trevas, mas é uma claridade que ofusca, que não deixa ver. Essa imagem propiciada pelo jogo entre luz e trevas é utilizada com freqüência por Osman Lins em seus ensaios e entrevistas, quando se refere ao ato de escrever. Por mais clara que pareça, a obra antes de ser realizada lhe é escura. Escrever é o único meio de que dispõe para “abrir uma clareira nas trevas” que o cercam. Toda a reflexão sobre sua busca, enquanto perambula por Amsterdã, é enxertada de referências à pintura holandesa: [...] vagueio entre as mercadoras de flores. Observo o vôo dos pombos, as resplandecentes águias pousadas nos telhados... tudo forma uma só coisa incompreensível e luminosa; a pintura de Vincent evolui das trevas da fuligem, para ofuscantes girassóis; a luz perpassa como uma melodia através das mãos e das faces, nos quadros desses mestres holandeses, reinando com tamanha eloqüência sobre a escuridão dos trajes e dos interiores, que se tem a impressão de ouvir, mesmo em artistas menores, a mesma frase: “Pouco a pouco avançamos para a vidência”. (ibidem, p.93)

Em Roos parecem confundir-se todas essas vertentes, anunciando que a busca obstinada de Abel chegará à luz que deixa ver, no sentido de sua conscientização sobre seu país, sua compreensão do mundo, sua compreensão do


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absoluto, a realização amorosa e o ato de escrever. Lembremos que ele se apresenta para Roos como um escritor ainda verde: terá de vivenciar a busca obsessiva para chegar à vidência, à claridade que não ofusca, o que só será possível quando atingir o paraíso com a mulher de São Paulo. Quando se prepara para novo ciclo de viagem, depois da vã caçada na Itália que o leva a crer que não existe mais a Cidade, um dia entrevista, novas reflexões irrompem, no bojo das quais surge mais uma analogia com a pintura: Posso cruzá-la e não a reconhecer. Lembro-me também de que muitas obras de arte existem desmembradas, como o políptico de Masaccio realizado em Pisa, onde só chego a ver a figura de São Paulo, a única que resta na cidade, indo encontrar o Calvário– isolado do conjunto – em Nápoles: santos e fragmentos do friso interior acham-se em Berlim; em Londres, A virgem e o Filho. Com anjos músicos em torno. A ansiada Cidade pode ser, como este, um políptico disperso e se for nunca a encontrarei. Pelo menos não a encontrarei de todo. (ibidem, p.218)

Políptico de Pisa: Crucificação. Masaccio, 1426. Nápolis, Museu de Capodimonte.

Políptico de Pisa: Martírio de São João Batista. Masaccio, 1426. Berlim, Museu de Staatliche.

A reincidência da imagem do retábulo disperso, por meio de obras concretas, Retábulo de Pesaro e Políptico de Masaccio, para se definir imageticamente o objeto da busca de Abel, ora consubstanciado em Roos ora na Cidade (embora ambos se confundam), revela com clareza que a personagem osmaniana busca a completude: unir o disperso. Aos retábulo e políptico incompletos ligados à personagem Roos, com quem Abel, escritor ainda verde, não consegue se realizar amorosamente, contrapõe-se o tapete paradisíaco, sobre o qual se realiza a cena da relação sexual com a terceira mulher. Mas entre o retábulo e o tapete interpõe-se o fular.


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Políptico de Pisa: A Virgem e o Menino. Masaccio, 1426. Londres, National Gallery.

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Políptico de Pisa: São Paulo. Masaccio, 1426. Pisa, Museu Nacional.

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No momento em que Abel se dá conta de que a busca é longa, desponta de modo claro no texto de Avalovara a explicitação de uma das facetas do objeto de sua busca, o livro que pretende escrever, a partir da própria experiência. Dela faz também parte o contato com códices, incunábulos, realizações artísticas que a viagem está lhe propiciando, como também tudo ainda o que está por vir na sua relação com Cecília e com a mulher de São Paulo. Dentre os misteriosos livros a que teve acesso na Biblioteca de Veneza, chegou-lhe a versão grega de um poema místico cuja apresentação em italiano dá as características do texto: “Seu fundo é a espiral. Um dos temas, a busca do Nome. O autor consagra a obra ao Unicórnio” (ibidem, p.220). Os leitores de Avalovara reconhecem com facilidade a coincidência desses elementos comuns ao poema místico e ao próprio romance de Osman Lins. Essa informação ocorre num diálogo que trava com Roos, quando lhe dá de presente um fular que trouxera de Veneza: “um grifo cercado de borboletas e feito de seres estranhos” (ibidem, p.219). Abel revela-lhe que escolheu o fular porque o desenho central lembra o poema místico, cujo tema apresenta liames estreitos com a busca por ele empreendida. Roos retira-o do pescoço, “olha-o com expressão indecifrável e depois estende-o sobre os ombros” (ibidem, p.220). A estamparia do fular correlaciona-se com os motivos paradisíacos do tapete, reforçando no nível do detalhe poético a particularidade alegórica da composição das personagens. Roos não responde ao amor de Abel e não compreende o significado do desenho do fular e de sua relação com a busca do personagem-escritor. Mas tampouco ela o despreza, porque nos encontros posteriores que terá com Abel, o fular completa seu vestuário, numa espécie de leitmotiv alegórico do paraíso. Num dos últimos encontros entre os dois, quando Abel segue de trem para Londres, “ela acena com o bicho cercado de borboletas” (ibidem, p.230). O estampado zoomórfico (homólogo dos motivos paradisíacos do tapete) rodeia o corpo de Roos, mas não se confunde com ele. O fular

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acena para o objeto da busca: o amor e a palavra. O tapete paradisíaco acolhe o objeto encontrado – o amor entrelaçado com a palavra – na alegórica cena da relação sexual entre Abel e a mulher de São Paulo. E no final do romance, os corpos de Abel e de sua amada, depois de assassinados, confundem-se com os motivos paradisíacos, como se fizessem parte da trama do tapete. Abel, escritor-filósofo, vale-se da referência da pintura, para transmitir suas idéias, inquietações e reflexões por meio de imagens concretas, referências e analogias pictóricas na narrativa por ele assumida, revelando-se como escritor. Assim procedeu Osman Lins para ficcionalizar “seu retiro cultural” na Europa, em Marinheiro de primeira viagem. Também seguiu esse caminho, incrementado, porém, com a inclusão de alguns procedimentos inovadores, o construtor geômetra de Avalovara, cuja composição rigorosa, a partir de um plano, para muitos excessivamente limitador, pode ser comparado com a de qualquer pintor, para quem a criação está sempre submetida ao tamanho da tela que vai pintar. Palavras de Osman Lins, no encontro entre escritores, realizado em Aracaju, em 1976, quando se referia à crítica ao excessivo rigor na construção de Avalovara. Nessa ocasião, revelou que o primeiro título pensado para Avalovara fora “A arte de tecer o romance”. Tela e tapete encontram-se nas reflexões de Osman Lins sobre a estrutura de seu romance. Quadros, retábulo, políptico, fular e tapete tecem-se na composição do estilo pictural de Avalovara, que, entrelaçado com sua estrutura fragmentária, contribui para dar forma à busca incessante de Abel para unir o disperso.

Referências ANDRADE, Ana Luiza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo: Hucitec, 1987. BERGEZ, Daniel. Littérature et peinture. Paris: Armand Colin, 2004. DALCASTAGNÉ, Regina. A garganta das coisas: movimentos de Avalovara, de Osman Lins. Sao Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasilia: Editora UnB, 2000.


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FERREIRA, Ermelinda. Cabeças compostas: a personagem feminina na narrativa de Osman Lins. São Paulo: Edusp, 2005.

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LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1973. . Guerra sem testemunhas. São Paulo: Ática, 1974.

Tania Alice Feix*

. Marinheiro de primeira viagem. São Paulo: Summus, 1963. . Nove, novena, São Paulo: Martins, 1966. NITRINI, Sandra. Poéticas em confronto (Nove, novena e o novo romance). São Paulo: Hucitec/INL, 1987.

RESUMO:

O ensaio busca investigar as modalidades da representação do homem pela mulher no contexto da arte contemporânea, focando especialmente as produções artísticas literárias, teatrais e plásticas. Baseando-se principalmente no trabalho de algumas artistas francesas, analisa-se a maneira como se realiza a inscrição do masculino/feminino na arte contemporânea a partir dos paradigmas sociais e artísticos atuais.

PALAVRAS-CHAVE:

Masculino, feminino, arte contemporânea,

França. ABSTRACT:

This essay seeks to investigate the modalities of the representation of men by women in the context of contemporary art, focusing especially on literary, dramatic and plastic artistic production. Based mainly on the work of selected French artists, it analyses the way in which the inscription of the Masculine/Feminine into contemporary art is accomplished on the basis of current social and artistic models.

KEYWORDS:

* Professora adjunta de Estética e Teoria Teatral da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

masculine, feminine, contemporary art, France.

Invertendo os esquemas tradicionais da representação do corpo da mulher pelos homens, as artistas mulheres tomaram definitivamente em mãos as rédeas da criação nos setores de literatura, artes plásticas e cênicas, redefinindo as polaridades e traçando novos eixos para a representação do relacionamento masculino/feminino. De que modo artistas de relevância no contexto internacional da arte contemporânea, como a escritora Camille Laurens ou as artistas plásticas e performers Sophie Calle, Louise Bourgeois ou Annette Messager, inscrevem o masculino/feminino nos seus processos de criação? Consi-


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derando que a representação do feminino advém de uma pesada herança da tradição representativa que tende a valorizar a produção masculina, esse artigo buscará entender as modalidades de representação do masculino. Tratase, no quadro dessa nova representação do corpo do homem pela mulher, de uma simples inversão dos estereótipos elaborados pelos artistas do sexo masculino, ou, pelo contrário, as mulheres chegaram a inventar pouco a pouco uma nova maneira de descrever o masculino? “As mulheres devem estar nuas para entrar no Metropolitan Museum?”, questionava um cartaz das feministas Guerrilla Girls nas ruas de Nova York em 2003. Entre uma representação mercantil da sexualidade e um romantismo exacerbado, emerge na contemporaneidade uma nova maneira de contar o homem – no sentido masculino do termo. Os pólos se invertem, a mulher é reconhecida não na sua qualidade de mulher artista, mas sim de artista. Cai assim, pouco a pouco, a fortaleza principal levantada pela linguagem crítica, qualificando essa criação de “feminina”, como para colocá-la num gueto. E a mulher acaba assumindo o estatuto de criadora, tentando “contar” o corpo, contar o homem – no sentido masculino, mas também genérico, do termo.

Da “mulher modelo” à “mulher sujeito” Não há dúvida nenhuma de que o papel e a situação da mulher artista, até meados do século XX, conduziram a representações unilaterais. Reduzida à “eterna conspiração do silêncio e das mamadeiras impecáveis” (Woolf, 1925, p.9), a mulher artista encontrava-se confrontada a uma dupla exclusão: “à das mulheres na sociedade e a das mulheres artistas no mundo do território masculino” (Wilson, 1997, p.41). Tomar em mãos as rédeas da criação foi um dos desafios do combate social cuja expressão foi múltipla. No setor da performance, na França, na década de 1970, Françoise Janicot apresentou a performance Encoconnage, na qual ela enrolava lentamente um fio de ferro ao redor

1

Cf. <http//www.voyagerco. com/gg/gg.html>. Acessado em 4 setembro 2006.

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de uma mulher, símbolo das prisões machistas. No mesmo período, Jeanne Dielman, de Chantal Ackermann, revelava a opressão sofrida pela mulher nos trabalhos caseiros, apresentando-a na cozinha durante três horas em seguida. Na literatura, a integração da psicanálise no processo da criação permitiu uma liberação da mulher artista, ocasionada pela conscientização da possibilidade de a mulher se libertar de situações predeterminadas. Retomando as idéias desenvolvidas por Simone de Beauvoir em O segundo sexo, Françoise Mallet-Joris, Madeleine Chapsal ou Marie Cardinal foram as primeiras a introduzir o dispositivo psicanalítico na obra literária, sempre na óptica de liberar a mulher das prisões machistas, possibilitando-lhe o acesso a uma representação de seus desejos. Como sublinha Elza Cunha de Vincenzo (1992), no Brasil, na área teatral, a oposição à ditadura, característica da “nova dramaturgia paulista”, abriu o caminho para artistas como Renata Pallottini ou Hilda Hilst, que começaram a inverter os esquemas sociais para se inscrever de maneira marcante no campo da criação teatral. Por que essa dificuldade? À prisão social acrescentase a formação de um gueto no mundo artístico defendido por pessoas detentoras de armas de primeira categoria. A pedra visível do edifício parece ser o célebre conceito de “arte feminina”. Recentemente, uma publicação humorística intitulada “As vantagens de ser artista-mulher” apareceu na internet. Entre as vantagens apresentadas, figura de maneira muito irônica “Ter a garantia de que independentemente do estilo de nossas obras, as nossas obras serão sempre arte feminina”.1 A máxima parece uma resposta anacrônica a Barbey d’Aurevilly (1978, p.23) que escrevera a respeito da arte “feminina”: “Estudem as obras delas, abram por acaso! Na décima linha, sem saber de que se trata, vocês já estarão advertidos, vocês sentirão o odor feminino: Odor di femina!”. Romper esse qualificativo, abolir a noção de “escrita feminina” – fortaleza arcaica da linguagem crítica, felizmente, em fase de extinção – significa abrir espaço de ex-


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pressão, no qual será possível falar do “outro”, ou seja, do homem, em sua dimensão tanto ontológica como corporal. No seu romance Sphinx, a escritora e pesquisadora francesa Anne Garréta (1987) conseguiu dar a vira-volta ao escrever um romance no qual a indeterminação sexual dos personagens não se revela, evidenciando “a inanidade da sacralização da diferença metafísica” (Garréta, 2000). A escolha de um pseudônimo epiceno – ou seja, cuja identidade sexual não é revelada – apresenta-se como a afirmação de uma vontade de se liberar dos estereótipos e dos pressupostos referentes à literatura “feminina”. Esse desejo permite, sem dúvida, explicar parcialmente a escolha de pseudônimos masculinos, ou, no mínimo, epicenos, de um certo número de mulheres artistas: George Sand, Colette – que escreveu com o nome de seu esposo e depois com o nome de seu pai – e, entre as artistas contemporâneas, Dominique Gonzales-Forrester e Camille Laurens. Mais pragmática, a pesquisadora Béatrice Didier (1999, p.15) nota que “assinado com um nome de homem, poder-se-ia vender melhor o livro, o que representaria uma tentação maior para o editor”, evidenciando assim o machismo ambiente quando se trata de questionar a criação feminina e – mais ainda – quando o seu objeto de representação é o masculino. Após romper com os esquemas, trata-se não somente de colocar em cena a liberação, mas também de começar a representar o homem em sua dimensão erótica. Uma coisa é falar de prisões estigmatizando o homem e seu corpo, como o faz Gina Pane, lacerando-se as mãos numa performance.2 Outra é a maneira como vai se construir essa representação, uma vez que a liberdade de fazê-lo foi adquirida. Vai-se, talvez, ao encontro de um lugar comum que pretende que o corpo masculino apresente menos atributos sensuais que o corpo feminino.

Representações femininas do corpo masculino Sem dúvida, Louise Bourgeois é uma das artistas que levaram ao máximo a valorização do corpo masculino, e

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3

Após uma estréia e primeira temporada em São Paulo em 2005, o espetáculo reestreou em São Paulo no dia 5 de agosto de 2006.

2

François Pluchard (2002, p.210) dedicou um artigo a essa performance de Gina Pane.

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seguramente uma das únicas escultoras a realçar o corpo do homem, chegando mesmo a realizar uma escultura na qual se vê representado o sexo em ereção. Sendo assim, ela questiona diretamente a representação do corpo do homem pela mulher. Uma série de desenhos, realizados de maneira catártica dia após dia, evidencia a força do desejo da mulher pelo sexo oposto. Realizados com ponta seca com acréscimos de aguada, aquarela e lápis em 19901993, as “Doze variações de São Sebastião” mostram uma mulher sensual, opulenta, atravessada pelas flechas do amor, evocando a dimensão mitológica referindo-se a Cupido e à totalidade da tradição das pinturas de São Sebastião. As polaridades são invertidas. Apesar de tudo, o desejo é estigmatizado, mal assumido. “Ela tenta se valorizar e assim […] suscita a hostilidade sem querer”, explica Louise Bourgeois a respeito de sua escultura. Em 2005, no Brasil, Denise Stoklos trouxe o trabalho de Louise Bourgeois para o palco com o espetáculo “Faço, desfaço, refaço”, conferindo uma nova visibilidade para a artista plástica francesa.3 Nessa mesma tradição representativa, sempre na óptica de conhecer o homem mediante o vetor da arte, contase também Annette Messager, que em seus trabalhos elabora um relacionamento diferente que se refere aos objetos e aos humanos. Numa das séries Annette Messager colecionadora, intitulada “Aproximações 1971-1972”, a artista tirou uma série de clichês fotográficos que se aproximam cada vez mais da fechadura das calças de um homem, acabando tudo com um enquadramento bem preciso, sempre com o objetivo de abordar de maneira mais íntima o corpo masculino, vetor da alteridade. Na mesma perspectiva, Sophie Calle realiza representações não menos valorizadoras do corpo masculino. Em No sex last night, longa-metragem realizado durante o périplo do casal Greg Shepard e Sophie Calle nos EstadosUnidos, em 1992, as cenas encerram-se cronicamente com a frase despeitada da protagonista que filma todos os dias de manhã as camas dos diversos motéis, concluindo laco-


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nicamente “No sex last night!”. Na ocasião da Nuit Blanche 4 de 2003, Sophie Calle, instalada num colchão de penas no cimo da Torre Eiffel, deixava todos os homens voluntários tentar cativar a sua atenção durante cinco minutos. Dessa forma, a artista evidencia a perenidade dos esquemas tradicionais: a princesa, passiva, no cume de sua torre, que fica esperando os príncipes potenciais, todos decepcionantes porque demasiadamente idealizados. Entre a representação do corpo do homem pela mulher e a contemplação dessa representação pelo homem existe um abismo social. Em La voyeuse interdite, a escritora argelina Nina Bouraoui descreve a dificuldade da mulher tentando representar o homem, quando o arsenal de condicionamentos sociais, vetor da dominação masculina – para retomar o título do ensaio de Pierre Bourdieu – encontra-se armado. A mesma situação é questionada nas peças de Leilah Assunção como Fala baixo senão eu grito (de 1969) ou Jorginho, o machão (de 1970). Quando se trata de representar a alteridade, a beleza do gesto artístico reside no fato de que a reivindicação nunca se torna mais importante do que o amor pelo outro.

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4

A “Nuit Blanche” (“Noite em Branco”) é uma manifestação de Arte Contemporânea, realizada anualmente em Paris, durante a qual vários artistas apresentam performances.

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Em seu livro, Philippe Lejeune define a autobiografia como sendo revelada textualmente pela adequação do nome do autor na capa com o nome utilizado dentro do romance, nome que deve igualmente ser o do protagonista da história.

Sexos e sexualidades Do ponto de vista da literatura, a reflexão sobre o relacionamento com o corpo, e mais especialmente com o corpo masculino, encontra-se no centro da problemática da escritora francesa Camille Laurens, especialmente nos romances Dans ces bras-là e L’amour, roman. Em Dans ces bras-là, a escritora descreve os encontros sucessivos da narradora com os homens de sua vida: o pai, o psicanalista, o marido, o amante, o desconhecido... Trata-se de abordar “o continente peludo”, retomando a expressão de Fabrice Gaignault,5 na tentativa de compreender o mistério do eterno masculino. A investigação avança mais em L’amour, roman, no qual a narradora tenta encontrar uma resposta à pergunta

5

Cf. Entrevista de Camille Laurens na revista feminina Elle, realizada por Fabrice Gaignault, em 4 de setembro de 2000.

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“De onde vem o amor em mim?”, percorrendo a árvore genealógica dos seus antepassados. Levando em conta ao mesmo tempo a dimensão sociológica e psicanalítica para tentar definir a sua maneira de conceber o homem, o amor, a sexualidade, o relacionamento com o outro, Camille Laurens apóia-se no passado para tentar compreender o presente e a relação amorosa com o seu esposo Yves. Assinado com o pseudônimo declarado de Camille Laurens, L’amour, roman cita o verdadeiro nome de seu marido na vida “real”, fazendo aparecer o nome da escritora no estado civil na última página. Resultado: trata-se de uma escrita praticamente autobiográfica, mesmo que o “pacto autobiográfico” (Lejeune, 1971, p.34)6 não tenha sido validado. O resultado foi uma ação judicial intentada por seu esposo. O processo foi julgado num Tribunal de Primeira Instância de Paris no dia 12 de abril de 2003, e até hoje não foi decidido sobre o fundo da questão. Entre outras palavras, a representação do masculino, num “romance” que relata o corpo a corpo erótico entre a narradora e seu amante não é um combate ganho antecipadamente. Trata-se, para as mulheres artistas, de movimentar-se na orla situada entre a evocação autêntica e uma arrematação sexual, às vezes manobrada sob a óptica do marketing. Uma forma de explicação para a atual proliferação de confissões sexuais femininas no mercado editorial. A vida sexual de Catherine M. (2001) de Catherine Millet, a diretora de Art Press, uma das mais relevantes revistas de Arte Contemporânea internacionais, por exemplo, apresenta uma sexualidade desencarnada, deserotizada, um tipo de “mecânica de mulheres”. Tentando a liberação sexual, a mulher acaba se submetendo à lógica masculina, integrando os clichês do discurso recusado. Reencontramos o mesmo tipo de representação em Baise-moi, de Virginie Despentes, em que o homem é o objeto da representação como do desejo: a relação humana torna-se mecânica, animal. Em vez de afrontar os esquemas machistas e as formas de representação que os condicionam, constata-se uma simples inversão dos clichês.


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A inversão dos estereótipos A inversão dos estereótipos constitui o argumento retórico principal da lógica mercantil. O corpo ideal feminino não se substitui pela beleza interna de cada ser, mas pela noção de corpo ideal masculino. As artistas contemporâneas que colocam o homem no centro de suas representações também não fogem desses clichês. Por exemplo, Camille Laurens exalta os corpos magros, atléticos, apresentando uma verdadeira semiologia do corpo, que justifica uma transcendência a partir de determinados dados corporais. Em Romance, segundo volume da sua tetralogia, a forma fálica do cigarro leva a protagonista Lise a deduzir que os fumantes têm um potencial erótico maior. Em Dans ces bras-là, os atletas são considerados eróticos, pelo simples fato de serem submetidos a esforços, a tensões. O ideal atlético é o leitmotiv da obra de Camille Laurens, na qual o avô, figura mítica de jogador de rúgbi, representa o eterno masculino. Em L’ image de l’homme – l’invention de la virilité moderne, George Mosse (1996) analisa os atributos físicos e morais dos homens, tentando analisar de maneira mais precisa o modo como os estereótipos evoluíram no decorrer do tempo. Segundo Mosse (1996), vontade de dominação, potência, honra e coragem seriam as virtudes principais que contribuíram para criar a imagem do homem ideal. Explorados no quadro das sociedades fascistas por meio de desvios do pensamento de Nietzsche, esses modelos contribuem para criar uma base para as fantasias femininas contemporâneas. Continuado na sociedade romana, assumido e conscientizado durante o século XIX pela sociedade burguesa que exalta os valores da honra, o modelo atlético grego encontra-se em vigor em nossos dias na medida em que a referência é feita à aparência externa. No que se refere aos valores comportamentais, a nossa “era do vazio” – para utilizar o título do ensaio do sociólogo Gilles Lipovetsky – chegou a produzir um narcisismo crescente no aspecto corporal que parece assumir uma impor-

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tância superior aos valores interiores. Do ponto de vista da sociedade, a passagem da época moderna, historicista, contendo no seu seio a fé no progresso à pós-modernidade, período do fim das “Grandes Narrativas” (Lyotard, 1974, p.25), ocasionou uma tomada de consciência diferente não só dos valores humanos, como dos valores corporais.

A tentação pornográfica A dimensão sociológica completa a inversão dos estereótipos torna necessária que as mulheres abordem a representação do corpo do ângulo pornográfico. Susie Bright, performer norte-americana, abre essa perspectiva, afirmando que o seu sonho é de “entregar a pornografia às mulheres para que elas passem do papel de objeto para o papel de sujeito” (Bourseiller, 2000, p.217). Graças à sua iniciativa, foi publicado o primeiro compêndio de contos eróticos escritos exclusivamente por mulheres, Herotica, lançado em 1988 no Reino Unido. Na França, a feminização da representação pornográfica com a produção de uma representação “bruta” do homem foi realizada por Régine Deforges: do Obscuro objeto do desejo de Buñuel passou-se para Sublimos objetos do desejo, numa inversão do título particularmente eloqüente. A coletânea Tormentos femininos constitui uma espécie de contrapartida francesa da Herotica. Dez autoras femininas, de Muriel Cerf a Françoise Rey, passando por Nathalie Perreau ou Calixthe Beyala, produzem, cada uma, um conto erótico inédito, sem que haja, portanto, um afastamento dos estereótipos veiculados pela literatura masculina. Nessa perspectiva, os filmes eróticos, atualmente produzidos pelas mulheres como Ovidie ou Laetitia, não escapam dessa visão unilateral. Sob coberta do marketing, a imagem das relações propagada é a mesma que transparece nos filmes realizados por homens. Pode-se falar em progresso? Os leitores não se deixam enganar tão facilmente por essa inversão de representações. Em Les forcenés du désir, Christophe Bourseiller (2000) chega a falar de “autores


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carnais, que abrem as pernas com a mesma facilidade de Annie Sprinkle”, criando um gênero literário no qual faz entrar Christine Angot, Virginie Despentes, Alina Reyes, Claire Legendre, Françoise Rey, ou mesmo Lorette Nobécourt. A descrição das relações carnais por uma mulher é, segundo ele, um argumento de vendas em termos de marketing literário. “Ser discreto no século XX é uma escolha”, sublinha Paul Ardenne (2001, p.296) em Corpus eroticus: “Como um gesto de prevenção, a gente teria a tentação de declarar, gesto contra o tédio, chamado cedo ou tarde a emudecer a orgia dos sinais de sexo”. Para Paul Ardenne, a passagem de um aspecto mais sádico na descrição da sexualidade a uma descrição mais neutra poderia ser datado nos anos 1960, mais especialmente quando surge a prosa de Alain Robbe-Grillet. Ilustrando essa modificação, um dos filmes de Robbe-Grillet intitula-se Deslizamentos progressivos do prazer. Em seus romances, Robbe-Grillet procura distinguir claramente entre erotismo, valorização do amor carnal e pornografia, assimilada à desvalorização das ligações carnais. Começando a colocar em cena o erotismo de uma maneira diferente, na década de 1960-1970, o Nouveau Roman já tinha afirmado a necessidade de uma certa distância ou pelo menos de um questionamento em relação às modalidades da exposição do corpo; a meio caminho entre os livros “limpos, referentes a um classicismo sem nenhum risco”, como o descreve Marguerite Duras (1993) em Écrire, e a exposição bruta de uma sexualidade desencantada. Conseqüentemente, pode-se afirmar que a descrição do homem se situa entre reivindicação e gesto artístico, entre exposição carnal e sublimação. Quando a aliança se realiza, o tom e a voz corretos são encontrados, a mulher consegue “contar” o homem na sua dimensão masculina e também ontológica. Assim, entre as versões das histórias amorosas do triângulo Henry Miller/Anaïs Nin/June mais lidas atualmente são as de Anaïs Nin no seu Diário, quando ela apresenta a sua própria versão dos acontecimentos, como a de June no próprio diário de Anaïs, com o objetivo de resta-

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belecer a sua versão dos fatos em relação às descrições apresentadas por Henry Miller em Sexus, plexus, nexus. O corpo masculino, quando é apresentado com amor, torna-se um vetor de transcendência porque gera a aproximação das almas, induzida pela aproximação dos corpos, “como se a matéria fosse um meio pelo qual também se pode atingir o mistério, o sentido último das coisas” (Vicenzo, 1992, p.44). Conhecer o Homem, como se fosse uma trajetória transcendental, conhecê-lo no nível intelectual e sensual, para uma transcendência partilhada: objetivo último, senão sublime, da arte?

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Vera Bastazin*

LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio – ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2006. LYOTARD, J. F. The post-modern Condition. London: Manchester University Press, 1984. RESUMO:

O estudo aborda a constituição da narrativa em dois diferentes objetos de expressão artística da linguagem: a literatura e o cinema. A partir da seleção de um texto literário e um texto cinematográfico, busca-se construir leituras que aproximam e distanciam os textos, expondo o traçado narrativo como fonte de diálogo e de revelação da arquitetura textual de ambos os objetos de estudo.

MOSSE, George. L’image de l´homme – L’invention de la virilité moderne. Paris: Pocket Agora, 1996. MILLET, Catherine. La vie sexuelle de Catherine M. Paris: Seuil, 2001. NIN, Anais. Journal. Paris: Livre de Poche, 1999. PLUCHARD, François. L’art, un acte de participation au monde. Nîmes: Jacqueline Chambon, 2002.

PALAVRAS-CHAVE:

Literatura, cinema, narratividade, Fernando Pessoa, Márcio Ramos.

ROBBE-GRILLET, Alain. Glissements progressifs du plaisir, cinéroman. Paris: Minuit, 1974.

ABSTRACT:

This study approaches the structure of the narrative in two different objects of artistic expression of language: literature and film. With basis on a selection consisting of literary and cinematographic texts, readings that increase and decrease the distance between such texts shall be sought for, so as to reveal a narrative trail as a source of dialogue and revelation of the textual architecture of both objects of study.

VINCENZO, Elza Cunha de. Um teatro da mulher. São Paulo: Perspectiva, 1992. VVAA. Tourments du désir. Paris: Points Seuil, 2004. WILSON, Sarah. Transmissão, transição, feminismo e arte na França, 1970-1997. In: Catálogo da exposição Na verdade – feminismo e arte. Grenoble: Centro Nacional de Arte Contemporânea, 5 de abril a 25 de maio de 1997.

KEYWORDS:Literature, film, narrativity, Fernando Pessoa, Márcio

Ramos.

WOOLF, Virginia. La chambre de Jacob. In: . Oeuvres romanesques. Trad. S. David. Paris : Stock, 1925. v.I.

* Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A literatura, como fenômeno de linguagem, dialoga com outros códigos de qualidade artística que, como ela, também se expressam por meio de um discurso aberto à perspectiva plurissignificativa e mesmo multicultural. Neste trabalho, procuraremos mostrar como a literatura suscita a constituição da imagem poética e está em consonância com o cinema no ato de refletir sobre sua própria potencialidade como narrativa ficcional. Para cumprir esse objetivo, selecionamos, na literatura, o texto A rosa de seda, de Fernando Pessoa (1986) e, no cinema, o


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curta-metragem Vida Maria, de Márcio Ramos, filme premiado no II Festival Paulista do Cinema Nordestino (2006). A seleção desses dois objetos – literário e cinematográfico – possibilitará refletir sobre os processos narrativos de cada um dos objetos de forma específica e, também, relacional, na medida em que possibilitará estabelecer diálogo entre os códigos, verificando que cada um deles pode conter em si a incorporação do outro. A potencialidade narrativa da literatura, assim como da película cinematográfica, traz consigo certos procedimentos de leitura e de interpretação do mundo que se revertem em imagens poéticas com traços específicos de linguagem. Todavia, transitar por suas especificidades permite descobrir elementos comuns aos dois códigos, quase que num processo de conscientização de que literatura e cinema se nutrem, reciprocamente, de técnicas e procedimentos que os enriquecem como manifestação de linguagem e de qualidade estética. Literatura e cinema constituem linguagens não marcadas, predominantemente, por informações, mas por formas imagéticas de dizer. Assim como o filme não se faz apenas com palavras, mas, prioritariamente, com imagens em movimento, a literatura, cujo objeto é a própria palavra, transveste-as de potencialidade imagética, qualidade essa que contem em si os traços fundamentais da poética. É certo que, na literatura, a imagem não se identifica diretamente com a visualidade, mas estende-se à imagem sonora, olfativa ou, mesmo, de forma mais ampla, à imagem sensorial. O que também é válido para o cinema. Se um filme pode ser colocado em palavras na sua composição lógica, sua força se realiza numa experiência que é sensorial. Isso significa que o filme, quando é visto, deve oferecer também a oportunidade da experiência sensível que se projeta para além do ato de ver. De forma equivalente, não basta à literatura ser lida, mas ela deve ser vivida como um experimento sensível e cognoscível. A composição razão e sensibilidade é fundamental para o resultado ou efeitos da linguagem que se materializam como experiência

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1 A palavra texto é aqui utilizada não apenas em referência ao universo verbal e literário, mas em sentido amplo, a qualquer unidade de composição significativa; portanto, incluindo também o sentido de texto cinematográfico.

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estética manifestada na dimensão apreensiva e reflexiva do mundo. Focar a atenção em processos narrativos parece, em um primeiro momento, realizar uma delimitação bastante restritiva. Todavia, é importante explicitar que nossa abordagem tem como perspectiva o estudo da narrativa sob o enfoque de sua estruturação, isto é, não nos interessa observar nos textos1 selecionados apenas seus enunciados – histórias narradas a partir de uma constituição de eventos que se sucedem na linearidade dos fatos. Ao contrário, nosso interesse reside no estudo da forma como essa linearidade se constrói ou mesmo se desconstrói, trilhando não só a composição verbal do texto, mas a composição dos significados que se estendem da palavra à imagem, da fábula à arquitetura textual. Portanto, nosso objetivo é estudar a narrativa no deslocamento entre o que é especificamente literário e o que são marcas peculiares do cinematográfico. A narratologia é, portanto, neste trabalho, um eixo teórico condutor para o adensamento do ato de ler, ou seja, de apreender, observar, analisar e mesmo aproximar as composições narrativas manifestas no contexto literário e fílmico. Agregando à narrativa a dimensão de um juízo sobre a natureza dos eventos, diríamos que ela é um caminho, ou uma alternativa para o conhecimento e até domínio dos fatos que a compõem – sejam eles referentes ao conteúdo fabular sejam eles composicionais. Essa afirmativa significa que, direta ou indiretamente, a narrativa realiza uma retomada das ações humanas de modo a permitir elaboração de uma consciência sobre si mesma e sobre os fatos narrados. É interessante observar que o ato de narrar, numa perspectiva benjaminiana, pode ser visto como uma prática política, na medida em que envolve um ato de manifestação de voz que, ao ser pronunciada, faz refletir e até reformular posturas e interpretações. Nessa dinâmica, a narrativa abre espaço para a consciência daquilo que se diz e do como se diz – uma ação propriamente de consciência metalingüística.


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A ação narrativa como construção de uma história e de um discurso em íntima integração é quase um movimento de percepção e memória que se desloca de um foco historicista, ou seja, de quem olha para o passado (para o que já existiu) e o repete no presente, para um foco historiográfico, isto é, de quem escreve uma história num ato contínuo de renovação da experiência humana, ou seja, sempre ligada à construção de novos olhares e, conseqüentemente, de novas formas de dizer. Narrar, portanto, é falar no tempo – tempo da existência dos fatos e da própria temporalidade como extensão social e humana. Narrar é uma experiência que torna o tempo humano, isto é, absorve o elemento natural da temporalidade e o transforma em constituinte social. Nesse sentido, cabe lembrar Fludernik (2000), que afirma ser a narrativa uma experiência de natureza antropomórfica; ou seja, ao ter o homem como centro de si mesma, ela revela sua potencialidade para a motivação crítica dos fatos e mesmo sua característica tensional na medida em que pode denunciar uma articulação sempre delicada e conflituosa entre valores estéticos e existenciais. A narrativa ficcional é, assim, uma discursivização do real, um ato de reescritura que se faz pela inspiração do passado que deve ser pronunciado e permanecer no tempo ou, simplesmente, de um imaginário que precisa tomar corpo na materialidade da palavra ou gesto narrativo.

Narração e imagem na literatura – A essência da palavra poética Se partirmos das reflexões propostas por Walter Benjamin (1994) sobre as questões do narrador, podemos afirmar que junto ao nascimento do homem registra-se, em simultaneidade, o nascimento da narrativa e, conseqüentemente, de seu enunciador. O homem está na narrativa assim como a narrativa encontra-se impressa no próprio homem, o que significa dizer que, ao se constituir como espécie que se diferencia dos outros animais, o homem

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inicia, pela ação narrativa, a construção e o registro de sua própria história. O nascimento da narrativa oral é um fato integrado à tradição dos rituais, ele garante a passagem das experiências vividas ou imaginadas, de geração para geração, de boca a boca, até alcançar os registros da escrita e, com eles, a constituição e a permanência na história. O ato de contar histórias, portanto, nasce com a oralidade, inscreve-se no fabulário popular, atravessa os tempos e sedimenta-se no registro da escrita que, por sua vez, incorpora qualidades estéticas pelo uso singular de vocabulário e sintaxe, passando a contaminar outras formas de dizer. A literatura e os discursos artísticos cultivam e aprimoram formas de ver, de apreender e expressar o mundo num exercício contínuo de manifestações multiculturais que vão assumindo características peculiares conforme seus códigos e arquiteturas textuais. Um texto exemplar da narrativa literária, dentre inúmeros outros possíveis, é aqui selecionado para fazer ver o significado das palavras que se inscrevem na composição textual de forma a permitir a apreensão do que é uma história narrada, cuja dimensão metafórica confere ao texto marcas de poeticidade. Lembramos, nessa reflexão, André Jolles (1976), pela distinção que faz entre formas simples e cultas de narrativa. As primeiras, entre as quais se situam a fábula ou o conto popular, são criações coletivas que brotam de forma espontânea do próprio ato da fala humana, cuja voz tece, em pequenas narrativas, suas experiências de vida, seus anseios, temores e projeções imaginárias. Aqui, a linguagem que brota do impulso natural revela que não há, ainda, a intervenção propriamente do poeta como alguém que conscientemente manipula a linguagem para uma composição que se quer original. As segundas, as formas cultas, são criações individuais e, nesse caso, podem expressar uma passagem da forma simples para a forma culta, passagem essa que confere roupagem literária ao material preexistente na cultura popular. Fixada como obra literária, a narrativa passa a ser um registro que perde a mobili-


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dade própria da forma oral e popular e se fixa, adquirindo unicidade e singularidade poéticas.2 Elaboração consciente, não mais espontânea e, portanto, com diferentes graus de complexidade, as formas cultas permitem reconhecer no texto a ação do poeta como ser criador de linguagem. A passagem da narrativa para o livro lhe confere status que se agrega à erudição cultural. A evolução humana, em consonância com a evolução social, produz mudanças nas formas de constituição do pensamento e da percepção sensível. O que era mais sensorial, rudimentar e intuitivo passa a buscar tradução na racionalidade, na sofisticação, no afastamento da inocência mítica e na espontaneidade ritualística. A experiência narrativa vivida por meio da gestualidade e da palavra oral perde espaço para uma existência marcada em processos de representação. A arte ganha espaços mais definidos, seja como palavra seja como sons, formas e texturas. Arte e comunicação buscam territórios mais definidos. A finalidade precisa e imediata das formas comunicativas marca distanciamento do que é mais expressivo, sensível e simbólico. Nessa distinção, parece-nos oportuno recorrer a Walter Benjamin (1994, p.203-4): Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas. Cada manhã, recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação.

A abordagem de Benjamin nos ajuda a refletir sobre características da narrativa e suas transformações ao longo da história. Da ação espontânea, ritualística e oral de contar histórias vividas ou imaginadas para o distancia-

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Ver conceito de estranhamento e singularização em Chklovski (1976). 3

A rosa de seda (fabulário)

Num fabulário ainda por encontrar será um dia lida esta fábula: A uma bordadeira de um país longínquo foi encomendado pela sua rainha que bordasse, sobre seda ou cetim, entre folhas, uma rosa branca. A bordadeira, como era muito jovem, foi procurar por toda a parte aquela rosa branca perfeitíssima, em cuja semelhança bordasse a sua. Mas sucedia que umas rosas eram menos belas do que lhe convinha e que outras não eram brancas como deveriam ser. Gastou dias sobre dias, chorosas horas, buscando a rosa que imitasse com seda, e, como nos países longíngüos nunca deixa de haver pena de morte, ela sabia bem que, pelas leis dos contos como estes, não podiam deixar de a matar se não bordasse a rosa branca. Por fim, não tendo melhor remédio, bordou de memória a rosa que lhe haviam exigido. Depois de a bordar foi compará-la com as rosas brancas que existem realmente nas roseiras. Sucedeu que todas as rosas brancas se pareciam com a rosa que ela bordara, que cada uma delas era exatamente aquela. Ela levou o trabalho ao palácio e é de se supor que casasse com o príncipe. No fabulário onde vem essa fábula não traz moralidade. Mesmo porque, na idade do ouro, as fábulas não tinham moralidade nenhuma.

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mento da narrativa e a divisão de territórios com o ato de elaborar e transmitir informações existe um espaço que, poderíamos dizer, exige a consciência da produção de linguagem cujos traços de poeticidade lhe conferem a condição peculiar da arte. A metáfora da semente de trigo que guarda, por milênios, sua força germinativa sugere o traço de atemporalidade próprio da arte. Aliás, poderíamos arriscar e dizer que as marcas do tempo na obra poética trazem significados tão plurais quanto o tempo que o texto literário permanece na história da humanidade. Em A rosa de seda, de Fernando Pessoa (1986),3 temos acesso a um episódio aparentemente bastante simples, que se passa num país longínquo, como, aliás, é o espaço das narrativas fabulares. A fábula, estruturação narrativa próxima ao conto popular ou conto maravilhoso, é uma composição de caráter universal utilizada para a transmissão da cultura de um povo, ainda na fase da oralidade. Ela documenta o folclore, os usos, costumes, rituais, construções imaginárias que refletem a inclinação do ser humano para o maravilhoso. Na busca de expressões dos sentimentos humanos marcados por comportamentos e/ou ideais tais como beleza, bondade, justiça, amor, amizade ou mesmo comportamentos de inveja, ódio, compaixão, competição etc, a narrativa mágica traz consigo também fortes marcas de valores culturais e, porque não dizer, interdisciplinares. Todavia, nesse tipo de narrativa há sempre uma prevalência marcante de disposição natural para sentimento de triunfo do bem sobre o mal, da felicidade sobre a dor e a infelicidade. Buscando ultrapassar a realidade, as fábulas e/ou os contos populares desafiam a dor e a morte, como fim trágico, e buscam a superação de obstáculos, de forma a conduzir a vida para o triunfo e a felicidade. No caso do texto de Fernando Pessoa, tudo aconteceu há muito tempo, e, podemos dizer, como na narrativa mítica, se repete para todo o sempre. As histórias assim contadas suscitam o imaginário de tempos e espaços não vivenciados por nós, apesar de intensamente cultivados


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por nossa imaginação. A personagem entra em ação pela voz de um narrador que a apresenta como uma bordadeira a quem foi encomendado, pelas ordens da rainha, o bordado de uma rosa. Entram em cena, com a própria bordadeira, alguns de seus atributos que vão se desdobrando, ao longo da narrativa, de maneira a constituir a personagem na sua totalidade. A bordadeira é jovem, obediente, sensível, e percorre o texto em busca da perfeição, o que a faz ser marcada pela tenacidade e, acima de tudo, pela qualidade que irá culminar ao final de sua trajetória: a criatividade. Assim, a bordadeira que recebe como incumbência da sua rainha a realização do bordado de uma rosa branca procura por todos os lugares uma rosa que a inspirasse na realização de um trabalho perfeito. Exausta e preocupada por não encontrar seu ideal de perfeição, a bordadeira retira da memória o modelo para a execução do seu bordado. Por analogia, a mente é apresentada como o espaço em que se encontra a perfeição, além evidentemente, do espaço de solução para os problemas de nossa existência. Buscamos no espaço exterior o que está dentro de nós – essa seria uma sugestão que se apresenta no subtexto. É na projeção do imaginário, e não na realidade, que se encontra o mundo ideal. A mente é o espaço nebuloso onde se alocam as idéias, espaço esse que pode nos surpreender quando recorremos a ele na busca daquilo que não encontramos definido na realidade física por onde circulamos. Lembrar Platão e as relações entre a realidade, a arte e o mundo das idéias não é mero acaso, mas referencial de ampliação para se refletir sobre o texto e os processos de representação da linguagem. Esgotadas as condições de busca, a jovem bordadeira encontra no imaginário a solução para o seu problema, e chega, assim, à rosa perfeita. O cumprimento da tarefa que lhe foi imposta livra a jovem da condenação à morte e lhe concede uma recompensa final. É de supor que o casamento seja o desfecho perfeito para a história, pois se a jovem cumpriu sua tarefa, a narrativa lhe concederá um

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O escritor argentino, ficcionista e teórico da literatura atem-se, entre outras questões, à natureza do conto moderno como gênero marcado pela brevidade, cuja arte reside no fato de contar, simultaneamente, duas histórias: a fábula, entendida como uma história visível e, uma outra considerada invisível, que vai denominar de história secreta.

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final feliz. Assim, são todas as histórias de fadas: um desafio, colocado no início, é vencido depois de muita luta e empenho da personagem, cuja recompensa virá, com certeza, fechar a seqüência das ações narrativas. O breve texto pessoano é um protótipo do conto maravilhoso, cuja heroína, depois de receber um desafio, percorre a narrativa, demonstrando sua inteligência e audácia para, ao final, conquistar seus objetivos e receber sua premiação. Se a personagem não mediu esforços para achar a rosa perfeita, ela também foi suficientemente inteligente para construir uma alternativa que resolvesse seu problema. É certo que, explorado em relação aos elementos básicos de sua composição, o enredo não diz tudo sobre essa narrativa. É preciso ver também as primeiras e últimas linhas que compõem o que poderíamos chamar de moldura do texto, ou ainda, como diria Ricardo Piglia4 (2004), a história subjacente, invisível aos olhos do leitor que busca no texto a imediatez do seu significado. Nas primeiras linhas, algumas palavras determinam significados fundamentais ao texto, cuja indicação lhe confere a qualidade de fábula no sentido mais tradicional do termo, ou seja, de narrativa simples, breve e de caráter pedagógico, isto é, marcada por um ensinamento moral. O horizonte de expectativas se abre para o leitor que deve estar preparado para um aprendizado: o que se vai aprender com o texto? A expectativa, todavia, não se completa na questão, mas se estende ainda para a constituição de uma temporalidade sugerida, pois o fabulário estaria perdido no tempo, tempo esse projetado para o futuro: “no fabulário ainda por encontrar será um dia, lida essa fábula”. O passado, quando tudo aconteceu, projeta um futuro indefinido – será um dia – que se realiza no presente, ou seja, momento da leitura, momento do confronto entre o texto e o leitor. A ante-sala do texto embaralha o tempo, desconstruindo uma possível linearidade que se possa projetar para a interpretação narrativa. Não há dúvida de que existe uma seqüência de encadeamento lógico-linear responsável pelo percurso da bordadeira; entretanto, como


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indicia a linha introdutória, essa linearidade é enganosa e isso vai se reafirmar nas duas últimas linhas, quando se desdiz o significado do termo fabulário e se reafirma a atemporalidade do texto. Assim, “no fabulário, onde vem esta fábula não traz moralidade”, portanto, desfaz-se o conceito tradicional de fábula, reafirmando a constituição de uma qualidade do texto literário: toda expectativa, ou, ainda, toda verdade será rompida. O automatismo da percepção e da interpretação sofrerá o impacto da ruptura e a exigência é de reconstituição perceptiva para a construção de novos significados. A literatura é uma realidade de linguagem que se realiza pelo trabalho textual e imagético com a imprevisibilidade dos significados. De forma semelhante, o tempo também é desconstruído, isso porque o referencial primeiro é a “idade do ouro” – um tempo longínquo, mítico, aurático, quando o bem e o mal ainda não existiam. Se a moldura – primeiras e últimas linhas do objeto texto – constroem aberturas de temporalidade e significados, não há como fechar o texto em interpretações limitadas por regras de causa e conseqüência, de teses e antíteses, ou de começo, meio e fim, nos quais tudo se encerra em relações determinadas e conclusivas. A bordadeira seria um poeta à procura da palavra perfeita? Um ser qualquer em busca do alimento que o livrasse da fome, da inanição e da morte? Ou ainda, o próprio homem no embate com suas angústias e desafios de um mundo exterior e cruelmente materialista? A narrativa encanta na sua aparente simplicidade. Afinal, a bordadeira traz consigo qualidades muito próximas às daquelas personagens que, no mundo infantil, enfrentam desafios e os vencem, obtendo como recompensa o prêmio final: casar-se com o príncipe, ter filhos, ou o que seria o grande prêmio para qualquer um dos homens: encontrar a felicidade. Na subnarrativa, ou história secreta, o que se diz é um pouco diferente: não basta o texto imediato, é preciso ler a história segunda, aquela embutida que amplia significados, faz pensar, desdiz a anterior, desestabiliza a interpre-

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tação. Assim, a segunda história faz que a imagem poética da bordadeira se desdobre e suscite outras interpretações. Afinal, que rosa é essa que procuramos, não encontramos e é preciso construir com nossa própria capacidade de projeção imaginária? Ou ainda: que tecido é esse que tece o poeta com os fios de seda de uma rosa branca? Existem rosas perfeitas? Seria a mente humana o último reduto de salvação para o homem? É possível viver ainda a idade de ouro? Seria o texto poético uma possibilidade de se viver a idade de ouro mesmo na contemporaneidade? As questões suscitadas pela narrativa podem desdobrar-se em alternativas contínuas e quase infinitas. Aliás, infinita é a capacidade do homem em produzir histórias. Como diz o ditado popular, “acabou-se a história, morreu a vitória, quem quiser que conte outra”... Ou ainda, no ato de contar, “quem conta um conto aumenta um ponto”. Isto é, poder-se-ia dizer que, no ato de criação narrativa, nunca existem pontos finais...

Narração e imagem no cinema A essência da Vida Maria na imagem cinematográfica

O curta-metragem de Márcio Ramos é texto cinematográfico e literário simultaneamente. Dentre as linguagens criadas nos tempos modernos, o cinema ocupa espaço de destaque e de significativa relevância estética. Vida Maria é exemplo de nossa afirmativa.


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Na grande tela, a composição de luz, som, cor e imagem em movimento apresenta a narrativa que, em muitos aspectos, vai não apenas se aproximar da literatura, mas absorvê-la na sua qualidade poética de expressão de um pensamento. O que afirmamos significa que o cinema, ao exercer a ação de contar histórias, rompe possíveis limites narrativos para dizer não apenas com palavras ou seqüências de ações, mas para adensar sua fala, exatamente, por meio de uma forma especial de dizer, isto é, dizer pela cor, pelo movimento, pelo tempo de duração das imagens, pelo posicionamento da câmara, pela intensidade de luz; enfim, pela composição de todos esses elementos ao mesmo tempo ou pela ausência ou ainda contraposição entre presença e ausência deles. Recorremos, aqui, ao significado etimológico da palavra narrar, que vem do latim gnarus e significa “aquele que sabe”, “aquele que conhece”. Portanto, o narrador é aquele que dentro de uma determinada cultura detém o poder do conhecimento. Destaca-se também que, de certa forma, esse conhecimento associa-se à maneira ou habilidade especial para contar anedotas – causos interessantes que despertam a curiosidade. Aliás, em relação ao ato de transmitir conhecimento pela ação de narrar, parece-nos interessante lembrar mais uma vez Walter Benjamin (1994) que, ao se referir ao narrador, destaca-o em duas vertentes: o narrador sedentário, fixo no seu espaço cultural e, portanto responsável por transmitir e assegurar a tradição de seu povo e o narrador marinheiro, aquele que está sempre em deslocamento, em trânsito de um espaço para outro e que, portanto, leva o conhecimento, por meio de narrativas, quase como aventuras que ultrapassam fronteiras. Assim, o narrador viajante seria aquele responsável pela transmissão de histórias que revelam as experiências humanas em seu caráter inovador ou mesmo identificador de traços temáticos ou composicionais independentemente das fronteiras espaciais e/ ou culturais que separam os povos. Retornando à questão da narrativa no contexto cinematográfico, poderíamos afirmar que todo o cineasta é,

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por princípio, um contador de histórias, seja um sedentário ou viajante, conforme acepção benjaminiana. Mesmo que o cinema se valha de técnicas das mais inovadoras que se deslocam da montagem – como artifício diretamente associado à fragmentação e descontinuidade dos fatos narrados (Eisenstein, 1977) – à animação como recurso digital, que se relaciona ao filme em questão, não nos parece possível ver o cineasta distante do papel e da função do contador de histórias. O que se coloca ante os processos tecnológicos seriam, exatamente, os artifícios utilizados para a composição do modo de narrar. Falar em linguagem cinematográfica como forma artística de expressão é, portanto, de alguma forma, falar no fenômeno da narratividade. A linguagem como fonte de conhecimento e vivência de processos de representação se manifesta na tela do cinema e revela formas narrativas de dizer a experiência humana. Vejamos o que isso significa no caso do texto cinematográfico em questão. Para iniciarmos pelo nome do filme, lembramos Umberto Eco (1985, p.8): “um título [...] é uma chave interpretativa. Ninguém pode furtar-se às [suas] sugestões...”. Vida Maria realiza uma inversão que modifica um nome/ substantivo próprio em adjetivo. Contudo, o nome Maria será fortemente corroborado na narrativa, na medida em que as personagens Maria José e Maria Lurdes estarão desdobradas em várias outras Marias registradas no caderno que será o primeiro marco da circularidade narrativa – como veremos à frente, o caderno infantil é presença marcante nas cenas cinematográficas que abrem e fecham a narrativa. O nome Maria refere-se, por um lado, à Maria-mãe: na cultura ocidental, referenciada como mulher sagrada, que gera o seu filho e dele cuida até sua morte. Essa Maria ensina ao filho a rotina, a tradição e o acompanha com o olhar a perder de vista. Ela parece tudo ver e sofre como testemunha muda da (própria) vida. Nesse sentido, Maria é única e, como tal, aurática; por outro lado, nasce já nas primeiras cenas do filme uma outra represen-


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tação de Maria – aquela que, pela mão, mudaria o mundo. Mas, a mudança fica no patamar do sonho – umbral da janela que apóia o caderno infantil. A realidade é o simples desdobramento das Maria: das Maria quaisquer, das Maria que perpassam os tempos da história ou das mulheres nordestinas – Maria José, Maria Lurdes, Maria Conceição, Maria Aparecida, Maria de Fátima, Maria das Dores, Maria do Carmo... As Maria plurais apenas se repetem, mas não têm força para a ruptura, tão-somente para a consolidação de algo que fixa a tradição. Assim, a palavra Maria, que se estende do título para desdobramentos internos do texto cinematográfico, sugere a coexistência de sentidos que são minimamente duplos, opostos e tencionais. Afinal, a vida Maria será uma e, portanto, aurática, ou múltipla e diluída em expressões de significado severino?5 A literatura brasileira já tem registrada em suas páginas a adjetivação que qualifica a vida nordestina. A alusão à obra de João Cabral de Melo Neto (1956) é subtexto, adensamento de significado, poeticidade intertextual. Afinal, “um título deve confundir as idéias, nunca disciplina-las” (Eco, 1985, p. 9). Vencido (?) o título, adentramos a obra. A mão que segura o lápis nos conduz para dentro do texto. A palavra no papel constrói o primeiro significado intratexto. Uma profusão de informações eclode na primeira cena: a mão que segura o lápis e escreve um nome no papel; a voz e o gesto abrupto da mãe que interrompem a ação de escrever da criança; a mudança de luz; o cenário externo/interno; afinal, é hora de realização de uma escritura6 e não de um simples registro fabular. A narrativa ou informação pura – vida de uma mulher nordestina – cede espaço para imagem, cor, movimento, som, forma, expressão poética de caráter universal. O umbral de uma janela é o elemento inicial e revelador – espaço em que se desenrola a primeira cena narrativa. De um lado, no interior da casa, a criança sobre um banquinho prolonga seu corpo para alcançar a folha do caderno, onde desenha seu nome: Maria José. A mãe avança

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Referência ao retirante Severino da obra Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1956) –que deixa o sertão nordestino em direção ao litoral num percurso de desolação humana.

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O termo escritura é aqui uma retomada de Roland Barthes (1974, p.124): “Ora, toda Forma é também um Valor; por isso, entre a língua e o estilo, há lugar para uma outra realidade formal: a escritura. Em toda e qualquer forma literária, existe a escolha geral de um tom, de um etos, por assim dizer, e é precisamente nisso que o escritor se individualiza claramente por que é nisso que ele se engaja”.

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para a criança e, com gesto brusco, a retira da janela. Não é hora de perder tempo, “fazendo nada”. O serviço da casa aguarda: bombar a água, varrer o terreiro, cuidar das roupas, socar o milho... A rotina é a alternativa necessária, o caminho único, ou ainda, a não-alternativa. Retirada do umbral da janela, espaço-metáfora de abertura para o conhecimento, a criança é afastada do mundo que tenta conquistar. É tolhida na busca de possibilidade do conhecimento pela palavra escrita. O registro de um nome da folha de papel pode ser entendido também como a busca pela definição da própria identidade. O gesto de buscar a identidade pela inscrição da palavra indica também um processo mais complexo, isto é, uma identidade descoberta, ou melhor, construída no ato de construir a palavra no papel. O nome próprio deixa de ser apenas um som pronunciado por alguém para ser um registro de próprio punho que descobre no gesto escritural um significado mais amplo – lembramos aqui o registro do homem primitivo e seus desdobramentos na história da humanidade: a palavra gravada na pedra, desenhada no pergaminho, sulcada no chumbo da imprensa, recriada e cifrada nos sites da internet, ou até, mais especificamente, na second life – como um mundo moderno de perdas e descobertas possíveis de identidades virtuais. A cena inicial é, portanto, a condensação de vários conjuntos de significados que vão se desdobrar ao longo do curta-metragem, permitindo, ao espectador, aprofundar a percepção, numa leitura amplificada do real. Penetrando o texto e atuando como leitores de relações plurissignificativas e multiculturais, encontramos a intersecção de sistemas informativos que se movimentam do universo da oralidade para a instituição letrada; da família para sociedade, do ritual místico para a luta pela sobrevivência, do entretenimento para o trabalho; da espontaneidade infantil para o comportamento adulto, regrado e exaustivo nas suas tensões cotidianas. Enfim, poderíamos dizer, de um movimento que se desloca do onírico – marcado por intensa luminosidade do azul do céu –


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para a realidade-terra, chão socado, varrido, seco pela ação inesgotável do sol. Do interior escuro e pobre da casa, destituída de mobiliário e adorno que não seja uma simples estatuária religiosa, para o exterior, aparentemente amplo do quintal da casa, o que se percebe é também um contraponto entre o espaço masculino e feminino. Para as mulheres: a menina, a criança, a jovem, a mãe... existe um espaço interno/externo, ou seja, o interior da casa e o quintal. Em ambos, observam-se, porém, as marcas da delimitação espacial. O primeiro, a casa, é uma estrutura construída com paredes calhadas, indicando o dentro e o fora. O quintal – apesar da amplitude espacial criada pela tomada de câmara em travelling e o ângulo em plongé que focaliza o céu, redimensionando-o pelo foco da câmara fixa, de baixo para cima – é um espaço aparentemente amplo que se revela, contudo, delimitado por uma cerca cerrada, para além da qual nenhuma das mulheres vai passar. Um olhar atento revela: quem ultrapassa o portão do cercado são apenas os homens, esses sim possuem a liberdade para deslocaremse para dentro ou para fora do espaço delimitado; todavia, encontram as mulheres apenas no espaço interno do quintal ou da casa. Espaço de ação na tela é espaço de vida. À mulher nordestina não é permitido um deslocamento que ultrapasse aqueles desenhados pelos homens que, por sua vez, representam a própria cultura em que estão inseridos. O espaço se inscreve também na relação com o tempo narrativo. Entre o dentro e o fora, o azul intenso do céu e a vermelhidão árida da terra, desdobram-se as seqüências narrativas. Em movimentos mágicos, para os olhos do espectador, a criança transforma-se em menina, em moça, em mulher, em velha – ciclo inevitável da vida. O tempo que passa é marcado por cortes cinematográficos que são intensificados pela técnica da animação – os passos das personagens são ritmados, delimitados, quase mecânicos; os movimentos são regidos por cadência restrita, repetitiva, quase sempre previsível.

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A técnica de composição fílmica esculpe o tempo e constrói uma forma de reinscrição da realidade que encanta os olhos e estimula a percepção. O desenvolvimento das personagens se expressa por meio de transformações que ocorrem no corpo feminino: índice da criança que cresce; da jovem que vira mulher; da mulher que se torna mãe; da mãe que abençoa os filhos, da mulher que se despede da mãe/avó – projeção de si mesma à beira do caixão da morte. Além disso, há também transformações que se expressam na paisagem do rosto das personagens: criança, mulher e velha. Nesta última, o peso da vida intensamente vivida constrói sulcos na pele, cansaço no olhar, adensamento nos gestos; o painel dos filhos em desfile, marcados pela repetição “bença mãe” é também um dos componentes de uma lógica que entra em confronto com a seqüencialidade e faz aflorar a circularidade. É como se o ciclo do eterno retorno se refizesse inúmeras vezes, insistindo em um desenho de índices de significados plurais. O tempo cíclico é aquele sem princípio e sem final, seu movimento é de retorno infinito sobre si mesmo. Serpente que abocanha a própria cauda. Se, todavia, a narratividade pressupõe uma memória, isso porque só se narra aquilo que, de alguma forma, já existiu, não se pode esquecer de que ao falar em ficção, a existência de um fato imaginário tem também a força da conquista da memória. Compreender essa questão parece-nos implicar uma reflexão um pouco ampliada sobre a temporalidade narrativa. Tempo e espaço são categorias narrativas possivelmente associadas a formas elementares de percepção ou mesmo de consciência lógica que se choca à idéia do absoluto ou transcendente. Se, por um lado, a linearidade ou sucessividade do tempo é compreendida como um tempo que progride em um único sentido, sem possibilidade de retrocesso, ele implica necessariamente, por outro, um traço de irreversibilidade. Esse é o tempo que determina o calendário, regulamenta o relógio, organiza a vida humana e marca a própria morte. Mas, apesar dessa forma de


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sistematização das descobertas e experiências humanas, os registros míticos e mesmo dos grandes pensadores da antiguidade como Platão e Aristóteles já discorreram sobre certas tradições de uma filosofia perene ou eterna, apoiada nessa outra forma de concepção do tempo que é a circularidade, ou na maneira de ver o tempo como um processo natural, cujo desenrolar se realiza em movimentos cíclicos e, portanto, repetitivos, O que significa que, a nós, homens, só nos cabe registrar aquilo que se repete ad infinitum, pois nada do que vivemos ou presenciamos é realmente novo, surpreendente. Como todo pôr-do-sol foi precedido pelo amanhecer, que por sua vez sucedeu as trevas, cuja existência é a denúncia de outro movimento cíclico que se constrói pelo nascimento da lua que sucede o pôr-do-sol, e assim a cadeia do dia e da noite; da primavera e do verão, do outono e do inverno, da lua cheia, minguante ou crescente – o tempo sagrado ou cíclico parece marcar-se sintomaticamente da ação fílmica de Vida Maria. As técnicas de animação criam ritmo e encadeamento de cenas, cuja harmonia dilui quase que totalmente a ação abrupta de transformação ocorrida com a passagem do tempo e crescimento/amadurecimento das personagens. Uma passagem quase lírica ocorre entre as imagens da criança que carrega a lata d’água na cabeça e a jovem que recebe a ajuda masculina. Na ajuda, a interface do contato humano e amoroso, social e erótico entre homem e mulher. Essa passagem cênica é marcada significativamente por um olhar singular de transformação da própria vida: da criança à jovem e dessa à mulher-mãe. No filme, é inegável falar em sucessividade dos fatos, mas é inegável também a consciência de que os fatos se repetem. Poderíamos dizer, com a retaguarda da imagem que a alteração ocorre pela mudança das cores e estampas na roupa feminina. A mulher continuará, no pilão, socando o milho e gerando filhos. Portanto, temporalidades linear e cíclica coexistem no texto. Em simultaneidade, elas constroem e desconstroem uma lógica dinâmica que ofe-

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rece vida e inquietação à narrativa. Na medida em que seus pressupostos não são fixos, mas apresentam um movimento contínuo e circular – lógica de composição que é, ao mesmo tempo, de característica temporal e espacial. A narrativa encerra linearmente uma história da mulher nordestina que nasce, cresce, amadurece e morre de forma trágica porque contida da mesmice do cotidiano, sem alternativas ou escapes. Ou, poderíamos dizer, que desenha nas ações, a mágica do eterno retorno. A vida é isso: a mulher que gera o filho será por ele sepultada, não há tragédia alguma nas ações, apenas o registro inevitável e universal da vida recolhida nas suas formas mais despojadas de sofisticação narrativa. As duas leituras possíveis do tempo construído na tela podem abrir também para a questão de que, no filme, nada muda: a situação inicial é exatamente a mesma do final. A afirmativa nos incomoda. Como não há mudança, se toda a composição se revelou insistentemente um conjunto de técnicas – magicamente manipuladas pelas mãos hábeis de um cineasta – para criar transformações cujo significado maior inscreve a imagem em movimento, construindo a estética da linguagem fílmica? Como afirmar uma fixidez, se o movimento é também encantamento na seqüência narrativa? Como pensar na estaticidade, se o filme narra a vida em desdobramentos contínuos? Enfim, que insatisfação é essa que nos envolve, quando as leituras possíveis se chocam com evidências de uma realidade geográfica, cultural e, por que não dizer, até universal? Os acontecimentos de nossa existência não devem ser pensados como um traçado de variantes totalmente previsíveis dentro da experiência humana? Em meio às inquietações que o filme nos propõe, ou mesmo impõe sem muitas alternativas, uma questão parece clara: não está na história como fábula aquilo que nos incomoda. Exatamente na constituição técnica da composição, domínio estético e, portanto, poético reside o que verdadeiramente nos interessa. Aqui, talvez, uma possível conclusão: o que se discute não é exatamente o que a tela


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expõe, mas aquilo que da tela repercute em nós, mágica inquietante que permanece em nossa mente: afinal, o que é a vida nordestina? Narrar é uma possível forma de intervenção na realidade. Ler, interpretar, reter conosco ou contar uma experiência é, enfim, um ato contínuo de provar a existência humana pela palavra.

Pareceristas

Referências

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BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e a história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1980.

Fábio Durão

CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: . et al. Teoria da literatura – formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976.

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BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos – O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974.

ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome da rosa. Trad. L. Z. Antunes e A. Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. EISENSTEIN, Sierguéi. O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, Haroldo. (Org.) Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Cultrix; Universidade de São Paulo, 1977.

Edilene Rocha Elena Vássina Fernando Segolin Helder Garmes Helio de Seixas Guimaraes

Maria Rosa Duarte de Oliveira Mário Gonzáles Marcos Piason Natali Marisa Lajolo Mauricio Santana Dias Nancy Rozenchan

Jaime Ginzburg

Olga de Sá

Juliana Loyola

Regina Lúcia Pontieri

FLUDERNIK, Monika. Towards a ‘Natural’ Narratology. London: Routledge, 2000.

José Nicolau Gregorin Filho

Roberta Barni

JOLLES André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.

Lilian Lopondo

PESSOA, Fernando. A rosa de seda. In: . Obra em prosa de Fernando Pessoa (Ficção e teatro). Intr. Org. e Notas de Antônio Quadros. Men Martins: Europa-América, 1986.

Lúcia Granja

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

Sylvia H.T. de Almeida Leite


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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser enviados em CD ou disquete (Windows 6.0 ou compatível) e em três vias impressas, sendo uma com identificação: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo) e temática escolhida. O disquete ou CD deve trazer uma etiqueta indicando o(s) autor(es) do trabalho e o programa utilizado. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • Os trabalhos – CD ou disquete e vias impressas – deverão ser enviados pelo correio para o endereço indicado a cada número. • Não serão aceitos, em nenhuma hipótese, trabalhos enviados pela internet. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não-doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • O trabalho deve obedecer à seguinte seqüência: – Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); – Nome(s) do(s) autor(es), à direita da página (sem negrito ou grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco


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para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla. Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave. Abstract – mesmas observações sobre o Resumo. Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave. Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver. Parágrafos: usar adentramento 1 (um); Subtítulos: sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e

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página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. Referências: devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz (1982, p. 37), “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” • Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.


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• Citação de vários autores

• Dissertação e tese

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

MACHADO, Micheliny Verunschk Pinto. Confluências entre João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello Breyner Andersen: poesia das coisas e espaços, 2006. Dissertação de Mestrado – Programa de Estudos Pós-graduados em Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992)

• Artigo de periódico GOBBI, Márcia Valéria Zamboni. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37-57, 2004. • Artigo de jornal

• Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire (1759, p.87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148): Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...]

Alguns exemplos de Referências • Livro FABRIS, Annateresa. Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1987. • Capítulo de livro PALO, Maria José. A crônica da vida: Memorial de Aires, Machado de Assis. In: OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte de (Org.). Recortes machadianos. São Paulo: EDUC/ FAPESP, 2003. p. 257-73.

TEIXEIRA, Ivan. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 08 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, Tânia Franco. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: Anais do II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – INTERNET MARTINHO, Fernando. Depois do modernismo, o quê ? o caso da poesia portuguesa. Rio de Janeiro: Revista Semear 4. Disponível em: <A href=”http://www.letras. puc-rio.br”>http://www.letras.puc-rio.br</A>. Acesso em 22 jun. 2006.

OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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