Edição Nº 11 - São Paulo, 2007

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ISSN 0103-6963

REVISTA BRASILEIRA DE

Josalba Fabiana dos Santos, José Antonio Segatto, Katia Aily Franco de Camargo, Luciana Murari, Maria Célia Leonel, Paulo César Silva de Oliveira, Rita Terezinha Schmidt, Telma Borges

Literatura Comparada

Celdon Fritzen, Eloá Heise, Joana Luíza M. de Araújo,

REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

2007

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abralic associação brasileira de literatura comparada


REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

S達o Paulo 2007


Diretoria

Presidente Vice-presidente

A B R A L I C 2007/08

Sandra Margarida Nitrini (USP) Helena Bonito Couto Pereira (Mackenzie)

1º Secretária

Maria Célia Leonel (Unesp)

2º Secretária

Andrea Saad Hossne (USP)

1º Tesoureira

Vera Bastazin (PUC-SP)

2º Tesoureira

Orna Levin (Unicamp)

Conselho

Eduardo Coutinho (UFRJ)

REVISTA BRASILEIRA DE

Gilda Neves Bittencourt (UFGS) José Luís Jobim (UERJ/UFF) Lívia Reis (UFF) Ívia Iracema Duarte Alves (UFBA) Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto (USP) Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC) Rita Terezinha Schmidt (UFGS)

Suplentes

Literatura Comparada

Márcia Abreu (UNICAMP) Zênia de Faria (UFG)

Conselho editorial

Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel.

ABRALIC CNPJ 04.901.271/0001-79 Universidade de São Paulo (USP) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Avenida Prof. Luciano Gualberto, 403 Butantã – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3091-4312 E-mail: mschmidt@usp.br

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.

São Paulo

n.11

p.1-277

2007


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2007 Associação Brasileira de Literatura Comparada

Sumário

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editoras

Apresentação Maria Célia Leonel Ívia Alves

Maria Célia Leonel Ívia Alves

Comissão editorial

Sandra Margarida Nitrini Helena Bonito Couto Pereira Andrea Saad Hossne Vera Bastazin Orna Levin

Preparação/Revisão

Nelson Luís Barbosa

Revisão do inglês

Lilia Loman

Diagramação

Estela Mleetchol

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991v.2, n.11, 2007 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)

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Artigos A literatura comparada nesse admirável mundo novo Rita Terezinha Schmidt

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Weltliteratur, um conceito transcultural Eloá Heise

35

Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista Paulo César Silva de Oliveira

59

Nação: civilização e barbárie Josalba Fabiana dos Santos

77

Ficção e ensaio Maria Célia Leonel José Antonio Segatto

105

O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista Joana Luíza Muylaert de Araújo

131

“A vida e os prêmios que ela comporta”: darwinismo social e imaginação literária no Brasil Luciana Murari

155

A ilustração viajante e as suas sombras Celdon Fritzen

191

As representações de Adolphe D’Assier da gente e da terra brasileiras publicadas na Revue des Deux Mondes Katia Aily Franco de Camargo

227


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Apresentação

Jogos de memória e identidade em O último suspiro do Mouro, de Salman Rushdie Telma Borges

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Pareceristas

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Normas da revista

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Este número da Revista Brasileira de Literatura Comparada tem como tema “Literatura e Saberes”. Além, naturalmente, de pautar-se pela temática proposta, a aceitação dos artigos dependeu da existência de estudo comparativo, de modo que essa foi a primeira questão apresentada aos pareceristas (relacionados neste número) que colaboraram na seleção dos artigos, aos quais as editoras agradecem a contribuição generosa. Selecionados os artigos, foi realizada a sua ordenação que teve como critério amplo a apresentação inicial de textos de caráter mais genérico. Os títulos dos artigos – “A literatura comparada nesse admirável mundo novo”; “Weltliteratur, um conceito transcultural”; “Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista”; “Nação: civilização e barbárie”; “Ficção e ensaio”; “O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista”; “‘A vida e os prêmios que ela comporta’: darwinismo social e imaginação literária no Brasil”; “A ilustração viajante e as suas sombras”; “As representações de Adolphe D’Assier da gente e da terra brasileiras publicadas na Revue de Deux Mondes”; “Jogos de memória e identidade em O último suspiro do Mouro, de Salman Rushdie” – já apontam tal direção. Em “A literatura comparada nesse admirável mundo novo”, dedicado à memória de Tania Franco Carvalhal, Rita Terezinha Schmidt reflete sobre os vínculos “entre globalização, violência, miséria humana e degradação ambiental”, tendo como ponto de partida a barbárie com que convivemos, para debater o papel dos estudos literários nesse universo. Desse modo, retomando a discussão sobre a ambivalência das novas tecnologias de informação, pro-


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põe a intervenção da literatura comparada na rede virtual, trazendo o diálogo, o respeito à alteridade e à diversidade de línguas e culturas. O segundo artigo aqui publicado, de Eloá Heise, rastreia o percurso de formação do conceito de Weltliteratur em Goethe, para quem havia um denominador comum ou uma dimensão comunicativa (um conceito transcultural, portanto) entre as literaturas nacionais a ser levado em consideração. Levantando as diferentes acepções do termo em Goethe, aponta aquelas que se relacionam com conceitos contemporâneos ao mundo globalizado. Paulo César Silva de Oliveira, por sua vez, examina, nas manifestações multiculturalistas do comparatismo contemporâneo, a visão da literatura como um “campo de saber privilegiado acerca do mundo e da sociedade”. Investiga pontos de diálogo “entre texto literário e sociedade, texto crítico e criação artística” na atual produção comparatista. Em “Nação: civilização e barbárie”, Josalba Fabiana dos Santos reflete sobre as relações entre a civilização e a barbárie nas obras de Cornélio Penna – em especial em A menina morta – e Sarmiento em Facundo. Os vínculos entre a civilização e a barbárie manifestam-se nesses dois escritores, de países e tempos diversos, de modo diferente: Cornélio Penna, afastando-se do processo desenvolvimentista da década de 1950, procura investigar a violência na sociedade brasileira escravocrata da segunda metade do século XIX. Sarmiento, escrevendo no século XIX, idealiza seu país como nação civilizada de acordo com os preceitos da Europa. Os autores de “Ficção e ensaio” – Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto – discutem a recepção, pela crítica, de Os sertões como obra literária e a incorporação de Grande sertão: veredas como ensaio. O exame de vários estudos sobre os dois livros permite acompanhar como o texto de Euclides da Cunha, por mais de um século, é visto como obra compósita, fazendo parte, simultaneamente, da literatura, da história e da ciência, entendimento lançado pela crítica logo após a primeira edição. Do mesmo

Apresentação

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modo, observa-se como o romance de Guimarães Rosa começa a ser considerado como ensaio ou investigação sobre as relações de poder no país. Essas considerações da crítica levam à reflexão sobre a indistinção entre história e literatura, ciência e ficção. Joana Luíza Muylaert de Araújo, em sua investigação sobre a crítica machadiana, verifica que os desacordos acerca de sua obra, iniciados com os estudiosos contemporâneos do escritor (especialmente Silvio Romero) ainda merece atenção. Para a articulista, a base da polêmica é o modo peculiar de Machado manifestar o nacionalismo e propõe que os assim considerados desacertos da crítica naturalista sejam examinados “como paradoxos constitutivos de todo trabalho rigoroso de interpretação” dentro de um determinado contexto histórico. Além do nacionalismo, outros temas são examinados como a mestiçagem e a representação literária. Em “‘A vida e os prêmios que ela comporta’: darwinismo social e imaginação literária no Brasil”, Luciana Murari examina a maneira como o darwinismo social foi diversamente incorporada por escritores brasileiros na passagem do século XIX para o século XX. Se Machado de Assis e Lima Barreto manifestaram uma posição crítica perante tal conceito, outros autores, como é o caso de Euclides da Cunha, tomaram o darwinismo como princípio que permitiria o entendimento dos “conflitos sociais e da relação do homem brasileiro com a natureza do país”. Desse modo, tem-se uma reflexão sobre a comunicação entre literatura e ciência, seus significados e implicações ideológicas na época. O artigo de Celdon Fritzen versa sobre as contradições encontradas no modo de representação da Amazônia em relatos de viagem de estrangeiros. Os relatos examinados atêm-se, especialmente, à cultura dos povos da mata, a seus mitos, revelando a maneira como o pensamento iluminista evidencia a superioridade do conhecimento científico e a subalternidade dos habitantes da Amazônia como os indígenas. Ressaltam, dessa forma, procedimentos de


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reconstrução da tradição de relatos anteriores, pela crítica ao que era considerado como fantasia. Outro trabalho sobre relato de viagem é o de Katia Aily Franco de Camargo que, em seu estudo sobre as representações do Brasil feitas pelo francês Adolphe d’Assier na Revue des Deux Mondes no século XIX, mostra uma visão ampla da perspectiva do publicista. A memória e a identidade, no romance O último suspiro do Mouro em Salman Rushdie, são os temas analisados por Telma Borges. Na obra, a identidade é construída por meio da memória, apresentada como uma rede em que o esquecimento forma os espaços vazios. Com os artigos publicados, as editoras e a comissão editorial do décimo primeiro número da Revista Brasileira de Literatura Comparada esperam fornecer aos leitores a oportunidade de acompanhar algumas pesquisas realizadas no âmbito do comparatismo no que se refere à literatura e saberes.

A literatura comparada nesse admirável mundo novo Rita Terezinha Schmidt*

RESUMO: No quadro da barbárie entranhada na história do presente, apresento reflexões em torno de relações entre globalização, violência, miséria humana e degradação ambiental, fazendo um contraponto dessa realidade com os avanços do conhecimento na área dos estudos literários para indagar sobre a sua (in)eficácia em termos de intervenção na prospecção de um mundo distópico. Nessa linha de argumentação, retomo o debate em torno das novas tecnologias de informação e do impacto de suas redes de poder na relação ambivalente com a democratização do conhecimento. Argumento que a inserção da literatura comparada na rede virtual deve contemplar os princípios da alteridade e da razão imaginativa e dialógica inerentes à prática comparatista e que conferem aos seus saberes singularidade e importância ímpar na luta pela sobrevivência e respeito à diversidade das línguas e das culturas humanas, o que, por suas implicações, constitui uma ação de preservação da vida.

Maria Célia Leonel Ívia Alves

PALAVRAS-CHAVE: Globalização, conhecimento, comparatismo,

diversidade, resistência. ABSTRACT:

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Before the picture of barbarism entrenched in contemporary history, I here present a reflection upon the relations between globalization, violence, human destitution and environmental disasters, making a counterpoint between such a reality and the advances in the field of literary studies so as to raise the question of its (in)efficacy regarding an intervention in the prospect of a dystopian world. Following this line of argument, I draw attention to the debate about the new information technologies and the impact of their webs of power on the ambivalent relation with the democratization of knowledge. I argue that the inclusion of comparative literature in the world wide web must follow the principles of alterity and of imaginative and dialogic reason inherent to the comparatist practices,


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which confer their bodies of knowledge a singular and unique importance in the struggle for survival and respect for the diversity of languages and human cultures, whose very implications make it an action engaged with the preservation of life. KEYWORD:

Globalization, knowledge, comparatism, diversity,

resistance.

Para Tania Franco Carvalhal In memorian “Là où il n´ya a pas d´espoir, il faut l´inventer.” (Albert Camus)

O desconcerto e a perplexidade diante de acontecimentos da história contemporânea são tropos do nosso presente, um tempo sombrio que nos leva a desacreditar em nosso poder de resistir à maquinaria de violência, real e simbólica, que produz o desastre cotidiano do humano. Uma série de fatos tem interligado e entrelaçado a vida individual, direta ou indiretamente, ao significado de experiências coletivas em diversos lugares do planeta, e seus efeitos têm causado impacto profundo na percepção de nosso pertencimento a uma comunidade humana e na nossa consciência de que as lições do século XX – as duas Grandes Guerras Mundiais, Auchwitz e Hiroxima – não foram suficientes para erradicar a barbárie. Pelo contrário, no novo milênio, ela não se limita aos campos de guerra, mas se dissemina assustadoramente, sob várias formas, nas mais diversas esferas da vida cotidiana, o que nos leva a suspeitar de que não vivemos apenas uma crise de paradigmas, atribuída a novos valores que emergem no rastro de recentes tecnologias informacionais e processos econômicos globalizantes delas decorrentes, mas sim uma revolução de dimensões planetárias na qual o que está em crise, talvez mais do que em qualquer outro momento histórico, é a nossa concepção do humano, do valor da vida, dos seres e do planeta.

A literatura comparada nesse admirável mundo novo

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Para Aijaz Ahmad (2002, p.236), o termo “globalização” é altamente ideológico e, como tal, refere-se a várias coisas: 1) ao sistema do capital imperialista, o único sistema que sobrevive, depois do colapso da União Soviética e do sistema de estados que representava; 2) à mobilidade do capital e das mercadorias, ao poder das tecnologias de comunicação e de transporte com alcance global, ao capital financeiro e da especulação, à capacidade das mercadorias culturais novas de se desviar dos aparatos nacionais da educação e informação, à ascensão de sistemas de produção que pode ser fragmentado e localizado em países diferentes; 3) como um “eufemismo” para o fato de que um punhado de arranjos institucionais imperialistas – o Banco Mundial, o FMI, o GATT etc., – estejam agora determinando as políticas nacionais em todo o assim chamado Terceiro Mundo; 4) à penetração de toda a produção pelo capitalismo e, portanto, por todo o mercado mundial.

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Stuart Hall (2003, p.58) também defende que a globalização não é algo novo ao afirmar que a exploração, a conquista e a colonização européias foram as primeiras formas de um mesmo processo histórico secular, denominado por Marx com “a formação do mercado mundial”.

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Enquanto o fenômeno da globalização1 não é algo fundamentalmente novo (King, 1990),2 a nossa consciência global o é, pelo fato de que hoje as interconexões e interdependências políticas, econômicas e culturais entre o local, o nacional e o mundial têm implicações nos processos históricos localizados, nas formas de vida coletiva e no reconhecimento de que todos compartilhamos um contexto permeado por indícios de que está havendo algo perturbador em curso, com sinais alarmantes para o futuro. De um lado, recrudescem as ações terroristas insufladas por fundamentalismos, seja por vias institucionais, isto é, com a sanção do Estado, seja pela ação organizada de grupos insurgentes da sociedade civil, ações que fortalecem a xenofobia e o racismo, em suas diversas formas de violência, desde atentados contra a população civil, genocídios perpetrados em nome das chamadas “limpezas étnicas”, rechaço violento às ondas migratórias de grupos humanos marginalizados, à exclusão de segmentos inteiros de populações de direitos de acesso a bens públicos e benefícios da vida social, incluindo a educação e a saúde. De outro lado, cresce assustadoramente a miséria humana. A título de exemplo, basta evocar o quadro dramático dos povos africanos do Sub-Saara, assolados pela fome em terras devastadas (situação crônica do Sudão, do Congo e, mais recentemente, de Darfur) e sofrendo ainda os efeitos da longa história de dominação colonial que se arrasta sob a forma de ações predatórias de parte de impérios corporativos europeus, como no caso da indústria farmacêutica, para mencionar um exemplo, tal como o recente filme do brasileiro Fernando Meireles, O jardineiro fiel, nos mostrou. No caso de Bangladesh, milhares de pessoas são envenenadas diariamente pelo consumo de água de poços artesianos contaminadas pelo arsênico natural, sem que os países ricos, com suas organizações humanitárias, tenham se disposto a encontrar uma solução para a crise. É oportuno mencionar que no ano de 2005 havia a estimativa de que três milhões de crianças morreriam de malária no continente africano, por falta de acesso aos recursos de


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prevenção e de tratamento, disponíveis em qualquer país do chamado Primeiro Mundo, sem falar na propagação, em escala continental, da Aids, por vários fatores, dentre eles o custo de medicamentos patenteados pelos laboratórios do Primeiro Mundo. Acrescentem-se a isso os dados fornecidos pela Unicef sobre o acesso à educação na África: são poucas as meninas em idade escolar que obtêm o consentimento das famílias para se matricularem na escola, realidade que se agrava pelo fato de que a maioria das que passam pelas primeiras séries desiste ao entrar na puberdade por falta de condições de higiene, uma vez que as escolas não oferecem latrinas, água ou esperança de privacidade.3 Por ocasião da tragédia do tsunami que se abateu sobre vários países da Ásia em dezembro de 2004, o diretor do Earth Institute da Universidade de Columbia, o economista Jeffrey D. Sachs (2005), observou que enquanto todos são vulneráveis à fúria da natureza, são os pobres que sofrem a morte em massa, pois além do fato de os sofisticados sistemas de monitoramento do tempo e de alerta não cobrirem as zonas dos países periféricos por estarem a serviço dos países afluentes, na periferia a grande massa da população é pobre, vive em zonas mais desprotegidas e sem moradias estruturalmente adequadas para enfrentar catástrofes naturais. Ou seja, a geografia da catástrofe sinaliza a existência de um sistema de classe que acaba determinando quem morre e quem sobrevive. Após a devastação do furacão Katrina que se abateu sobre o sul dos Estados Unidos em 2005, pode-se acrescentar que a geografia referida por Sachs não se limita aos países do Terceiro Mundo, pois a tragédia não somente expôs o bolsão de pobreza numa nação rica, mas também revelou o descaso governamental em relação a ações eficientes de ajuda à camada da população mais carente, majoritariamente de etnia negra. A questão da degradação do meio ambiente e o aquecimento global também compõem o cenário da barbárie na medida em que a luta pela preservação dos recursos naturais não encontra ressonância suficiente para alterar as pro-

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A reportagem da jornalista Sharon LaFraniere, de Balizenla, Etiópia, saiu no The New York Times em 23 de dezembro de 2005. Em seu relato, ela narra a experiência da menina Fatimah Bamun, um das três meninas numa escola de 178 alunos na Etiópia, que foi além da 3a série. Segundo a Unicef, há 24 milhões de meninas africanas privadas do ensino fundamental em razão da falta de condições higiênicas nas escolas onde o banheiro coletivo é na moita espinhosa, à vista das salas de aula.

Um dado recente, divulgado pela mídia, é o aumento do nível do mar em 34 cm na orla dos países do Atlântico Norte. Em vista do processo de descongelamento de partes da calota polar que cobre a Groenlândia.

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jeções pessimistas sobre o futuro da vida no planeta, ainda neste século. Segundo dados da Academia Nacional de Ciências da Inglaterra de dezembro de 2005, oitocentas espécies (entre aves, mamíferos, anfíbios e alguns grupos de répteis) correm risco iminente de extinção, o que significará um desequilíbrio ecológico com conseqüências imprevisíveis para a vida vegetal, animal e humana. Também cabe citar o fenômeno do aquecimento global, em sua marcha irreversível, visto que a conscientização sobre as alterações climáticas pela emissão de gases resultante do descontrole do desenvolvimento industrial4 parece não sensibilizar parte dos governos de países ricos, considerados os maiores poluidores, que se recusam a ratificar o protocolo de Kyoto. Por sua vez, os governos de países em desenvolvimento alegam que precisam ter também a sua chance para o progresso, numa posição que beira a irresponsabilidade ao revelar uma falta de vontade política e ações efetivas para impedir a deterioração da vida no planeta. Celebra-se a flexibilização das fronteiras em relação à circulação de pessoas, de produtos e de informação, mas dificilmente se levanta a questão da ausência de fronteiras políticas e geográficas para a escalada da pobreza, da tortura, do autoritarismo, da pedofilia, da destruição do meio ambiente, da violação dos direitos humanos e do desrespeito à vida, o que quer dizer que, no presente, nenhum Estado pode assegurar aos seus cidadãos nenhuma garantia de imunidade e integridade diante das formas de violência que atormentam a experiência do cotidiano e que sinalizam a falência do humano. A pergunta que se impõe é se poderíamos atribuir esses fenômenos globais aos efeitos da dominação histórica do capital e à configuração de uma nova ordem mundial, hoje definida pela emergência do capitalismo corporativo e seus processos de globalização, isto é, práticas de fluxo e de especulação financeira que orientam a expansão, em escala mundial, de um mercado de produção e consumo que, sob a alegação de livre acesso e da democracia sem fronteiras, reforça o enriquecimento de uns e a miséria de outros.


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Em parte poder-se-ia responder afirmativamente, porque os processos de universalização do capitalismo ocidental, particularmente em sua conjugação do pensamento liberal com uma economia política que se alimenta das desigualdades para colonizar nações e povos num processo brutal de dominação e subordinação à lógica do capital, têm contribuído e determinado certas condições políticas, sociais, ambientais e existenciais que geram, fomentam e aceleram a barbárie sistêmica do nosso tempo. Muito da atual configuração geopolítica do mundo é resultado das ondas revolucionárias nacionalistas contra o colonialismo ocidental que sacudiram o planeta após a Segunda Guerra Mundial. Mas, se por um lado, os projetos revolucionários coletivos tiveram êxito com o desmembramento dos velhos impérios europeus, por outro lado, a era pós-colonial não significou a descolonização do Terceiro Mundo, no sentido pleno do termo, nem assegurou a soberania e autonomia das nações periféricas que acabam sucumbindo à centralidade do Ocidente, o que se traduz como hegemonia do capital high-tech provindo de nações corporativas, em torno do qual toma forma um novo poder imperial. Esse poder, em sua forma totalizadora e que simplesmente se deslocou do mundo europeu para a potência norte-americana, não deixa de nutrir-se de formas de pensar, de ser e de agir norteados pela subjetividade racional que caracterizou o projeto da modernidade, contraditório quanto a seus ideais e sua prática na medida em que impôs o império da razão como vontade-poder, no rastro do qual se forjaram os totalitarismos, reducionismos, racismos, sexismos e outras violências da história moderna.5 A diferença é que, agora, o novo imperialismo do eu como vontade-poder unifica o mundo pelo capital pósindustrial na forma de ideologias políticas de informação, circulação e consumo, um mundo unitário – nossa casa é o mundo – que a realidade não confirma, pois essas ideologias invasivas operam sob a determinação de estruturas econômicas de dominação, base dos jogos de poder, conflitos de interesses, hierarquias, violências, misérias e ex-

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É preciso lembrar que a Revolução Industrial na Europa foi alimentada com o óleo de focas e baleias, em caçadas predatórias no Ártico Sul.

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clusões que definem o nosso tempo. Nesse contexto, ressurgem com vigor os vários fundamentalismos, de caráter nacionalista, religioso e étnico e suas tecnologias de morte. Ninguém poderia prever que a queda do muro de Berlim em 1989 significaria a proliferação de outros tantos muros, reais e imaginários, em vários continentes, o que parece confirmar a tese do fim de toda e qualquer utopia. No deslocamento do campo dos acontecimentos para o campo acadêmico da produção de conhecimento, vivemos uma realidade diversa. Uma série de transformações profundas do conhecimento nas últimas décadas faz do tempo presente, particularmente na área das Humanidades, um momento extraordinariamente rico para elaborar novos modos de compreender os nossos objetos de estudo, de interpretá-los como produtos capazes de suscitar questões de absoluta relevância – teórica, histórica, estética e ética – e de, assim, problematizar a ordem da cultura como lugar de dissenso, de construção de identidades e sociabilidades nem sempre afiliativas, portanto como modo de produção e efeito de relações sociais no contexto de realidades vividas e imaginadas, permeadas pela multiplicidade de vontades e poderes. A partir do estruturalismo, houve uma explosão de correntes teóricas que, a par de suas coordenadas materiais diferenciadas de produção, desestabilizaram modos tradicionais de investigação científica e contribuíram decididamente na abertura epistemológica dos campos disciplinares. Nas últimas décadas, o trânsito interdisciplinar permitiu conjugar saberes antes isolados por critérios normativos e molduras inflexíveis, fomentando um intenso debate intelectual sobre territórios constituídos e espaços institucionais tendo em vista o arquivo dos conhecimentos ocidentais e metropolitanos e as questões de poder implicadas em constelações conceituais, particularmente a partir de inserções políticas e geográficas específicas como a constituição das identidades das minorias e das sociedades periféricas do assim chamado Terceiro Mundo. A expansão do marxismo na articulação dos novos estudos


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culturais, os desdobramentos do feminismo nos estudos de gênero que, por sua vez, abrem as comportas para os estudos queer e estudos da masculinidade, o desenvolvimento das teorias pós-coloniais em contraponto crítico à modernidade e seus discursos, a emergência da categoria de raça e etnia como categorias analíticas a partir das quais se constitui um outro objeto de estudo definido como “branquitude”, as revelações da desconstrução de que o binarismo é como algo colado à nossa pele, mas que devemos procurar escapar a todo custo, são alguns dos elementos da voltagem crítica que hoje permeia as Humanidades. Mesmo que o quadro da teoria contemporânea não se esgote nos desdobramentos apontados aqui e que se reconheça nos seus discursos críticos a conjugação, não raro contraditória, de elementos conservadores e progressistas, até porque a teoria é o ancoradouro de interesses muitas vezes conflitantes, o cenário permite constatar que a teoria está, mais do que nunca, direcionada para o que foi excluído pela “alta teoria” como processos de subjetivação, constituição de identidades e a natureza do político. Esse fato nos leva a pensar que a área das Humanidades está se redimensionando e se revitalizando, na medida em que seus discursos começam a se afastar de certo diletantismo beletrista, fato que coloca em relevo o seu potencial como locus de produção vital de significados com os quais podemos fazer sentido e gerar conhecimentos sobre as contingências do humano, suas heterogeneidades e produtividades no contexto das materialidades históricas que determinam as formas de vida social, nas quais ocorrem os embates pelo direito à voz, à liberdade, à justiça, bem como ao desejo de identidade. Ao se politizar, poder-se-ia dizer que a teoria tem caminhado em direção à descolonização de seu território, colocando em pauta lições definitivas sobre as relações saber/poder e poder/saber inscritas não somente no etnocentrismo e seus valores universalistas presumidamente neutros, mas também nas práticas dos sujeitos e das instituições. E, nesse sentido, pode-se dizer que a teoria deixa de ser um corpo de abstrações dissociadas da cons-

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6 No Colóquio Internacional da Associação Senegalesa de Literatura Comparada, realizada em Dakar, na Universidade de Cheikh Anta Diop, o professor Gorgui Dieng, da referida Universidade, levantou uma série de questionamentos a respeito do conceito do universal e sua apropriação pelos centros metropolitanos em discursos críticos que tendem a subestimar a literatura produzida na África. Em seu trabalho “Universality and topicality in the African novel”, Dieng (2003, p.52) afirma: “many western literary critics and publishers give credit to only the breed of conformist novelists, who abide by the set of standars of what they call universal novel writing; such standards being thematic, stylistic and narratological ones. But what does universality, consciously or unconsciously, mean in the minds of its advocates and users? And why do such people give to the

7 Jonathan Culler (1997, p.15) denomina “teoria” um gênero heterogêneo composto por uma variedade de textos atrelados a discursos e atividades distintas que, em suas palavras, “extrapolam a moldura disciplinar dentro da qual seriam normalmente avaliados e que ajudaria a identificar suas sólidas contribuições ao conhecimento”. Assim, esses textos não dizem respeito a um domínio específico, são na realidade uma intricada mistura. Por exemplo, a teoria da literatura hoje já não trata especificamente da avaliação de mérito de textos literários ou do aperfeiçoamento do poder interpretativo, pois inclui textos de Saussure, Gadammer, Freud, Marx, Nietzsche, Lacan, Derrida, Lyotard, entre outros.

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ciência de realidades vividas para abrir um espaço para a reflexão sobre as determinações que constituem seus discursos e suas formações ideológicas, particularmente as polêmicas entre universalidade e particularidade,6 conceitos em torno dos quais convergem as grandes discussões sobre valores e sobre a democratização da cultura. Na teoria da literatura repercutem, de forma visceral, os deslocamentos conceituais do campo multidisciplinar definido simplesmente como “teoria”,7 com a crítica aos parâmetros do próprio pensamento crítico que respaldou a construção da tradição literária, do conceito de literatura, da representatividade de cânones literários e de critérios de julgamento sobre valor estético. Como conseqüência direta desse questionamento que, em última análise, traduz um ceticismo epistemológico acerca de verdades instituídas de forma inquestionável porque referenciadas em modelos universais – por exemplo, paradigmas de tradição, de texto, de leitura, de gosto, de moral, de identidade e de valor –, podemos apontar dois desdobramentos fundamentais, repetindo o que já é consenso na área: 1) a literatura deixa de ser uma categoria autônoma, de caráter ontológico, para ser vista como fenômeno histórico, contextualizado, portanto inserido nos modos de produção materiais e processos sociais reais; 2) as fronteiras hierárquicas que originalmente definiram o campo das Humanidades modernas como a alta cultura e a cultura menor, popular ou de massa, a escrita erudita de elite e as formas orais no vernáculo tendem a se diluir, o que significa dizer que o conceito de literatura se descola do pensamento binário e se expande para incluir novos objetos e suscitar novas questões teóricas e de pesquisa sobre história literária e história da cultura, sobre mecanismos de constituição e institucionalização de cânones, incluindo-se aqui a problematização da função da textualidade e da função poética, comunicativa e social da linguagem, em contextos históricos específicos. Os acirrados debates sobre literatura, cultura e identidade, particularmente no Brasil e em países periféricos, deixam à mostra os diversos alinhamentos que emanam de


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posições de sujeitos situados no espectro da teoria, do que resulta um confronto saudável de valores que aguça a sensibilidade e o senso de responsabilidade com relação às demandas do conhecimento e às realidades prementes do corpo social. Pode-se dizer que a doxa do pensamento crítico conservador voltado à “alta” textualidade, que lamenta o estado atual da arte como o resultado tanto de um descontrole de paradigmas de referência sob o efeito da virada interdisciplinar quanto de uma ideologização de práticas que coloca em risco a sobrevivência da literatura, cede terreno diante dos questionamentos teóricos contemporâneos, em que a emergência do marginal pressiona os limites de tradições culturais – a nacional e a ocidental – forçando, nesse processo, o reconhecimento da localização geográfica como fator preponderante nos processos de produção de conhecimento. Assim, se multiplicam as vozes de dissenso em discursos teórico-críticos produzidos no âmbito dos estudos subalternos, estudos de minorias e estudos pós-coloniais os quais, sob o imperativo de rechaçar o binarismo histórico que norteou os estudos literários tradicionais, introduzem novos paradigmas de análise por meio de categorias como gênero, raça, classe, etnia, nacionalidade, orientação sexual, entre outros. Sob a influência do gesto desconstrutor, tais discursos reivindicam seu protagonismo teórico-cultural na medida em que se querem estrategicamente compromissados com a noção de que a literatura, em sua heterogeneidade de formas e realizações, tem uma função crítica importante na produção de saberes, nos processos de emancipação e na formação de competências de viver. Assim, o grande desafio da teoria literária, no contexto da diversidade de identidades multiculturais, reside no resgate do potencial libertário do conhecimento e de uma reflexão crítica para muito além do projeto moderno de bem-estar social que operou a redução do outro pela instrumentalização da razão e domesticação das identidades. Considerando o conjunto de questionamentos, os deslocamentos epistemológicos e o foco que definem hoje as tendências do conhecimento na área das Humanidades em

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paradigm so much importance? When using the word universal, do they include all the different sections, poor and rich, developed and underdeveloped, of humankind, or do they in actual fact have in mind only one priviledged section? In other words, whose preoccupations, themes and stylistic standards are viewed as universal ones and subsequently ascribed the right to prop up universality?” [“muitos editores e críticos literários ocidentais valorizam apenas os romancistas conformistas, que se atêm a um conjunto de modelos daquilo que chamam escrita universal do romance; mesmo que estes modelos sejam temáticos, estilísticos e narratológicos. Mas o que universalidade, consciente ou inconscientemente, significa na cabeça de seus defensores e usuários? E por que tais pessoas dão tamanha importância para esse paradigma? Ao usar a palavra universal, incluem todos os diferentes grupos, pobres e ricos, desenvolvidos e não-desenvolvidos, da humanidade, ou consideram, na verdade, apenas um grupo privilegiado? Em outras palavras, de quem são as preocupações, os temas e padrões estilísticos considerados como universais e legitimado com o direito de sustentar a universalidade?”].

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relação ao cenário apocalíptico do presente, o que se constata é um enorme descompasso, até mesmo um abismo, entre o campo intelectual e os rumos atuais da história humana num mundo que pode ser definido, segundo Shakespeare, em seu Hamlet, como a world out of joint. A questão que se coloca é: por que o conhecimento é tão ineficaz para intervir e alterar a configuração dessa história? Por que o radicalismo da inteligência crítica não permeia a educação responsável pela capacitação das sociedades a reconhecerem os seus processos históricos e a efetivarem ações que favoreçam a solidariedade entre elas de forma a construir um mundo melhor? Devemos acreditar de vez que o conhecimento e a realidade dos fatos constituem dois mundos à parte? Ou estaríamos diante de um admirável mundo novo? A minha evocação ao romance de Aldous Huxley, Admirável mundo novo, não é gratuita. Na visão perspicaz da tirania sinistra e calculista que domina a sociedade do futuro, representada no romance de 1932, os cidadãos-vítimas são receptivos à sua própria servidão, revelando mais do que simplesmente passividade, mas cumplicidade involuntária a um sistema que os destitui de autodeterminação, incluindo a própria vontade de desejar algo além do que a realidade lhes oferece: é o regime da felicidade universal em que até os intelectuais perderam completamente a sua capacidade de resistência ou intervenção. A visão profética de Huxley infelizmente se atualiza na história contemporânea, pois o seu anunciado mundo novo já está aí à nossa volta, como a nos dizer, de forma irônica, que os avanços do conhecimento não vem, necessariamente, atrelados e tampouco significam avanços da civilização. De que maneira a literatura comparada pode intervir na configuração dessa distopia é o que pretendo desenvolver a seguir.

Do comparatismo como missão no mundo da informação Pensar as relações entre um campo de produção de saber que é a literatura comparada e os recursos do mun-


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do virtual viabilizados pelas novas tecnologias de comunicação de modo a se ampliarem as formas de circulação do conhecimento produzido naquele domínio e, ainda mais, articular os modos pelos quais esse conhecimento pode contribuir para a qualidade de vida do planeta é um desafio que nós, principalmente por sermos e não apesar de sermos das Humanidades, não podemos deixar de enfrentar. Não enfrentá-lo significa abdicar do imperativo utópico subjacente à busca do conhecimento que é colocar sua energia criadora a serviço de alternativas a um mundo aprisionado aos determinismos do presente. É inegável que as novas tecnologias eletrônicas têm causado um impacto profundo no campo científico por meio de uma dinâmica quase instantânea de acesso a dados e de circulação da informação, o que produz novas lógicas de produção de conhecimento em novos espaços acadêmicos que não se definem por coordenadas geográficas regionais ou nacionais, mas sim, pela transnacionalidade virtual. Mesmo que a comunidade científica e intelectual seja por vezes assaltada pelo temor de que a democratização propiciada pela web possa contribuir para que seus trabalhos ou descobertas possam ser vulgarizados, devassados ou plagiados, uma vez que se torna impossível controlar tanto a troca de informação num ambiente instável e permeável como a rede quanto os usos que os sujeitos farão dela, ou então, pelo desconforto diante do fato de que a web desterritorializa os lugares de produção do saber, apaga a autoria e o pertencimento em relação a referências histórico-culturais e, dessa forma, produz um espaço descontextualizado, de desidentificação globalizada, é certo que os recursos das infovias abriram possibilidades sem precedentes para a pesquisa e o ensino, a começar pelo efeito do meio eletrônico que é a interatividade. É ela que viabiliza, por exemplo, o estabelecimento de colaboração interinstitucional e intercontinental, com grupos de pesquisa que trocam experiências e socializam entre si métodos e descobertas de forma que o conhecimento gerado nunca foi disponibilizado tão rapi-

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Editado por Charles Bernheimer (Baltimore. Johns Hopkins University Press, 1995).

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“A literatura comparada deseja globalizar, democratizar ou descolonizar?”

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damente quanto agora. Um número cada vez maior de sites institucionais com links e arquivos nas diversas áreas do conhecimento favorece o acesso a uma quantidade imensa de dados como informações bibliográficas atualizadas, hipertextos e bibliotecas virtuais, fazendo que a rede seja celebrada pela comunidade científica como a mais democrática e pacífica das revoluções, a que alavancou a promessa do saber compartilhado. É compreensível, nesse contexto, o entusiasmo dos pesquisadores da área da literatura comparada diante da proposta da Unesco de inserir no projetoEncyclopedia of Life Support Systems (EOLSS) o tema “The role of comparative literature in the sharing of knowledge and in the preservation of cultural diversity” cujo protocolo foi assinado em outubro de 2004 pela então presidente da Abralic, Tania Franco Carvalhal. O referido tema vem ao encontro da pergunta feita em 1995 por Mary Louise Pratt em seu artigo “Comparative literature and global citizenship” publicado no clássico Comparative Literature in the Age of Multiculturalism,8 e obra que contém o conhecido Relatório Bernheimer sobre o estado da arte (cf. Pratt, 1995). Pergunta Pratt (1995, p.59): “Does comparative literature want to globalize, democratize, decolonize?”.9 A inserção da literatura comparada na rede configura, sem dúvida, um passo importante na expansão de seu campo de atuação e na mundialização de seus saberes. Contudo, considerando as relações que o capital e o poder mantêm com as tecnologias eletrônicas, é preciso fazer algumas ponderações para que não sejamos incautos ou ingênuos consumidores de um instrumento cujas condições materiais podem levar a um desvirtuamento na concreção dos ideais que defendemos como estudiosos e pesquisadores comprometidos com a perspectiva comparatista. Com esse propósito, gostaria de me referir às questões levantadas por Sérgio Bellei (2001) num artigo intitulado “Os estudos literários nas malhas da rede”. O autor reconhece a contribuição que o acesso à informação tem dado à esfera pública no sentido de torná-la um espaço menos


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hierarquizado e repressivo em razão do diálogo e de trocas igualitárias entre os sujeitos, mas sublinha, todavia, que há razões para se questionar tanta celebração oriunda da premissa de que as novas tecnologias favoreceriam o progresso democrático aproximando as sociedades periféricas das metropolitanas, na medida em que fomentariam o desenvolvimento da cidadania, do ensino e da pesquisa pelo acesso à informação que, de outra maneira, estaria restrita ao círculo privilegiado dos países do Primeiro Mundo. As razões, segundo Bellei, residem no fato de que toda tecnologia nasce num contexto de produção gerida pelo capital, ou seja, a rede não está aí apenas para fazer o que eu chamaria de filantropia, mas para gerar capital, econômico e simbólico, e é, portanto, um mercado em que a informação está atrelada à movimentação e concentração de capital, o que “acaba por gerar ou prolongar hierarquias de produção, seleção e distribuição de conhecimento ou, mais precisamente, de capital simbólico” (ibidem, p.277).10 Como exemplo nessa direção, Bellei cita o acúmulo quantitativo e qualitativo da língua inglesa na rede, ou seja, sua hegemonia como código mestre. E Heloísa Buarque de Hollanda (2001, p.43) nos lembra também que os Estados Unidos é o único país que não precisa ser especificado no sufixo das URL ou dos endereços eletrônicos que circulam no ambiente da rede. A relação entre processos de homogeneização e dominação, tendo a língua como elemento-chave, não é novidade, particularmente no contexto da experiência histórica da América Latina. Nesse sentido, é particularmente contundente o Relatório Mundial da Unesco, lançado em novembro de 2005, cujo tema é “Rumo às sociedades do conhecimento”.11 Trata-se de um alerta sobre a situação das línguas no planeta, especificamente o risco de extinção, ao longo do século XXI, de metade dos seis mil idiomas falados hoje. Essa situação remete a uma questão que se apresenta como uma faca de dois gumes: de um lado, pela hegemonia do inglês, as vantagens da expansão das novas tecnologias informacionais agravam e até aceleram a “morte” de muitos idiomas; de

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10 É importante acrescentar aqui os dados apresentados por Bellei sobre os usos das novas tecnologias eletrônicas na automatização e mercantilização do ensino nos Estados Unidos. Bellei (2001) refere-se, entre outras, à obra de David F. Noble (2001), na qual o autor argumenta que sob a justificativa de melhorar o ensino e garantir acesso universal à informação, há uma determinação econômica no uso da tecnologia de parte de administradores universitários e grandes corporações como IMB, Apple, Bell, Microsoft, os quais unem esforços para transformar a universidade em mercado de produtos educacionais, como programas e cursos a distância. Segundo Bellei (2001), Noble denuncia também o empacotamento, ]em material eletrônico, de cursos, sem direitos autorais dos professores que os programaram, os quais são oferecidos com o mínimo de mão-de-obra competente, o que torna a Universidade mais barata. Cabe lembrar que o processo de liberalização de serviços que abriu o caminho para a transformação da educação em comércio foi definido pela OMC em 2000/ 2001. Segundo Marco Antonio Rodrigues Dias, assistente especial do Reitor da Universidade das Nações Unidas (Unu), no caso da educação no Brasil, há uma privatização muito grande e as universidades públicas acabam se submetendo às leis do mercado quando são obrigadas a irem a luta para obter fundos.

11 A íntegra do relatório pode ser obtida no endereço: <http://www.unesco.org.br/ areas/ci/World_Report_ Knowledge_ENG>.

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Dado obtido no site <http::/ /www.andifes.org.br/files.php>.

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outro, as dificuldades de acesso a essas tecnologias, a falta de inclusão digital em zonas periféricas constitui, segundo o referido Relatório, um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento humano. Alguns dados apresentados são surpreendentes, como o de que apenas 11% da população mundial têm acesso à internet, e que desses, 90% são de países industrializados. Já no Brasil, conforme dados da Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino, apenas 17% das residências tem conexão pela internet.12 A questão que se impõe é como equacionar o acesso à informação e ao conhecimento, isto é, explorar o potencial democratizante da tecnologia como instrumento sem perder a visão crítica dos interesses na base de suas condições de produção e de distribuição, pois nas palavras de Bellei (2001, p. 277), “A rede não dissolve processos hegemônicos. Ao acumular capital, prolonga, modifica ou intensifica os já existentes, ao mesmo tempo em que instaura novas formas de hegemonia”. Nesse sentido, destaco dois exemplos que ilustram paradoxalmente o campo de poder econômico e de poder simbólico acumulado pela rede, fazendo dela um ambiente ambivalente em que o jogo de poder privilegia os interesses do mais forte. O primeiro exemplo refere-se à decisão do Google, o maior serviço do mundo de busca na internet. Para manter suas infovias abertas na China, um mercado de 111 milhões de internautas e consumidores em potencial dos produtos oferecidos em suas páginas, o Google admitiu a autocensura, retirando do ar, no território chinês, a possibilidade de acesso a qualquer informações sobre o Tibet e as atividades do Dalai Lama. O segundo refere-se à recente proibição e retirada do ciberespaço, de parte do governo iraniano, do site Iranian Feminist Tribune, como forma de neutralizar as atividades desenvolvidas pelas feministas iranianas. De um lado, é sintomático que ambos os casos têm a ver com o cerceamento, por parte de patrulhas ideológicas de estados autoritários, da liberdade de expressão, o que evidencia o potencial da rede como veí-


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culo de articulação de forças políticas emancipatórias. De outro, não se pode manter a ilusão da isenção da rede quando se trata de interesses políticos aliados aos mercados de capital, os quais operam e se materializam em e por meio de territórios nacionais e instituições como o Estado-nação. Essa relação perigosa coloca em xeque o princípio de que o acesso à informação pelas pessoas pode ser uma via poderosa de melhoria de vida. As circunstâncias e relações apontadas antes podem levar à conclusão de que a vigência de uma retórica globalizante sobre fluxos de capital em tempos definidos como pós-nacionais precisa ser revista e adequada com fatos tais como os referidos por Homi Bhabha (2004, p.345): quase 90% de todos os tratados comerciais e tarifas em todo o mundo são ainda controlados por Estadosnações, e que, portanto, hegemonias nacionais ainda predominam nos acordos transnacionais. Para Bhabha, o sistema “nacional” está sendo reinventado e hibridizado para lidar com os determinantes da globalização, mas a economia mundial ainda é, substancialmente, “nacional”.13 Ao fazer a analogia entre processos econômicos e a globalização culturalista identificada com uma retórica hoje vigente em discursos nas Humanidades – migrância, trânsito, fluxo, circulação, transferência –, Bhabha argumenta que esse discurso não pode dar sustentação a uma ética global, pois somente 3% da população mundial participam dos fluxos globais migratórios e que o desafio mais fundamental é repensar a questão da “indigência” ou “nacionalidade” nas condições de um contexto global incipiente e parcialmente desnacionalizado, o que significa discutir o acesso de todos a cidadania aos direitos civis e aos bens públicos, o que somente pode ser feito no âmbito do nacional. Dessa forma, segundo Bhabha (2004, p.347) o autor: “migrants, refugees and nomads don’t merely circulate. They need to settle, claim asylum or nationality, demand housing and education, assert their economic and cultural rights, and come to be legally represented within legal jurisdiction”. Para

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Essa também é a posição de Stuart Hall (2003, p.60).

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ele, relações globais positivas dependem da proteção de direitos e de recursos que têm por base a nação, por mais que ela tenha sido enfraquecida pelos efeitos de processos transnacionais de produção e consumo. Como pensar o papel da literatura comparada nesse contexto e o que significa argumentar que ela, como lugar de produção de conhecimento, pode se colocar na contracorrente do mercado da informação técnica e da razão instrumentalizada pelo capital e seus processos hegemônicos e excludentes e se aliar aos esforços na busca de conhecimentos que venham concretamente ao encontro das aspirações de uma sociedade mais justa e solidária, na perspectiva de melhores condições de vida no planeta? Não é uma pergunta simples para se fazer, mas é com ela que quero encaminhar as reflexões finais deste texto. A educação começa pela pergunta do que significa ser humano, e a resposta passa necessariamente pelo desenvolvimento da consciência sobre as duas dimensões que fundamentam e integram a competência de viver como humano: a primeira é a dimensão política pela qual se organizam as condições de convívio coletivo para possibilitar a justiça, a felicidade e a liberdade de modo que o bem comum possa se materializar; a segunda é a ética, princípio que destaca o respeito à liberdade pela qual a autonomia individual é corrigida como virtude pessoal de modo a garantir o direito de um como limite em relação ao direito de um outro. A literatura comparada, como um campo do saber humanístico, pode desenvolver um papel fundamental no processo cognitivo dos sujeitos ante as demandas e urgências educacionais do nosso tempo, no sentido de que ela mobiliza conhecimentos capazes de desenvolver habilidades que resgatam a perspectiva do humano, concebido dentro das coordenadas política e ética anteriormente referidas e depurado, tanto de equivocadas noções de universalismo ou da retórica desenraizada (e desencantada) do globalismo cultural que desloca o locus de determinação do econômico para a cultura, tomada como esfera autônoma, dissociada do social.


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A partir de seu foco nas relações que as literaturas nacionais estabelecem entre si, o comparatismo coloca em relevo o seu impulso primeiro, a sua razão de ser e a sua metodologia, que é o seu comprometimento em direção ao outro14 – a outro texto, a outra literatura, a outra história, a outra cultura. Isso significa dizer que a diferença, como categoria analítica, constitui o traço mais significativo do fazer comparatista, no melhor de sua tradição de pesquisa, pois fundamenta o conhecimento interpretativo das (inter)relações entre o próprio e o alheio.15 Manter o princípio da diferença como norte de toda prática é deslocar e romper com relações hierárquicas de dominação e subordinação, tanto no nível de textos (modelo/cópia) quanto no nível de culturas e de povos (centro/periferia). É nesse sentido que os estudos comparados das tensões e embates da representação de alteridades e seus respectivos imaginários, das implicações desses na expressão de identidades político-culturais e de como essas expressões inscrevem múltiplas histórias no contexto da diversidade de processos textuais e históricos que constituem as literaturas nacionais perfazem um amplo leque de questões que definem a literatura comparada como uma área singular e privilegiada de observação e análise da rede de interações entre coletividades e suas literaturas. Longe de isolar ou ignorar a tradição literária e a cultura nacional, a literatura comparada articula uma compreensão diferencial do local/nacional, considerado não simplesmente em relação a sedimentação de processos históricos dentro de fronteiras estáveis, fixas ou trans-históricas, mas a partir da premissa de que as identidades nacionais/textuais são forjadas em espaços caracterizados por apropriações, sobreposições, transformações e transculturações, o que faz das fronteiras uma linha móvel e permeável aos influxos que procedem de outros lugares, de outras tradições. Nesses termos, poderia se dizer que o reconhecimento daquilo que nos é alheio permite identificar aquilo que nos é próprio, ou seja, no processo da diferenciação cultural, as diferenças se entrelaçam, gerando

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14 Dois grandes comparatistas, Brunel & Chevrel (1989), em seu Littérature compareé, definiram esse impulso como “a abertura ao outro”.

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Aproprio-me aqui do título do livro de Tania Franco Carvalhal (2003), O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada.

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A Revista Time, em sua edição de 28 de fevereiro de 2005 apresenta um relatório especial sobre a crise, trazendo na capa a figura de Monalisa, ícone da europeicidade, representada com o veú islâmico.

17 Muitos dos grupos minoritários foram absorvidos pelas culturas dominantes e desapareceram, outros foram forçados à assimilação e tiveram suas identidades apagadas pela repressão política. Outros grupos sobreviveram e hoje ensaiam o renascimento de suas cartografias culturais. Na Europa Ocidental há os bascos, os bretões, os córsegos, os sorbos e os walsers. Na Europa Central e Oriental, os romas, rusynos, kashubianos e gagauzes. Na Rússia, os veps, selkups e nenets. E, na região báltica, os sami e livonios.

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formas cruzadas ou superpostas de pertencimento que não se estruturam e nem se reduzem a oposições binárias: centro/margem, interior/exterior. Por essa via, a literatura comparada se apresenta como um campo fértil de indagações sobre as próprias representações da nacionalidade e teria muito a contribuir, do ponto de vista teórico-crítico, sobre a geopolítica da literatura diante da crise das identidades, por exemplo, da identidade européia deflagrada pelo multiculturalismo e veiculada em vários meios de comunicação16 ao longo do ano de 2005. As relações culturais e textuais do mundo europeu, com suas margens ou fronteiras não-européias, relações que certamente incorporam o problema de como os cânones literários europeus desterritorializaram ou suprimiram, em razão da demanda por unidade dos Estados nacionais e da construção do centralismo ocidental e suas hierarquias, a expressão de outras identidades textuais/ culturais que proliferaram como “minorias” no interior dessas sociedades, faz dessa crise de identidades um objeto, por excelência, de investigação comparatista.17 Tania Carvalhal (2003, p.31-2) acrescenta pontualmente sobre a questão: Se o mapa da Europa tem, hoje, uma nova configuração, diferentes questões se propõem, obrigando à retomada de problemas como o dos nacionalismos, dos regionalismos e suas relações com o universal. Do mesmo modo, as conformações político-econômicas que se constroem na América do Sul e do Norte estão a instigar questões de inter-relações culturais e literárias, da constituição de cânones literários, de análises de diferenças, problemas de representação da alteridade, de expressão de identidade, do estudo e confronto de imaginários culturais e das implicações políticas da influência cultural [...]

A emergência de novas cartografias culturais ou “localismos” na conjuntura da globalização e sua universalização capitalista traz à pauta um outro fenômeno que é o da desocidentalização, cuja semântica não se confun-


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de com a do termo descolonização, definido por Mary Louise Pratt como um duplo processo: primeiro, a entrada do Terceiro Mundo em diálogo com o Primeiro e o reconhecimento deste último como constituído por relações de contato para além de suas fronteiras; segundo, a descolonização da relação dos Estados Unidos com a Europa no campo da cultura e sua concomitante auto-redefinição. No meu entendimento, a desocidentalização destitui a Europa como centro primordial do contexto histórico de referência, um mito de origens, por assim dizer, nos estudos das heranças culturais orais e tradições literárias latino-americanas, orientais e africanas.18 No caso da Índia, por exemplo, há várias tradições literárias autóctones, tais como as dos bengali, hindi, tamil, telegu, entre outras, cujos estudos são de extrema importância para o entendimento da constituição dos nacionalismos, mas que permanecem absolutamente desconhecidas19 dos comparatistas ocidentais. Na América Latina há um processo contínuo e consistente de resgate da heterogeneidade do continente a partir do estudo de heranças culturais locais e suas tradições orais (cf. Coutinho, 2004; Palermo, 2005). Se a singularidade da educação literária reside no desenvolvimento da consciência da linguagem para além do consumo fácil associado à função comunicativa na medida em que aquela aciona nossa disposição intelectual e afetiva para discernir e desfrutar de seu poder ético e estético, a literatura comparada acrescenta a essa consciência a noção de que a diversidade lingüística é a condição sine qua non para o acesso à imensa heterogeneidade de culturas subalternas existentes no mundo. O acesso ao outro, irredutível em sua diferença, é uma função da linguagem, mas o outro, como nos ensina Emmanuel Lévinas, nunca é, inicialmente, o objeto de compreensão para depois, se tornar interlocutor, pois as duas relações se confundem. Diz Lévinas (2005, p.27): [...] compreender uma pessoa é já falar-lhe. Pôr a existência de outrem, deixando-a ser, é já ter aceito essa existência, tê-la tomado em consideração. [...] Trata-se de perceber a

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função da linguagem não como subordinada à consciência que se toma da presença de outrem ou de sua vizinhança ou da comunidade em que esse outro está inserido, mas como condição mesma desta “tomada de consciência”.

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Essa posição ficou clara no trabalho de Didier Coste, intitulado “Othering the west, or why comparative literature should abandon identity”, apresentado no Congresso dos 50 anos da ICLA, realizado em Veneza, Itália, de 25 a 30 de setembro de 2005. 19 O tema é discutido por Aijaz Ahmad (2002, p.85), no contexto da polêmica em torno da tese de Fredric Jameson sobre o romance alegórico do Terceiro Mundo. Ahmad também discute o empacotamento da literatura do Terceiro Mundo ao ser disponibilizada em tradução – língua inglesa – para os leitores do centros metropolitanos do Primeiro Mundo.

20 O trabalho se intitula “The proliferation of theories in literary scholarship: causes and effects (a systemic interpretation)”, cujo resumo foi publicado no livro de resumos do referido evento (Veneza: Università Ca´Foscari, Centro Poduzione Multimediale, setembre 2005).

O comprometimento com a necessidade de preservar o ensino das línguas estrangeiras ratifica a impulso da literatura comparada em direção ao outro, aqui entendido na concepção filosófica de Lévinas e transformado em princípio ético da pesquisa comparatista. As línguas, além de constituírem um patrimônio cultural da humanidade, são elas mesmas a condição da nossa “tomada de consciência” do outro, pois acumulam as singularidades históricas de suas origens, a densidade semântica, o privilégio produtivo e a força imaginativa de suas culturas. Nesses termos, entende-se o apelo enfático do crítico Milan V. Dimic, quando da apresentação de seu trabalho no Congresso Comemorativo ao Jubileu dos 50 Anos da Associação Internacional de Literatura Comparada, realizado em Veneza em setembro de 2005: “we need to do justice to the diversity of languages”.20 Entendo que a resposta intelectual estratégica do comparatismo às questões do presente, particularmente quanto a saberes que possam agregar à construção de um mundo mais justo e solidário e, assim, interromper a distopia em curso, parte do princípio da razão imaginativa e dialógica em contraponto à hegemonia, à homogeneização e ao monolingüismo. Desse princípio decorre uma série de direcionamentos que pode levar o comparatismo, de uma forma construtiva, a repensar hoje os limites de muito de suas práticas no passado para expandir sua atuação e divisar novas fronteiras de impacto em termos de geração de uma cultura crítica atenta às complexidades enraizadas do cultural em sua imbricação com o social, na esteira do comparatismo preconizado por René Etiemble (1988) em seu Overture(s) ou le comparatisme militant. Integrar os desenvolvimentos da teoria contemporânea aos estudos comparados de literatura em suas relações com outros discursos tendo em vista a constituição de diálogos interliterários


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e interculturais, apreender suas relações de força no contexto material das histórias da realidade inter-humana a partir da consciência do outro, da defesa da inviolabilidade de seus direitos humanos e do comprometimento com a diversidade lingüística é uma contribuição ímpar para a produção de subjetividades na rede de uma coletividade planetária solidária. A virtualização dos saberes comparatistas só pode ser aceitável nas condições de sua integralização como um projeto ético-político-pedagógico capaz de interferir na barbárie que cresce e se adere à corrente globalizante. A potencialidade de tal projeto faz da área uma das reservas de esperança, a atitude mais responsável e lúcida diante da vida porque resistente aos tempos sombrios.

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Weltliteratur, um conceito transcultural Eloá Heise*

A presente discussão sobre Weltliteratur não se limita ao campo da literatura. Esse conceito, que aparece de forma recorrente em conversas, cartas, resenhas e ensaios da última fase de Goethe, adquire relevância no pensamento do grande clássico alemão ao articular-se como uma idéia que se aproxima do conceito de universalidade, uma manifestação literária que, em uma acepção utópica, deveria preconizar o advento de uma nova etapa da literatura. Weltliteratur deveria assumir a tarefa de conduzir a um novo ethos universal, algo que se aproximasse de uma totalidade de caráter moral. Para que se possa rastrear o surgimento dessa idéia no processo conceitual de Goethe, cabe, aqui, não só fazer um levantamento da gênese e da ocorrência da palavra, como também perscrutar as diversas conotações que o termo abrange, bem como relacioná-la a conceitos que nos são contemporâneos.

RESUMO:

PALAVRAS-CHAVE:

Goethe, Weltliteratur, classicismo alemão.

The present discussion about Weltliteratur is not restricted to the subject “literature”. This concept, which appears recurrently in conversations, letters, reports and essays from Goethe’s last phase, obtains relevance in the thoughts of the great German classic as an idea that comes close to the conception of universality, a literary manifestation that should ideally indicate the upcoming of a new stage of literature. Weltliteratur should assume the task of leading towards a new universal ethos, something approximating to a morally defined totality. In order to follow the development of this idea in Goethe’s conception, not only the beginning and the occurrences of this word needs to be analyzed, but also, its various connotations as well as its relations to the concepts that are contemporary to us. ABSTRACT:

* Universidade de São Paulo (USP).

KEYWORDS:

Goethe, Weltliteratur, German classicism.


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O conceito de Weltliteratur, cristalizado pelo velho Goethe, não se limita, como o termo faz supor pela desarticulação da palavra – literatura do mundo –, em propor um tema que se restringe ao campo da literatura. A discussão desse conceito por Goethe, na última etapa de sua vida, pressupõe, isso sim, uma idéia que se aproxima do conceito de universalidade: o advento de uma literatura que deveria conduzir a um novo ethos universal, algo que se aproximaria de uma totalidade de caráter moral. Para que se possa rastrear o surgimento dessa idéia no processo conceitual do velho Goethe, cabe, aqui, não só fazer um levantamento da gênese e da ocorrência da palavra, como também perscrutar as diversas conotações que o termo abrange, bem como relacioná-lo a conceitos que nos são contemporâneos. A primeira manifestação de Goethe, na qual é mencionado o termo Weltliteratur, é de 1827, data em que Goethe proclama, em uma conversa com Eckermann, ter chegado a época de uma literatura universal. A partir de então, o conceito aparece, de forma recorrente, em conversas, cartas, resenhas e ensaios da última fase do grande clássico alemão, apontando para a relevância que tal idéia adquire no pensamento do velho Goethe.

Gênese da palavra Durante muito tempo, Goethe constou como o criador do termo. Como informa Birus (2004) ao citar HansJ. Weitz em um ensaio publicado na revista Arcádia de 1987, sob o título de “Weltliteratur zuerst bei Wieland” [“Literatura universal primeiro em Wieland”], a palavra aparece primeiro em Wieland, como bem indica o próprio título do estudo. O termo teria sido utilizado por Wieland em sua nova versão da tradução das cartas de Horácio. Wieland, nesse caso, emprega o termo para referir-se à formação cultural ao tempo de Horácio, um requinte próprio do gosto da capital, algo característico da urbanidade, prenhe de conhecimento do mundo e refletido na literatu-

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ra que lhe é equivalente: uma literatura desse grand monde. Portanto, em Wieland, entende-se por mundo – Welt – as marcas culturais da grande polis, e, dentro desse contexto, manifesta-se a literatura do homme du monde do Weltmann. Em contraposição a esse conceito em Wieland, espacialmente determinado, Weltliteratur, em Goethe, é um conceito que abrange toda a humanidade, algo que vai além das fronteiras nacionais. Não há nenhuma bibliografia subsidiária que aponte o conhecimento, por parte de Goethe, do termo empregado por Wieland. Em todo caso, por causa do cunho próprio dado por Goethe à acepção da palavra, pode-se afirmar que Goethe é o criador do conceito.

De acordo com o senso comum A primeira tendência que se tem ao empregar o conceito é no sentido extensivo, na acepção de “literatura geral”. Sob esse aspecto, o termo é empregado indistintamente em todo o mundo. Esse seria o caso de qualquer publicação no gênero dos dicionários sobre a literatura do mundo. Essas publicações, de abrangência genérica, procuram nomear e caracterizar as várias literaturas do mundo em uma enumeração quantitativa. Nesse mesmo sentido, por exemplo, temos, em bibliografia de língua portuguesa, os vários livros escritos por Otto Maria Carpeaux sobre a história da literatura universal. A essa expansão quantitativa do termo, pode-se contrapor uma acepção qualitativa, na esteira das idéias próprias do Iluminismo. Numa época em que se preconiza a razão como o bem supremo do indivíduo, a poesia, no sentido de literatura, deve colaborar para enriquecer o conhecimento. Assim, a literatura deveria ser, antes de tudo, Bildungspoesie, uma poesia de formação. Sob essa acepção a Weltliteratur adquire o predicado de obra clássica, obra de valor universal que deve transmitir valores universais como o bom, o belo e o verdadeiro. Um livro como o de Harold Bloom (1995), O cânone ocidental, pressupõe o conceito Weltliteratur – mesmo não


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diretamente mencionado pelo autor – nos dois sentidos: quantitativo, pois enumera 26 escritores, representantes de diversas literaturas do Ocidente, ao mesmo tempo que os aponta como canônicos; em outras palavras, os qualifica como obrigatórios para a nossa cultura, instituindo-os como clássicos. Uma outra acepção do termo, bastante divulgada, aparece empregada no âmbito da literatura comparada. Um exemplo do uso da palavra nesse sentido pode ser encontrado na nota explicativa inserida por Luiza Lobo (1987, p.32), em Teorias poéticas do romantismo: “Literatura mundial, Weltliteratur, World Literature é o termo proposto por Goethe para o campo do saber que hoje constitui a Literatura Comparada”. A autora entende, nesse caso, Weltliteratur como sinônimo de literatura comparada. Podese depreender que Lobo não se refere, aqui, ao método de comparar literaturas, um exercício analítico e interpretativo, um ato lógico formal, empregado no confronto de obras que apresentam algum tipo de relação entre si. Antes de tudo, a aproximação dos dois conceitos parece apontar para o resultado que se obtém a partir da análise comparada e que faz que as obras se insiram no campo da literatura universal, ou seja, deixam transparecer o processo dinâmico de trocas interculturais entre as literaturas. Essa idéia de trocas interculturais é a que mais se aproxima do conceito de Weltliteratur, tal como idealizado por Goethe.

A mundialidade de Goethe Goethe, como personalidade marcante de sua época, é um exemplo típico do autor aberto para a literatura mundial. A vastidão de seu horizonte literário, fora dos moldes tradicionais, abrangia (Birus, 2004) de forma enciclopédica, desde literaturas orientais, passando pela Antigüidade clássica, Idade Média, as literaturas européias contemporâneas, alcançando até o grego moderno, o sérvio, o lituano, e outras literaturas populares. Em meio a esse largo escopo de interesses, não se pode deixar de mencionar uma de suas atividades complemen-

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Título de duas obras da literatura da Islândia: Canções de Edda e a Antiga Edda, uma coleção de canções sobre deuses e heróis dos séculos IX a XIII. Tais obras são fontes importantes para a compreensão da poesia e da mitologia germânicas.

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tares, a de tradutor, que lhe permitia acesso não só às literaturas correntes da Europa: grega, latina, italiana, francesa, espanhola e inglesa, mas também, por um via mediada, aos textos do Velho Testamento, do Alcorão, passando pela poesia árabe clássica e pela Edda.1 Se, desde jovem, o autor se propunha a estender seus conhecimentos para além da literatura alemã, a partir de 1820, empenha-se em abrir seu mundo rumo ao Oriente e a conhecer obras importantes da literatura chinesa e hindu. A sua produção lírica da maturidade (Boerner, 1964), Divã oriental-ocidental (West-östlicher Divan -1819), por exemplo, é uma recepção produtiva de poesia lírica persa e chinesa. Já como autor consagrado, Goethe lia e interessavase pelos jovens talentos de sua época em outros países, como Byron, Walter Scott, Mérimée, Victor Hugo, Manzoni, só para citar alguns dos nomes que aparecem em suas Conversações com Eckermann.

Fontes inspiradoras do conceito O famoso encontro com Herder em Estrasburgo, em 1770 (Rosenfeld, 1992), que dá ensejo a uma reviravolta na concepção artística de Goethe, abre-lhe um novo horizonte que pode ser resumido em dois conceitos: o de gênio original e o de poesia popular, Volkspoesie. Em sua obra autobiográfica Poesia e verdade (Dichtung und Wahrheit – 1811), ao relatar sua experiência com as idéias e tutoria de Herder, Goethe afirma, em relação à poesia popular, que os documentos mais velhos, sob forma de poesia, ofereciam o testemunho de que a criação poética é um dom universal e de todos os povos e não uma herança privativa de alguns poucos homens cultos e refinados. Nessa manifestação, muito anterior à famosa conversa com Eckermann de 1827, o autor já expressa em relação à sua concepção de poesia popular o pressuposto de universalidade que irá servir de base para a idéia de Weltliteratur e, de alguma maneira, ecoa a glorificação feita por Herder da poesia popular e natural na Correspondência sobre Ossian e can-


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ções dos povos antigos (Briefwechsel über Ossian und die Lieder der alter Völker): O senhor ri do meu entusiasmo pelos selvagens, quase tanto quanto Voltaire de Rousseau, a quem tanto teria agradado o andar de quatro: não pense que por isso eu despreze nossas vantagens morais e de decoro. A espécie humana está destinada a um progresso de cenas, de cultura de costumes: ai do homem a quem desagrada a cena em que deverá aparecer, atuar e viver! Mas ai também do filósofo da humanidade e dos costumes para quem a sua cena é a única e que despreza a mais primitiva por considerá-la pior! Uma vez que todas as cenas fazem parte do espetáculo progressivo, em cada uma é demonstrado um lado novo e muito curioso da humanidade. (Herder in Rosenfeld, 1992, p.34-5)

A partir dos conceitos de poesia popular e poesia nacional (Volks– und Nationalpoesie), herdados de Herder e dos românticos, Goethe abre-se para um conceito mais abrangente e universal de Weltpoesie. Na revista Sobre Arte e Antigüidade (Über Kunst und Altertum) (Goethe, 1977), publicada desde 1816 a 1832, o autor discute dois temas centrais, que partem da mesma base generalizante, mas que não devem ser entendidos como sinônimos: Weltpoesie e Weltliteratur. A preocupação central é distinguir os dois conceitos, para que não sejam confundidos. Assim, Weltpoesie deve ser entendida, na esteira das concepções de Herder, como a expressão da poesia de todo ser humano, em todos os tempos, de todos os povos; dons oferecidos pela natureza; essa Weltpoesie, por sua vez, manifesta-se, de forma mais pura, na poesia popular (Volksdichtung); floresce sem que o homem culto faça algo por ela ou em nome dela. Ela existe simplesmente sem que o povo, por meio de traduções ou menções de obras de outros povos, a conheça. Já a Weltliteratur, no sentido de Goethe, só vem à vida se engendrada pelo homem culto. É uma tarefa que precisa ser cumprida, executada. Weltliteratur seria o espaço espiritual no qual os povos, por meio da voz de seus poetas, não se vêem apenas a si mesmos, mas falam uns com os outros.

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Mesmo que a poesia e a literatura universais – Weltpoesie e Weltliteratur – não possam ser confundidas uma com a outra, a Weltpoesie assumiria um papel importante na capacidade comunicativa da literatura universal. É exatamente por meio da poesia popular, a expressão da peculiaridade nacional de um povo, que os povos se conhecem uns aos outros e aprendem a se entender mutuamente. A Weltposie é, pois, o objeto mais importante para a transmissão da literatura universal, quando não um de seus componentes essenciais.

Weltliteratur nas Conversações com Eckermann O conceito de Weltpoesie é o primeiro passo para a famosa conversa com Eckermann, datada de 31 de janeiro de 1827, uma das primeiras manifestações claras em que o conceito de Weltliteratur é apresentado. Essa conversa insere-se na obra publicada em 1848, em três volumes, pelo então secretário de Goethe, Johann Peter Eckermann (1791-1854), que integra, com Riemer e Muller, uma equipe de assistentes que irá auxiliá-lo até o final de sua vida. Eckermann publica as conversas, em princípio sob o título de Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida (Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens), obra que depois passou a ser conhecida e consagrada pelo título dado pelo editor Brockhaus, e que na recente edição brasileira foi traduzido como Conversações de Goethe com Eckermann (Eckermann, 2004), avaliada por um leitor do calibre de Nietzsche como um dos mais significativos textos em prosa de língua alemã. O ensejo que vai despertar em Goethe a manifestação em favor da Weltliteratur foi dado pelo próprio Eckermann que, ao perceber a dedicação de Goethe à leitura de um romance chinês, faz um comentário ingênuo: “Um romance chinês deve ser uma coisa muito estranha”. A resposta do mestre faz que se perceba, na pergunta de Eckermann, a característica que Goethe, em sua fala, vai chamar de “ignorância pedante”, ou seja, a tendência de


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certos homens de limitarem seus valores a bens culturais do mundo que os cerca, sem levar em conta o “que se passa em outros países”. Para que sejam levantados os pontos principais que caracterizam a Weltliteratur, cabe, aqui, a citação da passagem Quarta feira, 31 de janeiro de 1827. [...] Cada vez me parece mais, Goethe continuou, que a poesia é patrimônio comum da humanidade e que todos os lugares e em todos os tempos se manifesta em centenas de pessoas [...] o dom poético não é assim tão raro e não há razão para nos orgulharmos quando compusermos uma poesia boa. Nós, os alemães, se não olharmos para fora do nosso apertado ambiente, caímos facilmente nesta ignorância pedante. É por isso que gosto de me informar do que se passa nos outros países e aconselho a todos a que procedam assim. Literatura nacional não quer hoje dizer coisa muito importante: chegamos ao momento da literatura mundial e todos devemos contribuir para apressar o advento de tal época. Nesta apreciação das coisas estrangeiras não devemos cair na limitação a uma só coisa e considerá-la como modelo depois. Não devemos circunscrever-nos ao chinês ou ao sérvio, a Calderon ou aos Nibelungos: antes, para satisfazermos a nossa necessidade de ter por perto um modelo, recuemos antes até os gregos em cujas obras a beleza humana está bem expressa. Todo o restante deve ser considerado só sob o aspecto histórico e dele tirar-se– somente o que tiver de bom, quando for possível. (Eckermann, 1947, p.161)

Nessa contraposição entre literatura nacional e literatura mundial, é importante que se acentue o caráter utópico que adquire a idéia de Weltliteratur, expressa na afirmação de que “chegamos ao momento da literatura mundial e todos devemos apressar o advento de tal época”. Para Goethe, literatura mundial é algo que ainda não foi concretizado, um estágio da produção literária da humanidade que ainda estaria por vir. Portanto, essa idéia antecipatória de alternativa para o futuro mostra a visão de sua mente privilegiada que, em oposição ao mundo que é, prenuncia um mundo como ele poderia ser.

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Ao definir claramente Weltliteratur como “patrimônio comum da humanidade”, Goethe também oferece pistas para que esse ideal se torne real: “é preciso informar-se do que acontece em outros países”, sem limitar nosso gosto ao “apertado ambiente”, voltando sempre a “olhar para fora”. Em outras palavras, é preciso estabelecer um diálogo com o outro. A idéia de uma literatura mundial surge da crença na existência de um constante processo de efeitos recíprocos entre as literaturas nacionais. Baseado nessa percepção de trocas entre as literaturas é que Todorov (1991) classifica Goethe com o primeiro teórico da interação cultural. Portanto, já no início do século XIX, Goethe oferece material que pode servir de base e de apoio para os recentes debates sobre estudos culturais, além de, com sua idéia de literatura universal, introduzir um conceito que se adapta à discussão da teoria da alteridade. Toda essa percepção de Goethe ao conclamar para a necessidade de abertura rumo a uma Weltliteratur não deixa, contudo, de ter seu lado contraditório. Ao mesmo tempo que valoriza o dom poético como algo que se manifesta em todos os tempos e em todos os povos (Volkspoesie), abrindo uma perspectiva de valoração da cultura popular, também acentua a importância dos clássicos como modelos para expressar toda a beleza humana. A percepção vanguardista de Goethe coexiste com a de juízo de valor típico daquele que procura pela classicidade. Aqui se percebe uma das constantes do pensamento de Goethe: como dois grandes fundamentos da literatura européia, o autor sugere a Antigüidade e o Oriente, fontes mais puras da formação humana. Goethe, na sua percepção da literatura universal, aberto a todas as manifestações que ocorrem em outros países e em outros tempos, dá expressão a um dos princípios que regem a humanidade, a idéia de modificação. Paralelamente, em seu conselho de que se recorra à Antigüidade como modelo, busca a unidade, a essência. Assim, essas duas idéias, em princípio opostas, resumem aquilo que agrega a pessoa humana: o perdurável na modificação.


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Esse matiz essencial para a conceituação de Weltliteratur, o perdurável na modificação, mostra equivalências com o conceito de moderno, discutido por Baudelaire (1988, p.162) no ensaio “O pintor da vida moderna”, no qual afirma: “O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva e combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão”. Assim, Baudelaire, em sua concepção dual do belo, ao ver o poeta como “pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno” (ibidem, p.64), ecoa os preceitos de Goethe ao aconselhar que “não devemos cair na limitação a uma só coisa” e “para satisfazermos a nossa necessidade de ter por perto um modelo, recuemos antes até os gregos em cujas obras a beleza humana está bem expressa”.

Discussões do conceito A busca de Goethe por padrões clássicos e seu interesse por manifestações literárias que lhe eram contemporâneas coexistem no trabalho analítico e especulativo empreendido pelo autor nos vários cadernos de sua revista Sobre Arte e Antigüidade (Goethe, 1977). Com ensaios sobre Homero, Eurípides, Shakespeare, Byron, Manzoni, lírica chinesa e poesia popular, Goethe oferece a base ao contexto argumentativo aqui exposto, no sentido de compreender Weltliteratur não apenas na acepção quantitativa (abrangendo cada uma das diversas literaturas) ou qualitativa (só as melhores obras), mas também ao enfatizar os efeitos recíprocos entre as literaturas, em outras palavras, um conceito de Weltliteratur que se caracteriza por sua dimensão comunicativa entre as literaturas do mundo. Sua definição de Weltliteratur será, mais uma vez, claramente expressa no discurso proferido por ocasião do “Encontro dos Pesquisadores da Natureza em Berlim – 1828” (Die Zusammenkunft der Naturforscher in Berlin), no qual se enfatiza a função de intermediação da literatura universal rumo à compreensão entre os povos:

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Quando ousamos proclamar uma literatura européia, uma literatura geral universal, isso não quer dizer que as diferentes nações tomem conhecimento uma das outras e de suas produções, pois neste sentido ela já existe há muito tempo, continua e renova-se mais ou menos. Não, abordase, aqui, o fato de que as literaturas vivas e ambiciosas conheçam umas as outras e, através de tendências e sentido comum, sintam-se instigadas a repercutir socialmente. Isso é conseguido mais através dos viajantes do que através de correspondência, pois a presença mais pessoal, por si só, tem êxito em determinar e consolidar a verdadeira relação entre os homens. (Goethe, 1977, p.909)

A grande ambição a ser alcançada pelas literaturas que devem constituir a literatura universal é alcançar repercussão social e, pela percepção de tendências e sentidos comuns, agir como fonte de tolerância e entendimento.

Constelação histórica Em uma introdução à tradução alemã feita por Thomas Carlyle sobre a vida de Schiller (1830), Goethe aponta, de forma mais precisa, para a constelação histórica em que se processa a oportunidade de trocas profícuas entre os povos: Já há algum tempo fala-se de uma literatura geral universal, e não sem razão: todas as nações sacudidas pelas mais terríveis guerras entre si, e depois de cada uma, reconduzidas para si mesma, precisam perceber que conservaram e assumiram para si alguma coisa estrangeira, até agora necessidades espirituais desconhecidas, sentidas aqui e ali. Disso surge o sentimento de relações vizinhas e, em vez de se fechar, o espírito chega aos poucos à exigência de ser incluído no mais ou menos livre trânsito espiritual do comércio. É bem verdade que esse movimento só dura um curto período, mas, é suficientemente longo, para que já se façam algumas considerações a respeito e que dele, o mais breve possível, como também é preciso fazer no comércio de mercadorias, ganhese vantagem e prazer. (Goethe, 1977, p.934-5)


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O uso, aqui, de um jargão próprio do âmbito do comércio e de trocas de mercadorias não é mera força de expressão. O caminho que conduz ao conceito de Weltliteratur parte do contexto do comércio mundial (Welthandel). Conforme explica Hauser (1998), não se pode esquecer de que estamos em uma época em que as cidades da Alemanha Setentrional perdem sua posição de importância para os centros comerciais ingleses e holandeses, e o comércio internacional, em rota de abertura, transfere-se do Mediterrâneo para o oceano Atlântico. Goethe mesmo afirma em uma carta para Carlyle, datada de 8.8.1828, que nessa época, marcada pela facilidade das comunicações, é de esperar que surja uma Weltliteratur. O contato e as trocas entre as culturas tornam-se inevitáveis, uma vez que as nações se aproximam por meio de viagens de navios e as idéias se divulgam por meio de publicações das mais diversas revistas. Goethe, nos últimos anos de sua vida, seguiu, com especial atenção, o surgimento de revistas européias e, especialmente, de jornais literários franceses. Para ele, essas revistas, à medida que atingem um público cada vez maior, contribuem para o estabelecimento de uma literatura mundial. Portanto, o surgimento de uma Weltliteratur é preconizado como conseqüência do internacionalismo do comércio, da velocidade do trânsito, da técnica, dos meios de publicação e, especialmente, pelo advento de revistas.

Prenúncio da cultura de massas Pensando contemporaneamente, essa concepção de Weltliteratur, vista por uma via eminentemente prática de comunicação com o grande público e da qual se deveria extrair “vantagem e prazer”, pareceria, num primeiro instante, aproximar-se do conceito hodierno de globalização. O próprio Goethe, ciente da possibilidade de o conceito de ser percebido como a padronização das diferenças culturais e, como no caso da globalização, a partir da hegemonia da cultura mais rica, menciona em um artigo sobre

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a Edinburgh Reviews, publicada no VI tomo, segundo caderno da revista Sobre Arte e Antigüidade, 1828: Estas revistas, como alcançam aos poucos um público maior, vão contribuir de maneira efetiva para uma esperada literatura mundial geral; só que nós repetimos: não se trata do fato de que todas as nações devam pensar de forma coincidente, mas elas devem descobrir uma a outra, compreenderem-se, e caso não se apreciem mutuamente, pelo menos aprendam a se tolerar uma a outra. (Goethe, 1977, p.956)

Eis aqui a pregação pelo respeito à diferença, a proposta de tolerância mútua, típica de um Goethe, representante do Iluminismo. O que se propõe é, pois, uma conversa entre nações, a participação espiritual de uns com os outros, uma doação recíproca, um receber, um fomento e uma complementação de ambos os lados. Essa clara visão pragmática das condições históricas para o advento do conceito de Weltliteratur também é expressa no texto do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, um exemplo irrefutável de que a discussão engendrada por Goethe não perdeu em atualidade: A burguesia moldou de forma cosmopolita a produção e o consumo através da exploração do mercado mundial [...] E, como no material, assim também no espiritual. Os produtos espirituais de cada uma das nações se transformam em patrimônio comum. As parcialidades e restrições nacionais vão se tornar mais e mais impossíveis e das muitas literaturas nacionais e locais irá se formar uma literatura universal. (apud Birus, 2004, p.13)

Mas a crença e a fascinação pela nova era que facilitaria a comunicação e, por isso, induziria à formação de uma literatura universal não é apenas vista por esse prisma positivo, apesar de Goethe não deixar de crer em seus benefícios. Ciente de que essa generalização poderia conduzir a uma cultura média, Goethe atribui aos mais capazes a tarefa de impedir que a Weltliteratur perca a sua função de ponte de compreensão entre os povos. Em manifestação datada de 30 de março de 1830, Goethe afirma:


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Se uma tal literatura mundial, que se torna inevitável pela sempre crescente velocidade do comércio, se formar brevemente, não devemos esperar mais e nada além dela do que aquilo que pode realizar e realiza. O vasto mundo, por mais expandido que ele possa ser, será apenas uma pátria ampliada e não nos dará, posto claramente, mais do que o solo pátrio proporciona; o que diz alguma coisa à multidão vai se espalhar sem fronteiras, com já vemos agora, e ser recomendado em todas as zonas e regiões; [...] aqueles, porém, que se dedicaram ao mais elevado e aquilo que é mais frutífero vão se conhecer mais depressa e de maneira mais próxima. Há, em todo lugar do mundo, tais homens que tem relação com a fundação e, a partir daí, com o verdadeiro progresso da humanidade. [...] Os mais sérios precisam, por isso, construir uma igreja silente, quase abafada, uma vez que seria inútil contrapor-se à ampla maré do dia; firmemente, deve-se tentar afirmar sua posição, até que a onda tenha passado. (Goethe, 1977, p.914-15)

Proclama-se, pois, a importância dos poetas fundadores, os representantes qualitativos da Weltliteratur, que se dedicam ao mais elevado e ao mais frutífero e que devem tomar posição para propiciar o advento da literatura universal. Goethe acaba, paralelamente, enfatizando as tendências universalizantes que deveriam nortear suas configuração do mundo. Em suas conversas com Eckermann, em princípio de março de 1832, portanto poucos dias antes de sua morte, o mestre deixa uma espécie de testamento político-poético, onde reafirma a sua crença no bom, no belo e no verdadeiro como única pátria da poesia: uma poesia livre, atemporal e espacialmente indeterminada: Quando um poeta quer exercer ação política, tem de se filiar num partido, e logo que o faz, está perdido como poeta. Tem de dizer adeus à liberdade do espírito, à imparcialidade de visão e, em vez delas enterrará na cabeça até as orelhas o capuz da intolerância e do ódio cego. O poeta amará como homem e cidadão a pátria, mas a pátria da sua virilidade poética e da sua ação poética é o Bom, o Nobre e

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o Belo, coisas que não estão limitadas a uma certa nação ou uma certa província, mas que ele colhe e forma onde quer que as encontre. (Eckermann, 1947, p.318-19)

O jogo dialético entre o nacional e o universal Essa ênfase naquilo que é eternamente válido e extemporâneo não significa, porém, um abandono do local pelo universal, do individual pelo geral; ao contrário, em uma relação dialética, é a partir do local que se chega ao universal; resgatando o peculiar é que se alcança o geral. A discussão goethiana de unidade na pluralidade, de totalidade na fragmentação (Rosenfeld, 1993) também está na base de sua idéia de literatura universal. Nos comentários sobre o German Romance, publicados na revista Sobre Arte e Atingüidade, volume VI, segundo caderno, 1828, Goethe afirma: É preciso conhecer as peculiaridades de cada uma (dessas nações), para que elas as guardem para si, e, exatamente através disso, ter a possibilidade de trânsito entre elas: pois as particularidades de uma nação são como sua língua e as suas moedas, elas facilitam o trânsito, sim, elas é que o tornam totalmente possível. Uma total e verdadeira tolerância é alcançada de forma mais segura quando se deixa o peculiar de cada um dos homens e dos povos e, com essa percepção, conclui-se, entretanto, que, com isso, o mais verdadeiramente meritório se torna notável e este pertence a toda a humanidade. (Goethe, 1977, p.932)

Ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, entender uma manifestação literária como Weltliteratur não significa abrir mão de sua especificidade como literatura nacional; significa, antes de tudo, um mergulho no nacional até que se encontre o que há nele de universal. Uma obra da literatura universal precisaria, portanto, ter uma peculiaridade própria. Só assim daria expressão, de forma representativa, ao caráter desse povo. Esse caráter próprio, por sua vez, apresenta-se como uma manifestação especial da humanidade como um todo.


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Por meio desse enfoque, percebe-se, de maneira mais clara, a relação que se estabelece entre Weltpoesie e Weltliteratur. É exatamente o elemento peculiar de cada uma das literaturas que colabora para que ela integre o âmbito da Weltpoesie e assuma um papel importante na capacidade comunicativa da literatura universal. De acordo com esse conceito de Goethe, pode-se entender como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, alcançou repercussão internacional (Heise, 2000). Esse romance que, durante muito tempo, foi analisado apenas como um nítido representante da literatura regionalista brasileira, é hoje, reconhecidamente, considerado uma manifestação do modernismo mundial. Essa é, por exemplo, a opinião de David Jackson (1996, p.6), da Universidade de Yale, em uma entrevista sobre a recepção de Rosa nos Estados Unidos: A impressão que tenho é que ele junta várias das principais e melhores tendências do modernismo em geral. Ele tem todo um lado de experimentação lingüística que nós observamos em Joyce e Pound – aquele gosto não só pela palavra, pela etimologia, pela complexidade da própria forma verbal [...] Ele junta a isso, porém algo que em Joyce não encontramos, que é o lado folclórico, primitivista das vanguardas [...] E isso entra realmente por meio do elemento telúrico, da terra, da região dele, das práticas lingüísticas regionais. Guimarães une estas duas grandes tendências modernistas de uma maneira genial e pessoal.

Esse romance de Rosa faz do autor um mestre da modernidade e da classicidade, pela abordagem de uma visão global da existência, na qual se fundem a natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo. Refletindo no sentido inverso e convergente no que tange ao conceito de Weltliteratur, Rosa, em um extenso depoimento sobre literatura, concedido a Günter Lorenz, aponta o espelhamento do universal no nacional ao afirmar que existe entre si e Goethe uma interlocução humanística, pois, segundo Rosa, Goethe “era um sertanejo” que não escrevia para o dia, mas para o infinito.

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O conceito Weltliteratur não se concretiza, pois, apenas na direção de buscar no nacional o que há de universal, mas também no sentido inverso: em meio ao universal, resgatar o que existe de nacional. Identificar-se com uma cultura estrangeira é reconhecer nela o que há de universalmente humano, como reflexo de algo peculiar a sua própria sua cultura. Só ao se articular nesse espaço de mão dupla é que a literatura universal poderia preencher sua determinação: fazer que os povos se conheçam uns aos outros em suas peculiaridades, sem que sejam apagadas ou descaracterizadas as diferenças. Assim irão exercer uma complementação mútua e contribuir para a formação geral uns dos outros, por meio de uma doação recíproca. O elemento vital da Weltliteratur encontra-se nas transformações pelas quais cada literatura nacional passa em tempos de trocas universais.

Conversa entre as nações Estabelecer contato com outras nações por meio da presença, de viagens, como Goethe mencionara em seu discurso por ocasião do “Encontro dos Pesquisadores da Natureza”, não seria, porém, a única possibilidade de engendrar uma conversa entre as culturas. A mediação entre culturas e o reconhecimento mútuo também podem ser realizado por meio de traduções: Os alemães já contribuem há muito tempo para uma tal mediação e reconhecimento recíproco. Quem compreende e estuda a língua alemã encontra-se no mercado, onde todas as nações oferecem suas mercadorias e ele atua como intérprete, na medida em que se enriquece. Assim é que deve ser visto todo tradutor, aquele que se esforça como mediador desse comércio geral e espiritual e que faz negócio ao fomentar a troca mútua. Apesar de tudo aquilo que se possa dizer da insuficiência da tradução, ela é e permanece, sim, um dos mais importantes e dignos negócios no trânsito geral do mundo (Weltverkehr). O alcorão diz: “Deus deu a cada povo um profeta em sua própria língua”. Assim


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todo tradutor é um profeta ao seu povo. (Goethe, 1977, p.932-3)

A tradução, apresentada como uma forma prática de estabelecer o trânsito de idéias numa época profícua no campo da atividade tradutória, é um sinal manifesto de um período de tendências cosmopolitas. Mas o papel da tradução não se resume apenas a divulgar, por meio da transcrição para a cultura de chegada, uma obra significativa da cultura de saída. Nesse diálogo que se estabelece entre os dois mundos, assume importância vital o mecanismo da recepção Em sua introdução para A vida de Schiller (Leben Schillers) de Thomas Carlyle, 1830, Goethe afirma: A obra escrita em memória de Schiller pode, traduzida, trazer pouca coisa nova para nós: o autor tirou seus conhecimentos de escritos que já são há muito conhecidos por nós [...]. Mas o que deve ser altamente satisfatório para reverenciar Schiller e cada um dos alemães, como se pode dizer ousadamente, é compreender de forma imediata como um homem sensível, aplicado e sagaz pode, em seus melhores anos, do outro lado do mar, ser tocado, comovido e provocado pelas produções de Schiller e assim ser estimulado a outros estudos da literatura alemã. (Goethe, 1977, p.935)

O efeito principal do estudo de uma cultura estrangeira reside, portanto, no fato de se descobrir nela alguma coisa que nos diz respeito e está relacionada conosco: “compreender como um homem sensível pode [...] ser tocado, comovido e provocado pelas produções de Schiller”. Abrirse para uma outra cultura estrangeira, é, nesse nexo, não se entregar, mas, em última instância, receber. Falando em outros termos: a vivência e a convivência com uma cultura estrangeira tornam-me mais cônscio de minha própria identidade ao mesmo tempo que serve de força motriz para essa minha identidade, colocando-a em movimento. Citando a conclusão de Todorov (1991, p.16): “As coisas não são universais, mas os conceitos podem ser; a gente não deve simplesmente confundir os dois, assim o caminho da significação compartilhada pode permanecer aberto”. Em

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outras palavras, o universal interage com o nacional, torna o nacional mais atuante, fazendo, por sua vez, que o nacional se abra rumo ao universal.

Sociedade como um todo Em oposição ao ódio nacional e ao nacionalismo exacerbado que passou a vigorar em sua época por causa da ocupação napoleônica, Goethe sonhava com o ideal de uma cultura cosmopolita, baseada em uma nova ética, que só encontra sentido na cultura da sociedade como um todo. Em consonância com essa visão cosmopolita e de compreensão mútua é quase lógico que se desenvolva uma idéia supranacional e social de arte: a Weltliteratur. Note-se, contudo, que esse conceito de Goethe não surge desvinculado de seu tempo e do espírito de sua época, de seu Zeitgeist. Como afirma o próprio autor em conversa com Eckermann (1947, p.306-7) datada de 1º de abril de 1831: [...] ninguém em arte, se faz por si próprio. Como se o homem devesse a si próprio outra coisa que não fosse a estupidez! Mesmo se o artista não teve mestre célebre, pelo menos se beneficiou do contato com mestres excelentes de cujos ensinamentos [...] formou sua personalidade artística.

A idéia de uma literatura universal está subjacente na cosmovisão, na Weltanschauung, do Iluminismo. Conforme explica Rosenfeld (1992), o individualismo que se manifesta na Ilustração baseia-se na primazia da razão, substrato comum a todos os homens. Por mais que os indivíduos sejam diferentes entre si por causa de suas culturas, de seus lugares de origem, eles permanecem essencialmente iguais por serem todos dotados de razão, o fundamento da dignidade humana. A partir desses pressupostos é fácil entender o diálogo europeu que se estabelece entre as nações civilizadas do continente a partir da segunda metade do século XVIII (Hauser, 1998). A literatura de expoentes do Iluminismo como Voltaire, Diderot, Locke, Rousseau ou Lessing é a expressão de uma comunidade européia, a con-


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sonância dialógica de várias vozes, portanto, Weltliteratur no sentido mais estrito da palavra. Goethe, na busca por uma troca espiritual, quase que prevê o espaço intercultural que poderia se constituir na Europa. Hoje, dentro do conceito de Mercado Comum Europeu (Borchmeyer, 2004) já temos, no âmbito econômico, praticamente a abolição das fronteiras e dos limites entre as nações. A moeda comum, o euro, poderia ser encarada como um primeiro passo para uma unidade política e espiritual nessa procura utópica pela solidariedade universal. Em sua conversa com Eckermann de 14 de março de 1830, Goethe faz menção de um estado ideal da cultura, sem ódios, em que os homens estivessem além das fronteiras e sentissem as dores e as desgraças das nações vizinhas, como se fossem a suas próprias. Um exemplo palpável dessa comunidade baseada na solidariedade universal é delineado pelo autor no último monólogo do Fausto, no Faust II (Sudau, 1993), quando todos os homens reunidos pretendem construir um dique. Este é o último recado que Goethe deixa ao mundo pouco tempo antes de sua morte: Do pé da serra forma um brejo o marco, Toda a área conquistada infecta; Drenar o apodrecido charco, Seria isso a obra máxima, completa. Espaço abro a milhões – lá a massa humana viva, Se não segura, ao menos livre e ativa. Fértil o campo verde; homens rebanhos, Povoando, prósperos, os sítios ganhos, Sob a colina que os sombreia e ampara, Que a multidão ativa-intrépida amontoara. Paradisíaco agro, ao centro e ao pé: Lá fora brame, então, até à beira a maré. E, se para invadi-la à força, lambe a terra, Comum esforço acode e a brecha aberta cerra. Sim! da razão isto é a suprema luz, A esse sentido, enfim me entrego, ardente:

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À liberdade e à vida só faz jus, Quem tem que conquistá-las diariamente. E assim, passam em luta e em destemor, Criança, adulto e ancião seus anos de labor. Quisera eu ver tal povoamento novo, Em solo livre ver-me em meio a um livre povo. Sim, ao Momento então diria: Oh! Pára enfim – és tão formoso! (Goethe, 1991, p.435-6)

A idéia utópica e quase paradisíaca de que os homens juntos, em um “esforço comum”, poderiam conquistar um “solo livre” para se tornarem “um livre povo”, quase merece de Fausto, no fim de sua vida, a manifestação de plenitude, ao pedir que o tempo pare (“Oh! Pára enfim – és tão formoso!”). Com isso ele teria pronunciado as palavras centrais da aposta com Mefisto e, assim, entregue sua alma ao diabo. Mas a idéia de satisfação plena ainda é expressa sob forma de desejo: “Quisera eu ver tal povoamento novo, / Em solo livre ver-me em meio a um livre povo. / Sim, ao Momento então diria”. A formulação da utopia é, porém, expressa de maneira hipotética (que se atente para as formas verbais quisera e diria). No fim do Fausto, apesar de toda a procura, as condições que poderiam desvendar a essência e dar sentido à vida, precisam ser “conquistadas diariamente”. Reafirma-se, aqui, a suprema sabedoria reservada ao âmbito terrestre: criação é ação e a vida é uma ação contínua. A solidariedade universal, que se busca, expressa sob forma de utopia, poderia ser resumida na carta XXIV de A educação estética do homem, de Schiller (1990). Segundo esse outro representante do classicismo alemão, o homem só se torna humano, no sentido de representar a espécie, quando, indo além do estado estético, alcança o estado moral. É com essa etapa do estado evolutivo do homem que Goethe sonha ao preconizar uma Weltliteratur. Weltliteratur não equivaleria, portanto, ao que se percebe hoje como globalização, quando estamos sujeitos às regras do mercado; nossas especificidades são niveladas para se pautarem pela força motriz do desempenho e do


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ganho. O novo ethos universal, pressuposto no conceito de Goethe, corresponderia, antes, a uma idéia de universalização, o reconhecimento de uma cultura plural que preconiza a união e o contato entre povos no sentido de troca recíproca de bens culturais que, em última instância, levariam a um melhor conhecimento de cada um desses povos. Um novo conhecimento do outro leva a um novo conhecimento de mim mesmo, potenciando esse movimento rumo ao infinito. Nesse sentido, a universalidade, a utopia, esboça-se não como fato consumado, mas sob forma de projeto. Weltliteratur articula-se, pois, como um projeto em eterno devir. Volta-se à concepção emblemática expressa no Fausto que resume a única verdade destinada ao homem em seu mundo da imanência: a criação é ação e a vida é uma ação contínua.

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GOETHE, Johann Wolfgang von. Sämtliche Werke. Band 14. Schriften zur Literatur. München: Artemis; Verlags-AG, 1977. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998. HEISE, Eloá. Goethe, um teórico da transnacionalidade. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Rio de Janeiro, n.2, p.77-84, 2000. JACKSON, David. Entrevista. Folha de S.Paulo, São Paulo, 30 de junho de 1996, Jornal de Resenhas, p.6. LOBO, Luíza. Teorias poéticas do romantismo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1987. (Série Novas perspectivas, 20) ROSENFELD, Anatol. Autores pré-românticos alemães. São Paulo: EPU, 1992. . Unidade e mutiplicidade. In: Paulo: Edusp, 1993. p.259-66.

. Texto e contexto II. São

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TODOROV, Tzvetan. The Morals of History. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991.


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Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista Paulo César Silva de Oliveira*

RESUMO: Este trabalho investiga as questões críticas contemporâneas que procuram compreender a literatura como um campo de saber privilegiado acerca do mundo e da sociedade. Para tanto, estuda, no percurso crítico do comparatismo contemporâneo, em seu diálogo com a esfera multiculturalista, alguns elementos de interlocução entre texto literário e sociedade, texto crítico e criação artística, em uma relação que chamamos de “texto crítico do mundo”, quando confrontada a uma outra relação, denominada por nós “mundo crítico do texto”. PALAVRAS-CHAVE: Crítica. literatura. saberes, multiculturalismo. ABSTRACT: This article aims at investigating contemporary criti-

cal issues concerning the understanding of literature as a privileged source of knowledge in the world and society. Therefore, following the critical paths of contemporary comparatism in its multicultural sphere, it addresses some conversational elements between literary text and society, criticism and artistic creation, in a relationship here named the “critical text of the world” as opposed to another hence called the “critical world of the text”. KEYWORDS:

Criticism, literature, knowledge, multiculturalism.

Introdução

* Universidade Iguaçu (UNIG).

Se um dia a invasão multiculturalista batesse em retirada, tornar-se-ia um problema para os historiadores de suas idéias. Essa apropriação de Derrida nos parece bastante apropriada para começo de discussão. Se o crescente relevo dado ao assunto nos impele à reflexão de seus mecanismos e conseqüências, o fato de estarmos, ao mesmo tempo, vivenciando o fenômeno ao criticá-lo, nos coloca diante de certos impasses. O primeiro deles diz respeito


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à transitoriedade dos argumentos, já que não temos pouco distanciamento histórico para validar certas posições. O segundo, a afluência ininterrupta de novas vozes e controvérsias estimula a diversidade de orientações teóricas, o que estabelece no debate crítico, muitas vezes, certa instabilidade, a qual nos remete quase sempre ao caráter provisório dos postulados multiculturais. Assim sendo, queremos, por meio desta investigação, reavaliar algumas questões centrais da literatura comparada contemporânea por intermédio de um certo número de textos críticos, e com eles pensar a atual situação da literatura, da crítica e teoria literária em geral, e as relações entre leitura, cânone literário, cultura, escrita e história. A idéia central a nos guiar articula-se na produção recente dos teóricos multiculturalistas e visa compreender como conceitos de nação, narração, história, literatura, crítica, dentre outros, requerem uma nova concepção de cultura, cujos objetivos, ao final, são: avaliar novos parâmetros do pensamento literário contemporâneo por meio, especialmente, da crítica aos cânones estabelecidos, e estudar os efeitos do pensamento hegemônico no debate crítico e sua contrapartida.

Uma aproximação ao tema 1

Se pudéssemos eleger um texto-chave, catalisador do debate que hoje se trava entre multiculturalistas e cultores da especificidade do literário, esse seria O cânone ocidental, de Harold Bloom (1995). Esse livro sacudiu o meio acadêmico no momento em que os chamados estudos culturais se encontravam no auge de suas formulações. Curiosamente, a reação de Bloom sucede exatamente ao pronunciamento de Charles Bernheimer (em 1995), submetido à Associação Americana de Literatura Comparada, no qual o autor vai mostrar como o impacto das novas idéias acerca da noção de literatura e cânone demanda um novo questionamento sobre o papel do intelectual e do lugar da Academia na contemporaneidade.

“Alunos de literatura comparada, com seu conhecimento de línguas estrangeiras, treinamento em traduções culturais, excelência no diálogo entre disciplinas e com sofisticação teórica estão em posição privilegiada no que diz respeito ao largo alcance dos estudos literários contemporâneos. Nosso relatório encaminha algumas diretrizes sobre o modo como os currículos podem ser estruturados a fim de expandir as perspectivas dos alunos e estimulá-los a pensar em termos culturalmente pluralistas.”

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Bernheimer, em texto extremamente equilibrado (1995), mas sem demitir a polêmica, acabou por provocar uma série de “respostas” (prós e contra) que viriam a formar um volume dedicado à questão da literatura e do comparatismo. Seu relatório, porém, apenas diagnosticava as preocupações que rondavam os estudos acadêmicos – identidade lingüística e identidade nacional; o problema da tradução; o crescimento dos programas interdisciplinares; a oposição estudo diacrônico versus estudo sincrônico etc. –, propondo uma renovação dos estudos literários, especialmente para a pós-graduação. Nessa “recontextualização” de perspectivas, Bernheimer é incisivo quanto ao alargamento do campo do comparatismo. Especialmente, concorda com a idéia de que o fenômeno literário não é mais foco exclusivo da literatura comparada. A literatura pode e deve ser lida junto a outras manifestações artísticas e teóricas – música, teatro, cinema, artes plásticas, filosofia, história etc. – já que se trata, em todos os casos, de fenômenos discursivos. Bernheimer destaca a importância do conhecimento de línguas estrangeiras, mas questiona o eurocentrismo que concentra os objetos de estudo em três ou quatro línguas européias. Por esse motivo, procura minimizar antigas hostilidades quanto à tradução, propondo, finalmente, uma reavaliação crítica do comparatismo, a qual deverá, necessariamente, passar pela leitura não-canônica de textos canônicos. Concluiremos esse pequeno sumário das idéias contidas no “Bernheimer Report” com as palavras do autor, a fim de que possamos seguir adiante com nosso excurso crítico: Students of comparative literature, with their knowledge of foreign languages, training in cultural translations, expertise in dialogue across disciplines, and theoretical sophistication, are well positioned to take advantage of the broadened scope of contemporary literary studies. Our report puts forward some guiding ideas about the way curricula can be structured in order to expand students perspectives and stimulate them to think in culturally pluralistic terms.1 (Bernheimer, 1995, p.47)


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Cânones e anticânones Ao contrário das análises de Bernheimer, o texto de Bloom está menos comprometido com as questões especificamente acadêmicas e mais preocupado com o avanço e influência de certas “forças progressistas” que, segundo ele, confundem a grande literatura com programas de salvação e justiça social. Bloom (1995) propõe uma cruzada em favor do estético, mas esquece que a Estética como disciplina é filosofia da arte em forma enrijecida, na qual as potencialidades do pensamento são reduzidas a pré-conceitos. Derrida (1995) já advertira para o perigo que acabou por dominar a crítica literária, o de vê-la transformada em filosofia da literatura, cujo efeito imediato foi a criação de um império conceitual que emperrou, mais do que auxiliou, a compreensão do fenômeno literário. Quanto a isso, Derrida (1995, p.14) dirá: “Para apreender mais de perto a operação da imaginação criadora, é preciso, portanto, virarmo-nos para o invisível interior da liberdade poética”. Os críticos, tal como os filósofos, aproximam-se da obra “armados de um par de conceitos e de uma grade especulativa” (ibidem, p.83), introduzindo um corpo estranho em um campo que necessita “desarmar-se” da linguagem metafísica. A resistência a esse modo de pensar o literário é o próprio ato da desconstrução, diz Derrida (1995, p.49). O texto de Bloom demonstra, em parte e em consonância com o que Derrida apontou, essa vontade de compreensão do texto literário – os capítulos intermediários em que analisa a grande literatura canônica nos dão prova disso – mas, em contrapartida, cede em demasia à tentação do debate sensacionalista, o qual ameaça reduzir seus pressupostos a uma mera volta aos conceitos de centro e hegemonia. Nesse caminho, o primeiro passo de Bloom (1995, p.31) é defender o pressuposto de que “o que se chama de valor estético emana da luta de classes” preconizada pelos teóricos multiculturalistas. Dessa forma, vai concluir que “ler a serviço de qualquer ideologia é [...] não ler de modo algum” (ibidem, p.36).

2

Ver, especialmente, a primeira seção.

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Bloom acredita escapar da ideologia pela via do estético, como se cada categoria que representa a crítica estética não estivesse, de algum modo ou de outro, comprometida com um vocabulário metafísico-ideológico impregnado de valores. Ao crer que sua crítica “estética” escapa ao ideológico, incorre nas próprias limitações que combate: é um ideólogo, mais comprometido com a reação aos novos postulados críticos do que com a reflexão sobre a primazia estética do literário, o que põe em xeque o caráter histórico do próprio texto. Sob outros aspectos, é preciso reconhecer que O cânone ocidental tem o mérito de denunciar o crescente desprestígio da leitura atenta e dos valores estéticos constitutivos das obras literárias em favor de “bons ideais” – os quais, convenhamos, não enriquecem (realmente) a boa literatura e a oportuna crítica literária. O problema é Bloom conceber a diferença somente atrelada a um centro, o que é uma noção em tudo oposta à lógica da diferença – teoria de fundamental importância para os multiculturalistas – compreendida por Derrida (apud Santiago, 1975, p.81) por meio do conceito de suplementaridade: “abertura interpretativa, colocando-se como primordial importância [...] o jogo relacional dos elementos” que podem suprir o centro. É o que Gianni Vattimo (1988), no excepcional As aventuras da diferença,2 vai chamar de jogo: o elemento que caracteriza a vida autônoma, ao mesmo tempo conjuntural e exposto ao acaso. Como se vê, o debate proposto por Bloom, longe de esgotar o assunto, muitas vezes o reduz, simplifica e apaga como fenômeno. Enquanto as preocupações de Bernheimer traduzem a perplexidade da Academia ante os novos reclames, a crítica prescritiva de Bloom rejeita o que chama de “marxismo” disfarçado em teoria literária para colocar-se do lado da “verdade” do literário – que é correlata, segundo ele, à face estética de todo texto artístico. Sem perder de vista essas duas visões, tracemos um breve panorama de alguns dos principais textos e teóricos multiculturalistas.


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É certo que um dos marcos da nova crítica multiculturalista é o livro de Edward Said (1995), Orientalism, de 1978. Já um clássico contemporâneo, o texto propõe investigar de que modo o que hoje se pensa e escreve acerca do Oriente é, em verdade, fruto de uma representação européia dessas culturas, muito mais impulsionada por motivos políticos e socioeconômicos do que por um esforço de compreensão da natureza e cultura desses povos. O Oriente, diz Said (1995, p.1), não é apenas adjacente à Europa; é, também, a própria imagem que o ocidental tem do “outro”. Por extensão, o Oriente ajudou a própria Europa a definir-se (assim como ao próprio Ocidente) por meio das imagens, idéias, personalidade e experiência contrastantes: Yet none of this is merely imaginative. The Orient is an integral part of the European material civilization and culture. Orientalism expresses and represents that part culturally and even ideologically as a mode of discourse with supporting institutions, vocabulary, scholarship, imagery, doctrines, even colonial bureaucracies and colonial styles.3 (ibidem, p.2)

O livro de Said nos apresenta uma mescla bastante equilibrada de rigor do pensamento e atuação política, sem esquecer o texto literário, fonte primária de sua reflexão. Por isso, pode-se, sem dúvida, considerar as seguintes palavras do autor como um ponto marcante dos atuais debates críticos: And indeed, one of the most interesting developments in postcolonial studies was a re-reading of the canonical cultural works, not to demote or somehow dish dirt on them, but to re-investigate some of their assumptions, going beyond the stiffling hold on them of some version of the master-slave binary dialect.4 (ibidem, p.350-1)

Se percebermos os ecos das palavras de Said no próprio texto de Bernheimer, com o qual abrimos nosso debate (Bernheimer defende uma exaustiva releitura das obras canônicas), saberemos que os efeitos do fragmento supra-

3

“Nada disso, no entanto, é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integral da civilização material e cultural européia. O orientalismo expressa e representa aquela região culturalmente, e mesmo ideologicamente, como um modo do discurso, com instituições de apoio, vocabulário, bolsas de estudo, criação de imaginário, doutrinas e mesmo burocracias coloniais, estilos coloniais.”

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“E, de fato, um dos mais interessantes desenvolvimentos nos estudos pós-coloniais foi a releitura dos trabalhos culturais canônicos, não para demover ou mesmo atirá-los na lama, mas para reinvestigar alguns de seus pressupostos, indo além da mera subordinação a eles, quase uma versão da dialética senhor-escravo.”

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“enredado pela raça, pela história e pela ciência era livre e moral.”

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citado ainda se fazem sentir. Além disso, o impulso dado pelo Orientalism aos chamados Post-Colonial Studies é inegável. Said elege o século XVIII como o ponto de partida para o terceiro significado que confere ao tema do orientalismo: uma instituição corporativa visando tratar do Oriente. O clássico texto de Renan (1996), também analisado por Said, mostra de forma admirável o concerto das idéias que, a partir do crescimento do interesse sobre a problemática da nação, ajudou a construir o olhar ocidental sobre a diferença. Nesse documento, entre outras teses, Renan defende o conceito de nação fundada pela vontade política. O fundamento dessa vontade é retirado do passado. As nações são, portanto, uma invenção, e, como tal, não são eternas, diz Renan. Nesse começo sem fins previsíveis, só as vicissitudes históricas poderão, no futuro, confirmar o destino da noção de nação. Said vê as teses de Renan como condições impostas pelo intelectual sobre o homem. Renan, intelectual europeu, partilha, obviamente, de determinada visão de mundo na qual o homem “enchained by race, history, and science was free and moral”5 (Said, 1995, p.147). O próprio Renan, diz Said, sabia-se criatura de seu tempo, atravessado pela cultura etnocêntrica de sua época. O estudo do trabalho de Renan, What is a Nation?, indica que a problemática da nação é uma noção complexa, o que explica o atual interesse pelo tema, exatamente no momento em que se discutem as fronteiras do conceito na nova geografia mundial. Em um excelente momento, o texto de Ed Ahearn e Arnold Weinstein resume bem a atual posição dos estudos comparativos e/ou culturais: [...] we are saying that the geopolitical activities, conflicts and dilemmas of our time require a citizenry that has learned something about the history, aspirations, and complex reality of other peoples, and that the study of literature and other arts is a privileged entry into these matters. However, unlike English or the national language departments or even cultural studies programs, comparative literature is inherently pluralist, aware of but not


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defined by Difference in all its powerful forms: language, religion, race, class, and gender.6 (apud Bernheimer, 1995, p.147)

Nesse pequeno exemplo estão contidos os principais temas dos estudos culturais. Dentre eles, gostaríamos de abordar, no momento, os estudos de Homi Bhabha, já clássicos nos meios acadêmicos. Sob vários aspectos, o trabalho de Bhabha pontua algumas preocupações de Said, embora divida a atenção aos fatos históricos com um conjunto de conceitos filosóficos inspirados fortemente por Martin Heidegger e Jacques Derrida. Para entendermos algumas das posições de Bhabha (1993a, p.4-5), comentemos esta pequena passagem em The Location of Culture: The wider significance of the postmodern condition lies in the awareness that the epistemological “limits” of those ethnocentric ideas are also the enunciative boundaries of a range of other dissonant, even dissident histories and voices – women, the colonized, minority groups, the bearer of policied sexualities.7

Por isso, a questão das fronteiras tem que ser discutida, primeiramente, em bases filosóficas; não é um novo horizonte nem esquecimento do passado, já que começo e fim fazem parte de uma sistematização metafísica tradutora dos binarismos que colocaram de lado o papel da alteridade, do “eu-com-o-outro”, relegando as diferenças a mero papel coadjuvante. O mundo moderno, acentua Bhabha, vai se definir em termos de raça, gênero, locações institucionais e orientação sexual, tudo isso conjugado à nova posição do sujeito no mundo, ou, melhor dizendo, a uma nova reorientação da noção de sujeito e suas posições dentro de uma cultura híbrida que caracteriza nossa época. São esses os novos “signos da identidade”, espaços da inovação e contestação cujos fragmentos definem uma concepção de sociedade. A idéia de fragmento pontua o texto de vários teóricos, como Partha Chatterjee (1994), para quem pensar a nação significa percorrer o sistema discursivo tradicional, criticar suas bases e redefinir os novos questionamentos.

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6 “[...] estamos dizendo que as atividades geopolíticas, os conflitos e os dilemas de nossa época requerem uma ação de cidadania que tenha aprendido algo sobre a história, aspirações e as complexas realidades de outros povos, e que o estudo da literatura e de outras artes é uma chave privilegiada para se abordar esses assunto. Entretanto, ao contrário dos departamentos de inglês ou de línguas nacionais, ou mesmo dos programas de estudos culturais, a literatura comparada é inerentemente pluralista, ciente, porém não definida pela Diferença em suas formas mais poderosas: língua, religião, raça, classe e gênero.”

7

“A mais ampla significação da condição pós-moderna reside na consciência de que os ‘limites’ epistemológicos daquelas idéias etnocêntricas são também os limites enunciativos de uma gama de outras histórias e vozes dissonantes ou até mesmo dissidentes – mulheres, os colonizados, as minorias, os que sofrem com o policiamento de sua sexualidade.”

8

“negociarmos os poderes da diferença cultural em uma gama de lugares trans-históricos.”

9

“de alguma forma, fora de controle.”

10 “transformar nossa percepção do que significa viver, para nos colocarmos em outras épocas e diferentes espaços, ambos humanos e históricos.”

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Tomando a Índia como exemplo, Chatterjee analisará a emergência do estado colonial ligado a um regime de poder moderno. Mas pensar o estado colonial também significa interrogar a diferença colonial em termos de discurso dominante. A legitimidade da dominação britânica ergueu-se na criação da figura do “governo pessoal”, ou seja, na criação de um governo onipresente, ligado a um chefe ou líder, já que os indianos não compreenderiam, supostamente, um “governo impessoal” (Chaterjee, 1994, p.16). Chatterjee, como Bhabha, centraliza suas indagações na análise do discurso. O discurso filtrado pelo colonizador faz parte de duas estratégias, já apontadas por Foucault: olhar e narrar. Esse duplo movimento, para Bhabha, é o próprio cerne da condição pós-colonial. Assim, negociação é a palavra-chave, para Bhabha (1993a, p.9), pela qual deveremos “negociate the powers of cultural difference in a range of transhistorical sites”.8 A categoria unhomely aparece como definidora das condições de questionamento do homem pós-colonial. Articulado a esse conceito está o movimento do dentro-fora, que a escola da desconstrução cunhou como possibilidade de se interrogar a diferença ao mesmo tempo dentro e fora do sistema que se pretende desconstruir. Essa posição marca uma atitude de guerrilha filosófica que visa desconstruir de forma sistêmica o conjunto de valores metafísicos. Uma vez cientes da impossibilidade de se destruir a linguagem metafísica, precisamos encontrar os pontos de não-conformidade que mostrem os limites e as margens deste pensamento para expô-los à contradição. Essa “responsabilidade” do crítico consiste em revelar como a ação histórica se transforma no processo de significação, representado no discurso, que é “somehow beyond control”9 (Bhabha, 1993a, p.12). Não basta criticar as narrativas correntes, mas sim “transform our sense of what it means to live, to be in other times and different spaces, both human and historical”10 (ibidem, p.256). Em outro trabalho, Bhabha (1993b, p.305) reafirma seu projeto de releitura crítica:


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This supplementary space of cultural signification that opens up – and holds together – the performative and the pedagogical provides structural characteristics of modern political rationality: the marginal integration of individuals in a repetitious movement between the antinomies of law and order.11

A diferença cultural será reconhecida, desse modo, quando forem anulados os efeitos de um discurso cultural totalizante. É na morte do grand récit que se ergue o projeto da alteridade, conforme Bhabha (1993b, p.312): “Cultural difference must not be understood as the free play of polarities and pluralities in the homogeneous empty time of the community”;12 ao contrário, a diferença cultural é “a form of juxtaposition or contradiction that resists the teleology of dialectical sublation”.13 Como vimos, na análise da obra de Said, não se pode perder de vista que a arquitetura do discurso colonial e do olhar sobre o Oriente são construções cujo caráter ideológico e político forma o conceito da diferença sob o ponto de vista do europeu. Quando expomos o conjunto de contradições no qual o discurso dominante da diferença cultural se sustentou, aportamos nas fronteiras desses próprios discursos, explicitamos suas limitações e, na relativização de suas margens, esboçamos uma outra reflexão, que inclui a alteridade, a diferença já despida da lógica binária metafísica. Se, porém, por um lado, essas teorias pretendem falar sobre o outro da história, o esquecido que deve ser trazido ao presente como forma de resgate de um passado adormecido, por outro, teremos que interrogar, necessariamente, o papel do intelectual nesse projeto. Se sua função é buscar o inaudito, o ainda não-colocado como questão, é preciso, em primeiro lugar, discutir a autoridade desse mesmo intelectual; perguntar acerca desse pretenso mandato do qual ele se vale para falar pelo outro. E o que dizer do intelectual que fala como o outro? Tal gesto envolveria distanciamento e neutralidade? Ou, dito de outra forma: será possível esse distanciamento e será esse distanciamento a marca de autenticidade do falar pelo/ como o outro?

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11 “Este espaço suplementar da significação cultural que abre – e atrela – o performativo e o pedagógico nos fornece as estruturas características da racionalidade política moderna: a integração marginal de indivíduos em um movimento repetitivo entre as antinomias da lei e da ordem.”

12

“A diferença cultural não deve ser entendida como o jogo livre das polaridades e pluralidades no homogêneo tempo vazio da comunidade.” 13 “uma forma de justaposição ou contradição que resiste à teologia da dedução dialética.”

14

As principais idéias de Spivak em relação ao problema da auto-representação cultural, do multiculturalismo e sobre o papel do crítico pós-colonial encontram-se em entrevistas editadas por Sarah Harasym (1990), de onde retiramos a maior parte de nossas considerações. Um dos pontos que gostaríamos de abordar nesta nota, mas que não está diretamente ligado a nossos interesses diretos neste trabalho, é a crítica de Spivak a Foucault. Spivak diz que – sem desmerecer a importância de Foucault, a quem admira – há um impulso de se falar pelas massas, descrevê-las, salvá-las, e é contra essa tentação que Spivak quer lutar. É preciso, diz, representar e analisar o oprimido, sem, contudo, mistificar o fato de que é o intelectual e não o oprimido quem está falando e que esta fala, embora comprometida com as marcas, os rastros do outro, é simplesmente o resíduo do outro que fica no discurso daquele que o enuncia. Para maiores informações, ver Harasym (1990). 15

“O outro nunca está fora ou além de nós; ele emerge forçosamente, dentro do discurso cultural, quando pensamos mais intimamente e originariamente ‘entre nós mesmos’.”

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Gayatri Spivak defende alguns pontos de vista em torno dessa questão. Em primeiro lugar, dirá, o crítico precisa tornar-se representativo e isso requer uma autocrítica constante de seu papel como porta-voz de um certo discurso alheio. Em segundo lugar, o intelectual deve evitar a tendência de falar tal como aquele que julga representar. Um terceiro ponto seria o de que o crítico pós-colonial deve compreender seu papel na sociedade (no caso de Spivak, intelectual, mulher, feminista, marxista) e isso requer mobilidade, e sua atuação será sempre politicamente contaminada e diaspórica. O terceiro ponto é crucial, pois propõe a figura da negociação em espaços não-consensuais ou semiconsensuais como saída para a ação crítica. Finalmente, Spivak critica o cromatismo, isto é, a teoria de que só se pode falar pelo negro sendo negro, pela mulher sendo mulher etc. A fala do critico diaspórico é, por definição, deslocada, homóloga à própria definição da alteridade.14 Para melhor ilustrar esse ponto, recorramos outra vez a Bhabha (1993b, p.4): “The other is never outside or beyond us; it emerges forcefully, within cultural discourse, when we think we speak most intimately and indigenously ‘between ourselves”.15 Antes de passarmos a questões mais específicas do texto literário, gostaríamos de comentar um conceito presente nas discussões de Said, Bhabha e Spivak, e que diz respeito ao hibridismo cultural. As interrogações desses autores, embora estejam na pauta do dia, não são novas. Em uma sociedade cada vez mais mediatizada pelos aparelhos de comunicação, pela invasão diária da indústria do espetáculo, qual seria o papel do crítico, do escritor e sua escrita ficcional? Como estão sendo refletidos pela ficção a problemática da subjetividade e o conceito de sujeito, a problemática da violência, do espetáculo, da hibridização cultural nesse espaço multifacetado em que forças antagônicas da sociedade contemporânea interagem? Estendendo a discussão ao campo da literatura, perguntamos: de que forma se pode compreender a questão dos cânones literários em um mundo cada vez mais ávido


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por espetáculos, menos letrada, mais cosmopolita e híbrida? Segundo Canclini (1995a, p.204), o multiculturalismo surgiu “das formas modernas de segmentação e organização da cultura em sociedades industrializadas”. Paralela a essa questão, diz Canclini, a noção de modernização também teve que incorporar segmentos que não coadunam com a lógica da homogeneização, posto que a diferença surge como marca dos países periféricos, tais como os da América Latina. Nessa categoria, diz, estariam os trinta milhões de indígenas espalhados pelo continente latinoamericano. Se a questão da diferença se torna, assim, fundamental, a não menos importante questão do hibridismo cultural se faz, mais que presente, fundamental. Pois mesmo hoje não carrega a América Latina, como marca, as contradições de uma modernidade que não atingiu igualitariamente o conjunto dos povos que abriga? Não se mostra sua organização social de forma cada vez mais segmentada? Transportando a interrogação para o domínio da arte, a questão deve migrar do âmbito estético para um locus mais abrangente, como explica Canclini (1995b, p.6): What is art is not only an aesthetic question: we have to take into account how it responds at the intersection of what is done by journalism and critics, historians and museum writers, art dealers, collectors and speculators. In similar fashion, the popular is not defined by an a priori essence but by stable, diverse strategies with which the subaltern sectors themselves construct their positions and also by the way the folklorist and the anthropologist stage popular culture for the museum or the academy, the sociologists and the politicians for the political parties, the communication specialists for the media.16

Pensar a arte é, portanto, o mesmo que questionar um conjunto de pressupostos que moldaram o gosto, emitiram critérios de valor e ainda hoje subordinam o objeto artístico a conteúdos estéticos representativos de uma elite cultural hegemônica. As teorias que interrogam a diferença, os conceitos de hegemonia, valor, classe, grupo, etnicidade, dentre outros, privilegiam não mais o grand récit,

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“O que é a arte não é meramente uma questão estética: temos que levar em consideração como a arte responde na interseção do que é feito pelo jornalismo e pela crítica, por historiadores e museólogos, negociadores de arte, colecionadores e especuladores. Da mesma forma, o popular não é definido por uma essência a priori mas por estratégias duradouras, diversas, com as quais os setores subalternos constroem para si posicionamentos e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo organizam a cultura para o museu ou para a academia; os sociólogos e os políticos a encenam para os partidos; e os especialistas da comunicação o fazem para a mídia.”

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mas os discursos de grupos cada vez mais segmentados. E se os mass media são a expressão dominante desses grupos, a teoria deve compreender o fenômeno, analisá-lo e criticálo. Nesse sentido, o pioneiro Mitologias, de Roland Barthes, é uma referência essencial. Por meio desse pequeno livro, escrito entre 1954 e 1956, Barthes pretende analisar alguns mitos presentes na vida e cultura francesas. Do catch ao bife com batatas, passando pela fotografia, pelo teatro, pelo cinema dentre vários outros tópicos, nada escapa à percepção do crítico, que conclui seu ensaio com uma dura constatação: “Parece que estamos condenados, durante certo tempo, a falar excessivamente do real”, mas propõe que haja “uma reconciliação entre o real e os homens, a descrição e a explicação, o objeto e o saber” (Barthes, 1993, p.178). A dificuldade da sociedade dita de massas estaria, segundo Barthes, oscilando entre dois métodos que consistiram em ideologizar ou poetizar o real. Na perspectiva mais contemporânea de Canclini, devemos, na verdade, negociar com as instâncias ideológicas e desconstruir seus mecanismos a fim de que possamos criar estratégias de entrada e saída para que os impasses e contradições da modernidade sejam postos em prática, discutidos, reavaliados e recolocados sob a forma de novas interrogações. Barthes fala de um tempo em que se começa a desconstruir de forma contundente a História maiúscula e seus conceitos de verdade. A Nova História, a História das Mentalidades, bem como outras correntes, mostraram que o real é um constructo no qual certos discursos dominam em detrimento de outros. A inclusão de novos discursos permitiu que se problematizasse, entre outras coisas, a autoridade do historiador, bem como o conceito de autoria. Em What is an author? Foucault (1984) vai dizer que não mais ouviremos perguntas acerca de quem fala na obra, sua autenticidade, identidade ou originalidade. A famosa questão da morte do autor ganhará, com o pensador francês, novas abordagens: “What are the modes of existence of this discourse? Where has it been used, how can it circulate,


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and who can appropriate it for himself? What are the places in it where there is room for possible subjects? Who can assume these various subject functions?”17 (ibidem, p.120). A autoridade sobre o discurso se desloca de um centro irradiador para os possíveis e vários sujeitos proferidos pelo próprio discurso. Assim, que diferença faz quem é o autor? A interrogação de Foucault sublinha a crise de uma idéia de autenticidade conferida ao sujeito, antes visto como eixo centralizador das especulações e produções discursivas. Homi Bhabha defende a idéia de que só se compreende o papel do sujeito e sua fala pelo lugar que esse ocupa, e não o oposto. Inspirado claramente pela Escola da Desconstrução, Bhabha (1993a, p.1) vê o conceito de fronteira (border) como característica do presente, já que é entrecruzamento, horizonte, além, presença: “The ‘beyond’ is neither a new horizon, nor a leaving behind of the past”.18 Bhabha fala ainda do presente como um tempo sem começos ou fins visíveis, como um “momento de trânsito”, em que espaço e tempo se cruzam e produzem figuras complexas de diferença e identidade. Bhabha (1993a, p.2401) propõe ainda estabelecer um “signo do presente”, no qual a modernidade se caracterizaria pela “ética da autoconstrução” em nome da autonomia cívica e do remodelamento dos conceitos. Neste momento, gostaríamos de lembrar Martin Heidegger (1990, p.22) que, em 1962, com um texto intitulado Langue de tradition et langue technique, procura resgatar o sentido originário da palavra technique, que deriva do grego technikon e significa “veiller sur une chose, la comprendre”.19 Acreditamos que é justamente quando nos voltamos a uma reflexão sobre a hegemonia do presente e da técnica que percebemos o algo que se perde, não somente no sentido do tempo que se perde, mas daquilo que se fechou como manifestação, como fenômeno. Talvez o olhar insistente, ostensivo e excessivo para o presente esteja sufocando a reflexão sobre o originário, ou mesmo passando por sobre as marcas deixadas como rastro no tem-

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17 “Quais são os modos de existência desse discurso? Onde ele é usado, como pode circular, e quem dele se apropria em benefício próprio? Quais são os lugares no discurso em que há espaço para sujeitos possíveis? Quem pode assumir essas várias funções de sujeito?”

18 “O ‘além’ não é, nem um novo horizonte, nem o abandono do passado.”

19 “velar sobre uma coisa, compreendê-la.”

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po. Essa parece ser a natureza da reflexão heideggeriana ao retomar o sentido primeiro da palavra techné. Faz-se urgente a negociação entre instâncias do presente e do passado, e é certo que teremos ainda que aprender como funcionam os mecanismos de entrada e saída das questões trazidas ao presente pela modernidade, como propõe Canclini, já que a ambivalência moderna pressupõe maleabilidade e diferenças. Pensar como a escrita ficcional se comporta em relação a essa problemática – na perspectiva levantada por Bernheimer –, a de se efetuar leituras não-canônicas de textos canônicos – é o mesmo que reaproximar o texto do sentido primeiro do technikon. Entre outros aspectos, devemos compreender como a quebra da confiança em uma subjetividade centralizadora e onipotente moldou novas relações, atitudes e encaminhamentos, tornando a reflexão ficcional em um mundo cultural cada vez mais híbrido o lugar essencial da desconstrução dos grand récits dominantes. Os estudos contemporâneos, nos mostra claramente Linda Hutcheon (1991), não podem viver mais de totalizações, mas sim do questionamento dos limites, alcances e poderes dos discursos hegemônicos. Hutcheon entende que definir nossa época com base na análise crítica do texto literário requer de nós uma perspectiva pluralista, que se estabelece como visão poética no momento em que compreendemos os principais dilemas a nós colocados pela contemporaneidade, dilemas esses inter-relacionados aos desafios oriundos de políticas globalizadas e hegemônicas. Para tanto, Hutcheon (1991, p.289) conclui pela reflexão em torno de algumas questões fundamentais para se reconduzir o debate em torno da literatura, especialmente na ficção contemporânea: “o conhecimento histórico, a subjetividade, a narratividade, a referência, a textualidade e o contexto discursivo”.

Conclusão Vivemos em uma época de revisões: revisão da história, da crítica literária; dos cânones que formataram a cul-


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tura ocidental hegemônica, ou dita oficial; do papel das minorias; dos conceitos de sexo, raça, gênero etc. Movimentos cada vez mais representativos como o feminismo, o movimento homossexual, dos negros, das minorias políticas, dentre tantos outros que, dia-a-dia, pululam em nossa sociedade, forçaram a inclusão de novas vozes e discursos na historiografia oficial, em constante distensão das margens de questionamento e das construções de mundo. Vivemos em um tempo de perplexidades, em que procuramos ainda redefinir nosso papel ante os novos mecanismos de saber. É tempo de se repensar a literatura e a crítica, de se questionar a validade e/ou pertinência daquilo que chamamos, oficialmente, o cânone. Nossa preocupação, neste ensaio, foi a de pensar a literatura, a teoria literária contemporânea e a literatura comparada investigando de que variadas maneiras formou-se uma idéia hegemônica de belo, de verdade e supremacia de certos escritos ditos elevados em detrimento de outros. Questionar o lugar de onde se fala, o lugar da fala, significa, portanto, compreender, em primeiro lugar, quem é esse sujeito que fala, e, mais adiante: que construções de mundo o atravessam; quais conceitos formam sua idéia de cultura; como sua visão do mundo e da cultura refletem um pensamento político, de classe, de gênero etc.; e, enfim, quais estratégias devem ser traçadas para que possamos promover a discussão crítica desses postulados, os quais, expostos à radicalização da diferença, possam apontar para a possibilidade de um texto crítico do mundo, opositivo, contundente e reconstrutor. Em um mundo cada vez mais híbrido, há urgência em se negociar com as várias instâncias estéticas, políticas e ideológicas, a fim de que repensemos fronteiras, redefinindo, dessa forma, o papel do saber, do conhecimento em um novo récit, não mais marcado e definido por totalizações e processos hegemônicos.

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Referências BARTHES, Roland. Mitologias. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. BERNHEIMER, Charles. (Ed.) Comparative Literature in the Age of Multiculturalism. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995. BHABHA, Homi. The Location of Culture. London: Routledge, 1993a. . Nation and Narration. London: Routledge, 1993b. BLOOM, Harold. O cânone ocidental. 2.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos culturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995a. . Hybrid Cultures: Strategies for Entering and Leaving Modernity. Minneapolis: University of Minnesota, 1995b. CHATTERJEE, Partha. The Nation and its Fragments: Colonial and Postcolonial Histories. Princeton: Princeton University Press, 1994. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1995. FOUCAULT, Michel. What is an author? In: RABINOW, Paul. (Ed.) Foucault. Reader. New York: Pantheon Books, 1984. HARASYM, Sarah. (Ed.) The Post-Colonial Critic: Interviews, Strategies, Dialogue. New York: Routledge, 1990. HEIDEGGER, Martin. Langue de tradition et langue technique. Paris: Lebeer-Hossmann, 1990. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. RENAN, Ernest. What is a nation? Toronto: Tapir Press, 1996. SAID, Edward. Orientalism. New York: Vintage Books, 1995. SANTIAGO, Silviano. Desconstrução e descentramento. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.41, 1975. VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença. Lisboa: Edições 70, 1988.


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Nação: civilização e barbárie Josalba Fabiana dos Santos*

RESUMO: Há uma relação intrínseca na moderna história européia entre nação e civilização. São palavras intercambiáveis: uma só existiria com a outra. O Brasil, cunhado como Estado independente a partir de 1822, passa a viver o conflito da exuberância natural, por um lado, e a necessidade ou desejo de se civilizar, por outro. Este trabalho pretende discutir a dualidade entre civilização e barbárie em Cornélio Penna, sobretudo no seu último romance, A menina morta (1954), ambientado no século XIX. Essa oposição também é vivida por Sarmiento, escritor argentino que publicou Facundo (1845), um misto de autobiografia, estudo sociológico e ficção, mas de forma muito diversa. Enquanto este tem como ideal ver a Argentina alçada à categoria de nação civilizada dentro de conceitos europeus, Cornélio Penna, vivendo outro momento histórico, desconfia do desenvolvimentismo dos anos 1950 e se volta para a segunda metade do século XIX numa tentativa de desnudar a violência arraigada no patriarcalismo-escravocrata. PALAVRAS-CHAVE:

Cornélio Penna, A menina morta, civilização, barbárie, nação.

* Universidade Federal de Sergipe (UFS).

ABSTRACT: There is an intrinsic relationship between nation and civilisation in modern European history. They are interchangeable words: one could not exist without the other. Brazil, coined as an independent State since 1822, then began to live a conflict between natural exuberance and the need or desire to become civilised. This paper seeks to discuss the duality between civilisation and barbarism in Cornélio Penna, especially in his last novel, A menina morta (1954), set in the 19th century. Such an opposition is also lived by the Argentinean writer Sarmiento, yet in a profoundly different way. Sarmiento, who published Facundo (1845), a mixture of autobiography, sociological study and fiction, has an ideal of seeing Argentina raised


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to the category of a civilised nation according to European concepts. Living a different historical moment, Cornélio Penna, on the contrary, is suspicious of the development of the 1950’s and focuses on the second half of the 19th century, in an attempt to uncover the violence rooted in the patriarchal slave system. Cornélio Penna, A menina morta, civilisation, barbarism, nation.

KEYWORDS:

Introdução O continente americano em geral e o Brasil em particular têm vivido a dualidade de um certo discurso europeu da civilização como ideal a ser alcançado, e da barbárie, como condição passada e presente. Esse discurso, segundo Roberto Ventura (1991, p.24), desdobra-se em outros: um que afirma a alegria da vida junto à natureza – o indivíduo afastado da sociedade corruptora, o bom selvagem rousseauniano – e outro que exalta as vantagens da civilização. A nação deveria se constituir na ambigüidade entre a identidade com a Europa e a diferença das particularidades locais (ibidem, p.43), na fronteira de concepções muito diferenciadas. A civilização “inventa” a barbárie como paixão exacerbada, violência, rusticidade, ausência de recursos científicos e tecnológicos, religião ou seitas primitivas, falta de princípios morais e de organização de qualquer espécie. O bárbaro é o outro. O suposto civilizado não admite que a barbárie esteja no olhar distorcido que ele lança sobre aquilo que desconhece. Há um relacionamento intrínseco entre nação e civilização. Não se concebe uma sem a outra desde o iluminismo francês (Abreu, 1998, p.27). Para Norbert Elias (1994, p.24), civilização implica um certo nível tecnológico e científico, a maneira como funciona o sistema judiciário, os costumes e o controle das paixões (Elias, 1993, p.54). Tanto no que diz respeito a costumes, segundo o mesmo autor, quanto a controle das paixões, a corte francesa se colocou e foi colocada como modelo de refinamento. Quando o

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Ancien Régime foi derrubado pela burguesia, ocorreu uma amplificação dos hábitos cortesãos. Aquilo que era restrito a uma determinada classe social foi incorporado como nacional (Elias, 1994, p.64). A França e outras nações européias passaram a se sentir no direito de impor seus ideais de civilização. Na batalha pelos espaços vazios da África – o continente negro –, a França e a Grã-Bretanha, assim como a Alemanha e a Bélgica, recorrem não apenas à força, como também a uma porção de teorias e retóricas para justificar a pilhagem. O mais famoso desses artifícios talvez seja o conceito francês de mission civilisatrice, a missão civilizadora que tem por pressuposto a idéia de que algumas raças e culturas têm um objetivo mais elevado na vida do que outras; isso dá ao mais poderoso, mais desenvolvido, mais civilizado o direito de colonizar os outros, não em nome da força bruta ou da pura pilhagem – ambas componentes usuais do exercício –, mas em nome de um ideal nobre. (Said, 2003, p.321)

Como nem sempre esse ideal expansionista se realizou da forma pretendida, o planeta foi dividido em primeiro e terceiro mundos, ricos e pobres, avançados e atrasados, desenvolvidos e subdesenvolvidos, Hemisfério Norte e Hemisfério Sul, centro e periferia, civilizados e bárbaros. São todas visões dualistas que só tendem a desagradar especialmente àqueles que propõem um pensamento que ultrapasse uma percepção linear da história – caso de Walter Benjamin em “Sobre o conceito da história”, escrito em 1940. No entanto, deixar de discutir esses dualismos não os eliminará; cunhados ao longo da história, foram se espraiando e alterando seus contornos. Aqueles que se identificam como os mesmos, e que têm muito a ver com o processo de construção de uma nação nos moldes tradicionais, partem da idéia do diferente. De maneira simplista equivale a afirmar que só se diz que A1 é semelhante a A2 porque ambos se antagonizam a B, não reconhecem B como um mesmo. Note-se


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que na pequena lista de dualismos exposta antes, o primeiro termo é sempre o valorizado: primeiro mundo, ricos, avançados, desenvolvidos, Hemisfério Norte, centro e civilizados. Todos os povos que se agrupam sob essas expressões assim se colocam em relação a outros que estariam no terceiro mundo, que seriam pobres, atrasados e subdesenvolvidos, localizados no Hemisfério Sul, na periferia. Obviamente esses termos não vêm postos assim em lista. Foram elaborados ao longo do tempo para atender a determinados momentos histórico-políticos. No caso brasileiro, passou-se de uma situação de país do futuro para uma consciência radical do atraso ou subdesenvolvimento (cf. Candido, 1989), que mais tarde foi atenuada pela palavra emergente. Emergente é o que veio de baixo das águas, o que estava encoberto, oprimido, o que não era conhecido. O bárbaro, desde as grandes invasões que assolaram a Europa, sempre foi o desconhecido, aquele que não era possível de ser apreendido; o bárbaro era aquele que se expressava numa língua estranha, semelhante ao balbucio infantil, incapaz de conhecer línguas supostamente complexas. Emergente, de fato, não é atenuante. Se muito, poderia ser considerado um eufemismo que disfarça um sentido bastante negativo. Se a condição é a do desconhecido, também é a do movimento de ascensão, de crescimento, de busca incessante de progresso, e é nesse ponto que o eufemismo cumpre seu papel para aqueles que têm essa concepção de nação como norte. É assim que o Brasil não tem sido poupado de anseios desenvolvimentistas. Isso se torna sintomático a partir da década de 1950, quando a política interna coincide com uma maior aproximação dos Estados Unidos. O país passa a precisar crescer, o que significa ter mais indústrias, que produzam um maior volume de bens de consumo. Não se discute sobre em que mãos fica o domínio tecnológico e científico, por exemplo; tampouco sobre o esvaziamento de reservas naturais, questão pouco relevante num momento em que a ecologia de um modo geral também o é. Os resultados dessa política nos padrões sociais

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são dissimulados por um alargamento da classe média, grande consumidora dos novos produtos e serviços (cf. Mota, 1990). Para acompanhar essa linha de progresso, faz-se necessário erigir um monumento, mas não um que fale do passado. É preciso um monumento que narre o futuro: daí a concepção de Brasília, projetada dentro de paradigmas modernos. O novo é valorizado na arquitetura arrojada que trabalha o concreto com a mesma habilidade que destaca o espaço vazio. A cidade causa o embaraço da amplidão, do vasto. Miniaturiza o ser humano para estabelecer uma analogia com as dimensões do país. Tudo é monumental na nova capital como o é no Brasil. Porém, o mesmo homem que é miniaturizado diante da grandeza arquitetônica é o responsável por sua elaboração. Aparente paradoxo que reflete a sociedade: muitos trabalhando e poucos desfrutando. É assim que a cidade fala da capacidade de intervenção do humano sobre a natureza e da possibilidade de domínio de todos os espaços. Brasília é uma metáfora da posse do território. A nova capital federal não será só um marco do progresso nacional como um “museu” que diz do que virá. Ela deverá cumprir o papel de iniciar a grande marcha para o Oeste. É preciso cessar de arranhar o litoral como caranguejos e “descobrir” o Brasil – o verdadeiro, na opinião de muitos. Tratase de uma espécie de bandeira ou cruzada moderna que deve avançar para o interior a fim de revelá-lo, conhecêlo e ocupá-lo. Tudo isso tendo como objetivo principal o ato civilizador, a integração e a unificação nacionais. É justamente na década de 1950, em meio a um clima de entusiasmo desenvolvimentista sedutor de muitos intelectuais, que surge uma obra que se voltará ela também para o interior, porém com objetivo bastante diferenciado daquele que ergueu Brasília no Planalto Central: A menina morta (1954), de Cornélio Penna. O romance pode ser posto como representação da nação por meio do seu passado e de uma discussão do papel da civilização e da barbárie na sua constituição. Nega o moderno pelo moderno, o novo pelo novo; vasculha os escombros da história.


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A narrativa transcorre na segunda metade do século XIX, na fazenda cafeicultora do Grotão, localizada no Vale do Rio Paraíba, na divisa entre a província de Minas Gerais e a do Rio de Janeiro. A região é fronteiriça e isso vale por uma metáfora, pois ao longo do romance pode-se perceber que há uma concomitância entre aspectos civilizados e bárbaros. De um lado, o Rio de Janeiro, a Corte, e por extensão a Europa; do outro, o sertão, o mistério das montanhas sem fim, as cidades arruinadas, tornadas incultas pela exploração indiscriminada, a própria dialética da civilização. Dialética em constante movimento: ao mesmo tempo que opõe a barbárie à civilização, explicita aquela como composto desta. No interior da fazenda, de um lado, os diversos produtos industrializados europeus, as revistas francesas de moda, os tecidos delicados, os manjares finos; do outro, a cozinha escrava, elaborada e complicada demais para mãos brancas. Negros e proprietários brancos convivendo na linha tênue entre o afeto e a desconfiança mútua: a escravidão como dialética e ironia da civilização. O Grotão todo como processo dialético dessa civilização que não se faz sem barbárie, que se faz a partir da própria barbárie, necessitando esquecê-la e não sendo possível sem ela. A civilização não é nem pode ser o contrário da barbárie porque advém dela mesma. Benjamin (1993, p.225) atesta isso quando afirma nunca ter havido “um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.

Barbárie e civilização Há um Grotão que se volta para o citadino, para o metropolitano e que se configura de diversas maneiras. Ele é expresso pela linguagem culta dos personagens brancos, pelas suas roupas copiadas ou inspiradas nas revistas estrangeiras de moda, pela mobília da casa grande comparada a um palácio, pelos jogos de salão nas horas de lazer, pelo plantio do café feito para ser exportado. A fazenda se assemelha a uma ilha que não se comunica – ou pouco se

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comunica – com aquilo e aqueles que lhe são e estão mais próximos. Porto Novo, a vila que fica do outro lado do rio, é local de trânsito, passagem para a Corte. Sua importância se reduz às visitas feitas ao carneiro da menina, a filha mais nova recém-falecida. A vila é muito pequena, de escassos moradores e de aspecto arruinado, símbolo dos antagonismos na formação nacional: o novo decaído. Quanto à Corte, é um fim em si, ainda que seja porto de passagem para o mundo, para a Europa. Para lá foram Carlota e os dois irmãos mais velhos para estudar e lá permaneceram durante muitos anos da infância e da adolescência. A fazenda e Porto Novo não são lugares onde alguém do trato da família Albernaz pudesse crescer intelectualmente. O próprio comendador, o patriarca, estudou na Europa e cogita que seus filhos homens também o façam. Para o aprendizado inicial dos meninos e para tudo o que Carlota como mulher precisa, o Rio de Janeiro basta. A Corte se apresenta como o espaço dos grandes e nobres encontros. Quando Dona Virgínia, parenta agregada ao Grotão, viaja para buscar Carlota, tem a expectativa de uma entrevista com o imperador. A velha senhora já havia circulado no paço imperial, sua família possuía esse trânsito no centro político do país. No entanto, ir ao Rio de Janeiro não podia ser tomado como tarefa fácil. Significava dias e dias de uma exaustiva viagem por serras e estradas de ferro inacabadas. Mesmo assim, para Dona Virgínia, a tortura valia a compensação do verdadeiro evento social que se configurava o estar no centro irradiador de poder e cultura urbana. Para o comendador, por sua vez, a cidade se monumentaliza como lugar de perda e de morte para ele próprio e para seu filho mais novo, tomados ambos pela febre amarela. A Corte civilizada, cosmopolita, é o lugar da doença tropical incontrolável e onde o epidêmico se alastra com maior facilidade, pois há mais pessoas e elas estão próximas umas das outras. A cidade, espaço do artificial, é invadida pelo natural, que, nesse caso, é força destrutiva. Na fazenda, o civilizado se pauta pelo cultivo dos campos. Não se está diante de uma natureza em forma bruta;


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ao contrário, ela foi domesticada. O café é plantado retilineamente e o espaço vazio entre uma linha e outra é limpo como uma rua – a cidade se presentifica no rural. De rua se chama o corredor que leva à cozinha dentro da casa grande, pelas suas dimensões e pelo seu movimento: O corredor largo e escuro que conduzia à cozinha era como uma rua dentro da grande fazenda. Tudo passava por ali e a qualquer hora do dia podiam ser nele encontrados os habitantes do Grotão. Nos armários que ocupavam as paredes, nos lanços entre as poucas janelas gradeadas e abertas para o pátio interno eram guardados os artigos finos vindos do Rio de Janeiro e vindos de países exóticos e longínquos. Suas prateleiras conservavam por todo o ano o perfume forte e apimentado das gulodices, mandadas vir para as festas de Natal e de fim de ano, e muitas vezes ali permaneciam durante meses, servidas em sobremesa para as visitas. (Penna, 1997, p.75)

As prateleiras da casa estão repletas de produtos estrangeiros, o que faz pensar numa espécie de grande loja onde tudo é armazenado para as vistas e compras dos consumidores (daqueles que passam na “rua”). Há uma tal diversidade que as mulheres, ao confeccionarem vestidos, escolhem entre vários tecidos, várias cores e diferentes adornos. É como se estivessem numa loja da Rua do Ouvidor; é como se estivessem, mas não estão: seu universo não ultrapassa a soleira da porta principal da vida reclusa que levam. Os espaços externos à casa não são acessíveis ao feminino, o trânsito é controlado pelo comendador e seus acólitos. Somente os homens gozam do direito de ir e vir, ainda que com alguma discrição. Os espaços externos funcionam como que alheios à casa-cidade, funcionam como locais de perigo, ainda que não se saiba ao certo a qual perigo as mulheres poderiam se expor. Há um certo circular pelo terreiro e pela senzala (espaço da barbárie confinada), visitas feitas à escrava Dadade, antiga ama do senhor; um “passeio” à enfermaria dos escravos. O que está

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além do Grotão é ainda mais restrito, não só pelas proibições, mas pelas dimensões monumentais da fazenda e a aproximação da natureza no seu estado mais bruto e hostil. O bárbaro não está além do espaço ocupado pela família e seus agregados. No mesmo lugar onde se encontram todos os elementos civilizados também estão os díspares. A senzala e a sala dos castigos estão no interior da fazenda, convivendo lado a lado com a casa grande. Estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua eterna autogeração, torna-se um espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural. (Bhabha, 1998, p.209-10 – grifo do autor)

Os campos cultivados de café são obra de mãos negras e não brancas. A propriedade dos senhores é alimentada metafórica e literalmente pelos escravos. O motor da civilização é a barbárie controlada, mas temida. A fazenda está separada da vila pelo Rio Paraíba, fronteira entre as províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. De um lado, a Corte e toda a possibilidade civilizatória que ela representa como local de trânsito do e para o estrangeiro, o frenesi do progresso; de outro, Minas Gerais, já decaída na segunda metade do século XIX, arruinada pela ganância da busca frenética do ouro e de outros minerais, tornada meio bárbara. Muitas vezes, ao longo de sua obra, Cornélio Penna se referirá à província mineira como sertão. Obviamente o sentido aqui não é o atual: de árido, desértico e situado entre o norte de Minas, o oeste de Goiás e o interior da região Nordeste. O sertão corneliano caracteriza as terras que se opõem ao litoral, que se distanciam dos grandes centros cultos; é o interior marcado pela presença recente do indígena por meio de seus vestígios; são as cidades esvaziadas das riquezas da mineração. O sertão corneliano


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não é o bárbaro aparentado com a natureza virgem, o nãocivilizado ainda, seu sertão é o produto de um processo civilizatório desmedido e predador. É nesse contexto que o visconde, irmão do comendador, classifica a casa do Grotão de “tapera” e menciona seus “horrores matutos” (Penna, 1997, p.84). Há uma rivalidade explícita entre os dois e marcas de requinte e conforto funcionam como elementos mais ou menos valorativos. Nessa disputa vazada em intrigas feitas por Dona Virgínia sobressai a pomposidade do visconde em detrimento de uma relativa simplicidade na fazenda do comendador. O Grotão isolado parece um lugar bastante luxuoso, mas ao ser comparado com a propriedade do visconde, bem mais próxima do Rio de Janeiro, é ridicularizado. Não são os dois irmãos que se opõem, é o litoral oposto ao sertão. À distância física entre o Grotão e a Corte corresponderá uma distância da civilização que implicará a queda da qualidade da exportação de bens manufaturados e ideológicos. Não é possível que numa fazenda no Vale do Paraíba haja a mesma quantidade de símbolos de refinamento que numa outra próxima ao centro irradiador. O comendador tenta vencer essa distância, mas o seu irmão estará sempre à frente.

Elogio e crítica à civilização A visão de uma Europa dita civilizada, por um lado, e de uma América “bárbara”, por outro, foi sedimentada neste continente pelo clássico de Domingo Faustino Sarmiento – Facundo, publicado pela primeira vez em 1845 –, cujo subtítulo é, não por acaso, “Civilização e barbárie”. A Argentina do século XIX teria uma única ilha culta, Buenos Aires. Considerada assim porque provida de bens (não só materiais, mas intelectuais) advindos do continente europeu. Quanto ao restante do seu país, Sarmiento (1997, p.68) o vê como afundado na selvageria: Buenos Aires está destinada a ser um dia a cidade mais gigantesca de ambas as Américas. Sob um clima benigno, senhora

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da navegação de cem rios que correm a seus pés, reclinada molemente sobre um imenso território e com treze províncias interiores que não conhecem outra saída para seus produtos, seria já a Babilônia americana se o espírito do pampa não tivesse soprado sobre ela e se não afogasse em suas fontes o tributo de riqueza que os rios e as províncias têm de levar-lhe sempre. Só ela, na vasta extensão argentina, está em contato com as nações européias; só ela explora as vantagens do comércio externo; só ela tem o poder e as rendas.

A capital argentina é enaltecida por reproduzir o paradigma europeu de civilização, mas seu crescimento é embotado pela barbárie advinda dos pampas. Facundo Quiroga, protagonista do livro, com seus olhos de tigre, seria o representante máximo do interior atrasado, incapaz de alcançar as propostas da urbe platina, incapaz sequer de as compreender. Ao contrário, Sarmiento se coloca como um ser citadino, alguém que trafega pela alta cultura, que para ele só pode ser a européia. É assim que surgem sobrescritas a cada título de capítulo epígrafes de pensadores alemães, ingleses e, sobretudo, franceses. O autor argentino não percebe que se vale de uma série de depoimentos orais para reconstruir o seu Facundo, não percebe que é o povo “bárbaro” que dará legitimidade a seu texto. Sarmiento se compraz em enumerar os fatores que emperram o interior do seu país: a natureza nãodomesticável, os índios, o isolamento, a mentalidade canhestra, a ausência do Estado. O motor de Facundo nas conquistas seria o seu ódio incontido pela civilização, [...] tudo o que não pode adquirir: boas maneiras, instrução, respeitabilidade, isso ele persegue, destrói nas pessoas que o possuem. Seu ódio contra gente decente, contra a cidade, é cada dia mais visível; o governador de La Rioja posto por ele acaba renunciando por se ver humilhado diariamente. Um dia Quiroga está de bom humor e brinca com um jovem como um gato brinca com um tímido rato: o jogo é matar ou não matar; o terror da vítima foi tão ridículo que o verdugo ficou de bom humor, riu às gargalhadas, contra seu costume. (Sarmiento, 1997, p.154 – grifos do autor)


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Um dos argumentos que provariam a barbárie de Facundo seria a sua incapacidade em governar os lugares que toma para si, pequenos aglomerados humanos acéfalos. Aparentemente seu interesse limitava-se à posse, à conquista. Guerrear, ponto máximo da selvageria, era o seu único estímulo. Sarmiento se revolta contra a incapacidade americana em explorar suas próprias riquezas e constituir-se por intermédio de nações. Só a Europa, especialmente os ingleses, estaria apta a essa exploração. O autor justifica assim todo e qualquer ato imperialista como óbvio diante da incompetência americana para se governar. Ainda que haja semelhanças entre a concepção daquilo que seja civilizado e daquilo que seja bárbaro em Sarmiento e Cornélio Penna, há diferenças fundamentais. No romancista brasileiro, não se trata de aceitar esse dualismo que associa a civilização à Europa culta e a barbárie à América selvagem. Mesmo porque o que falta em Cornélio e sobra em Sarmiento é essa admiração sem ressalvas e sem pudores pelos projetos imperialistas. O autor de A menina morta relativiza os encantos da civilização européia quando põe a nu a engrenagem que move a escravidão. Tudo que representa cultura, luxo e conforto no Grotão é resultado do trabalho desumano usurpado dos negros. É o trabalho – uma das grandes glórias da civilização burguesa, oposto ao ócio estereotipado dos povos africanos e indígenas americanos – que será realizado pelos escravos e não pelos brancos. O que constrói a possibilidade da Europa como continente civilizado, como império, é a mesma barbárie que se repudia no outro, no nãobranco. Especialmente quando se considera a habilidade inglesa em “captar” as riquezas brasileiras. Em Fronteira (1935), primeiro romance de Cornélio Penna (1958, p.67), Maria Santa, a protagonista, que vive na Itabira de fins do século XIX, afirma que irá aprender inglês com Miss Ann, da Golden Mining, para poder ler os poetas daquela língua. A cena traz em seu bojo toda a contradição da relação civilização-barbárie. Maria acredita

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que dominando a língua inglesa dominaria todo um universo cultural. A língua lhe proporcionaria não só ler os escritores da literatura inglesa, mas ter uma vida social tão interessante quanto acreditava que alguém pudesse ter no Rio de Janeiro, por exemplo. É impossível para ela perceber que foram justamente empresas como a Golden Mining – detentoras de um discurso civilizatório – que arrasaram Itabira, que deixaram a cidade com ar de abandono. O Juiz, outro personagem de Fronteira, é singular para ilustrar como a civilização se apresenta problematizada. Não tem nome, apenas é designado pela função. Sua presença é a manifestação de um ato civilizatório por excelência: o estabelecimento da justiça, da lei que nivela os homens. Ele representaria em última instância a própria ordem – nada mais próximo da idéia de civilização e de nação. No entanto, no romance, ele não chega a se configurar como um representante do Estado, distante e imparcial; suas aparições se restringem ao espaço doméstico, privado. Mesmo assim, seus julgamentos são temidos por Maria Santa e pelo narrador. Mas esses temidos julgamentos não são expressos e tampouco parecem se referir à sua função. Além disso, são questionados por tia Emiliana, que não lhes dava crédito em vista da falta de religião de seu elaborador. A visita ao sobrado é observada com apreensão, ao mesmo tempo que o próprio juiz parece ter medo de Maria, de modo que os temores são embaralhados. Um possível retorno, com o aceno de esclarecimentos, é ainda mais amedrontador. No entanto, o juiz nunca volta, pois morre antes, não se sabe em quais condições. O narrador, de posse de papéis que havia recebido do morto, silencia. E todo o ato ordenador da própria narrativa que o magistrado poderia representar cessa. Esvaziados de sentido, os expedientes civilizadores – que seriam a solução dos problemas argentinos em Sarmiento – são em Cornélio apresentados como frouxos e inúteis. Mesmo quando se admite um elemento da cultura européia, ele será agregado aos conhecimentos brasileiros. Em Repouso (1948), outro romance de Cornélio Penna


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(1998), Urbano, um farmacêutico, mescla o uso do Chernoviz, manual médico muito utilizado no século XIX, com a memória coletiva que o circula. O Chernoviz faz a ponte com o civilizado, é a cultura européia pesando sobre o boticário interiorano, mas suas interpretações podem ser infinitas e a medicina sertaneja sempre pode deixar suas indeléveis marcas acrescentando novos ingredientes. Como Urbano é temido pela população local, suas receitas ganham um caráter meio mágico, a ponto de o movimento de distanciamento não se dar somente por iniciativa dele, mas de seus pacientes. Dodôte, esposa de Urbano, tem dele uma imagem bastante confusa. Diante de uma prateleira repleta de frascos com nomes estranhos, lê: Uabaio, um veneno. Essas sílabas estranhas, que lembravam terras distantes da África, tinham-lhe parecido de sinistra magia, quando lera pela primeira vez. Tirara o recipiente do armário carunchado e poeirento onde o escondera o velho boticário [avô de Urbano], com o intuito, decerto, de defendê-lo assim dos curiosos, e de também não deixar transparecer muito claramente a sua mania de busca de remédios extraordinários, maravilhosos, que exigiam quase sempre grandes sacrifícios para a sua modesta bolsa, ao encomendá-los a correspondentes em países africanos e asiáticos. (Penna, 1998, p.248)

Os produtos advindos da África ou da Ásia estão carregados de exotismo. Esses continentes são postos como pólos da barbárie. A carga científica é aliviada em nome de adjetivos como “extraordinários, maravilhosos”. Não se está mais no âmbito do civilizado – o Chernoviz estava à mão de Urbano e parecia indicar soluções seguras. O Uabaio possui nome estranho, trata-se de um veneno e isso por si só é assustador, seus poderes são maléficos. Uabaio não cura, Uabaio mata. Como logo a seguir Urbano falece, fica uma relação implícita entre o frasco que teria vindo da África ou da Ásia – e a imprecisão só aumenta o mistério e por extensão o exotismo – e o seu fim diante de uma doença desconhecida, que o corrói lenta-

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mente, como um veneno. Há uma semelhança evidente entre os nomes, um se sobrepõe ao outro. A mera transposição da segunda e da penúltima letras faz que Urbano vire Uabaio e Uabaio vire Urbano. Essa troca remete ao imbricamento entre o boticário e um de seus produtos. Teria sido ele envenenado? Teria ele se envenenado? Seria ele o próprio Uabaio? A África e a Ásia bárbaras estariam no interior de Urbano, formariam-no, não estariam fora, no outro.

A revolta latente Por um lado, Sarmiento acredita que o despeito e a inveja de um mundo civilizado e inacessível justificariam as atitudes violentas de Facundo. Por outro, mesmo minuciosamente controlados, os escravos, em A menina morta, encontram fissuras no sistema no qual vivem para pequenas vinganças que demonstram resistência. O trintanário ergueu o rosto, e parecia que sobre ele tinha descido súbita cortina de cor indefinida. Seus lábios se entreabriram em expressão de infinita inocência, em quase imperceptível sorriso alvar, e as pálpebras esbranquiçadas caíram-lhe pesadamente sobre os olhos. Mas o olhar que passava pela fresta deixada entre elas era vivíssimo e lia-se nele a expressão da mordacidade ferina dos humilhados, quando sabem que por sua vez humilham alguém. (Penna, 1997, p.50)

Essa cena ocorre logo depois que o escravo dá um recado que desagrada muito a Dona Virgínia. Ciente do efeito causado por suas palavras – palavras que não poderiam ser reprimidas por se tratar de uma comunicação da condessa, alguém hierarquicamente superior à prima do comendador –, o escravo exulta, saboreia como pode o embaraço da senhora. Após a transmissão do recado, silencia, mas seu olhar, minuciosamente acompanhado, transborda ressentimento e vingança. Os cativos aproveitam na íntegra as poucas oportunidades que possuem para


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devolver a humilhação a que são expostos. Mas não são apenas os cativos próximos da convivência da família que se manifestam: Muito de longe, vindo da mata próxima, a subir o espigão perdido da Serra do Mar, que formava o fundo do altiplano onde estava a fazenda, veio então, trazido pelas lufadas de vento morno do início da noite, o bater surdo de tambores, talvez de algum quilombo, onde os negros sentissem necessidade de desafiar os capitães-do-mato, indicando assim sua presença nos longínquos grotões. Imediatamente todo movimento cessou e o negrume das trevas fez-se unido, imóvel, como se tudo estivesse à escuta de algum sinal indecifrável para os brancos, transmitido assim por aquelas batidas abafadas. (Penna, 1997, p.61)

O ruído que os cativos do Grotão não podem fazer, outros o fazem por eles. A provocação não se limita aos capitães-do-mato; todos os proprietários da região devem se sentir intimidados pelos tambores. Mesmo que não se tenha certeza da existência desse agrupamento de negros – “talvez de algum quilombo”, supõe o narrador –, é claro o receio constante em que vivem os fazendeiros. Tanto poderiam ser atacados como ver seu contingente de escravos atraído para revoltas. Seus direitos de proprietários eram salvaguardados pelas leis, mas não pelas condições sociais. Os negros poderiam se evadir repentinamente e capturá-los seria bastante oneroso e até inócuo. Agrupados, sem um domínio branco, inflados de ódio, eram perigosíssimos. A dimensão desse ódio escapa aos senhores, que não conseguem decifrar os possíveis sinais trocados no silêncio da noite. Há uma linguagem entre os escravos que é incompreensível para os brancos. Isso dá a essa comunicação uma aura mística, quase sagrada, e aumenta o seu aspecto “bárbaro” – são seres falando uma língua inintelegível, que não se constitui como um código lingüístico propriamente dito, que é apenas ruído. É verdade que entre os próprios cativos o entendimento pode ser impossível, mas por motivos diversos.

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Mulheres de chimangos quase brancos, os braços muito pretos de fora, falavam em voz baixa e gesticulavam nervosamente. Algumas delas mais velhas diziam palavras africanas na excitação em que estavam e não se compreendiam porque eram de diversas nações e haviam sido escolhidas já de propósito assim para que não formassem grupos à parte, com a linguagem secreta de uma só algaravia. (Penna, 1997, p.71 – grifo meu)

Na tentativa de controlar o que se passa na senzala, os senhores misturam negras solteiras de diversas nações. Com línguas diferentes, o diálogo é inviabilizado e o distanciamento, mantido. Isso não impede que num momento de euforia – as escravas acreditam que poderão acompanhar o cortejo fúnebre da menina morta – elas esqueçam as procedências umas das outras e busquem o estabelecimento de uma comunicação. De fato, os senhores estavam certos: elas não conseguem conversar, porém o desejo de acompanhar o féretro da sinhazinha as anima num único conjunto, numa única força, ainda que logo mais toda essa onda humana seja desfeita pela violência do chicote. As negras são castigadas e seus gritos são abafados pelas ameaças dos feitores e pela distância que as separa da casa grande. O comendador ordena os açoites mas não deseja ouvir os lamentos. Mantendo os feitores na posição de carrascos, ele não macula diretamente sua imagem de protetor. Não que alguém não saiba que é do senhor que emanam as ordens para a violência. Mas há grande diferença entre exercer o poder sobre a escravaria e castigá-la. O receio que os cativos causam nos senhores é materializado pela tentativa de assassinato do comendador. Todos os temores, que até então são apresentados como se fossem assombrações, são instituídos a partir desse fato. Não é mais um temor vago de algo limitado a espíritos maus e olhares atravessados. Quando Florêncio atira no dono do Grotão, todo o poder dos brancos fica abalado. Após o fato, a caçada ao fugitivo é deflagrada. Feitores e escravos são unidos para a captura, para a reorganização do poder. Florêncio não voltará vivo. Seu corpo inerte fi-


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cará como símbolo do silenciamento e da opressão. O crime fora julgado e condenado no meio do mato, sem testemunhas. Um suposto suicídio dissimulará a sentença. A fazenda é aparentemente reordenada, mas não é mais possível esquecer o quanto tudo é frágil. O ato de Florêncio não é, porém, acompanhado de nenhuma revolta dos escravos. Nenhum deles se aproveita da situação. O rapaz não era estimado por seus pares, não era um líder, e inconscientemente ou não esses alimentam o patriarcalismo quando ajudam a caçá-lo. Em vez de qualquer manifestação de simpatia ou pesar de seus companheiros, o “criminoso” obtém algum gesto de consideração de quem aparentemente deveria ficar contra ele: Dona Mariana, esposa da vítima, pede a um padre que encomende o corpo. O gesto da Senhora soa como nítida provocação e na mesma noite ela deixa a fazenda para só retornar depois que o comendador sucumbe diante da febre amarela. Até mesmo em manifestações de alegria, como a festa realizada pelo retorno de Carlota e seu futuro casamento, pode-se verificar o medo que os escravos causam nos brancos: Os senhores ficaram alguns momentos ainda no alpendre e procuravam distinguir na luz difusa dos candeeiros os vultos agitados e gesticulantes. De quando em vez deixavam entrever muito rápido caras onde o ricto era de volúpia e de dor, e nelas até o riso se tornava sinistro. A música sempre igual, martelante, sem cessar, sobre-humana, alucinava gradativamente os dançadores, e eles começavam já a uivar em vez de cantar, a ter convulsões em vez dos passos primitivos do batuque, e os senhores sentiram ser já tempo de se retirarem, porque a loucura viera tomar parte no baile. (Penna, 1997, p.280)

Trata-se de uma dança acompanhada de música, de um momento em que os escravos celebram a sua sinhazinha com rituais festivos. Os gestos são estranhos aos moradores da casa grande. O movimento dos corpos é descrito

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como algo adjacente ao prazer sexual e à magia. Não é à toa que todos se sentem tão incomodados na esfera de domínio patriarcal: os prazeres do corpo são restritos aos homens e não são propagados publicamente. A única coisa que as mulheres podem expressar fisicamente é a maternidade por meio do casamento. No entanto, a maioria está envelhecida demais para procriar, ao passo que as jovens – Carlota e Celestina – ainda não são casadas. Cantar e dançar como fazem os negros é coisa fora de cogitação, vedada a senhoras “civilizadas”. De repente os escravos abandonam a cantilena que vinham entoando por uma nova: “Moço rico/ pra casa/ c’Arbernazi” (Penna, 1997, p.281). Na pequena corruptela do nome da família, transformada de Albernaz em Arbernazi, há uma renomeação e uma demonstração de domínio; a família é recriada por meio desse novo nome. Em meio àquela incompreensão recíproca, os negros são capazes de perceber que o casamento de Carlota é um negócio. Não compreendem que é a família do noivo que busca o dinheiro, mas alcançam não haver ali nenhuma relação de afeto a unir dois jovens e na sua ingenuidade cantam e se divertem com o que para Carlota e para eles próprios significaria a continuidade do patriarcalismo e, por extensão, da escravidão. Ao entrar em casa, a moça, inspirada pela dança dos escravos, rodopia no meio da sala. Seu arremedo termina diante de uma parede nua: o retrato da irmã morta havia sido retirado. Esse é um sinal do comendador para que o passado recente da família seja esquecido, é um sinal para que Carlota incorpore a menina e a substitua como ponte harmonizadora entre a casa grande e a senzala – torne-se o & do título do livro de Gilberto Freyre. Tarefa difícil e que tem como propósito básico silenciar possíveis manifestações indesejadas. Quando seu pai viaja, a jovem percebe certos cuidados tomados: De quando em quando chegavam até ela em ondas os sons quebrados de gargalhadas, mas tinha ouvido as ordens deixadas por seu pai antes de partir e sabia terem sido as armas embaladas distribuídas aos feitores e aos guardas, com


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a recomendação de atirar ao primeiro sinal de revolta. Assim estava informada de que toda aquela paz, na aparência nascida da ordem e da abundância, todo aquele burburinho fecundo de trabalho, guardavam no fundo a angústia do mal, da incompreensão dos homens, a ameaça sempre presente de sangue derramado. (Penna, 1997, p.312)

Carlota, nesse momento da narrativa, ainda está bastante próxima de seu pai. Não entende por que Dona Mariana deixou o Grotão, nem conhece as circunstâncias: as precauções tomadas soam como naturais. A ausência do comendador é uma ameaça. Como bom patriarca, ele distribuía castigos na mesma medida em que concedia proteção. Por isso, mesmo alforriados, os negros não abandonam a fazenda. Sua presença impunha mais ordem do que suas palavras, que eram poucas. Carlota vê a relação entre brancos e negros comprometida pelo mal. Que mal é esse? O dos brancos que escravizam os negros ou o dos negros que não são gratos por terem o privilégio de conviver com a “civilização”? Não se pode esquecer de que uma das justificativas para a escravidão moderna consistia na oportunidade que proporcionaria aos negros para se civilizarem. Sem a escravidão, se perderiam na barbárie total. Carlota ainda não é capaz de perceber que subterfúgios podem ser criados para justificar a violência. Só mais tarde ela desmascara o sistema opressor que mantém o silêncio dos cativos por meio de pequenas barganhas afetivas, nas quais a menina morta e ela própria foram tão bem utilizadas. Nesse momento a jovem só pode pensar a senzala como “pronta para o salto de onça” (Penna, 1997, p. 313). Adiante será ela quem se tornará essa onça, primeiramente como caçada por João Batista, seu noivo, e em seguida como caçadora, como uma força destruidora, do patriarcalismo escravocrata. Dona Virgínia, a grande representante feminina do sistema patriarcal, é a favor da escravidão como solução para todos os males econômicos. Tecendo comentários sobre pessoas que não são denominadas, afirma:

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A pessoa de quem lhe falava está em vésperas da ruína. Eu sei que compraram grande número de ações da Estrada de Ferro de D. Pedro II, agora arrasadas na Bolsa, e não valem tuta-e-meia. Depois a fazenda entregue à velha louca e ao moço adamado, sem saber onde tem o nariz, só vai para trás, ainda mais depois das tentativas de colonização estrangeira! Veja a enorme tolice, quando temos os negros aí à mão para trabalharem para os brancos! E muito bem pagos, pois têm comida, roupa e casa! (Penna, 1997, p.339)

Outra agregada acrescenta: “E muito chicote também...” (ibidem, p.339). O protesto não é ouvido ou não é considerado. As palavras de Dona Virgínia ecoam mais fortes: sua adesão ao projeto patriarcal-escravocrata é inconteste. Os negros são pintados como meros utensílios feitos pelos brancos e para os servirem. A visão da velha senhora é tão distorcida que ela chega a ver como pagamento (comida, roupa e casa) o que não passava de manutenção do bom estado das “ferramentas”. Adiante, num acesso de irritação, admitirá que os negros talvez não estivessem assim tão disponíveis: Estamos todos aqui sem nos entendermos e parece vivermos em hotel sem gerência! Ninguém nos diz nada, e, aliás, não vejo quem nos possa dizer alguma coisa autorizada! Até os escravos já sentem isso, e tenho mesmo medo de se aproveitarem da oportunidade para uma revolta. (Penna, 1997, p.355)

Nessa passagem os cativos ganham novos contornos para Dona Virgínia. Já não são seres passivos aguardando para servirem não importa em quais condições. Eles estão à espreita, atentos ao menor espaço para expressarem todo o ódio acumulado. A tão temida e esperada revolta nunca se realiza, a não ser na projeção dos senhores, o que justifica a constante violência: ser cruel com o outro e mantêlo aterrorizado para se tornar incapaz de reagir. A fronteira que os separa é mais porosa do que o desejável – existem frestas que indicam o esfacelamento da administração. Além disso, comparar o Grotão a um hotel o torna transi-


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tório, vulnerável, destrutível. Não se mora em um hotel, apenas se passa por ele. Mas os negros estão inertes demais para conseguir aproveitar qualquer situação em seu próprio favor. O sistema que os abafa cumpriu seu papel: não há disposição em se colocarem contrários aos proprietários do Grotão. Não são unidos, só eventualmente se agrupam. Estão apartados por uma hierarquia interna: os que labutam na casa e os do eito, os que são forros e os que não são, os que atendem diretamente aos senhores e os que atendem aos outros escravos. A fazenda é o lugar do ressentimento, mas é um lar. Os escravos se posicionam entre a servidão e o afeto, não vêem com clareza a frágil fronteira na qual vivem. O episódio do espancamento do trintanário por João Batista, o noivo de Carlota, é exemplar disso: [João Batista] não pressentira estar sendo visto pela noiva, pois achava-se de costas, e Carlota pode ver bem a dificuldade com a qual o negro retirava a bagagem, e só compreendeu o acontecido quando viu o escravo receber em cheio o caixote sobre um dos pés, pois não o conseguira reter na sua queda brusca, ao se romperem as correias que o prendiam às grades do assento. Mais rápido ainda, o moço agarrou o preto pelo peito da japona por ele vestida e fustigou-o às cegas em furiosos golpes com o chicote que trazia na mão direita. O trintanário recebeu as chicotadas que deviam marcar profundamente a sua carne, mal protegida pela pobre libré por ele envergada, sem qualquer gesto de defesa, sem experimentar fugir ou se proteger, nem mesmo tirar o pé debaixo do engradado, a esmagá-lo. Mantinha os olhos muito abertos sem expressão, e era semelhante ao animal resignado à dor por ele sabida inevitável, e entregava-se à vontade do dono sem restrições, esquecido até dos primeiros instintos das criaturas. (Penna, 1997, p.367)

O escravo é comparado a um animal, está impotente diante da atitude de seu proprietário. A banalidade do “motivo” das pancadas revela a crueldade como algo corriqueiro. O noivo não percebe estar sendo observado, mas, se fosse o caso, o constrangimento adviria apenas da falta

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de elegância da situação e não da violência propriamente dita. Carlota conseguiu alcançar o verdadeiro sentido do episódio, pois teve vontade de correr, de gritar, de rasgar o seu vestido, mas apenas pôde manter-se imóvel agarrada ao balaústre do alpendre e tinha certeza de que se dele desprendesse os dedos cairia no chão sem amparo. Nunca pôde saber quanto tempo ali estivera, nem de que maneira conseguira manter-se, mas viu João Batista, o noivo, enxugar o rosto coberto de suor pela violência de seus movimentos, reajustar a gravata, cujas dobras se tinham desfeito, alisar a calça e fazer correr as mãos pelas pernas e só então deu pela sua presença e veio ao seu encontro iluminado pela alegria e com a naturalidade dos noivos. (Penna, 1997, p.367)

Rapidamente João Batista passa de carrasco a noivo galante, mas assim como as carnes do escravo ficarão gravadas pelas chicotadas recebidas, também a memória de Carlota será marcada pelo episódio aviltante. A menina morta é um romance que se faz dos vestígios que já foram ou vão sendo espalhados ao longo da narrativa, que ajudam a romper o “continuum da história” (Benjamin, 1993). E esses vestígios vão assinalando a memória dos personagens como uma grota, como um grotão. Ao presenciar o espancamento do humilde trintanário, Carlota fica impotente para ousar qualquer coisa. Tudo o que ela deseja fazer é expressado não pelo que é feito, mas pelo seu silêncio, pelo seu pasmo. A cena desencadeará uma série de relações com o passado e com situações futuras que servirão para que a jovem seja capaz de entender o que vai por trás daquele universo criado pelos seus antepassados. Ela compreenderá o quanto custa esse universo. Cinco capítulos depois desse episódio, a jovem ouve sua mucama falar da atenção que sua irmã sempre tivera para com os negros: A Sinhazinha sentia seu coração diminuir, pois passara sua infância longe daqueles pequenos dramas da vida escrava, e nunca tinham chegado até ela os ecos dos lamentos e das


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queixas dos pretos. De repente o choque de alguma coisa a despertou e fê-la vir até a realidade, com o estremecimento que lhe causou a recordação da cena por ela presenciada no quadrado, quando João Batista espancara o trintanário... Todo o sangue lhe correu pelas veias, em fulgurante onda de gelo, e agarrou-se à poltrona onde estava no receio de cair, arrastada pela vertigem. Quis erguer-se e mandar Libânia embora, pois de nada lhe valera chamar a mucama e fazê-la falar, e sentia certa náusea apertar-lhe o peito, ao lembrar-se das palavras duras ditas por seu pai referindo-se a alguém que ouvia “mexericos de negras”. (Penna, 1997, p.383)

Carlota pensa que os “ecos dos lamentos” não chegaram a ela quando estavam precisamente se tornando audíveis. Da criança buliçosa que fora sua irmã, a jovem salta para o espancamento do trintanário e desse para as advertências enérgicas do comendador quanto às “fofocas” dos escravos. Tudo é muito rápido. Carlota faz explodir o “continuum da história” quando relaciona a vida difícil da senzala do Grotão à atitude de João Batista, e em seguida à onipresença e onisciência de seu pai. É a partir das pequenas lacunas que a memória preenche que lhe é permitido compreender o que se passa na fazenda, de que matéria são feitas a atenção e a lealdade dos negros. O comendador e João Batista têm muitas semelhanças que até então não haviam sido percebidas, mas que a partir desse momento não serão mais esquecidas.

Conclusão O movimento que Cornélio Penna dá à sua obra é no sentido de recuperar a memória para atos pouco honrosos. É assim que uma concepção de nacionalidade – nos moldes freyrianos – coesa e harmônica falha. O cativo é posto como bárbaro, porém os desmandos praticados contra ele são mais bárbaros. A escravidão surge como subproduto direto da civilização e não como seu oposto. Se os negros estão à margem é porque são colocados à mar-

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gem. Negros e mulatos não estão fora, não estão do lado de lá da fronteira que protege a cultura de um universo natural. Eles escrevem sua própria narrativa do nacional, que não coincide com a narrativa oficial e muitas vezes se opõe a ela. Desde o “descobrimento”, curiosidade e receio se confundem em solo americano. A ignorância cria personagens e enredos fantásticos. A monumentalização em A menina morta se refere tanto à fazenda quanto à casa, e contribui para referendar o mistério. O gigantismo dos espaços hiperboliza os mistérios, aumenta o que é desconhecido, dá-lhe proporções monstruosas. O Grotão passa assim a poder ser comparado com o território nacional. O vasto império, pleno de riquezas, também é pleno de espaços desconhecidos, dos quais não se tem ciência, dos quais não se conhece bem os limites e nos quais as fronteiras se tornam móveis pela sua distante imobilidade. A resposta de Euclides da Cunha (1997, p.84) para esse mundo antitético, que o confronto com Canudos apresenta, é a condenação nacional à civilização: “Ou progredimos, ou desaparecemos”. É a partir da ideologia do progresso que o Brasil se inicia no século XX. O desenvolvimentismo econômico da década de 1950 deixa “para trás o país como dádiva de Deus e da Natureza” (Chaui, 2001, p.39) para torná-lo obra humana. Para Eduardo Subirats (2001, p.11-12), ocorre uma gradual substituição do mito do paraíso pela ideologia do progresso, seguida de uma desagregação tal que se passa a pensar o futuro como catástrofe inevitável. Como já se afirmou, data de 1954 a publicação de A menina morta, principal romance de Cornélio Penna. Em anos de desenvolvimentismo, Penna (1997, p.116) conta a história de uma família abastada do Vale do Rio Paraíba que vive os últimos gemidos da escravidão sob a divisa Spes et labor. As palavras latinas anunciam um paraíso para o futuro feito de trabalho. Mas o progresso não é obra divina, o que incomoda um romancista católico e conservador. É sabido que Cornélio Penna (1958, p.xl) pretendia


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narrar o “verdadeiro Brasil”, localizado no locus amoenus universal: o interior. De repente tornou-se impossível conciliar o mito do interior idílico – congelado numa imagem do passado – com o anseio pelo progresso que os novos tempos clamavam. Mas não é só a escravidão que está fora de lugar. O preço pago pelo enriquecimento fácil do Vale do Paraíba, pelo ciclo de exploração do ouro em Minas Gerais ou pelo da cana-de-açúcar no Nordeste é o mesmo que será pago pelo afã desenvolvimentista instaurado a partir da década de 1950: “O mundo apodreceu, envenenou-se de civilização”, declara Cornélio Penna (1958, p.xlvi).

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Ficção e ensaio Maria Célia Leonel* José Antonio Segatto*

RESUMO: Propomos discutir como Os sertões foi incorporado, pela

crítica, como obra de literatura, e como, posteriormente, o romance Grande sertão: veredas passou a ser lido como ensaio. Para tanto, examina-se, de um lado, em vários estudos, como o primeiro foi consagrado como obra compósita, pertencendo, ao mesmo tempo, ao campo da literatura, da história e da ciência, o que se tornou moeda corrente e cânone quase inquestionável, sobrevivendo por mais de um século. De outro lado, investiga-se como a narrativa rosiana passou a ser vista, por uma determinada vertente da crítica, como ensaio ou estudo das relações de poder no Brasil. É essa indistinção, paradoxal, entre história e literatura, ciência e ficção, que nos propomos investigar e problematizar, buscando compreender tal embaralhamento de gêneros. PALAVRAS-CHAVE:

Grande sertão: veredas, Os sertões, ficção, en-

saio, crítica. Our purpose is to discuss the way Os sertões was incorporated by criticism as a work of literature and how, subsequently, the novel Grande sertão: veredas began to be read as an essay. We intend to examine the way in which the former was rendered as a composite work, belonging at the same time to the fields of literature, history and science; a fact that became commonplace and an almost unquestionable canon, which survived for over a century. We also intend to investigate how Guimarães Rosa’s narrative started to be seen by certain sectors of criticism as a novel-essay, that is a study of the power relations in Brazil. It is this paradoxical indistinctiveness between history and literature, science and fiction that we aim to investigate and to problematize, seeking to understand such a mixture of genres.

ABSTRACT:

* Universidade Estadual Paulista (Unesp).

KEYWORDS:

criticism.

Grande sertão: veredas, Os sertões, fiction, essay,


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Introdução Questões derivadas das peculiaridades da literatura e da história ou da distinção entre ficção e ciência continuam não só recorrentes, como muitas permanecem sem solução, levando a indagações e gerando controvérsias teóricas e analíticas. Exemplo disso é o fato de o livro-ensaio de Euclides da Cunha, Os sertões, ser considerado, ao longo do tempo, pela crítica, como obra de literatura, e de, posteriormente, o romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa ser lido como ensaio. Entendemos que o exame desse problema é não só relevante, como oportuno. Nesse sentido, buscamos recontar e/ou expor, na sua historicidade, como, de um lado, o primeiro foi consagrado com o status de obra compósita, pertencendo, ao mesmo tempo, ao campo da literatura, da história e da ciência – caracterização inaugurada por José Veríssimo, logo após seu lançamento em 1902, e que se tornou moeda corrente e cânone quase inquestionável, sobrevivendo por mais de um século. De outro lado, intenta-se investigar como a narrativa rosiana passou a ser vista e analisada, por uma determinada vertente da crítica – sobretudo a mais recente –, como romance-ensaio, estudo ou retrato dos sertanejos despossuídos e das relações de poder no Brasil. Essa indistinção, paradoxal, entre história e literatura, ciência e ficção, requer análise e problematização, objetivando compreender tal embaralhamento de gêneros.

Os sertões como obra literária Recentemente, em 2002, quando das comemorações do centenário de Os sertões, publicado em 1902, a tônica geral das análises da crítica foi a manutenção, praticamente intacta, do cânone consagrado há muito que tem como chave da leitura da obra de Euclides da Cunha a idéia de que se trata de um texto híbrido de literatura/ficção e ciên-

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cia. Imbuído dessa concepção, Roberto Ventura (2002, p.24) considera que Os sertões é uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza.

Com viés um pouco diverso, mas na mesma direção, Leopoldo M. Bernucci (2002, p.12 e 15), embora de modo menos categórico, afirma: [...] mesmo estando em terreno etnográfico em que predominam normalmente as descrições e análises, Euclides usou matrizes ficcionais que vieram muito a calhar [...]. A incorporação de materiais extraídos de fontes ficcionais combinados com os das fontes históricas, científicas e jornalísticas faz de Os sertões a primeira grande obra verdadeiramente canibalesca de nossa literatura [...]. A exemplo de Tucídides, será o consórcio entre arte, exatidão e o tom sincero do narrador que modelará Os sertões como história ao gosto do Romantismo.

Esse tipo de caracterização do livro de Euclides da Cunha é bastante antigo e foi, como dito, proposto inicialmente por José Veríssimo com a publicação de seu artigoresenha, no jornal Correio da Manhã, em 3 de dezembro de 1902. Nele, o crítico interpretou Os sertões como uma obra de ciência, história e literatura, asseverando que [...] é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista [...] (Veríssimo, 1977, p.45)

No mesmo dia, por carta, Euclides da Cunha (1966, p.620-1) – que trabalhava em Lorena no Estado de São Paulo – responde às observações de Veríssimo, conside-


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rando que o “consórcio entre ciência e arte” era a “tendência mais elevada do pensamento” e que o trabalho literário exigiria o registro científico; alega, ainda, que o “escritor do futuro” deveria ser um “polígrafo” e que seria necessária a criação de uma “tecnografia”, capaz de agregar diversos saberes. As posições de Veríssimo e também de Euclides seriam corroboradas, logo a seguir, por Araripe Júnior (1978, p.22) em dois artigos no Jornal do Comércio de 6 e 18 de março de 1903. Esse estudioso constata que a fascinação que o livro exerce “resulta de um feliz conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico [...]”. E mais: seria o “[...] único no gênero, se atender-se a que reúne a uma forma artística superior e original uma elevação histórico-filosófica impressionante [...]”. Tais exames avalizadores de Os sertões como obra de literatura e história ou de ciência e ficção tornar-se-iam, ao longo do século XX, o paradigma manifesto das análises do livro. Sem a pretensão de enumerar todos os estudos sobre Os sertões, vale a pena citar alguns a título de exemplo. Gilberto Freyre (1944, p.32) diz que a paisagem que transborda da obra é a da personalidade angustiada do autor, que precisou “exagerar para completar-se e se exprimir nela” – de forma que “é Euclides mais do que a paisagem, que transborda dos limites do livro científico [...] tornando-o um livro também de poesia [...]”. Afrânio Coutinho (1980, p.82-6), no início dos anos 1950, é mais peremptório, ao afirmar que, apesar de haver na obra uma mistura de elementos de diversos gêneros (ensaio, drama, ficção), não é uma obra de ciência – é “sobretudo uma obra de arte”, o que “sobreleva a tudo é a sua parte artística”, “obra-prima da literatura”; enfim, “Euclides era um artista, um ficcionista, um criador de tipos, tal qual um romancista”. O amálgama de literatura e história, com predominância da primeira, está presente também em Dante Moreira Leite (1969),1 em Nelson Werneck Sodré (1960),2 em Franklin de Oliveira (1959),3 em Olímpio de Souza

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Euclides é “esse ficcionista que se espraia assim, do começo ao fim de Os sertões, sem deixar de ser o historiador consciencioso [...]” (Andrade, 2002, p.449).

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“Euclides poderia ter escrito um livro científico, limitado pela perspectiva da época; se continua e continuará a ser uma obra-prima da literatura brasileira, isso se deve às suas qualidades formais e à visão humana que Euclides consegue transmitir” (Leite, 1969, p.204).

2

“a importância de Euclides consistiu em conferir grandeza, em dar forma literária, [...] como suprema realização artística, a uma interpretação nova do Brasil [...]” (Sodré, 1960, p.453).

3

“contra o que está, porém, superado ou obsoleto em sua análise, reage Os sertões pelo que há de permanente: seu caráter de obra literária [...]. É talvez a mais alta interpretação social do Brasil feita em termos de arte” (Oliveira, 1959, p.306-7). Em estudo posterior (Oliveira, 1983, p.22), o autor afirma que o livro de Euclides não pode ser considerado como ficção ou romance, embora saliente sua dimensão artística (ibidem, p.29).

“Mais uma vez, em Euclides, o ficcionista ganha do historiador, na dramatização do episódio, nas sugestões ambientais, na descrição do movimento e do ruído, nas imagens violentas. E é possível mesmo que ele tenha preferido seguir a versão de Arinos, que lhe chegara às mãos já romanescamente elaborada; o que não impede de desenvolvê-la ainda mais, no mesmo sentido” (Galvão, 1976, p.83).

6

“A preocupação de realizar uma síntese entre linguagem literária herdada e a elocução científica do presente é pois consciente e constitui uma verdadeira obsessão para Euclides [...] Síntese entre literatura e ciência, combinação de estéticas, cruzamento de gêneros, oposições de estilos; sua obra parece ressudar tensões por inteiro” (Sevcenko, 1983, p.135).

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Andrade (2002),4 em Walnice Nogueira Galvão (1976),5 em Nicolau Sevcenko (1983).6 Valentim Facioli (1998, p.38) retoma a discussão, considerando Os sertões um livro de “interpretação científica do processo histórico brasileiro”, segundo os parâmetros do “consórcio de ciência e arte”. Para esse crítico, Euclides estava impregnado por concepções – do positivismo, do determinismo, do evolucionismo, do naturalismo – que vêem o conhecimento científico como auxiliar na descrição e na elaboração do retrato da realidade na busca da verdade, superando o subjetivismo; sendo assim, o literário deveria submeter-se às leis naturais. O inverso também seria válido. Talvez não seja exagerado verificar que as relações entre discurso descritivo da ciência e discurso metafórico da arte em Os sertões imbricam-se, tornando-se quase indistintos, resultando num discurso outro que quer sintetizar os dois para a produção de um gênero artístico híbrido e indefinido, que abarca dimensões inusitadas. Parece evidente que o texto euclidiano permite um trânsito em duas mãos: tanto a ciência produz a arte, quanto vice-versa. (Facioli, 1998, p.55)

A tentativa de realizar o consórcio entre ciência e arte por parte de Euclides teria, porém, fracassado. Produto de seu tempo, a obra hoje estaria sendo recusada tanto pelas ciências sociais como pelas ciências naturais; só a “historiografia literária”, apesar das ressalvas, ainda a acolhe. Facioli (1998, p.57) acrescenta ainda que Euclides teria atingido apenas a “virtualidade” no que se refere ao projeto de consórcio de ciência e arte. Teria havido confiança exagerada nas possibilidades de revelação do país, na linguagem da denúncia do crime que a República praticara em Canudos. Nesse “ensaio” euclidiano, “sem gênero definido”, reponta uma linguagem “monumental”, “oratória” com a finalidade de “comover e persuadir”. Otto Maria Carpeaux (1958, p.4), por seu turno, e com visão um tanto diversa, afirma que o “valor e o prestígio da obra de Euclides criaram, de Canudos, uma ima-


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gem que não pode ser desfeita”. Vai mais além, valendo a pena citá-lo: Mais do que escrever história, Euclides fez história. Mas os exemplos de Tácito e Saint Simon bastam para demonstrar até que ponto a imaginação entra, como elemento criador, justamente nas maiores obras de historiografia. No Brasil foi João Ribeiro, parece, o único que duvidou da exatidão científica de “Os Sertões”, falando em “ficção”; escrevendo hoje, teria falado em “science fiction”. Com efeito, não se diminui o valor excepcional da obra, afirmando-se que os elementos científicos dela, as considerações geológicas, etnológicas, sociológicas e de psicologia social, são hoje tão antiquadas que dão a impressão de ciência fantástica. Contudo, não seria possível eliminá-los simplesmente [...] A ciência fantástica de Euclides faz parte integral de sua obra.

Pouco tempo antes, em 1956, escrevendo no Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo – mesmo jornal em que Otto Maria Carpeaux publicou suas considerações –, Antonio Candido (2002, p.174) observava que Euclides da Cunha havia realizado uma análise históricosociológica sui generis. Nela pesquisou “a psicologia dos protagonistas” e, para “compreendê-la, vai até as influências da raça e do meio geográfico”; no entanto, Euclides estaria ultrapassado na sociologia, porque o livro é “demasiado mecânico”, o que “a seu tempo era de preceito, para corresponder às concepções dominantes então, do naturalismo científico”. O crítico afirma ainda que o autor opera com conceitos, análises e critérios “especificamente sociológicos de interpretação” que “aparecem concretizados em alguns princípios diretores” (ibidem, p.179). Além disso, “mais que sociólogo Euclides é quase um iluminado”, havendo “nele uma visão por assim dizer trágica dos movimentos sociais e da relação da personalidade com o meio físico e social” (ibidem, p.181). Assim, só pode ser compreendido [...] se o colocarmos além da sociologia – porque de algum modo subverte as relações sociais normalmente discrimi-

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nadas pela ciência, dando-lhes um vulto e uma qualidade que, sem afogar o realismo da observação, pertencem antes à categoria da visão. (ibidem, p.182)

Florestan Fernandes (1977, p.35), fazendo uma análise do desenvolvimento histórico da sociologia no Brasil, constata que Os sertões é o primeiro ensaio a procurar fazer uma “descrição sociográfica” e uma interpretação histórico-geográfica do meio físico, dos tipos humanos e das condições de existência no país. Teria um valor de marco na constituição da sociologia brasileira e, a partir desse momento, “o pensamento sociológico pode ser considerado como uma técnica de consciência e de explicação do mundo inserida no sistema sócio-cultural brasileiro”. Em “Canudos não se rendeu”, introdução feita a Os sertões em 1973, Alfredo Bosi (2002, p.212) afirma haver, na obra, dois grandes planos, um histórico e outro interpretativo. Ao histórico corresponderia a parte final e, ao interpretativo, as duas primeiras partes. Essa ordem relaciona-se com a cultura determinista do autor, tendo mediações ideológica e literária intrinsecamente ligadas. Euclides faz uso de processos retóricos que não são neutros; por meio de recursos com finalidade hiperbólica tenciona transmitir a noção de “grandeza”, de “terribilidade” “do inelutável” (ibidem, p. 216 – grifo do autor). A linguagem manipulada por Euclides da Cunha, de denúncia e de protesto, tem função de apelo (ibidem, p.218). No que refere à mediação literária, a obra de Euclides não se distancia de seus coetâneos como Afonso Arinos, Coelho Neto, Rui Barbosa e Olavo Bilac. O nacionalismo ou sertanismo desses autores manifestavam-se por “uma dicção purista levada ao extremo do arcaísmo e do preciosismo” (ibidem, p.219). Bosi (2002, p.220) adverte ainda, coerentemente, que uma leitura atual do livro não deve insistir naquilo que é documento de seu tempo: “a linguagem rebarbativa, o ângulo faccioso da visão”. Outros são os valores a que se deve ater a leitura moderna de Os sertões: a potência da representação, o empenho em não separar o fato de seu


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contexto, a busca de superar esquemas ideológicos e atingir “uma objetividade mais alta, realizada na denúncia de um equívoco que, consumado, se fez crime” (ibidem, p.220). A par do acerto dessas considerações, devemos lembrar que, em nenhum momento, o ensaísta refere-se à composição de Euclides da Cunha como ficção ou literatura. O estilo literário, evidente no livro, advém, como dito, da tradição do momento. Nessa linha de interpretação que se distancia da leitura canônica que se fez – ou ainda se faz – segundo a qual Os sertões é uma obra híbrida de história e literatura ou de ciência e ficção, temos, mais recentemente, Luiz Costa Lima (2006). De forma mais enfática, tem chamado a atenção para o fato de que os critérios utilizados por Veríssimo – e posteriormente incorporados acriticamente – remontam a concepções do século XVIII, quando não se distinguiam de maneira clara as diferenças entre história e literatura e não eram reconhecidas a autonomia e a peculiaridade artística da última. O crítico repara que, no Brasil, [...] ainda no final do século XIX e durante grande parte do XX, não se havia assimilado muito bem por que história e ficção pertenceriam a campos diversos. Ao contrário, tornando literatura e ficção equivalentes, era mais fácil manter a convergência entre história e literatura. Para tanto, era suficiente que o historiador fosse capaz de atualizar o potencial da língua em construções incomuns da linguagem. Esse potencial, na verdade, já não era definido puramente por um critério retórico – o uso rico da língua –, mas por sua combinação com a força emotiva. (Lima, 2006, p.381)

Reconhecer que existem elementos ficcionais ou mesmo literários em Os sertões não significa – para o crítico – aceitar a “interpretação homogênea” atribuída ao livro. O que há de literatura presente na obra é só “borda que ornamenta um argumento científico” (ibidem, p.383). O que há de arte nele – e esse teria sido o intento de Euclides da Cunha – é a apresentação de uma capa de verniz “que da-

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ria maior visibilidade ou impacto ao exame científico do caso” (ibidem, p.383). Luiz Costa Lima defende ainda que a essência da obra é científica, porém, admite “um tratamento literário que ajudasse a empolgar o leitor, por força de sua eloqüência” (ibidem, p.383). Sua conclusão é a de que seria inconcebível “ver em Os sertões uma obra simultaneamente de história e literária [...]” (ibidem, p.385). A partir das visões aqui expostas, conclui-se que a visão homogeneizadora – que considera, como única possibilidade de caracterização de Os sertões, o cânone “consórcio entre ciência e arte” – há muito vem sendo rediscutida e posta em dúvida. Essa concepção é descartada por Antonio Candido já nos anos 1950 e, de certa forma, também por Otto Maria Carpeaux. O mesmo posicionamento do autor de Formação da literatura brasileira é encontrado em Alfredo Bosi e, com ênfase, em Luiz Costa Lima.

Grande sertão: veredas – um ensaio? Desde sua publicação em 1956, o romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa despertou a atenção de inúmeros críticos, tendo acumulado uma bibliografia extensa, das mais diferentes vertentes analíticas: histórico-sociológicas, míticas, metafísicas, esotéricas, lingüísticas, estilísticas, culturais, folclorísticas, cartográficas. Podem-se destacar, entre esses estudos, duas análises pioneiras – as de Antonio Candido e de Manuel Cavalcanti Proença – elaboradas logo após a publicação do romance. O primeiro, numa resenha-ensaio publicada no ano do lançamento do livro, já assinalava: “este romance é uma das obras mais importantes da literatura brasileira” e sua característica fundamental é a de transcender o regional, “graças à incorporação em valores universais de humanidade de tensão crítica” (Candido, 2002, p.190). No ano seguinte (1957), o crítico edita, como é sabido, o ensaio “O sertão e o mundo” sobre a mesma narrativa, mais tarde republicado sob o título “O homem dos avessos” (Candido, 1978). Nele, afirma que, na composição rosiana,


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misturam-se o “real e o fantástico”, e “combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional”. Conclui que pode ser visto no livro, [...] um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra que, na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do cotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe. (Candido, 1978, p.139)

Do mesmo modo que Antonio Candido abre caminhos para a leitura do romance rosiano, em especial na direção dos estudos sócio-históricos e políticos, Manuel Cavalcanti Proença também tem sua análise posteriormente retomada pela crítica. Todavia, a via da leitura de Proença é outra. Uma parte do texto desse crítico, “Trilhas no Grande sertão” (1959), já havia sido publicada em 1957. O estudioso defende a idéia de que Grande sertão: veredas tem um plano objetivo e um subjetivo – as reflexões do protagonista –, além de um plano mítico. Proença também lança a idéia de que os jagunços são símiles dos cavaleiros da Idade Média, o protagonista é um “cangaceiro cortês” e o julgamento de Zé Bebelo relaciona-se com essa dimensão cavaleiresca da obra. Examina ainda os elementos míticos do romance, além de analisar seus aspectos formais, como os processos de formação de palavras. Todas essas propostas de Proença, como dito, foram apropriadas pela crítica, abrindo mais de uma linha de pesquisa. Como se pode notar, o crítico examina várias dimensões da obra rosiana, mas não a relaciona com a vida sociopolítica do país. Entre os pioneiros, há um terceiro estudo sobre o romance, de menor repercussão, de Rui Facó (1958, p.185), no qual a narrativa de Guimarães Rosa é abordada como obra “eminentemente popular”, “um retrato quase sociológico do interior do Brasil”, destacando-se, ainda, “outra qualidade do romance: o lirismo vigoroso e belo de que está impregnado”. Todavia, a qualidade mais notável da composição é “o seu profundo realismo” que o coloca no

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“mais alto degrau” da literatura brasileira. Trata-se do “documentário de uma época”, de um “mundo gerado pelo latifúndio, pela grande propriedade territorial, pelo monopólio da terra casado aos restos feudais” (ibidem, p.186). Com isso, conclui que Aí está o melhor retrato do latifúndio semifeudal, com toda a sua brutalidade e selvageria, gerando o cangaceiro e os retirantes [...] Este o sertão visto pelo romancista Guimarães Rosa. O sertão heróico e trágico, valente e sofredor, povoado de seres profundamente humanos, como Riobaldo, obrigados a viver uma vida de tropelias, sem consciência de sua situação de oprimidos, sem terem encontrado ainda o caminho certo para se libertarem da exploração do latifúndio (ibidem, p.187 e 189)

A partir dos anos 1960, a fortuna crítica da obra rosiana em geral e do romance Grande sertão: veredas em particular cresce em escala notável, multiplicando-se por meio de artigos, livros, teses, dissertações, estudos e pesquisas dos mais diversos níveis e gêneros, enfoques e métodos. O crescimento das investigações foi quantitativo e heterogêneo. Uma boa amostra disso está na coletânea organizada por Eduardo Coutinho de 1983. Das correntes analíticas da produção rosiana, quatro concepções polarizam-se ao longo do tempo. Uma delas valoriza os aspectos míticos, metafísicos, esotéricos; outra prende-se ao virtuosismo lingüístico e às perspectivas formalistas. A terceira vertente provém de certo marxismo reducionista e sectário que entende a obra como literatura alienada em relação à dimensão histórico-social do país e do ser social. Nela, “o homem se vê reduzido à mera figuração abstrata, campo para o debate entre meros dados ontológicos e metafísicos [...] Aceita-se como definitiva a fetichização, a alienação” (Ribeiro, 1974, p.104). A quarta corrente tem como referência críticos pioneiros, sobretudo Antonio Candido, acentuando e maximizando alguns dos aspectos por ele ressaltados. O exemplo mais consistente dessa vertente é o de Walnice Nogueira


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Galvão (1972, p.74), que considera o romance Grande sertão: veredas um “retrato do Brasil”, um “ensaio”, “o mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira”, em que o escritor “dissimula a História para melhor desvendá-la” (ibidem, p.63). Nas décadas de 1980 e 1990 houve um crescimento acentuado das duas primeiras vertentes. Nas análises da crítica, especialmente no meio acadêmico, mas não só, há a valorização de temas e questões metafísicas, míticas, psicanalíticas, folclóricas, lingüísticas. Como contraponto ao crescimento desse tipo de enfoque – que se torna mesmo preponderante –, críticos que têm como referencial concepções histórico-sociológicas reagem com análises que acentuam e, de certo modo, radicalizam a dimensão sócio-histórica do romance, procurando recuperar e destacar dimensões obscurecidas ou relegadas a um segundo plano – como as relações sociais e de poder – pelas análises prevalecentes. Retomando teses elaboradas por Walnice Nogueira Galvão, Sandra Guardini T. Vasconcelos (2002, p.324) discute a questão do coronelismo e da jagunçagem e examina, “a partir de uma perspectiva histórica, a inserção de Grande sertão: veredas numa linhagem de estudos de interpretação do Brasil que abordaram esse traço das relações sociais e de poder em nosso país”. Para essa estudiosa, o banditismo e a violência, que são inerentes ao romance e o atravessam do princípio ao fim, determinariam “em grande parte seu movimento e desfecho”, permitindo “inscrevê-lo no cruzamento entre o literário e o histórico” (ibidem, p.324). É com esse “entrecruze” que o romance “pode contribuir para iluminar”, a partir do relato de um partícipe do “mundo da jagunçagem, o modo como se estabeleceram as relações de poder vigentes no sertão brasileiro durante a República Velha, envolvendo fazendeiros, bandos de jagunços e milícias” (ibidem, p.324). Ao representar esse mundo, o romancista “deu voz às contradições e dilaceramentos do nosso país, cuja imagem como um espaço em que o processo de modernização nunca se deu de maneira homogênea” (ibidem, p.324).

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Guimarães Rosa expõe, dessa forma, as contradições nacionais e mostra que o arcaico não é sobra do passado, mas configura-se no presente como “corolário do projeto de modernização do país”. Vasconcelos (2002, p.331) conclui afirmando o caráter e a natureza compósita de Grande sertão: veredas: Na sua mescla de ficção e história, o romance de Guimarães Rosa é não apenas o ‘mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira’, como avalia Walnice Nogueira Galvão, mas é sobretudo um agudo ensaio sobre a liquidação do coronelismo durante a Primeira República, narrado de dentro e debaixo, da perspectiva de uma personagem que viveu todo o processo. Só por isso já mereceria figurar ao lado dos melhores ensaios de interpretação de um dos períodos mais conturbados da história do Brasil que nossa historiografia produziu.

Na mesma direção, mas tendo como referencial concepções e categorias de Walter Benjamin, Willi Bolle (2004, p.377) procura mostrar que o romance de Guimarães Rosa, além de ser uma história do indivíduo, contém ainda “uma história social do Brasil”. O escritor encena essa história do país por meio de fragmentos e de modo criptografado que caberia ao leitor “decifrar”. Em outras palavras, Grande sertão: veredas, por meio da história da vida de Riobaldo, contaria a história social da nação: “ao narrar a sua vida, ele convida o leitor a organizar os fragmentos da história despedaçada e criptografada do Brasil” (ibidem, p.378). O crítico alega que, organizando os fragmentos “espalhados e ocultos ao longo de diversas passagens do labirinto da narração”, é possível decifrar a “identidade da nação e do povo” (ibidem, p.336). Assim, para esse crítico, [...] o romance de Guimarães Rosa é o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes populares, o que constitui um sério obstáculo para a emancipação do país [...] o mais preciso e mais complexo estudo dessa questão [...] (ibidem, p. 9 e 17)


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Bolle (2004, p.22-3) afirma ainda que o romance “se configura como uma forma de pesquisa”, o que permite lêlo como “retrato do Brasil”. Ao compreender Grande sertão: veredas como representação alegórica da história brasileira, o ensaísta em pauta considera, especialmente, que a narrativa rosiana seria uma “reescrita crítica” do “livro precursor”, Os sertões de Euclides da Cunha. Como revisão crítica daquele modelo historiográfico (determinismo positivista), “pode ser lido como um processo aberto contra o modo como o autor de Os sertões escreve a história” (ibidem, p.34-5). Para Willi Bolle, o romance Grande sertão: veredas, “retrato do Brasil”, pode ser comparado com outros ensaios sobre a formação do país elaborados por, além de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Antonio Candido e Florestan Fernandes. E vai além, ao dizer que, “com potencial sui generis, ele ocupa em relação àquelas obras canônicas uma posição complementar e concorrente” (ibidem, p.24). Já Luiz Roncari (2004), em O Brasil de Rosa, relaciona três dos livros de Guimarães Rosa – Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas – com o momento em que foram produzidos, discutindo as relações entre literatura e história e considerando, especialmente, o “fato de o autor tratar nos três os mesmos tipos de problemas apresentados pela história”. Uma das fontes do autor de Corpo de baile apóia-se “não só na nossa tradição literária, mas também nos velhos e novos estudos do Brasil, efervescentes em seu tempo” (Roncari, 2004, p.17). A seu ver, faltava, da parte da crítica, o exame de uma “camada” da obra de Guimarães Rosa, que “alegorizava a história da vida político-institucional de nossa primeira experiência republicana e numa perspectiva que poderíamos considerar conservadora” (ibidem, p.18-19). Conservadora no sentido de crítica à ordem estabelecida que trouxesse de volta a autoridade que havia se perdido com a República.

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Guimarães Rosa teria, sem deixar de lado a vida amorosa e familiar, própria do romance de modo geral, a preocupação de integrar também os costumes da vida pública, “o que deu a sua ficção também a dimensão de uma representação do país, e muito mais realista do que se poderia supor. Foi essa a razão que [...] levou [o crítico] a discutir parte de sua obra como sendo também a de um intérprete do Brasil, embora muito peculiar” (ibidem, p.20 – grifo nosso). Para o ensaísta, o escritor mineiro teria seguido “de perto os paradigmas de Oliveira Vianna, do livro O ocaso do Império [...]”, construindo, na ficção, personagens que corresponderiam aos homens da vida pública brasileira de acordo com aquele estudioso (ibidem, p.20). Roncari relaciona o modo como os intérpretes do país apreendem nossa vida político-social com a maneira de Guimarães Rosa compor suas histórias. De acordo com o autor de O Brasil de Rosa, Guimarães Rosa teria proximidade com as visões de Alberto Torres, Alceu Amoroso Lima e Oliveira Vianna, mas também de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Paulo Prado e outros mais. Os fatos políticos e sociais que se refletem na produção rosiana teriam sido apresentados na “perspectiva do conservadorismo crítico” por Alceu de Amoroso Lima em Política e letras, ensaio de 1924 (Roncari, 2004, p.22). Esse texto de Alceu de Amoroso Lima propõe como solução para os impasses da vida nacional a “harmonização das forças contrárias”. Segundo Roncari, Guimarães Rosa teria tomado essa visão de Alceu “como diagnóstico e aceito a sua proposta de solução, quase como uma missão a ser cumprida pela sua obra” (ibidem, p.24). Como se pode observar, para Roncari, o romance rosiano não deixa de ser ficção, mas exerce o mesmo papel de historiadores e outros intérpretes que estudam a vida sociopolítica do país.

Literatura e ensaio A discussão que a crítica sobre os dois autores – Euclides da Cunha e Guimarães Rosa – suscita tem a ver, espe-


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cialmente, com a relação, aproximação ou separação, entre literatura e história. Os estudiosos que retomaram a idéia de José Veríssimo de que Os sertões é uma obra híbrida são muitos e atravessaram o século XX de tal modo que essa matriz, corroborada por Euclides, tornou-se modelo de caracterização da obra. A avaliação do livro pode variar, no que diz respeito à proximidade com a literatura, considerando-se o uso de “matrizes ficcionais”, como quer Bernucci; o fato de ser “obra-prima da literatura” e Euclides “ um criador de tipos tal qual um romancista”, como defende Afrânio Coutinho, e mesmo um poeta como diz Gilberto Freyre. A classificação da obra como sendo de ficcionista também se repete nos estudos de, por exemplo, Olímpio de S. Andrade (2002) e Walnice Nogueira Galvão (1976). Mas, como dito, desde a década de 1950, Antonio Candido caracteriza a obra como um ensaio de caráter histórico-sociológico; Florestan Fernandes, por sua vez, caracteriza-a como marco inaugural da sociologia no Brasil. Mesmo com Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima temos uma interpretação que apresenta aproximações daquela de Antonio Candido, mas que enfatiza o uso da retórica, a eloqüência da obra. O que, apesar do exposto, manteve a idéia do hibridismo, para Luiz Costa Lima, foi a manutenção, no país, da noção anacrônica de literatura. Ao discutir o uso do termo literatura, o mesmo crítico o considera como heterogêneo e baseado no “conceito de modalidades discursivas” (Lima, 2006, p.348). Desse modo, “Fora da ficcionalidade, a literatura abrange aquelas obras que, perdida sua destinação original, recebem outro abrigo, i.e, mantêm seu interesse, mudando de função”. Entre os exemplos por ele citados está Os sertões juntamente com Casa grande e senzala. Os dois livros mudariam de lugar, quando, extinto o “propósito de interpretação sócio-histórica do país, neles sobressair a espessura de sua linguagem [...]” (ibidem, p.349-50). A mudança só se dá porque a obra traz “um traço de destaque” em sua linguagem, apresentando o “correlato sensível-codificado do mundo fenomênico” (ibidem,

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p.350 – grifo do autor). Isso quer dizer que essas obras devem ter não simplesmente uma linguagem diferenciada, mas uma linguagem que, por si, já veicule o mundo dos fenômenos. Pelo mesmo caminho, poderíamos perguntar por que um romance como Grande sertão: veredas, que tem não apenas uma linguagem claramente literária, mas estrutura e fundamentos também literários, passa a ser considerado como ensaio ou como estudo, ou “mescla de ficção e história”. Para entender-se a leitura de Os sertões como literatura e de Grande sertão: veredas como estudo, talvez tenha-se que levar em conta que os leitores de Os sertões, que o caracterizam como obra literária, tomam como ponto básico de análise a elocução, a linguagem. Por sua vez, os críticos, que consideram o romance de Guimarães Rosa como ensaio, levam em conta, como critério de caracterização, a história contada, os acontecimentos nela envolvidos. De um lado e de outro, está em discussão a compreensão do que seja a obra de arte literária relativamente às suas duas faces, a forma e o conteúdo. Da maior valorização de uma ou de outra, chega-se a interpretações diferenciadas e conflitantes. No entanto, cabe lembrar que essas faces são interligadas e inseparáveis, o que já indica que a escolha apenas de uma ou de outra para análise é problemática, resultando em considerações questionáveis como vemos em alguns estudos aqui elencados. Com tudo isso, o exame de como Os sertões foi transformado em obra literária e Grande sertão: veredas passou a ser lido como ensaio suscita questões e dilemas importantes, postos e repostos ao longo do tempo e que têm relações com as peculiaridades da literatura e da história. Tais questões indicam, ainda, que problemas de identidade e diferença epistemológicas e cognitivas – como representação e compreensão, distinção entre linguagens e formas – continuam a ser recorrentes. Se entendermos que a literatura, como atividade artística, e a história, como modalidade “científica”, têm modos específicos de reprodução do real, faz-se necessário


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estabelecer as diferenças tanto nos discursos quanto nas distintas formas de abordagem e compreensão do ser social e do processo histórico. Pode-se dizer que o historiador seleciona para análise aquilo que supõe ter acontecido ou que acredita ser o verossímil, a realidade objetiva, acessível e não simples construtos elaborados pela imaginação criativa (Hobsbawm, 1998, p.8). O historiador ocupa-se com o existente, com a realidade em si, ou seja, com a realidade histórica concreta que independe da consciência do sujeito. Nas análises elaboradas pela historiografia, tenta-se reproduzir a realidade abstratamente, no plano do pensamento – por meio de conceitos, categorias, alusões e comparações – tal como, de forma aproximada, ela supostamente se deu. Na literatura, a realidade é criada ou recriada, inventada ou reinventada artisticamente por meio de figuras, metáforas, símbolos, alegorias. O escritor cria uma realidade nova a partir do mundo em que está inserido, utilizando a imaginação e a invenção. Ele reinventa a realidade ou inventa aquilo que poderia ter acontecido, de maneira que ela é reproduzida não como é ou foi, mas como poderia ser, como Aristóteles escreveu. Dessa forma, a obra de arte é “algo criado pelo homem, que jamais pretende ser uma realidade no mesmo sentido em que é real a realidade objetiva” (Lukács, 1970, p.163). Sua representação é única e insuperável, feita por imagens sensíveis, por meio das quais o sujeito (artista) cria o objeto e representa, geralmente, destinos humanos concretos em situações particulares (Lukács, 1968, p.41ss.). Por meio da literatura, o homem relaciona-se imaginariamente com a realidade histórica. Todavia, a literatura não é antagônica do real; ao criar um real imaginário, ela não deixa de representar um real verídico, existente. Nesse sentido, Karel Kosik (1976, p.118) afirma que a obra de arte “exprime o mundo enquanto cria. Cria o mundo enquanto revela a verdade da realidade, enquanto a realidade se exprime na obra de arte. Na obra de arte a realidade fala ao homem”. Habermas (1987, p.93), por sua vez,

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diz que a “ literatura faz proposições sobre as experiências privadas” e que sua linguagem “deve verbalizar o irrepetível”, além de restabelecer a “ intersubjetividade da compreensão”. Desse modo, a literatura – como a história – consegue desvendar e iluminar aspectos muitas vezes velados da realidade. Isso quer dizer que, mesmo com linguagens e formas (artística e científica) distintas, ambas têm uma função cognitiva fundamental. Isso não significa que a representação artística seja simples reprodução (ou reconfiguração) da realidade. Não se pode dizer que “o romance simplesmente passa a refletir a realidade tal qual ela se apresenta de imediato ou empiricamente” (Lukács, 1976, p.115), pois, como dito, enquanto a história ocupa-se do real, a literatura liga-se ao possível. Guimarães Rosa (1969, p.3), atinando com a noção de que a literatura vai além da realidade histórica concreta ou a supera, podendo mesmo significar seu reverso, pontuou adequadamente o assunto, asseverando: “a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História.” Ademais, a ficção evidencia determinadas perspectivas particulares, íntimas, imperceptíveis, que as ciências sociais, buscando recriar a realidade histórica verdadeira, não consegue nem pode captar. Há sutilezas e grandezas da vida social que aparecem na obra artística com uma vivacidade que as ciências sociais em geral apanham de fora ou não apanham [...] a literatura abre o horizonte da cultura, da história, numa escala que a ciência apenas esboça. Ocorre que a literatura lida principalmente com o singular, o privado, o subjetivado, o sensível. Por isso torna vivida a vida que a ciência precisa buscar. Revela dimensões invisíveis, incógnitas, recônditas. Talvez a parte submersa do iceberg. (Ianni, 2006, p.52)

Muitos estudiosos consideram válido observar que, se tanto as análises históricas dos cientistas sociais quanto as narrativas ficcionais dos artistas têm algo de verdadeiro e real, têm também muito de imaginação e fabulação. Desse modo,


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[...] a obra de arte tem algum compromisso com a verdade, na medida em que ela inventa um mundo que possui alguma verossimilhança em si. O trabalho do cientista social tem sempre um elemento de invenção, ficção, arte. Nele há situações e climas, personagens e dilemas, trabalhos e lutas, tensão e mistério. (ibidem, p.62)

O fato de a obra de arte ter alguma relação com o real levou Friedrich Engels (apud Lukács, 1968, p.42) a afirmar que aprendeu com a obra de Balzac muito mais sobre a realidade histórica da França na primeira metade do século XIX do que com os historiadores, economistas, estatísticos etc. Esta penetração do escritor nas profundidades da motivação social e humana, esta ruptura com a motivação superficial e aparente dos eventos (peculiar tanto aos ambientes “oficiais” como às impressões imediatas das próprias massas), constituíam para Engels o necessário pressuposto de uma duradoura eficácia das obras de arte. (ibidem, p.42)

No sentido inverso, ou seja, quando a obra do cientista social contém elementos ficcionais e artísticos, Antonio Gramsci (2000, p.13) chama a atenção para o fato de que a característica medular de O príncipe de Maquiavel é ser “um livro ‘vivo’, no qual a ideologia e a política fundem-se na forma dramática do ‘mito’”, e não um “tratado sistemático”. Diferentemente das formas como se “configurava a ciência política” até aquela época (início do século XVI), Maquiavel [...] deu à sua concepção a forma da fantasia e da arte, pela qual o elemento doutrinário e racional personifica-se em um condottiero, que representa plástica e “antropomorficamente” o símbolo da “vontade coletiva”. O processo de formação de uma determinada vontade coletiva, para um determinado fim político, é representado não através de investigações e classificações pedantes e princípios e critérios de um método de ação, mas como qualidades, traços característicos, deveres, necessidades de uma pessoa con-

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creta, o que põe em movimento a fantasia artística de quem se quer convencer e dá uma forma mais concreta às paixões políticas [...] depois de ter representado o condottiero ideal, Maquiavel – num trecho de grande eficácia artística – invoca o condottiero real que o personifique historicamente: esta invocação apaixonada reflete-se em todo o livro, conferindo-lhe precisamente o caráter dramático.

Para outros pensadores, como o historiador norte-americano Hayden White (1995, p.13), há um forte componente fictício e artístico evidenciando a relação promíscua entre literatura e história nas reconstruções históricas. Para outros, como Habermas (1990, p.190), a literatura pertence a um domínio autônomo. Lukács, por sua vez, sempre alertou para as peculiaridades diferenciadoras da literatura e das ciências sociais e para as relações íntimas e inseparáveis da forma e do conteúdo – lembrou, inclusive, que, em arte, quando se tem “algo importante a dizer”, é necessário que se encontre a “ forma apropriada” para fazêlo (Lukács, 1969, p.181). No que se refere à relação entre literatura e ensaio, Adorno (2003, p.18) aponta a autonomia desses dois campos, na forma e no conteúdo; o ensaio diferencia-se da arte “tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética”. Leandro Konder (2005, p.44), na mesma direção, afirma que o terreno do ensaio não é “o da ficção nem o do primado da imaginação criadora”; embora assimile “algo da liberdade de expressão apreendida na arte – seu programa é de natureza científica”. Alguns dos equívocos derivados do nivelamento entre o ensaio e o gênero artístico-literário acabam por reduzir a literatura a uma repetição direta e mecânica do mundo real, o que pode ocorrer, comumente, pela tentativa consciente ou inconsciente de justificar uma tese, negligenciando-se a essência artística da obra. Partindo dessas distinções entre literatura e história ou entre arte e ciência, entendemos ser problemática a caracterização de Os sertões como literatura e de Grande


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sertão: veredas como ensaio ou estudo histórico. A existência de similitudes ou elementos comuns entre a ficção e a realidade, entre a compreensão e a invenção não permite a inversão das peculiaridades das duas obras. Naturalmente, isso não quer dizer que consideramos que as produções artísticas fixam-se ou fixavam-se em um único gênero ou que haja gênero puro. Apenas quer-se entender quais são as características preponderantes em cada um dos livros em discussão que permitem associá-los, principalmente, a um ou outro campo. Antonio Candido (1978, p.123), há meio século, levantou e analisou de forma adequada as diferenças fundamentais entre o livro de Euclides da Cunha e o de Guimarães Rosa: Há em Grande Sertão: Veredas, como n‘Os Sertões, três elementos estruturais que apóiam a composição: a terra, o homem, a luta. Uma obsessiva presença física do meio; uma sociedade cuja pauta e destino dependem dele; como resultado o conflito entre os homens. Mas a analogia pára aí; não só porque a atitude euclidiana é constatar para explicar, e a de Guimarães Rosa inventar para sugerir, como por que a marcha de Euclides é lógica e sucessiva, enquanto a dele é uma trança constante dos três elementos, refugindo a qualquer naturalismo e levando, não à solução, mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte, e permite a sua ressonância na imaginação e na sensibilidade.

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O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista* Joana Luíza Muylaert de Araújo**

RESUMO:

A polêmica em torno da obra de Machado de Assis, envolvendo alguns entre os principais críticos contemporâneos do escritor, permanece vigorosa, se reconsiderarmos o que é ainda hoje interpretado como desacertos da crítica naturalista. Referência central para o exercício da crítica literária no final do século XIX, o nacionalismo, no caso da obra de Machado, cuja singularidade intrigava tanto seus admiradores como seus desafetos, produziu os mais diversos e antagônicos juízos de valor. Desses supostos desencontros críticos é que pretendo tratar, reabrindo o debate, a partir das novas articulações teóricas no campo da crítica literária. Em outras palavras, proponho que se leiam os chamados equívocos críticos como paradoxos constitutivos de todo trabalho rigoroso de interpretação. PALAVRAS-CHAVE:

Literatura e crítica, crítica naturalista, Ma-

chado de Assis.

* Este artigo é uma produção inicial da pesquisa sobre a crítica brasileira moderna e contemporânea, apoiada pelo CNPq com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa.

** Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

ABSTRACT: The polemics that surrounds Machado de Assis’s works, involving some of the most important writers who also lived in the 19th century, remains pertinent, if we reconsider what is today still interpreted as “errors” of the positivist criticism. In a few words, this essay attempts to discuss, through the perspective of contemporary theories about reading and reception, the concept of literary identity as a discursive construction. In order to achieve this aim, we propose that these such errors or misunderstandings should be considered as paradoxes that constitute paradoxes inherent to the actual process of interpretation.. KEYWORDS:

Literature and criticism, positivist criticism, Machado de Assis.


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O nacional e o universal na literatura brasileira: entre a cópia e o modelo “Pode-se hoje pairar nos cimos conquistados para todos, sem ser imitador, mas apenas homem de cultura, mostrando, já se vê, cada um inteligência suficiente e trabalho eficaz.” (Sílvio Romero)

Em face do que julgavam problemas da raça e dos trópicos, críticos e historiadores literários brasileiros, no final do século XIX, construíram, sobre a literatura nacional, imagens imobilizadoras de ressentimento e falta incontornáveis. Com essa percepção de si mesmos, não poderiam deixar de sentir tudo o que se referisse às questões identitárias como realizações extremamente precárias, como máscaras descoladas de um presumido rosto verdadeiro. O impasse, um mal de origem, fez-se, assim, presença incômoda, continuamente lembrada, repisada, numa espécie de círculo vicioso, do qual os mais ruidosos intelectuais se tornaram reféns. Em busca do marco zero de uma identidade por suposição ainda incompleta, ainda em formação, esses melancólicos intérpretes do Brasil voltavam seu olhar para um passado feito de ruínas e um futuro de incertezas, na melhor das hipóteses, um futuro utópico, sempre adiado, sempre inalcançável. Como uma velha história que se repete, todo processo de construção e afirmação de identidades implica muitas dívidas, políticas e culturais, dívidas que se perpetuam insanáveis, em razoável medida, pelo assentimento magoado dos devedores. Dívida sempre rememorada nos escritos dos nossos críticos que, inseguros das imagens coaguladas que desenharam a respeito da própria cultura, não se deram conta da historicidade e, em conseqüência, da provisoriedade de suas representações. Na verdade, como se sabe, a construção do ser brasileiro vem sendo elaborada desde os tempos da ocupação e conquista daquilo que veio a constituir o território nacio-

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nal. Primeiro com o trabalho de catequese do indígena que, convertido em cristão-católico pelos padres portugueses, sofre uma primeira desapropriação. Destituído de sua cultura, perde as referências que o identificam à sua comunidade e está pronto para participar como personagem secundário de uma história que não foi por ele inventada. Primeiro convertido, depois escravizado e, por fim, confinado em terras incertamente demarcadas, o indígena vem progressivamente desaparecendo; trágico desfecho, confirmada a impossibilidade de sua incorporação definitiva à cultura ocidental. Nesse sentido, acredito que podemos mesmo afirmar que, em essência, a percepção dos intelectuais darwinistas não era muito diferente do olhar dos primeiros colonizadores, ao se confrontarem com os estranhos, incompreensíveis indígenas. Sílvio Romero dizia, condenando os românticos nacionais, que o índio não é o brasileiro e que, como raça inferior, estava inexoravelmente condenado a se extinguir no confronto com as raças fortes. A posição assumida pelo crítico foi, nesse caso, ainda mais radical: para o indígena não havia nem a alternativa da conversão, já que, situado num estágio muito inferior da cultura, jamais conseguiria acompanhar o ritmo cada vez mais acelerado da civilização. Como se vê, a perspectiva etnocêntrica justificou tanto a prática predatória e violenta dos primeiros colonizadores europeus quanto a prática e o pensamento teórico das elites intelectuais brasileiras do século XIX, novos colonizadores que reproduziram no interior da sociedade a experiência da colonização européia. O projeto dos intelectuais nacionais do final do século XIX – inserir o Brasil na tradição européia da modernidade – implicava, do mesmo modo, um processo de uniformização das diferentes culturas de origem negra, indígena e mestiça. De fato, não é outro o desígnio de Sílvio Romero ao afirmar a necessidade, a urgência de se branquear a cultura brasileira. Branquear, ocidentalizar, afirmar a hegemonia da cultura européia, esse é o pressuposto


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básico da teoria romeriana da mestiçagem e, simultaneamente, o alvo, a meta final na construção da brasilidade. Ser brasileiro é o resultado último de um lento processo de amalgamento das culturas e das raças que nos constituem, amalgamento que pressupõe a denegação das diferenças, brasilidade, portanto, condenada a simulacro, imagem distorcida, caricatura do europeu que lhe serviu de modelo. Ser brasileiro é ser, mais uma vez, na melhor das hipóteses, um duplo, semelhante precariamente ao colonizador, superior na raça, superior na cultura. A teoria da mestiçagem, proposta por Sílvio Romero, assimila as diferenças culturais do outro desde, é claro, que ele se submeta a ocupar o lugar devido na hierarquia determinada pelo discurso hegemônico das elites letradas brasileiras, discurso que reflete, por seu turno, o discurso europeu dominante. Dentro do discurso histórico europeu, os povos não-europeus, não-ocidentalizados das bandas de cá, só cabiam como povos bárbaros, sem lei, sem Deus, sem costumes, sem história, povos que simplesmente não eram nada, que, destituídos de ser, são o não-ser. A esse tempo, refiro-me ao século XIX, a antropologia e a etnologia já haviam surgido – a criação da “consciência ferida européia”, no dizer de Silviano Santiago (1982, p.17) – para contar a história dos povos sem história, ou melhor, para descrever as incômodas diferenças, embora sem uma real aceitação e compreensão delas. Na verdade, etnólogos e antropólogos não sabiam bem o que fazer com esses homens diferentes, onde colocá-los, uma vez que o mundo tão pequeno, tão reduzido ao horizonte ocidental não os comportava. Oscilar entre o discurso histórico tradicional que fornece uma interpretação etnocêntrica da cultura que nos exclui dessa mesma cultura e o discurso antropológico – que nos aceita como excentricidade e por essa mesma razão nos exclui como outro – constituiu, na verdade, um falso impasse vivido pelo intelectual brasileiro desde o século XIX. Sílvio Romero expressa esse dilema quando afirma a existência de uma literatura brasileira sem originalidade e

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ao referir-se ao homem brasileiro como produto inacabado do cruzamento ainda em curso das três raças. Sabe-se que a constituição sólida e original do povo e da cultura brasileira dependia, segundo o escritor, da capacidade desse povo de se inserir na cultura ocidentaleuropéia. Não há dúvida de que Sílvio Romero acreditava na possibilidade de uma verdadeira interação entre as nações que, integradas numa civilização universalista, cosmopolítica, não perderiam suas características singulares, seus “impulsos originais” (Romero, 1880, p.167). Mas esse projeto mal esconde a tendência à homogeneização das diferenças. Duas afirmações do autor podem nos dar a chave para a compreensão do impasse e para uma tão desejada quanto impossível alternativa, são elas: a literatura brasileira não é original, o homem brasileiro é um ser incompleto. O corpo teórico utilizado pelo escritor condenava de saída qualquer proposta de definição da identidade nacional brasileira. O que se apresentava diante de seus olhos era uma realidade indesejada: um povo mestiço, ainda num estágio inferior de desenvolvimento; uma literatura imitativa, servil, cópia mal feita da grande literatura européia. Só lhe restava, então, projetar para o futuro incerto a saída utópica: o branqueamento da cultura e da raça brasileira, a ocidentalização, a cópia perfeita, no final das contas, também cópia. Cópia imperfeita ou cópia perfeita, o impasse permanece. Sílvio Romero propôs uma saída que o levou ao ponto de partida. Foi um erro de perspectiva que o impediu de avaliar adequadamente nossos melhores escritores, aqueles que com sua obra poderiam formar um conjunto representativo da literatura brasileira. Joaquim de Sousa Andrade – o Sousândrade –, hoje já resgatado do esquecimento pelos irmãos Campos, é um exemplo de poeta importante, mencionado apenas de passagem na História da literatura brasileira, por Sílvio Romero. Especialmente na análise que elaborou sobre a obra de Machado de Assis, fica muito evidente a sua intransigência em relação ao


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método a priori proposto, e, no caso em questão, a arbitrariedade de um juízo à mercê dos humores de circunstância. Embora interessante em muitos aspectos, o “critério étnico-popular” (Romero, 1949, v.I, p.39), formulado pelo crítico, limitou, numa camisa-de-força pretensamente científica, sua amplitude de visão, comprometendo o melhor de seu exercício crítico. Sílvio Romero não soube, ou não pôde, relativizar as palavras, muitas vezes definitivas e autoritárias, com que julgou autores, obras e períodos literários, como foi o caso do romantismo no Brasil. Tornou absoluto o método e perdeu de vista a singularidade do objeto – a obra literária. Mas ainda aqui é prudente salientar que restrições são feitas ao crítico autoritário que ele foi, não ao crítico juiz, porque todos sabemos que nenhuma crítica está isenta de juízos de valor. É certo que a perspectiva de hoje permite perceber o que, no seu tempo, Sílvio Romero não poderia perceber; é certo ainda, conforme adverte Antonio Candido (1978, p. XXII), na introdução a uma seleção de textos do escritor, que não devemos fazer “retroagir os nossos conceitos atuais” se pretendemos evitar juízos de valor absolutos. Afinal, em relação a seu tempo, Sílvio Romero foi um progressista, pois as idéias que abraçou e defendeu representavam um avanço considerável. A “ciência” era a última palavra. Só que essa ciência já nasceu comprometida com a ideologia etnocêntrica européia. O etnocentrismo, como se sabe, estava na base das teorias evolucionistas do final do século XIX, condenando, de antemão, todo estudo comparativo das culturas, hierarquizando-as em mais ou menos evoluídas, mais ou menos universais, e assim por diante. Comparando a literatura brasileira com a européia, segundo essa concepção, Sílvio Romero teve olhos apenas para o que havia de simulacro nas nossas produções literárias. Imobilizado na armadilha dos critérios de atraso e originalidade, acabou cometendo o pecado que acusava na maioria dos escritores brasileiros. Diante das questões – há uma literatura brasileira? É ela original? – as soluções propostas retomavam sempre a mesma toada: nossos es-

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Para um estudo mais específico dessa questão, consultar João Adolfo Hansen (1989).

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critores não são originais, nossos escritores estão sempre atrasados em relação ao que se produz na metrópole. Ao final da leitura da História da literatura brasileira, fica para o leitor a impressão de que as obras nacionais constituem uma galeria infindável e monótona de cópias, mal realizadas, das obras européias. Teria sido necessário reverter a questão das fontes e influências para que o problema da originalidade, do atraso e da dependência cultural manifestasse aspectos que os preconceitos etnocêntricos não permitiam revelar (cf. Santiago, 1978; 1982). Mas isso é coisa que, como se sabe, Sílvio Romero não poderia realizar, comprometido que estava com as referências teóricas de um método que negava, por princípio, à nossa cultura e à nossa literatura o direito de ser ela própria, de possuir uma identidade, identidade dinâmica, bem entendido, em constante interação com outras culturas e, portanto, em processo contínuo de construção. Embora enredado nas malhas da crítica por ele mesmo postulada, Sílvio Romero encontrou algumas brechas pelas quais, achava ele, poderia contornar o incômodo antagonismo entre nacionalismo e cosmopolitismo na cultura e na literatura. A começar por Gregório de Mattos a quem, aliás, Sílvio Romero destaca como o genuíno iniciador da nossa poesia por ter sido o primeiro a expressar, na sua obra, o sentimento popular nacional. Mas não é em razão dos aspectos exclusivamente nacionais que uma obra se legitima, menos ainda se pode falar de uma literatura nacional no tempo de Gregório de Matos (cf. Jobim, 1992).1 No entanto, para sermos justos com o escritor, digamos que mesmo o seu nacionalismo não era tão estreito conforme pode parecer em algumas passagens da sua crítica, como no caso dos estudos sobre o folclore e as relações com a cultura erudita. Ao contrário, insistia sempre no fato de que a integração de uma nação no processo civilizatório não implicava a perda da singularidade e da soberania. Impedido, no entanto, de prosseguir nessa trilha, voltava atrás refugiando-se no seu critério étnico-po-


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pular. A precária identidade nacional, sob constante ameaça de desintegração, assim cristalizava-se num preconceito redutor e excludente. Em síntese, seu pensamento oscilava, aprisionado, entre a defesa do nacional-popular e a defesa do cosmopolitismo. No primeiro caso, as produções anônimas do povo constituiriam a marca distinta e original da nossa literatura e, dado o seu regionalismo, não poderiam atingir um universo mais amplo nem por ele ser atingidas. Reproduzse, assim, no interior do sistema literário brasileiro, o mito do modelo original: modelar é o folclore, sendo a literatura erudita brasileira uma imitação, sempre em desacordo, sempre tardia, da literatura européia. No segundo caso, trata-se, na verdade, embora Sílvio Romero pareça afirmar o contrário, de uma uniformização das culturas segundo o padrão ocidental. O antagonismo entre cultura popular e erudita refletia as desigualdades e a distância, praticamente incontornáveis, entre as classes populares iletradas e as elites intelectuais. Do mesmo modo, cultura universal cosmopolita e cultura nacional se polarizavam, esta última na forma de uma produção folclórica, anônima e invisível aos olhos da literatura nacional consagrada. Embora genuína, autêntica, a cultura literária popular se achava à margem, esquecida e condenada ao desaparecimento, o que Silvio lamentava mas para o que parecia não ver alternativa. Como refazer o percurso das grandes literaturas, com suas grandes épicas, nascidas dos cantos dos rapsodos populares? Se nascemos em plena modernidade, fim de uma tradição poética e narrativa para sempre irrecuperável, eis uma pergunta que talvez o crítico jamais devesse ter feito. Pensar formas de tentar diminuir a distância entre esses pólos extremos foi, pode-se dizer, a razão de ser da crítica de Sílvio Romero, só que as formas de pensar do escritor estavam muito mais afinadas com a cultura dominante européia do que com as culturas populares e regionais onde ele foi buscar as fontes do ser brasileiro. Resultado: ou não éramos nada senão simulacros, ou éramos populares e ser

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popular, no nosso caso, significava ser um outro tão diferente do homem culto europeu que a ameaça de desaparecimento progressivo era um fato concreto iminente. Daí a urgência de europeizar, ocidentalizar o povo brasileiro, o que não supunha, necessariamente, descaracterização, conforme pensava Sílvio Romero quando dizia que é possível ser homem de cultura sem ser imitador. O desejo de manter intacto o “espírito popular” e, simultaneamente, inseri-lo num conjunto universal não seria inviável desde que o povo evoluísse, segundo leis internas, bem entendido, sem a influência do estrangeiro que, por se encontrar no topo dessa evolução, seria, inevitavelmente, um fator de desagregação. Tudo se dá como se a história de todos os povos estivesse destinada a realizar o mesmo percurso, a atingir o mesmo alvo. A cada povo, por isso mesmo, o direito de evoluir de acordo com o seu próprio tempo, seu próprio ritmo: essa era a reivindicação do escritor. Seria possível superar o falso dilema entre universalidade e identidade nacional? Seria viável o diálogo das diferenças que superasse, ao mesmo tempo, o cosmopolitismo homogeneizador e os nacionalismos xenófobos que, em essência, expressam o mesmo desejo desmedido de identidade absoluta?

O caso Machado de Assis: aporias da crítica de Sílvio Romero “O patriotismo é um sentimento anacrônico: o tempo é de um vasto desenvolvimento cosmopolítico.” (Silvio Romero)

Era com afirmações incisivas como essa que Sílvio Romero sustentava sua convicção de que a velha e pobre tese romântica do nacionalismo já não fazia sentido diante da então cada vez mais “viva consciência da unidade intelectual da civilização européia” (Romero, 1880, p.154). O grande fato contemporâneo era o sentimento cosmopolítico, disseminado em todos os povos europeus, rea-


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firmava o escritor, em aberta atitude de quem reconhece e legitima esse sentimento como resultado inelutável do desenvolvimento dos novos métodos histórico-comparativos aplicados nas ciências em geral e na filosofia; a partir, é claro, da perspectiva de um intelectual brasileiro da virada do século, marcado pelas novas correntes evolucionistas e cientificistas de pensamento. O que, porém, parece ruptura ou descontinuidade, em relação a um passado ainda tão próximo, pode, de outro modo, revelar comprometimentos que, de tão enraizados no mesmo romantismo, se apagam no calor das polêmicas. Se o patriotismo romântico era um sentimento limitado e excludente, o cosmopolitismo contemporâneo do século XIX, por sua vez, não passava de uma aspiração à uniformização das diferentes culturas. A universalidade tão desejada era, do mesmo modo, uma utopia etnocêntrica. A descoberta de que havia no planeta outros povos tão distintos dos europeus foi, como se sabe, um elemento a mais para se reafirmar a identidade européia, modelo ideal no qual deveriam se espelhar as outras, diversas, estranhas culturas do lado de cá do oceano. E a ciência do final do século XIX foi um forte instrumento político e ideológico em defesa desta identidade. Comparavam-se as línguas, comparavam-se as raças, comparavam-se as culturas para hierarquizar, classificar e centralizar. Ser cosmopolita significava ser europeu ou parecer um europeu. Os românticos trataram a questão do nacionalismo como se fosse de natureza racial. Sílvio Romero abordou a questão da identidade nacional do mesmo modo, destacando, contudo, a importância do mestiço para a formação de uma cultura brasileira original e autônoma. Ajustado aos parâmetros que sedimentam a idéia de formação, o autor buscava o “telos brasileiro”, o resultado final de uma cultura em gestação. E se dessa gestação resultasse um filho bastardo, imagem deformada de seu modelo? Entre o passado indígena recusado e o futuro mestiço incerto, transitava o crítico, cético e melancólico, com raros

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momentos de euforia, como atestam seus escritos contraditórios, por ele mesmo assumidos (cf. Romero, 1914). Analisando, desse prisma, os problemas culturais, como é que fica a questão do povo brasileiro, mistura recentíssima de raças diversas, sem uma existência nacional fortemente definida, em relação ao conjunto de nações já consolidadas e inseridas nesta unidade maior da civilização européia? Sílvio Romero (1880, p.155) respondeu a essa pergunta dizendo que seremos tanto mais nacionalistas quanto menos procurarmos sê-lo. Referindo-se mais uma vez ao estudo da literatura contemporânea, disse o autor que essa deveria ter dupla tendência, duas direções fundamentais: o criticismo e o americanismo. Como homem de seu tempo, o escritor americano – e portanto o brasileiro – “deve atender ao que vai de profundo e vasto pelo Velho Mundo”; como homem de seu continente, deve incorporar nas suas produções literárias os ideais democráticos americanos de humanidade, universalidade, civilização e liberdade (ibidem, p.159-60). Seguir essas duas direções básicas não excluiria, no entanto, a existência das nações, cada qual bem definida e individualizada. Ao contrário, o cosmopolitismo implicava, na visão de Sílvio Romero, a coexistência de povos diferentes, habitando territórios diferentes, expressandose em línguas diferentes. A civilização, diz o autor, embora seja uma só e cosmopolítica, deve acolher os impulsos originais dos povos independentes (ibidem, p.167). Como método para se pensar os passos em direção à síntese desejada, Sílvio Romero propõe o que denomina “critério étnico-popular”, cujo papel no processo de definição da nacionalidade literária e cultural brasileira, segundo ele, seria decisivo. Uma vez que a originalidade de toda nação moderna surgiria da mistura de elementos diversos, a nação brasileira só poderá representar um papel histórico importante no momento em que, tendo se apropriado dos legados culturais das nações que a constituíram, delas se afastar, formando “um tipo à parte, uma individualidade distinta” (ibidem, p.167).


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O autor acreditava que o processo de diferenciação nacional no Brasil era ainda muito incipiente e debitava esse atraso ao que considerava os dois maiores agentes de transformação: a natureza e a mistura de raças. Como ambos estavam ainda em processo, qualquer resultado final seria mera projeção. De todo modo, a perspectiva determinista prescrevia o olhar retrospectivo sobre o passado cultural, supondo-se possível, com esse gesto, determinar os primeiros passos da individualidade de uma nação. Sendo a literatura uma das expressões fundamentais de um povo, um “sintoma de seu progresso ou decadência” (ibidem, p.168), é a ela que o autor direciona o olhar à procura – que insiste, que se renova a cada texto – de um rosto singularmente brasileiro. Depois de criticar os trabalhos anteriores relativos à nossa literatura “pela ausência de um critério positivo”, pela falta “de uma idéia dirigente e sistemática” (ibidem, p.169), Sílvio Romero expõe, em breves linhas, a metodologia naturalista/evolucionista que ele próprio aplicaria em sua futura História da literatura brasileira. Com exceção, é claro, da poesia e dos contos populares, do folclore nacional, enfim, Sílvio Romero acusa, em quase todos os movimentos intelectuais, “o caráter de importação” (ibidem, p.173) marcante, de onde a necessidade de estudar a literatura brasileira privilegiando a relação com as literaturas que a influenciaram até então. O crítico não vê, de fato, nenhum movimento autônomo, autenticamente nacional nas letras brasileiras, salvo uma ou outra exceção: Gregório de Mattos, Gonzaga, Santa Rita Durão, Martins Pena, Álvares de Azevedo e Tobias Barreto são escritores de valor, segundo ele, por representarem, em suas obras, “um princípio qualquer de diferenciação nacional e de incentivo de progresso” (ibidem, p.190). Com Gregório de Mattos “começa a consciência nacional a despontar”; Gonzaga “dá um cunho pessoal ao velho lirismo português”; Durão “nos faz aproximar da natureza, desprezando os moldes clássicos, e desperta a consciência brasileira, lembrando-nos que nós não éramos

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só descendentes de portugueses, mas que outras raças, como a dos caboclos, nos tocavam de perto”; Martins Pena, com seu teatro, satiriza a burguesia de herança portuguesa, dos tempos da Regência e do segundo reinado; Álvares de Azevedo, com sua poesia marcada sobretudo pelo romantismo inglês, insere a literatura brasileira nas tendências cosmopolitas modernas; e, finalmente, Tobias Barreto, que Sílvio Romero elege como a síntese de todos os outros, grande como poeta e como crítico, contribuindo decisivamente para colocar a nação brasileira em consonância com as correntes de pensamento mais avançadas da época, principalmente as de origem germânica (Romero, 1880, p.190-1). A que lugar estaria destinada a obra de Machado de Assis na análise crítica realizada por Sílvio Romero, segundo os novos métodos das ciências naturais que, adaptados à literatura brasileira, resultaram no novo “critério étnico-popular”? A aplicação desse conceito a uma obra, por um lado, vinculada à tradição literária européia e, por outro, profundamente enraizada no contexto de seu país resultou, conforme se sabe, num grande equívoco. O “critério nacional ou étnico-popular” empregado em obras que não fizessem parte do folclore nacional, das produções anônimas do povo, funcionou como uma verdadeira camisa-de-força. Respaldado nesse conceito, o crítico enquadrou, excluiu e incluiu, valorizou e desqualificou escritores e obras da literatura brasileira, exercendo uma crítica autoritária e impressionista, muito distante da imparcialidade que supostamente lhe asseguraria a ciência tão desejada e enaltecida por ele em seus escritos. Passemos, então, ao estudo sobre Machado que, na época, tanta controvérsia gerou, embora, como se sabe, sem a participação do autor de Quincas Borba, que se manteve à distância das discussões. A polêmica entre Machado de Assis e Sílvio Romero teve início com um artigo do escritor fluminense, publicado na Revista Brasileira em 1879, onde este afirmara que o crítico sergipano havia superestimado a importância do


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movimento literário do Recife, chefiado por Tobias Barreto e Castro Alves. No artigo intitulado “A nova geração”, o autor de Dom Casmurro indaga se haveria uma “poesia nova” e, em caso afirmativo, qual seria o seu fundamento teórico. Depois de analisar alguns poetas representantes mais significativos da “nova tendência”, concluiu Machado que esses não formavam um grupo compacto. Conjugação de ideal político e ideal poético, aspiração social ao reinado da justiça e da liberdade, tendência acentuada ao realismo resultando numa poesia de cunho cientificista e didático não constituíam, a seu ver, elementos suficientemente coerentes e articulados num corpo de doutrina literária. Faltava ao nosso movimento poético uma definição estética, uma “feição assaz característica e definitiva” (Assis, 1962a, p.813). Sendo a direção de qualquer movimento artístico determinada pelas condições do meio, pelo “influxo externo”, e não havendo “por ora no nosso ambiente a força necessária à invenção de doutrinas novas” (ibidem, p.813), nada mais compreensível que essa ausência de um conjunto articulado de escritores e obras partilhando idéias e procedimentos comuns. Concluindo, “há uma tendência nova, oriunda do fastio deixado pelo abuso do subjetivismo e do desenvolvimento das modernas teorias científicas” (ibidem, p.815), mas ainda não perfeitamente caracterizada. Tratava-se apenas de um movimento em vias de se afirmar. Porque pensava desse modo, Machado de Assis só poderia mesmo discordar de Sílvio Romero ao aquilatar o valor da conhecida Escola de Recife, que não teria tido, segundo ele, a expressão e a importância atribuída pelo crítico sergipano. Em outro conhecido artigo – “Instinto de nacionalidade” –, Machado já havia assinalado nos escritores brasileiros da época um esforço geral no sentido de construir uma autonomia literária e cultural, de determinar um caráter literário genuinamente nacional. Com astúcia e moderada ironia, Machado de Assis (1962b, p.803) manifestou-se contrário à opinião corren-

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Como o leitor terá identificado, aproprio-me, nessa passagem, do título do conhecido texto de Roberto Schwarz (1977).

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te de que o espírito nacional residiria nas obras que tratam de “assunto local”, doutrina, diz ele, que, “a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura”. Com isso não quis o autor dizer que a literatura não devesse se nutrir de assuntos regionais ou nacionais, mesmo porque não se trata no caso de uma escolha ou possibilidade: toda escrita parte de algum lugar, num tempo presente a se determinar. Além disso, é inevitável para qualquer escritor – à margem ou no centro das instâncias de legitimação – a passagem pelo crivo das referências universais. Evidenciando o problema verdadeiramente em pauta – o do reconhecimento do escritor pelos seus pares, daqui e do outro lado do mundo, e não propriamente o da representatividade nacional, Machado desloca o velho impasse romântico entre o local e o universal. Parece que a ele não interessava muito a questão que tanto afligia seus contemporâneos. Como se situar no tempo e não no espaço? Como ser lido e aceito senão incorporando o que, segundo Romero e tantos outros, era impróprio, inadequado, imitação de idéias fora do lugar?2 Essas, e não a da brasilidade literária, parecem ser as perguntas do escritor. Em outras palavras, não bastava restringir-se à pintura e à descrição da “cor local” da vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações, da natureza e dos costumes. Cumpria ir mais além: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quanto trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (ibidem, p.804). E é exatamente o contrário desse sentimento íntimo, um nacionalismo de fachada, que Machado aponta e critica no romance e na poesia de então: “Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais” (ibidem, p.807). Com uma visão perspicaz do problema, Machado acabou provocando uma polêmica, mesmo sem a intenção de polemizar, porque tocou no cerne de uma questão sensível aos críticos e escritores brasileiros, na maioria reféns do


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velho dilema do atraso, do descompasso, diante do que ia de mais avançado na literatura pelo mundo afora. Ao contrário do autor de “Instinto de nacionalidade”, Sílvio Romero, como se sabe, foi um polemista contumaz. Partiu então em defesa de suas idéias e escreveu um ensaio chamado “Machado de Assis: estudo comparativo da literatura brasileira”, lançando-se à análise da obra machadiana, conforme ele próprio afirma, “à luz de seu meio social, da influência de sua educação, de sua psicologia, de sua hereditariedade não só física como étnica” (Romero, 1936, p.18). Começou esse estudo analisando as condições de vida pessoal de Machado como um dos fatores determinantes da futura obra. Sobre esse critério fundamentou a divisão em datas marcantes da trajetória do pensamento do escritor – 1859, 1869, 1879 –, apontando aí uma fase inicial totalmente insignificante, uma fase de transição ainda pouco expressiva e, finalmente, a fase posterior a 1879, a grande fase da maturidade. O julgamento do crítico acerca de Machado, na verdade, não foi nada rigoroso ou científico, conforme ele pretendia. Sílvio Romero fez afirmações genéricas e apressadas, sem nenhum fundamento, sem nenhum critério, ou melhor, aplica, é verdade, o “critério nacionalista” por ele proposto como princípio metodológico de análise, mas o faz de forma desastrosa. Percebe-se, em sua análise, o tom extremamente emotivo e exacerbado. O estudo em questão é um estudo apaixonado e acentuadamente pessoal, é sobretudo uma reação subjetiva a uma apreciação de Machado sobre o Movimento Cultural de Recife – apreciação essa, conforme foi demonstrado, não muito favorável. Por essa razão, talvez, Sílvio Romero não alcançou o mínimo de isenção e parcialidade esperadas no exercício da crítica literária. Poderíamos argumentar a seu favor alegando a inadequação de seu instrumental teórico. Mas esse não seria um argumento suficientemente forte, como pretendo mostrar mais adiante. Aos equívocos teóricos acrescenta-se o que já assinalamos – a ausência de

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objetividade, de equilíbrio nas ponderações. Pesou, e bastante, o fator pessoal. Importa, contudo, apontar os pontos mais polêmicos relativos à questão da nacionalidade literária para avaliar os possíveis avanços do crítico, apesar do seu fracasso ao abordar a obra machadiana. O “senão” da obra crítica de Sílvio Romero não consiste nas indagações e talvez nem mesmo na proposta a respeito de um “critério nacionalista” a ser aplicado ao estudo da literatura brasileira. A falha acha-se mais exatamente no que ele define como nacional – uma definição estreita porque atrelada a uma concepção naturalista de raça. Lutando por provar a veracidade de sua tese, Sílvio Romero discute com outro importante crítico da época, José Veríssimo, segundo o qual o “critério nacionalístico” não se poderia adequar à obra de Machado de Assis, pois, dessa forma, “ela seria nula ou quase nula, o que basta, dado o seu valor incontestável, para mostrar quão injusto pode ser às vezes o emprego sistemático de fórmulas críticas” (Veríssimo apud Romero, 1936, p.27). Contra-argumentando, escreve Sílvio Romero (1936, p.37-8 – grifos do autor): O espírito nacional não está estritamente na escolha do tema, na eleição do assunto como ao Sr. José Veríssimo quer parecer. Não é mais possível hoje laborar em tal mal entendu. O caráter nacional, esse quid quase indefinível, acha-se, ao inverso, na índole, na intuição, na visualidade interna, na psicologia do escritor. Tome um escritor eslavo, um russo, como Tolstoi, por exemplo, um tema brasileiro, uma história qualquer das nossas tradições e costumes, há de tratá-la sempre como russo, que é. Isto é fatal. Tome Machado de Assis um motivo, um assunto entre as lendas eslavas, há de tratá-lo sempre como brasileiro, quero dizer, com aquela maneira de sentir e pensar, aquela visão interna das coisas, aquele tic, aquele sestro especial, se assim devo me expressar, que são o modo de representação espiritual da inteligência brasileira.


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Sílvio Romero (1936, p.28-9) parecia ir muito bem nas argumentações, referendando, certamente sem se dar conta, palavras do próprio Machado, mas eis que, de repente, ele torce o pensamento e o que parecia um aspecto positivo – afinal, não admite o crítico que, em seus romances, em seus contos, Machado “chegou até a criação de verdadeiros tipos sociais e psicológicos, que são nossos em carne e osso, e essas são as criações fundamentais de uma literatura”? – aparece como um grave defeito. Machado seria nacional na medida mesma em que sua literatura refletiria a “sub-raça brasileira cruzada”, é o que atestam abaixo as palavras do crítico: Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pode sair, e ai dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto. (ibidem, p.28).

A partir daí, o crítico passa a proferir uma série de inverdades a respeito da importância da obra machadiana, que se contradizem umas às outras, conforme pode ser observado em muitas passagens do “livro-tribunal”.3 Depois de ter afirmado a nacionalidade do escritor, vê-se o crítico na desconfortável circunstância de salvar uma nacionalidade não-machadiana, uma nacionalidade étnico-popular, conforme reivindica na exposição do já mencionado critério. Machado, escreve Romero (1936, p.52-3), “é o menos popular de nossos poetas, pelo fundo, pela forma, pelo ritmo, pela linguagem, por tudo”; além disso, “em quase toda a sua obra, em poesia, tem esquecido o povo brasileiro”. Machado é censurado por não incorporar o modo romântico de escrever, por aquilo que seus escritos de crítica e de ficção não legitimaram: Em seus livros de prosa, como nos de versos, falta completamente a paisagem, falham as descrições, as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar, e as da história e da vida humana, tão notáveis em Herculano e no próprio Eça de Queiroz. (ibidem, p.55).

3

Expressão usada por João Cezar de Castro Rocha (2004).

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Não sendo genuinamente brasileira, a obra de Machado não passaria então, segundo o crítico, de uma imitação mal feita dos autores ingleses. E, no entanto, não havia ele antes afirmado que o espírito nacional residia numa maneira própria brasileira de sentir e pensar e não na mera escolha de temas locais? Ostensivamente hostil e deselegante, a crítica de Sílvio Romero foi, no entanto – acredito que podemos assim dizer –, coerente no seu conjunto. Afinal, parece nos dizer ele, o problema não residia exatamente na literatura de Machado, mas no Brasil, nela representado. O Brasil mestiço e imitador. A tendência à imitação, entendida pelo crítico como um problema de raça (o brasileiro seria imitador porque mestiço), mostrava-se incontornável na escrita de Machado, explicando-se no caso pela ascendência mulata, pela formação congênita e incompleta do escritor. Machado de Assis, desse ponto de vista, é um legítimo representante do “espírito brasileiro”, afirmação, no entanto, que colocava o escritor num desconfortável lugar, uma vez que esse “espírito” atravessava um “momento mórbido, indeciso, anuviado, e por modo incompleto, indireto, como que a medo”. Machado “é um produto normal, genuíno de seu tempo, de seu meio” (Romero, 1936, p.71, 154) – de um tempo e de um meio nada notáveis, segundo o crítico, que não via com bons olhos o país. E de fato, o diagnóstico de Sílvio Romero é devastador. Depois de afirmar que “a nação brasileira é um produto recentíssimo da história”, com “pouco mais de setenta anos de vida autônoma”, e que por isso mesmo não possui “um corpo de tradição e feitos históricos que constituam uma espécie de modelo, de paradigma para ações futuras”, nem muito menos “uma vasta cultura disseminada pelas altas classes sociais” (ibidem, p.71), Sílvio Romero escreve ainda o seguinte: Deu-se, entretanto, uma espécie de disparate, de contradição intrínseca, que já tive ocasião de notar, nomeadamente na História da literatura brasileira: uma pequena elite in-


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telectual separou-se notavelmente do grosso da população, e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela, sendo em especial dotada da faculdade de aprender e imitar, atirou-se a copiar na política e nas letras quanta coisa foi encontrando no velho mundo e chegamos hoje ao ponto de termos uma literatura e uma política exóticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relações com o ambiente e a temperatura exterior. E este mal de nossa habilidade ilusória e falha, de mestiços e meridionais, apaixonados, fantasistas, capazes de imitar, porém organicamente impróprios para criar, para inventar, para produzir coisa nossa e que sai do fundo imediato ou longínquo de nossa vida e de nossa história. (ibidem, p.71-2)

Como parte da “pequena elite intelectual brasileira”, estranha ao país, o autor de Quincas Borba “nunca fez escola; nunca foi popular, mesmo no bom sentido da palavra e do fato” (ibidem, p.153). Além disso, mau imitador, Machado era a expressão autêntica de uma cultura inautêntica, imitação imprópria de tudo que chegava de fora, do velho mundo, quase sempre antes ou depois, nunca no tempo certo. Sua obra é mais e menos nacional do que deveria, em incontornável desacerto com a hora e o lugar de onde supostamente deveria se configurar, em descompasso, portanto, com as tendências contemporâneas universais e com a tradição literária brasileira.

Algumas ponderações finais Por fim, tentando relativizar as palavras com as quais julguei, talvez nem sempre acertadamente,4 as avaliações de Sílvio Romero, devo mencionar outros dois críticos representativos da hegemonia cientificista no país, José Veríssimo e Araripe Júnior. Apontada por Sílvio Romero como um grave defeito, a ruptura do escritor com o meio e a raça brasileira foi, ao contrário, valorizada por José Veríssimo (1977, p.104) como sinal de originalidade e superação das limitações de um povo “atrasado” como o nosso. Quanto menos nacional a

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Para uma análise peculiar sobre o risco de anacronismo nas críticas dirigidas ao “livro-tribunal de Sílvio Romero”, ler o ensaio de João Cezar de Castro Rocha (2004, p.271-3 – grifos do autor), cujo trecho destaco: “Ao reler Romero através dos seus equívocos, em lugar de interromper a leitura na simples identificação dos tropeços críticos, descobrimos que ele foi o crítico oitocentista que mais próximo esteve de compreender os traços particulares da prosa machadiana: a fragmentação narrativa; a desconstrução de sistemas filosóficos; a irônica compreensão da formação social brasileira; a tartamudez, ou seja, a escrita de um narrador ébrio, que atravessa o texto ziguezagueando, deixando os leitores do usual romance oitocentista literalmente tontos – nesse tipo de ficção, eram marinheiros de primeira viagem. [...] Na época, o radicalismo da ruptura não foi percebido, pois a canonização de Machado, asssociada à celebração obrigatória por parte dos admiradores e amigos, tornou familiar o estranhamento que o novo romance deveria provocar. É como se paradoxalmente Romero estivesse mais bem equipado para reconhecer a originalidade do texto, por localizar-se no extremo oposto das opções estéticas e filosóficas machadianas. Desse modo, embora sistematicamente equivocado, et pour cause, Romero foi um dos mais agudos leitores do autor de Dom Casmurro”.

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obra de Machado, tanto melhor, já que mais próxima dos padrões literários europeus. Segundo Veríssimo, Machado de Assis foi um grande escritor porque estava acima, e portanto deslocado, do meio nacional, foi universal porque não foi nacional. Já para Araripe, a obra de Machado foi significativa justamente pelo motivo oposto: porque – dentro de critérios nacionalísticos – nela a forma européia não foi meramente imitada, mas “tropicalizada”, “obnubilada” pelo meio tropical, ou seja, porque foi, na sua essência, nacional. Ser ou não ser nacional era uma referência, como se vê, para os diversos julgamentos, mas não constituía, de fato, a questão, uma vez que poderia significar ora um defeito ora uma virtude, ora uma condição indispensável ora um obstáculo intransponível para atingir o universalismo em questões de literatura. O que gostaria de ressaltar, ao concluir, é o ponto comum entre todos esses escritores, que foi a utilização, em alguma medida, de critérios naturalistas e evolucionistas nos estudos comparativos entre autores da mesma nacionalidade ou de nacionalidades diferentes. Com o cientificismo naturalista, os críticos acreditavam ser possível obter rigor e imparcialidade nas suas análises e, ao mesmo tempo, superar os esquemas impressionistas da crítica literária romântica. Sabe-se, hoje, no entanto, que os métodos naturalistas adotados, comprometidos com uma ideologia que nos reservava um papel menor na cena mundial, impossibilitavam o rigor e a neutralidade desejada. A conseqüência imediata é que, longe de ser científica, a crítica cientificista foi marcada em muitos momentos pelo aleatório, por um subjetivismo às vezes autoritário, exercida que foi ao sabor das veleidades pessoais. Os fatores históricos, políticos e culturais que estão em jogo na legitimação da crítica literária brasileira no final do século XIX já foram suficientemente analisados por muitos escritores. Importante aqui é relembrar e reafirmar o fato de que o crítico brasileiro daquele período, para ser respeitado, devia adotar as teorias consagradas produzi-


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das nos grandes centros culturais europeus, dominar seus conceitos e tentar adaptá-los a uma realidade distante, estranha a esses mesmos pressupostos teóricos. O que não significa desqualificar o exercício crítico dos escritores aqui referidos, como inadequação, apropriação indevida de idéias alheias porque importadas. Afirmamos apenas, sem outros desdobramentos dados os limites desse artigo, que a estranheza é constitutiva, inseparável do pensamento crítico não só do período aqui estudado. O fato é que não costumamos nos lembrar dos nossos erros de perspectiva, esquecidos que também nós, mergulhados na nossa nebulosa contemporaneidade, reinventamos nossas tradições, criamos hipóteses de futuro, como um dia fizeram aqueles que hoje julgamos. As teorias do final do século XIX, como se sabe, eram reconhecidas como verdadeiras e legítimas porque traziam a marca do estrangeiro, superior a nós em todos os sentidos: na raça e na cultura. Daí porque o determinismo evolucionista conduzia-nos, inevitavelmente, a um impasse. Como escapar dos defeitos da fatalidade de sermos um povo mestiço, resultado de povos condenados pela própria natureza a produzir uma cultura inferior, caricatura dos povos mais adiantados, nossos modelos inimitáveis, inalcançáveis? Os que pensaram sobre a cultura brasileira com o auxílio do instrumental cientificista esforçaram-se, é verdade, para superar o impasse, para encontrar soluções para o nosso atraso. Mas tropeçavam sempre nas armadilhas do próprio corpo teórico utilizado. E o resultado de todos os esforços era inevitavelmente o mesmo impasse. Mas ao que tudo indica, a aquiescência de nossos intelectuais em relação ao pensamento hegemônico europeu não significou aprovação passiva e acomodada, foi ao contrário, pode-se dizer, uma incorporação oportuna das idéias alheias, estrangeiras, das idéias de fora. Na verdade aquele pensamento serviu como instrumento legítimo e adequado para expressar as aspirações de um conjunto de críticos e escritores comprometidos na construção de um

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projeto político e cultural para o país. As idéias, portanto, não estavam fora de lugar, mas no seu devido lugar e exprimindo legitimamente os interesses de uma parcela que, apesar de muito pequena, era bastante significativa, pois representava entre nós a vanguarda intelectual com poder de produzir e fazer reproduzir idéias, de forjar pensamentos sobre o país e divulgá-los o mais amplamente possível, não sem o risco de transformá-los, muitas vezes, é verdade, em fórmulas cristalizadas. As referências teóricas com as quais formularam sua crítica, com os inevitáveis acertos e desacertos de toda crítica, apresentavam muitas limitações, as limitações do tempo em que foram construídas. Por isso mesmo, Sílvio Romero e seus contemporâneos não poderiam, dentro dos paradigmas consolidados no tempo e lugar devidos, conceber a realidade mais apropriadamente do que o fizeram.

Referências ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Machado de Assis. In: . Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 19581970. v.3. ASSIS, Machado de. A nova geração. In: Rio de Janeiro: Aguilar, 1962a. v.III.

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ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial, 1880.

“A vida e os prêmios que ela comporta”: darwinismo social e imaginação literária no Brasil

. Minhas contradições. Bahia: Livraria Catilina, 1914. . Machado de Assis: estudo comparativo da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio: 1936.

Luciana Murari*

. História da literatura brasileira. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. 5v. SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: . Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. . Apesar de dependente, universal. In: Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: dor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

RESUMO: No período entre as duas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, o darwinismo social foi uma das doutrinas científicas mais difundidas no Brasil. Mais do que um corpo articulado e coerente de idéias, constituiu-se sobretudo em uma visão de mundo, baseada em um conjunto de assertivas bastante amplas e imprecisas. Essas davam margem a um uso generalista da teoria, capaz de ser aplicada às mais diferentes situações, e que implicava uma determinada concepção do sentido da história. A retórica darwinista foi incorporada por diversos escritores brasileiros. Alguns deles, como Euclides da Cunha, Affonso Arinos, Rodolpho Theophilo e Mário Guedes, aplicaram as idéias gerais da doutrina na interpretação dos conflitos sociais e da relação do homem brasileiro com a natureza do país. Outros, como Machado de Assis e Lima Barreto, viram o darwinismo por um olhar crítico e satírico, apontando sua trivialidade e seu caráter egoísta, amoral e agressivo.

. Vale quanto pesa. . Ao vence-

. Estudos de literatura VERÍSSIMO, José. Machado de Assis. In: brasileira. 6ª série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.

PALAVRAS-CHAVE:

Palavras-chave: Darwinismo social, literatura brasileira, intelectualidade, racismo científico.

In the last decades of the 19th century and in the first one of the 20th century, Social Darwinism was one of the most popular scientific theories in Brazil. It did not consist of an integrated and coherent body of ideas, but it was best described as a commonplace view based on very broad and imprecise assertions. Its generic principles gave origin to a generalised use of the theory, being applied to the most diverse situations. The Darwinist rhetoric, which implied a conception of history, was adopted by many Brazilian writers. Some of them, such as Euclides da Cunha, Affonso Arinos and Rodolpho Theophilo, incorporated its most general ideas so as to explain social conflicts and the relationship between man and nature in Brazil. On the other hand, Machado de Assis and Lima Barreto saw ABSTRACT:

* Universidade de Caxias do Sul (UCS).


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Darwinism through critical and satirical lenses, making its triviality clear as well as the egoistic, amoral and aggressive character of its ideological meaning. KEYWORDS:

Social Darwinism, Brazilian litterature, intellectuals, scientific racism.

“Patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes” A trajetória do personagem central do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado por Lima Barreto em 1911, pode ser definida como uma expressão do movimento da elite culta brasileira em sua veia nacionalista, a partir do romantismo. De início, a exaltação patriótica de Policarpo Quaresma parece anacrônica, baseada no elogio à natureza e ao indígena, que responde pelos aspectos mais delirantes e obsoletos de seu entusiasmo nacionalista. Depois da recepção escarninha e humilhante de seu requerimento pela adoção do tupi como língua nacional, Quaresma assume uma nova causa, doravante resolvido a demonstrar a excepcional feracidade das terras brasileiras. Sua conversão em empreendedor rural o alinha com os típicos intelectuais reformistas do início do século XX brasileiro, em seu entusiasmo pela tecnologia, em seu reformismo voltado para a superação do atraso social, em sua crença na modernização produtiva pela via científica1 – desde que, segundo Quaresma, as inovações não representassem nenhuma injúria à honra nacional, como seria o caso de usar adubos no “país mais fértil do mundo.” (Barreto, 1993, p.104) Em seu cotidiano de homem do campo, depois do penoso trabalho de capina, Quaresma se comprazia em jogar migalhas de pão às aves pela janela que dava para o galinheiro e observar o resultado: Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves. Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos prêmios que ela comporta. (ibidem, p.79)

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O movimento ruralista, com o qual o projeto de Quaresma parece afinado, desenvolveu-se nas primeiras décadas do século XX como uma ideologia política defendida por agentes sociais ligados à agricultura, reunidos a partir da tese da “vocação agrícola brasileira”. Apesar de abarcar grupos defensores de interesses diversos, sua plataforma invariavelmente defendia a diversificação da produção agrícola, a pesquisa científica e a modernização tecnológica (Mendonça, 1997).

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A prosaica observação convertia-se em “espetáculo”, e assumia, aos olhos de um homem ilustrado como Quaresma, um significado subjacente, proporcionando a ele inferir um sentido para a vida, a partir da lógica darwinista da luta pela sobrevivência e da vitória do mais apto. O caráter corriqueiro da cena, que contrastado com as elevadas ilações que ela suscitava revela a intenção parodística do autor, diz muito sobre a generalidade e o amplo alcance que o darwinismo adquiriu entre a elite culta brasileira, nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX. Neste artigo, pretendemos identificar a presença do darwinismo social, em algumas de suas principais derivações, na produção literária brasileira desse período, compreendendo a comunicação entre ciência e literatura, seus significados peculiares no contexto brasileiro da época e algumas de suas implicações ideológicas mais imediatas. Tomaremos como exemplos obras de escritores brasileiros de diferentes origens, inserções sociais e posições políticas, mas que igualmente encontraram na adoção da hermenêutica darwinista uma forma de compreender a realidade, interpretar os conflitos sociais e atribuir sentido à dinâmica histórica. Certamente, Lima Barreto é bastante arguto ao referir-se à doutrina como um olhar em direção ao mundo, um olhar distanciado, complacente e superior, orientado de cima para baixo. A adoção de uma perspectiva científica capaz de ressignificar o real, conceber uma idéia da dinâmica entre os seres e daí depreender um dado sentido à história, é característica da formação intelectual generalizante e eclética da intelectualidade brasileira no período pós-1870, a partir do qual são introduzidas no Brasil as modernas doutrinas filosóficas da Europa novecentista. Essas teorias podem ser definidas, genericamente, como naturalistas, à medida que se baseavam no princípio da unicidade dos fenômenos naturais e humanos. Os naturalismos eram instrumentos intelectuais excepcionalmente poderosos e abrangentes, que permitiam depreender leis genéricas capazes de abarcar a totalidade dos fenômenos,


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dispensando a tradição, a transcendência e as considerações morais. A natureza é tomada como o único princípio organizador da realidade, o que conduzia essas doutrinas a adotar uma ética relativista submetida às leis científicas, e uma apreciação totalmente empirista do mundo fenomênico. Convertidos em visão de mundo, os preceitos científicos naturalistas adquiriram notável generalidade e autoridade suficiente para abarcar todo o universo factual, doravante compreendido segundo leis que configuravam uma dinâmica auto-regulada, tendendo espontaneamente ao equilíbrio. Como os sistemas sociais comportavam-se segundo leis naturais, os principais agentes da mudança eram as forças inconscientes e inelutáveis da natureza, sendo negado à individualidade qualquer papel na história, em sua marcha em direção ao progresso. O mais notável aspecto das doutrinas naturalistas era sua capacidade de sintetizar todo o real, o que conduziu o cientificismo a criar grandes sistemas de síntese e exegese (Barros, 1986; Candido, 1988b; Wehling, 1994). As teorias científicas tornaram-se, desde então, parte do senso comum entre as camadas educadas da população, dotadas de acesso à imprensa e aos livros, que passavam a dispor de um leque de informações diversas que englobavam diferentes determinismos, relacionados sobretudo à dinâmica social, a variáveis étnicas e relativas ao meio físico-social.2 De qualquer maneira, cientificismo, positivismo, darwinismo, spencerismo, evolucionismo, monismo – o “cinematógrafo de ismos” a que se referia Sílvio Romero – forneciam ao cidadão medianamente culto uma série de ferramentas discursivas aplicáveis às mais diversas situações, como exemplifica Lima Barreto a partir de um ato trivial que poderia parecer de todo carente de significado. Diferenças teóricas e político-ideológicas importantes foram muitas vezes obscurecidas pelo uso equívoco e genérico dos vários conceitos e doutrinas científicas em circulação, o que torna temerosa qualquer tentativa de buscar filiações definitivas entre autores e escolas. O me-

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Mesmo uma área aparentemente muito específica como a criminologia, surpreendente consórcio entre o direito e a psiquiatria estabelecido nas últimas décadas do século XIX consagra-se ao interesse da opinião pública ao buscar as origens das transgressões da ordem e dos comportamentos anti-sociais. É o que testemunham artigos informativos sobre o tema, publicados na imprensa, como o de Orlando (1975).

Ainda em vida, Spencer (1880) veio a público declarar a dissociação de sua filosofia de qualquer doutrina que defendesse a guerra entre povos como motor do progresso social. Segundo ele, embora a luta entre grupos selvagens tenha contribuído para a eliminação de etnias inaptas em fases iniciais da evolução humana, a sociedade industrial seria incompatível com o belicismo, que caracterizaria o retorno à barbárie e o início de um ciclo involutivo. Isso conduzia o teórico a condenar, portanto, a militarização relacionada à expansão imperialista da Inglaterra, a mais evoluída sociedade industrial da época (cf. Becquemont & Mucchieli, 1998, c.VII e VIII, p.I).

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lhor exemplo disso é que o liberalismo, por natureza contraditório com alguns dos princípios fundamentais das correntes naturalistas, foi diversas vezes mesclado a elas na obra de alguns autores fundamentais para a vida intelectual brasileira do período entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX (Barros, 1986). Dentre as tendências intelectuais mais influentes no Brasil, sobretudo a partir da última década do século XIX, está o darwinismo social, amplo conjunto de doutrinas criadas a partir da popularização da teoria da seleção natural, e sua extensão à interpretação das culturas e sociedades, compreendidas, a partir daí, por meio do exame de suas condições naturais. Antes mesmo de Darwin, Herbert Spencer havia já forjado um primeiro darwinismo social que envolvia a noção da sobrevivência do mais apto a partir da competição e da seleção, submetendo a hierarquia social à ordem da natureza. A diferença é que a ênfase de Spencer estava na idéia da concorrência entre indivíduos como motor da civilização, e não entre grupos sociais, sobretudo entre raças, como o segundo darwinismo social passou a defender (Becquemont, 1992). Mais comumente, em razão da assimilação da teoria da evolução natural de Darwin às teorias evolucionistas já em voga, as versões spencerista e darwinista do evolucionismo tenderam a se confundir, e o primeiro a ser tomado pelo segundo, sobretudo a partir da década de 1880 – para desespero do estritamente individualista e antimilitarista Herbert Spencer. (Becquemont & Mucchielli, 1998).3 Utilizaremos aqui o termo “darwinismo social” em seu sentido amplo, compreendendo ambas as tendências, já que esse procedimento é de uso mais corrente. A partir do momento em que a ênfase das teorias evolucionistas desviou-se da luta entre indivíduos para a luta entre grupos sociais, a ciência racial tomou forte impulso, já que a diversidade das espécies era traduzida como a diversidade entre etnias, grupos sociais definidos a partir de características orgânicas, culturais e sociais. Decerto, uma das derivações mais prolíficas do social-darwinismo foi o racismo


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científico, caracterizado por idéias como: a desigualdade essencial entre as raças humanas; a supremacia da raça branca, tida como a única capaz de assimilar a moderna civilização, a ciência e a tecnologia; a condenação da mestiçagem, definida como fator de degeneração; a hierarquização das sociedades e dos estratos sociais de acordo com sua composição étnica; a negação do indivíduo como sujeito da história, dada sua incapacidade de superar as determinações hereditárias impostas por sua formação racial; a centralidade do fator étnico na condução da vida social; a assimilação das identidades nacionais européias a lentos processos históricos de formação de sub-etnias da raça branca, que respondiam pelas peculiaridades físicas e culturais das diferentes nações. As teorias raciais tinham uma clara implicação política, uma vez que assumiram um papel de legitimação do processo de expansão européia pelos territórios africanos e asiáticos, durante a era do imperialismo. De fato, no pensamento europeu do período entre as duas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, as teorias raciais de extração social-darwinista, baseadas na idéia da concorrência entre etnias como motor da evolução da humanidade, adquiriram imensa difusão e popularidade. “Peculiar amálgama de ciência, política e cultura” como definiu Said (1996, p.239) as teorias raciais devotaram-se de modo quase unânime a elevar os países europeus, ou melhor, os “povos arianos”, à condição de conquista das demais regiões do globo, por sua pretensa superioridade de fundo simultaneamente biológico, moral e cultural. A teoria racial tomava as diferenças entre os grupos humanos como dados extremos e insuperáveis, à medida que, deslocando a análise social para as origens, definia o homem a partir de características pretensamente essenciais (ibidem, p.238) A teoria das raças é tanto uma teoria da alteridade, à medida que constrói uma ideologia da inegável fragilidade dos povos submetidos ao poder europeu, virtualmente incapazes de progredir por si sós, quanto uma teoria da identidade, à medida que participa também da criação do

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Sobre cientistas, instituições e a recepção do darwinismo no Brasil, ver Schwarcz (1993).

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Definir o darwinismo social como uma interpretação desautorizada, errônea e simplista da teoria de Darwin compromete a percepção da continuidade entre a obra do cientista e sua versão sociológica. As atuais interpretações ressaltam, ao contrário, o papel fundamental de Darwin na criação e difusão da visão de mundo darwinista social (Young, 1985a; Williams, 1997).

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discurso nacionalista, atribuindo a cada nação européia um processo de formação histórica que, um tanto surpreendentemente, toma a existência de uma comunidade cultural e lingüística como pressuposto para a criação de uma homogeneidade biológica capaz de definir identidades raciais complexas e estáveis. (Todorov, 1993). Quando Policarpo Quaresma faz referência à “odiosa catadura que Darwin achou nos mestiços”, e que ele não encontrou (Barreto, 1993, p.109), está de fato citando um verdadeiro lugar-comum da época. O fenômeno do cientificismo e, dentro dele, do social-darwinismo e do racismo científico é particularmente curioso porque adquiriu a forma de um discurso capaz de referenciar os fatos da natureza e da sociedade segundo determinados paradigmas e conceitos bastante amplos e mesmo genéricos, muitas vezes tornados acessíveis a uma camada social letrada por meio de obras de vulgarização que difundiam os preceitos da ciência a um público extenso. Analisando o pensamento evolucionista, torna-se possível compreender como, a partir da observação de um fato único e aparentemente banal, foi possível a Policarpo Quaresma depreender o princípio geral “da vida e dos prêmios que ela comporta”. Esse conhecimento científico difundiu-se pelas instituições de ensino e de pesquisa do país,4 mas ao mesmo tempo teve sua repercussão imensamente favorecida pela imprensa, que publicava resenhas de livros científicos, muitos deles não lançados no Brasil, ou artigos de divulgação e síntese escritos por intelectuais brasileiros entusiastas da revolução cientificista, além de tornar-se espaço para a polêmica teórica, doutrinária ou voltada para a aplicação dos princípios científicos à realidade do país. A imprensa era também o espaço de combate dos “novos”, ou seja, os intelectuais cientificistas, contra os defensores do pensamento tradicional, eclético e metafísico. Como ciência e ideologia, darwinismo e darwinismo social são inseparáveis.5 O darwinismo social pode ser compreendido como um conjunto de idéias direcionadas à interpretação das teorias evolucionistas no contexto social.


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Há diversas versões da doutrina, baseadas na idéia de que a natureza é regulada por leis biológicas, estando as sociedades humanas inseridas na dinâmica evolutiva observada entre as espécies animais. O darwinismo social toma como ponto de partida a existência de um desequilíbrio entre as necessidades do homem e sua capacidade de atendê-las segundo sua capacidade produtiva e os recursos disponíveis no meio, o que denota a inegável influência do pensamento malthusiano. Parte-se da idéia de que a espécie humana comporta hierarquias naturais segundo distintas habilidades físicas, psíquicas e comportamentais, que por sua vez definem diferentes capacidades de aprimoramento, geralmente associadas à variável étnica. Nesse contexto, as raças humanas, equivalentes às espécies, são caracterizadas não apenas a partir de seus traços físicos, mas também por traços psicológicos peculiares e diferentes formas de vida em sociedade. Movidos pelo instinto que os reconduzia à sua condição natural, os homens apenas agiriam em conformidade com as determinações de seu meio físico-social e de sua constituição biológica (Becquemont, 1992). O que o darwinismo social acrescentou à teoria de Darwin foi a extensão do determinismo biológico para a vida social e as características psíquicas dos grupos humanos, pois tanto a história quanto a natureza humana eram descritas a partir dos processos de adaptação ao meio, seleção natural e hereditariedade. Segundo as teorias darwinistas sociais, a desigualdade natural entre os grupos humanos conferiria a eles diferentes potenciais de sobrevivência, o que, num ambiente de escassez, tornaria inevitável a competição pelos recursos disponíveis. Esse processo, consagrado pela expressão struggle for life, conduziria inevitavelmente ao progresso, por meio da sobrevivência dos mais aptos e mais adaptados ao meio e da eliminação dos inaptos. Enquanto isso, os traços biológicos que configurariam vantagens seriam transmitidos pelos sobreviventes por herança genética, mantendo as desigualdades. Mediante esses processos de seleção e de herança, seriam criadas novas espécies e novos grupos humanos, ao passo que ou-

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tros desapareceriam, o que conduziria a uma evolução constante do mundo natural e social, onde apenas os indivíduos e grupos superiores seriam capazes de sobreviver às pressões do meio físico e da concorrência vital. A luta pela vida impunha, portanto, a adaptação dos mais fortes às condições ambientais, ao mesmo tempo que eliminava os mais fracos, derrotados na disputa pelos recursos disponíveis (Young, 1985a). Como demonstrou Hawkins (1997), o darwinismo mostrou-se extremamente poderoso como instrumento retórico, devendo seu longo alcance e generalização ao caráter persuasivo e flexível da teoria. Segundo ele, isso se deve à existência de vários elementos de indeterminação na própria teoria da evolução orgânica, que deram margem a incertezas que só contribuíram para sua vulgarização, ao deixarem espaços em branco a serem preenchidos segundo as preferências do intérprete. Um dos mais notáveis desses pontos de imprecisão na teoria gira em torno da idéia de luta pela existência: não há um mecanismo único para descrever a condução do conflito, que pode ser tomado como estado permanente de guerra, disputa mais ou menos violenta ou batalha meramente ideológica, segundo um presumível abrandamento da violência social ao longo do processo de modernização e racionalização social. Juntamente com isso, seus mecanismos de argumentação e sua incorporação da idéia de conflito permitiam diferentes usos retóricos e interpretações da teoria. Um exemplo disso é que se partia do princípio de que a ordem social era um mero reflexo das leis naturais, criouse um amplo universo de analogias entre sociedade e natureza: raças humanas equivaleriam a espécies naturais; mulheres, crianças, loucos, criminosos e homens do campo correspondiam a selvagens, inferiores na ordem evolutiva; a guerra seria a expressão da luta entre concorrentes pelos recursos escassos do meio físico-social; as sociedades seriam análogas aos organismos biológicos, assim como os indivíduos são assimilados a células, e estratos sociais a diferentes órgãos do corpo (Hawkins, 1997).


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A linguagem darwinista é essencialmente metafórica, em sua busca de imagens capazes de conectar a evolução biológica e a dinâmica das sociedades. A incerteza em que a condição humana é lançada por essa visão de mundo contribuiu para que as doutrinas da luta pela vida fossem adotadas pela imaginação literária, o que se deve, certamente, às próprias oscilações da teoria e ao caráter fluido e instável de seus pressupostos. Embora possa parecer fundamentada por leis gerais que configuram regularidades, a teoria darwinista mostrou-se particularmente estimulante para a imaginação literária por deixar inúmeros graus de liberdade na apropriação do conhecimento, e por fundamentar-se em idéias extremamente amplas, que partiam de pressupostos que não podiam ser imediatamente verificáveis (Morton, 1984). O darwinismo social não chegou a constituir, em sim mesmo, uma teoria política coesa, embora tenha embasado várias delas. O elemento mais importante a ressaltar, nesse caso, é que a idéia de competição pela sobrevivência adquiria, dentro da lógica social-darwinista, um caráter amoral, que permitia que o conflito social e as situações de desequilíbrio fossem compreendidos não como origem de instabilidade social ou de decadência, mas como elemento impulsionador do progresso, o que adicionava à doutrina uma lógica finalista que a tornava pretensamente imune a qualquer julgamento. De fato, o princípio do aprimoramento contínuo da civilização acrescenta um elemento de otimismo num pensamento que distancia as leis da natureza de qualquer princípio divino, e que, portanto, defronta-se freqüentemente com uma natureza indiferente aos propósitos humanos, e com uma barbárie intrínseca à competição pela sobrevivência, ilimitada e sem pudores éticos (Young, 1985b). A inexorabilidade dá o tom do discurso darwinista, que faz a ordem instituída parecer a única possível. Na moderna sociedade industrial, os elementos desviantes da ordem, os fracos e inadaptados, eram interpretados como a sobrevivência de indivíduos e grupos característicos de períodos

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Essa idéia foi particularmente difundida pela versão spencerista do evolucionismo, de caráter liberal e antiestatista. Embora realmente não se preocupasse em minorar o sofrimento das classes baixas, o segundo darwinismo social deu origem a doutrinas que não afastavam as possibilidades de intervenção sobre a sociedade, como é o caso, por exemplo, da eugenia, derivação da teoria das raças que defendia a regulação dos matrimônios, no sentido do controle da qualidade física e mental das populações (Drouard, 1995).

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evolutivos já superados pela humanidade, e inevitavelmente condenados ao deperecimento. Isso, é claro, não é um resultado do darwinismo, mas de sua adaptação a valores sociais e políticos já estabelecidos anteriormente, e que ganhavam assim legitimidade científica (Hawkins, 1997). O darwinismo social possui, ao mesmo tempo, um forte conteúdo normativo, pois define simultaneamente como se organiza a ordem natural e social, e como deve ser sua dinâmica ao longo da história, concebida a partir de uma noção linear de tempo e de uma idéia de ordem e hierarquia (Young, 1985a). Qualquer tentativa de minorar o sofrimento humano era tida como entrave ao desenvolvimento social, o que difundiu a idéia de self-help, ou seja, de que a cada indivíduo ou grupo social é dada uma determinada capacidade de sucesso na luta pela vida, de acordo com suas próprias condições de adaptação ao meio.6 Lima Barreto utiliza o termo, clichê dos mais assíduos nos discursos de coloração darwinista social, para fazer uma crítica mordaz à política de estímulo à imigração adotada pelo governo brasileiro, sobretudo a partir da última década do século XIX. Em conversa com um pobre sitiante vizinho de Policarpo Quaresma, a curiosa Olga ouviu dele: “Nós não tem ferramenta... isto é bom para italiano ou ‘alamão’, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós”. A idéia que isso desperta na interlocutora foge aos esquemas preestabelecidos e parece bastante perturbadora, à medida que extrapola o campo da observação das leis da natureza e passa a invocar escolhas políticas. Ela tenta inutilmente ignorar a queixa do pobre Felizardo, mas acaba concluindo com um paradoxo: “Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o camarada indicava, mas não pôde. Pela primeira vez notava que o self-help do Governo era só para os nacionais [...]” (Barreto, 1993, p.103). Explorando o conceito a partir de seu contrário, ou seja, de um exemplo de intervencionismo estatal que é também um exemplo de discriminação, Lima Barreto demonstra o processo de marginalização do trabalhador pobre, geralmente negro ou mestiço, na sociedade da


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Primeira República, expondo ao mesmo tempo o vazio de um discurso que ajudava a manter o status quo em nome de preceitos incertos e facilmente manipuláveis, conforme o gosto do intérprete.

“O caráter conservador e benéfico da guerra” Machado de Assis, observador arguto do movimento intelectual brasileiro, registrou em crônica de 1879 (Assis, 1955, p.242) a crescente influência das correntes científicas naturalistas na literatura brasileira, ainda que tivesse ressaltado que o movimento não possuía ainda naquele momento características bem estabelecidas, definindo-se apenas por sua decisiva ruptura com a tradição romântica: “A nova geração freqüenta os escritores da ciência; não há aí poeta digno desse nome que não converse um pouco, ao menos, com os naturalistas e filósofos modernos”. Ao mesmo tempo, o escritor adverte os novos contra o risco de pedantismo, pois, num contexto de renovação dos paradigmas intelectuais, a mera enunciação de teorias e autores conferiria ao literato uma clara superioridade em relação a seu público, possivelmente não tão atualizado nos modismos científicos. Daí, a clássica sentença: “a verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição; e que o modo eficaz de mostrar que se possui um processo científico, não é proclamá-lo a todos os instantes, mas aplicá-lo oportunamente” (Assis, 1955, p.243). A admoestação de Machado de Assis não poderia ser mais oportuna, pois realmente a geração científica não pode escapar do rótulo de “novos ricos da cultura”, que lhes pespegou Candido (1988a, p.30), em referência a seu gosto pela exibição retórica de conceitos, teorias e autores, pelo personalismo de suas disputas, pela indiferença ante o público, pela carência de projetos consistentes de intervenção social. Atento à marcha crescente do cientificismo entre a elite brasileira, Machado de Assis mostrou-se um de seus mais hábeis e mais ferinos comentadores, adotando para

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Sobre as fontes filosóficas do humanitismo, ver Koch (2004, p.281-370).

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si mesmo o princípio da assimilação e da aplicação oportuna dos modelos teóricos. O resultado disso foi uma visão cáustica do discurso cientificista, mais conhecida por meio da doutrina do humanitismo, síntese burlesca das correntes científicas então em voga no país, sobretudo o evolucionismo.7 O alvo da sátira machadiana era, de fato, a justificação do egoísmo social e do egocentrismo promovida pelas doutrinas cientificistas, (Gledson, 1991, p.142) somada a sua pretensão desmedida e a sua percepção amoral da realidade, em flagrante desacordo com valores culturais, princípios éticos e maiores considerações de ordem subjetiva e individual. Veja-se, por exemplo, a reação de Quincas Borba, criador do humanitismo, diante da morte de Eulália, noiva de Brás Cubas, vitimada por uma epidemia de febre amarela: a seu ver, do ponto de vista da espécie as epidemias eram convenientes, pois a sobrevivência de alguns era o corolário da morte dos demais. O filósofo indagava ao amigo, em seguida, se a morte da noiva não despertava nele um “secreto encanto” pelo fato de haver ele sobrevivido à peste. A observação soa a Brás Cubas demasiado absurda para nem sequer ser comentada. Presunçosa e desprovida de valores, essa idéia descreve com perfeição a estratégia darwinista de buscar o fim último do progresso nos fatos da natureza, procedimento que está a um passo da legitimação da ação violenta do próprio homem, que assumiria fins evolutivos a partir do momento em que esse considerasse a si próprio o mais apto, e portanto agente do progresso. Ainda em Memórias póstumas de Brás Cubas, a luta pela vida assumiria maior dramaticidade na descrição da disputa de dois cães por um osso, “fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor”. Aos olhos do filósofo do humanitismo, contudo, a cena tinha uma beleza que despertava verdadeiro êxtase e uma alegria indisfarçável, ainda que isso não caísse bem a um filósofo. Ele observou, em seguida, que espetáculo até mais magnífico podia ser observado em lugares onde homens e cães disputavam entre si alimentos ainda menos atraentes, já que a inteli-


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gência acumulada pelo homem ao longo do tempo somava novos elementos à luta. Além disto, nesse caso a luta em questão envolvia espécies diferentes, e não indivíduos da mesma espécie (Assis, 2002, p.220-1). Em Quincas Borba, o escritor continuaria a desenvolver a teoria, observando “o caráter conservador e benéfico da guerra”. O filósofo imagina a existência de duas tribos famintas e de um campo de batatas que seria suficiente para alimentar apenas uma delas. Em caso de guerra, a tribo vencedora, bem nutrida, poderia atravessar a montanha e chegar à outra encosta, onde as batatas seriam abundantes. Se, contudo, as tribos decidissem dividir pacificamente o alimento, nenhuma chegaria ao outro lado e ambas morreriam de fraqueza. Em suma, a paz conduziria à aniquilação, enquanto a guerra seria a garantia de sobrevivência. O escritor elabora, a partir daí, o célebre enunciado “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”, a mais sintética e eloqüente expressão da dinâmica darwinista na literatura brasileira (Assis, 1999, p.21). Outra passagem de Memórias póstumas de Brás Cubas evoca um tema fundamental do pensamento científico do final do século XIX, tema esse que adquiriria uma de suas expressões mais extremas nas doutrinas do darwinismo social: a indiferença da natureza ante o sofrimento humano. Num acesso de delírio febril, o defunto-autor depara com a Natureza, ou Pandora, e visualiza a história humana na terra como uma sucessão de “flagelos e delícias”. “Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo”. Tudo isso se refletia no rosto daquela que era, simultaneamente, “mãe” e “inimiga”: Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, com-

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pleta, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres. (Assis, 2002, p.26-7) 8

Essas duas tendências refletem, como observou Williams (1997), o fato de que a sobrevivência do mais apto e a luta pela vida não precisaram ser realmente inventados pelo darwinismo: eram uma realidade muito próxima da experiência cotidiana da sociedade industrial inglesa, onde eram parcos os recursos disponíveis para a sobrevivência de uma numerosa população, o que embasava as idéias de “luta sangrenta” e “selva social”. Isso ajuda a explicar a popularidade adquirida pelas doutrinas darwinistas, participantes de um imaginário de horror, ameaça constante e medo.

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No caso norte-americano, a evolução social do país foi analisada, desde meados do século XIX, a partir da conquista de novas terras ainda despovoadas, com a expansão constante da fronteira de exploração econômica do território. Não por acaso, a idéia da luta contra o meio foi um tema importante do pensamento social naquele país, tendo sido desenvolvida por William Graham Sumner, que enfatizou, sobretudo, as relações do homem com o meio em que vive, e que é fonte de suas condições de sobrevivência (Bowler, 1993; Becquemont, 1992).

De fato, como no delírio de Brás Cubas, o darwinismo social conduz ao paroxismo essa imagem da natureza como força vital exuberante e impassível, o que levou Hawkins (1997) a defender a idéia de que essa visão de mundo caracteriza-se por uma relação dupla com a natureza: ela é tanto um modelo, cujo conhecimento deve ser aplicado para a compreensão das instituições sociais e para sua normatização de acordo com as leis naturais, quanto uma ameaça ao homem, devendo por isso ser temida e, se possível, evitada, dado seu poder destrutivo e sua absoluta indiferença em face da luta pela vida. Para compreender essa dimensão ameaçadora da natureza no pensamento darwinista, e as peculiaridades de sua presença na literatura brasileira, devemos ressaltar que as teorias evolucionistas previam a existência de três níveis distintos de luta pela vida. O primeiro deles é a luta de indivíduos da mesma espécie entre si, tal como descrito sobretudo pela obra de Herbert Spencer, fundador do evolucionismo. Em segundo lugar está a luta entre espécies diferentes, tema privilegiado por Darwin em sua teoria da evolução.8 Em terceiro lugar, a luta poderia também envolver uma espécie, ou o conjunto das espécies de um determinado meio físico-natural, contra as condições de vida que esse oferece (Becquemont, 1992). Esse aspecto foi considerado pelas teorias evolucionistas de Spencer e Darwin, mas não teve maiores desenvolvimentos em suas obras.9 Na literatura brasileira, um claro exemplo da presença do darwinismo social, em sua vertente da disputa entre grupos humanos, é a interpretação da Guerra de Canudos por Euclides da Cunha. Em Os sertões, o escritor analisou a formação da etnia sertaneja por meio da teoria da “luta de raças”, desenvolvida pelo sociólogo polonês Ludwig


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Gumplowicz. Na teoria de Gumplowicz (1940), darwinista social por excelência, o progresso humano dá-se por meio de uma dinâmica que envolve, sempre, o conflito entre distintas etnias. Por meio da guerra, o grupo mais forte submete a seus objetivos o grupo mais fraco, formando-se uma nova sociedade que reúne dominantes e dominados. Essa nova sociedade é tida como necessariamente superior às duas anteriormente existentes, já que o trabalho dos mais fracos possibilita à elite do grupo superior acumular riquezas e dedicar-se a seu desenvolvimento intelectual e artístico, o que impulsionaria o progresso social. A luta de raças conduziria sempre, portanto, à evolução da humanidade, ainda que seus meios fossem bárbaros. Ao longo do tempo, do isolamento e da estabilização social, a convivência dos dois grupos produziria interesses, necessidades, hábitos e características culturais em comum, ao mesmo tempo que a mistura racial, inevitável entre dominantes e dominados, promoveria a formação de uma nova etnia, depois de um longo processo de estabilização. Isso não significaria, contudo, o termino da “luta de raças”, pois, uma vez consolidada essa nova etnia, ela tenderia a unir-se em torno do ódio ao estrangeiro, o que perpetuaria o processo, ao impulsioná-la à guerra. A dinâmica histórica é, portanto, conduzida pela animosidade entre as raças e pelo desejo de submissão do outro, controle de maior território e posse de mais recursos naturais (Gumplowicz, 1940). Esse modelo foi aplicado ipsis litteris por Euclides da Cunha para descrever a formação da sociedade sertaneja, o que teve importantes implicações sobre sua interpretação do conflito. Foi também pelas lentes da “luta de raças” que o escritor enxergou o choque entre esses sertanejos e os soldados republicanos. Em primeiro lugar, a teoria de Gumplowicz foi aplicada ao estudo da história do sertão. Segundo o escritor, os colonizadores de origem portuguesa que avançaram pelo território sertanejo entraram em conflito com os indígenas que o ocupavam, vencendoos e submetendo-os. Por meio da inevitável mestiçagem

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das duas raças formou-se uma nova sociedade. Os sertanejos “nasciam de um amplexo feroz de vitoriosos e vencidos”, e passavam a cooperar na atividade econômica pastoril (Cunha, 1985, p.167). Isolados pelas condições do meio geográfico, teriam mantido a cultura característica dos seus primeiros habitantes, e consolidado ao longo de três séculos uma formação orgânica comum, mantendo-se imunes a influências externas. Isso teria dado origem a uma sociedade coerente e coesa, e a um homem etnicamente bem-definido, “um retrógrado, não um degenerado” (ibidem, p.177). Isolado no espaço e no tempo, o sertanejo constituiria “o cerne vigoroso da nossa nacionalidade” e “a rocha viva da nossa raça”, ou seja, um grupo racial quase totalmente estabilizado (ibidem, p.167, 559). Essa interpretação permite ao escritor explicar cientificamente a extraordinária resistência do sertanejo, “Hércules-Quasímodo”, ante as forças do exército republicano, o que se somava à observação da sua perfeita adaptação ao meio. Segundo Euclides da Cunha, originários de regiões mais dinâmicas, onde o influxo de novas influências era constante, os grupos étnicos que formavam o exército republicano não teriam tido condições de consolidar suas características formadoras, mostrando-se mestiços incoerentes e instáveis, o que os teria colocado em desvantagem ante os defensores de Canudos. Para explicar a derrota final do sertanejo, o escritor substitui o critério racial por um critério cultural: apesar da solidez de sua formação orgânica e conseqüentemente do seu caráter, o homem do sertão havia parado no tempo, despreparado a civilização que, tecnologicamente superior, necessariamente o venceria. Reverte-se a noção de “superioridade racial” do sertanejo, em função de sua pretensa “inferioridade cultural”. Essa não é, contudo, a única aplicação da teoria de Gumplowicz à análise da guerra em Os sertões. Na “Nota preliminar”, Euclides da Cunha enuncia com clareza: “A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável ‘força motriz da história’ que Gumplowicz, maior


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do que Hobbes lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”. Ou seja, a própria Guerra de Canudos é vista como uma “luta de raças”. O escritor já havia registrado que “o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve relegados às tradições evanescentes, ou extintas”, afirmando, logo em seguida, que a campanha de Canudos foi, “na significação integral da palavra, um crime” (Cunha, 1985, p.85-6). No entanto, apesar de reconhecer a barbárie da guerra, e condená-la, a idéia de que a retrógrada raça sertaneja estava inevitavelmente condenada à extinção pela imperativa expansão da modernidade acaba por neutralizar sua denúncia do extermínio da população de Canudos, como percebeu Luiz Costa Lima (1997, p.25). Afinal, se seu desaparecimento era inevitável, a guerra apenas havia acelerado os fatos. Essa observação pode ser endossada pelo fato de que o escritor define a guerra como “um primeiro assalto” da civilização aos sertões, afirmando, em outro trecho, que “toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários” (Cunha, 1985, p.499). A posição de Euclides da Cunha não se afasta de Gumplowicz, para quem a luta de raças era “sempre civilizadora”, e acaba por vislumbrar um sentido último, e progressista, para a guerra de Canudos, dentro da melhor lógica darwinista. De outro modo, uma certa simpatia pelo sertanejo “rocha viva da nossa raça” e sua denúncia dos crimes da guerra colaram a Os sertões uma persistente ambigüidade, que tende a obscurecer o significado que o escritor atribui aos eventos históricos: uma “luta de raças” em que os “fracos”, ou seja, os sertanejos culturalmente “atrasados”, estariam inexoravelmente condenados a desaparecer ante o avanço da civilização. Alguns anos depois da publicação de Os sertões, Euclides da Cunha continuou a desenvolver o tema do “esma-

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gamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”, vislumbrando a fragilidade do Brasil no contexto da expansão imperialista européia. Em alguns textos publicados em Contrastes e confrontos, o escritor inquietou-se com a suscetibilidade do país no contexto da dinâmica política mundial na era da expansão imperialista. Em “A Arcádia da Alemanha”, o escritor contrasta o ritmo lento do desenvolvimento capitalista no Brasil com a expansão vertiginosa das forças produtivas na Europa e nos Estados Unidos. Ele toma como ponto de partida um minucioso inventário dos recursos naturais que poderiam, por meio das inovações técnicas desenvolvidas nas sociedades industriais, inserir o Brasil na dinâmica capitalista. Esses recursos restavam, contudo, inexplorados. Enquanto isso, os países europeus viviam processo contrário, expandindo-se inopinadamente, sob o impulso da tecnologia que multiplicava as forças produtivas em ritmo vertiginoso, mas que esbarrava, nas palavras do escritor, na limitação de seu espaço físico e de seus recursos naturais, a “clausura das fronteiras”: “De sorte que a nossa esplêndida mediocridade se lhes torna em perpétuo desafio, repruindolhes a riqueza torturada e a pletora de forças que, na ordem econômica, caracteriza o moderno imperialismo” (Cunha, 1923b, p.33). Essa ameaça, ainda que verdadeira, acaba, no entanto, sendo refutada pelo escritor, uma vez que ele acreditava que a política externa da Alemanha ocupava-se, naquele momento, de interesses mais imediatos, tanto na própria Europa quanto na África. Os temores do escritor mostram-se mais explícitos em “Nativismo provisorio”, artigo em que claramente se condiciona a análise política a uma idéia de conflito entre raças. Pregando a conservação dos “atributos essenciais da nossa raça e dos traços definidores da nossa gens complexa”, o escritor defende, ao mesmo tempo, o incentivo à contribuição do imigrante branco dotado de “energia européia mais ativa e apta” (Cunha, 1923a, p.220). Na sua análise, entretanto, tal questão tem também um “lado sombrio”: “falta-nos integridade étnica que nos aparelhe de


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resistência diante dos caracteres de outros povos”. Segundo Euclides da Cunha, o Brasil encontrava-se em uma condição de debilidade derivada de uma formação racial instável, ainda em curso, e que tenderia a promover a dispersão das diversas energias raciais que se punham em fusão. Esse fato tornar-se-ia particularmente inquietante a partir do momento em que se considerava “o pendor atual e irresistível das raças fortes para o domínio, não pela espada, efêmeras vitórias ou conquistas territoriais – mas pela infiltração poderosa do seu gênio e da sua atividade” (ibidem, p.223). Restaria ao povo brasileiro, portanto, buscar um difícil equilíbrio entre a aceitação da colaboração do estrangeiro, dotado do conhecimento técnico-científico, e uma defesa da originalidade de suas características formadoras, da qual dependeria a manutenção de sua soberania política. Naquele momento, portanto, o autor considera necessário adotar “medidas que contrapesem ou equilibrem, a nossa evidente fragilidade de raça ainda incompleta, com a integridade absorvente das raças já constituídas” (ibidem, p. 224). Segundo ele, se não eram claras quais as políticas defensivas a serem adotadas contra a pressão da expansão européia, cabia rejeitar qualquer proposta que permitisse maior influência estrangeira na vida política nacional. Nesse sentido, o pensamento de Euclides da Cunha parece dialogar com sua própria interpretação da guerra de Canudos. Como vimos, na luta entre os “sertanejos retrógrados”, mas não degenerados, contra os “mestiços instáveis do litoral”, havia prevalecido a superioridade da técnica e da cultura da moderna civilização que, um tanto contraditoriamente, era portada pela guerra. Esses mestiços brasileiros, capazes de esmagar as “raças mais fracas”, ou, no caso, as mais “atrasadas” do território brasileiro, estariam, no entanto, por sua vez, em situação de evidente “inferioridade” ante os povos europeus, étnica, biológica e culturalmente estáveis, munidos ainda de um poderio militar capaz de submeter povos ainda em formação aos

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seus propósitos. A lógica que move o escritor reflete com nitidez a articulação entre o discurso da luta entre grupos humanos pelos recursos naturais necessários à sobrevivência, e um discurso político que justifica a ação imperialista por considerar simplesmente natural a uma nação como a Alemanha, “expandir-se, sistematicamente conquistadora, arriscando-se às maiores lutas” (Cunha, 1923b, p.34). Observa-se, portanto, o caráter genérico e impreciso da retórica darwinista, capaz de, ao mesmo tempo, conferir sentido a uma briga de “patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes”, e à política internacional. Resta saber se uma doutrina que tudo explica, servindo-se da linguagem da superioridade, da força, do conflito e da conquista, é realmente capaz de explicar alguma coisa. No entanto, o papel da “sociologia da luta” na condução dos rumos da história a partir do final do século XIX recomenda não menosprezar seu poder, senão analítico, retórico e ideológico.

“Uma verdadeira saga da terra e da sua vitória sobre o homem” Na literatura brasileira de extração naturalista-realista, adquire destaque o terceiro aspecto da luta pela sobrevivência previsto por Spencer e Darwin, referente à luta de uma espécie (ou o conjunto delas) de um dado ambiente contra as limitações que esse lhe impõe. Esse sentido da luta, pouco desenvolvido teoricamente pelos dois maiores expoentes do evolucionismo, foi amplamente representado no Brasil, mediante uma literatura que tem como tema recorrente a luta do homem contra a natureza do país. De fato, é peculiarmente excêntrica no panorama intelectual brasileiro a visão encomiástica de Porque me ufano do meu país – right or wrong, my country, de Affonso Celso (1900), em que parte significativa dos louvores ao Brasil está fundamentada na exaltação da grandiosidade e riqueza de seu meio físico. Mais representativo da visão de sua época é outro livro bastante popular e também direcionado à formação


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patriótica nas escolas, Atravez do Brasil – livro de leitura para o curso médio das escolas primárias, escrita por Bilac & Bonfim (1921). Ao contrário da obra de Affonso Celso, esse livro, dedicado ao exercício da leitura nos dois últimos anos da escola primária, propõe-se a ser uma “lição de energia”, dedicada a incutir na infância o interesse pelo conhecimento do território e uma noção da força necessária para enfrentar os obstáculos impostos pela natureza brasileira à ocupação e exploração produtiva do território. Na longa travessia dos seus personagens principais, duas crianças que do Brasil urbano e litorâneo marcham pelo interior do Brasil, sucedem-se paisagens secas, caminhos pedregosos, desertos “sem sombra nem água”, entremeados por maravilhas naturais, florestas virgens, rios caudalosos, que antes de despertar admiração incutem nas crianças profundo temor. O percurso aventuresco dessa viagem de iniciação pelo Brasil assume uma função moralizadora, ao preconizar a construção de um rico país do futuro a partir da luta pela superação das resistências naturais, imagem coerente com aquela que foi construída e intensamente explorada pelos intelectuais formados sob a influência do cientificismo. Voltada para a vida rural, a literatura regionalista foi, certamente, o locus privilegiado da construção da idéia da luta do homem brasileiro contra as restrições do meio físico do país. O crítico Afrânio Coutinho (1990, p.197) definiu com perfeição esse fato, ao afirmar que “a literatura regional brasileira é uma verdadeira saga da terra e da sua vitória sobre o homem”. O próprio Policarpo Quaresma, em sua curta experiência no campo, desenvolve o tema, buscando na inovação tecnológica um meio de enfrentar as resistências do meio físico, e de superar uma aparente aversão da terra à presença humana. A intermediação da técnica é, contudo, um elemento praticamente inexistente nessa literatura voltada para as rudes comunidades rurais e a expansão da atividade econômica em direção a novas zonas de exploração. Pelo contrário, a precariedade dos instrumentos de que dispõe o homem em sua luta contra

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o meio é essencial para a representação desses espaços. Mais que isso, na interpretação mais comum, as comunidades anacrônicas estariam fatalmente condenadas a ser destruídas pela modernidade, o que, aliás, fortalece a função de “registro etnológico” assumida pelo discurso regionalista. Apesar de lançar mão de um imaginário romântico do retorno sentimental à terra de origem, o olhar dirigido aos espaços rurais e naturais na literatura brasileira é, contudo, fundamentalmente modernizador e permeado pela “sociologia da luta”, direcionando-se para realidades regidas pelo acaso ou pela mão indiferente da “mãe e inimiga” natureza. Pelo sertão, de Affonso Arinos, um dos maiores clássicos do gênero em sua fase realista-naturalista, pode ser tomado como modelo dessa perspectiva. O conto “Desamparados”, por exemplo, constrói-se a partir do contraste entre a beleza e a grandiosidade do cenário natural e a figura esquálida de um idiota que passava pelo caminho, e que assim parecia se diminuir mais ainda. O narrador põese, então, a acompanhá-lo, intrigado pela sobrevivência de um ser tão mofino, e inquirindo a razão de ter ele escapado às feras e às tempestades. O questionamento reflete espanto ante uma situação inesperada, pois torna-se nítido que, em sua visão, o mais plausível teria sido a aniquilação do fraco pelas forças inescapáveis da natureza. No desfecho do conto, o raquítico caminhante, observado com um misto de curiosidade e comiseração, encontra um ninho de perdizes ainda implumes, o que conduz o narrador à conclusão: O ninho estava desamparado à beira da estrada e também o tinham poupado as enxurradas, em torrentes, nesse tempo de grandes chuvas, e as raposas em sua ronda da noite. Também os mesquinhos e desamparados encontram caricioso aconchego no seio largo da natureza infinita. (Arinos, 1898b, p.112)

Nessa mesma obra de Arinos há outro exemplo da presença de uma lógica darwinista subjacente, que pres-


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supõe a luta, mas admite que a indiferença da natureza pode resultar em compaixão pelos fracos. O conto “A fuga” (Arinos, 1898a) narra a luta de um casal de escravos fugitivos para cruzar um rio em plena cheia e percorrer uma mata cerrada, durante uma tempestade. Enquanto isso, verdadeiros dramas de destruição e morte desenrolavamse na mata, onde a enxurrada alagava abrigos, inundava ninhos e esmagava animais sob o peso dos galhos caídos. O casal de escravos, por sua vez, demonstrava “um esforço vivo e inteligente, terrível e heróico, [e] lutava contra a força esmagadora da natureza onipotente”. O prêmio pela vitória era, mais que a liberdade, a própria sobrevivência. No dia seguinte, enquanto o sol iluminava lentamente “o campo de batalha da véspera”, os escravos recebiam seus raios como “uma carícia de amor e piedade para os miserandos, um resplendor de vitória para os lutadores” (ibidem, p. 134). Encontraremos freqüentemente esse tema do terror da natureza, entidade ameaçadora e onipotente, na literatura sertanista, assumindo uma moral ambígua que oscila entre a glorificação da força do homem rude em sua condição de luta constante pela sobrevivência no meio hostil, e a idéia da suscetibilidade que o mostra sempre ameaçado pelos inúmeros perigos e caprichos da natureza, que outro grande expoente do regionalismo, Hugo de Carvalho Ramos (1950, p.36), definiu como “companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira”. A luta de Policarpo Quaresma, no romance de Lima Barreto, para demonstrar a extraordinária fertilidade das terras brasileiras e, a partir daí, esboçar seu plano de salvação nacional pela agricultura desenrolou-se inúmeras vezes na literatura brasileira do período realista-naturalista. Talvez um dos exemplos mais eloqüentes seja o romance Miragem, de Coelho Netto (1926), publicado em 1895. Como Policarpo Quaresma, o personagem central do romance se inspira em uma visão idílica da vida rural, da existência “tranqüila e suave” provida pela abundância da natureza. Thadeu é, como Quaresma, um homem pouco afeito às lides rurais, mas que vislumbra na força da terra a

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opção por uma vida regrada, abundante e redentora. No cotidiano do trabalho, no entanto, a “luta era terrível”. Na definição do escritor, a exuberância do meio tropical, antes que um manancial de riquezas, mostrava-se um estorvo, pela “força viva e inconstante da natureza”, obstáculo ao exercício da atividade agrícola que, ao contrário, exigia regularidade e previsibilidade. Decerto, depois de três meses de pesado trabalho físico na capina, o jovem viu todo o seu trabalho perdido por causa de uma chuva abundante que fez rebrotarem os vegetais agrestes. Exausto, Thadeu acabou por perder as esperanças, golfou sangue e, com a saúde arruinada pelo esforço excessivo, viuse atraiçoado por aquela a que havia dedicado todas as forças. “A terra vencera o homem”, define o narrador. O fato é que todas as futuras peripécias do personagem serão tocadas pelo seu sentimento de derrota e pelas seqüelas do trabalho exaustivo no campo, a que sacrificara inutilmente suas energias. A terra...! Conhecia-a bem! Fora ela que o reduzira àquela miséria, que lhe arrancara o primeiro sangue, que o vencera formidavelmente quando ele tentara domá-la, tirandolhe a braveza do maninho, limpando-a das ervas, destorroando-a, revolvendo-a. Sentia-se vencido, incapaz de qualquer esforço: mole de corpo, quebrado de ânimo. (Coelho Netto, 1926, p.232)

A trajetória de queda do personagem, a partir de sua derrota na “luta terrível” contra a terra, dá a medida do tom dramático e freqüentemente sombrio da representação das relações entre o homem e a natureza, na literatura brasileira do período entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A ênfase no conflito com o meio em busca da sobrevivência está amparada por uma lógica darwinista que acentua o sentido bifronte da natureza como a própria essência da doutrina (Hawkins, 1997): a natureza-modelo é fundamental para a construção da própria imagem do ser humano, participante das leis naturais da evolução; a natureza-ameaça assume as formas


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da onipotência, da indiferença ou da violência de suas manifestações. Os mais eloqüentes exemplos do desenvolvimento dessa terceira linha do darwinismo, a luta contra o meio, na literatura brasileira, são encontrados em narrativas que dramatizam a presença humana em espaços marcados pela extrema carência ou pela extrema abundância de recursos: a literatura sobre as secas, que se tornaram fenômenos recorrentes da vida no Nordeste brasileiro, principalmente a partir de 1877, e a literatura sobre a Amazônia, que despertava interesse crescente à medida da intensificação da atividade de extração da borracha, no final do século XIX. Nas circunstâncias históricas que direcionaram a atenção da elite letrada para essas duas regiões, a luta pela sobrevivência tornou-se fonte de inspiração para uma literatura de fundo naturalista, que tinha como grandes questões as relações entre o humano e o natural, aí compreendida a própria natureza humana, em suas manifestações mais irracionais. De fato, a perspectiva darwinista contribuiu para a formação do naturalismo literário, que adotou alguns de seus temas: a seleção natural, as influências do meio e da hereditariedade, a interação entre indivíduos e grupos e sua influência recíproca, e, principalmente, a luta pela vida (Chevrel, 1993, p.34-5). O naturalismo põe no centro da situação dramática o peso da imposição das leis naturais sobre o ser humano que, uma vez desnudado pelas pressões do meio das camadas superficiais de civilização, seria inteiramente guiado por instintos egoístas e de sobrevivência, o que conduziria à ruptura dos códigos morais e sociais, expondo a fragilidade e a artificialidade da ordem social (Baguley, 1995). Na literatura realista-naturalista brasileira, a dramática contradição entre as imposições da natureza e os propósitos do homem, incapaz de exercer qualquer tipo de controle ou de manipulação dos recursos produtivos, acentua as demandas de modernização institucional e produtiva defendidas crescentemente pela intelectualidade do país. De fato, o progresso técnico era uma perspectiva dis-

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10 Sobre a formação, a atividade profissional, a produção intelectual e o papel assumido por Theophilo na sociedade cearense, ver Victor (1923).

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tante da realidade cotidiana das regiões mais selvagens do território, mas firmava-se na mente da elite culta como a única possibilidade de redenção do homem brasileiro, aparentemente destinado à derrota na luta contra a natureza. As secas que acometeram o sertão nordestino a partir das últimas décadas do século XIX eram, sem dúvida, um objeto privilegiado para a observação da luta pela vida em seus mais extremos aspectos. Vários autores ocuparam-se do tema, desde o precursor José do Patrocínio, com seu romance-reportagem Os retirantes, publicado em 1879, até as versões renovadas do tema, no âmbito do regionalismo nordestino da década de 1930. Tomaremos aqui como referência a pouco conhecida e explorada obra do cearense Rodolpho Theophilo, farmacêutico e catedrático em ciências naturais que, em sua própria definição, tornou-se o “cronista dos infortúnios do Ceará”.10 Sua produção, tanto a científica quanto a ficcional, possui intenção declaradamente historiográfica, à medida que ele compreende a escrita em sua função exemplar e didática, capaz de influir sobre os leitores “para que meditem em nossas aflições, tirem delas ensinamentos e se aparelhem para resistir melhor do que nós, à dissolução do meio, às tentações do mal” (Theophilo, 1922a, p.6). Sua primeira obra sobre o tema, a História da seca no Ceará, foi publicada em 1883, numa perspectiva exclusivamente científica voltada para a análise das causas, dos condicionantes e dos resultados do fenômeno da seca, a partir de uma coleção de informações científicas e medições meteorológicas. O primeiro romance publicado por Theophilo (1922a), A fome – scenas da seca no Ceará, consiste em uma espécie de ficcionalização da dinâmica darwinista da luta pela vida, com pretensões que também não se afastam de uma idéia de ciência. Afinal, A fome pretende ser um estudo do ser humano em condições de extrema carência de recursos. O romance narra a caminhada de um grupo de retirantes que abandona a aridez do sertão em busca do mínimo necessário à sobrevivência nas regiões mais úmidas, próximas ao litoral. Cada passo à frente significa uma que-


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da, que descreve um ritmo crescente de decomposição das camadas superficiais de cultura, moral e valores que caracterizam a vida em sociedade. O esgotamento das possibilidades de sobrevivência individual acaba produzindo um homem desprovido de sua condição especificamente humana, animalizado e totalmente entregue aos instintos. Na narrativa de Theophilo (1922a), o meio oferece ao sertanejo, inicialmente, algumas parcas alternativas de alimentação, mas a total dependência em relação à natureza o torna suscetível a sua indiferença, salvadora ou cruel. Assim, se num dado momento era possível recorrer à carnaubeira, da qual tudo se aproveitava, em outro uma família inteira acaba sucumbindo aos efeitos venenosos de uma raiz aparentemente comestível. Da luta do homem contra o homem desenrolam-se episódios que conduzem ao extremo o grotesco naturalista, pois na “luta pela sobrevivência” não há regras. Do combate contra a natureza resta uma paisagem desolada, desnudada de todas as suas formas de vida. Ao tema da seca o escritor articularia ainda a problemática do banditismo no sertão nordestino, o que daria origem ao romance Os brilhantes. Nesse caso, a perspectiva darwinista de Theophilo (1972, p.246) o impulsiona a buscar também na formação racial do povo nordestino uma explicação para aquilo que, segundo ele, era seu “atávico instinto homicida”, ou seja, a herança nefasta das ditas “raças inferiores” sobre a formação étnica do povo nordestino, que o tornaria peculiarmente inclinado à violência, pouco afeito ao estabelecimento de laços estáveis com a família, a comunidade e a terra, dado a aventuras e a uma existência nômade. A mesma interpretação, que sobrepõe à narrativa da luta contra o meio uma condenação implícita do homem nordestino, é retomada na obra mais grandiosa do escritor, O paroara (Theophilo, 1899). Seu personagem central é João das Neves, um simples homem mestiço do sertão que já se apresenta como uma vítima da seca, pois se extraviara da família retirante durante a seca de 1877.

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Retornando já adulto à terra natal, ele tenta reconstruir sua vida na primitiva casa familiar, estabelecendo-se aí e constituindo sua própria família. Já em princípio, esse propósito indica, na interpretação do escritor, que seu personagem era um “mestiço superior”, capaz de fixar-se ao solo e estabelecer firmes vínculos afetivos. A busca do sustento de sua família, na hostilidade do sertão nordestino, era renhida e heróica, pois João das Neves “vivia numa dolorosa luta contra o solo, senão esfalfado, ao menos estéril pela inconstância das chuvas” (ibidem, p.112-3). Numa tentativa de obter colheita mais farta, o sertanejo abre, com a ajuda de um mutirão de vizinhos, um novo roçado, derrubando e queimando a mata; espera a chuva, planta, e vê brotarem as primeiras sementes; bastavam então novas chuvas que regassem as plantas, mas o tempo mantém-se seco, e uma praga de lagartas destrói sua plantação; intenta um novo plantio, desfazendo-se do único bem que lhe restava, mas as chuvas novamente faltam, as novas sementes não brotam e ele se vê totalmente alquebrado de ânimo. A trajetória de esperança, esforço, entusiasmo, decepção, novo esforço, desilusão e desespero realça não tanto a destrutividade da natureza, mas sua perversidade: “Inventivou a terra chamando-a de madrasta, pior ainda do que a cascavel. Esta cobra come os filhos ao nascer, pequeninos, e o Ceará faz pior do que ela, deixa crescer os filhos para comê-los depois de grandes” (ibidem, p.203) O personagem desiste, então, da agricultura e, na definição do escritor, “regride” na escala evolutiva, passando a buscar seu sustento na caça e na pesca. A segunda parte da luta de João das Neves contra a natureza dá-se num novo cenário, a Amazônia, para onde segue, seduzido pelas promessas de fartura que conduziam ao novo eldorado verdadeiros batalhões de nordestinos que fugiam da seca. Na Amazônia a derrota não vem da restrição das formas de vida, mas de sua abundância, à qual o homem nordestino raramente se adaptava. Os inimigos estavam por toda parte, eram insetos, animais ferozes, índios selvagens e epidemias palustres que a poucos poupa-


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vam. Doravante, além de lutarem contra a natureza, lutariam os homens também entre si, pois os “mais fortes” não hesitavam em escravizar e explorar os “mais fracos”. Novamente derrotado pelo meio, João das Neves retorna à terra natal já condenado pela malária. Sua mulher agonizava e todos os seus quatro filhos haviam morrido de fome. A conclusão de Theophilo (1899, p.474-82) é, sem dúvida, espantosa. Depois de narrar com cores vivas a luta do homem pela sobrevivência nas duras condições do sertão nordestino, demonstrando seu trabalho penoso e disciplinado, e retratando a solidariedade de sua vivência comunitária, depois de descrever em tom heróico as penosas condições do trabalho nos seringais e as tentativas de adaptação ao meio hostil da Amazônia, o escritor acaba por condenar o sertanejo por sua própria miséria, atribuindo o êxodo nordestino à cobiça, ao sonho da riqueza fácil, ao fatalismo inato e aos atávicos instintos nômades das ditas “raças inferiores”. O darwinismo social, em sua vertente racialista, cavava assim um fosso profundo entre o povo e a elite letrada que, mesmo quando pretendia acercar-se da miséria, acabava por justificá-la. Rodolpho Theophilo expressa um pensamento tão difundido em sua época que mais fácil seria nomear seus críticos.11 Na literatura sobre a Amazônia, a mais perfeita expressão desse pensamento pode ser encontrada em Os seringaes. Nesse livro, o jornalista Mário Guedes (1914) busca retratar a recente ocupação da região amazônica, mas não sem antes explicitar o sentido histórico que nela vislumbrava. Segundo ele, “a lei da evolução natural das coisas” indicava que a civilização caminhava dos climas temperados para os climas quentes. Isso porque apenas o progresso científico tornaria possível gerar os meios de sobrevivência nos climas “menos favorecidos”, ou seja, os tropicais e equatoriais. Nesse sentido, a Amazônia acabaria por ser uma das últimas terras do planeta a serem civilizadas, mantendo uma imensa reserva de recursos para a humanidade. Naquele início do século XX, a imigração européia consistia, na visão do autor, no maior fator de

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progresso, transportando as conquistas da civilização para regiões onde essa não teria condições de desenvolver-se espontaneamente. Na Amazônia, contudo, essa dinâmica de expansão civilizacional dependeria de que fossem suavizados os caminhos para o ingresso do imigrante, abrandando as asperezas naturais, o que, na definição do escritor, era um papel a ser desempenhado pelo trabalhador nacional, notadamente o nordestino. Segundo ele: O que perdemos, por um lado, no centro do País, ganhamos, por outro, no extremo. Certamente que tal compensação custa muita dor, muita lágrima, muito sofrimento. Mas qual tem sido a história da civilização para chegar ao estado atual senão o resultado de tudo isso? Portanto, lamentação, nesse caso, seria pieguismo. Não se compreende progresso sem luta, sem trabalho, seja ele de que espécie for. Pois o progresso é a resultante de um duelo entre o homem e a natureza. E o mundo com sua técnica no referente a todo esse progresso e ao que lhe diz respeito, é uma espécie de Maquiavel, cujos fins justificam os meios. (Guedes, 1914, p.75-6)

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Dentre os mais notáveis críticos do racismo científico no Brasil, citam-se Clóvis Beviláqua, Alberto Torres, Manuel Bonfim e Araripe Jr. Ver, a respeito, Murari (2007, c.2).

Daí se depreende que, se as secas não tivessem acometido o Ceará, o progresso observado na Amazônia naquele momento não teria sido possível. Isso porque apenas o homem do sertão seria capaz, por sua adaptação aos trópicos, sua força e resistência física, sua grande capacidade de sofrimento e resignação, de suportar o clima amazônico, que vitimaria mesmo o brasileiro do Centro-Sul. Assim, a presença do homem branco da Amazônia só era, segundo o autor, observada em regiões já desbravadas pelo sertanejo, que derrubara a mata e drenara os pântanos, ainda que à custa de elevada mortalidade. Por meio da luta contra a natureza da Amazônia, do enfrentamento de suas feras, seus insetos, suas águas pestíferas, o bravo homem nordestino desempenharia a função essencial de estabelecer um povoamento inicial que representasse a melhoria das condições sanitárias da região. Mesmo fa-


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zendo questão de afirmar que, em princípio, o mestiço era um ser desequilibrado e incompleto, o autor atribui à sua epopéia amazônica um grande papel na história brasileira, e por que não dizer, na história da humanidade. “Foi ele que, perdendo a vida e a saúde, deu saúde e vida àquele meio” (Guedes, 1914, p.95). Portanto, enquanto os países europeus despendiam fortunas no desbravamento da África, ao Brasil nada vinha custando o trabalho do sertanejo, que afinal adquire um elevado sentido: Porque a verdade é que só ele, pela sua compleição conseqüente do cruzamento, seria um elemento efetivo para semelhante obra, rudimentar, é certo, mas imprescindível para os grandes empreendimentos de mais tarde. De resto, isso obedece à lei de evolução natural das cousas. O mestiço está sendo acolá o precursor do progresso, está ‘aplainando os caminhos do Senhor’, para o levantamento das futuras civilizações, para o triunfo das raças mais fortes, que têm por isso mesmo mais do que ele direito à vida. (ibidem, p.97)

A conclusão do jornalista ecoa a sugestão de Quincas Borba a Brás Cubas, quando falece sua noiva Eulália. Afinal, também aqui há na morte um fim brilhante, do qual o narrador considera-se beneficiário, como homem branco e civilizado. Isso, claramente, desperta nele, como no filósofo do humanitismo, um “secreto encanto” pela sua própria sobrevivência, ou pela sobrevivência de seu grupo, sinal evidente de superioridade. Como a Brás Cubas, a idéia de Mário Guedes deve nos soar demasiadamente absurda para ser levada a sério, mas convém não desprezar as conseqüências do darwinismo social, com sua lógica egoísta, finalista, amoral e agressiva, quando visto em perspectiva histórica. Afinal, quando a paródia e o real se confundem, parecem ter-se perdido os fundamentos de nossa própria racionalidade.

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A ilustração viajante e as suas sombras Celdon Fritzen*

RESUMO: Este trabalho propõe discutir a representação da terra e do homem amazônicos em relatos de viagem. Para isso, serão exploradas as contradições observáveis em tais relatos, destacando os processos de construção de uma nova tradição de relatos de viagem, a partir da crítica às fantasias presentes nos relatos de viagem pioneiros. PALAVRAS-CHAVE:

Relatos de viagem, mito, Iluminismo, Ama-

zônia. ABSTRACT:

This work intends to discuss the representation of the man and the land of the Amazon in travel narratives. For this, the contradictions of such narratives will be explored, underlining the processes of construction of a new tradition of narrative of travels narrative, stemming from the criticism about the existence of fantasia in pioneering works. KEYWORDS: travel narrative, myth, Enlightenment, the Amazon.

* Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc).

Numa caminhada que fazia rumo ao ponto mais setentrional de sua viagem pela Amazônia, a aldeia de Yavita, localizada já na Venezuela às margens de um riacho afluente do Orinoco, Wallace foi surpreendido pelo súbito anoitecer das terras equatoriais, distraída sua atenção pela caça de um mutum que, saltitando no alto das árvores, resistia aos tiros de espingarda. A noite caiu em torno do naturalista inglês como uma rápida cortina espessa que envolve e solapa a relativa clareza e distinção das formas dadas ao olhar alerta. Junto dele, um garoto índio, apavorado com a face noturna da floresta, segue-o colado em seus calcanhares. Em meio ao que não se discerne, caminhar tornase uma tarefa difícil, entremeada de tropeços nas pedras,


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pensamentos e troncos que a mata virgem, por trás do véu negro, põe na precária estrada por onde segue esse visionário da ciência. O olhar erguido ao céu não vê astros brilhantes, porém, entre as ramagens, o anúncio de mais um dilúvio amazônico. Ademais, eu estava descalço, de modo que tropeçava de minuto em minuto em alguma raiz ou pedra. De vez em quando pisava em falso, saindo da estrada, e quase deslocava o tornozelo. Estava escuro como breu. Olhando para cima, podíamos ver, por entre as aberturas do dossel arbóreo, que o céu estava toldado por nuvens bem pesadas. Para frente, porém, não se podia distinguir coisa alguma. [Todos os grifos nas citações são meus]. (Wallace, 1979, p.158)

Nesse novo cenário em que o olhar mostra-se incapaz de atravessar e esconjurar as trevas circundantes, há uma inversão de papéis: o caçador torna-se a caça. Wallace, que antes varara as matas confiante na espingarda que empunhava, agora, impotente para ver e matar, teme ser visto e morto: As onças, como eu bem sabia, eram abundantes por essas bandas, assim como também as cobras venenosas. A cada passo vinha-me o medo de sentir sob os pés seus frios e escorregadios corpos, ou na perna a dor aguda de suas fatais mordidas. Eu seguia fitando a escuridão [through the darkness I gazed], esperando a cada momento a aparição dos cintilantes olhos de uma onça [the glaring eyes of a jaguar], temendo escutar o seu rosnado vindo da mata. (ibidem, p.158)

O olhar desarma-se e a consciência alerta do naturalista sucumbe diante das fabulações que o medo da noite faz brotar na floresta tornada sombria, inóspita, novamente incógnita. Já é da bruma densa das trevas, paradoxalmente, de onde a luz pode emanar, não mais para empreender o ordenamento da vida num sistema taxionômico, mas para culminar de insucesso a toda busca esclarecida, interrompendo-a ironicamente com “a aparição dos cintilantes olhos” que nada iluminam senão as sendas da própria morte.

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A noite faz tropeçar, extraviar, representar os seres sob a mascarada do informe, do inapreensível, e a imaginação reivindica seus domínios sobre as pretensões de uma mente emancipada cujos poderes de discernimento mostram-se inócuos. É ela que fita a escuridão, é ela que faz ver na noite o brilho de um olhar que não seria senão o medo projetado de Wallace. Três dias antes, ele teve a contemplação da floresta suspensa e concentrada toda sobre um ser que mansamente cruzou a mesma estrada que percorria; um aguardado encontro com “um enorme animal negro como azeviche” (ibidem, p.154) efetivou-se então. A distância de vinte jardas e a exuberância daquele ser fazem que Wallace precise de um certo tempo para identificar “a espécie a que ele pertencia”. Quando, no meio da estrada, a escuridão animal se destaca, Wallace reconhece “que se tratava de magnífico jaguar, de uma onça preta”. Em seguida ao reconhecimento taxionômico – “num movimento automático” –, busca a espingarda para abater a fera que teve seu nome identificado: conhecer e matar, para o naturalista, mostram-se complementares. Mas, lembrando que a munição era insuficiente para dar o aniquilamento desejado à noite encarnada no negro animal, “temendo enraivecê-la ao invés de matá-la”, fica imóvel contemplando-a. Em dado momento o jaguar retribui, fitao por alguns instantes, e entra na mata novamente, para longe dos olhos do naturalista, o qual, surpreendido pela visão inesperada, “nem [tivera] tempo de sentir medo” (ibidem, p.154). É esse medo outrora proscrito que lança agora sobre a escuridão a lembrança de um olhar a espreitar na mata, abrigado na treva, irredutível, impermeável às luzes, mais rápido que um disparo. Da mesma maneira, a ameaça que Wallace imagina rastejando num chão noturno também são evocações, lembranças de uma cabeça seca de serpente posta, ao modo de fetiche, sobre o beiral da choupana onde se hospedara na aldeia de Pimichín, no dia seguinte ao encontro com a negra imagem animal: “Era uma jararaca, espécie do gênero Craspedocephalus, e seu tamanho


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deve ter sido bem considerável, pois suas presas venenosas, em número de quatro, tinham quase uma polegada de comprimento”. Aqui a morte já havia antecedido o ato classificatório; mas na escuridão aberta povoada de serpentes onde o medo de Wallace pouco depois despertaria, a morte grassa em todas as partes, inominável. Encorpada pelos avisos de alerta que recebera em Pimichín de que “sua mordida significava morte certa” (ibidem, p.156), as serpentes que seu medo desova retornam mais fantasmais que o gênero Craspedocephalus. Parar? Regressar? Inútil [But to turn back or to go were alike useless]. A aldeia não devia estar muito longe. Assim, o jeito era prosseguir. No fundo, aquela confiança de que nada de desagradável haveria de acontecer, e que no dia seguinte todos aqueles receios seriam motivo de gargalhadas. Ao otimismo, porém sucedia a lembrança das agudas presas da cabeça de cobra pendurada na cabana de Pimichín, ou então das histórias que ouvira acerca da ferocidade e da astúcia dos jaguares... E lá vinham os temores de novo... (ibidem, p.158)

Que fazer em meio às trevas? Onde buscar luz para dar aos passos a trilha encoberta? “Parar? Regressar? Inútil”. No momento em que a consciência deixa-se arrastar pelas fantasmagorias, essa passagem exemplarmente nos revela que só a mesma imaginação pode intervir para tornála novamente confiante. A fé e o otimismo decorrem da futura lembrança que o viajante terá do medo que agora o invade: são um produto de fabulação. Percebemos, sem pouco assombro, que a firmeza animadora desse aspirante da ciência, a qual o faz supor vencer a noite anônima que lhe cerca, brota do mesmo solo de onde seu pavor designou olhos de fogo, corpos resvaladios na terra incógnita. A consciência empreendedora debate-se no agitado mar de uma imaginação que lhe promete a tábua salvadora, a terra firme sem deixar ao mesmo tempo de aguilhoar com a angústia de monstros marinhos abismos devoradores que porão fim à viagem. Inútil parar, não há terra ainda onde

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se firmar; mais ainda regressar por um caminho que a noite encobriu, trilhou de mil possibilidades que terminam nela mesma. O avanço da consciência, a confiança na vitória sobre o incógnito prenhe de terrores que se revelam projetados pelo medo, não é, contudo, menos uma projeção imaginária que volta infinitamente a sucumbir sobre um solo traiçoeiro. As reticências do texto wallaciano também são a abreviatura do infinito vaivém da imaginação: “otimismo”, lembranças fantasmais, “temores de novo”... Entre o riso redentor e o medo mortal, a imaginação é usada e usa do naturalista. Seu lugar é ambivalente: diante do desconhecido, ela é promessa utópica, aguilhão infernal. Essa passagem fortuita do diário de Wallace, se emblematicamente interpretada, põe-nos diante das contradições do narrador imbuído do espírito das Luzes. No seu afã de libertar-se do medo, a consciência alertada pelo método científico torna-se o instrumento para o assenhoreamento. Contudo, a esperança vital de que a soberania é possível respira no mesmo alento donde brotam as sombras arrepiantes de uma noite inapreensível, cheia de lembranças de morte. Noite, paradoxalmente, donde a luz também proviria na forma dilaceradora dos “cintilantes olhos” que não dispersam as trevas, mas que cerram-nas ainda mais. Em suma, a esperança que a imaginação dá ao narrador de atravessar a noite é também quem dá a ele o retorno renovado dos obstáculos fantasmagóricos. Em suas reflexões sobre o progresso do pensamento, Adorno & Horkheimer (1985, p.19), em face da barbárie da Segunda Guerra Mundial, põe-nos sob suspeita o ideário do esclarecimento. Deixemos por enquanto a desconfiança sobre as Luzes suspensa. Concentremo-nos no programa da Razão, projeto pelo qual os homens livrar-se-iam do medo para investirem-se “na posição de senhores”. Ele diz respeito ao “desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber” (ibidem). Como contrapartida à negação do maravilhoso como explicação dos fenômenos, estabelecer-se-ia o avanço


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da afirmação consciente do homem diante da natureza. Os mitos para o esclarecimento nada seriam além de antropomorfismos que o medo humano diante do desconhecido projetaria sobre a natureza, atribuindo uma anima sobrenatural ao vivo e ao inerte. “Desencantar o mundo é destruir o animismo” (ibidem, p.20) é denunciar o que há de humano no sobre-humano. Mediante uma distribuição ordenada de cada coisa no lugar que lhe cabe, os fenômenos da natureza teriam suas explicações antropomórficas substituídas pela redução matemática. “No anseio de toda desmitologização: o número tornou-se o cânon do esclarecimento” (ibidem, p.22). De modo que, por um lado, por esse ideal matemático, o “número” far-se-ia equivalente aos fenômenos, o que garantiria a previsibilidade desses em suas combinações possíveis. Porém, por outro lado – e aqui a desconfiança sobre o próprio esclarecimento é o móbil da crítica de Adorno e Horkheimer –, a partir de um enfoque reificante da natureza, uma mensuração do mundo e do homem apenas como coisas também se apresentaria como efeito negativo. No exercício da suspeita crítica, apontam Adorno & Horkheimer (1985) que um ideal de sistematicidade acabaria por ser paradoxalmente venerado pelo esclarecimento. Essa propensão à reificação é denunciada por suas conseqüências extracientíficas: ela é também o motor da barbárie uniformizante da civilização moderna, pois “para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura” (ibidem, p.23). Poderíamos diante desse processo dialético radical entre a verdade matemática e a ilusão – seja mítica ou literária –, e depois de termos visto antes a oscilação emblemática da imaginação, poderíamos, então, perguntarmonos acerca da posição assumida nesse processo de emancipação por uma nova tradição de relatos de viagem, tradição na qual se inseririam os textos tais como os de Wallace e Bates. Particularmente, veremos que as perspectivas desses relatos tomam rumos por vezes contraditórios com re-

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lação ao programa de desencantamento do mundo. Para tal demonstração, pretendo aprofundar as ambigüidades suscitadas nos discursos de Wallace e Bates por oscilações em torno da ilusão e do “número”, do desinteresse e da dominação, as quais, quiçá, poderão permitir uma interpretação de maior alcance das contradições próprias aos relatos de viagem dos naturalistas.

Ilusão e “número” Wallace e Bates conheceram-se em Leicester atraídos por um interesse comum pela história natural. Ambos eram naturalistas amadores: Bates trabalhava numa fábrica de cerveja e Wallace, antes de ser mestre-escola, fora topógrafo, atividade na qual aproveitava a demarcação dos percursos das estradas de ferro para estudar as plantas da Inglaterra. Resolveram então viajar para alguma região tropical com o intuito declarado de estudar a origem das espécies. Presume-se que foi em razão da leitura do livro do americano Witt Edwards – o qual, em 1846, viajara pela Amazônia publicando no ano seguinte A voyage up the Amazon – que ambos decidiram viajar juntos para ali em 1848. Diferentemente de Darwin, que tinha de onde tirar os recursos para a viagem no Beagle, esses naturalistas dispunham apenas de uma pequena poupança de Wallace e um empréstimo feito pelo pai de Bates. A solução que encontraram foi a de formar coleções de objetos de história natural, remetendo-os para Londres onde seriam comercializados por um agente previamente designado e assim poderem financiar a viagem. Wallace e Bates permaneceram, respectivamente, três e onze anos na Amazônia. Primeiro exploraram juntos os arredores de Belém; separaram-se posteriormente para estudar regiões distintas, vindo novamente a se encontrar na cidade de Barra, que pouco depois, em 1852, irá se tornar Manaus, capital da então recém-criada Província do Amazonas. Ali, tomam rumos distintos: Wallace sobe o Rio Negro até os afluentes do Orinoco, enquanto Bates se


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dirige pelo Solimões até Ega. Wallace termina suas pesquisas antes e volta para a Inglaterra. No retorno, o navio onde viajava naufraga, fato que provocaria grande perda das coleções que levava consigo. Apesar das declarações textuais de que nunca mais sairia para expedições científicas, esse naturalista partiu logo em seguida, em 1854, para o arquipélago malaio com o intuito de continuar suas pesquisas.1 Os dois naturalistas rever-se-ão só na Inglaterra. Em seus primeiros passeios de estudo junto com Wallace pelos arredores de Belém, Bates descreve as impressões e reflexões que teve despertado pelo encontro inaugural com as florestas virgens amazônicas. O naturalista traça um quadro sombrio das sensações que a mata impunha àquele que a penetra. Todavia, tais sentimentos descritos por Bates também atestavam a veracidade de toda uma nova tradição de relatos que, diferentemente do tom edênico dos descobridores (Holanda, 1994), apresentavam a selva a partir de uma estética do sublime, pondo ênfase no horror sentido pelo narrador; horror advindo de paixões misteriosas, insubordinadas à representação exaustiva, superiormente incógnitas: “sempre vimos referência, nos livros de viagens, sobre o opressivo silêncio reinante nas florestas brasileiras. De fato, trata-se de uma coisa real, uma sensação que se vai aprofundando à medida que aumenta nosso conhecimento da selva” (Bates, 1979, p.37). De fato, trata-se de uma posição bastante ambígua com relação à suposta propriedade cumulativa do saber, pois aquele sentimento de inquietação e desconforto: “o opressivo silêncio” provocado pela floresta cresce à mesma proporção que vamos conhecendo mais sobre essa. Longe de esconjurar os pavores que moram no silêncio amazônico pelo pronunciamento de uma palavra decisiva que se elaborou por meio de uma sucessão de experiências, nossa ciência desse singular objeto mostra-se apenas capaz de confessar seus precários avanços. Avançar, aqui, contraditoriamente à promessa de soberania ilustrada, significa permanecer perturbado. O que Bates virá a mostrar, então, será a ação analítica do método chegar aos limites

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Os dois tiveram participação ativa na fundamentação da teoria da seleção natural. Bates desenvolveu, baseado nas observações sobre as borboletas, a hipótese do mimetismo. Já as pesquisas de Wallace são consideradas por alguns como o motivo que teria feito Darwin superar o medo da iconoclastia aparente de sua teoria e publicar A origem das espécies (Ferreira, 1990).

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de suas possibilidades, ao tentar discernir as sensações angustiantes brotadas da mata. Nota ele que os ruídos produzidos pela floresta, em vez de serem uma contrapartida ao “silêncio opressivo”, gerando “uma idéia de animação e vida”, os raros cantos de pássaros que chegam aos ouvidos, por exemplo, “têm um tom melancólico e misterioso, que tendem a intensificar a sensação da solidão”. As onças e cobras que povoaram o caminho desconfiado de Wallace são, agora, para Bates, predadores dissimulados em alguma paragem a atacar um “animal frugívero e indefeso”, que antes de sucumbir corta “a quietude geral” com um “berro súbito [que] nos enche de sobressalto”. A gritaria matutina dos macacos também se insere no rol dos sons que abalam “a animação de espírito”, intensificando com essa “arrepiante algazarra”, “a sensação de inóspita solitude que a selva forçosamente dá”. Porém, sons reboantes que subitamente cortam o silêncio desumano das matas, como a queda de uma árvore “nas horas quietas do meio do dia”, ampliando o sentimento da solidão, ainda pertencem, contudo, a uma classe que se pode identificar. Mais perturbadores são os ruídos apavorantes cuja origem permanece um mistério. Além disso, a selva é cheia de ruídos difíceis de identificar. [...] Ouve-se às vezes um barulho semelhante ao do impacto de uma barra de ferro de encontro ao tronco oco de uma árvore, ou então um grito estridente cortando o ar; esses ruídos não se repetem, e o silêncio que se segue aumenta a aflitiva impressão que causam no nosso espírito. (Bates, 1979, p.37)

Esses barulhos aleatórios, sem regularidade, revestemse de uma sombra fugaz a toda lei de previsibilidade; donde provêm? O estranho esforço metafórico que Bates leva a efeito para dar uma imagem dos caóticos fenômenos sonoros da selva, sabe ele, é precário, incapaz de dar conta de tão exótica realidade. No entanto, essa metaforização também nos ilustra o modo pelo qual a imaginação, diante do incógnito, interfere: procurando esquematizar as sensações


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de pavor com algum arremedo de conhecimento, a subjetividade fabuladora reconhece semelhanças como uma forma de apaziguar as potências desconhecidas, dando-lhes um nome. De um ponto de vista dialético, podemos reconhecer aí um estágio preliminar do conhecimento. O perigo desse procedimento propedêutico ao saber estaria numa insuperável mistificação da natureza. A subjetividade darse-ia por satisfeita com a solução poética imaginada, em detrimento das causas reais dos fenômenos naturais. Nesse estágio do desenvolvimento intelectual é que Bates localiza os nativos amazônicos. Pensando em princípio que poderia encontrar por parte deles explicações mais satisfatórias sobre a origem desses pavorosos “ruídos difíceis de identificar”, constata que os habitantes do lugar se mostravam tão perplexos, nesse particular, quanto eu [...]. Para os nativos, é sempre o curupira, o homem selvagem ou espírito da floresta, o causador de todos os barulhos que eles não conseguem explicar. Pois os mitos são teorias primitivas [rude theories] que a humanidade, na infância do conhecimento, inventa para explicar os fenômenos naturais. (ibidem, p.37)

Bates inscreve-se no rol daqueles que pretendem o “número” à ilusão da semelhança poética, mítica. Embora confesse sua impotência diante dos incógnitos sons da floresta, seu esforço de metaforização se põe como um antropomorfismo não dissimulado enquanto artifício retórico, produção de um sujeito. Quando se compara aos nativos, Bates pensa que tal posição garantiria uma posição de maior soberania diante do desconhecido: [...] tive um criado – um jovem mameluco – cuja cabeça fervilhava de lendas e superstições locais. Ele só entrava na mata em minha companhia; de fato, eu não conseguiria convencê-lo a se embrenhar nela sozinho, e sempre que ouvíamos alguns dos estranhos ruídos que já mencionei mais acima, ele se punha a tremer de medo. Agachava-se atrás de mim e me suplicava que voltasse. (ibidem, p.37)

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O medo venerado desse nativo implora ao pretendente da ciência que não mais avance em direção ao coração da mata sombria, habitada por seres fantásticos de vozes arrepiantes. Nessa região generosa de mistérios que é a floresta, não se deve ter o atrevimento de penetrar; o que o nativo jamais faria se não fosse acompanhado de uma consciência européia em busca de conhecimento objetivo, agitada pela meta de desvendar os segredos ocultos nos murmúrios, nos recônditos escuros da Amazônia. Ainda mais surpreendente, porém, talvez seja a ironia do comportamento do criado de Bates, o qual, no universo animista que habitava, devia o apaziguamento dos terrores provocados pelas potências malignas da floresta menos à adoção de uma atitude esclarecida que aos recursos encantatórios de que supunha dispor: “Seu pavor só desaparecia depois que ele fazia um ‘feitiço’ para nos livrar do Curupira. Para isso pegava uma folha nova de palmeira, trançava-a e formava com ela um arco, o qual pendurava num ramo no meio do caminho” (ibidem, p.37). Ora, se conhecer é vencer o medo, é dominar-se diante do desconhecido para melhor dominar, vê-se que as teorias primitivas dos fetiches e dos mitos têm afinidades com a vontade de poder do esclarecimento. Elas também são uma manifestação das Luzes. Na sua análise do esclarecimento, Adorno & Horkheimer (1985) mostram-nos as complexas relações de filiação entre esse e o mito. Um estranho percurso ter-se-ia realizado na história do desenvolvimento intelectual do homem de tal modo que no mito já se encontram as bases do esclarecimento tanto quanto esse também voltaria a ser mitologia nos tempos modernos. Se o objetivo era tornar os homens senhores desvencilhando-os do medo, o esclarecimento, vimos, se dá como programa a liquidação do animismo para fazer da natureza quantidades manipuláveis. O feitiço do criado de Bates mostra-nos como a magia e os mitos já trazem em si esse germe da dominação, à medida que possibilitam, por uma antropomorfização do desconhecido, uma aparente redução deste ao conhecido: “os mitos que caem


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vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento” (Adorno; Horkheimer, 1985, p.23). Para uma consciência que se quer esclarecida como a de Bates, porém, esse recurso antropomorfizador mostrase insuficiente para assegurar um domínio pleno do mundo e a autonomia de si. Nas crenças sobrenaturais, permitese uma presença por demais viva na natureza que, tornada palco para jogo de forças mágicas, não se reduz a fenômenos de experiência científica. É a suspeita sobre as pretensões da verdade mítica, sobre sua subjetividade dissimulada em essência das coisas que marca o método de interpelação do real próprio de Bates. O ainda em si da natureza mítica deverá ser tornado para si do Iluminismo:

titativo. O desejo de emancipação torna tudo passível de ser conhecido e o que não, irreal. É desse modo que os mirabilia se viram fadados a desaparecer do mundo, esconjurados pela reificação, pela matematização da natureza. Essa aparente posição de maior soberania, resguardada pela dúvida de que Bates se investe, assume, vimos, ares de superioridade em relação aos nativos amazônicos. Procedimento que não lhe é unicamente próprio, mas que se espraia em relatos de outros viajantes imbuídos da Ilustração, nos quais podemos também depararmos com uma expectativa de assombro que acaba sendo subjugada pela observação metódica. Spix & Martius (1981, p.205-6) subiram o curso do Amazonas cerca de trinta anos antes de Bates e Wallace e já punham em ação o programa de desencantamento do mundo:

No estado mágico, sonho e imagem não eram tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhança ou pelo nome. A relação não é a da intenção, mas do parentesco. Como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. (Adorno; Horkheimer, 1985, p.25)

A consciência autônoma reconhece sua diferença em relação à natureza e às representações que dela fazia. Dominar passa a ser não se identificar com a natureza, e sim mantê-la afastada e subjugada dentro do ciclo da previsibilidade de seus acontecimentos repetíveis. Daí, em Bates, o caráter problemático e desconfortável suscitado por aqueles “ruídos que não se repetem”, quando de suas incursões à mata virgem. Mas essa “aflitiva impressão” gerada no espírito do naturalista parece ser, para ele, um mal menor que a explicação mágica do Curupira, a qual postula uma dimensão inacessível à comprovação de regularidade nos fatos. Para Adorno & Horkheimer (1985, p.29), a imanência tornar-se-á, com o rebento do positivismo, o novo tabu para o Iluminismo, de que nada pode escapar, “nada pode ficar de fora, porque a simples idéia do ‘fora’ é a verdadeira fonte de angústia”. O desconhecido, por meio da equação matemática, é transformado em incógnita e reduzido ao seu aspecto quan-

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Chegando em julho de 1817 junto com o séquito da arquiduquesa Leopoldina e financiados pelo rei Maximiliano José I da Baviera, Spix & Martius, depois de uma permanência no Rio de Janeiro, iniciaram um percurso imenso pelos sertões brasileiros. Só em julho de 1819, após recuperarem-se do trajeto pelo interior nordestino, deixam São Luis em direção a Belém, de onde partem rumo à hinterlândia amazonense até as fronteiras com o Peru e a Bolívia. Retornam em 1820 para a Europa. Na Alemanha, são publicados os três volumes que compõem o relato de suas viagens.

O homem está inclinado a colorir as empresas que põem à prova sua coragem com cores dum futuro poético. Ainda me recordo da exaltação com que contemplei a embocadura do majestoso rio, sonhando com o descobrimento de múltiplas maravilhas. Se esses sonhos não se realizaram, devo, entretanto, ser grato às experiências que se oferecem nessa remota região, e que me proporcionaram o aspecto natural, o único exato, do estado primitivo do continente americano e dos seus habitantes!2

Essas declarações correspondem ao momento em que Spix & Martius estão se dirigindo para o ponto mais ocidental de sua viagem, a montante do Rio Japurá, seguindo um itinerário semelhante ao que Bates seguirá. Suas preocupações aí se desdobram numa dupla tarefa filológica: os índios que até agora tiveram oportunidade de encontrar eram semicivilizados, portanto desprovidos de seu caráter primitivo (Lisboa, 1997, p.159); grosso modo, os relatos de viagem anteriores nos oferecem visões por demais excitadas por seres oníricos e pretensões heróicas que acabam por dissimular a realidade.


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Como fonte inspiradora de toda essa legião de seres fantásticos, Spix & Martius também apontarão a imaginação aterrorizada dos índios. Mas o grau de afetação dessa faculdade também pode gerar medos distintos. Como exemplo, apresentam dois índios em estágios diferentes de civilização. Um deles era um “hábil índio camponês” (Spix & Martius, 1981, p.146), vindo da região do cerrado do Rio Branco, que numa ocasião perdeu-se nas florestas próximas da cidade de Barra do Rio Negro junto com os naturalistas. Nesse ambiente a que estava desacostumado, “o selvagem cada vez mais se angustiava”. Depois que um lagarto, entorpecido pela atmosfera refrescada por nuvens carregadas de trovoadas, cai das árvores atingindo as costas de Martius, o índio entrega-se ao pavor atribuindo a causa do fato ao Curupira. Tremendo o corpo todo “com a mímica expressiva de quem já se sentia em poder do mau espírito”, só com muita insistência Martius consegue convencê-lo a avançar até encontrarem a margem do rio. Num estágio mais primitivo e por isso ainda mais propenso aos terrores da imaginação, “era um índio da tribo dos catauaxis [...] aterrava-o cada galho retorcido, ou tronco de árvore morta, qualquer entrelaçamento esquisito de cipós”, onde ele via alguma criatura fantástica, pronta a desfechar-lhe um golpe fatal (ibidem, p.182). Noutra parte de seu relato, Martius & Spix abordam a profusão de cobras aquáticas encontradas na Amazônia. Realmente, elas apresentam um tamanho prodigioso, mas os nativos acabam por conceder-lhes uma magnitude fantástica que culmina por velar o “aspecto natural, o único exato” desses seres que brotam das águas para arrastar suas vítimas das margens dos rios e das embarcações menores para o sombrio fundo aquoso donde vieram. Pois, os índios com efeito singulares levam o simples fato para o reino da fábula. Assim, eles contam que, de quando em quando, aparece a mãe-do-rio com uma diadema brilhante ou deixa emergir a cabeça luminosa fora do rio, anunciando, com isso, a queda em extremo do nível d’água e a propagação de doenças decorrentes. A confiança, com que os

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índios contam tais lendas, é uma das feições mais peculiares do seu caráter, e o viajante, neste país, deve ficar prevenido disso, para atribuir uma parte, de tudo que ouvir da boca dos homens vermelhos, do milagroso, a esta inclinação fantástica. O enfeite dos simples fenômenos da natureza com o brilho prodigioso é a única poesia de que é capaz o índio com sua alma sombria e tenebrosa. De igual modo, quase todo fato natural que se assinala por qualquer distintivo, possui sua fábula. De muitos animais e plantas, o índio conta as maiores extravagâncias. A lenda das Amazonas, de homens sem cabeça e com a cara no peito, de outros que têm terceiro pé no peito ou possuem cauda do conúbio de índias com os macacos coatás, etc., são idênticos produtos da fantasia sonhadora dessa raça de homens. (ibidem, p.94-5)

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Em 1859, depois de visitar a região Sul do Brasil, observando a acomodação dos imigrantes alemães, esse médico sai de Pernambuco em direção à Amazônia. O trajeto que perfaz é Belém, Manaus e Tabatinga, na fronteira com o Peru, de onde volta até Pernambuco para tomar um navio para a Alemanha. Avé-Lallemant ainda retornaria ao Brasil para aqui se estabelecer definitivamente.

Os naturalistas, de modo geral, não levam menos em conta em seus relatos o trabalho de designação da diversidade de elementos encontrados na Amazônia para integrálos ao sistema da ciência. Para isso, encontram-se investidos de um poder de produzir verdade, segundo um método que delimita o positivo e o maravilhoso, a realidade e as fabulações sobre ela. Caso de Avé-Lallemant (1980, p.27), por exemplo, para quem o conhecimento incompleto da cartografia do Amazonas era conseqüência de que “muito do que devia pertencer à geodésia, está ainda no terreno do mito, das lendas índias e da pura ficção”.3 Contudo, ele não crê que esses erros sejam produto apenas dos autóctones. São próprios do homem em geral, e mais particularmente de uma época histórica que não tinha desenvolvido suficientemente o critério natural, positivo, afinal “o único exato”, para efetuar juízos de ciência: Como, ao tempo da conquista, toda a Europa se mantinha tensa, recebia pasmada toda notícia de continentes recémdescobertos e enfeitava com fábulas e quimeras tudo o que não era positivo, houve época, em que se estava inteiramente convencido do aparecimento, nalguns afluentes do grande rio subamericano, de mulheres gigantescas, e da existência de homens de cauda. (ibidem, p.59)


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Toda literatura de viagem produzida no período das descobertas, especialmente no que se refere à presença de sereias colombinas e cidades de ouro, foi revista criticamente num processo que se intensifica a partir da segunda metade do século XVIII. Michèle Duchet (1975), no excelente estudo que faz sobre a circulação e recepção na França da literatura de viagem, aponta a compilação de relatos como o meio mais atuante de divulgação do gênero. Isso porque os relatos mais antigos já não se reeditavam, ou não haviam sido traduzidos, ou haviam sido mantidos em segredo pelas informações – sobretudo cartográficas – que continham. Os compiladores então procuravam atender mais às exigências da curiosidade dos leitores que a uma razão crítica na organização de suas seleções. Duchet aponta também para esse constrangimento que o saber ilustrado (como o caso citado de Avé-Lallemant) sentia diante de um material tão aberrante, pois […] es lícito pensar que el embarazo que debieron sentir las mentes más esclarecidas acerca de las carnicerías de carne humana de los jagas, la anatomía de los hotentotes, los hombres con cola, sin cuello o sin cabeza, acerca de la estatura de los patagones, se debe a los ejecutores de las compilaciones, que los transmitían sin rubor al copiarse unos a los otros. (Duchet, 1975, p.73)4

A Histoire des voyages, de Prévost, inauguraria, para Duchet, a revisão crítica francesa exigida pelo Iluminismo, oferecendo uma seleção de relatos cujo crivo é mais histórico que fundado na curiosidade exótica. Além dessa coletânea obedecer a um padrão editorial menos suntuoso que o das coleções in-folio anteriores, apresentando com a edição in-quarto da Histoire des voyages uma edição em formato de bolso para um público mais amplo, além dessas inovações materiais que ampliaram o espectro de leitores, no livro de Prévost [...] los absurdos, las ingenuidades, los testimonios sospechosos son objeto de denuncia, se llama la atención del lector sobre los

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[...] os absurdos, as ingenuidades, os depoimentos suspeitos são objeto de denúncia, chama-se a atenção do leitor sobre os autores “dignos de fé”, são autoridade os viajantes-filósofos, como Frézier, La Condamine, Ulloa. Prévost inaugura na França a crítica dos relatos de viagens e, reduzindo a parte correspondente ao anedótico e ao maravilhoso, carrega o acento no valor documental.

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[...] é lícito pensar que o embaraço que devem ter sentido as mentes mais esclarecidas a respeito das carnificinas de carne humana dos jagas, a anatomia dos hotentotes, os homens com rabo, sem pescoço ou sem cabeça, a respeito da estatura dos patagones, se deve aos autores das compilações, que os transmitiam sem rubor ao copiarem-se uns aos outros.

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autores “dignos de fé”, son autoridad los viajeros-filosofos, como Frézier, La Condamine, Ulloa. Prévost inaugura en Francia la crítica de las relaciones de viajes y, reduciendo la parte correspondente a lo anecdótico y a lo maravilloso, carga el acento en el valor documental. (ibidem, p.82)5

Essa revisão crítica também pode ser depreendida no resumo histórico que faz Bates das primeiras explorações realizadas na região equatorial. É o momento em que o naturalista está deixando a região da foz do rio para empreender a viagem até o Alto Amazonas. Viagem que conta com os percalços de depender das pequenas embarcações de comerciantes ou de expedições que subiam o rio para fazer escambo; difícil se tornara conseguir remadores índios para a empreitada e a linha de vapores só será estabelecida em 1853. Sobre os tempos da descoberta, vai informando-nos Bates da importante expedição capitaneada por Pedro Teixeira para firmar o domínio português sobre a região, e também da viagem pioneira de Orellana em busca do Eldorado e que culminou com a travessia do curso do maior dos rios. Nada do insólito, do fantástico que permeiam a viagem dos espanhóis é posto na pequena narração que Bates dela faz, apenas informações factuais. Será numa nota de rodapé que encontraremos o espaço reservado para o célebre episódio da luta com as amazonas: Foi durante essa viagem que, segundo voz geral, foi encontrada uma tribo de mulheres guerreiras, notícia essa que deu origem ao nome de Amazonas que os portugueses deram ao rio. Hoje é fato comprovado que essa história não passava de uma lenda, originada na tendência para a fantasia que caracterizava os primeiros exploradores espanhóis, e que prejudicou a credibilidade de suas narrativas. (Bates, 1979, p.92)

São esses mesmos espanhóis que serão objeto de crítica por parte de Bates no que diz respeito à trágica expedição de Lope de Aguirre. Eles seriam um exemplo de mau


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relato, e, em seguida, a crônica “ilustrada” dos fatos lhe será contraposta. Muitas expedições exploratórias foram levadas a cabo no século XVIII, continua Bates, mas devemos distinguir que entre elas “a única que forneceu muitos dados científicos ao público europeu foi a do astrônomo francês La Condamine”. Já Duchet (1975, p.97) anunciava a importância que a expedição desse pioneiro da ciência na Amazônia teria, dentro do espírito das Luzes, para a evolução do gênero, pois ele “se documentó antes de partir para las regiones que iba a recorrer”6 , além do que suas observações eram metódicas. Nesse aspecto, contudo, Bates ainda acha o relato de Spix & Martius superior, texto onde encontraremos “os mais completos” dados e estatísticas sobre a região amazônica “que se conhecem até hoje”. La Condamine, Humboldt, Spix & Martius, em resumo, eis uma nova configuração modelar que cumpre seguir para desvencilhar-se das ilusões espanholas e adotar a perspectiva do “número”, do bom relato de viagem. Wallace também reitera a revisão crítica dos relatos amazônicos pioneiros e o compromisso com a fundação de uma nova tradição, exemplarmente guardada pelas pretensões do “número”. Mas, diferentemente de Bates que atribui a lenda à “tendência para a fantasia” dos espanhóis, seguindo uma orientação de Spix & Martius, o autor de A narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro procura uma explicação mais específica, de caráter factual para a fabulação mirabolante. Na região do Alto Amazonas, nas margens do rio Uapés, Wallace (1979, p.299) descreve índios com hábitos de cultivar uma longa cabeleira que cai “nas costas em compridos cachos”, a qual trazem cuidadosamente penteada, e de depilar todos os pêlos da barba. Esses hábitos, adicionados ao uso de ostensivos “colares e braceletes de contas” daria a estes índios “uma aparência inteiramente feminina, que se acentua por causa do pente que todos invariavelmente trazem espetado no alto da cabeça”. Tal aspecto convence Wallace das causas do engano cometido

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pelos primeiros viajantes que puseram os olhos sobre esses índios, engano que teria originado a lenda das amazonas sul-americanas. Ele se põe a analisar o processo de construção de seu auto-engano para em seguida usá-lo como paradigma da projeção fabulosa dos aventureiros espanhóis:

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documentou-se antes de viajar para as regiões que percorreria.

O que me levou a essa opinião foi exatamente a primeira impressão que tive ao avistá-los, quando me foi preciso chegar mais perto deles para constatar que se tratava de homens. Se eles estivessem usando escudos, ninguém seria capaz de imaginar que não estaria na presença de mulheres, já que esses protetores são empunhados de modo a encobrir todo o corpo. Por conseguinte, temos apenas de supor que, no passado, tribos com costumes semelhantes aos dessas que hoje vivem no Rio Uapés habitassem as margens do Amazonas, nos pontos onde teriam sido avistadas as tais mulheres guerreiras. Essa seria uma explicação racional para uma questão que tanto embaraço e dúvida tem trazido aos geógrafos. (ibidem, p.300)

Nessas considerações se pode depreender que tanto os europeus contemporâneos quanto os crédulos descobridores de antanho podem se deixar enganar pelas ilusões da semelhança. Mas, enquanto Wallace teve a possibilidade de aproximar-se do seu auto-engano “para constatar que se tratava de homens” e não de mulheres guerreiras, Carvajal (1941), o cronista da expedição espanhola pioneira, já não o tem; seu engano está incomodamente legado à posteridade; não pode por ele ser desfeito. Eram apenas índios “com uma aparência inteiramente feminina” que seu olhar vira (afinal, é o que “temos de supor”), e o que a sua imaginação exacerbada pela Tradição transformou nas guerreiras mitológicas. Engano pelo qual os geógrafos, acima daquela “tendência à fantasia” dos espanhóis, pagam as conseqüências. Pois se a cartografia do curso de um rio como o do Xingu só virá a ser completada dali a quarenta anos por Reclus (1899), o que dizer da vastidão de terras incógnitas sob o manto de uma floresta cheia de perigos. Quantas fantasmagóricas nações podem habitar o desconhecido?


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Já nos alertara Bacon de que os sentidos são enganadores, levam-nos a tomar impressões subjetivas como objetividade; é preciso, então, se guardar dos embustes da aparência, depurando a percepção do que não pertence à realidade. Mas, entre os nativos, não existe uma tradição acerca de uma tribo de mulheres que vivem sem maridos? Não é a reiteração da existência de semelhante comunidade uma realidade efetiva muito mais que uma impressão ludibriadora? Esse argumento que poderia retirar a autoridade da sua refutação é examinado por Wallace (1979). Afirma ele que inquiriu a muitos sem ter recebido a menor indicação de tal tradição. Daí chega ele “à presunção de que essa idéia teria surgido aos índios em virtude das perguntas dos próprios europeus” (ibidem, p.300). O boato sobre a existência das amazonas teria se tornado maior pelo interesse que os viajantes sucedâneos tinham pelo assunto, espalhando-o quando interpelavam os índios; pois esses, sendo perguntados reiteradamente sobre a existência de tais mulheres guerreiras, “e como acreditam que os brancos saibam mais coisas do que eles, teriam transmitido” uns aos outros e aos descendentes a quimera inoculada (grifo meu). Muiraquitãs de lado, os viajantes subseqüentes, quando ouvissem os “vestígios dessa idéia” da boca dos índios, tomariam por real o que seria “resquício de uma história fictícia” gerada, de modo não intencional, pela própria curiosidade européia pelo maravilhoso. Assim, colher-se-ia hoje o fruto imaginário que o casual engano dos sentidos teria feito amadurecer durante três séculos. Os índios nesse processo desempenhariam o papel de um solo resignado ao arado mais aguçado dos europeus, germinando, em suas mente crédulas do saber superior destes, um equívoco ao modo de bola de neve. Em vista disso, quero crer que a história das amazonas deva ser classificada na mesma categoria das lendas e tradições indígenas, como a dos ferozes homens-macacos (que Humboldt menciona e da qual também ouvi algumas in-

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formações), a do Curupira – o demônio da mata – e a do Carbúnculo do Alto Amazonas e do Peru. Acerca dessas superstições, porém, não temos uma explicação tão satisfatória como esta que agora expusemos com relação às amazonas guerreiras. (Wallace, 1979, p.300)

Cerca de trinta anos antes, quando Martius visitou a antiga Vila de Santo Antônio de Maripi, lugar onde os muras haviam se apresentado à conversão (antes o topônimo era Imaripi), propôs hipótese semelhante à de Wallace citada. No lugarejo, seis casas e uma igrejinha, para a qual há muito não aparecia pároco. Passés, juris, coerunas e jumanas eram os únicos habitantes: não vivem na vila, mas nas florestas circunvizinhas. Em meio aos mais primitivos índios que até então encontrara, Martius se empenha em descrições etnológicas. Quando se refere aos passés, não pode deixar também de – a modo de ironia – encontrar explicação para o engano de Orellana, sustentando-se nas impressões que as mulheres dessa tribo lhe produzem. Essas [...] trazem o cabelo comprido, que, sobretudo quando o deixam solto, lhes dá, conjuntamente com a malha, um aspecto guerreiro; e os soldados de Orellana, quando encontravam heroínas dessa espécie, tiveram toda razão para designá-las com o nome clássico de amazonas. (Spix & Martius, 1981, p.209)

Páginas antes, quando ele e Spix passavam por Óbidos, mencionam que fora por ali, na afluência do Rio Trombetas com o Amazonas, que houve o celebrado embate dos espanhóis com índios junto dos quais mulheres guerreavam fogosamente. Os naturalistas bávaros não têm grande disposição de tratar de tal assunto – acham-no mesmo um desvio no rumo de sua viagem sob o signo da ciência na Amazônia –, mas o são obrigados pela celeuma que ainda tal episódio de ares extraordinários provocava na Europa; ele se tornara [...] o ponto clássico para a etnografia do maior rio, que deriva o seu nome desse fato, tantas vezes floreado e posto


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em dúvida. Espera, portanto, o leitor, com muita razão, que, por minha vez, eu me manifeste a respeito das amazonas; para não interromper muito o curso da narração, basta declarar que não acredito na existência delas, quer no passado, quer no presente. Pelo geral interesse que o assunto desperta, confie o leitor na declaração de que nós, o Dr. Spix e eu, não poupamos esforço para obter alguma luz ou certeza sobre o caso. (ibidem, p.111)

Todos os esforços, contudo, mostraram-se baldados. Ambos jamais conseguiram ver amazona alguma, e, no mais, apenas a semelhança enganosa das índias passés já aludida. Nos seus interrogatórios aos habitantes amazônicos também não encontraram nenhum fato narrado por “pessoa fidedigna, de origem européia” a respeito da singular nação de guerreiras. Tudo quimeras. Se não há fatos ou determinados testemunhos comprobatórios, também não há razão por que acreditar numa existência improvável. Entre as declarações de Carvajal e de outros incautos, “confie o leitor” nas afirmações de sábios amparados pelo método científico, novos cruzados do “número”. Vê-se aqui como uma nova tradição de relatos procura firmar-se atraindo a credibilidade do público pelo valor de verdade que deduz do cuidadosamente experienciado, ao mesmo tempo que mostra seus adversários submetidos às maquinações da imaginação, às quimeras oriundas nos sentidos enganadores. Para essa tradição, a forma de obter informações deve ser metódica, seguir critérios tais como o da verificação do fato ou do testemunho respeitável para que nossa boa-fé suspenda a dúvida salvaguardadora de nossa confiança ingênua. A respeito das amazonas, como conseguir dados críveis se o inquérito dos índios constitui o pilar da fabulação? Na verdade, os índios falavam a esse respeito [das amazonas] de tal modo que, com alguma imaginação ativa, sem dificuldade poderia deduzir-se tudo que é necessário para apoiar a lenda. À pergunta: ‘Existem amazonas?’, a resposta deles, por via de regra, é Ipu, ‘parece que sim’. É, porém,

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a própria pergunta que já contém todas as qualidades atribuídas às amazonas, pois não há na língua geral termo próprio para significar ‘amazona’, de sorte que o índio só precisa responder na afirmativa ao seu modo, e já está pronta a lenda. Uma argumentação mais completa sobre este assunto merece, de resto, lugar entre as notas. (ibidem, p.111)

Reviravolta no papel da imaginação. Devemos supor que, no caso dos primeiros viajantes, ela desempenhara uma função passiva: impressionada por alguma semelhança enganosa, a fantasia daqueles foi deixada a agir e incorporou-se à realidade ilegitimamente. Todavia, podemos usar da imaginação de modo soberano e, por essa via, surpreender as circunstâncias históricas das quais o mito amazônico, ao cobrir de esquecimento sua origem, ganhara corpo. Presumamos uma índole indígena disposta a responder Ipu, uma pergunta buscando respostas sobre um objeto para o qual “não há na língua geral termo próprio para significar”, o que disso poderia resultar senão “tudo que é necessário para apoiar a lenda”. Uma pergunta capciosa dirigida à mente infantil dos índios e suportada por um código insuficiente para dar conta da tradução está na raiz da sobrevivência de uma tão resistente ilusão. Dessa, a imaginação, guiada pelo método investigativo, faz separarmo-nos para que voltemos ao reto “curso da narração” que cumpre empreender. Enquanto resíduo, deixemos para a margem, para as notas de rodapé, assunto de tão secundária ordem. Assim como Bates usou as notas marginais buscando garantir uma fronteira entre a ficção e a realidade, esse procedimento também pode ser encontrado em Spix & Martius. Numa nota intitulada “Sobre as Amazonas”, esses naturalistas retomam a viagem de Orellana como o ponto de partida da ficção que querem provar como tal. Primeiro, dizem, o capitão espanhol dialogou com o índio que o avisou tomasse cuidado com as mulheres guerreiras, as quais “chamava de cunhá-puiára e encontrou em 1542 no Rio Conuris, hoje Trombetas, entre homens mulheres combatentes” (Spix & Martius, 1981, p.134). Assim, o


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índio citado teria se referido a um costume comum entre certas tribos do Amazonas, e foi a relação de Acuña (1941) que acrescentou “ao simples fato todas as lendas, que desde aquela época têm sido tão repisadas”. Novamente, flagramos as cores berrantes da imaginação ancestral cobrirem a simplicidade do realmente acontecido. Para Spix & Martius, é provável que os índios apenas quisessem se referir à belicosidade de algumas nações que encontrariam a jusante, entre as quais as mulheres combateriam junto com homens. Explicação que, lembram, já Ribeiro Sampaio (1825) oferecia por meio do exemplo dos mundurucus. Ora, quando do enfrentamento no Trombetas da expedição de Orellana com tal fenômeno etnológico, a imaginação exacerbada se atravessou e “veio completar a fábula” (Spix & Martius, 1981, p.134). O processo de revisão crítica por vezes usa, porém, de pré-julgamentos tão condenáveis quanto aqueles que visa condenar. É o que se pode depreender das observações que fazem ainda Martius & Spix sobre a posição de La Condamine diante da lenda das amazonas. O astrônomo francês efetivamente se põe no mesmo caminho dessa nova tradição de relatos científicos que ele ajuda a inaugurar. Mas as explicações historicizadoras do mito que apresenta mostram-se insuficientes para os naturalistas bávaros. Para La Condamine a tribo das amazonas americanas não existe, mas teria existido. Elas se constituíram historicamente como um resultado da insurreição de índias cansadas dos maus-tratos impingidos pelos maridos. Essas resolveram fugir e formar comunidades exclusivamente de mulheres. Vê-se que para La Condamine também a fantasia dos silvícolas junto com a dos conquistadores encobriu a positividade numa lenda. Porém essa hipótese histórica é rejeitada por Spix & Martius (1981, p.134), posto que [...] do estado de escravidão das mulheres, no qual La Condamine vê um provável motivo para a instituição de uma república de mulheres, tanto menos posso deduzir este fenômeno, quanto sei que a dependência notória das mulheres ao homem se baseia justamente na sensualidade

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delas. Essa situação dá motivo a que muitas índias abandonem as suas hordas, talvez repudiadas por seus maridos, e, como hetairas livres, mudem de um bando para outro, onde são melhor acolhidas, por serem consideradas uma espécie de escravas e se submeterem a qualquer serviço da casa.

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Esse nobre prussiano, afora o contato com Humboldt, parece vir para a Amazônia motivado pela aura pedagógica que o romantismo deu ao significado da viagem na formação do indivíduo. Ele chega ao Rio de Janeiro em 1842, onde conhece o imperador D. Pedro II. Parte para a Amazônia, indo em direção às tribos selvagens do alto Xingu. Depois de dois meses viajando pela hinterlândia, retorna para a Prússia, onde publica em 1847 o relato dessa experiência.

Na concepção patriarcal de sociedade que Spix & Martius defendem não há lugar eminente nem possível para uma república de mulheres. Sofrer de excessiva afetação sensual, eis por que essas acabam escravas; sua fraqueza às provocações dos sentidos lhes priva do marido, da tribo, da liberdade. Elas erram na mata não por desejo de soberania, mas porque, não sendo dominadoras de suas paixões, só lhes resta depender dos homens, escravas que são da natureza. A ausência de crítica diante dos sentidos permite estabelecer uma distinção hierárquica pela qual a consciência alerta dos naturalistas predominará acima dos selvagens, mulheres e exploradores pioneiros na Amazônia, todos esses cativos das elucubrações sensoriais. De modo geral, a sensualidade é acusada porque se apresenta como um estágio inferior da investigação científica, sujeito às flutuações dos sentidos e, portanto, não abrigado do erro. É ela que fertiliza as quimeras humanas ao encobrir a natureza puramente fenomênica dos fatos. O príncipe Adalberto,7 que talvez seja um precursor do turismo ecológico amazônico, não deixava de reservar um espaço na igarité para as caixas de um naturalista, Dr. Lippold, que o acompanhava; disso concluía um “brilhante testemunho do [espaço] que de boa vontade e com todo o prazer queríamos reservar à ciência em nossa inocente expedição fluvial” (Adalberto, 1977, p.142). Ciência que o príncipe executa na verificação do que lhe rodeia, porque sabe que os sentidos confundem e tornam um fenômeno imperfeitamente percebido em acontecimento sobrenatural. Devíamos de alguma forma ser compensados da falta do maravilhoso, por algo extraordinário. Vimos com não pequena surpresa, subir de uma palmeira de folha em leque


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na margem direita, uma tênue coluna de fumo, que por muito tempo prendeu nossa atenção, e que observamos com tanta persistência através do óculo, que nossos braços ficaram dormentes, até descobrirmos que não era mais do que um enxame de insetos circulando no ar, por conseguinte um fenômeno por causa do qual não teríamos de atravessar a linha nem procurar o Rio Amazonas. (ibidem, p.149).

Só o apelo aos sentidos não é suficiente para estabelecer uma conclusão segura a respeito do extraordinário do fato observado. É necessário, para atingir a verdade do fato, agregar o instrumento do “óculo” que verifica a normalidade onde os sentidos produziram fantasias confusas. Um método de investigação bem constituído assegura-nos das falsas interpretações de nossas sensações, submetendo-as à análise de uma crítica intelectual, assegurada não pela negação dos sentidos, mas pelo seu aguçamento instrumentalizado.

Desinteresse e dominação 8

De outra perspectiva, todavia, esse suposto caminho evolucionário do intelecto, além de explicar a origem das superstições nas confusões sensuais, demonstra também o progresso da civilização ocidental em direção a uma racionalização que extrapola os campos da análise dos fatos, para permitir considerações sobre a superioridade racial. Agassiz (1975, p.148) lamenta a situação dos tapuios amazônicos, “cuja civilização não passa de esboço por esse modo de vida em que as sensações são extremamente fortes sem que nada desperte a inteligência”.8 A percepção científica filtraria as confusões e a fantasia dos sentidos conseguindo apreender o natural de modo puro. O maravilhoso para a perspectiva dessa nova tradição seria um luxo, uma produção humana acrescentada à natureza, mas que originariamente não lhe diria respeito; pelo contrário, acabaria por nos afastar da positividade dos fatos pela qual encaminhamo-nos às verdades científicas. Contudo, na defesa de produtividade do método científico insere-se simultanea-

Esse suíço trabalhou com Martius na descrição dos peixes colecionados após a morte prematura de Spix. Depois de alcançar renome científico com as idéias sobre o período da Idade Glacial, já residindo nos Estados Unidos, aproveita a boa receptividade de D. Pedro II às expedições científicas e viaja para o Brasil, financiada a excursão com o dinheiro de um amigo, em 1865. O percurso foi de Nova York ao Rio de Janeiro e dali ao Pará, de onde o naturalista se embrenhou pela hinterlândia; depois de deixar o Pará, foi até Recife, de onde retornou para os Estados Unidos. Além da equipe, Agassiz viajou com a esposa Elizabeth, com a qual divide a autoria do relato de suas experiências de trânsito.

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mente uma justificação da colonização e do poder empregado para tanto, na medida em que os índios devem ser tutelados em sua infância das sensações pela maturidade intelectual do Ocidente. Como homens de ciência, “sem nenhum outro objetivo de utilidade prática” (ibidem, p.168), como diz Agassiz, a avaliação de verdade dos naturalistas segundo a positividade dos fatos, desliza de seu aparente caráter neutro para legitimar uma desigualdade de forças. Ainda mais. É todo um modo de ser diante da natureza que se postula. Esvaziar a linguagem de expedientes próprios da “fantasia sonhadora” é uma medida que visa, em princípio, apreender “o aspecto natural, o único exato”, de qualquer fato que se demonstre à percepção do naturalista, mas que ultrapassa a suposta neutralidade intervindo no sistema de crenças nativas. Exemplar dessa intervenção é o significado que o boto possa assumir para Bates e para um tapuio. Numa cena muito comum nos relatos de viagem encontraremos esse naturalista nas proximidades de Ega participando de uma conversa à beira de uma fogueira, ouvindo narrativas contadas pelos locais cujo tema muito comumente é o sobrenatural. Dessas muitas “histórias fantásticas” que escuta, Bates refere-se naquele momento às transmutações que o boto poderia sofrer a fim de seduzir homens e mulheres para o mergulho fatal nas águas. Afirma não existir outro animal que mais “tenha dado origem a tantas lendas” e ainda acrescenta a suspeita de que essas tenham sido criadas não pelos índios, mas pelos portugueses. Essa significação extraordinária atribuída ao boto amazônico, enfim, torna-se um obstáculo às pesquisas do naturalista, as quais não visam particularmente senão ao lugar taxionômico que o cetáceo possa ocupar num todo que é a coleção, objetivo dessa viagem ilustrada: Levei vários anos para conseguir convencer um pescador a arpoar um delfim para minha coleção, pois ali ninguém mata esses animais voluntariamente, embora se afirme que o óleo que ele fornece é excelente para lampiões. As pessoas su-


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persticiosas acreditam que o uso desse óleo na iluminação provoca cegueira. (Bates, 1979, p.238)

Bates, enfim, consegue persuadir um tapuio endividado da região de Ega a matar um boto mediante um bom pagamento, ato de que o nativo amargamente se arrependeu, pois “sua sorte o [teria abandonado] a partir desse dia” (ibidem, p.239). Contraposta a uma perspectiva animista, a História Natural dá à natureza uma conotação de ordem sistêmica: seus elementos são destituídos de qualquer poder mágico para se dobrarem ao seu estado de coisa classificável, coisa utilizável. Há um confronto aqui que nos mostra o aspecto iconoclasta das Luzes: diante da ciência não há tabu que possa merecer seriedade, não há outra coisa que provoque cegueira senão o medo supersticioso. Para Bates não é o desejo de ampliar sua coleção, mas a crença no extraordinário que gera o azar do pescador. Na verdade, esse comportamento iconoclasta está fundado sobre uma certeza maior a respeito do valor de seus próprios atos de viajante-naturalista, representante de uma civilização superior que conseguiu ultrapassar a veneração mistificadora da natureza, subjugando-a, pela mediação do trabalho, às necessidades de autopreservação. AvéLallemant (1980, p.95) não esconde a pena que sente dos índios ao ver neles a ausência de qualquer cosmopolitismo: nunca saíram de seu pequeno mundo da maloca; por isso, quando o vapor subiu o Rio Amazonas pela primeira vez, os índios saíam correndo para o mato com medo da gigantesca serpente, do “monstro fumegando”. A chegada do navio a vapor também significaria, para Bates, um passo decisivo na civilização da Amazônia. Essa máquina de locomoção poderia parecer-lhe um símbolo da conquista de novos territórios, ou dos desdobramentos tecnológicos da ciência, ou da adequação da natureza – mediada pela ação emancipada – aos fins utilitários do homem. Mas, talvez, nada demonstraria mais o seu sentido civilizatório que o efeito provocado pelo vapor sobre os

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tapuios moradores das cercanias de Belém do Pará: com a sua chegada “eles começaram a abandonar aos poucos o lugar” (Bates, 1979, p.40). Nessa primeira referência que faz em seu relato sobre os índios semicivilizados, Bates oferece deles uma descrição principiada pelas mensurações antropométricas, segundo as quais o tapuio teria características comuns ao “pele-vermelha americano”. Descrevendo, em seguida, seus traços morais, o naturalista expõe o caráter apático, pouco demonstrativo da raça: “são taciturnos e parecem não sentir emoção alguma”, não se entusiasmar com nada que se lhes apresente, embora tenham laços afetivos principalmente com a família. Afora a hospitalidade com que recebe suas visitas, em [...] todos os seus atos, o índio demonstra que seu principal desejo é ser deixado em paz; ele tem apego a seu lar e à sua tranqüila e monótona vida na selva ou à beira do rio; gosta de ir aos arraiais de vez em quando para admirar as maravilhas produzidas pelo homem branco, mas sente horror ao viver no meio de muita gente. Prefere o trabalho artesanal à labuta nos campos, e lhe desagrada particularmente submeter-se a um trabalho assalariado. (ibidem, p. 40)

Diante de tal “inflexibilidade do caráter do indígena”, sua recusa a fazer parte dos valores universais da civilização européia, não resta outro caminho a eles senão “a sua extinção”, conclui Bates. Lentamente, os novos imigrantes vão tomando as terras deles, brancos e negros vão se misturando... e pouco se deve “lamentar o destino dessa raça”. Para Bates, a história mostra esse mesmo conflito em outros cantos do mundo aonde a expansão colonial chegou, posicionando antagonicamente colonos e autóctones, caso da Nova Zelândia e da África do Sul. É o percurso necessário para que a civilização vá “avançando pela região amazônica” (ibidem, p.40). O tapuio ou o índio recebe a pecha de indolente sucessivamente no relato de Bates, no que, aliás, ele faz eco a muitos viajantes ilustrados. Já Alexandre Rodrigues


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Ferreira, por exemplo, emite as seguintes opiniões negativas acerca da natureza paradisíaca da Amazônia, destacando seu efeito negativo na civilização dos índios efetuada sob a política do Diretório laico do Marquês de Pombal: Toda a paixão e saudade é pelo mato que deixaram; ali o apetite animal é a lei dos costumes, ali são naturalmente preguiçosos, porque o mato lhes subministra tudo o de que necessitam. A necessidade tem sido a mola mestra da indústria nos países cultos: eles, que a não receiam, nem amam a indústria nem a sujeição aos costumes, que são diversos dos seus. (Ferreira, 1972 p.154-5)

Tais críticas à economia extrativista e a defesa da agricultura e indústria são constantes na literatura de viagem amazônica. Para Spix & Martius (1981, p.26) são “as águas piscosas, o pedacinho de terreno fértil em volta da palhoça”, dádivas da natureza, que impedem o desenvolvimento total da civilização, “e o homem meio civilizado burla-se de uma vida cujas mais altas aspirações nunca conhecerá”. Avé-Lallemant (1980, p.148), por sua vez, sustenta que “o povo é pobre no meio da riqueza: merece, sem nenhuma compaixão ser pobre, porque não que trabalhar nem fazer esforço”; opinião que é compartilhada por Bates (1979, p.297), para quem a indolência e descuido “incorrigíveis do povo impedem que ele se acerque de todas as riquezas de uma região tropical”, acrescentando ainda como o trabalho e a técnica desenvolveriam “as melhores árvores frutíferas em torno da casa, como certamente fariam os inteligentes fazendeiros europeus”. O trabalho, esforço realizado pelo homem na adequação da natureza a suas necessidades, deixa de ter o valor negativo que lemos no Gênesis, castigo atribuído a um Adão e Eva pecadores, para ser o distintivo da superior civilização. Eis por que a natureza edênica da Amazônia celebrada nos relatos dos descobridores como Carvajal e Acuña se torna um problema, que dificulta a incorporação dos nativos ao projeto desenvolvimentista da região amazônica. Eles se contentam com o pouco que a nature-

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za lhes dá, julgando ser isso o Paraíso, quando, na verdade, só o trabalho propicia as condições edênicas. É nessa mesma chave que Wallace (1979, p.53) critica Tronqueiros, uma insólita “aldeia sem casas”, situada nas proximidades de Belém. Tratava-se de um acampamento feito para extrair borracha e fazer pequenas plantações durante o verão, pois, no período de chuvas, tudo ali era tomado pela inundação. Wallace vê crianças “nuas pela areia enquanto as mulheres e alguns homens repousavam nas redes”; canoas e espingardas jaziam ociosas e umas panelas de barro ardiam no fogo com o que seria a refeição. Tal estado de indolência causa admiração no naturalista, pois “as pessoas pareciam estar satisfeitas consigo mesmas, acreditando que tinham tudo o que alguém acaso possa desejar”. Habitado por preguiçosos, esse falso paraíso tão comum na Amazônia é objeto de críticas consecutivas de Wallace (1979, p.208) ao longo de seu relato, sempre contrapondo-lhe um outro Jardim, verdadeiro, produto do suor laborioso, da realização progressista: Quando fico pensando no quanto é fácil transformar esta floresta virgem em verdejantes campinas e produtivas plantações, exigindo-se para tanto uma concentração mínima de trabalhos e esforços, dá até vontade de reunir meia dúzia de amigos entusiasmados e diligentes e vir para cá tirar desta terra tudo aquilo que ela pode nos propiciar com fartura. Juntos, mostraríamos a gente do país como seria possível criar um verdadeiro paraíso terrestre a curto prazo, abrindo-lhes os olhos para uma realidade que eles então jamais conceberam que fosse capaz de existir.

A confiança nas possibilidades inúmeras da civilização para a domesticação de um ambiente agreste dá a Wallace o entusiasmo para moldar imaginariamente o futuro a modo de satisfação das necessidades coloniais. A selva se rende diante de tamanha força, inabalável no seu intuito de enquadrá-la ao jardim, de fazer do solo onde seu mistério se ergue o domínio das culturas comercializáveis.


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A mesma determinação confiante que não se apiedava do destino dos índios com a chegada da civilização à Amazônia imagina também o curso teleológico da subjugação total da natureza aos interesses de autopreservação do homem prático europeu. Mais particularmente, o sonho de Wallace enraíza-se na expansão imperialista da Inglaterra durante o século XIX, na fé em si mesma de uma sociedade que incorpora o valor das pesquisas científicas e a organização metódica dos aparelhos burocráticos de colonização. Mas essa valorização do trabalho transformador não se faz sem certas hesitações, vacilações que depõem, aqui e ali, contra a própria determinação do progresso ocidental encarnada no cientificismo dos naturalistas. Wallace, depois de incitar-se junto com amigos a “criar aqui um verdadeiro paraíso terrestre a curto prazo”, demonstra-se indeciso entre a “perspectiva da maravilhosa vida que aqui me aguardaria, livre das preocupações financeiras e dos aborrecimentos da civilização” e o retorno aos campos da Inglaterra, pois sua permanência significaria passar “a desfrutar aqui neste Rio Negro de uma vida repleta de tranqüilidade, fartura e paz...” (ibidem, p.210). Também é o mesmo Avé-Lallemant (1980, p.52), antes tão convicto da civilização que representa, que em outro momento indaga se não é ele que está na contramão da natureza, querendo obter por um suor “sujo e repelente” aquilo que esta generosamente ofertava. Menos ainda se deve admirar de que não trabalhem! E consigno aqui, com toda a seriedade, a pergunta. E para que haveriam de trabalhar? Arrotear e cultivar trechos da floresta, que lhes dá açaí, palmito, cocos, cacau, borracha e além disso caça saborosa? Perturbar o sossego, a paz, a tranqüila harmonia da Natureza com o bater do machado e o crepitar do fogo, para obterem alimentos inferiores e, ainda por cima, estranhos? Deverão eles, se lhes tiram a mata, seu primeiro elemento de vida, e a preguiça na selva, desistir ainda do segundo elemento de vida, o rio e o banho no mesmo? Deverão eles por mero entusiasmo pelo trabalho, tornar-se sujos e repelentes?

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Indagação que depõe contra a própria determinação de transformar a natureza, de edificar obras cujo valor civilizatório seria inquestionável, Avé-Lallemant manifesta a dúvida não do ilustrado diante das crenças nativas, mas de quem questiona a própria fé que anima sua perspectiva progressista, de quem lança dúvidas sobre os fins da ação transformadora da natureza. Flora Süssekind (1990), analisando nos relatos naturalistas essas mesmas aparições vazadas de auto-reflexão, percebe que elas são sintagmaticamente relegadas a um segundo plano pelo senso utilitário. A suspensão de um olhar voltado apenas para classificar o exterior, como conseqüência, dirige a atenção do narrador para si mesmo e sua relação essencial com a civilização que ele representa, como os casos acima ilustram. Mas, nota Süssekind (1990, p.110), essa interrupção é vencida pelo narrador não pelo aprofundamento da questão e a certificação da verdade de sua ação, mas simplesmente pelo abandono da dúvida, como faz, por exemplo, o mesmo Avé-Lallemant (1980, p.210), retornando à sua narrativa de bases positivistas, sem desdobrar a dúvida aberta, pois teme “deter meus leitores por longo tempo na floresta e no rio de Cametá com minudências. Terminemos, pois, com o lindo mundo das palmeiras!”. Mas o que há de tão perturbador na auto-reflexão para ser evitada, suspensa? Será que essas passagens onde os autóctones passam a não mais ser inferiormente descritos pela inutilidade que dão à Amazônia, deixando de se apresentar como o antípoda para ser o antídoto às obrigações civilizadas, essas passagens onde a auto-reflexão expõe uma subjetividade vacilante, será que elas não testemunhariam, como a manifestação de uma corrosão íntima, o conflito de diferentes perspectivas do narrador diante de atribuição de sentido, positivo ou negativo, ao curso do desenvolvimento antropológico culminado, não na mente esclarecida, mas na consciência reificada? Há um preço que se deve pagar, afirmam Adorno & Horkheimer (1985), quando o esclarecimento põe em dú-


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vida a honestidade dos mitos. Assim como a mente emancipada se ergue sobre a crítica dos mitos como antropomorfismos a que o homem venera com sua fé ingênua, a própria pretensão de verdade, de universalidade dos valores desta mente vai se mostrar, através da mesma auto-reflexão, um artigo de fé. Os conceitos universais sucumbem ante o processo autofágico da crítica esclarecida, que acaba por denunciar na perspectiva de neutralidade que os alimentaria, apenas uma perspectiva subterrânea, uma fé dissimulada: “A própria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda concepção teórica determinada acaba por fatalmente sucumbir a uma crítica arrasadora, à crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios conceitos de espírito, verdade e até mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia animista” (ibidem, p.26). Esse processo de autocorrosão é o resultado de uma condução da razão aos seus limites, aí onde ela se percebe tão antropomórfica quanto os mitos de que por isso ela duvidara. A iconoclastia do esclarecimento surpreendentemente volta-se contra a própria autoconfiança dele. Não vamos encontrar a auto-reflexão levada até sua crítica extrema da neutralidade da razão ou do sentido positivo da civilização no relato de Wallace: ela é suspensa antes que qualquer catástrofe possa ocorrer. Contudo, como vimos antes, a desconfiança do próprio papel civilizador não deixa de ser uma posição assumida, mesmo que de passagem, pelo narrador ilustrado da literatura de viagem. Quando isso acontece, é possível perceber a emergência relativa de uma subjetividade romântica na narração. Na esteira do processo de reificação da natureza, em contraposição ao enfoque anterior dado pela revisão crítica dos mitos presentes nas narrativas de descobrimento e no pensamento animista dos índios, o modo romântico aparece como nostalgia de uma fé, ou estágio natural já não mais possível, interditado pelo próprio processo crítico do esclarecimento.

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SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

As representações de Adolphe D’Assier da gente e da terra brasileiras publicadas na Revue des Deux Mondes

WALLACE, Alfred. Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979.

Katia Aily Franco de Camargo*

RESUMO: O objetivo do presente artigo é apresentar as imagens da gente e da terra brasileiras elaboradas pelo publicista francês Adolphe d’Assier em seus artigos sobre nosso país publicados no afamado periódico parisiense Revue des Deux Mondes ao longo do século XIX. PALAVRAS-CHAVE:

Adolphe d’Assier, viagem, Revue des Deux

Mondes. ABSTRACT:

This article has for objective to present the images of Brazil created by a French publicist called Adolphe d’Assier, which were published, throughout the 19th century, by the famous Parisian magazine Revue des Deux Mondes.

KEYWORDS:

* Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 1

Em várias passagens de seus artigos sobre o Brasil, publicados na Revue des Deux Mondes, diz ter realizado sua viagem em companhia do publicista e político francês Charles Ribeyrolles.

Adolphe d’Assier, journey, Revue des Deux Mondes.

Há poucas informações sobre Adolphe d’Assier, viajante e filólogo francês nascido na cidade de Labastidede-Sérou, pertencente ao Departamento de Ariège, próximo ao Pirineus, em 1828. Sabe-se somente que foi membro da Academia de Ciências de Bordeaux, que dirigiu a Revue d’Aquitaine e o jornal La Patrie en Danger. Uma paralisia do nervo óptico o obrigou a diminuir o ritmo de trabalho, não impedindo, no entanto, que desse continuidade a seus escritos, ditando suas últimas obras. Desconhecem-se também as razões que o levaram a empreender uma peregrinação de dois anos (1858-1869) ao Brasil.1 Mas sabe-se que suas viagens lhe renderam vários artigos na Revue des Deux Mondes, revista francesa fundada em 1829 por Prosper Mauroy e Ségur-Dupeyron, a saber: “Le Brésil et la société brésilienne, moeurs et paysages. I. Le rancho”; “II. La fazenda”; “III. La cidade”; “Le


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mato virgem. Scènes et souvenirs d’un voyage au Brésil”; “L’Eldorado brésilien et la Serra–das-Esmeraldas”.2 Dessa forma, Adolphe d’Assier é o publicista que mais escreveu, durante o século XIX, nas páginas da Revue des Deux Mondes, sobre o Brasil. Diferentemente dos demais autores que publicaram sobre nosso país nesse periódico ao longo do século XIX, dentre os quais estão Ferdinand Denis, Auguste de SaintHilaire, Théodore Lacordaire, Comte de Suzannet, Paul Grimblot, Francis de Castelnau, Emile Adêt, João Manuel Pereira da Silva, Elisée Reclus, d’Assier dá, em seus escritos, maior ênfase à população, procurando situá-la nos diferentes nichos do território brasileiro: o rancho, a fazenda, a cidade, a mata virgem e o Eldorado. Em seu primeiro artigo, “Le Brésil et la société brésilienne, moeurs et paysages. I. Le rancho”, publicado em 1863, inicia versando sobre o desconhecimento quase total do interior do Brasil, apesar das incursões aí realizadas. Declara também, nesse momento, seus objetivos: traçar o perfil da sociedade do interior, a começar pelos membros que a compõem e formam a base do Império brasileiro, para que, dessa maneira, o leitor possa ter subsídios para apreciar e compreender as demais regiões. [...] falta traçar um quadro fiel da vida social no interior do Brasil, mostrando o estágio em que se encontra, nas diversas partes desse império, o trabalho da civilização. Pode ser que uma estadia de vários anos nesse país nos dê algum direito de tentarmos realizar essa tarefa. Teria que se abarcar no mesmo quadro o conjunto da sociedade créole, desde o rico fazendeiro até o humilde feitor, e, sobretudo, reproduzir a exata fisionomia de cada um dos tipos que a representam, mas essa sociedade, filha da conquista, está fundamentada na escravidão: o branco repeliu o índio e mantém sob o chicote o negro curvado para a terra. Antes, portanto, de estudar a fazenda (grande propriedade rural) e, na cidade, as forças industriais e políticas da nação, é necessário conhecer as raças deserdadas, o índio, o negro, o homem de cor, e é principalmente no rancho que podemos observá-las. O ran-

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Outros artigos que publicou na Revue são: “Les inondations du bassin de la Garonne, les causes et les remèdes du débordement des rivières”, out. 1875; “L’Évolution historique des peuples”, set. 1876.

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As traduções dos textos de Adolphe d’Assier apresentados ao longo deste artigo são de nossa responsabilidade. Gostaríamos de salientar que foi nosso objetivo manter as ressalvas do autor, optamos, para tanto, por manter seus grifos presentes nas citações elencadas.

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cho é uma cabana de palha que abriga o índio na floresta, é também o galpão mais solidamente construído, mas completamente aberto, onde param, com seus animais, as caravanas de homens de cor e de negros que transportam as mercadorias da costa ao interior; é, em uma palavra, o asilo das populações errantes ou escravas, que são o objeto deste primeiro estudo. (D’Assier, 1863(I), p.554-5)3

No rancho, portanto, o autor dá início à sua análise etnográfica. Como era filólogo, d’Assier faz uso de seus conhecimentos para julgar o estágio de civilização e o caráter do aborígine: A idéia de Buffon: “o estilo é o homem”, talvez nunca tenha sido aplicada com tamanha justeza como no disforme idioma dos botocudos. [...] A análise de suas palavras revela, da maneira mais clara, a infância de seu estágio social. Se mostras a eles um bastão, eles te respondem tchoon (árvore). Para eles, um bastão nada é senão um tronco de árvore sem galhos. Se, em seguida, perguntas o nome de uma viga, eles te respondem novamente tchoon, de um galho, um pedaço de madeira, uma estaca etc., sempre tchoon. A palavra po designa, ao mesmo tempo, dependendo da ocasião, mão, pé, dedos, falanges, unhas, calcanhar, dedos do pé. A animalidade, que parece ser seu único código, manifesta-se, sobretudo, nas palavras compostas. Se quiserem falar de um homem frugal, eles dirão couang-é-mah (ventre vazio); da noite, tarou-té-tou (tempo da fome), pois tão glutões quanto despreocupados, são incapazes de guardar qualquer provisão, e são obrigados, durante a noite, a esperar, com impaciência, a volta do dia para satisfazerem às exigências de um estômago insaciado. Na maioria dos povos, ao menos nas nações ocidentais, a noção do correto precedeu a do incorreto, como indica a composição desta última palavra em diversas línguas, in-juste, un-gerecht, in-iguus, a-dikos etc. Nos botocudos acontece sempre o contrário: o estado normal é o ladrão, nyinkêck. Um homem honesto será, conseqüentemente, uma não-ladrão (nyinkêck-amnoup). O mesmo acontece com a mentira (iapaouin), sendo o hábito, a regra, a verdade tornar-se-á iapaouin-amnoup (uma não-mentira). (ibidem, p.563-4)


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Ao descrever o indígena, não poderia deixar de lado a mulher, pois, assim como mencionaram autores que o antecederam, ela é responsável por grande parte do trabalho de sua tribo, ficando aos homens a caça, a pesca e a confecção de armamentos.

açúcar ou de café, atrofia não somente sua inteligência, mas também todos os nobres instintos da natureza humana, deixando espaço unicamente aos maus hábitos. É aí que se encontra grande parte do segredo da inferioridade daqueles que se dizem “filhos de Cam”. (ibidem, p.571-2)

Compreende-se, sem dificuldade, que após uma escravidão tão degradante e penosa, a índia, desconhecendo aquilo que desenvolve as qualidades da mulher, tenha permanecido o que era quando saiu da forma da natureza; deformada pelo trabalho, desfigurada pelos maus tratos, pertencente à vida somente pelo lado, ela inspira repugnância àquele que a vê pela primeira vez. Observa seus olhos, surpreenderás o olhar oblíquo e temeroso do animal selvagem, e nada desse mágico raio revelador da inteligência. O sentimento de sua inferioridade a faz fugir e se esconder do estrangeiro. Na velhice, sua pele sulcada por todos os lados pelas rugas, curtida pelo sol, enegrecida, marcada pela idade, os golpes, o sol, o cansaço, lhe dão o aspecto de uma velha cabeça de orangotango, hedionda e careteira sob uma longa peruca negra. (ibidem, p.564-5)

Aquele que deseja conhecer todos os elementos formadores da população brasileira deve, no entanto, observar os homens de cor, que parecem ter retirado da miscigenação todo o vigor que reclama, para se desenvolver, a natureza tropical. Desse cruzamento vário, o autor enumera três raças: o mameluco, o mulato e o caboclo. Dentre elas, a primeira é a que apresenta a fisionomia mais estranha, resultado da junção do branco conquistador com a índia. Sua principal característica é a habilidade na montaria. O mulato, por sua vez, filho do europeu com a negra africana, é, em geral, livre, sendo requerido, no entanto, a todas aquelas funções que são consideradas muito severas para o índio indolente, muito sofisticadas para a inteligência atrofiada do negro escravo e muito servil para a dignidade do branco. O caboclo, último grupo das pessoas de cor, é o resultado da mistura de duas raças, igualmente perdedoras e degredadas, o negro e o índio. Em geral, é utilizado no trabalho doméstico e também como simples empregado. Nesse sentido, vê-se que não é possível colonizar o Brasil sem a introdução do sangue europeu, portador da força de trabalho, de bons costumes e da civilização.

O negro, por sua vez, seria, em alguns aspectos, mais desenvolvido que o índio, não fosse pela escravidão. O trabalho monótono, rotineiro nas grandes plantações de café e de cana-de-açúcar lhe atrofia o cérebro, e lhe inculca vícios morais. Os negros da costa da Minas reproduzem, salvo pela cor, o tipo caucasiano: fronte elevada, nariz reto, boca regular, rosto oval, formas atléticas, tudo neles revela uma natureza forte e inteligente; somente o olho e o lábio traem a sensualidade que a constituição anatômica parece impor a todo o grupo etíope. Os indivíduos dessa raça que gozam da liberdade dão, a cada dia, provas inequívocas de sua aptidão superior. [...] Infelizmente, ao lado dessas raças privilegiadas, encontram-se certas tribos deserdadas, que parecem se aproximar tanto da besta quanto do homem, e conduzem, por níveis insensíveis, ao homem macaco da Oceania. Por outro lado, a escravidão, apoderando-se do negro desde sua infância para fazer dele uma máquina de

O índio, como já vimos, se refugia cada vez mais nas florestas seculares, devido à raiva que sente pela civilização que lhe trouxe somente coisas ruins. O negro sucumbe ao castigo, existência esmagada sob as engrenagens desta implacável máquina que se chama produção. O caboclo, produto híbrido das tribos selvagens, herdou, das duas raças, somente a indolência e a inaptidão ao trabalho ativo e fecundo. Sobram, então, o mameluco e o mulato, que herdaram do sangue português alguns genes da atividade febril que transformou seus ancestrais em celebridades nos anais da navegação. Infelizmente, eles estão longe de serem sufi-


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cientes à obra. O dogma do far niente, importado pelos seus pais, alia-se muito bem ao clima doce, a riqueza do solo, e sua natureza indolente e sensual acomoda-se muito bem a ele, transformando-o em sua única lei. Por outro lado, de que lhes serviria o trabalho sem ter a quem vender, sem estradas, sem indústrias? Os mais corajosos, a saber, os moradores da região do rio da Prata, conhecem unicamente os cavalos e o gado. Um rancho e alguns pastos lhes são suficientes. Seus irmãos do Pará, debilitados pela quente atmosfera que os envolve, não se distinguem muito do indígena. Passam o tempo dormindo ou se banhando no rio. Não é senão pela introdução ininterrupta de sangue europeu, pela reabilitação do trabalho operando-se nas idéias e costumes, enfim, pela ação estimulante que as estradas de ferro exercem por toda parte onde passam, que a civilização continuará suas conquistas e tomará posse desses imensos espaços ainda abandonados às forças da natureza. Somente nessas novas condições, o homem de cor poderá desempenhar um papel útil e facilitar o progresso da colonização. (ibidem, p.579)

Passar, portanto, do rancho para a fazenda é adentrar diretamente no seio da vida créole, após ter atravessado as misérias da vida selvagem. No entanto, aquele que deseja conhecer a fundo os costumes brasileiros não deve se deixar amedrontar pelos caminhos tortuosos a serem percorridos até se chegar a uma fazenda. Mas o que é uma fazenda? É uma ampla extensão de terreno plantada com cana-deaçúcar ou pés de café, e cujo centro é ocupado por um grande retângulo de edificações brancas. O lado reservado ao dono, o senhor, possui uma arquitetura regular e uma escadaria externa. O vigamento que sustenta o teto estende-se alguns pés para além da parede, formando, do lado norte, uma varanda que permite ao fazendeiro ver, ao abrigo do sol e da chuva, tudo o que acontece nesse vasto recinto. É aí que se vem respirar o perfume matinal ou as brisas mornas do fim da tarde. Dois ou três negrinhos brincando com um macaco domesticado e algumas fêmeas de papagaio falantes com penas azuis animam esse peristilo

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com seus pulos e gritos. Em face, se estende uma série de grandes salas destinadas a armazenar a colheita. Em um dos cantos se encontram os cilindros que moem a cana ou os pilões que descascam os grãos. Todas essas máquinas são acionadas por uma grande roda de madeira que uma queda d’água faz girar. Os dois outros lados do quadrilátero, construídos em argila, contêm as cabanas dos negros e dos feitores. O imenso pátio que ocupa o centro serve de terreiro para secar o café, o milheto, o algodão etc. Entrase aí por duas portas de madeira que separam a habitação do dono das dos escravos. Os entrepostos e o pavilhão do senhor são os únicos a possuírem soalhos, erguidos a alguns pés acima do solo, como precaução às inundações do solstício. Todas essas construções são térreas: a alta temperatura do país explica facilmente a aversão dos créoles pelos andares superiores. Atrás da fazenda e a alguma distância, encontra-se, conforme a disposição dos lugares, o rancho, o jardim, a enfermaria, e os diversos currais destinados aos bois, cabras e porcos. [...] depois, aqui e lá, no meio dos bosques, pastos ou à beira dos caminhos, se vêem, encostadas em uma árvore, as cabanas dos agregados [...] Ao redor da fazenda se estendem um espaço de várias léguas quadradas, os pés de café, os pastos, os campos de cana ou de algodão, e, enfim, na periferia, amplas áreas ainda não exploradas de floresta virgem... (D’Assier, 1863(II), p.753-5)

Percebe-se que a fazenda se constitui como um pequeno feudo. A agricultura aí desenvolvida depende exclusivamente da coivara. Coloca-se fogo na área que se pretende plantar, dessa forma eliminam-se as árvores e as cinzas formam um adubo de grande fertilidade: “É, por assim dizer, a quinta-essência do terreno preparado pela lenta elaboração dos séculos e devolvida ao reservatório comum” (D’Assier, 1863(II), p.756). Dos produtos que se colhem nas plantações, e também na natureza, os brasileiros fazem sua alimentação. Os estrangeiros sempre comentam, com repugnância, as re-


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feições dos brasileiros, sem variedade, minguada e insalubre, pois são feitas pelas mãos sujas dos negros. Para completar a descrição da fazenda, D’Assier versa sobre algumas figuras originais, tais como: o padre, o médico, o mascate, o muladeiro e o caçador de formigas. O padre é o capelão da região. Vestido como homem do povo, ele dança, fuma, joga (um dos grandes vícios entre os homens no Brasil) e conversa como qualquer outra pessoa. Muitas vezes, por falta de dinheiro, o padre dedica-se a pequenos negócios. Esse desvio do clero já fora inúmeras vezes apontado por outros publicistas da Revue des Deux Mondes, como Ferdinand Denis, Saint-Hilaire e Émile Adêt. O médico-doutor, mais importante aos olhos do fazendeiro que o padre, apesar de sua grande devoção, encarrega-se de cuidar do negro doente. O mascate, por sua vez, aprovisiona o senhor com mercadorias de luxo, a preços exorbitantes. Aproveitador, ele usufrui da boníssima hospitalidade dos brasileiros para se enriquecer. A hospitalidade, portanto, constitui um marco para o estrangeiro que vem conhecer o território brasileiro: A partir do momento em que um desconhecido chega em frente da habitação, um negro lhe indica o rancho para sua montaria e o conduz, em seguida, ao setor da casa onde estão localizados os quartos dos viajantes. Na hora do jantar, ele vem se sentar à mesa com o senhor, participa da conversa, caso esta lhe desperte o interesse, e se retira quando lhe convém. No dia seguinte, parte imediatamente após o café da manhã, para chegar à fazenda vizinha antes do anoitecer. Caso se sinta cansado, pode permanecer aí vários dias. Ninguém se preocupará sequer em lhe perguntar o nome. É a hospitalidade antiga em toda a sua simplicidade e grandeza. Várias fazendas são renomadas pela magnificência de seu acolhimento... (ibidem, p.778)

Para além do interesse do autor no caçador de formigas está sua curiosidade no formigueiro, retrato espetacular daquilo que deveria ser a sociedade brasileira:

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A formiga dos trópicos não se parece com os tímidos insetos de nossas regiões frias, que fogem do homem, contentando-se com um tronco de árvore ou uma pedra para aí construírem seus ninhos, e privando, no máximo, de alguns grãos as galinhas da fazenda. É um povo [grifo nosso] audacioso, confiante em sua força, sua inteligência, e que sabe cavar túneis inacessíveis. Antes da chegada do branco, a formiga era a verdadeira rainha da floresta. Os seres selvagens que representavam, então, a humanidade nessa região, possuíam antes um vago instinto de agrupamento que um verdadeiro espírito de associação. A idéia de solidariedade e de trabalho, por exemplo, lhes era completamente alheia. Um prisioneiro era, para eles, somente uma vítima condenada a servir de festim. A formiga soube cedo elevar-se a noções superiores. Ainda hoje, ela continua sendo, no Brasil, uma das expressões mais perfeitas dessas leis estranhas que introduzem no mundo da natureza, sob a forma do instinto, certos princípios do mundo moral. A habitação da formiga brasileira é uma cidadela fechada de todos os lados, se comunicando com o exterior somente por saídas secretas. Se existirem alguns pulgões pela vizinhança, ela os caça, transporta-os para perto de sua casa, e forma, dessa maneira, uma espécie de criação cativa. Uma distribuição regular de folhas frescas basta para tornar o cativeiro suportável, e, a partir desse momento, não é necessário se preocupar com nenhuma tentativa de fuga. Certas espécies de formigas, propensas ao far niente, se lançam a razias sobre raças mais fracas, apoderando-se de seus ovos. As larvas que nascem tornam-se escravas. Esses hilotas de mandíbulas aceitam sua sorte e fazem o serviço do formigueiro aristocrático. É uma verdadeira fazenda subterrânea, fundamentada igualmente sobre a servidão, mas sem chicote e sem feitor. (ibidem, p.781)

Adolphe d’Assier considera o formiga como povo, organizado, forte e inteligente, construtor de fortalezas e não de meras choupanas, trabalhador, que pensa no dia de amanhã, mas sabe explorar o trabalho alheio quando lhe convém. Enfim, a verdadeira formiga de La Fontaine. O brasileiro deveria observá-la e dela viria o exemplo de organização de sua sociedade.


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O que acontecerá, porém, com as fazendas se o Brasil adentrar a via do progresso? D’Assier aponta para duas saídas: a primeira seria a substituição do trabalho do escravo africano pelo do índio assalariado; dessa maneira, as grandes plantações manteriam suas características, com exceção do negro; a segunda, os fazendeiros abandonariam suas terras em favor dos colonos em troca de uma renda anual, o que acabaria por dividir a grande plantação em pequenas propriedades. De acordo com o autor, esta última é a que traria maiores benefícios aos brasileiros. A cidade, diferentemente do rancho e da fazenda, não mostra ao viajante a sociedade brasileira em seu passado, nessa espécie de luta entre civilização e selvageria, do qual o interior do império é o principal cenário. Nela, os contrastes se multiplicam, mas é a atividade européia que é possível perceber, ora se sobrepondo ora se pospondo às influências locais. O mundo que se abre ao leitor do terceiro artigo de Adolphe d’Assier, “La cidade”, não lhe é totalmente desconhecido, pois o desenvolvimento das cidades trouxe consigo novas necessidades, novos costumes, aproximando-se, dessa maneira, do antigo continente. As cidades das quais fala o publicista são: Pernambuco, a qual lhe chama a atenção principalmente pela falta de higiene; a Bahia, a mais portuguesa de todas; e o Rio de Janeiro, parada obrigatória. Primeira parada, Pernambuco: Assim que desembarcas, te lanças pela cidade com a ansiedade febril de um homem que não quer perder nada do espetáculo em que sonhou durante muito tempo. Aqui começam as decepções: o quadro de eterno verde que admiravas antes de chegar à cidade desaparece de repente para dar lugar a um sol de fogo. Ruas repletas de negros e eflúvios amoniacais tomam conta dos olhos e do olfato. Lembras, então, que estás pisando sobre uma terra onde o trabalho livre é proscrito como desonroso... (D’Assier, 1863(III), p.66)

Chegado à cidade, portanto, o viajante, ansioso por ver as paisagens paradisíacas tão comumente descritas pelos

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europeus, desaponta-se, pois o calor e o mau cheiro são sufocantes. Sem contar o desfile dos negros escravos. Mais curioso, talvez, é um outro “negro”, mão-de-obra tão essencial quanto a primeira e infinitamente mais barata, que ajuda a manter a cidade um pouco menos insalubre: O negro não é o único a excitar teu espanto: se passeias pelo porto, logo encontrarás outra personagem que não deixa de ter alguma analogia de maneiras e de cor com o hilota africano, e que não chamará menos sua atenção: é o urubu. O país venera, nesse pássaro, o instrumento visível de Santo Antônio, patrono da higiene pública, e muitos chegam a colocar o tenente acima do chefe. Nessa terra de Deus, como a denominam os brasileiros, o homem, quero dizer o branco, não tem nada por fazer a não ser cruzar os braços, pois tudo lhe cai do céu. Qual seria a utilidade de se criar corporações de cantoneiros e coveiros? O urubu já faz todo o serviço e sem nenhum custo. Mas o que é o urubu? É um bípede de asas pertencente à família dos abutres, coragyps urubu, maior que um corvo, um pouco depenado, negro, fedorento, verminoso. Suas funções municipais o tornam tão sagrado aos brasileiros quanto o íbis ou o icnêumone fora, outrora, aos egípcios. O que acontece em Pernambuco ou no Rio de Janeiro explica perfeitamente aquilo que acontecia em Tebas e em Mênfis. Todo animal que destruía os gafanhotos ou os ovos de crocodilo, as duas pestes do Egito, tornava-se estimado, acariciado, atenciosamente cuidado: era um salvador, um deus. Fortuna semelhante recebeu o urubu. Toda vez que atravessamos uma rua ou um caminho no Brasil, logo somos sufocados por emanações pestilentas. Logo vemos um negro esquadrão alado, voando em torno de uma mula em putrefação. São os agentes da salubridade pública em ação. [...] Sem gritos e brigas, tudo acontece na mais perfeita ordem, como convém a uma tropa disciplinada; uma vez devorada a carniça, para limpar a atmosfera dos vermes e da putrefação que os envolve, o sol e algumas batidas de asas são o bastante, e eles saem para fazer a sesta ou continuar sua refeição em outro local, caso a primeira não lhes tenha parecido suficiente. (ibidem, p.67)


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Sem se apegar muito à Bahia, nossa próxima parada passa a ser o Rio de Janeiro: Eu havia escutado muitos elogios sobre a beleza imponente da enseada do Rio de Janeiro; mas, habituado por uma longa experiência a encontrar, em geral, a realidade em perfeito contraste com os pomposos relatos dos viajantes, eu contava pouco com o maravilhoso espetáculo que me prometiam de todas as partes. Eu entrava, enfim, nessa enseada em uma dessas manhãs cintilantes dos trópicos, e, talvez pela primeira vez, eu me deparava com um quadro acima da descrição, tamanha é a impossibilidade de que os exageros humanos lutem contra os exageros da natureza. Imaginem uma imensa bacia cercada por montanhas graníticas cobertas pela mais rica vegetação que seja possível ao homem sonhar, e ter-se-á uma leve idéia da enseada do Rio de Janeiro. É necessário dizer, no entanto, que existe uma outra enseada mais bonita, maior e mais majestosa, a de São Francisco. (ibidem, p.81)

Um recurso bastante utilizado pelo autor é a comparação com os Estados Unidos da América. No trecho citado, há menção à baía de São Francisco como ainda mais bela que a do Rio de Janeiro. Em outras passagens, no entanto, D’Assier, para vislumbrar uma saída aos problemas do Império e animar os brasileiros, ressalta, com freqüência, que os ianques já passaram por situação análoga, superando-a com grande destreza. Um dos instrumentos utilizados pelos europeus para medir o estágio de civilização de uma determinada região é verificar o seu desenvolvimento arquitetônico e monumental. Por várias vezes, mas sem grande ênfase, os publicistas da Revue des Deux Mondes, por exemplo, o Comte de Suzannet, criticavam o mau gosto das moradas e dos edifícios públicos brasileiros, destacando, no entanto, a construção do Aqueduto da carioca e do Jardim Botânico. Voltemos a D’Assier: A cidade [Rio de Janeiro] não oferece alguns desses aspectos que podem fazer que o viajante se esqueça do novo país

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em que se encontra e lembrá-lo das riquezas monumentais de algumas cidades da Europa? Vemos, é verdade, poucos monumentos nas cidades brasileiras. [...] No entanto, notamos, no Rio, um aqueduto que poderia figurar ao lado daqueles que os romanos nos legaram, e um hospital que não estaria deslocado em Londres ou em Paris. Outros dois estabelecimentos também merecem nossa atenção: o Museu de História Natural e o Jardim Botânico. Muitas capitais da Europa gostariam de ter um museu como esse e, no entanto, ele está longe de responder às riquezas do país e à curiosidade dos estrangeiros... (ibidem, p.84-5)

Ao tratar da sede da corte, Adolphe d’Assier não podia deixar de falar sobre as qualidades do imperador Dom Pedro II: É um homem alto e muito bonito. Alemão por parte de mãe, uma arquiduquesa da Áustria, ele não tem nada em sua fisionomia que lembre sua origem portuguesa: feições, ombros largos, modo de andar, tudo anunciava uma natureza germânica. A fronte larga e alta acusa uma grande inteligência; o olhar límpido, uma alma sincera e honesta. Seus gostos são de um sábio: uma biblioteca latina, que ele enriquece, todos os dias, com as melhores obras francesas, inglesas e alemãs, é sua principal e melhor distração. As ciências lhe são tão familiares quanto as letras. Todos os estrangeiros que o freqüentam são unânimes em reconhecer suas notáveis aptidões e sua real superioridade intelectual. É necessário salientar que, na Europa, não são, em geral, os príncipes que se colocam à frente do progresso. No Novo Mundo, se estoura uma revolução, é por que aquele que governa quer andar muito rápido, e o país se recusa a segui-lo. (ibidem, p.85-6)

Uma vez percorridos as cidades, os ranchos e as fazendas, D’Assier questiona-se sobre os resultados da colonização portuguesa e se vê impossibilitado de elogiar a península austral do Novo Mundo quando comparada à América do Norte. A lembrança dos caminhos percorridos a lombo de burro, as intempéries, os milhares de insetos lhe são penosos, ainda mais se pensar nas railways que


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ziguezagueiam os Estados Unidos. De um lado, a atividade humana no seu mais alto limite, de outro, a preguiça mais absoluta. Qual seria a causa dessa diferença? De acordo com o autor, o fato se deve, exatamente, à colonização portuguesa, pois o gênio desse povo constitui-se da mistura do fatalismo árabe com a aridez ibérica, própria à epopéia, mas avessa à ciência e ao trabalho. Mas, segundo D’Assier, há esperanças para o Brasil. Por mais lenta que seja a ação dos séculos sobre as revoluções humanas, já se pode pressentir as transformações que o tempo realizará nesse país. Somente duas coisas lhe faltam: o impulso da ciência e uma nova infusão de sangue europeu. Concluído, portanto, esse primeiro percurso, Adolphe d’Assier volta, de certa forma, no tempo, e procura trazer ao leitor imagens da mata virgem, publicando, em 1864, “Le mato virgem. Scènes et souvenirs d’un voyage au Brésil”. Não que as paisagens tropicais estivessem ausentes em seus artigos anteriores, mas agora ela é a temática principal. Sua preocupação é em esclarecer a função desempenhada pela floresta no desenvolvimento do Brasil. A natureza selvagem das florestas virgens se apagará, um dia, face ao trabalho ininterrupto da civilização, ou está ela eternamente destinada a sufocar sob seus bárbaros abraços todos os esforços da atividade humana? Esse solo, que pisava impunemente o índio, reserva a vida ou a morte às fortes raças que gostariam de fecundá-lo? Sem responder todos os pontos dessas complexas questões, que compete unicamente à experiência resolver, algumas lembranças das incursões pelo mato virgem poderão, ao menos, dar uma nova explicação a alguns aspectos do assunto. A melhor maneira de fazer compreender a importância do problema assim colocado, é mostrar a floresta virgem tal qual a estudei sob seus diversos aspectos, isto é, nas influências que recebe do céu, e transmite, por sua vez, aos inumeráveis seres vivos que nascem e morrem em seu seio. (D’Assier, 1864a, p.548-9)

A floresta tropical é responsável, juntamente com o negro escravo, pela indolência do brasileiro, pois ela lhe

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fornece de tudo e, zelosa de sua riqueza, dificulta todo esforço humano destinado a domá-la. Quem sairá vencedor desse duelo, o homem ou a força cega e brutal da natureza? Todas as necessidades imediatas do homem, até mesmo vários produtos manufaturados, parecem brotar espontaneamente do solo: pão, leite, manteiga, frutas, perfumes, venenos, cordas, até louças, tudo se encontra desordenado na floresta virgem. Talvez seja nessa riqueza que se deve procurar o segredo da inferioridade das tribos do deserto. É necessário se entregar ao trabalho incessante da civilização, uma vez que a natureza se mostra tão amável e tão pródiga? Perguntes antes ao índio. Deseja ele uma moradia: alguns instantes lhe bastam para construir uma cabana ao pé de um ipiriba; as folhas lhe servem como leito, os galhos como guarda-sol; ele encontra nos frutos um excelente alimento, e na casca um remédio contra a febre. A madeira, tão dura quanto o ferro, lhe fornece um cacete para os combates ou instrumentos de agricultura. Se, cansado da vida sedentária, decide correr os rios e se dedicar à pesca, basta pôr a baixo sua morada e cavá-la com fogo: sua cabana se transforma em um canoa. Com a base do bambu, constrói apetrechos de cozinha e uma mobília completa [...] as folhas tecidas dão roupas para sua mulher, a madeira serve para suas flechas [...]. A mesma árvore torna-se, de acordo com a necessidade, arsenal, vestimenta, restaurante e farmácia. (ibidem, p.559)

A corrida ao Eldorado foi outra das atrações proporcionadas pela natureza. Em busca de riquezas minerais, os exploradores vorazes arruinaram regiões inteiras, mas, por outro lado, se não fossem por eles, talvez essas paragens continuassem desconhecidas. [...] é, de início, o caos de uma sociedade bárbara agitando-se no meio das convulsões da febre, tendo um único objetivo, a fortuna, um único código, a lei do mais forte. As terras tumultuadas, tornando toda agricultura impossível, os negros e os índios morrendo aos milhares, os próprios conquistadores abandonando os combates de extermínio para disputarem algumas pepitas de ouro, tais são os pri-


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meiros anais da época aurífera. No entanto, as cidades se formam, a ordem começa a aparecer; com a calma e a abastança virá o progresso. Desde então, podemos apreciar os resultados, e não vemos mais que um episódio comum da vida dos povos que transformou em motores úteis essas forças maléficas ou perdidas. [...] O Eldorado e a Serra-dasEsmeraldas foram, se assim podemos dizer, duas válvulas de escape oferecidas pelo Novo Mundo à superabundância do velho. Os soldados tornam-se trabalhadores. Os próprios mamelucos, de natureza ainda selvagem e turbulenta, abandonaram, por um momento, a caça ao homem e a vida errante para formar estabelecimentos fixos. Cidades tomaram o lugar das cabanas indígenas, a floresta recuou face à civilização. Com o trabalho veio a abastança, e com a abastança a ordem; a ordem e o bem-estar chamaram a instrução. De todos esses elementos aos quais se somaram os cruzamentos de raças, devia sair esta vigorosa e inteligente população que os viajantes observam ao entrarem na província de Minas, e que contrasta fortemente com os habitantes do sertão de Goiás. Hoje, é ainda em Vila Rica, em Cuiabá, e, sobretudo, em Tijuco, capital do distrito diamantífero, que encontramos na sociedade essa naturalidade nas maneiras que forma como que a primeira marca de toda boa educação... (D’Assier, 1864b, p.357)

De acordo com a história dos norte-americanos, a civilização deveria ganhar o duelo, mas D’Assier duvida que essa vitória seja completa no continente austral. A península do Norte tem duas grandes vantagens em detrimento da do Sul: a vizinhança das fortes raças setentrionais e o retorno periódico do inverno rigoroso, que excita o corpo ao trabalho, sem contar a sua maior proximidade aos portos. Ao longo dos textos de Adolphe d’Assier trabalhados neste artigo encontramos e enumeramos uma profusão de imagens do Brasil que não desviam de todo das representações comumente elaboras e difundidas sobre nosso país durante o século XIX, ou seja, a exuberância da fauna e da flora, com sua vegetação edênica, suas riquezas minerais, o alto grau de miscigenação, o índio e a escravidão. Elas adquirem, no entanto, um sentido especial quando

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nos recordamos do suporte impresso no qual foram divulgadas: a Revue des Deux Mondes. Até os anos de 1870, a Revue teve que lutar para manter sua liberdade como instituição e, por esse motivo, opôsse, muitas vezes, ao poder; mas, ao mesmo tempo, estava imersa na paisagem ideológica dominante. É essa adesão a um bloco ideológico conservador e não à ligação a partidos políticos particulares que lhe possibilitou certa liberdade institucional. Também, nesse período, o espaço público periódico e o político continuavam bastante restritos; no entanto, a extensão da Revue, como instituição, ultrapassava os contornos habituais de uma simples revista da época. A construção do grande espaço público, isto é, do espaço democrático, surge nos anos de 1880, como obra da República, e mudará consideravelmente o ambiente da Revue, especialmente pelo crescimento das publicações periódicas e por causa da proliferação das revistas parisienses ou provinciais, entre os anos de 1880 e 1890. Tal modificação do espaço público veio acompanhada de certa alteração da cultura dominante e de uma mudança do clima ideológico global. A geração republicana que assumia progressivamente as responsabilidades nacionais havia sido formada em um meio intelectual sensivelmente diverso daquele produzido pela Revue des Deux Mondes, de modo que uma defasagem complexa se estabeleceu entre esta última e a República (Loué, 1998, p.398-9). Nesse sentido, criou-se um elo entre o Brasil e a Revue des Deux Mondes que possibilita uma melhor compreensão das imagens por ela elaboradas: o fato de ser a única monarquia em território sul-americano. O Brasil possuía à sua frente um imperador, Dom Pedro II, que era freqüentemente associado à idéia de justiça, ordem, paz e equilíbrio, conceitos preciosos aos partidários de uma ideologia conservadora. As imagens difundidas pelo periódico foram de grande importância, naquele momento, para nosso país. Dessa maneira, se, num primeiro momento, as imagens do Brasil permanecem inalteradas, em seguida, ao consi-


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derarmos o meio impresso pelo qual foram divulgadas, elas ganham maior sentido, pois lhe são acrescidos os valores e princípios que norteavam a Revue des Deux Mondes.

Jogos de memória e identidade em O último suspiro do Mouro, de Salman Rushdie Telma Borges*

Referências CAMARGO, Katia A. F. de. A Revue des Deux Mondes: intermediária entre dois mundos. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

RESUMO: Memória e identidade são conceitos polissêmicos. Sua significação depende da forma como são manipulados. Este artigo focaliza o processo de estruturação da identidade em O último suspiro do Mouro, de Salman Rushdie, como um jogo que tem por referência a memória em suas mais diferentes acepções.

. A revista como fonte de pesquisa. Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, v.13, n.24-5, p.79-96, 2006. D’ASSIER, Adolphe. Le Brésil et la société brésilienne: moeurs et paysage. I. Le rancho. Revue des Deux Mondes, Paris, 1º jun. 1863 (I).

PALAVRAS-CHAVE:

. Le Brésil et la société brésilienne: moeurs et paysage. II. La fazenda. Revue des Deux Mondes, Paris, 15 jun. 1863 (II).

Memória, identidade, arquivo, pós-moder-

nismo. ABSTRACT:

Memory and identity are multiple concepts. Their meanings depend on the way they are manipulated. This article focuses on the identity structuring process in Salman Rushdie’s novel “The Moor´s last sigh”, seen as a game that has memory for reference in its most diverse meanings.

. Le Brésil et la société brésilienne: moeurs et paysage. III. La cidade. Revue des Deux Mondes, Paris, 1º jul. 1863 (III). . Le mato virgem. Scènes et souvenirs d’un voyage au Brésil. Revue des Deux Mondes, Paris, 1º fev. 1864a. . L’Eldorado Brésilien et la Serra-das-Esmeraldas. Revue des Deux Mondes, Paris, 15 jul. 1864b.

KEYWORDS:

LOUE, Thomas. La Revue des Deux Mondes de Buloz à Brunetière. De la belle époque de la Revue à la Revue de la Belle Époque. Lille: Atelier National de Reproduction des Thèses. 1998.

Memória e identidade

* Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)

Memory, identity, archive, post-modernism.

A memória, tal como aparece na narrativa do memorioso Simônides (Colombo, 1991), é a capacidade de atribuir as lembranças a lugares, para identificá-las com exatidão. Nesse sentido, lembranças e lugares configuram-se como vestígios de vidas memorizadas, supostamente intactas. A condição de vestígio e ruína impossibilita a concepção de uma memória intacta, mas reafirma a capacidade de transformar seus fragmentos em relatos que tornam inteligíveis os despojos do passado (Benjamin, 1987, p.22232). A memória, inerente aos arquivos pessoais ou coletivos de uma comunidade, num determinado tempo e espaço, é o lugar a partir de onde se fala. Organizada em forma de arquivo, pode ser submetida ao poder do arquivista. O


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arconte é, segundo Derrida (1997, p.10), não somente o guardião do arquivo, mas também aquele que tem o poder de compilar e interpretar seus dados. Como arquivo, esses dados constituem-se em um acervo organizado, que ganharia residência permanente no momento de seu registro. No entanto, torna-se paradoxalmente suscetível a inúmeras inserções, manipulações e indexações de dados que permitem àquele que acessa o arquivo, além do contato com esses dados, a possibilidade de migrar de um acervo a outros, além de fazer migrar os sentidos ali armazenados. Se, por um lado, a memória tem uma constituição lacunar, porque elaborada a partir de fragmentos que são reorganizados numa dimensão que lhe dá uma suposta unidade, “como um álbum de fotografias” (Rushdie, 1996, p.20); por outro, pode-se caracterizá-la como um território no qual a voz da experiência individual está atrelada a uma experiência coletiva. É por essa rede filigranada que, muitas vezes, chega-se a uma suposta experiência de identidade. Assim, quando o narrador-personagem de O último suspiro do Mouro anuncia a existência de versões nãooficiais da história de sua família que, de tão importantes para se compreender sua história particular – a auto-imagem dos pais –, servem, também, para se ler a história indiana daquele contexto narrado, insinua o enlace do individual ao coletivo. A memória, por essa via, assume a dimensão de uma rede cuja disposição dos fragmentos determina de que perspectiva se conta uma história ou se vislumbra uma apresentação identitária: Por ora apresento a lenda oficial da família, com todos os floreios habituais, a qual, por constituir uma parcela tão relevante da auto-imagem de meus pais – e da história da arte indiana contemporânea –, tem, ainda que apenas por esses motivos, um poder e uma importância que eu seria incapaz de negar. (Rushdie, 1996, p.87)

A identidade, entendida como uma representação estrutural do “eu” na sua relação com os outros, constrói-se a partir de experiências corporais e estruturais. Essas ex-

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periências, no caso das identidades coletivas, tendem a ser transferidas para a imagem das sociedades. Desse modo, a imagem de Aurora, mãe do narrador, simbolicamente confunde-se com a da Índia: “a pátria enquanto mãe, a mãe enquanto pátria” (ibidem, p.147). A elaboração da identidade se traduz, aqui, como um processo de construção de imagens que, permanentes ou não, resultam de experiências diversas entre sujeitos que se relacionam, interagem de modo a criarem estruturas que, coletivizadas, transformam-se em paradigma a ser seguido por uma sociedade. Entretanto, pode ocorrer de esse corpo supra-individual ter sua estabilidade perturbada, em virtude das movimentações históricas e geográficas da humanidade. Esse estremecimento da suposta solidez do que poderia ser convencionalmente chamado de “identidade de uma sociedade” tem um percurso histórico e, no contexto do romance de Rushdie, é alegoricamente representado pelas personagens femininas, especialmente Uma Sarasvati, com quem o narrador tenta se desenredar do poder da mãe. O projeto pragmático-identitário ocidental, resultante do Iluminismo, produziu uma hierarquia que gerou resistências por parte daqueles que, reduzidos à condição de instrumentos, em favor de determinadas proposições ideológicas, não viam contempladas suas necessidades. O século XX foi palco de diversos embates entre colonizadores e colonizados, muitos deles resultantes dessa configuração nitidamente ocidental. Se, de um lado, por exemplo, a Europa tenta promover uma “supra-identidade federal”; por outro, nações periféricas e aquelas recém-libertas do jugo imperial reivindicam autonomia. O embate entre vontades tão distintas favorecerá o que José Gabriel Pereira Bastos (s. d., p.11-35) denominou “viragem subjetivista”. Ou seja, as políticas baseadas na luta de classe deram lugar às lutas baseadas na política da identidade, na celebração da diversidade e do multiculturalismo. De acordo com Linda Hutcheon (1991, p.15), “a formação do sujeito desafia o pressuposto humanista de um eu unificado e uma consciência integradora, por meio do


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estabelecimento e, ao mesmo tempo, da subversão da subjetividade coerente”. O pós-modernismo contesta essa ideologia humanista liberal dominante, suas noções de originalidade e autoridade, estabelecidas por meio de suas estruturas hierárquicas. Tais hierarquias negam a subjetividade multifacetada da contemporaneidade, nascida desse embate entre as diversas minorias e o humanismo unificado. Essa mudança no paradigma sócio-histórico mantém forte relação não só com o processo migratório de grupos sociais originários de ex-colônias, mas também com deslocamentos dos europeus para as colônias. Toda e qualquer alteração, seja ela no Oriente ou no Ocidente, altera consideravelmente também a geografia do globo, visto que a mobilidade dos sujeitos tende a fazer circular igualmente suas concepções ideológicas. Ao escrever sobre a genealogia da família de Moraes Zogoiby, na Índia, Salman Rushdie tensiona componentes da história que estabelecem relações com as culturas ibérica e inglesa, além de suas crenças religiosas, motivadoras de tantos deslocamentos pela cartografia planetária. A fragmentação das paisagens culturais de classe, originada pelos deslocamentos de sujeitos e idéias, como afirma Stuart Hall (2002, p.9), “estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios (ex-colonizados) como sujeitos integrados”. Essa identidade que costurava o sujeito a uma estrutura social, política ou econômica é, atualmente, considerada um significante movediço, em que forças ideológicas ativas geram conflitos e mudanças. Boaventura de Sousa Santos (1995, p.119), numa abordagem semelhante à de Hall, afirma: [...] a questão identitária é semifictícia e seminecessária. [...] mesmo as mais sólidas escondem negociações de sentido; jogos de polissemia, choques de identidade em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades.

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O êxito nas negociações é medido pela consciência de que é uma necessidade fictícia de reinterpretação fundadora que “converte o déficit de sentido da pergunta no excesso de sentido da resposta” (ibidem, p.119). Ao ocupar o lugar do teocentrismo, o antropocentrismo tende a se interrogar sobre a autoria do mundo. O homem, assim, não vê senão a si mesmo como primeira resposta. A subjetividade abstrata de Descartes, ancorada no cogito, ergo sum, tem uma série de desenvolvimentos paralelos, importantes para a interpenetração da modernidade e do capitalismo. Portugal e Espanha são protagonistas dessa relação, quando, de modo intolerante, instauram a Inquisição como forma de varrer da Península mouros e judeus, atores importantes na constituição desse território, mas cuja subjetividade não corresponde às subjetividades hegemônicas em construção: o indivíduo e o Estado. A concepção cartesiana de identidade deu lugar a uma problemática na qual o sujeito se compõe de várias apresentações. A produção identitária de um determinado grupo implica a capacidade de nele se reconhecer traços dessa identidade, mesmo que sejam provisoriamente delineados. Por isso, a ritualização e a reatualização da memória constituem-se em estratégias cuja função será transformar os relatos de acordo com os interesses e tendências que permitem uma negociação de sentidos e imagens que o grupo deverá transmitir. Stuart Hall (2002, p.13) define a identidade como “uma celebração móvel”, cuja base argumentativa é: “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. O deslocamento de sujeitos, culturas, crenças e valores de diversas partes do globo têm colaborado para essa mobilidade identitária e para se repensar seu processo de constituição. Portanto, um olhar sobre essas alterações, contemplando a Europa e os Estados Unidos, sugere que essa viragem paradigmática, marcada por esse deslocamento, ainda que tenha ocorrido no Ocidente, teve sua gênese nas ex-colônias, ou seja, fora dos grandes centros de


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poder. A heterogeneidade cultural, como contrapartida aos impulsos homogeneizantes europeus e norte-americanos, é concebida como um fluxo de identidades contextualizadas por gênero, classe, raça, identidade étnica, preferência sexual, educação, função social. Desse modo, para pensar o conceito de identidade, atualmente, é preciso considerar ser ele fruto da acumulação porosa de experiências que constituem os sujeitos, para além das fronteiras geográficas e culturais. Nesse aspecto, a memória tem importância relevante, pois é por meio dela que se buscam, nos arquivos da cultura, vivências partilhadas em outros tempos e espaços, mas que reverberam constantemente ao longo do processo de construção identitária de um indivíduo ou de uma comunidade. Maria Antonieta Garcia (2000, p.39) assim define a identidade coletiva: “é um processo ativo de expressão e significação de práticas concretas simbólicas pelas quais um grupo atualiza seus relatos a uma sociedade global”. Nessa mútua relação entre memória e identidade como devir, tanto uma quanto outra é tangenciada pela imaginação e pelo sonho. Por essa via, não raro, acreditase numa realidade imaginada. Sob essa óptica, os conceitos de memória e de identidade se aproximam do conceito de nação pensado por Benedict Anderson (1993, p.124), segundo o qual a nação é uma “comunidade imaginada”, em que indivíduos partilham algo comum, unidos por relações horizontais. A proposição de Anderson, no entanto, desconsidera que uma comunidade, além de imaginada, é também emocionada. Homi Bhabha (1998, p.25) reforça essa crítica ao conceito de Anderson ao dizer: A moeda nacional corrente do comparativismo crítico, ou do juízo estético, não é mais a soberania da cultura nacional concebida [...] como uma “comunidade imaginada” com raízes em um “tempo vazio e homogêneo” de modernidade e progresso. As grandes narrativas conectivas do capitalismo e da classe dirigem os mecanismos de reprodução social, mas não fornecem, em si próprias, uma estrutura fundamental para aqueles modos de identificação cultural e afe-

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to político que se formam em torno de questões de necessidade, raça, feminismo, o mundo de refugiados ou migrantes ou o destino social fatal da AIDS.

A expressividade de uma nação precisa ser repensada a partir não só de sua “virtude física”, mas, fundamentalmente, a partir dos direitos de toda a comunidade nacional, e aí estão incluídas as comunidades diaspóricas e suas percepções afetivas. Dar relevo ao emocional – sem desconsiderar outros elementos igualmente importantes – é explicitar que a constituição da identidade, como uma “celebração móvel”, é um modo de subverter os mecanismos mais objetivos de poder e criar ordens que permitam refazer suas dinâmicas. Ainda nessa perspectiva, compete ao sujeito escolher quais vestígios de memórias ou traços de identidade selecionar para a composição dos instrumentos de sua relação com o mundo. Essa possibilidade de escolha está ligada ao fato de que ser indiano, por exemplo, requer múltiplos contatos dessa cultura com a cultura ocidental, especialmente a partir do comércio de especiarias. Com as Grandes Navegações, a relação da Índia com o Ocidente tem seus paradigmas alterados. A descoberta do Outro e da diferença provocaram reações ainda hoje perceptíveis na forma como o Ocidente se relaciona com o restante do mundo. O último suspiro do Mouro encena muitas dessas questões contemporâneas acerca do que constitui a identidade a e memória indianas a partir do encontro inaugural dos portugueses com o Oriente. Enquanto é mantido prisioneiro por Vasco Miranda, o Mouro – Morais Zogoiby – é obrigado a escrever a história de sua família, reoperar o passado, organizar, por meio de uma seleção, a memória e a genealogia familiares. A narrativa torna-se a dimensão material – o arquivo – que comporta essa memória. Da materialidade do corpo do sujeito para o corpo da escrita, o conteúdo da memória passa por inúmeros procedimentos. Sai da condição de material difuso, inscrito na memória do corpo, para alcançar a materialidade do


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texto que sofreu operações de corte, reescrita, reengendramento de idéias, censuras. Prestes a morrer, o narrador precisa encontrar um repositório para que sua memória continue a ser manipulada por outros. Assim, devolve aos armazéns precários da cultura vestígios da história que, atrelados às histórias particulares de seus ancestrais, foram revitalizados, distorcidos ou reinventados. Nesse gesto reside o desejo de que a memória e a identidade sejam convertidas num texto que permita vislumbrar uma fratura nas manifestações oficiais da história. Como uma falsificação necessária, tal narrativa enuncia-se por intermédio de outras vozes que, por ocuparem outros tempos e espaços, podem vir a fazer uma seleção diferenciada dos fatos. Talvez essa seja a garantia de que o medo de esquecer é apenas um fantasma que impele à lembrança. Na condição de narrador, o Mouro assume a função, ao mesmo tempo, de arconte, o guardião, e também de um arquivista que manipula ativamente os diversos códigos culturais, além de provocar a transmigração e o embaralhamento de seus sentidos. Da experiência individual – “expulso da própria história” – para a experiência coletiva – “caiu dentro da História” (Rushdie, 1996, p.14), descobre sua identidade rasurada: “um mestiço nascido em berço esplêndido e caído em desgraça” (ibidem, p.13). Ao tornar visíveis os fios genealógicos de sua família, pela escrita, dá-se conta de que sua identidade só pode ser compreendida como uma elaboração provisória, já que se vê constantemente alterada por vários componentes: indiano, judeu, cristão e mouro. Ou seja, apesar do sobrenome Zogoiby, que lhe atribui uma paternidade, o Mouro tem uma identidade fluida, de origem obscura, à qual tenta iluminar pela ação da narrativa. No plano da narração, Rushdie manipula três domínios caros à metaficção historiográfica (contexto no qual se inclui e a partir do qual sua obra pode ser pensada): a autoconsciência teórica sobre a história, a ficção como criação humana e a reelaboração das formas constituídas do passado (Hutcheon, 1991, p.22). Por meio desses pro-

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cedimentos, Rushdie torna fluidas as fronteiras não só dos gêneros literários, mas também da história. Por meio desse livre trânsito entre os diferentes discursos, tanto o narrador quanto o autor são desafiados por um relato que lhes exige a dupla autoconsciência atuando nos planos do local e do global; do singular e do plural; do minúsculo e do maiúsculo. Tanto narrador quanto autor precisam trabalhar contra o impulso homogeneizante da sociedade de consumo do capitalismo recente e lidar com culturas em vez de lidar com a Cultura, em sua dimensão imperialista. À medida que faz um recuo no tempo, em busca da origem, o narrador a percebe ainda mais longínqua, incapaz de ser localizada, apreendida e compreendida por um relato, por isso a imagina e a forja a partir de um grão de pimenta, artigo “sonhado” em Cochim e instituído como monopólio régio português a partir de 1505. Para evitar os muçulmanos como intermediários, os lusitanos apostam numa política de relação direta com os produtores, sobretudo os cristãos de São Tomé. Tem-se aí um jogo de identidade religiosa que favorece a incursão portuguesa no comércio de especiarias, principalmente a pimenta (Tavim, 2001, p.167), o cobiçado ouro negro indiano. Aqui, história e ficção se cruzam para dar origem à apimentada genealogia materna do Mouro: E tudo começou com um grão de pimenta! [...] pimenta, o cobiçado Ouro Negro de Malabar, foi o artigo original de minha famigerada família, os mais prósperos comerciantes de especiarias e castanhas e folhas de Cochim, uma família que, sem embasar-se em nada mais do que séculos de tradição, arrogava-se a honra de descender, ainda que em bastardia, de ninguém menos que o grande Vasco da Gama [...] (Rushdie, 1996, p.14)

O recuo no tempo, em busca da origem, faz coincidir o tempo da história com o da História. A pimenta que corre, metaforicamente, nas veias da personagem é o condimento que estabelece as relações comerciais com o Ocidente, elemento que cria um parentesco com Vasco da


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Gama, por uma simples questão de tradição. Ao embaralhar fontes históricas, literárias e a própria imaginação, o narrador problematiza não só a questão identitária, mas também a memória, e traz para o centro da cena o fato de que esses conceitos, quando engendrados em uma tradição, assumem uma veracidade que distancia de si qualquer semelhança com o mítico ou lendário. Para Terry Eagleton (1998, p.51-71), a História com “H” maiúsculo está, para o pós-modernismo, fundada numa concepção teleológica, enquanto a história com “h” minúsculo fundamenta-se numa mutabilidade constante, além de romper com os princípios da unidade de uma narrativa única. Numa perspectiva contrária à do crítico inglês, Rushdie evidencia a relevância de se considerar a História em sua proposição modernista, que é apreendida, essencialmente, como uma narrativa de acontecimentos (cf. Burke, 1992, p.12), mas a contrapõe às histórias de pequenos grupos, comunidades, até mesmo às individuais. Em sua proposição moderna e teleológica, a História é entendida como uma “grande narrativa, ou uma ‘história vista de cima’”. Nas colônias, por exemplo, é a história introduzida pelo poder colonial, como ocorreu na Índia. Sua historiografia oficial era, por ocasião da fundação da Sociedade Asiática de Bengali – em 1784 –, profundamente anglocêntrica. Muitos consideram essa fundação o ponto de partida da história dos indianos. Jawarlalal Nehru, ainda que educado à inglesa, certa vez observou a respeito dos britânicos: “para eles, a verdadeira história começa com a chegada dos ingleses na Índia; tudo o que houve antes é, em uma espécie de trajetória mística, uma preparação para sua divina consumação” (cf. Wesseling, 1992, p.105-6). A história da chegada dos portugueses e holandeses passa, assim, a se configurar como uma espécie de ensaio para a verdadeira história, a ser construída e oficialmente contada pelos ingleses. Porém, em meados do século XIX, houve uma reação à abordagem condescendente dos historiadores coloniais, quando os historiadores indianos passaram a desenvolver a sua

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própria historiografia, que foi fortalecida pela ascensão do movimento nacionalista do final do século XIX. Entre as décadas de 1920 e 1930, já havia um número considerável de historiadores indianos profissionais, o que influenciou sobremaneira o movimento pela independência do país, ocorrida em 1947 (cf. Wesseling, 1992, p.97-131). Para Homi Bhabha (1998, p.23), contudo, “se o interesse do pós-modernismo limitar-se a uma celebração da fragmentação das ‘grandes narrativas’ do racionalismo pós-iluminista, então, apesar de toda a sua efervescência intelectual, ele permanecerá um empreendimento profundamente provinciano”. Para se desvencilhar desse provincianismo, Bhabha considera que se deve transformar “o presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição de poder”. Esse lugar daria espaço à “experiência-dos-limites”, como considerada por Julia Kristeva, através da qual os ideais etnocêntricos teriam suas fronteiras fragilizadas pela “história dissonante” (ibidem, p.24) das minorias. Assim, pode-se dizer que, além de ser considerada como um contínuo acontecer processado na diferença, a narração de Rushdie não se oferece como pressuposto de uma aparência absoluta, forjada nos ideais de uma universalidade pautada pelo liberalismo de Estado. O pós-modernismo, no cenário de seu romance, não desconsidera os efeitos do passado sobre o tempo e a vida presentes somente por acreditar que todos os contextos são permeáveis e imprecisos. A concepção pós-moderna de história relaciona-se aos pressupostos da “nova história”, cuja preocupação concentra-se na análise das estruturas tradicionais (Burke, 1992, p.9) que constituem o relato historiográfico. Os múltiplos movimentos expressos pelo narrador de O último suspiro do Mouro são a evidência contingente de que ser pós-moderno não significa negar passado e futuro, mas revitalizá-los num momento em que o mundo reordena suas fronteiras culturais, políticas e econômicas, ou até mesmo as torna menos precisas. Por isso, os relatos de família são deslocados da dimensão ofi-


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cial da voz da história para aquela da heteroglossia, em que vozes variadas e opostas enfraquecem a onisciência dos discursos oficiais que constituem a História. Parece que Rushdie estabelece um movimento ambivalente e agencia posições teóricas mais preocupadas com os sujeitos – mesmo os anônimos – que fazem parte das engrenagens da história. Nesse sentido, parece haver uma correlação mais próxima à da “nova história”. Ao cair na História, o narrador não apenas pode recontá-la o mais fielmente possível, mas também inventá-la e reinventá-la a partir de um lugar que não seja o oficial de uma minoria dominante. Cair na História é um meio de dar visibilidade jamais pensada aos fatos e evidenciar que a História à qual se atribui o caráter oficial configura tão-somente como uma versão instituída por aqueles que tiveram poder para fazê-lo. A ficção pós-moderna problematiza a História “como um modelo da visão realista da representação”, e o faz com o objetivo de questionar “tanto a relação entre a história e a realidade, quanto a relação entre a realidade e a linguagem” (Hutcheon, 1991, p.34). Ainda que se esteja em um território – a literatura – que afirma saber das coisas e não as coisas, como diria Roland Barthes (1992), seria ingênuo acreditar numa História tal como compreendida pela modernidade, em que os fatos rumam em direção a um objetivo predeterminado. Seria, então, como as mônadas benjaminianas, em que as minorias reavivariam “a mão morta da história que conta as contas do tempo seqüencial como um rosário (Bhabha, 1998, p.23), para fazê-la revelar as descontinuidades e desigualdades da história e estabelecer o presente como um tempo do agora. É também uma forma de dizer que a única maneira de acessar o passado está condicionada pela textualidade. Cair na História sugere a possibilidade de suplementá-la a partir de outros documentos, evidências ou testemunhas até então silenciadas, como o manuscrito escrito em espanhol pela judia, amante de Boabdil – ascendente mouro do narrador –, e os cadernos de receitas do cozinheiro Ezequiel – empregado da família de Morais.

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A geografia planetária não pode mais ser encarada numa óptica nacionalista. A constituição de diásporas culturais – em todos os pontos do planeta – tem colaborado para que o mundo seja percebido como uma rede na qual identidades e memórias, individuais e coletivas, estão num contínuo reverberar. O que há de novo nessa questão é o fato de que ela se constitui num tópico de discussão permanentemente aberto. O Mouro, ao cair na História, abre espaço para que as minorias não só se manifestem, mas também para que sobre elas sejam elaborados discursos, narrativas. Desse modo, identidade e memória são, na sua tradição familiar, uma constante que é relativizada desde o início do relato. A pimenta, como metáfora dessa narrativa, aponta tanto para a História dos comerciantes portugueses quanto para a história dos indianos submetidos a esse processo. Essa tradição, aparentemente intocada, sujeita-se a ser deliberadamente retocada: “Ah, os lendários embates dos da Gama de Cochim! Eu os reconto aqui tal como me chegaram, floreados e engalanados por muitos rerrelatos” (Rushdie, 1996, p.19). Com essa passagem, Rushdie e o narrador explicitam o poder de subversão do texto pós-moderno, no que respeita à ideologia da originalidade, pois seu interesse está centrado mais em reescrever do que em escrever. O Mouro, contudo, afirma que reconta os fatos como lhe chegaram. O autor, por sua vez, não se apega ao compromisso de ser o relator fiel da história, mas em reescrevê-la, valendo-se do imaginário, de fatos e de versões não oficiais, mas latentes e que funcionam como um suplemento ao discurso oficial. A consciência de que sua escrita não é de primeira mão permite a Rushdie desconstruir as supostas fronteiras que delimitavam essa identidade multifacetada e em constante devir. Não há mais uma ficção do indivíduo criador. Em seu lugar, surge uma ficção marcada pelo confisco, pela criação, seleção, acumulação e repetição de imagens já existentes. Desse modo, as noções de originalidade, autenticidade e presença são enfraquecidas. As inúmeras versões que foram projetadas sobre os relatos de família


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são dinamizadas porque, no momento agônico da escrita, são colocadas em contato umas com as outras. Esse contato vertiginoso faz da memória e da identidade duas das muitas metáforas da obra e assumem um caráter arquivístico e enciclopédico, porque nunca cessam de se constituir e de se estabelecer dialógica e criticamente como produção cultural de diversos tempos e lugares. Ao desconstruir os princípios estruturantes da tradição familiar – engendrando ficção e história – e, ao mesmo tempo, mantendo seu aspecto fabulatório, Rushdie cria uma concepção de memória contrária àquela clássica, de Simônides, de atribuir as lembranças a seus devidos lugares. A memória passa a ser reivindicada como a capacidade de desentranhar e emaranhar lembranças, próprias e alheias, sem atribuir-lhes um lugar de origem que lhes seja autêntico.

Memória do texto Se a memória é a capacidade para conservar vivências para além do agora, o esquecimento tem importância qualitativa nesse processo, uma vez que permite omitir certos pormenores e acrescentar outros. No contexto da narrativa de Rushdie, ele assume dimensão expressiva para efeito de conceituação. O esquecimento é condição estratégica para a aprendizagem, uma espécie de malícia inconsciente. O narrador esquece para possibilitar novo armazenamento informativo. Sendo assim, a memória, conceitualmente, sustenta-se na dupla rubrica lembrar/esquecer. De Eurípides a Shakespeare; de Homero a Camões; de Hans Andersen a Lewis Carrol; de Cervantes a Baudelaire e Nietzsche; da Bíblia ao Alcorão; de Michelangelo a Picasso; de Le chien andaluz ao King Kong ou ao O incrível Hulk ou ao cinema indiano; dos quadrinhos norte-americanos aos desenhos animados de Walt Disney, Warner Bross e às fábulas orientais, a narrativa de Rushdie se nutre de um repertório enciclopédico que a insere num contexto no qual o lúdico e a ironia se fundem e criam um universo que pode ser chamado de pós-moderno. Ao agenciar essas

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linhas de força tanto da cultura ocidental quanto da oriental, em vez de ampliar os arquivos dessa tradição, ao reuni-los, o narrador os dispersa e estabelece uma multiplicidade discursiva, somente possível porque o ato de esquecer faz do exercício da memória uma ação perceptiva e fragmentada. Os vazios e as conexões que daí resultam são elaborados como experiências estético-culturais de todos os tempos e lugares. Esse princípio de multiplicidade sobre o qual está constituída a narrativa do Mouro liga-o a uma infinidade de fibras nervosas de inúmeras tradições, as quais, quando manipuladas, mudam de natureza e lhe permitem trançar e empreender novos percursos. O enciclopedismo e a prática de arquivar são resultados desse esquecimento e desse agenciamento estratégico. Porque falha, o narrador gera lacunas por meio das quais insere, à exaustão, outras narrativas, fatos históricos, valores morais e estéticos de outras culturas, o que reverte numa multiplicidade incessante, como celebrada por Calvino. As seqüências narrativas são interrompidas por uma rede infinitamente densa de intertextos e interligações. Essas digressões, a um só tempo, encenam e teorizam os paradoxos da continuidade e da separação, tão comuns no pós-modernismo. O texto assume, a partir de então, uma conformação híbrida, como defendida por Ernest Laclau (1996) que, no contexto das discussões sobre identidade, afirma que a hibridização pode significar “o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades”. O conceito de multiplicidade de Calvino parece, assim, associar-se ao de hibridização de Laclau. Já para Homi Bhabha (1998, p.22), a ficção de Rushdie possui elementos para exemplificar o seu conceito de híbrido. Para o crítico, Os versos satânicos, principalmente, lembram que “o olho mais fiel pode agora ser aquele da visão dupla do migrante”. Esse olhar produtor de estranheza e familiaridade “acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (ibidem, p.22). Desfocado, promove embaralhamento e trânsito entre fronteiras culturais


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e cartográficas. Nasce daí a necessidade de se redesenhar e de se redefinir traços identitários a partir de uma construção hibridizada porque, aberta a outros contatos, a narrativa ganha em força argumentativa e estética, além de não encerrar em si mesma os sentidos que lhe são pressupostos. A narrativa do Mouro, porque espelha a de Rushdie, também se estrutura a partir desse saber enciclopédico: provisório, reticular. Como diria Umberto Eco (1989, p.338), as regras de significação da sua narração estão orientadas para contextos e circunstâncias que excluem, definitivamente, a possibilidade de hierarquizar os saberes ali manipulados. Se a enciclopédia representa idealmente todo o conhecimento do mundo, a genealogia do Mouro, elaborada nessa perspectiva, tende a ser entendida como uma antigenealogia. As rupturas provocadas pela recomposição dessa linhagem, em decorrência da entrada de sujeitos marcados pela bastardia, provocam desvios no percurso linear, para dar origem a um percurso desmontável, reversível, que segue inusitadas direções. Desse modo, a idéia de uma genealogia “forte” é quebrada, pois há sempre possibilidade de ramificações que seguem percursos imprevistos. Diferentemente de Rushdie, o Mouro tenta estruturar sua narrativa nos moldes bem delineados da narrativa moderna. Contudo, dada a natureza de sua própria configuração identitária, precisa, estrategicamente, esquecer. Só o esquecimento gera lacunas, e é por meio delas que elabora a substância de suas memórias. Esse esquecimento estratégico permite ao narrador acrescentar pormenores extraídos de experiências textuais alheias. Ao atribuir à personagem Isabela Souza o nome de Ximena, e ao marido dessa o de Camões da Gama, Rushdie, além de avizinhar-se do discurso histórico, manipula duas grandes produções épicas da Península Ibérica: El Cid e Os lusíadas. O efeito buscado não é só o da relação intertextual ou o do pertencimento a uma tradição. Opera-se com o retorno ficcional ao passado ibérico, a partir da desconstrução das fronteiras entre Espanha e Portugal e da desconstrução da hierarquia do cânone. Há,

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ainda, uma verve quixotesca que atravessa as ações de várias personagens masculinas que são, quase sempre, acometidas por um mal-estar no mundo. Deslocam-se, pois, da mera condição de ascendentes do Mouro para a condição de possuidoras de identidades móveis, elaboradas a partir de supostas verdades e memórias ficcionais. Num ensaio que aproxima Os lusíadas de D. Quixote de la Mancha, Ramiro de Maeztu [19--] assinala que “sem Os lusíadas não se pode entender o livro de Cervantes. Como poderia desencantar-se todo esse mundo que rodeia D. Quixote de la Mancha, sem se conhecer antes o encantamento do ideal?”. Ao apontar para o épico português como o precursor do texto fundador do romance ocidental, a partir da noção de encantamento/desencantamento, o ensaio sugere a possibilidade de dispersão desse binarismo na narrativa contemporânea. O casal Camões da Gama e Isabela Ximena Souza explicita essa dispersão deliberada do encanto/desencanto, porque prefigura uma invenção literária que desloca lugares e sentidos, culminando no complexo conceito de diáspora. Ao inventar uma biografia que se remete a uma esfera discursiva consagrada, o Mouro parece reivindicar o esquecimento e uma espécie de memória que se estrutura por meio do imaginário, como princípio para elaborar sua narrativa. Desse modo, as estratégias discursivas de Rushdie e do Mouro seguem percursos diferentes. Enquanto o primeiro recorre ao saber enciclopédico disperso pelas mais variadas áreas do conhecimento e elabora um texto aberto, o segundo tenta elaborar uma narrativa rigorosa. Contudo, é exatamente esse rigor que frustra sua intenção, pois todo texto rigoroso contém elementos de enciclopédia, o que o torna irrealizável. Sendo assim, acaba por se espelhar na estrutura textual do autor empírico e se valer da memória imaginada como recurso. A memória imaginada poderia caracterizar-se, dessa forma, por imagens nunca vistas antes de serem lembradas; são buscadas nos armazéns da cultura, dispostas sob a forma das mais diversas tradições. Esse recurso permite ao narrador


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contemporâneo amalgamar experiências alheias para traçar sua antigenealogia familiar e textual. Sua narrativa passa, então, a se estruturar a partir de falhas que ele inventa, cria e explicita. Laços culturais, no contexto dessa narrativa, configuram-se como identidades problematizadas, para além dos consangüíneos ali ficcionalizados. Isso quer dizer que a “consangüinidade” esperada entre os épicos clássicos e o romance de Rushdie é, por essa estratégia, impossibilitada. Por meio dessa memória imaginada, as personagens se desdobram, no romance, a partir de sua inscrição na tradição histórica ou literária. Suas configurações são espacializadas e projetadas numa atemporalidade reticular que, em vez de criarem uma continuidade, promovem a apresentação de identidades virtuais. Essa linha genealógica partida possui, no entanto, pontos de contato. Acessar esses pontos ou esses inúmeros nós da rede da tradição desencadeia uma série de associações que permitem reinventar o saber enciclopédico disponível como memória, como traço identitário. O nó reticular liga-se, pois, ao princípio da abolição dos centros, de que fala Pierre Lévy (1995, p.26): A rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais à frente outras paisagens do sentido.

Desse modo, percebe-se a configuração de uma memória textual que é resultado de múltiplos agenciamentos de textos e saberes. Essa memória teria, assim, a estrutura das redes, ou, como quer o narrador, do mosquiteiro de Epifânia – sua bisavó materna.

Texto de memória Para Wander Melo Miranda (1992), as memórias têm um caráter luminoso de resgate criador de uma experiên-

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cia compartilhada em meio às trevas. Em Rushdie, esse caráter luminoso e essa experiência compartilhada podem ser entrevistos por meio da rede da tradição. Essa experiência de compartilhar – textos, identidade, memórias – seria um modo de garantir a suposta e simulada veracidade da tradição que se deseja relatar. Para Ricardo Piglia (1990, p.60), ainda que a tradição encerre um saber a ser memorizado, a memória imaginada possui a estrutura de um sonho. Iluminar memórias obscurecidas ou reinventar identidades perdidas no tempo, como no romance, remete para além do duplo risco de encobrir/desvelar verdades e projeta para os furos simbólicos do mosquiteiro, interstícios produzidos na ilusão da profundidade da rede. O mosquiteiro de Epifânia que “adquirira ao longo dos anos um certo número de furos pequenos porém significativos que ela era míope ou pão-duro demais para perceber” (Rushdie, 1996, p.15) pode ser visto como uma metáfora dessa narrativa que, a ponto de ruir, ostenta, dissimuladamente, uma aura da tradição. A miopia ou a avareza de Epifânia a impedem de ver que um tecido, por natureza poroso, acrescido de furos, não protege contra invasões indesejadas. A demonstrar que a totalidade não existe, pode-se dizer que os mosquitos figurativizam pessoas ou culturas que investem contra a tradição, tessitura esburacada que, por vezes, além dos furos que lhe são inerentes, vê-se acometida por outros, não imprevistos. Mesmo sendo um tecido poroso, os detentores de uma tradição não abrem mão espontaneamente daquilo que lhes confere poder. Entretanto, como em qualquer tecido, a ação do tempo é perceptível. E uma tradição puída pelo tempo só se mantém por meio de novas linhas de força que possam lhe dar sustentação e garantir continuidade na diferença. Os princípios defendidos por Epifânia persistem, ainda que como vestígios. E é como vestígios que eles serão preservados por gerações e reacenderão algumas fagulhas, como ocorre quando Filomela, uma das filhas de Aurora, deseja fazer-se freira. No gesto da bisneta, um dos aspec-


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tos da tradição defendidos pela bisavó – católica fervorosa – torna-se recorrente, mas sua repetição se dará como reinvenção. Na escrita de Rushdie, observa-se, portanto, no mínimo dois níveis de construção textual. Num primeiro plano, destacam-se os conflitos e incoerências de personagens e situações modernas, ancoradas em valores preestabelecidos e monolíticos, que necessitam, geração após geração, de quem os suplante. Essa relação conflituosa com a tradição se manifesta, por sua vez, na opção dada ao narrador de escolher quais vestígios herdar, que tradições manipular. A possibilidade de se considerar um fato sob várias perspectivas (oral, escrita, pintada, película ou como memória afetiva) permite ao autor acrescentar ou suprimir detalhes, de acordo com a peculiaridade de cada um. Como o mosquiteiro de Epifânia, esse conjunto de histórias é atravessado por pequenos furos por onde a tradição é remodelada e amalgamada a outras, às quais passa a pertencer. Assim, a noção de sentido pleno se esvai. São esses vazamentos que dão significação à narrativa. As experiências partilhadas, à medida que são encadeadas no corpo da escrita, são desenredadas do arquivo da tradição. O sentido de pertencimento a uma cultura identitária é tangenciado por uma multiplicidade de códigos outros, cujo resultado é uma significação aberta e provisória. Não há mais o lugar do sentido fixo. A conexão significativa só é possível a partir de contatos múltiplos que, em vez de se fecharem, gravitam em franco processo de expansão, esboçando o segundo plano referido anteriormente, o da construção da enunciação do romance, que aponta para um projeto literário do escritor, proposta que se consolida, por meio de uma tensão permanente entre as tradições, em forma de rede, em contraste com a estrutura vertical da modernidade. Para Ana Maria Barrenechea (2003, p.9), “a memória é constantemente invadida pelo sonho e pela imaginação e, posto que existe a tentação de acreditar na realidade do imaginário, acabamos por transformar a nossa

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mentira numa verdade”. Numa perspectiva similar à do narrador de Dom Casmurro, de Machado de Assis – a quem Rushdie (1994, p.351) elege como um de seus precursores – o narrador de O último suspiro do Mouro não pode ser contestado na sua versão – cheia de “furos” – dos acontecimentos que narra, a não ser, talvez, por Vasco Miranda que, como ele, conhece os fatos, mas somente de ouvir dizer, nunca por tê-los presenciado. Apesar disso, Vasco depara, indiretamente, com essa memória, a partir dos quadros de Aurora, além dos que ele mesmo pinta. As versões do narrador, aliadas às versões pictóricas de segunda e de terceira mãos, de Aurora e de Vasco, constituem, assim, a rede que dá origem às múltiplas versões pintadas/narradas da história de Boabdil el Zogoiby, o último mouro de Granada, de quem o narrador é descendente bastardo. Tanto Vasco quanto Moraes têm acesso aos fatos por meio do “rerrelato”. Esse neologismo, criado por Rushdie, reflete a estratégia de narrar o narrado, tantas vezes reprocessado, que já não é possível mensurar uma origem verossímil. Resta, então, iluminar esses vestígios da história por meio da recriação crítica por parte daquele que rememora e que conta apenas com o próprio relato como espaço por meio do qual esses vestígios têm lugar. Ao relembrar os “mil e um dias” (Rushdie, 1996, p.201) – alusão a As mil e uma noites – em que tivera aulas particulares com Dilly Hormuz e, também, sua iniciação no mundo dos adultos, o narrador revela, na exigência de que o leitor não o obrigue a interromper, mais uma vez, sua história, seu exercício de memória – como o fizera outras vezes – a construção não-linear da narrativa: Não me obrigue a parar mais uma vez, em meu exercício de memória, naquelas fronteiras que não possuímos passaportes para transpor! A lembrança dessa época permanece em mim como uma ânsia dolorosa, faz meu coração disparar, é uma ferida que não sara; pois meu corpo sabia coisas que eu ainda desconhecia, e, enquanto a criança permanecia atônita na prisão de sua carne, meus lábios, minha


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língua, meus membros entravam em ação, guiados por minha excelente professora, e em total independência de minha mente [...] (Rushdie, 1996, p.201)

Em termos históricos e geográficos, Ormuz era um dos destinos de fuga dos cristãos novos. Lá, eles podiam assumir livremente sua identidade judaica. A professora Dilly Hormuz, simbolicamente, figura como o primeiro ponto de fuga do Mouro, dentro de sua própria casa: o “paraíso materno”. Com ela, ele vive a experiência liminar, que o conduz ao processo de (des)construção de seu território identitário. Aurora, a mãe do Mouro – por meio das pinturas executadas nas paredes de seu quarto de adolescente – institui os componentes direcionais da sua trajetória. Na forma de um ritornelo, como postulado por Deleuze & Guattari (1995, p.117-70), o Mouro reencena, ainda que de modo inconsciente, seu ritual de construção de um território identitário, por meio das descobertas amorosas. Nesse contato com Dilly Hormuz, os elementos que o identificam com o mundo da infância dão lugar a prenúncios do que será sua relação com Uma Sarasvati – seu primeiro amor. Rememorar pode ser tanto uma abstração quanto uma ferida, ainda que simbólica, cuja fronteira é ultrapassada clandestinamente. O corpo de vinte anos, ávido pelos prazeres carnais, torna-se um espaço interdito porque esconde, sob uma corporeidade desejante, uma criança de dez. O ato transgressor figura, assim, como metáfora de uma fronteira que se rompe e coloca em confluência a criança escondida no homem, uma espécie de máscara contentora. Para Aristóteles (2001), o pathos da memória reside no corpo e nele encontra-se a tábua de cera onde se fixam as impressões. O filósofo elege o coração como a parte do corpo que com ela se relaciona, cujo desregramento resulta de desequilíbrio físico causado pela presença de um fluido na região do coração. Para além do movimento de lembrar/esquecer, a memória passa a comportar uma dimensão patológica, pois é algo pelo qual somos acometidos. É

1

A progeria é definida pela Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1997, p.15) como uma síndrome caracterizada pela senilidade precoce, associada à arteriosclerose, ao nanismo e outras identificações peculiares. É mais freqüente no sexo masculino. A inteligência é normal ou acima da média. Seus sintomas são a perda progressiva da gordura subcutânea e um ralentamento do crescimento, que não excede a 1 metro. As pessoas acometidas por essa doença raramente ultrapassam os vinte anos de idade, morrendo em decorrência de complicações arterioscleróticas ou edema pulmonar.

2

A Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1997, p.1568-9) define asma como uma síndrome caracterizada pela opressão torácica desencadeada em indivíduos predispostos por um mecanismo imunológico que torna a mucosa brônquica como órgão de choque e cujos alérgenos, produzidos dentro ou fora do organismo, podem ter diversas origens, inclusive de alimentos; predomina no sexo masculino, mais predisposto aos fatores desencadeantes.

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uma doença da qual o Mouro tenta se libertar ao escrever: “conto essas histórias para livrar-me delas; são tudo o que me resta, e ao contá-las eu as liberto” (Rushdie, 1996, p.1920). A palavra narrada é também uma forma de adiar a morte, seja porque o louco Vasco Miranda está apenas à espera de que termine o “rerrelato” seja porque os ataques de asma são cada vez mais freqüentes, ou até mesmo devido à progeria,1 doença que acelera o metabolismo biológico do Mouro. Se, para Aristóteles, a presença de um fluido na região do coração causa um desequilíbrio da memória, para o Mouro, a bílis negra concentra-se no coração do sistema respiratório: o pulmão. O narrador sofre de uma asma hereditária,2 que provoca o fracasso da capacidade de manter a vida em funcionamento pleno e, por conseqüência, um fracasso na capacidade de recordar os relatos fundadores de sua família. Se, por um lado, sua verdade é forjada a partir do cinema, da literatura, das artes e da história; por outro, ainda que apenas produza um relato sobreposto por inúmeras versões, é com essa verdade asmática, de respiração ofegante, que ele tem de arcar; é o último sopro de vida de uma história que, com tantas versões, a nenhuma pode se apegar. Disso talvez também resulte o caráter enciclopédico e rizomático (Deleuze & Guattari, 1995) dessa narrativa. A memória, seja ela fragmento pretérito, imaginada, um rerrelato, vestígios que se desprendem de um corpo físico para o corpo da escrita, é encenada nessa narrativa como um jogo, cujas regras se fazem a partir do entendimento de que a identidade contemporânea – uma articulação provisória e porosa – depende das dimensões enciclopédicas e rizomáticas dessa memória, que não a fecham numa estrutura genealógica linear e ininterrupta, mas lhe permite um contínuo e ininterrupto vir a ser.


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Referências

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Pareceristas

Ana Maria Domingues de Oliveira Antônio Donizeti Pires Benedito Antunes Gloria Carneiro do Amaral Guacira Marcondes Machado Leite Karin Volobuef Lucia Granja Luis Roberto Veloso Cairo Luiz Gonzaga Marchezan Márcia Abreu Márcia Valéria Zamboni Gobbi Maria das Graças Gomes Villa da Silva Maria Lúcia Outeiro Fernandes Maria Luiza Atik Maria Rosa Duarte de Oliveira Sekiguchi Marli Fantini Regina Pontieri Regina Salgado Campos Sylvia Telarolli Ude Baldan


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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser enviados em CD ou disquete (Windows 6.0 ou compatível) e em três vias impressas, sendo uma com identificação: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo) e temática escolhida. O disquete ou CD deve trazer uma etiqueta indicando o(s) autor(es) do trabalho e o programa utilizado. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • Os trabalhos – CD ou disquete e vias impressas – deverão ser enviados pelo correio para o endereço indicado a cada número. • Não serão aceitos, em nenhuma hipótese, trabalhos enviados pela internet. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não-doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • O trabalho deve obedecer à seguinte seqüência: – Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); – Nome(s) do(s) autor(es), à direita da página (sem negrito ou grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco


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para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla. Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave. Abstract – mesmas observações sobre o Resumo. Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave. Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver. Parágrafos: usar adentramento 1 (um); Subtítulos: sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e pági-

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na(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. Referências: devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz (1982, p. 37), “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” • Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.


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• Citação de vários autores

• Dissertação e tese

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

MACHADO, Micheliny Verunschk Pinto. Confluências entre João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello Breyner Andersen: poesia das coisas e espaços, 2006. Dissertação de Mestrado – Programa de Estudos Pós-graduados em Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992)

• Artigo de periódico GOBBI, Márcia Valéria Zamboni. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37-57, 2004. • Artigo de jornal

• Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire (1759, p.87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148): Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...]

Alguns exemplos de Referências • Livro FABRIS, Annateresa. Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1987. • Capítulo de livro PALO, Maria José. A crônica da vida: Memorial de Aires, Machado de Assis. In: OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte de (Org.). Recortes machadianos. São Paulo: EDUC/ FAPESP, 2003. p. 257-73.

TEIXEIRA, Ivan. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 08 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, Tânia Franco. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: Anais do II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – INTERNET MARTINHO, Fernando. Depois do modernismo, o quê ? o caso da poesia portuguesa. Rio de Janeiro: Revista Semear 4. Disponível em: <A href=”http://www.letras. puc-rio.br”>http://www.letras.puc-rio.br</A>. Acesso em 22 jun. 2006.

OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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